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Ato I: A terra que se constroi

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Prelúdio

Prelúdio

Ato I:A terra que se constroi

PAISAGEM

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Ao indagar-se “o que é paisagem?” inúmeras respostas podem surgir, sendo elas relacionadas à Geografia – referente ao conjunto de elementos da natureza como rios, mares, montanhas, florestas, mas também aos espaços construídos e habitados pelo homem. Outra resposta para essa pergunta estaria na Arte, podendo ser relativa a uma pintura, uma fotografia (imagem 1), um vídeo, ou literatura. É possível também que a resposta para “o que é paisagem?” consiga compreender todas as opções anteriormente citadas. Há quem diga que paisagem é “Um lugar com sensação de tranquilidade, com presença da natureza”, ou “É quando se tem noção do horizonte”, ou “É um conjunto de imagens”. Ao buscar a definição dada pelo dicionário, encontra-se:

1 Extensão de território e de seus elementos que se alcança num lance de olhar; panorama, vista. 2 Espaço com geografia e clima de determinado tipo: rural, urbana, montanhosa etc. 3 Desenho, quadro, gravura, foto ou qualquer outra manifestação artística cujo tema principal é a representação de uma paisagem, geralmente de lugares campestres (MICHAELIS ONLINE, 2021).

Tende-se a separar a noção de paisagem nos campos disciplinares da Geografia, da Arte e da Imagem. Mas é fato, como inicialmente citado, que a definição não se apresenta de forma única, precisa, certeira.

Abre-se uma gama de possibilidades de uso da palavra Paisagem em diversas áreas, reforçando uma pluralidade de abrangência. A geografia nos é familiar, fez parte da nossa educação básica, é parte dos estudos da arquitetura e urbanismo, e do cotidiano. A definição do dicionário reforça o nosso entendimento de paisagem a partir do olhar, do conjunto de elementos naturais, mas também para a “extensão de território e seus elementos que se alcança num lance de olhar” (MICHAELIS ONLINE). Estes elementos, para a geografia, vão além dos naturais, são os elementos artificiais – edifícios, ruas, praças etc. Este entendimento de paisagem como a abordagem desses conjuntos de elementos já foi muito aplicado, mas atualmente abre-se lugar para a

[...] Geografia Cultural, na qual a paisagem deixa de ser considerada a representação de uma extensão territorial para ser entendida como a imagem matriz de possíveis incursões, migrações e deslocamentos que podem ser efetuados pelo homem (SANTOS, 2007).

Vladimir Bartalini nos diz, em seu ensaio A Paisagem em Arquitetura e Urbanismo: Retomar às ‘nascentes’ como opção metodológica, publicado em 2013, que “A trajetória do pensamento geográfico registra inflexões importantes nesta tradição baseada no contato direto com a paisagem sob o comando da visão”. Há a linha da geografia pragmática onde “(...) o empirismo da observação visual é substituído pelo das estatísticas, dos modelos, dos sistemas”, e que também abre espaço para “(...) valorização subjetiva do território, a consciência do espaço vivenciado, o comportamento em relação ao meio (...)” (MORAES, 1982, p. 100-106 apud BARTALINI, 2013, p. 77). Esta vertente tem Milton Santos como defensor:

A paisagem nada tem de fixo, de imóvel. Cada vez que a sociedade passa por um processo de mudança, a economia, as relações sociais e políticas também mudam, em ritmos e intensidades variados. A mesma coisa acontece em relação ao espaço e à paisagem que se transforma para adaptar às novas necessidades da sociedade.(SANTOS, 1997, p. 37 apud SERPA, 2010, p. 133).

Outra vertente apresentada por Bartalini é a geografia

Imagem 1: German Lorca, Vila operária de Quatá - Lauro Miller, SC, 1970. Fotografia. MASP (Museu de Arte de São Paulo) São Paulo - SP.

fenomenológica, a qual a diferenciação de espaço e paisagem não faz sentido, ela, a paisagem, é “(...) introjetada no sistema de valores humanos, definindo relacionamentos complexos entre atitudes e percepção sobre o meio” (RIBEIRO, 2007, p. 24 Apud. BARTALINI, 2013, p.78). Dentre os nomes que figuram esta linha está Jean-Marc Besse, que diz: “A paisagem é da ordem do sentir, ela é participação e prolongamento de uma atmosfera (...)” (BESSE, 2000, Apud. BARTALINI, 2017, 47). Se pensarmos no que Besse pondera, ou seja, que a paisagem é da ordem do sentir, pode-se criar uma relação com a Arte. Essa que mexe diferente com cada espectador, essa que não age de forma única sobre o indivíduo. O sentir não está apenas no espectador, mas também, e sobretudo, no autor, já que é a partir de sua experiência com a paisagem que ele executa sua obra. Isso caracteriza uma experiência estética, visto que a palavra estética origina do grego aisthesis e significa sentir, apreensão pelos sentidos, percepção. Nas pinturas do século XVII, quando a paisagem se firma como especialização artística, o que se buscava era uma cópia aproximada do que se via, já que não havia outro meio de registrar o que era vivenciado. Os artistas flamengos tiveram um maior destaque neste gênero de pintura, como Jacob Van Ruisdael em Paisagem com ruínas de um castelo e uma igreja (Imagem 2), de 1665. É visível que o objeto central é a paisagem holandesa, caracterizada com moinho, igreja, parte alagada, campo, pastores e a linha do horizonte. Com o advento da tinta em bisnaga, a pintura de paisagem se projeta, possibilitando a experiência com o espaço de forma ampliada, já que se podia pintar in loco. William Turner (Imagem 3), em suas paisagens, transcende a ideia de registro do espaço. Suas pinturas além da explosão da luz, apresentam uma nova forma de representação, como a definida por Argan (2010):

