A REFORMA PROTESTANTE Durante séculos, a Igreja Católica dominou a religião e a sociedade. Era poderosa, proprietária de muitas terras, controlava o ensino e fazia acordos com governantes. Todo esse poder, porém, resultou em corrupção e imoralidade. Teólogos que não concordavam com a situação, propuseram mudanças. Longe de buscar a criação de uma outra religião, eles queriam melhorar a Igreja, fazendo-a voltar aos princípios básicos do cristianismo. Os governantes, diante de um novo cenário político-econômico, também queriam mudanças. Esse movimento ficou conhecido como Reforma Protestante, que culminou na separação da Igreja Católica e cujos efeitos repercutem até hoje. Por isso, pode-se dizer que a Reforma foi um acontecimento religioso, político, social, cultural e econômico.
1. O CONTEXTO DA REFORMA
1. 1. A Igreja Católica
A Idade Média foi marcada pelo domínio da Igreja Católica sobre a sociedade civil. Este domínio inicia-se muito antes na união Igreja-Estado decretada por Teodósio, em 392, quando decretou o cristianismo como a religião oficial do império romano. A partir de então, o paganismo misturou-se ao cristianismo através de pessoas que, sem se converterem, entravam na Igreja ou por obrigação ou para obter favores do imperador – este dava vinte moedas de ouro e uma roupa branca para o batismo a cada “novo convertido”. Essas pessoas levaram seus costumes, deuses e semi-deuses. E a Igreja, para não perder fiéis, adaptou sua doutrina aos seus novos membros, adotando o culto aos santos, velas, adoração às imagens, culto à Virgem Maria, entre outros. A imoralidade também se manifestou através da venda de cargos e funções sagradas (simonia), venda de supostas relíquias (pedaços da cruz de Cristo, de ossos de santos e apóstolos), e falsos decretos. Rui Barbosa retrata a situação vivida pela Igreja Católica: Adquiriu a Igreja a influência temporal; mas a sua autoridade moral decresceu na mesma proporção; de perseguida, tornou-se perseguidora; buscou riqueza, e corrompeu-se; e a corrupção era clamorosa. Na França, muitos sacerdotes eram escravos foragidos ou
3 criminosos, sem qualquer ordenação. Os bispados eram vendidos abertamente a quem desse mais. O arcebispo de Roma era analfabeto. Embriaguez e adultério eram os menores vícios, de um clero que tinha apodrecido até à medula... Durante anos, uma família de mulheres infames dominou o papado, as quais entregavam este a quem elas o desejassem dar. (...) Procure alguém lançar-se na sociedade daqueles dias e sentir-se-á num ambiente para o qual a religião verdadeira, a religião do auto-domínio, do domínio das paixões, a religião do amor, era simplesmente uma coisa estranha e incompreensível, e da qual ninguém queria cogitar. Aquela era uma sociedade esmagada sob o peso de atividades que transformavam a vida em pugnas amargas com que uns esmagavam os outros, impiedosamente, tripudiando por cima dos princípios e freios que a própria moralidade impõe. A maldade e a miséria da massa humana daqueles dias eram simplesmente de estarrecer. 1
Entre 1300 e 1400, ocorreram tensões na relação entre papas e imperadores: Gregório IX quis promover cruzadas contra os maometanos. Apelou às cortes européias, mas não obteve resposta; buscou o apoio de Frederico de Alemanha. Este, de início, concordou e reuniu um exército, mas foi surpreendido pela peste e retrocedeu. O papa não acreditando na justificativa, excomungou-o. Frederico, longe de ficar atemorizado, respondeu em sua defesa com uma carta ao papa, que em um trecho dizia: “A religião tem servido de pretexto a todas estas transgressões contra o governo civil, mas o verdadeiro motivo sempre foi condenar tanto governantes como súditos a uma intolerável tirania, e extorquir dinheiro, e, uma vez que pudessem obter recompensa monetária, não se importaram absolutamente nada com os tristes efeitos dos seus atos entre a sociedade.” 2
Após de acordos diversos, e apesar destes, Frederico foi 5 vezes excomungado, revelando a inconstância e os caprichos de um papa preocupado, apenas, em conquistar territórios e riquezas. Os papas que sucederam a Gregório continuaram a luta entre o poder papal e o poder temporal dos imperadores e príncipes. Entretanto, talvez o maior dos abusos cometidos pela Igreja tenha sido a proibição da leitura e tradução da Bíblia por leigos. Somente o clero deveria ter acesso às Escrituras.
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Barbosa Apud Fonseca, 2003, p. 09. Knight & Anglin, 1983, p. 174.
