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Ato III: Luz que molda o espaço

[...] o espaço não é simplesmente a projeção tridimensional de uma representação mental, mas é algo que se ouve e no qual se age. E é o olho que enquadra – a janela, a porta, o ritual efêmero da passagem [...] Espaços de movimento – corredores, escadas, rampas, passagens, soleiras; é aí que começa a articulação entre espaços dos sentidos e o espaço da sociedade [...] (TSCHUMI, 2008, p. 181).

Pensar no espaço desta forma nos leva a terceira relação: o objetivo. Ambos os projetos desejam que o espaço auxilie na criação de experimentações sensoriais, não só a partir da criação de visual – “olho que enquadra”, ou do “ritual da passagem” através de um jardim para chegar a uma abertura pequena que acessa um novo espaço, ou a partir das escadas que conectam diferentes níveis ou a rampa que é palco e que é rua. A experimentação dos sentidos se dá, sobretudo, na interação dos corpos, seja ela de uma modelo ao passar por um espaço sem conformação formal de passarela, ou pela não delimitação entre plateia e espaço cênico. Essa experiência no espaço se dá de forma diferente nos dois projetos, não só pela diferença do que está sendo apresentado, onde o desfile se mostra mais contido, pois há uma certa rigidez e padronização dos movimentos das modelos, enquanto no teatro há uma liberdade do ator e da sua interação com o público; mas há uma diferença de temporalidade. O espaço cênico do desfile só permite uma experimentação sensorial, já que ele é desmontado logo após o término da ação, enquanto o Teatro Oficina oferece diferentes experiências a cada peça. Por fim, fala-se do sujeito a quem o espaço é direcionado. O espaço do desfile atende a um seleto grupo de pessoas, são eles: os que podem pagar dezenas de milhares de euros por uma vestimenta, os editores das principais revistas de moda, artistas e influenciadores digitais que a marca gosta de ter vínculo e os diretores da marca. Aos não presenciais ficam os registros visuais em vídeo e fotografia. Diferentemente é o Teatro Oficina, onde há uma maior abertura já que não há um público alvo, existe uma intenção de atingir a todos que

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tenham interesse. Obviamente isso não é possível, seja pelo esgotamento dos ingressos, pela falta de acesso ao local ou pelo não conhecimento da existência do mesmo.

Essa segregação da experiência remonta a Jacques Rancière, em A partilha do sensível, onde este sensível é o produto de atos estéticos conformando em uma experiência. Partilhar este sensível é

[...]ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempo e tipos de atividade que determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha (RANCIÈRE, 2009, p. 15).

Partilha é tomar consciência do que cabe a si e na divisão com um todo. Na cenografia, essa experiência fica limitada por não se abrir a possibilidade ao geral, ela se restringe a um seleto grupo que pode “(...) tomar parte no comum em função daquilo que faz (...) (RANCIÈRE, 2009, p. 16). É tomar o domínio daquilo e não o compartilhar completamente com os outros, é dar ao outro a parte que lhe cabe. Apesar de diferenças em níveis de experimentação, não se pode negar que ambos os projetos proporcionam a partir da arte, seja ela da criação, desenvolvimento e apresentação de uma vestimenta ou de uma peça teatral, uma experiência do corpo no espaço através dos sentidos.

Ato III: Luz que molda o espaço

LUZ

O exercício da visão só acontece a partir da presença e da ausência da luz. Como se sabe, é o escuro e a falta de emissão de luz decorre a não visão. Para distinguir cores, formas, texturas é preciso que raios luminosos “atinjam” as superfícies e reflitam de volta para o observador.

A luz nos permite ver, e mais do que isto, ela nos estimula e informa sobre o que nos cerca. Não haveria forma visual percebida sem luz. Esta condiciona a maneira com que vemos o mundo e a maneira como nos sentimos. Existem várias fontes de luz: o sol, a lua, o fogo e eletricidade, que nos causam diferentes percepções e respostas. A luz revela contornos, superfícies, formas e cores. A luz revela também a beleza, função e forma da arquitetura. Define imagem, cor, textura dos espaços, edifícios, cidades e paisagens. Determina nosso limite visual e nosso entendimento de escala (BARBOSA, 2010, p. 28).

A forma de ver o mundo e de senti-lo está muito ligada à luz do sol, que fornece diariamente luminosidade, que desenha o dia e serve de marcador temporal. Há quem diga que os dias ensolarados são mais felizes, e que os dias mais cinzentos são mais tristes. Isso diz muito sobre como a luz influencia o humor. A luz, em dia de céu limpo, atinge os materiais, refletindo a cor de maneira mais vibrante, enquanto em dias cinzas, a luz se distribui de forma difusa, não refletindo, por isso, a vivacidade da cor.

A ausência de sombras e uma luz muito difusa, típicas de um céu encoberto, deixam todos os objetos com uma aparência plana. Por outro lado, um ambiente luminoso com fortes sombras, típico de um céu claro, intensifica o relevo e a plasticidade dos objetos (BARBOSA, 2010, p. 36).

A luz solar proporciona, também, alterações de cor durante sua trajetória ao longo do dia, desde o nascer do sol, com uma luz mais amarela; a luz mais branca ao meio-dia, e as nuances de laranja e rosa no pôr do sol. A manipulação da luz, tanto natural quanto artificial, na arquitetura e na cenografia tem o intuito de moldar o espaço, destacar volumes, mostrar ou não os seus limites, revelar ou não certas percepções visuais de textura, tornar certos objetos na cena mais nítidos, criar foco de atenção e ilusão de profundidade.