[...] as imagens, em vez de aproximadas e definidas por ela, são afastadas e dissolvidas; subtraídas à experiencia; confundida numa vibração rítmica ilimitada; mas, ao mesmo tempo, despidas de toda analogia naturalista, propostas como puras imagens ou

Imagem 2: Jacob Van Ruisdael “Paisagem com ruínas de um castelo e uma igreja”, 1665. National Gallery, Londres, Reino Unido.

até apenas como possibilidade de imagem, como luz (ARGAN, 2010, p. 119).

Quando Argan (1992, p.17-18) discorre sobre o belo, ele argumenta que reconhecer algo como belo é um juízo: “(...) a coisa não é bela em si, mas no juízo que a define como tal”. O autor, ao falar do “belo pitoresco” e o “belo sublime”, revela que são duas formas de juízo “(...) que dependem de duas posturas diversas do homem frente à realidade (...)”. Argan nos apresenta duas formas de ver a natureza pela arte, concomitante ao ver a paisagem. Para o pitoresco, como apontado por Argan, a natureza é uma fonte de estímulos, mas não é fonte única de sentimento. O pitoresco se expressava na jardinagem, um “(...) educar a natureza sem destruir a espontaneidade(...)” (ARGAN, 1992, p. 19). Reflete na pintura de paisagem, então, manchas mais claras e escuras, cores quentes e luminosas, um enfrentamento entre o homem, em sua pequenez, e a natureza, em sua imensidão. Turner é um dos pintores que representa o “pitoresco”, além dos paisagistas R. Wilson e J. Constable. Ao lado do “pitoresco” está o “sublime”, que teve W. Blake e J. H. Fussli como difusores. O modo sublime se definia como:

[...] visionário, angustiado: cores às vezes foscas, às vezes pálidas; desenhos de traços fortemente marcados; gestos excessivos, bocas gritantes, olhos arregalados, mas a figura sempre fechada num invisível esquema geométrico que aprisiona e anula seus esforços (ARGAN, 1992, p. 19).

Segundo Argan (1992, p. 20), fica explícito, na contradição dialética de “pitoresco” e “sublime”, o problema da época “(...) a dificuldade da relação entre indivíduo e coletividade.” O “pitoresco” vê integração entre indivíduo e ambiente natural, já o “sublime” vê o resultado do isolamento do indivíduo, a angústia e o medo da solidão. Quando já não se tem o interesse em ser fidedigno, visto que a fotografia já havia tomado este local, a pintura se expressa a partir das impressões e, posteriormente, sensações do artista. Como dito por

Imagem 3: Joseph Mallord William Turner, “Sun Rising through Vapor”, 1807. National Gallery, Londres, Reino Unido.

Argan (1992, p. 75), “(...) é difícil dizer de quem partia o maior interesse, se era dos fotógrafos pelos pintores ou dos pintores pela fotografia”. Surge aí a “(...) necessidade de redefinir sua essência e finalidade frente ao novo instrumento de apreensão mecânica da realidade” (ARGAN, 1992, p. 75). O movimento Impressionista, que surgiu em Paris entre 1860 e 1870, rompe com o passado para abrir caminho para a pesquisa da arte moderna. Gustave Courbet já havia anunciado, em 1847, seu programa que visava “(...) realismo integral, abordagem direta da realidade, independente de qualquer poética previamente constituída” (ARGAN, 1992, p. 75). Há uma tomada de consciência de que existe uma importância na história dos grandes mestres do passado, mas é necessária uma ruptura com o “clássico” e o “romântico”, sendo incontornável o enfrentamento da realidade sem eles, e também

[...] libertar a sensação visual de qualquer experiência ou noção adquirida e de qualquer postura previamente ordenada que pudesse prejudicar a sua imediaticidade, e a operação pictórica de qualquer regra ou costume técnico que pudesse comprometer sua representação através das cores (ARGAN, 1992, p. 75).

