Disciplinas espirituais 2012

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Disciplinas Espirituais

Jesus crescendo em n贸s por meio das Pr谩ticas Devocionais

Jeferson Carvalho Alvarenga


Introdução Como precisamos de crescimento, de amadurecimento em Jesus Cristo, nosso Salvador e Senhor! É com essa confissão triste e consciente que este texto se inicia, pois o que nos levou a trabalhar o tema das práticas devocionais em nossos encontros de domingo de manhã foi o entendimento claro de que não estamos conseguindo formar discípulos sólidos em Jesus Cristo na igreja atual. Obviamente, podemos citar uma série de razões para a ampla imaturidade e fragilidade espiritual dos cristãos atuais, mas o fato é que o foco tanto do problema quanto da solução está diante de nós: a prática de disciplinas espirituais. Nossa agenda é cheia, nosso tempo é escasso e quando temos tempo não temos vontade, disposição ou mesmo conhecimento para fazer nosso tempo devocional fluir e crescer. Queremos enfatizar nesse texto a prioridade que as disciplinas espirituais devem ter em nossa agenda e disponibilizar a você ferramentas que te permitam dar um “up” no seu relacionamento com Jesus Cristo. Como eu gosto sempre de dizer: não é mágica, não é pipoca de microondas, não é um daqueles aparelhos que te dá um abdômen trincado com 3 minutos de exercício a cada semestre. Não existem fogos de artifício nem sinos tocando, apenas o compromisso de sentar-se com a Escritura Sagrada todos os dias, ler o texto bíblico, abrir o coração ao Espírito Santo de Deus e responder em oração. Todo dia, naquele mesmo horário, com chuva ou sol, todo dia, com provas ou não, todo dia... Não há efeitos especiais no discipulado, mas o fato é que dia a dia Jesus vai crescer em você como uma planta que lança suas raízes profundas no solo e depois começa a se imponentemente sobre a campina. Deus quer ver Jesus crescer em você, o Espírito de Deus anseia por esse aprofundamento e o próprio Jesus te chama para ser como ele é. Todo discípulo é chamado para ser como seu mestre, e no nosso caso mais ainda pois nosso mestre habita nosso coração pelo seu Espírito Santo. Desejamos do mais profundo do nosso coração que Jesus possa crescer em você, meu irmão. Que esse texto tão simples e despretencioso possa te ajudar a dar passos na direção desse crescimento, em nome de Jesus, em quem fomos salvos na cruz, em quem estamos sendo transformados enquanto seguimos nos discipulado.

Caminhar na graça Qual é o lugar das disciplinas espirituais na vida de homens e mulheres salvos pela graça como nós? Certamente, as disciplinas espirituais não afrontam em momento algum a doutrina da salvação pela graça de Deus em Cristo Jesus, mas depende absolutamente dela. O Apóstolo Paulo deixa de maneira perfeitamente clara em sua epístola aos Efésios, capítulo 4, versos 7 a 16, que a graça nos foi concedida em Cristo. Mas quando Jesus foi exaltado à destra de Deus, ele nos deu com a salvação uma série de dons e recursos espirituais para que pudéssemos crescer nele mesmo (v.12). A salvação pela graça é a base do crescimento espiritual. Só crescem os que nasceram, e só podemos nascer espiritualmente pela graça do Pai. Contudo, uma vez nascidos devemos nos esforçar para continuar crescendo em Jesus para ser cada vez mais parecido com o Mestre (v.13 e 14). Mas como nos conectarmos com todos esses recursos e finalmente crescer? Escrevendo a seu discípulo Timóteo, Paulo exorta que seu filho na fé se entregue ao exercício da piedade (1Tm 4.7b), sempre recorrendo a disciplinas de meditação nas Escrituras (1Tm 4.13-16), oração (1Tm 2.1), e outras tantas (1Tm 6.11). As disciplinas não são opostas à graça de Deus nem devem ser motivo de orgulho espiritual, mas devemos sempre reconhecer que as disciplinas repousam sobre a graça de Deus, descansam em seu favor, focam sua misericórdia, exaltam suas dádivas. Praticar as disciplinas espirituais é caminhar na graça na qual fomos salvos.

