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Ato II: De onde se vê

Ato II:De onde se vê

SOBRE O CORPO

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O corpo é indissociável de nós, é parte do que somos, é a massa que habitamos, que tem suas singularidades e que se desloca no espaço. Pensar o corpo no cotidiano é refletir sobre as diferentes formas com a qual ele interage e é estimulado - nos campos visual, tátil, através do paladar e das formas auditiva, olfativa e (por que não?) através do registro sentimental. O pensamento sobre o corpo está em constante mudança, seja na arquitetura, na arte, na cenografia e nas outras inúmeras áreas de conhecimento.

Entender esse corpo no lugar teatral é compreender como ele é inserido, como se relaciona, como vê e é visto, como ele participa. O lugar teatral é o espaço onde “(...) se estabelece a relação cena/público” (MONTOVANI, 1989, p. 7), sendo o corpo/público elemento de fundamental criação deste local teatral. A palavra teatro deriva do grego theatron, que seria “lugar de onde se vê” (DEL NERO, 2008, p. 14). Este lugar não é exclusivamente o edifício teatral, ele pode ser qualquer espaço que possibilite o estabelecimento da relação entre o apresentado e o que vê, embora haja uma “estrutura”, como define Anna Montovanni: “o lugar teatral é composto pelo lugar do espectador e pelo lugar cênico – onde atua o ator e acontece a cena” (MONTOVANI, 1989, p .7). Sabe-se que o teatro surge nos primórdios da humanidade, muito

antes do teatro grego e suas tragédias. Para Margot Berthold, em seu livro História Mundial do Teatro, é possível estudar o teatro primitivo a partir dos ritos das tribos aborígines que têm pouco contato com o resto do mundo por meio das pinturas das cavernas (Imagem 26), a partir utensílios dos povos pré-históricos, e também por meio das diversas danças e costumes populares que existem até hoje. É atribuído às danças e rituais dos líderes religiosos o início do teatro. Nesses momentos existiam movimentos, cores, vestimentas, fogo, animais abatidos, e outros artifícios que compunham esse momento de “catarse”.

O teatro primitivo utilizava acessórios exteriores, exatamente como seu sucessor altamente desenvolvido o faz. Máscaras e figurinos, acessórios de contraregragem, cenários e orquestras eram comuns, embora na mais simples forma concebível (BERTHOLD, 2014, p. 3).

Fica entendido, então, que havia uma construção de um espaço, de uma ação entre o xamã e os outros que, segundo Berthold, ocorria em um lugar aberto de “terra batida”, possivelmente circular, de forma que, ao centro, poderiam estar compondo a cena produtos alimentícios, flechas e ou um totem central. Pela forma circular, não havia um “fundo”, os corpos que viam a cena eram parte do conjunto. Também se configurava em formato circular o início (a raiz) do teatro na Grécia, que tem origem, segundo Cyro Del Nero, na eira – um espaço para moagem dos grãos onde ocorriam comemorações, danças, cerimônias religiosas, orgias em celebração à colheita. Essa celebração era atribuída ao deus Dionísio, até então “(...) deus do vinho, da vegetação, e do crescimento, da procriação e da vida exuberante.” (BERTHOLD, 2014, p. 103). Dionísio se torna deus do teatro no momento que estes ritos, feitos na eira, se “(...) desenvolveram e resultaram na tragédia e na comédia” (BERTHOLD, 2014, p. 103). Pisístrato (600-528 a.C.) foi quem construiu o Teatro de Dionísio em Atenas (Imagem 27), na encosta da colina do santuário de Dionísio. Além

Imagem 26: Pintura em rocha, cena de dança ritual. Lérida - Espanha, WEB

do theatron, havia “(...) um altar, uma gruta e uma “orquestra” (do verbo dançar) circular de terra batida ou areia (arena) (...)” (DEL NERO, 2008, p. 13). A troca de vestimenta dos atores era feita na skene, uma tenda que ficava atrás da orquestra. Foi da evolução desta tenda que surgiu a cenografia.

Essa skene se modificou e a cada período histórico, passando por diversos estágios, desde o improvisado até abrigar uma skenoteca, quando abrigou costumes, adereços e cenografia [...] Mais tarde, ela se tornaria uma stoa, com portas e saídas de atores, decorada com fachada de palácio, ou templo, com escadas, altares ou o que fosse requerido pelos dramaturgos (DEL NERO, 2008, p. 14).