A luz altera a percepção da forma. Conforme as proporções do espaço, a iluminação pode alterar esta percepção alongando ou encurtando. A aparência da forma é interpretada através da direção e intensidade da luz. Alterando a luz de um ambiente não apenas redefinimos seus contornos e limites, mas também reinterpretamos suas características e significados (BARBOSA, 2010, p. 36). É difícil separar a luz da arquitetura e da cenografia. Sem ela não haveria o entendimento do espaço, a compreensão dos volumes, e a nitidez. Ambas valem do jogo de supressão ou não da luminosidade para conformar volumes, ressaltar eixos visuais, destacar texturas e cores. Na história da humanidade, a luz se torna objeto de estudo e investigação desde a pré-história, a partir da busca por abrigo durante a noite – pela ausência de luz para ver os predadores; e a descoberta e manipulação do fogo. Além da manipulação da luz através do fogo, diversas civilizações começaram desenvolver relações religiosas com elementos naturais e astros luminosos, como é o caso da relação do sol com o deus Rá, no Egito.

É no Egito que se tem o registro, na história, do nome do primeiro arquiteto, “(...) chamava-se Imhotep, conforme inscrições em uma estátua do faraó Zozer (2635-2595 a.C.)” (SCARAZZATO, 2018, p. 13). Uma grande quantidade de obras do antigo Egito é referenciada de acordo com o sol, tendo suas portas voltadas para o nascente do astro. A luz também foi manipulada pelos arquitetos egípcios, a partir das diferenças de alturas e aberturas quem eram projetadas para que a luz pudesse iluminar os espaços. É o exemplo do Grande Templo de Amon-Rá (1530 a.C.), em Karnak, a Sala Hipóstila, sobre a qual Paulo Sergio Scarazzato diz: “A iluminação da nave central era assegurada pela diferença entre o seu pé-direito e o das naves laterais (...)” (SCARAZZATO, 2018, p. 14). Segundo Scarazzato (2018, p. 15), a arquitetura da Grécia Antiga (750-350 a.C.) se apoia na arquitetura egípcia “(...) tanto no formato das plantas como no emprego das colunas, evoluiu e adquiriu personalidade própria”. Os edifícios eram feitos para serem contemplados do lado de fora, não para serem habitados, por isso a questão rítmica e de proporção eram as mais enfatizadas. Diferentemente dos templos que eram para serem vistos, os gregos fizeram estudos de insolação para traçar suas cidades, e desenhar suas casas a fim de ter maior aproveitamento solar.

Os gregos também inovaram no traçado das cidades, que contribuíram para com as questões de iluminação natural e insolação, sobretudo na arquitetura residencial. A utilização de relógios solares, introduzidos por Anaximandro de mileto (610546 a.C), a criação de quadras ortogonais nos sentidos NorteSul e Leste-Oeste por Hipódamo de Mileto (498-430 a.C), e o conhecimento do clima, induziram à construção de casas projetadas para aproveitar o sol do inverno, com ambientes principais voltados para o Sul, orientação mais insolada no Hemisfério Norte (SCARAZZATO, 2018, p. 16).

Aarquiteturaromanafoiinfluenciadapelagrega.AsordensDórica, Jônica e Corintia foram “(...) adaptadas, embelezadas e reinterpretadas” (SCARAZZATO, 2018, p. 17). A coluna se torna elemento decorativo, enquanto a parede se torna estrutura. Também surgem formas redondas e ovais, além do desenvolvimento do arco, abóbada e cúpula. Scarazzato (2018) diz que estes avanços foram importantes para criar grandes

espaços internos, sendo necessário pensar em aberturas, já que os edifícios religiosos eram feitos para os fiéis entrarem. O Panteão (120-124 d.C.) (Imagem 46) é um exemplo do emprego das novas formas construtivas: é um templo circular com uma cúpula com uma abertura (óculo) para entrada de luz, abertura essa que simbolicamente “(...) representa a união da Terra com o Céu, do profano com o sagrado e, através dele, a oração ascende livremente ao paraíso (LOW, 2013 apud SCARAZZATO, 2018, p. 18). Essa simbologia da relação da luz com o divino perpassa por várias civilizações e séculos, mas podemos dizer que é na arquitetura gótica que essa relação se torna peça fundamental das catedrais. Como exemplo podemos referenciar a Catedral de Notre-Dame de Paris (11361250), que de acordo com Scarazzato (2018, p. 32) “(...) foi uma das primeiras grandes catedrais (...) com janelas altas acima do trifório, formadas por granes vitrais coloridos”. Outra construção que pode ser citada é a Sainte-Chapelle (1241-1248) (Imagem 47), também em Paris.

A luz nas catedrais góticas representa um logro estético carregado de simbolismo. Ela atua na “desmaterialização” visual dos elementos construtivos do edifício, ao mesmo tempo em que se torna uma metáfora da presença divina entre os homens (CASAL, 1978 apud SCARAZZATO, 2018, p. 32).

No Renascimento “a arquitetura, por sua vez, deixaria de se condicionar às tradições da igreja, e focaria a precisão matemática e a racionalidade (...) E não precisaria mais apontar para o céu (...)” (SCARAZZATO, 2018, p. 34). A cúpula passa a ter uma maior importância no edifício religioso, a luz se apresenta mais difusa entrando pelas aberturas, como é possível ver na Cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore (Imagem 48). Já na transição do Renascimento para o Barroco, segundo Scarazzato (2018), surge uma sutileza no trato com a luz natural, para assim se conseguir uma dramaticidade e ênfase nas formas. A Revolução Industrial no século XVIII, dá início a uma drástica mudança nas cidades e na arquitetura. Cohen (2013, p. 23) destaca que “(...) muitos contemporâneos reconhecem os novos horizontes