Os contornos são suprimidos, o chiaroscuro não é utilizado, há uma sucessão de pinceladas justapostas de cores vivas que dão uma vibração à pintura, não havia um cânone preciso, não havia concordância ideológica e política, mas havia pontos que eram consonantes, como dito por Argan. Há uma repulsa à Arte Acadêmica, uma escolha pelo realista, um interesse pela paisagem e natureza-morta, rechaçando o objeto, entre outros pontos. Dentre os nomes do Impressionismo, circulam Claude Monet, Paul Cézanne, Pierre-Auguste Renoir e Edgar Degas. A partir de 1880, os Impressionistas começam a sentir a necessidade de ir além, e começam a “investigar a estrutura da sensação”, como disse Argan (1992). Cézanne e Van Gogh são alguns dos artistas que compõem o

Imagem 4: Vicent Van Gogh, “Campo de trigo com corvos”, 1890. Van Gogh Museum, Amsterdã, Holanda.

grupo dos pós-impressionistas, enquanto que o primeiro se encontra nas raízes do Cubismo, e o segundo se apresenta na raiz do Expressionismo. Em Campo de trigo com corvos (Imagem 4), Vincent Van Gogh nos apresenta uma paisagem a partir de sua compreensão. Argan diz que Van Gogh é:

[...] a pura e simples percepção da realidade e sua existência aqui e agora: apenas tomando consciência e forçando o limite é que se chegará a rompê-lo. O que Van Gogh quer é uma pintura verdadeira até o absurdo, viva até o paroxismo, até o delírio e a morte (ARGAN, 1992, p. 125).

O subconsciente humano também virou tema de paisagem graças aos surrealistas, que em 1924 lançavam o seu manifesto. Em 1928, na Le Surréalisme et la peinture, Breton publica a estética do movimento. O inconsciente é tido como a dimensão da arte, Argan nos diz:

[...]Se a consciência é a região do distinto, o inconsciente é a região do indistinto: onde o ser humano não objetiva a realidade, mas constitui uma unidade com ela. A arte, pois, não é representação, e sim comunicação vital, biopsíquica, do indivíduo por meio dos símbolos (ARGAN, 1992, p. 360).

A paisagem Surrealista aparece como imagens misteriosas que aludem a sonhos, fantasias, mitos. O que se vê em A persistência da memória (Imagem 5), de Salvador Dalí, é explicado no site do Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, o MoMA¹:

At times lacking recognizable geological elements such as mountains, hills, or vistas, these works confound traditional expectations of the landscape genre, and propose that the interior world of the psyche is as complex and ripe for exploration as the world beyond our bodies (MoMA online)².

¹MoMA: Museum of Modern Art, é o museu de arte moderna de Nova Iorque. ²Tradução livre: “Às vezes, carecendo de elementos geológicos reconhecíveis, como montanhas, colinas ou vistas, essas obras confundem as expectativas tradicionais do gênero da paisagem e propõem que o mundo interior da psique é tão complexo e maduro para exploração quanto o mundo além de nossos corpos” 34

Imagem 5: Salvador Dali, “A persistência da memória”, 1931

Imagem 6: Yves Tanguy, “O sol em sua arca”, 1936, Veneza, Itália.

Outro surrealista que cria paisagens psíquicas é o Yves Tanguy (Imagem 6). Argan (1992, p. 364) diz que Tanguy “(...) cria a antinatureza: paisagens sem fim, planetárias, sem luz nem ar, onde as únicas presenças ‘eloquentes’ são os restos de uma vida orgânica extinta há tempos imemoráveis”. O Expressionismo Abstrato, primeiro movimento pictórico norte-americano a ganhar reconhecimento internacional, se desenvolve no pós da Segunda Guerra Mundial, apresenta uma crítica à sociedade americana, ao capitalismo, articulando uma recusa às técnicas tradicionais. Willem De Kooning nos apresenta diversas pinturas de paisagens, como Duas figuras numa paisagem (Imagem 7). Barbara Hess em seu livro sobre De Kooning diz:

O conceito de “paisagem” tomava uma interpretação muito pessoal nas mãos de Kooning, sendo apenas muito indiretamente relacionado com aquilo que se apresenta ao olhar no mundo exterior. Aquilo que ele tentava fazer era captar na tela percepções e sensações, impressões de cor e atmosfera. Ao contrário dos famosos pintores de paisagem do século 19, como Monet ou Constable, ele não trabalhava no exterior mas sim no atelier (HESS, 2009, p. 51).

O que fica claro é que a paisagem não se limita ao concreto, ao que é palpável como natureza – rios, mares, montanhas etc.; ela também se dá no abstrato, no sentimento. Para ilustrar isso há um trecho de Ritter em que ele se refere a Humboldt:

Para pintar a natureza em toda sua grandeza não se deverá então ficar simplesmente nos fenômenos exteriores; será preciso também representar a natureza tal como ela se reflete na interioridade dos homens (HUMBOLDT, 1845-1862 Apud RITTER, 1997, p. 65).

Win Wenders, em uma das primeiras linhas de seu texto A paisagem Urbana, diz que ele “(...) fixou sua câmera diante de numerosas paisagens, especialmente diante de paisagens urbanas, mas também campos, perto de fronteiras, sob cruzamento de autopista ou no deserto”. Aqui o autor

Imagem 7: Willem De Kooning, “Duas figuras numa paisagem”, 1967. Stedelijk Museum, Amsterdã, Holanda.

delimita que as imagens geradas a partir de sua câmera eram capturas de paisagens, e que estas, no ponto de vista dele, não abarcam somente elementos naturais, mas também edifícios, ruas, etc. Em seu texto, Wenders diz ainda que a imagem acompanha a mudança das cidades, concomitantemente, da paisagem. A imagem da paisagem de uma cidade já foi registrada por pintura, passou pela fotografia (que permitiu uma reprodutibilidade da imagem), e em seguida veio o cinema que “animou” este desenvolvimento. Mais tarde, a televisão virtualizou o acesso à imagem, permitindo ver a paisagem em tempo real. Não que isso afirme que a paisagem é uma imagem de um enquadramento de uma visual. No entendimento de Wenders, a imagem é um enquadramento de uma percepção de paisagem do outro. Pode-se entender isso no seguinte fragmento:

Fiquei espantado ao saber que cada formação da paisagem encarna para eles um personagem do seu passado mítico. Cada rocha traz em si uma ‘história’ que remonta a ‘época dos sonhos’ dos aborígines (WENDERS, 1991).