4 1. 2. O Mundo em Transformação
Apesar do poder que tinha a Igreja Católica não podia impedir os avanços da ciência, e com eles, as transformações pelas quais o mundo passava. Entre os séculos XV e XVI, a Europa vivia o Renascimento, um movimento de estudiosos da Antiguidade Clássica (humanistas) que acusavam a Idade Média de ser uma época de escassa produção intelectual. Defendiam o retorno à filosofia, literatura e artes gregas, pois entendiam que elas representavam o referencial de respeito pelas qualidades do ser humano. Teve a Itália como seu berço e lá alcançou maior esplendor. A mentalidade da população passou de uma visão de mundo medieval teocêntrica para uma visão renascentista antropocêntrica. Se antes, tudo era visto à luz da religião, agora o olhar está centrado no homem e nas relações entre ele e a natureza. O desenvolvimento das cidades, a centralização do Estado (antes dividido entre feudos) e a fundação de Universidades permitiram que filósofos, escritores e pesquisadores desvinculados da Igreja prosseguissem em seus estudos. Para eles, a busca pela verdade se dava através do empirismo: a experimentação e a observação racional dos fatos. A invenção da imprensa, por Gutenberg, em 1455, causou uma verdadeira revolução do conhecimento, apesar da maioria da população ser analfabeta. Ainda assim, a Bíblia, primeiro livro impresso, estava nas mãos daqueles que sabiam ler e estes perceberam que as atitudes da Igreja estavam muito distantes daquelas pregadas pelo cristianismo bíblico. As viagens marítimas e o crescimento do comércio possibilitaram a percepção de outras culturas além daquela conhecida e o surgimento da burguesia, uma classe majoritariamente de comerciantes, que buscava enriquecer com seus negócios sem a condenação da Igreja, que proibia a cobrança de juros. Este foi um período de grande progresso nas ciências: a medicina crescia no conhecimento do corpo humano pela dissecação de cadáveres (proibida pela Igreja Católica); na física, Galileu Galilei questiona a tradição e prova empiricamente sua teoria de que dois objetos mesmo de pesos diferentes chegam ao mesmo tempo ao chão; nas artes, Michelangelo, Rafael e Leonardo Da Vinci se destacam (este tendo obtido avanços em estudos sobre o corpo humano e sobre várias invenções).
5 Também foi o período de secularização da cultura, ou seja, o afastamento da vida cultural da autoridade da Igreja. Agora, o homem e sua sociedade devem ser estudados à luz deles próprios, sem a intervenção eclesiástica. A filosofia escolástica3 foi sendo aos poucos substituída pelo Humanismo (apesar de não haver uma filosofia oficial renascentista), que pode ser definido como “a atitude filosófica que faz do homem o valor supremo e que vê nele a medida de todas as coisas.” 4 Dentre os humanistas, destacam-se Erasmo de Roterdam e Tomas Morus. O Renascimento espalhou-se pela Europa tendo expoentes em vários países:
França: apresentado por Rabelais (1490 – 1553), que escreveu “Gargântua e Pantagruel”, satirizando comportamentos e instituições medievais. Montaigne (1533 – 1592) representou o ceticismo dizendo que não há verdades absolutas e que o homem é a medida de todas as coisas.
Espanha: destaca-se a obra “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes (1547 – 1616), que faz uma sátira ao contar sobre um fidalgo (nobre) decadente que fica louco e se imagina nos grandes tempos da cavalaria medieval.
Alemanha: destacaram-se na pintura Holbein e Dürer, considerado o maior gravador de todos os tempos.
Holanda: lá foi inventada a pintura a óleo sobre tela, que representou um grande progresso na técnica artística. Seu maior expoente é Erasmo de Roterdam (1466 – 1536), cuja obra “O Elogio da Loucura” satiriza filósofos e teólogos, padres, cavaleiros, geógrafos e astrônomos.
Inglaterra: William Shakespeare (1564 – 1616), poeta e dramaturgo, retratou a alma e os conflitos humanos como nenhum outro.
Há ainda um sentimento nacionalista que surgia entre o povo dos países europeus. Eles rejeitavam a autoridade estrangeira sobre suas próprias igrejas e não se conformavam com as contribuições que eram obrigados a fazer para sustentar o papa e os templos suntuosos em Roma. 3
A única filosofia tolerada pela Igreja na Europa ocidental baseava-se na adaptação que Tomás de Aquino (séc. XIII) tinha feito da obra do pensador grego Aristóteles. Para os escolásticos, a filosofia servia à fé cristã, ao buscar compreender as verdades do cristianismo através da lógica. 4 Jepiassú & Marcondes, 1990, p. 123.
6 2. OS PREDECESSORES DA REFORMA
Sempre que se fala em Reforma Protestante, logo são mencionados Lutero, Calvino e Zwínglio. Contudo, antes deles, outros personagens iniciaram uma reação ao cenário estabelecido.