Apesar da origem circular na eira, o edifício teatral grego não era completamente circular. A parte cênica permanece no formato de círculo, mas o teatron – onde se vê, era semicircular. Passa a existir um “fundo” como já dito, inicialmente, a skene e, consequentemente, evolui para paredes, colunas, elementos que compusessem a dramaturgia. Dá-se início a uma nova relação de visual, em que o espectador tinha visão total do lugar cênico. Sabe-se que o estudo do corpo, das proporções, da beleza ideal, tem início na Grécia, vide a evolução das estátuas e dos templos. Mas foi em Roma que estudos sobre as métricas do corpo começaram a ser vinculados à arquitetura, transformando o corpo em um “(...) alicerce básico do pensamento arquitetônico ocidental” (AGREST, 1988 apud NESBITT, 2010, p. 585). Desde Vitrúvio, segundo Diana I. Agrest, o corpo foi fixado como base do sistema da arquitetura, o logocentrismo e antropomorfismo masculino. Em seu texto À margem da arquitetura: corpo, lógica e sexo Agrest, a autora expõe a forma que o corpo foi relacionado à arquitetura e como o corpo da mulher foi reprimido, apresentando textos que abordam “sobre a transferência simbólica do corpo para a arquitetura”.

O homem é apresentado como possuidor do atributo das proporções naturais perfeitas. Assim, a relação analógica entre arquitetura e o corpo humano parece garantir a transferência para

Imagem 27: Ruína Teatro Dionísio, Atenas - Grécia, WEB

a arquitetura das leis naturais de beleza e natureza (AGREST, 1988 apud NESBITT, 2010, p. 587). Os romanos absorveram o teatro grego realizando algumas modificações no lugar teatral, mudanças da forma a partir dos estudos de Vitrúvio, de caráter social e religioso. O lugar cênico deixa de ser circular, como era na Grécia, e passa a ser semicircular – a plateia acompanha essa forma. É retirado, também, o caráter religioso do edifício, transformando-o em um local de divertimento. Por fim, dá-se início à demarcação dos lugares de melhor visual para os membros privilegiados. É no Renascimento que se retoma os estudos alicerçados em Vitrúvio, juntamente com a ciência a partir dos estudos dos corpos e dos estudos matemáticos. Nota-se essa influência do corpo do homem quando observa-se o Homem Vitruviano (Imagem 28), de Leonardo da Vinci – uma figura masculina circunscrita, e que tem como base para a construção deste círculo o seu umbigo, que é o centro. Além disso, suas partes corporais definem um quadrado onde a altura do corpo é proporcional à distância entre a ponta dos dedos das mãos. Os estudos sobre o corpo, a matemática, a geometria e a perspectiva não ficaram atreladas à escultura e à pintura. Na arquitetura, reverberaram-se esses estudos e não seria diferente com o lugar teatral, graças aos estudos sobre o edifício greco-romano com apoio do quinto livro de Vitrúvio, De Architectura, que permitiram a formulação do edifício teatro que mais se aproxima com o que temos hoje. Segundo Berthold, a perspectiva foi “a grande paixão do Quattrocento”, tendo influência direta no edifício teatral e na questão cênica. De início, os cenários eram modestos e com pinturas não muito assertivas do ponto de vista da perspectiva. Com o passar dos anos, ganha-se uma certa profundidade e perspectiva nestas pinturas. Foi Baldassare Peruzzi, em 1518, que realizou uma significativa mudança no lugar cênico, aumentando a área de atuação, e criando profundidade real graças à “(...) combinação entre cenário com praticáveis no proscênio e uma parede de fundo pintada em perspectiva plena”

Imagem 28: Homem Vitruviano, Leonardo da Vinci. Gallerie dell’Accademia, Veneza - Itália. WEB

(BERTHOLD, 2014, p. 284). Peruzzi fixa o ponto de fuga e a perspectiva principal dentro do quadro pintado. Discípulo de Peruzzi, Sebastiano Serlio avança mais na tentativa de criar uma melhor cênica real. Em Architettura (de 1545), descreve como construir a partir de bastidores em ângulo uma perspectiva.

Serlio agora projetava isto na distância, para além do prospecto pintado, ou seja, para além da parede de fundo do palco. Visava com isso frear a rapidez de redução no plano do escorço e desta profundidade ilusória ganhar algum espaço real de atuação no palco (BERTHOLD, 2014, p. 287).