Imagem 46: Panteão, Roma-Itália. WEB

Imagem 47: Sainte-Chapelle,Paris-França. WEB

abertos pelos grandes pavilhões de ferro e vidro erigidos para atender às necessidades da Revolução industrial e das políticas públicas”. É no século XIX que há um aumento do desenvolvimento das estruturas autoportantes, modulares – como as pontes metálicas –, e do uso de vidro a promover uma montagem de um edifício em menor tempo. No período Moderno, as mudanças se tornam constantes, com a luz elétrica ganhando força, e as estruturas começam a ser cada vez mais esbeltas. As paredes começam a dar lugar a peles e vidro, diluindo o interno com o externo. Os estudos de Le Corbusier sobre luz e sombra resultam em projetos como a Villa Savoye (Imagem 49):

Entre o térreo – espaço em que os carros podem circular em volta dos pilotis – e o solário na cobertura fica ao andar principal com planta em L, disposto em torno de um pátio e iluminado por janelas horizontais em fita, voltadas para o campo (COHEN, 2013, p. 127).

O estudo da luz, e sua manipulação, é algo constante na arquitetura. Diversos arquitetos contemporâneos têm trabalhos belíssimos em que a luz não só age com intuito de iluminar, mas também de conformar, construir camadas de sensações com os corpos que permeiam o espaço. No projeto da Igreja da Luz (Imagem 50) em Ibaraki, Japão, o arquiteto japonês Tadao Ando utiliza a luz não como um elemento imaterial, mas como um elemento que preenche o recorte em cruz no concreto, como diz Kate Nesbitt (2008, p. 493): “Embora muitas vezes o concreto pareça ser o único material, Ando também encaminha o uso da luz e do vento como elemento físico de suas construções”. No texto Por novos horizontes na arquitetura, o arquiteto afirma que busca criar conexão e sensibilidade a partir da presença da natureza “(...) mediante uma lógica transparente” (ANDO, 2008, p. 496). Para ele, fazer sentir a presença da natureza é um dever da arquitetura contemporânea.

Quando a água, o vento, a luz, a chuva e outros elementos naturais são abstraídos na arquitetura, esta se transforma em lugar no qual as pessoas e a natureza se defrontam em permanente estado de tensão. Creio ser esse sentido de tensão que poderá despertar

Imagem 48: Sainte-Chapelle,Firenzi - Itália. WEB

Imagem 49: Villa Savoye, foto:Angel Fernandez Orozco, Poissy - França. WEB

as sensibilidades espirituais latentes no homem contemporâneo” (ANDO, 2008, p. 497). Os projetos do arquiteto português Álvaro Siza, como a Fundação Iberê Camargo em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, em Porto, Portugal, vão em uma direção diferente daquela de Tadao Ando. Siza constrói percursos internos em seus edifícios com aberturas que se voltam para paisagens e criam sensações no indivíduo espectador. É a partir destas aberturas, e também de zenitais, que ele conforma o espaço interno. No exterior, ele usa da sombra e do contraste para modelar os volumes, que em sua maioria são brancos. Atualmente, diferentemente da arquitetura, a cenografia –principalmente de shows – utiliza a luz para a construção de cenários. Se pararmos para analisar as cenografias propostas para os grandes concertos em arenas e estádios, elas se compõem em sua maioria de holofotes que emitem diferentes cores, e de telões de LED que projetam imagens. O desenvolvimento da cenografia de shows – apoteóticos, podemos dizer – se dá muito a partir dos anos de 1980, sobretudo nos Estados Unidos e na Europa. Grupos como The Jacksons e Queen arrastavam multidões para seus espetáculos que eram feitos em arenas ou em estádios. Hoje é de fácil acesso registros audiovisuais de espetáculos, estando muitos disponíveis no Youtube. Nos anos de 1980, analisando os registros de dois shows de diferentes artistas, percebe-se um esforço enorme para a obtenção de diferentes cores e direcionamentos das luzes: em The Victory Tour 8(1984) (Imagem 52), do grupo The Jacksons, há estruturas enormes nas laterais do palco, com diferentes holofotes enfileirados. Cada conjunto desses holofotes apresenta uma cor diferente de iluminação, e o mesmo ocorre

8 The Jacksons – The Victory Tour <https://www.youtube.com/watch?v=OJN_1uxT8JE&t=563s>. 112

Imagem 50: Igreja da Luz, Tadao Ando, Ibaraki - Japão. WEB

Imagem 51: Fundação Iberê camargo, Álvaro Siza, foto: Fernando Guerra, Porto Alegre - Brasil. WEB

ao fundo e no “teto”. O único movimento que ocorre é dos holofotes que iluminam os cantores, como acontece no teatro, guiados por uma pessoa. Estas estruturas de iluminação também são vistas no show histórico do Queen no Wembley Stadium9 em Londres (Imagem 53), no ano de 1986. A apresentação, na íntegra on-line, traz Freddie Mercury com sua jaqueta amarela iniciando o show no entardecer cinza de verão londrino. Percebe-se uma estrutura cenográfica com escadas, uma moldura no entorno do palco, mas a luz se comportava como no show dos The Jacksons, estática, e piscava constantemente. Há um telão neste concerto, mas ele não era usado como apoio para o cenário, estava sendo usado como suporte para as pessoas que estavam longe verem o artista “ampliado”. Dois anos depois, e no mesmo estádio do show do Queen, Michael Jackson apresentou sua Bad World Tour10 . Percebe-se uma sofisticação do concerto no geral: há uma divisão do show em blocos, e também trocas de figurino. No quesito cenário, não há tanta mudança. Apesar de já ter holofotes que conseguem emitir diversas cores, é visível no palco o número de holofotes fixos. Talvez seja Madonna, com sua Blond Ambition Tour11 (Imagem 54) em 1990, que tenha feito a maior mudança na história dos shows, tendo ela criado uma fórmula seguida por diversos artistas. O espetáculo se dividia em blocos temáticos, onde a cenografia mudava conforme a temática. Para isso, uma cortina descia e subia no palco, trazendo um ar teatral para o show. Madonna também inseriu bailarinos e trocas de