2. 1. João Wycliff
Não é possível precisar a data e o local de nascimento de Wycliff; supõe-se ele tenha nascido próximo a Richmond, no condado de York, na Inglaterra, mais ou menos em 1324. Filho de pais camponeses esforçou-se por ingressar na Universidade de Oxford, onde aproveitou todas as oportunidades que teve para aprimorar seus conhecimentos, dominando as leis civis, canônicas e municipais, e compreendendo bem o papel do homem como pecador segundo a Bíblia. Considerou o papa como o Anticristo e atacou as ordens de frades mendicantes, escrevendo alguns folhetos sobre o assunto. Aos domingos, pregava o Evangelho ao povo usando uma linguagem simples e de fácil entendimento. Defendia, ainda, que o governo inglês deveria corrigir os abusos cometidos pela Igreja na Inglaterra, podendo confiscar as propriedades de oficiais corruptos e afastar os que permanecessem em pecado. Diferente de outros reformadores posteriores que defendiam a separação Igreja – Estado. Enfatizou a liberdade espiritual do justo, afirmando que todo homem, seja clérigo ou não, está no mesmo patamar que qualquer outro diante de Deus. Assim, a mediação do sacerdote já não é mais necessária. Antecipou a doutrina da justificação apenas pela graça, defendida por Lutero. Os frades mendicantes, sentindo-se prejudicados e percebendo a fama que Wycliff ganhara, logo relataram ao papa extraindo dezenove artigos de seus escritos. Dentre eles, nove foram considerados heresias e outros, errados. O papa expediu uma ordem para que o herege fosse levado aos tribunais eclesiásticos. Seu julgamento, em 1377, contou com a participação de amigos influentes e do povo que o admirava, tendo que ser interrompido por causa dos atos de violência dos presentes, inflamados pelas discussões, em que apenas Wycliff manteve-se em silêncio.
7 Em 1378, com o Grande Cisma do Papado5, Wycliff desfrutou de momentos de paz, mas aproveitou para atacar de modo mais ferrenho o poderio papal. Segundo ele, o “papado bíblico” demonstrava-se através de uma vida de humildade, pobreza e serviço à igreja. Tendo sido convocado novamente para julgamento, contou apenas com o apoio dos populares; seus amigos o abandonaram por sua posição extremista em relação ao papado. Foi poupado por imposição da mãe do rei que proibiu o tribunal de pronunciar qualquer sentença contra Wycliff temendo manifestações populares. Essa separação dos intelectuais de Oxford foi um marco na história de Wycliff que passou a defender a predestinação, afirmando que nenhum homem sabe se é da igreja ou “um membro de Satanás”. Shelley (2004) resume a doutrina de Wycliff: Wyclif (sic) desafiou todas as práticas e crenças medievais: perdões, indulgências, absolvições, peregrinações, a adoração de imagens, a adoração de santos, o tesouro de seus méritos estarem nas reservas do papa e a distinção entre pecado venial e mortal. Manteve a crença no purgatório e na extrema-unção, embora admitisse que procurara em vão na Bíblia pela instituição da extrema-unção. Se as imagens, disse ele, aumentam a devoção, não precisam ser retiradas; e aqueles que oram aos santos não estão necessariamente errados. A confissão poderia ser útil desde que feita voluntariamente à pessoa apropriada ou, melhor ainda, em público. (p.257)
Opôs-se ferozmente contra a doutrina da transubstanciação, publicando no verão de 1380 doze artigos contra a idéia de que o pão e o vinho da ceia transformavam-se no corpo de Cristo. Isto rendeu aos seus inimigos a oportunidade perfeita para o silenciarem: o reitor e um pequeno conselho condenaram as doutrinas e o proibiram de fazer palestras. Depois, o arcebispo de Canterbury, William Courtenay, condenou dez das doze doutrinas. Contudo, ele foi buscar apoio nas camadas populares. Para isso, entretanto, era necessário que o povo tivesse a Bíblia em suas mãos. Assim, mais tarde, em 1383, pôde ver sua tradução completa da Bíblia do latim para o inglês circulando por toda a Inglaterra, apesar dos esforços contrários por parte dos bispos. Criou, então, um grupo de “sacerdotes pobres”, à semelhança do método de Francisco de Assis e seus frades, que, vestidos de túnicas castanho-avermelhadas, sem
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Trata-se da eleição de um papa rival (Clemente VII) em Findi, Nápoles, por cardeais que desgostavam da aspereza e severidade com que Urbano VI, então papa oficial, os tratava. De modo trágico e cômico, ao mesmo tempo, os papas excomungaram-se um ao outro.