Projetado por Andrea Palladio, o Teatro Olímpico de Vicenza é o exemplo de teatro do Renascimento que ainda pode ser visto. Para o projeto, Palladio seguiu o formato de auditório que Vitrúvio definiu em seu quinto livro. O palco tinha uma saída de cada, proscênio, e a scaenae frons – estrutura permanente que servia de fundo ao palco –com três recortes, onde seriam posicionadas as pinturas perspectivadas. Pouco antes da conclusão do projeto, Palladio vem a falecer, e Vincenzo Scamozzi assume o projeto, alterando esses recortes, transformando-os em “vielas praticáveis”, como diz Berthold.

Seguindo Serlio, ele situou o seu ponto de fuga para a perspectiva além da cena, nas telas de fundo vistas através das três entradas, intensificando assim a ilusão de profundidade (BERTHOLD, 2014, p. 287).

As perspectivas eram melhor compreendidas nos lugares em que a visão era frontal, que eram ocupados por pessoas privilegiadas. A segregação dentro do teatro, que teve início com os romanos, continua neste período, e o distanciamento do público com o lugar cênico começa a ser maior.

Nos séculos seguintes o teatro se aperfeiçoou como espaçoedifício, mas continuou com o distanciamento entre a cena e o espectador. No âmbito da cenografia, as mudanças foram muitas, passando pelas pinturas elaboradas da ópera barroca, até a renovação do teatro moderno. O cenário muda das pinturas bidimensionais para as tridimensionais

Imagem 29: Teatro Olímpico de Vicenza, Andrea Palladio e Vicenzo Scamozzi, Vicenza - Itália. WEB

graças à utilização de elementos com volumes atrelados ao uso do jogo de luzes com a adoção da energia elétrica, abrindo-se assim uma nova área de experimentação na cenografia. O questionamento sobre a forma do lugar teatral, representado pelo teatro italiano, começa a surgir no fim do século XIX, reverberando no século seguinte, até os dias de hoje. Questionamentos sobre a divisão por classes, visibilidade e acústica começaram a surgir contra o paradigma do teatro italiano. Outro ponto crucial a ser transformado é a separação entre a cena e a plateia, e também a presença de uma moldura que os distancia espacialmente, fomentando possibilidades a favor da interação e aproximação com o público. Diversos diretores de teatro começaram a questionar o espaço teatral que consequentemente limitava a dramaturgia. As apresentações do início do século XX refletiam os questionamentos acerca da sociedade. Surge um grupo que explora o teatro como forma de comunicação política. Erwin Piscator foi um diretor e dramaturgo alemão que via no teatro um espaço político. Em 1919 lança um manifesto “(...) conclamando à criação de um ‘Teatro Proletário’” (BERTHOLD, 2014, p. 499). Piscator, em seu livro Teatro Político, escreveu:

A arquitetura do Teatro está em estreita ligação com a forma da respectiva dramaturgia. Ambas se encontram em mútua relação. Dramaturgia e arquitetura juntas, em suas raízes, partem da forma social de sua época. A forma do palco dominante em nossa época é a forma sobrevivente do absolutismo, é o teatro da corte. Com sua divisão em plateia, frisas, camarotes e galerias, ele reproduz as camadas sociais da sociedade feudal (PISCATOR apud MANTOVANI, 1989, p. 56).

Uma série de percalços atrapalharam a vontade da criação de um espaço teatral que refletissem a época, mas em 1927 Walter Gropius, diretor da Bauhaus em Dessau, desenha para Piscator o que seria o Teatro Total (Imagem 30). A Bauhaus, antes da proposta de Gropius, já iniciava estudos sobre o teatro com o professor Oskar Schlemmer (Imagem 31), que questionava o espaço teatral limitador para a criação cênica da dramaturgia. Suas propostas tinham como objetivo modificar

Imagem 30: Desenho Teatro Total, Walter Gropius, 1927,WEB

a relação público cena inserindo elementos do cinema, afastando-se da representação realista e aprofundando nos estudos da luz e da acústica. O desenho de Gropius dava ao Teatro total uma forma ovalada, na qual seria possível ocorrer os diversos tipos de apresentações: ópera, cinema, dança, conferências e teatro. Parte do piso rotacionava e permitia diferentes configurações ao espaço como anfiteatro e arena.

[...] procurei elaborar uma estrutura flexível, que possibilita ao diretor uma livre escolha entre as três formas de teatro, com o uso de simples e disponíveis equipamentos [...] O público perderá a sua indolência, tão logo experimentar o efeito surpreendente do espaço conversível. Através do deslocamento da ação de uma posição cênica para outra, no andamento da representação, e atravésdeumsistemadeprojeçõesedemáquinascinematográficas; através dele as paredes e a cobertura podem transformar-se em cenas em movimento, todo o edifico seria o resultado de efeitos tridimensionais, ao contrário dos efeitos achatados do teatro tradicional [...] Deste modo, o teatro mesmo, resolvido no espaço maleável e ilusório da imaginação, se transformaria em espaço cênico. Um teatro como esse estimularia a criação e a fantasia do dramaturgo e do diretor, visto que, como espírito edifica o corpo, assim o edifício transforma o espírito (GROPIUS apud MANTOVANI, 1989, p. 56-57).