9 Queen – Live Wembley Stadium <https://www.youtube.com/watch?v=-DAvQcP1dlE>. 10Michael Jackson – Bad World Tour <https://www.youtube.com/watch?v=9shByOh8fVE>. 11Madonna – Blond Ambition Tour <https://www.youtube.com/watch?v=O1q8OUcOFQ8&t=4572s>. 114

Imagem 52: The Jacksons - The Victory Tour, WEB

Imagem 53: Queen Live Wembley Stadium, WEB

roupas desenhadas por Jean-Paul Gaultier, o criador do emblemático sutiã cônico. No quesito iluminação, as enormes placas de luz se desfaziam, tornando um elemento menos pesado, para que a atenção ficasse no cenário.

Em 1993, Madonna embarca em uma nova turnê, a The Girlie Show12 , na qual ela repete sua fórmula teatral, cria temáticas, figurinos, e insere um maior corpo de baile. A cenografia é menos requintada que a de sua turnê anterior. A iluminação não apresenta grandes alterações, mas há a inserção de elementos pirotécnicos como o fogo. Na turnê History13 (1996) de Michael Jackson, incrementos são visíveis. Os holofotes que giram e mudam de cor são usados no fundo do palco, enquanto nas laterais os holofotes fixos permanecem. O artista usa um telão central para projetar vídeos e imagens durante algumas músicas, instituindo o uso deste artifício como parte do cenário, e não mais só como apoio para o público. É neste show que Michael Jackson utiliza a grua para sobrevoar o público. No fim dos anos de 1990, os shows das boy bands – bandas formadas por garotos como Backstreet Boys14 (Imagem 55) – começam a usar de elementos cada vez mais mirabolantes para construírem seus espetáculos. Cabos de aço que suspendem os cantores, fogo, fogos de artifício, telões com projeções e muita luz. Se o fim da década de 1990 foi extravagante, os anos 2000 foram o dobro disso. Cada vez mais os artistas buscam artifícios para criar espetáculos luminosos, cheios de projeções e aparatos tecnológicos. Em 2004, a cantora americana Britney Spears sai em turnê em suporte ao seu

12 Madonna – The Girlie Show <https://www.youtube.com/watch?v=KgrbXDSSekQ>. 13 Michael Jackson – History Tour <https://www.youtube.com/watch?v=ChrLRauOR28&t=823s>. 14 Backstreet Boys – Millenium Tour <https://www.youtube.com/watch?v=o_KRcrMD5uU>. 116

Imagem 54: Madonna, Blond Ambition Tour, WEB

Imagem 55: Backstreet Boys, MIllenium Tour, WEB

quarto álbum de estúdio In The Zone. Intitulada The Onyx Hotel Tour15 (Imagem 56), a turnê contava com muitos dançarinos, explosões de fogo, diversos figurinos e uma história a ser contada. O show se dividia em blocos temáticos, e esses eram apresentados como uma estadia em um hotel: desde a chegada da hóspede ao local, o bar do hotel, o jardim da construção, e a suíte. O cenário era inteiramente montado por telas de LED, que exibiam projeções que davam suporte à narrativa. Dois anos depois, Madonna inicia uma turnê que, para muitos fãs, é uma de suas mais belas apresentações. The Confessions Tour16 (Imagem 57) apresenta um palco principal retangular com uma plataforma circular ao meio, a qual girava e abaixava para a abrigar as trocas de cenário. Acima desse círculo ficava uma estrutura semicircular de LED, e outras três telas de LED configuravam o cenário. Do palco principal saiam três passarelas, duas nas laterais criando uma diagonal, e uma principal no meio que dava acesso a um palco menor, cujo piso era formado por placas de LED. Apesar da quantidade de LED, as projeções eram belissimamente construídas, e a iluminação através dos canhões de luz trabalhavam de forma pontual. A partir daí, não havia mais limites para o uso da luz em forma de telões de LED. Em 2008, a cantora australiana Kylie Minogue apresenta sua KylieX2008 Tour17 (Imagem 58), onde o palco inclinado era inteiro de LED e, ao fundo, seis telões retangulares faziam movimentos e projetavam vídeos. Em 2016, a cantora americana Beyoncé sai em turnê com a Formation Tour (Imagem 59), realizada inteiramente em estádios. O cenário consistia em um paralelepípedo de LED disposto verticalmente, que rotacionava 360° e abria ao meio. A estrutura era tão monumental que era possível se ver do lado de fora dos estádios.

15 Britney Spears – The Onyx Hotel Tour <https://www.youtube.com/watch?v=aa6b-MS-Gk&t=3985s>. 16 Madonna – The Confessions Tour <https://www.youtube.com/watch?v=OOkGvP0D4Bg>. 17 Kylie Minogue – KylieX2008 Tour <https://www.youtube.com/watch?v=Rrv49hK44lk&t=6049s>. 118

Imagem 56: Britney Spears, The Onyx Hotel Tour, WEB

Imagem 57: Madonna, The Confessions Tour, WEB

Em 2018, Beyoncé fez sua apresentação como artista principal do Coachella18 , um dos diversos festivais de música que acontecem nos Estados Unidos da América. Ao contrário do que fez em 2016, neste show ela não utilizou telões de LED como suporte cênico. Eles existiam nas laterais, mas eram estruturas próprias do festival, e serviam de auxílio para a plateia que estava distante pudesse acompanhar os detalhes da performance. O cenário que Beyoncé criou era inspirado nas arquibancadas das universidades americanas, onde as bandas marciais tocavam, enquanto as líderes de torcida dançavam. Uma estrutura piramidal de ferro repleta de canhões de luz “cobre” a superfície do palco. Ao início da música, ela, a estrutura, inicia um movimento de elevação revelando outra estrutura piramidal, que se assemelha a uma arquibancada: é nela que os músicos e dançarinos ficam. Os holofotes são postos como elementos constituintes do cenário.