8 sandálias, bolsas ou documentos, com um longo bastão na mão, dependentes de vizinhos para se abrigar e alimentar, saíam para evangelizar no campo e até em igrejas. Esse grupo ficou conhecido como Lollards, que significava resmungões. Eles carregavam algumas páginas da Bíblia reformista além de panfletos e sermões e conseguiram tanto apoio que a igreja não os atacou diretamente. Entretanto, os seguidores de Wycliff foram caçados, expulsos de Oxford ou forçados a abandonar suas opiniões, mas Wycliff foi deixado em paz. Com a subida de Henrique IV ao trono, os padres e frades tiveram a chance de perseguirem os lollardos, espalhando boatos sobre eles, que culminaram em 1400 com a publicação de um edital determinando que todos os hereges fossem queimados. Wycliff terminou seus dias em Lutterworth, em 1384.
2. 2. João Huss
Se na Inglaterra, os lollardos eram perseguidos, na Boêmia a revolta iniciada por Wycliff encontrou um vasto campo de trabalho. A Boêmia tinha se unido à Inglaterra em 1383 através do casamento de Ana (da Boêmia) com o rei Ricardo III. Assim, estudantes de ambos os países tinham trânsito livre entre Praga e Oxford. O maior reformista da Boêmia, sem dúvida, foi João Huss. Ele, nascido de pais camponeses, na cidade de Husinetz, sul da Boêmia, estudou teologia na Universidade de Praga e lecionou artes antes de ingressar na causa reformista. Durante seu tempo de estudante, entrou em contato com os escritos filosóficos de Wycliff, mas somente após se tornar reitor e pregador da Capela de Belém é que leu seus escritos religiosos, adotando imediatamente a mesma visão a respeito do líder máximo da Igreja ser Jesus. E foi justamente na Capela de Belém que Huss pôde pregar ao povo em sua própria língua e criticar os abusos papais: nas paredes da Capela, havia pinturas que contrastavam todo o luxo ostentado pelo papa e a humildade demonstrada por Cristo. Logo os sermões de Huss ganharam o apoio do povo, provocando reações favoráveis e contrárias às suas idéias. Huss foi excomungado pelo arcebispo de Praga, Zbynek, após este insistentemente reclamar junto ao papa sobre a conduta do reformista.
9 Em 1411, o papa de Roma, João XXIII, iniciou uma cruzada contra Ladislau, rei de Nápoles, e para financiar seu empreendimento, começou a vender indulgências (perdão dos pecados). Diante dessa situação, Huss endureceu ainda mais seu discurso contra o papado, o que lhe custou o apoio do rei Wenceslas, deixando Praga sob interdito papal. Apesar de Huss não ter sofrido nada, exilando-se no sul da Boêmia, três de seus seguidores foram presos e decapitados. Nesse período de exílio, Huss escreveu sua obra mais importante: Sobre a Igreja. Por sua atitude, foi citado pelo papa para comparecer perante o tribunal do Vaticano, mas não deu importância a tal. Posteriormente, foi convocado para o concílio de Constance. A este ele compareceu tendo um salvo-conduto do imperador alemão Sigismundo, que o permitira viajar tranquilamente, acreditando que poderia apresentar e defender suas idéias perante as autoridades, porém logo percebeu tratar-se da Inquisição. Assim que chegou, foi preso, pois o concílio publicou um decreto afirmando que não se devia guardar palavra com hereges. O imperador foi até Constance defender Huss, mas foi persuadido pelos padres a deixá-lo preso. Se a Inquisição tivesse testemunhas suficientes para “provar” a culpa do acusado, este poderia confessar e renunciar a seus erros ou seria queimado. Caso confessasse, a pena seria a prisão perpétua. Como se recusava a negar suas doutrinas, foi preso e condenado, sem direito a um advogado. Enquanto esteve preso, ficou em condições subumanas, a fim de não ter forças para lutar contra sua condenação. Entretanto, apesar de todo o sofrimento e privações pelas quais passou, suas cartas revelam que nunca abandonou a fé. Ele orava: “Santíssimo Jesus, ata-me, fraco como sou, a ti, porque se o Senhor não nos ata não conseguimos segui-lo. Fortaleça meu espírito, porque ele o deseja. Se a carne é fraca, que a tua graça nos preceda. Venha, Senhor, e aja, pois sem ti não podemos ir, por tua causa, para a morte cruel. Dê-me um coração destemido, fé reta, esperança sólida, amor perfeito, pois por tua causa entregarei minha vida com paciência e contentamento. Amém”. Em 06 de julho de 1415, João Huss foi levado ao suplício pela morte na fogueira. Não mudou suas palavras mesmo diante da morte. Os seguidores de Huss continuaram pregando sua doutrina. Na Boêmia, formaram-se duas alas: uma moderada (os utraquists) e outra militantes (os taborites).