Ou seja, para o aborígine, ver a imagem da paisagem o remete a algo que não remete o autor, e possivelmente não comunica com outras pessoas que não são nativas do espaço. É interessante pensar, então, que a paisagem carrega uma história, que é assimilada pelo expectador da paisagem, e isso conversa com a seguinte fala de Vania Bartaneli:

Como testemunho da passagem humana na Terra, a paisagem é plástica, maleável e entremeada pelos projetos de sentido que se dão ao longo do tempo, em conformidade com as possibilidades abertas em cada tempo. Paisagem é, portanto, História, e isso nos concerne em primeira instância, pois é produção humana em qualquer dimensão que se apresente (BARTALINI, 2017, p. 48).

Fica evidente que não há uma definição uníssona do que seja paisagem. O que se tem é uma certeza que ela é um produto, como supracitado, do ser humano, podendo ser um conjunto de imagens, um agrupamento de elementos, ou um plano literário onde “(...) as incursões do leitor sobre a superfície textual se fazem como espécie de

reconhecimento da topografia narrativa (...)” (SANTOS, 2007, p. 40). A paisagem é, portanto, o resultado da forma de sentir o espaço pelo indivíduo. Por isso, não se pode limitar a forma de sentir a paisagem no visual – os cegos, por exemplo, também têm essa experiência a partir dos outros sentidos. Por meio do tato, da brisa no corpo, do perfume das flores ou do cheiro da maresia. O enquadro de uma paisagem depende individualmente das sensações geradas pelo espaço para com o indivíduo. A natureza é um espaço que existe antes do homem, que se define sozinho. Os termos utilizados para nomear, e/ou “personificar” os recursos naturais, vêm do homem. Antes da existência humana, não havia rio, mar, terra, montanha, vegetação. Existiam estes recursos aos quais utilizamos os nomes. Se suprimirmos os nomes, os recursos continuam existindo; mas se suprimirmos os homens, a paisagem deixa de existir, pois como já dito e visto, a partir de diversas formas de entender a paisagem, é que sem o homem não há paisagem. A interação humana é que cria a paisagem, seja ela natural, seja ela construída – como as cidades; seja ela psíquica – com as pinturas surrealistas, como os sonhos. A paisagem não é, e não precisa ser a mesma para todos, ela é individual, ela é experiência. Pontos em comum podem existir, mas dissonâncias sempre ocorrerão. A paisagem só existe através de nós e para nós.

SOBRE DESFILES E CENÁRIOS

Foi-se a época em que as maisons haute couture³ apresentavam suas coleções em seus ateliers em Paris. Christian Dior, Chanel, Yves Saint Laurent gozavam de edifícios bem localizados em Paris onde recebiam suas clientes exclusivas, e também os jornalistas. Para a população que não podia pagar pelos modelos, restavam as revistas de moda para acessar a coleção da temporada. A Dior ocupa, até hoje, o número 30 da Avenue Montaigne. Lá ele tinha sua loja, em um andar superior o seu salão para receber as clientes, e nos pavimentos mais altos os ateliers. É claro que na nos anos de 1947, quando ele inaugurou sua “casa”, o conceito de ready-to-wear – pronto para uso, em tradução livre do inglês – ainda não era explorado pelas grandes casas de costura, apesar do conceito existir nos Estados Unidos da América.

³Maisons haute couture: ou casas de alta costura, são denominados aqueles ateliers que fazem parte da federação de alta costura e moda (Fédération de la Haute Couture et de la Mode), podendo ser membros permanentes ou convidados. Para fazer parte, a Casa deve ter seus ateliers em Paris, deve realizar dois desfiles sazonais todo ano e suas peças são feitas a mão e sob medida. 40