Cristiano Cezarino Rodrigues em seu texto, para o site Vitrúvius, “Cogitar a arquitetura Teatral” diz que a multiplicidade de espaços juntamente com a possibilidade de deslocamento, visto que o piso poderia rotacionar durante a peça, geraria uma “(...) experiência diferenciada tanto para atores quanto para o público” (RODRIGUES, 2009, s/p). Fica evidente, nesta proposta, que a integração do público na cena era bem quista, isso porque ao propor configurações diferentes e propor um espaço que participasse da cena, Gropius tende a inserir o corpo que vê na cena. Este projeto ficou apenas no estudo, nunca fora construído, mas se somou às outras propostas que repensaram o lugar teatral. Embora o corpo tenha começado a ser pensado para ser inserido na cena, a arquitetura ainda o limitava a dispositivo métrico. Le Corbusier em sua publicação Modulor (1948) e Modulor 2 (1953), redesenha e

Imagem 31: Balé Triádico, Oskar Schlemmer. WEB

reafirma o corpo como uma forma de escala humana para a arquitetura, criando referências métricas padronizadas que “orientam” a arquitetura e a produção em escala. Enquanto Le Corbusier tratava o corpo como fonte métrica, a fenomenologia inicia debates sobre o corpo, sobretudo após os anos 1960, que não se fechavam ao corpo métrico. Iniciavam-se os estudos sobre a percepção do corpo de forma singular a partir do indivíduo e suas reflexões. O corpo, então, é visto como uma interação, como uma troca de percepções acerca de si. É uma tomada de entendimento da singularidade do ser e do corpo. Na Arte, a exploração do corpo também passa a seguir um viés fenomenológico a partir da década de 1960. O corpo do artista e do espectador começam a ser inseridos na arte, a fim de criar debates sobre si e sobre o corpo, sobre identidade de gênero, sexualidade, etc. Mortalha mundo cão (1961), é o resultado de uma ação sobre um tecido feita pelo pintor francês Yves Klein (1928-1962). Klein chamava de “antropometria” as pinturas que ele realizava a partir de modelos nus com corpos besuntados de tinta, transformando assim o corpo em “pincéis humanos”, que carimbavam e deslizavam sobre a superfície a ser pintada (Imagem 32). ORLAN (1947), em maiúsculo, é a forma que a artista francesa escolheu para representá-la, explicando o porquê no seguinte fragmento:

Escolhi este nome depois de uma sessão de psicanálise, quando percebi que assinava meus cheques com o nome “Morta”. Entendi então, depois da intervenção do psicanalista que apontou a anomalia, que eu nunca mais estaria naquele estado de morte lenta e foi aí que eu me dei uma nova identidade civil. Selecionei então um nome nem masculino nem feminino; este nome contém minha exigência de transgredir os tabus e de ficar à margem dos modelos de gênero [...] (ORLAN apud GONZAGA, 2012)

Ricardo Maurício Gonzaga em seu artigo O corpo como rascunho: ORLAN, o verbo feito carne feito imagem feito verbo, nos apresenta algumas questões que movem o trabalho da artista. Segundo ele, ORLAN, em

Imagem 32: Performance Anthropometries of the Blue Period, Yves Klein, 1960, Galerie Internationale d’art contemporain, Paris, France. WEB

seus primeiros trabalhos, direciona “(...) sua atenção para o problema da presença histórica do corpo feminino como objeto de interesse da pintura – e da escultura - na tradição da arte ocidental” (GONZAGA, 2012, p. 808). Dentre uma de suas performances, a artista posa nua refazendo quadros em que o corpo feminino é objeto central. Nos anos de 1990 a 1993, ORLAN embarca em uma série de nove performances (Imagem 33) em que ela se submetia a cirurgias plásticas filmadas e transmitidas ao vivo. O seu rosto é o suporte em que ela busca “recriar”, trazendo para ela, como diz Gonzaga “(...) a testa da Monalisa ao queixo da Vênus de Boticelli e, assim por diante, somandose outras partes de rostos de pinturas de mulheres da tradição ocidental” (GONZAGA, 2012, p. 808).