10 Estes últimos fundaram a Unidade da Fraternidade que, até Lutero, foi uma raiz em solo seco, lutando contra o poder papal.
2. 3. Outros nomes
Jerônimo de Praga, amigo de Huss e seu companheiro de trabalho defendeu suas doutrinas e por isso foi preso e torturado. Chegou a negar o que havia dito, mas se arrependeu e voltou atrás. Assim, foi condenado à fogueira, e em maio de 1416 seguiu para o martírio com o rosto feliz e cantando hinos de louvor a Deus, o que impressionou até os historiadores católico-romanos da época. Jerônimo de Savonarola foi um monge dominicano extremamente fiel em suas convicções, sendo por isso admirado pelos outros do monastério. Fez duras críticas ao papa e como consequência foi preso, torturado e queimado no ano de 1499. João de Wessália foi doutor de teologia, em Erfurt. Em sua velhice foi torturado por defender que a salvação se obtinha pela graça, e que as peregrinações, os jejuns, a extrema unção e etc., de nada se aproveitavam. A Inquisição conseguiu que ele se retratasse de algumas de suas posições, mas ainda o conservaram na prisão mais alguns meses, onde faleceu em 1479. João Wesselus é considerado o maior teólogo de sua época. Nunca, porém, se uniu à Igreja ou qualquer outro corpo eclesiástico. Era um homem inteligente e ávido por conhecimento. Suas doutrinas, mais tarde, foram elogiadas e reconhecidas por Lutero como sendo iguais às suas. Apesar de manifestar-se contra Roma, não sofreu perseguição, morrendo aos setenta anos, em 1489.
3. A REFORMA PROTESTANTE
3. 1. A Reforma na Alemanha
Quando se fala sobre a Reforma na Alemanha, o nome mais destacado, sem dúvida, é o de Lutero. Ele foi um ávido defensor da pura verdade bíblica. Martinho Lutero nasceu em 10 de novembro de 1483, em Eisleben, na província de Mansfeld, filho de um mineiro saxão. Tinha a convicção de que se tornaria advogado até que, certo dia, em 1505, viu seu amigo sendo atingido por um raio durante uma
11 tempestade e prometeu à padroeira católica dos mineiros, Santa Ana, que se o livrasse, ele se tornaria monge. Apesar da relutância de seus pais, Lutero manteve a promessa e foi para o monastério se destacando pelas penitências que impunha a si mesmo, forçando seu corpo a enfrentar jejuns de três dias, a dormir sem cobertor durante invernos rigorosos, entre outros. Fazia isso por entender sua condição de pecador, buscando o amor de Deus através das Escrituras. Foi nomeado para a Universidade de Wittenberg, para a cadeira de estudos bíblicos. Estudando a Bíblia, compreendeu “a ligação entre a justiça de Deus e a declaração de que ‘o justo viverá da fé’. (...) A justiça de Deus é a justiça por meio da qual a graça e a misericórdia de Deus nos justificam através da fé (...)”. Pôde, então, entender a salvação pela fé no mérito do sacrifício de Jesus. Na Universidade de Wittenberg, Lutero conheceu Melanchton, que tinha recebido convite para lecionar grego na Universidade de Wittenberg. Logo se tornaram grandes amigos, principalmente, nos debates teológicos em que defendiam, entre outras coisas, a supremacia das Escrituras sobre as decisões do papa. Philipp Schwarzerd, o Melanchton, nasceu em 1497, em Bretten, Alemanha; e, após o falecimento do pai, foi morar com seu tio, Johann Reuchlin, humanista e conhecedor do hebraico e da Cabala, que exerceu influência decisiva sobre seu futuro. Estudou na escola latina em Pforzheim; mais tarde em Tubingin, destacando-se no estudo dos clássicos gregos. Por essa razão, teve seu nome helenizado para Melanchton (terra negra). Estudioso, formou-se Bacharel em Artes pela Universidade de Tubingin, tornando-se erudito em grego, latim e hebraico. Em contato com Lutero e a nascente Reforma, Melanchton interessa-se em aprofundar seus conhecimentos teológicos ao mesmo tempo em que estudava com mais afinco a Bíblia. Uniu, assim, erudição e fé. Casou-se com Catarina Knapp, filha do prefeito de Wittenberg, tendo uma vida financeiramente confortável. Teve 4 filhos: Ana, Filipe, George e Madalena. Esta, posteriormente, veio a casar-se com Gaspar Peucer, um dos líderes da Reforma, que chegou a ser preso por 12 anos por defender os argumentos de Melanchton. Por causa de seus novos preceitos tem um rompimento em sua relação com Reuchlin.