Imagem 8: Yves Saint Laurent, 1966, Museu YSL Paris, Paris, França

O ready-to-wear, ou prêt-à-porter para os franceses, é a roupa feita em grande escala, com medidas padronizadas e que podem ser vendidas em lojas sem a necessidade de se encomendar. As roupas “prontas para uso” já eram febre nos Estados Unidos da América. Apesar disso, naquele tempo ainda, quem ditava as tendências e o consumo do vestuário eram os ateliers. As roupas eram feitas sob medida, divididas por temporada, outono-inverno, e primavera-verão. Apesar de ter sido Pierre Cardin o primeiro grande nome da moda francesa a colaborar com uma loja de prêt-à-porter, foi Yves Saint Laurent (Imagem 8), junto de seu companheiro de vida e sócio Pierre Bergé, que trouxe o conceito de pronto para uso para o mundo do luxo. Saint Laurent propôs ainda uma mudança de “lado” em Paris, abrindo sua loja na Rive Gauche, na parte sul de Paris. As demais casas de costura se localizavam no lado norte do Rio Sena, na região entre a Place Vendôme, a Champs-Élysées e a Avenue Montaigne. Com a absorção do conceito ready-to-wear pelas grandes casas de costura, o número de desfiles aumentou, ganhou mais temporadas e se expandiu pelo mundo. Hoje, juntamente com Paris, as semanas de moda de Milão, Londres e Nova Iorque são consideradas como referências. Atualmente, as semanas de moda se organizam em duas coleções femininas anuais – outono-inverno e primavera-verão; duas semanas no mesmo esquema, só que masculina, a coleção pre-fall – que é uma meia estação pré-outono; e a resort, ou outra denominação dependendo da marca, que é uma coleção de meia estação. Nem todas as marcas respeitam esta lógica. A italiana Versace desfila sua coleção masculina junto com a feminina, por exemplo. A Dior tem duas coleções anuais femininas, duas masculinas, a resort feminina e a pre-fall masculina, sem contar com as duas coleções de alta-costura. Até o fim dos anos 1990, os desfiles aconteciam com um cenário “simples”(Imagem 9), composto por uma passarela linear (ou uma passarela de formas simples), um logo da marca, e espectadores sentados de forma frontal. A partir dos anos 2000, com o advento da

Imagem 9: Prada RTW Primavera Verão 1996, WEB

Imagem 10: Chanel RTW Outono Inverno 2017/2018, WEB

internet e das transmissões on-line, os desfiles começaram a ter cenários mais elaborados, e também a ter um local fixo. A Chanel, por exemplo, começou a usar o Grand Palais em Paris para apresentar as suas coleções, onde já recriou o lançamento de um foguete (Imagem 10), as geleiras da era glacial (Imagem 11), e até uma praia. Já a Dior, e outras marcas do conglomerado de luxo LVMH4 , começaram a usar edifícios e espaços ligados à arte, como o museu Rodin e o Louvre. A Saint Laurent costuma usar o Jardim do Trocadero para erguer os seus cenários. Neste período pandêmico, as marcas se adaptaram aos desfiles on-line, pré-gravados, mas não abriram mão das estruturas. A Dior utilizou a sala dos espelhos do Palácio de Versalhes com intervenção da artista Silvia Giambrone5 , já a Prada manteve sua parceria com o AMO – estúdio de Design do OMA – para o seu desfile de “possibilidades de sensações” (Imagem 12). Os desfiles de moda luxo, hoje, não são apenas sobre apresentar peças de roupas para os consumidores. Eles são a ignição de marketing da coleção, uma forma de criar mídia para as marcas. Cada vez mais as grandes marcas de moda e luxo investem em desfiles grandiosos para poder atrair mídia e dialogar não só com seus compradores, mas criar desejo em quem vê.

4LVMH: Maior conglomerado de luxo do mundo, que envolve diversas marcas de diversos nichos: roupas, couro, bebidas, jóias, perfume etc. O nome deriva das iniciais das principais marcas da empresa a Moët (Champanhe), Hennessy (conhaque) e Louis Vuitton (Malas, acessórios de couro, roupas, jóias, perfume). 5Silvia Giambrone: Artista italiana nascida na Sicília e formada na Academia de Belas Artes de Roma. Representada por galerias como Richard Saltoun Gallery em Londres, Stefania Miscetti Studio em Roma e Galleria Marcolini em Forli. 44

Imagem 11: Chanel RTW Outono Inverno 2010/2011, WEB

Imagem 12: Prada Masculino RTW Outono Inverno 2021/2022, WEB

DIOR

Nascido em 21 de janeiro de 1905 em Grandville, França, Christian Dior veio a ser o nome mais significativo da costura francesa no pós Segunda Grande Guerra. Após anos de recessão, escassez e roupas mais “enxutas”, menos tecido, Dior surge na cena francesa com o seu revolucionário New Look (Imagem 13). O termo usado por Carmel Snow, redatora-chefe da Harper’s Bazaar, definia o novo visual que o estilista propôs para as mulheres. Saias amplas, cintura marcada, bustos em evidência, romantismo e metros de tecido. Sobre esse período, Dior disse em sua autobiografia: “Eu desenhava ‘mulheres-flores’, com ombros delicados, bustos salientes, cinturas finas como caules e saias enormes como corolas”.

Christian Dior era apaixonado pelas flores e sua paixão vinha de berço: herdou de sua mãe. Ele amava viver entre as plantas no jardim de sua casa de infância em Grandville. Suas coleções refletem o seu amor pelas flores, na escolha dos bordados, nos desenhos das silhuetas. Ao assumir o cargo de diretor criativo de 2012 até 2015, o estilista belga Raf Simons disse que sempre foi visto como um estilista minimalista, mas que iria provar que sabia ir além. Como apresentado no documentário Dior e Eu, Raf não era um candidato para assumir a marca após a abrupta saída de John Galliano. Raf era o oposto de Galliano, que