Diferentemente dos shows internacionais, os concertos brasileiros não têm tanto patrocínio e incentivo, salvo alguns artistas que realizam grandes shows específicos para o registro em formato áudio visual. Um exemplo disso é o recente show de “reencontro” da dupla Sandy & Júnior19 . Em uma série de shows ao redor do Brasil, a dupla apresentou um cenário consistente, e de acordo com o que vem sendo feito nos shows de fora do país. Muitas luzes, telões de LED e projeções bem elaboradas. Uma artista que trabalha com cenários requintados é Maria Bethânia. Em Tempo, tempo, tempo, tempo, turnê20 de 2005, a luz é utilizada por meio de projeções de grafismos simples, há cores sólidas dispostas ao fundo do palco, enquanto blocos luminosos geométricos sobem e descem, se revelando no espaço a partir do jogo de luz.

18 Disponível na plataforma digital Netflix - Homecoming: A film by Beyoncé. 19 Disponível na plataforma digital Globoplay - Sandy & Junior: Nossa História. 20 Maria Bethânia – Tempo, tempo, tempo, tempo <https://www.youtube.com/ watch?v=zGG5YIGcVHA&t=1359s>. 120

Imagem 58: Kylie Minogue, KylieX2008 Tour, WEB

Imagem 59: Beyoncé, The Formation Tour, WEB

Em 2012, na série de shows Carta de Amor21 , a cenografia é ditada pelo movimento das inúmeras lâmpadas, tipo incandescentes, que ficam penduradas no palco. Elas se movem verticalmente e lateralmente dando movimento, e configurando formas. Durante todo o show, só existe Bethânia, os músicos, o chão de retalhos de tecido que lembram folhas secas, um toco de árvore, e as lâmpadas. Apenas ao fim do show as luzes saem de cena e é apresentada ao fundo uma pintura perspectivada, que lembra uma pintura de ópera barroca. Para comemorar os seus cinquenta anos de carreira, Maria Bethânia convida Bia Lessa para assinar a produção do espetáculo Abraçar e Agradecer22 (Imagem 60). No chão do palco há um telão de LED que exibe texturas e imagens. Bethânia desliza sobre ele graciosamente enquanto canta seus sucessos de carreira. Sobre os músicos, luminárias de vidro que se acendem e apagam, dependendo do contexto do espetáculo. Os canhões de luz são usados para imprimir grafismo no espaço, as luzes percorrem o palco em diagonal, na vertical e horizontal. É bonito ver Bethânia, que sempre esteve em cenografias mais teatrais, desta vez imersa em um cenário high tech.

21 Maria Bethânia – Carta de Amor <https://www.youtube.com/watch?v=dU4XQODt5WI&t=4775s>. 22 Maria Bethânia – Abraçar e Agradecer <https://www.youtube.com/watch?v=EOmi_ Fg9IDg&t=4523s>. 122

Imagem 60: Maria Bethânia, Abraçar e Agradecer, WEB

KANYE WEST, ES DEVLIN E THE SAINT PABLO TOUR

Kanye West é um artista norte-americano multifacetado. Seus trabalhos se desenvolvem no campo da música – como rapper, compositor, produtor musical; e também com direção de arte e designer de roupas. Durante anos, Kanye trabalhou com a cenógrafa inglesa Es Devlin em suas turnês, mas para a turnê Saint Pablo, em específico, ele deixou a cargo da empresa de conteúdo criativo DONDA, ao qual ele é atrelado.

Kanye sempre buscou para as suas apresentações uma inventividade, e foi com Es Devlin que ele inicia uma parceria de experimentações cênicas interessantes. Em 2008, em Glow In The Dark Tour (Imagem 61), eles criam um palco que simula nuances de dunas de areia no qual ao centro repousa uma plataforma de LED que se movimenta para elevar ou projetar o cantor para frente. Atrelado a esse palco, está um imenso telão de LED de fundo, e outro menor que sobe e desce criando relação direta com a plataforma, já que ambos têm a mesma largura. Em 2011, Es Devlin desenha o cenário para a Watch The Trone Tour (Imagem 62), turnê colaborativa entre Kanye West e o rapper Jay-Z. Devlin descreve a cenografia que ela cria na série documental Abstract: The Art of Design – Netflix. Segundo ela, o título da turnê (“Observe o

Imagem 61: Kanye West, Glow in The Dark Tour, WEB

Imagem 62: Kanye West e Jay-Z, WTT Tour, WEB

Trono”) a direciona a criar dois cubos de LED de 4 metros, além do palco principal. Cada um dos rappers cantaria sobre os cubos que representam o distanciamento do trono, mas também evidenciariam a vulnerabilidade do mesmo, já que o público dominava o entorno. A Yeezus Tour (Imagem 63) é a turnê de suporte do álbum Yeezus (2013). O nome do disco é a mistura entre o apelido do rapper “Yeezy”, com “Jesus”. Talvez tenha partido daí, e da música “I am a God” – “eu sou um Deus”, em tradução livre –, que se inicia o desenvolvimento da cenografia. O cenário consistia em um palco em forma de montanha, branca, cujo aspecto remete ao mármore, uma passarela que dava acesso a um segundo palco triangular com a mesma textura de pedra branca, e um grande círculo de LED que se inclinava. West, em confronto com esse cenário, aparece como um deus sobre a montanha, iluminado por um enorme sol.