12 Fundou escolas preparatórias cujos princípios embasavam-se na piedade erudita e na idéia de que o homem desenvolva suas habilidades e aptidões a fim de colocá-las a serviço da fé e de sua espiritualidade. Também foi responsável por estabelecer um sistema organizacional para as universidades. Era um ávido pesquisador amando a verdade a tal ponto de desprezar a aprovação dos homens. Por isso, não se defendia quando atacado. Nessa época, o papa Leão X, querendo terminar a construção as obras do templo de São Pedro, em Roma, permitiu a venda de indulgências por seu enviado, João Tetzel, através de bulas papais que, diziam, tinham a virtude de conceder perdão a todos os pecados, não somente aos que as possuíam, mas também aos seus parentes e amigos mortos. Lutero, inspirado por vários motivos, mas principalmente pela venda das indulgências, afixou em 31 de outubro de 1517 na porta da Igreja de Wittenberg, suas teses acadêmicas, intituladas “Sobre o Poder das Indulgências” (ver anexo). Isto provocou a reação da Igreja, sendo, primeiramente denunciado por João Eck, que muito contribuiu para sua exclusão. Em 1518, após debate com Eck, Lutero declarou sua segunda convicção: de que as Escrituras e não papas ou concílios fornecem as orientações sobre a fé e o comportamento cristão. Eck percebeu a semelhança entre Lutero e Huss. Lutero escreveu uma série de folhetos entre eles: Discurso à Nobreza Germânica – convidava os governantes a corrigirem os abusos dentro da igreja, privar bispos e abades de seu poder lucrativo e mundano, e criar a efetiva igreja nacional alemã. O Cativeiro Babilônico da Igreja – deixava claro como a justificação pela fé remodelara sua doutrina da igreja. Afirmava que o sistema de sacramentos romano mantinha os cristãos “cativos”. Atacava o papado por privar o indivíduo cristão de se aproximar de Deus diretamente pela fé, sem a mediação de sacerdotes, e estabelecia sua própria visão dos sacramentos. Aceitava o batismo e a ceia, acreditando que deviam ser ministrados pela comunidade de cristãos, e não exclusivamente por sacerdotes. A Liberdade do Homem Cristão – expôs em tom firme sua visão do comportamento e da salvação dos cristãos. Não desencorajava boas obras, mas afirmava que a liberdade espiritual interior que vem da certeza encontrada na fé leva à realização de boas obras.
13 Em 1520, o papa Leão X publicou a bula que condenava Lutero e lhe dava 60 dias para abandonar suas heresias. Entretanto, Lutero queimou os escritos e a bula que o papa lhe enviou assim como a Igreja fez com os seus. Em 1521 Lutero foi convocado para comparecer perante a Dieta do Concílio Supremo do Reno. Foi salvo de ser preso e morto pelo duque Frederico, príncipe da Saxônia, cujos domínios incluíam Wittenberg. O duque deu-lhe asilo em seu castelo em Wartburg, onde Lutero permaneceu um ano. Nesse período, ele traduziu o Novo Testamento para o alemão. Enquanto isso, a semente de Lutero e de seus predecessores se espalhava na Alemanha: sacerdotes e conselhos locais abandonavam as missas e removiam estátuas das igrejas. O movimento contava, ainda, com o apoio de príncipes, duques e eleitores que ignoraram a condenação de Lutero. Em 1522, Lutero voltou a Wittenberg para iniciar sua reforma: aboliu o ofício de bispo, por não encontrar base bíblica para tal; pregou o fim do celibato clerical, e assim a maioria dos monges, freiras e ministros se casaram. Lutero casou-se com Katherine von Bora. Também revisou a liturgia fazendo com que os leigos recebessem o pão e o vinho e mudou a ênfase nos cultos da celebração da missa sacrificial para a pregação e o ensino da Palavra de Deus. Porém, em 1524, camponeses influenciados pelo conceito reformador de liberdade, se revoltaram contra seus senhores. De início, Lutero reconheceu a validade de suas reclamações, mas, quando eles passaram a agir com violência, ele mudou sua posição, passando a criticá-los e convocou os príncipes a reprimir o movimento. Em 1525, os príncipes e nobres reprimiram a revolta, o que custou a vida de 100 mil camponeses. Os que sobreviveram, voltaram ao catolicismo ou aderiram a formas mais radicais da Reforma, considerando Lutero um falso profeta. Em 1530, Lutero começou a perder a liderança do movimento reformador. Uma conferência de líderes reformadores teve lugar em Augsburg para estabelecer uma declaração de fé comum, tendo como redator e apresentador Melanchton. Esta declaração ficou conhecida como Confissão de Augsburg6. 6
Um dos mais importantes documentos da Reforma e base das confissões luteranas até hoje, redigido e compilado em 1530. Contém 28 artigos. Destes, os primeiros 21 apresentam a doutrina luterana e sintetizam os ensinamentos de Lutero tais como a natureza de Deus, questões comuns aos cristãos tradicionais (p.ex. os sacramentos, a transubstanciação, as boas obras, os direitos eclesiásticos, etc.). Os últimos 7 condenam os abusos católicos: distribuição de um elemento da ceia, celibato obrigatório para o clero, pagamento para celebração de missas, confissão compulsória, ausência de disciplina nos mosteiros e abuso de autoridade.