Imagem 13: Cristian Dior, Tailleur Bar, 1947 WEB

Imagem 14: Cristian Dior, Haute Couture, Outono Inverno 2012/2013, WEB

sempre criou uma Dior extravagante, um pouco rebelde – possivelmente advinda da sua formação da Central Saint Martins de Londres. Em seu primeiro desfile pela Dior – Alta Costura inverno 2013 –, Raf Simons presenteia o público com um percurso entre as silhuetas Dior, o New look representado pelo Tailleur Bar, e referências florais que tanto inspiravam o monsieur Dior. Além disso, Raf insere camadas de referências artísticas aos modelos, como a utilização de telas do artista Sterling Ruby para a criação de vestidos (Imagem 14). A arte é um fator determinante na criação do estilista belga. Ao idealizar o espaço onde seria o desfile juntamente com o Bureau Betak6 , Raf propõe cobrir as paredes da casa com flores (Imagem 15), não só por ser algo que remete à Dior, mas por ser um ponto importante da coleção. Para ele, a casa coberta de flores seria o negativo, o inverso do cachorro de flores do artista Jeff Koons, seria a imersão do espectador na arte. Para o desfile da coleção primavera-verão 2016 prêt-à-porter da Dior, Raf escolheu mais uma vez o Bureau Betak para a produção e execução do cenário do desfile. O local escolhido foi o Louvre, especificamente a praça quadrada. A coleção, segundo Raf, era uma imersão na paisagem do sul da França, com cores que remetem aos campos de lavanda e o céu ensolarado, mas com toques da cidade grande. Os recortes, a roupa funcional e a fusão de técnicas de costura remetem a esta cidade. Como o próprio estilista disse em uma entrevista, após o desfile, a coleção é “Suave futurista, um suave impactante”.

6Bureau Bbetak: Fundado em Paris no ano de 1990 por Alexandre de Betak, o escritório Bureau Betak é hoje um dos maiores nomes na categoria de cenografia para moda. Com escritórios em Paris, Nova Iorque e Singapura, realizou mais de novecentos projetos como desfiles, espetáculos e exposições. Com foco no mercado de luxo, os projetos visam transmitir emoções, criar uma memória afetiva com o público e fomentar trocas artísticas entre o design e o espectador. 48

Imagem 15: Cristian Dior, Haute Couture, Outono Inverno 2012/2013, WEB

Imagem 16: Jeff Koons Puppy, 1992,Guggenheim Bilbao WEB

Frente a estas informações, a resposta do Bureau Betak para a cenografia foi a inserção de um campo de lavandas no Louvre (Imagem 17). Exteriormente era possível ver uma elevação de lavandas que remete a fonte de inspiração da coleção, os campos do sul da França, face à cidade grande, inserida no meio de Paris, nas proximidades de avenidas e fluxo constante de pessoas. Um pequeno recorte no centro da colina com um letreiro “DIOR” direciona o espectador para adentrar o cenário. Do lado de dentro há uma nova surpresa: um local extremamente branco, com linhas retas, totalmente o oposto a fachada da cenografia (Imagem 18). A posição dos bancos retilíneos remete a cidade projetada com suas ruas, os canhões de luz reforçam a artificialidade do espaço “suave futurista”. Ao fundo do interior deste paralelepípedo branco se vê novamente um anúncio de colina de lavanda, com um outro recorte de onde saem as modelos. Durante quinze minutos esta é a paisagem que a Dior imerge o espectador para apresentar sua coleção.

Imagem 17: Cristian Dior, RTW Primavera Verão 2016, WEB

Imagem 18: Cristian Dior, RTW Primavera Verão 2016, WEB

O PAVILHÃO DE OSAKA

No ano de 1969, os arquitetos Paulo Mendes da Rocha, Jorge Caron, Julio Katinsky e Ruy Ohtake venceram o concurso para o pavilhão da Expo’70. Fazia doze anos que o Brasil não participava de uma exposição universal. Até o ano de 1969 não havia interesse militar em promover esta troca com as outras nações. O Ministério das Relações Exteriores solicita ao presidente do IAB, Eduardo Kneese de Mello, um nome para desenvolver o pavilhão. Vendo um conflito ético nesta posição o presidente do IAB propõe que seja feito um concurso nacional. Vinte e cinco dias foram dados para os interessados enviarem suas propostas. De forma unânime, o grupo supracitado ganha o concurso. Ruth Verde Zein e Izabel Amaral, em seu artigo A feira mundial de Osaka de 1970: o pavilhão brasileiro, define que o júri “(...) reconheceu no projeto uma poética inconfundível, muito ligada às tradições brasileiras”, concretizada por uma “abordagem nitidamente brasileira”, baseada na “liberação do terreno” e resultando em um “espaço rico em formas e conteúdos” (ZEIN; AMARAL, 2010, p. 109). O terreno brasileiro tinha 50 metros de frente por 82,5 metros de profundidade, o pavilhão que media exatamente a largura do terreno, 50

Imagem 19: Pavilhão do Brasil Expo Osaka, planta terreo, WEB

Imagem 20: Pavilhão do Brasil Expo Osaka, planta corte, WEB

metros, tinha 32,5 de profundidade. Ele foi posto a 20 metros de distância da rua de acesso, deixando um espaço de fundo de 30 metros. Sendo assim, a soma dos dois recuos dão a largura do terreno e concomitantemente do pavilhão, 50 metros (Imagem 19 e 20). A cobertura fica apoiada em quatro pilares, sendo três deles “camuflados” no relevo artificial criado (Imagem 21). As áreas de estar estão semienterradas, sendo uma deslocada do eixo da cobertura, e outra nos fundos do terreno – ambas são acessadas por rampas. Paulo Mendes da Rocha, em uma entrevista para Andrea Macadar, define o pavilhão da seguinte forma:

(...) o que aquele pavilhão queria exprimir, antes de mais nada, era a consciência da ocupação dos estados naturais da América com as construções. Então, simbolicamente, era um teto ideal, que teria um teto de cristal da nossa FAU, colocado sobre a própria paisagem, que seria a paisagem simulada naquelas colinas, com um número mínimo de pilares, ou seja, uma especialidade técnica de construção que pretendia revelar nítido conhecimento técnico para fazer o que quisesse. Portanto duas boas vigas para aquele vão e cada viga apoiada em dois pilares com a sucessão mais normal, mais tranqüila de esforços: balanço – vão central e balanço lateral, porém não em quatro vezes. Um dos apoios se transforma na cidade de modo simbólico. Aqueles dois arcos cruzados são a cidade. E chamamos “largo do café” para dizer uma cidade brasileira, do ponto de vista simbólico.

Imagem 21: Pavilhão do Brasil Expo Osaka, 1970, WEB

DIÁLOGO

O arquiteto-paisagista português João Nunes, em sua entrevista para o Inquérito Portugal, diz que: “(...) é preciso ter a noção de que o local muda, e que a dinâmica é uma constante inerente à própria ideia de paisagem. Porque não há sítios estáveis, nenhuma realidade que seja fixa” (NUNES, 2017). Esta ideia de não-estabilidade da paisagem, da sua constante mudança devido a interferências no espaço é vista a prova nos dois projetos apresentados. O primeiro projeto, referente à cenografia, se insere em uma paisagem conhecida, mesmo que por fotografia: o Louvre. Esta Paisagem já estava “posta”, já existia por se tratar de um espaço de um monumento que foi inserido centenas de anos antes. A inserção do Palácio Real Francês, atual Museu do Louvre, também foi uma transformação, uma mudança na dinâmica do espaço que antes existia. Por isso, mesmo que temporária, a cenografia gerou uma nova paisagem, gerou uma nova percepção de espaço, gerou um embate entre o novo e o existente, entre a cidade e o campo. Este projeto cenográfico escolhido trata da recriação de um lugar – os campos sulistas da França cobertos de lavanda – sobre uma cidade carregada de monumentos, espaços milimetricamente projetados, de acordo com a organização urbanística e com o desenho dos edifícios

Imagem 22: Sanaa, Grace Farms, WEB

propostos pelo urbanista francês Haussmann. Enquanto a cenografia tenta compreender, em suas formas, a visão de um espaço – remetendo aos campos de lavanda, o segundo projeto escolhido – O Pavilhão de Osaka de Paulo Mendes da Rocha –cria um novo espaço através do relevo. Um espaço que não referencia um lugar específico, mas que representa um todo, uma “paisagem simulada” como o autor mesmo diz. É comum a estes dois projetos a criação do relevo para construir a paisagem. O cenário constrói de forma “fidedigna” ao tentar criar com cores, forma, textura e perfume a paisagem com relevo, enquanto Mendes da Rocha nos apresenta um relevo de concreto, que por meio de suas linhas nos remete às curvas de uma montanha, ou até mesmo de uma duna.

Carlos Alberto Maciel, em seu texto Topografias ou a construção como paisagem, trata de várias obras arquitetônicas que interpretam e reinterpretam a topografia como forma geradora de seus projetos. Ele diz que “Essas intervenções ora reeditam topografias variadas dissimulando a construção da paisagem, ora criam acidentes geográficos artificiais em locais originalmente planos” (MACIEL, 2006, p. 16). Fizeram isso arquitetos como Oscar Niemeyer – no térreo do Copan; Sanaa – em Grace Farms ao usar do relevo para pousar o edifício (Imagem 22); e na Biblioteca da Universidade de Tecnologia de Delft (Imagem 23) projetada pelo escritório Mecanoo – que cria um “acidente geográfico” que em certo ponto oculta o prédio. No Pavilhão de Osaka, Paulo Mendes se apropria de um terreno plano, e com o desenho de uma nova topografia cria o espaço, transformando não só o terreno, mas também o entorno, ao propor uma arquitetura que visa dialogar e se aproximar dos pavilhões lindeiros a ele. Carlos Alberto Maciel então salienta que:

Essa estratégia transforma os possíveis objetos edificados em paisagens artificiais, reforçando a prevalência do espaço público e aberto e fazendo da intervenção topográfica fato

Imagem 23: Mecanoo, Biblioteca Universidade de Tecnologia de Delft, WEB

gerador do projeto, a construir rica oposição com a cobertura tecnologicamente edificada (MACIEL, 2006, p. 17).