Mais tarde, para a Saint Pablo Tour, Es Devlin não figura como colaboradora na criação do cenário. A equipe do DONDA é quem assina o projeto. A partir dos registros disponíveis on-line – vídeos no Youtube e imagens do Google – é possível perceber que o intuito da cenografia era promover uma experiência mais ativa, e talvez menos contemplativa como a turnê anterior.

Segundo artigo da INTERIORS Journal, publicação on-line sobre o espaço entre Arquitetura e Filme, para o ArchDaily, o palco se compõe em duas partes. A primeira é uma superestrutura que fica pendurada no teto das arenas em que o show será realizado, e a segunda é uma estrutura menor, uma plataforma suspensa. A superestrutura (Imagem 64) é formada por duas vigas maiores posicionadas no maior sentido da arena, e possibilitam o deslocamento longitudinal da estrutura menor. Juntamente a esta estrutura ficam placas com canhões de luz que se desprendem do teto e realizam diversos movimentos, como se aproximar e recuar do público.

Imagem 63: Kanye West Yeezus, Tour, WEB

Imagem 64: Kanye West Saint Pablo Tour, Desenho feito pela equipe INTERIORS Journal, WEB

A partir das grandes vigas, é suspensa por cabos e polias, uma estrutura secundária que é a que permite a plataforma suspensa a fazer movimentos transversais. Esta passarela (Imagem 65) também realiza movimentos de se aproximar do público e se inclinar. É nessa passarela que o cantor fica. Há uma esrutura de LED, mas o destaque são as centenas de canhões de luz (Imagem 66), o movimento da plataforma e o cantor.

Imagem 65: Kanye West Saint Pablo Tour,WEB

Imagem 66: Kanye West Saint Pablo Tour, WEB

JEAN NOUVEL, LUZ E LOUVRE ABU DHABI

Ao olhar a extensa lista de projetos do arquiteto francês Jean Nouvel, nota-se que o manuseio da luz é algo que o instiga, seja no controle da luz, como na escolha dos materiais transparentes, reflexivos e opacos. O Instituto do Mundo Árabe (Imagem 67), Paris-França, projeto de 1981-1987, é um exemplo belíssimo de manuseio da luz. Enquanto a fachada norte, que tem menos incidência solar, é totalmente envidraçada, a fachada sul apresenta um elemento a mais. Em seu website, o arquiteto diz que o tema “luz” está atrelado a fachada sul, a qual ele cria painéis com diafragmas tipo câmera fotográfica, que abrem e fecham a fim de controlar a entrada de luz, da mesma forma que seus desenhos remetem ao muxarabi. O jogo de luz proporcionado pelas diferentes aberturas contribui para a construção dos espaços internos. Diferentemente do Instituto do Mundo Árabe, a Fundação Cartier (1991-1994) (Imagem 68) não apresenta elementos “filtrantes” da luz. Ela é completamente envidraçada, tanto o muro que faz divisa com a rua, quanto o edifício, criando camadas que refletem o entorno arborizado do parque, no qual a fundação se insere. A luz natural perpassa por entre as copas das árvores e chega até as salas expositivas envidraçadas, criando uma conexão do externo com o interno.

Imagem 67: Instituto do Mundo Árabe, Jean Nouvel, WEB

Imagem 68: Fundação Cartier, Jean Nouvel, WEB

Com suas telas de vidro, a Fundação Cartier apresenta uma construção quase imaterial, toda transparente e com reflexos que mudam de aspecto e de cor de acordo com os momentos e as estações. Não se trata mais de inventar uma leveza de construção, mas de “construir com a luz”, desmaterializar a arquitetura pela luz, pelos efeitos efêmeros e pelos reflexos caleidoscópicos do entorno (LIPOVETSKY, 2016, p. 234).

Já em seu projeto na Austrália, o One Central Park (2008-2014), o arquiteto se alia ao artista e botânico francês Patrick Blanc para criar um jardim vertical que cobre cinquenta porcento da fachada do edifício. Segundo consta no website, o intuito do jardim vertical é filtrar a luz direta do sol. Outra estratégia para controlar a luz, mas agora para direcioná-la, é o helióstato. Ele é instalado no balanço entre as duas torres, para que seja possível direcionar a luz para o espaço entre elas.

Todos os climas gostam de exceções. Mais quente quando está frio. Mais frio nos trópicos. As pessoas não resistem bem ao choque térmico. Nem as obras de arte. Essas observações elementares influenciaram o Louvre Abu Dhabi. Ele deseja criar um mundo acolhedor, combinando serenamente luz e sombra, reflexão e calma. Quer pertencer a um país, à sua história, à sua geografia sem se tornar uma tradução plana, no pleonasmo que resulta no tédio e na convenção. Também visa enfatizar o fascínio gerado por encontros raros (NOUVEL)23

23 “All climates like exceptions. Warmer when it is cold. Cooler in the tropics. People do not resist thermal shock well. Nor do works of art. Such elementary observations have influenced the Louvre Abu Dhabi. It wishes to create a welcoming world serenely combining light and shadow, reflection and calm. It wishes to belong to a country, to its history, to its geography without becoming a flat translation, the pleonasm that results in boredom and convention. It also aims at emphasizing the fascination generated by rare encounters”(NOUVEL) 132

Imagem 69: One Central Park, Jean Nouvel, WEB

Imagem 70: Louvre Abu Dhabi, Jean Nouvel, WEB

O trecho anterior foi extraído do website do Atelier, e foi escrito pelo Arquiteto. Nele ele exprime o desejo de criar um ambiente acolhedor e sereno a partir da arquitetura, do local e também do controle da luz, criando espaços de luz e sombra. O lugar é formado por blocos brancos, que são as salas expositivas, e uma cúpula de 180 metros de diâmetro que repousa sobre eles. A luz perpassa por este domo, que tem um desenho geométrico que, assim como o Instituto do Mundo Árabe, remete aos muxarabis. O efeito resultante é uma “chuva de luz” como descrito no texto do arquiteto.