Minha série de performances foi criada para dar uma figura a minha face. É um trabalho de arte que se situa em algum lugar entre figuração, desfiguração e refiguração, num corpo que às vezes é sujeito, às vezes objeto – às vezes tendo um corpo, às vezes sendo um corpo (ORLAN apud GONZAGA, 2012).

O trabalho de ORLAN nos confunde, pois ela cria dualidades antes não comuns na História da Arte. Seu corpo corresponde a “sujeito/ objeto e autor/suporte” (GONZAGA, 2012). Nele, a obra de arte, o autor e o meio são um só.

Outra artista que utiliza seu corpo como meio da criação do seu trabalho é a fotógrafa americana Cindy Sherman. Sua obra transita em temas como identidade, cinema, mulher e mídia. Suas fotografias(Imagem 34) apresentam cenas completamente construídas a partir do estudo da luz, da posição do corpo, da maquiagem, do figurino, sendo ela a modelo que deve “(...) agenciar múltiplas personas por ela fabuladas (...)” (ALVARES, 2015, p. 3). No Brasil, diversos artistas também iniciam seus estudos sobre o corpo, destacando-se Hélio Oiticica (1937-1980), Lygia Clark (1920-1988) e Hudinilson Jr. (1957-2013). O primeiro, Oiticica, desenvolve trabalhos que precisam do corpo do espectador para serem experienciados. Tanto

Imagem 33: Performance O rosto do século XXI, ORLAN, 1990. WEB

Imagem 34: Untitled, Cindy Sherman, 2000, Whitney Museum, Nova Iorque - EUA. WEB

em Núcleos, quanto em Penetráveis, o deslocamento do espectador é fundamental, mas é com os Parangolés (Imagem 35) que o artista “exige” a participação do corpo. Uma capa de tecidos coloridos que devia ser vestida, e a partir do movimento da dança, os tecidos seriam ativados, gerando uma manifestação da cor.

[...] o espectador “veste” a capa, que se constitui de camadas de pano de cor que se revelam à medida em que este se movimenta correndo ou dançando. A obra requer aí a participação corporal direta; além de revestir o corpo, pede que este se movimente, que dance em última análise. O próprio “ato de vestir” a obra já implica numa transmutação expressivo corporal do espectador, característica primordial da dança, sua primeira condição (OITICICA, 1964b, p. 1 apud TEIXEIRA, 2017. p. 56).

Os Parangolés, como diz Oiticica, requerem participação corporal do espectador que deixa de ser aquele que contempla, e passa a ser motriz desse evento ao dançar e correr, e gerar ação nesse espaço. Lygia Clark, juntamente com Oiticica, fez parte dos artistas da década de 1960 do Movimento Neoconcreto. Movimento esse que surge a partir do rompimento com o movimento da década de 1950 denominado Concreto. Clark, juntamente com Lygia Pape e Oiticica, eram da ala do Neoconcreto que tinha uma “(...) atuação no sentido de transformar suas funções, sua razão de ser, e que colocasse em xeque o estatuto da arte vigente” (BRITO, 1999, p. 58). A artista tem diversos trabalhos que precisam do corpo do espectador, seja ele como forma de interação, como em Bichos (1960), quanto exploração sensorial, como em A Casa É o Corpo: Labirinto (1968) (Imagem 36). Neste último trabalho citado, a pessoa entra em uma estrutura dividida em ambientes intitulados “penetração”, “ovulação”, “germinação” e “expulsão”, e é levada a experienciar sensações sensoriais. Na década de 1970, quando lecionava em Paris, Lygia cria sensação de claustrofobia e sufocamento ao propor que os corpos penetrem em um túnel de pano de 50 metros. Em determinado momento, a pessoa passa pela experiência do nascimento ao sair por um orifício criado pela artista. O trabalho de Hudinilson Jr. se estende em vários meios, dentre

Imagem 35: Performance O rosto do século XXI, ORLAN, 1990. WEB Nininha da Mangueira vestindo P 25 Parangolé capa 21 Xoxoba (1968), de Hélio Oiticica, durante as filmagens de “H.O.”, de Ivan Cardoso, 1979. Foto Andreas Valentim, MAM-Rio. WEB