Assim como o Pavilhão de Osaka, a cenografia é projetada em um local plano, gerando um “acidente geográfico”, mas também se apresenta como uma escultura – uma intervenção no espaço da arquitetura. O espectador não consegue decodificar aquele relevo no espaço até vislumbrar a fenda de entrada, e visualizar o nome “Dior”. Trata-se de um morro de lavanda que desestrutura a paisagem “original” – pátio interno do Louvre. Em outro momento, que não fosse a Semana de Moda de Paris, o espaço se encontraria “vazio”. Essa situação remete à discussão iniciada por Rosalind Krauss sobre A Escultura no Campo Ampliado, e sucedida por Anthony Vidler em O Campo Ampliado da Arquitetura. A Escultura no Campo Ampliado, publicado em 1979 por Rosalind Krauss, debruça-se sobre a mudança ocorrida na “escultura”, não exatamente no termo, mas sobre o espectro que ele abrangia até, mais ou menos, dez anos antes do texto ser publicado. Para a autora, a escultura, em um período da história, transita na lógica do monumento quando ela funciona como marco, como referência a algo. Alguns exemplos são os bustos em praças e os obeliscos, que eram postos sobre um pedestal, com a função de comunicar aquilo, “memorialização”:

[...] As esculturas funcionam portanto em relação à lógica de sua representação e de seu papel como marco; daí serem normalmente figurativas e verticais e seus pedestais importantes por fazerem a mediação entre o local onde se situam e o signo que representam (KRAUSS, 1979, p. 131).

O esmaecimento do “local específico” e a perda da “lógica do monumento” ocorre no fim do século XIX, sendo exposto por Krauss quando a autora comenta duas obras de Rodin, Portas do Inferno (Imagem 24) e a estátua de Balzac. Segundo ela, elas seriam o “limiar da lógica do monumento”. As obras encomendadas respectivamente em 1880 e 1891, “falharam” não só por ter diversas versões espalhadas em diversos lugares,

Imagem 24: Rodin, Portas do Inferno, 1880, WEB

mas, também, por não terem sido alocadas no local que foram designadas. Ou seja, não teria sido “cumprida” a função de “memorialização”. A partir da ruptura gerada por Rodin, mas sobretudo nos trabalhos dos artistas da década de 1960, como Richard Serra e Christo, surge um desvio, uma curva, uma expansão nas fronteiras entre as disciplinas –arquitetura, artes-plásticas – paisagem.

Os primeiros artistas que exploraram as possibilidades da arquitetura mais não-arquitetura foram Robert Irwin, Sol LeWitt, Bruce Nauman, Richard Serra e Christo. Em todas essas estruturas axiomáticas existe uma espécie de intervenção no espaço real da arquitetura, às vezes através do desenho ou, como nos trabalhos recentes de Morris, através do uso do espelho (KRAUSS, 1979, p. 136). É notado que a arte, através dos artistas, começa a invadir campos antes não explorados. Há uma extrapolação das escalas, já não sendo essas mais suportadas por galerias e museus. Há um transbordamento para um território que antes era “exclusivo” da arquitetura, provocando a transição da neutralidade, uma dissolução das fronteiras ao identificar que ela está interagindo na construção e na manipulação de um território, no desenho do espaço, na construção poética do lugar, ressignificando um sítio. Vidler, ao discutir o “Campo Ampliado da Arquitetura”, retoma a Richard Serra para salientar a forma que a escultura “invade” o território da arquitetura:

O Tilted Arc é simultaneamente escultural e arquitetônico, tal como os arquitetos contemporâneos acreditam ser as formas interiores e exteriores de suas construções. No fundo, elas são vivenciadas pelo tato, em virtude de sua projeção, e oticamente pelo olhar; ambas se impõem e reagem igualmente ao corpo; ambas apresentam uma combinação de “uso” vivencial, estético e funcional (VIdler, p. 246).

A definição de Vidler sobre a obra Tilted Arc, de Richard Serra (Imagem 25), nos remete à cenografia em questão. Ambas se encontram

Imagem 25: Richard Serra, Tilted Arc, 1981, WEB

posicionadas no meio de um espaço praça, e ambas promovem o reposicionamento do expectador-transeunte. Quando elas – a escultura e o cenário – não existiam, a dinâmica do espaço se apresentava de outra forma. Percursos lineares curtos, apenas para cruzar o espaço, promoviam a não observação do espaço, a falta de contemplação e experimentação. Ao serem inseridas no espaço, elas fomentam um novo modo de percorrer o espaço, um prolongamento no trajeto, uma forma de provocar a pessoa que passa, através da dilatação do espaço. Se exteriormente a cenografia se apresenta como uma escultura, internamente ela se apresenta como uma pintura de uma paisagem. Um paralelepípedo branco que no fundo apresenta um relevo de lavanda com uma fenda no meio. A não existência de adornos nas paredes, a cor única branca intensifica a sensação de um enquadramento de paisagem, tanto pintura como fotografia. Seja a partir de um relevo artificial coberto de plantas, ou uma ondulação de concreto, ambas as obras nos fomentam a sensação de paisagem. Elas nos inserem em paisagens ficcionais que transformam o espaço real. Seja ele a praça de um museu ou um terreno ao lado de outros pavilhões. A criação se dá a partir do autor, mas a vivência da paisagem é singular, individual. Como disse João Nunes (2019, p. 73): “Transformação é vida, e a construção da paisagem é transformação.”

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