Imagem 71: Louvre Abu Dhabi, Jean Nouvel, WEB

Imagem 72: Louvre Abu Dhabi, Jean Nouvel, WEB

DIÁLOGO

Pensar no que a luz representa é abrir um leque de possibilidades. Falar da luz pode ser apenas falar de iluminação, ou de nuances cromáticas no céu durante o dia, ou quem sabe uma aurora boreal na Noruega. A luz pode ser um facho de esperança para o bordão “luz no fim do túnel”, ou então significar vida – ela deu à luz a um bebê. A luz, como já dito, também pode significar o contato do divino na terra, ou pode definir o humor do dia. Pensar a luz é entrar em contato com a criação de sensações no indivíduo, seja ela qual for. Ambas as obras, o Louvre Abu Dhabi e o cenário da Saint Pablo Tour, utilizam da luz para abrir e atingir um espectro de possibilidades. Seja a comunicação, a conformação do espaço, o direcionamento de foco/atenção para um ponto, a sensação de imersão e a leveza. Tomando como ponto de partida a leveza, Gilles Lipovetsy, em seu livro Da leveza, aborda a sociedade atual a partir da ideia de que ela vive do “leve”, a exaltação ao estilo de vida leve, ao corpo leve – magro, aos eletrônicos que se apresentam leves:

A leveza, que era um ideal estilístico ou um defeito moral, tornouse uma dinâmica global, um paradigma transversal, um “fato social total” carregado de valor tecnológico e econômico, funcional e psicológico, estético e existencial (LIPOVETSKY,2016, p. 24).

Dessa forma, inicia-se um combate ao “peso”, que pode ser o excesso de ornamentos, o que vai além do necessário, o que é exagerado. Tomemos como ponto de partida o texto de Lipovetsky, com o exemplo dos produtos industrializados antigos que eram pesados, robustos, e que por conter estes atributos, passavam a ideia de longevidade - e o que era leve então se aproximava da vulnerabilidade, do descartável. Hoje entende-se que a premissa não é verdadeira. Há uma busca incansável na redução de linhas e na supressão de volumes, por exemplo. Dentre os vários arquétipos da leveza listados pelo autor, o da leveza aérea se encaixa bem nestes dois projetos utilizados como referência para este trabalho.

O sonho de se elevar aos céus é imemorial. Inúmeros são os mitos, os contos, as crenças religiosas que expressa essa fascinação por meio das imagens ascensionais, das representações da elevação, dos símbolos destinados a alcançar o céu (LIPOVETSKY, 2016, p. 26).

O projeto do Louvre Abu Dhabi não é exatamente uma tentativa de levitação do espaço e/ou do ser, mas de proporcionar a sensação de leveza, suspensão e flutuação do domo gigantesco sobre os visitantes. O arquiteto Jean Nouvel apoia esta enorme estrutura em quatro pilares camuflados entre as diversas paredes dos blocos brancos. Dessa forma, ele utiliza menos área de apoio, culminando em menor associação do domo com a base, - é uma retirada de volumes, deixando boa parte da borda do domo em balanço. É o que Lipovetsky diria como “(...) um trabalho de subtração de “peso” que se conquista o belo, o verdadeiro e o essencial” (LIPOVETSKY, 2016, p. 225). A enorme escala da estrutura corrobora com o efeito flutuante ao bloquear as vistas destes pontos de apoio, camuflados entre raios de luz que perpassam pela grande estrutura. Além disso, as salas expositivas são volumes brancos que ampliam a sensação de leveza a partir da cor. A própria forma do domo, curvada em direção ao céu, propicia o esfacelamento da estrutura metálica que ao receber os raios solares os reflete criando uma espécie de névoa de luz interna. Esse efeito de

libertação do peso por meio da diluição do peso da estrutura acontece nas catedrais góticas como dito por Lipovetsky: “(...) é seu impulso na direção do céu, dá a impressão de se ter libertado do peso da pedra e da gravidade material” (LIPOVETSKY, 2016, p. 174). Essa diluição na catedral se dá muito pelo efeito da luz perpassando os vitrais multicoloridos e criando um efeito de luminosidade interna.

Também com o intuito de gerar leveza a partir da luz, mas por meio da luz artificial, o show do cantor norte-americano Kanye West brinca com princípios básicos de claro e escuro. A estrutura cenográfica, sem estar em ação – ativada no concerto – se apresenta pesada. Vigas metálicas enormes cortam o teto da arena, placas com canhões de luz formam um enorme peso sobre o público. Ao iniciar o show, tudo isso some, ao passo que o ambiente está imergido em escuridão. A luz emanada destas estruturas, que se movimentam lentamente iluminando o espaço, camufla a parafernália pesada que se via antes, tornando-a leve. O cantor está a alguns metros abaixo desta estrutura luminosa flutuante, sobre uma plataforma igualmente iluminada, os fios que sustentam a estrutura do artista se desmancham no ar com a intensidade de luz emanada no espaço. A cena parece até messiânica: um ser sobre uma estrutura flutuante sobre a multidão. Talvez tenha sido este o real intuito, já que o artista já havia dito anteriormente que era um deus. Querendo ou não, a ideia de levitação remete a leveza do ser, e flutuar sobre um espaço é comum na religião. O artista que tem os seus fiéis, fãs, é o “pastor” deste rebanho. Para além da questão da leveza, estes dois projetos utilizam da luz como modelador do espaço, criador de pontos de ação e catarse. Jean Nouvel cria um espaço de passagem e contemplação sob o domo, seja do domo ou dos recortes que dão vista para o mar, a cidade e para outros blocos do museu. Nesse “miolo”, a ação da luz no domo capta a atenção do público, que faz pausa entre as galerias para admirar tal estrutura.