eles na xilogravura, colagem e fotocópia. Há, em muitos de seus trabalhos, um corpo que era o do próprio artista, fotocopiado, ou recortes de revistas. Na série Exercício de me ver (1981) (Imagem 37), o artista realiza fotocópias de diversas partes do seu corpo, fragmentando-o, gerando imagens a partir das distorções desse ato de pressionar partes corporais sobre a máquina Xerox. Ao pensar, sobretudo, no trabalho de Hélio Oiticica e Lygia Clark, observa-se que ambos tiveram destaque na década de 1960, um período, como já dito, com muita experimentação do corpo e da matéria. E no teatro não foi diferente. Segundo Elizabeth Maria Néspoli, em sua tese Teatro da Vertigem: construção poética e recepção, os anos de 1960 e 1970 foram de “Experimentação formais, temáticas e de modo de produção se multiplicaram e levaram muitos artistas para fora dos edifícios teatrais (...)” (NESPOLI, 2015, p. 42). Devido às censuras impostas pelo governo militar (1964-1985) estes movimentos são mitigados, retomando as experimentações com o fim do regime. Um dos grupos que representa essa tomada da experimentação teatral brasileira é o grupo paulista Teatro da Vertigem. Segundo consta em seu website e na tese de Néspoli, o grupo se inicia no ano de 1992 com a peça O Paraíso Perdido, embora tenham iniciado suas reuniões dois anos antes como um grupo de estudos do teatro. Os integrantes eram artistas recém-formados pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo.

Em sua primeira peça, O Paraíso perdido, de acordo com o website, a companhia pretendia “(...) tratar de algumas das mais recorrentes questões metafísicas: a perda do paraíso, sua nostalgia e a consequente busca de um religamento original”. Para esta encenação, eles buscam um lugar que não é o teatro, mas sim uma igreja – Santa Ifigênia, em São Paulo. Para as peças subsequentes, que formam a chamada trilogia bíblica, O Livro de Jó (1995) e Apocalipse 1.11 (2000), novamente o local não foi um edifício teatral. O primeiro se deu no Hospital Humberto I, e o segundo no Presídio do Hipódromo, ambos em São Paulo.

Imagem 36: A casa é o corpo Labirinto, Lygia Clark 1968. WEB

Imagem 37: Exercício de me ver II A, Hudinilson Jr., 1982. WEB

Ao encerrar a chamada trilogia bíblica [...], o Teatro da vertigem sedimentara uma poética que colocava em fricção a “realidade” dos espaços e a ficção moldada em longos processos de criação. A escolha de ambientações carregadas de sentidos fortemente impressos no imaginário coletivo que se conecta diretamente ao desejo de ampliar tensão na atividade receptiva é projeto concretizado. Porém é na montagem seguinte, de B-3 (2006), que sucede a trilogia bíblica, que o movimento do grupo em direção ao espaço público se intensifica temática e geograficamente (NESPOLI, 2015, p. 61).

A peça B-3 se desenvolve no Rio Tietê, como o grupo diz em seu website “(...) primeira intervenção em um espaço público aberto (...)”. Segundo Néspoli, esta encenação utilizava pontos das duas margens do rio em um percurso de 4,5 km percorrido por um barco que transportava os espectadores. A autora ressalta que nesse espetáculo há a inserção de um novo campo de tensão “(...) que se instaura no encontro do espectador com a obra” (NESPOLI, 2015, p. 61). Segundo a autora, o ambiente não proporciona um estar de segurança – em comparação aos ambientes arquitetônicos das peças anteriores – e havia uma “(...) zona híbrida na qual a encenação e a realidade se articulavam” (NESPOLI, 2015, p. 61), sendo o real insistentemente lembrado por meio da cidade que margeia o rio e os carros que por ali passam. O grupo deixa evidente em outras peças que deseja fazer do espaço urbano um local de experimentação urbana. Seu último trabalho foi uma performance-filme com colaboração do artista Nuno Ramos. Segundo o website do Teatro de Vertigem, a performance consistia em um cortejo fúnebre com carros em marcha ré que percorriam o caminho da Avenida Paulista para o cemitério da Consolação. Ao pensar nessa forma do Teatro da Vertigem de explorar o urbano em meio à realidade a partir de encenações, pensa-se também no carnaval. Enquanto o Teatro da Vertigem tem uma forma de acontecer, tem um jeito de elucidar sentimentos, o carnaval de rua age de outra forma: há uma imprevisibilidade constante, uma espontaneidade do evento. No