14 Depois de Augsburg, Lutero continuou a pregar e ensinar a Bíblia em Wittenberg. Nos últimos anos de vida, algumas atitudes de Lutero colocaram em dúvida a integridade de suas convicções diante das pressões dos príncipes. Entretanto, isso não apaga o brilho de sua vida dedicada à defesa da verdadeira fé cristã. Os últimos dias de Lutero foram difíceis devido à fragilidade de sua saúde. Tinha, frequentemente, acessos de melancolia profunda. Em 18 de fevereiro de 1546, em Eisleben, teve um ataque cardíaco e faleceu. As consequências da obra de Lutero, mais tarde, resultaram na Paz de Augsburg, em 1555, que permitia a cada príncipe decidir a religião de seus súditos, abandonava todas as seitas protestantes que não o luteranismo, e ordenava a todos os bispos católicos a abrir mão de suas propriedades caso se tornassem luteranos. O luteranismo tornou-se a religião do Estado em grande parte do Império Germânico, espalhando-se da Alemanha para a Escandinávia. Como efeito negativo, as questões religiosas se tornaram propriedade dos príncipes e o indivíduo tinha de crer naquilo que seu príncipe acreditasse, fosse ele luterano ou católico.
3. 2. A Reforma na Suíça
A Reforma na Suíça iniciou-se independentemente da Reforma Alemã, apesar de serem simultâneas. Ulrich Zwínglio, em 1517, atacou a “remissão de pecados” que muitos buscavam através de peregrinações a um altar da Virgem de Einsieldn. Em 1522, Zwínglio rompeu definitivamente com Roma, iniciando a Reforma em Zurique, que acabou se tornando mais radical que na Alemanha. Zwínglio tornou-se o sacerdote do povo na Grande Catedral de Zurique, lançando a Reforma pela pregação de sermões bíblicos no púlpito, influenciado, fortemente, por Erasmo de Roterdam. Ao contrário de Lutero, Zwínglio seguiu a Bíblia mais rigidamente rejeitando tudo o que a Bíblia não prescrevia. Abandonou, assim, símbolos tradicionais da igreja católica: velas, estátuas, música e pinturas. Grebel e Manz, que inicialmente apoiaram a reforma, queriam a separação entre a Igreja e o Estado, porém Zwínglio precisava do apoio das autoridades da Igreja.
15 Em 17 de janeiro de 1525, teve lugar um debate entre Zwínglio e Grebel / Manz a respeito do batismo infantil. Grebel defendia que o batismo de crentes deveria ser feito nos moldes do Novo Testamento – com pessoas regeneradas que tivessem consciência do que estavam fazendo. O Concílio de Zurique declarou Zwínglio vencedor e Grebel, Manz e seus seguidores se retiraram para Zollikon, aldeia próxima a Zurique. Lá, em janeiro, fundaram a congregação anabatista, a primeira igreja livre do Estado dos tempos modernos. Entretanto, os anabatistas foram acuados pelas autoridades eclesiásticas e civis, sendo Zwínglio um dos que lideravam a perseguição. Muitos sofreram o martírio por afogamento, pela espada ou pela fogueira. Estima-se que, durante a época da Reforma, entre quatro e cinco mil anabatistas foram executados. E tudo isso por defenderem o direito de cada um às suas próprias crenças. Zwínglio morreu em 1531, numa guerra civil entre cantões católico-romanos e protestantes.
3. 3. A Reforma na Inglaterra
O movimento de Reforma na Inglaterra iniciou-se no reinado de Henrique VII, tendo motivações muito mais políticas do que religiosas. Naquela época, o principal Estado aliado do papa era a Espanha, que no século XVI se tornou uma grande potência graças ao enorme império que incluía a América, de onde vinham o ouro e a prata. Henrique VIII queria reforçar o poder de seu Estado nacional, mas para isso precisava submeter sua rival, a Espanha. Entretanto, para isso era necessário divorciarse de Catarina de Aragão, tia de Carlos V, rei da Espanha. Pediu ao papa Clemente VII a anulação de seu casamento que já durava 18 anos alegando que sua esposa não lhe dava herdeiro ao trono, um filho. Diante da recusa do papa, Henrique VIII reagiu separando-se de Catarina, casando-se com Ana Bolena e assumindo o controle de todos os bens da Igreja Católica na Inglaterra. Pelo Ato de Supremacia, de 1534, criou a Igreja Anglicana, que conservava muitos dogmas do catolicismo, mas se subordinava totalmente ao Estado, passando a ser a igreja oficial do povo inglês.