A revolução da leveza está duplamente na origem das arquiteturasespetáculos, em razão do papel crucial dos softwares e também pelo impacto das lógicas de comunicação, de marketing e

de divertimento, impulsionadas pelo capitalismo da sedução (LIPOVETSKY, 2016, p. 223).

Essa contemplação do domo se dá justamente pela arquitetura do museu ser espetaculosa, no sentido de midiática, comunicativa e, por que não, cênica. Dá-se também crédito aos novos meios tecnológicos – softwares – que possibilitam cada vez mais a execução e modelagem de estruturas diversas. Outro ponto é a associação do nome Louvre a este espaço, trazendo um peso de importância. Sobre essas arquiteturas espetaculosas Lipovetsky diz:

Os novos museus, com formas espetaculares, celebram muito mais o universo do lazer e do divertimento do que a elevação espiritual. Não se trata mais, na civilização da leveza, de criar grandeza, mas de produzir evento e imagem, erguer edifícios capazes de seduzir imediatamente os consumidores, melhorar a imagem da marca das cidades, em competição com as outras. A arquitetura-espetáculo aparece como uma das expressões lúdicomidiáticas do mundo da leveza consumerista (LIPOVETSKY, 2016, p. 224).

Neste trecho, Gilles Lipovetsky ressalta palavras que se aplicam diretamente ao museu em questão, mas que se ligam completamente com a cenografia. A intenção de ambos é o divertimento e o lazer, ao criar-se uma estrutura sedutora, instigante que capta o olhar e o interesse do ser a partir do inusitado. O “produzir evento e imagem” se aplica muito bem nos dois casos, uma vez que a sociedade vive atualmente da imagem produzida em telas retangulares, ao estar em lugares e registrar os momentos. Tanto o Louvre Abu Dhabi, como o Saint Pablo Tour criam, principalmente, e a partir da luz, este evento, esta atmosfera - propiciada, sobretudo, pelo enquadramento de imagem. O que une os dois projetos é a luz. Embora não haja uso da luz natural no cenário, a luz artificial faz parte de ambos. No museu ela é usada como um revés da luz natural, pois durante o dia a ela penetra o domo, criando efeitos óticos internamente; e durante a noite o efeito é inverso, criando-se um domo estrelado para a cidade – isso foi quisto pelo arquiteto e descrito em seu website. No show, a luz se apresenta

como um sol – uma tonalidade amarela é usada –, o que remete muito ao trabalho The weather project (2003), do artista dinamarquês com ascendência islandesa Olafur Eliasson.

O trabalho realizado na Tate Modern em Londres, busca, com base no assunto climático, explorar ideias sobre experiência, mediação e representação. O que é apresentado ao público é uma representação do sol e do céu a partir de uma semiesfera composta por lâmpadas de mono-frequência, que fica presa a uma parede espelhada. Isso garante a ideia de um grande sol flutuando no espaço, como revela o artista em seu documentário para o Netflix chamado Abstract. A sala repleta de espelhos nas paredes e no teto expandem as paredes reais da galeria, e por meio de uma máquina de névoa, ele consegue criar uma ideia de espaço externo com sol e nuvens – o que contribui para a diluição do teto espelhado. A lâmpada de mono-frequência é comum em outras obras do artista. Ela permite a anulação das cores, deixando o ambiente apenas com visibilidade amarela e nuances de preto. A ideia de experiência se dá na imersão do público em um espaço que cria imagens antes imaginadas ao ar livre, e um pouco surreal – na possibilidade de contemplar o sol dentro de um espaço fechado. Com esse trabalho, ele ainda questiona a forma como o museu comunica (como faz a mediação com o espectador), por meio de propagandas, divulgação prévias de imagem e críticas de jornal. Por fim a representação: o artista não esconde a forma utilizada para garantir aquela ilusão, pois ele apresenta ao público o fundo da obra e suas “artimanhas” para conseguir tal efeito, atingido a partir da luz, seja pelo meio direto – luz como fonte; ou pelo indireto – reflexão da luz nos espelhos. A ativação da ação no show do Kanye West se dá completamente pela luz, pela aproximação dela ao público, ou pela sua intensidade. Ao ver registros amadores on-line, é possível notar o movimento ativo do público sob a plataforma-palco. O público reage intensamente como

23 Olafour ELiasson: The Art of Design - Disponível na plataforma digital Netflix 140

uma resposta ao evento ocorrido. A combinação música/imagem/ luz proporciona um evento catártico. Talvez este seja um dos poucos espetáculos em que a ativação do público se torna parte da experiência. Ao observar a luz no Louvre Abu Dhabi, ou na The Saint Pablo Tour, ou em uma obra de Olafour Eliasson, percebe-se que ela continuará sendo objeto de estudo e criação. Não é possível dissociar a luz da construção do espaço na arquitetura e na cenografia. Ambas se utilizam dela para a formação dos seus espaços, para a delimitação deles, para a criação de experiências óticas e sensoriais. A luz está presa em nossa história, ela está no cotidiano, e cabe ao corpo reagir aos estímulos dela.

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