Imagem 38: O Paraiso perdido, Foto: Kika Antunes, 1992. WEB

Imagem 39: B-3, Foto: Rio Encena, 2006. WEB

carnaval de rua há uma dicotomia, ou como Néspoli diz “zona híbrida” entre a cidade que mantém seu ritmo de realidade, enquanto os foliões se inserem em uma narrativa de festa, vivências, pessoas e sentimentos. O carnaval é uma vivência do corpo no espaço público, é uma transformação do espaço cotidiano onde a experiência acontece, não só por meio das vestimentas que emanam movimento e cor no espaço, mas através das ativações sensoriais por meio da interação com o outro e com o espaço que tem seu uso “subvertido” temporariamente. A construção do entendimento do corpo é constante, e permanecerá, como foi brevemente discorrido. O corpo pertence ao espaço, como diz Bragioni, “(...) a partir de seu movimento, sendo então ‘sinônimo de espaço praticado’ e ‘como o lugar de onde vemos o mundo’ e ‘como o território de onde dizemos o mundo’ (HISSA; NOGUEIRA, 2013, p. 61 apud BRAGIONI, 2020, p. 53). A prática deste espaço pode, e deve ser fortemente fomentada pela Arquitetura e pelas Artes.

DIOR II

Na moda, as referências a outros trabalhos, sejam eles relacionados a vestimenta ou não, são constantes. Em uma Maison como Dior não seria diferente. É quisto que o designer que lidera o time criativo releia a história da casa para poder manter a alma do fundador. Christian Dior dirigiu a sua marca por apenas dez anos, mas deixou um legado enorme de referências e silhuetas, tendo seus sucessores contribuindo da mesma forma. Yves Saint Laurent foi o primeiro a comandar a casa após a morte de monsieur Dior, seguido por Marc Bohan, Gianfranco Ferré, John Galliano e Raf Simons. Atualmente quem assume a direção criativa é Maria Grazia Chiuiri, a primeira mulher a assumir a Maison. O desfile em questão foi realizado nove meses antes do apresentado no capítulo anterior. Para a coleção primavera-verão de Alta Costura de 2015, Raf Simons se inspira nas vestimentas de David Bowie, quem Raf define como “Um camaleão capaz de se reinventar” (BLANKS,2015). A partir desta ideia de “camaleão”, Raf Simons reedita silhuetas Dior através de um caleidoscópio de referências a trajes das décadas de 1950, 1960 e 1970. O que ele busca nesse desfile é quebrar o distanciamento da Alta Costura com o mundo, aproximando-a da “realidade” ao trazer novos materiais, tecidos “comuns” e reestruturação das silhuetas. Segundo

A coleção que ele mostrou foi um impressionante esforço em várias camadas que expandiram o tempo e o espaço, imaginando o futuro como visto pelo passado, reimaginando o passado com uma visão retrospectiva do futuro, tudo configurado com uma trilha sonora de canções que abrangem anos importantes na carreira de um performer que sempre fez exatamente isso com sua música. O conceito era simples em essência - Simons e Bowie dando um ao outro um pouco do amor de alma - mas devastadoramente sofisticado em sua execução (VOGUE, 2015, tradução nossa)7

Para apresentar esta coleção, que trazia casacos feitos de plástico bordados com lantejoulas, saias plissadas com cintura marcada (Imagem 40), botas coloridas envernizadas com saltos de acrílico transparente e macacões gráficos coloridos, a Maison convocou seu parceiro de longa data, o já mencionado Bureau Betak, e escolheu o Museu Rodin para a locação. Há uma poesia na escolha do lugar: ele cria uma relação entre a Alta Costura e a Arte. A meticulosidade da produção da roupa que contabiliza mais de seiscentas horas de trabalho à mão, com o trabalho de Rodin em suas esculturas. Há poesia também no percurso até o espaço do desfile, que se localiza nos “fundos” do museu. Para chegar até este espaço, passa-se em frente à casa que abriga parte do acervo, e em seguida pelo jardim com esculturas como O Pensador para, por fim, chegar até o volume monolítico branco erguido no jardim. Não há nada além da abertura central, uma escada e um letreiro que indica Dior escrito, localizado um pouco mais acima (Imagem 41).

7VOGUE: ”The collection he showed was a stunning multilayered effort that spanned time and space, imagining the future as seen by the past, reimagining the past with the hindsight of the future, all set to a soundtrack of songs spanning key years in the career of a performer who has always done exactly that with his music. The conceit was simple in essence—Simons and Bowie giving each other a little soul love—but devastatingly sophisticated in its execution” (VOGUE, 2015). 92

Imagem 40: Dior HC 2015 SS. WEB

Imagem 41: Dior HC 2015 SS. WEB

Em contraponto com o exterior extremamente comedido, o interior se mostra como uma explosão de informações (Imagem 42). Com uma forma quase circular o espaço interno se divide em dois níveis, principal e mezanino, sendo o segundo com alturas variáveis. Uma estrutura de andaimes brancos dá forma a este espaço, como se fosse o esqueleto exposto, sustentando as paredes, e as escadas que conectam os diferentes níveis do mezanino que se liga com o pavimento principal por duas escadas quase que centrais. O piso é em carpete rosa e se espalha por todo o espaço, escada e até nos blocos de bancos. Por fim, as paredes e o teto, que são cobertos por espelhos, resultam em infinitas imagens caleidoscópicas.