16 Entretanto, a Inglaterra recebeu também influências do calvinismo que ganhou adeptos entre camponeses, artesãos e membros da pequena nobreza. Um dos líderes dessa reforma popular foi João Tyndale, que traduziu o Novo Testamento na língua inglesa, a primeira depois da invenção da imprensa. Surgem, na Inglaterra, grupos como os puritanos e os separatistas que originaram algumas das atuais denominações evangélicas.
3. 4. João Calvino e a Reforma Calvinista
João Calvino nasceu em 10 de julho de 1509, em Noyon, a nordeste de Paris. Foi educado na Universidade de Paris, dominada pelo pensamento escolástico. Transferiuse mais tarde para a Universidade de Orleans, de tendências mais humanistas, onde estudou Direito Civil. Aos 25 anos passou por uma experiência de conversão, provavelmente por influência de seu primo Robert Olivétan, que o levou a tornar-se cada vez mais ligado aos movimentos de reforma em Paris, obrigando-o, depois, a se exilar na Basiléia. Em 1536, a caminho de Estrasburgo, encontrou uma estrada obstruída, o que o fez passar a noite em Genebra. Como sua fama já o precedia, Farel o encontrou e o convenceu a permanecer lá para implantarem a Reforma Protestante naquela cidade. Em 1538, porém, foi expulso de Genebra e viajou para Estrasburgo, onde trabalhou como pastor e professor. Casou-se com uma viúva anabatista chamada Idelette de Bure. Em 1541, foi convidado a voltar a Genebra. Calvino percebeu a necessidade de produzir uma obra que introduzisse, de forma clara, os fundamentos da teologia evangélica, justificando-os com base nas Escrituras e defendendo-os da crítica católica. Desse modo, ele publicou em 1536 uma pequena obra, com seis capítulos intitulada As Institutas da Religião Cristã. Nos 25 anos seguintes, ele mexeu na obra adicionando-lhe capítulos e reorganizando o material. À época de sua última edição, a obra tinha oitenta capítulos e subdividia-se em quatro livros, assim organizados: 1. O conhecimento de Deus, o criador; 2. O conhecimento de Deus, o redentor; 3. O modo de participação na graça de Jesus Cristo; 4. Os meios e instrumentos externos que Deus usa para nos levar a Jesus Cristo.
17 A origem da Reforma Calvinista, responsável pela formação das igrejas reformadas (como, por exemplo, a igreja presbiteriana), encontra-se em fatos que ocorreram na Confederação Helvética. A igreja reformada tem sua origem ligada a várias tentativas de reforma voltadas para a ética e o culto da igreja fundamentados em padrões mais bíblicos. Considera-se que o processo de consolidação da igreja reformada teve como ponto inicial a estabilização da reforma em Zurique, sob a liderança de Heinrich Bullinger, sucessor de Zwínglio. Em 27 de maio de 1564, Calvino faleceu.
3. 5. Consequências da Reforma
Depois de todo o movimento reformador nos vários países europeus, a Igreja Católica não poderia ficar inerte. Iniciou-se o movimento de Contra-Reforma. O Concílio de Trento, em 1545, convocado pelo papa Paulo III objetivava investigar os motivos e pôr fim aos abusos que deram causa à Reforma. Esse Concílio era composto de todos os bispos e abades da igreja e durou quase vinte anos, durante o governo de quatro papas, de 1545 a 1563. O resultado desse concílio pode ser considerado como uma reforma conservadora na Igreja Católica Romana. Os esforços seguintes da Igreja para acabar com a Reforma foram as missões católicas, principalmente, ao Novo Mundo, e a continuidade da Inquisição. Um dos mais conhecidos episódios de perseguição ocorreu na França, na matança da noite de São Bartolomeu, em 24 de agosto de 1572, e que se prolongou por várias semanas. Segundo alguns historiadores, morreram de vinte a setenta mil pessoas. Outra consequência da Reforma foi a divisão dos protestantes em diversas denominações. Um quadro-resumo da cronologia das principais denominações pode ser assim representado:
18 Assim, observando brevemente o desenvolvimento da história protestante podese afirmar o mesmo que Tertuliano disse: “quanto mais vida nos ceifas, tanto mais nos multiplicamos; semente é o sangue dos cristãos” 7. Isto deve motivar os cristãos evangélicos de hoje (além da óbvia motivação bíblica) a se posicionarem perante o mundo defendendo com coragem a sua fé, marcando o seu tempo, assim como o fizeram aqueles que, com o próprio sangue, plantaram as sementes que hoje são colhidas.
7
Fonseca, 2003, p. 7.