Imagem 42: Dior HC 2015 SS. WEB

TEATRO OFICINA

Dentre os grupos de teatro que questionavam o espaço cênico e a conformação da cena, os quais realizavam experimentações formais que são relevantes no teatro brasileiro, como define Néspoli (2015), está o grupo do Teatro Oficina. O início dos trabalhos se dá no ano de 1958, encabeçado por José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi. Era um grupo de alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco que aluga, de um grupo espírita, o que era o Teatro Novos Comediantes, no Bixiga, para ali instalarem sua companhia teatral. O primeiro projeto do espaço foi feito por Joaquim Guedes que desenhou um “(...) teatro tipo ‘sanduíche’, com duas plateias frente a frente separadas pelo palco central (...)” (ELITO, 2015, p. 8). Esta configuração resiste até o incêndio de 1966. O segundo projeto é feito por Flávio Império e Rodrigo Lefèvre em 1967, e traz um palco quadrado de 9mX9m com altura de 10m. No centro do palco havia um círculo de 7 metros que era rotacionado. “Um palco italiano nu, que mantinha a relação frontal entre palco e plateia, mas pelado, contando com as maquinarias teatrais, tais como urdimento e palco giratório aparente” (MATZENBACHER, 2018, p. 99). No ano de 1981, o Condephaat tomba o Teatro Oficina. Em seu parecer, Flávio Império ressalta que “(...) um bem cultural da cidade não pela importância histórica do imóvel, mas pelo seu uso como palco de transformações do teatro brasileiro” (IMPERIO apud ELITO, 2015, p. 9).

Imagem 43: Teatro Oficina, WEB

O edifício em questão é o que existe hoje, na configuração desenhada por Lina Bo Bardi e Edson Elito (Imagem 43). Após anos de problemas com o espaço, a tentativa de compra e o tombamento, finalmente um processo de reformulação do espaço pode acontecer. A ideia da rua invadir o espaço sempre existiu, como conta Edson Elito. É realizado um anteprojeto que dá início à demolição de algumas paredes. Em uma vistoria, Edson sente que todas as paredes deveriam ser demolidas, deixando apenas as envoltórias, e Zé Celso cria o teatro em rampa. Essas novas ideias são transmitidas a Lina que dias depois desenha a solução.

A partir dessas ideias, desenvolvemos um novo anteprojeto demolindo todas as paredes internas e criando um palco em toda a extensão do teatro, da porta da entrada aos fundos, com trecho em rampa para vencer desnível de 3m da frente aos fundos (ELITO, 2015, p. 13-14).

O palco em rampa tem uma faixa em madeira para marcar o sentido de rua (Imagem 44 e 45), de passagem, a estrutura metálica azul que foi criada para dar apoio aos mezaninos e a cobertura contribui, também, para a estabilidade das galerias que são em tubos metálicos, como andaimes. Essas galerias são desenhadas ao longo do palco/rua, criando passagem e lugar para ver, assim como conecta mezaninos, camarins, sala de luz e som.

Imagem 44: Teatro Oficina, WEB

Imagem 45: Teatro Oficina, WEB

DIÁLOGO

Ao pensar o que estes dois projetos têm em comum, chega-se a similaridades que podem ser de ordem material, espacial e também de objetivo; mas também surgem diferenças, como a temporalidade e o sujeito a quem o espaço é endereçado. De início, ao ver as imagens de ambos os projetos, nota-se uma certa similaridade entre eles a partir de um elemento material que é o tubo metálico que estrutura parte dos dois projetos, criando um conjunto rítmico e estético que se torna presente. Na cenografia, ele é utilizado de forma mais “aleatória”, não tendo uma sequência rítmica e linear como no Teatro Oficina. Isso se dá também pela forma do espaço. Outro elemento que cria essa proximidade entre eles é a escada, meio essencial para fazer a ligação dos diferentes níveis, tanto do mezanino da cenografia, quanto entre as galerias do teatro. Essas estruturas tipo andaime são, de certa forma, protagonistas no projeto e ajudam a conformar o espaço, e como já foi dito, elas são parte que sustenta os diferentes níveis, o que possibilita ao espectador ter acesso a diferentes visuais.

Para Tschumi:

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