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Mas afinal, do que se trata? “Passo pela vida como um transeunte a caminho da eternidade, feito à imagem de Deus mas com essa imagem aviltada, necessitando de que se lhe ensine a meditar, adorar, pensar”1. As disciplinas são práticas que inserimos em nossa vida, hábitos que possam nos voltar para Jesus e para a consciência da nova vida que o Espírito de Deus está gerando em nós. É separar tempo, lugar e coração para estar com Jesus, de diversas maneiras e em diversos modos, cada qual com sua ênfase e método. Devemos compreender que devido à flexibilidade e pessoalidade das disciplinas, não podemos formular uma lista definitiva delas, mas um ensaio sobre as mais comumente usadas. Com relação às categorias de classificação das disciplinas, podemos observar duas opções. A divisão de Richar Foster, que classificas as disciplinas em interiores, exteriores e associadas2. As disciplinas interiores teriam o objetivo de nos levar a uma atitude mais profunda, sem necessariamente qualquer mudança externa, como é o caso da meditação, oração e jejum. As disciplinas exteriores são práticas que nos levariam a atitudes externas visíveis, como solidão e simplicidade. As disciplinas associadas são comunitárias, como confissão, adoração, orientação e celebração. Já Dallas Willard divide as disciplinas em dois tipos, disciplinas de "abstenção" e disciplinas de "engajamento"3, sendo que as disciplinas de abstenção exigem separação, privação e solidão, enquanto as de engajamento exigem uma atitude contrária ao abandono, uma atitude de apego e cultivo. São Disciplinas de abstenção: solitude, silêncio, jejum e frugalidade. São Disciplinas de engajamento: meditação, adoração, celebração, serviço, oração, comunhão, confissão e submissão.

Donald Coggan, Arcebispo de Cantuária, citado por Richard Foster em Celebração da Disciplina, p.4. Richard Foster, Celebração da Disciplina, p.2. 3 Dallas Willard, Espírito das Disciplinas, p.157. 1 2

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A Meditação

Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti Salmos 119.11

O começo Precisamos começar a caminhar na graça através das disciplinas para crescermos em Cristo, mas afinal, por onde começar? Existe um ponto de partida, alguma disciplina que seja a largada dessa fantástica caminhada? Cremos que sim, por que para executarmos todas as demais disciplinas, precisamos antes de tudo conhecê-las, e para isso devemos aprender com as receitas que o próprio Criador nos deixou para crescermos na piedade, ou seja, o começo é a Escritura, pois nela o Pai nos ensina as demais disciplinas. Mas o que é meditar nas Escrituras? Como se faz? Quais os benefícios?

O marco zero A Bíblia é a nossa “única regra de fé e prática4”, o que quer dizer que tudo que cremos e fazemos deve ser regulado e orientado pelas Escrituras. Sendo assim, é ela o começo de tudo e sem a orientação das Escrituras não poderemos desempenhar as demais disciplinas satisfatoriamente, visto que a Palavras é que nos ensinam a orar, jejuar, servir, confessar e etc. As Escrituras são o nosso marco zero, nosso ponto de partida e mais do que isso: nosso ponto de referência, para que determinada disciplina não seja distorcida e assim cause mais dano do que benefício. Exemplificando, as Escrituras nos ensinam a jejuar, mas nos ensinam também que nosso jejum não deve ser motivo de orgulho espiritual, ou ainda não devemos usar o jejum como forma de chantagear o Pai. A Bíblia é nosso ponto de início e nosso ponto de referência. E o que a Bíblia nos diz sobre meditação? As Escrituras nos dizem que devemos reaprender a viver quando somos redimidos em Jesus (Ef 2.1-10), visto que fomos salvos para andarmos em boas obras e não para continuarmos a viver a mesma vida de antes. Mas como reaprender a viver? A Bíblia é o nosso manual para a nova vida. Ela nos mostra a vida, o ser humano e tudo mais a partir da perspectiva do próprio Criador. Por isso, os autores bíblicos enfocam tão encarecidamente que devemos moldar nossa vida não mais pelos padrões do sistema, da natureza humana rebelde e do príncipe deste mundo, mas sim pela vontade do Pai expressa na Palavra. O salmo 1 enfatiza tão perceptivelmente isso, nos mostrando que feliz é o homem que não vive segundo os padrões do sistema, imitando o estilo de vida de pessoas que não nasceram de novo em Cristo, mas que vive segundo a vontade Deus, pois medita nas Escrituras (Salmo 1.1 e 2).

Meditação e leitura Meditar nas Escrituras é ler as Escrituras? Segundo Dallas Willard, “Nós não só lemos, ouvimos e inquirimos, mas também meditamos naquilo que está diante de nossos olhos. Isso significa que nos retiramos em silêncio para, em atitude de oração e com intensidade, nos concentrarmos no que estamos lendo, desta forma, o significado do que lemos pode emergir e nos formar enquanto Deus trabalha no íntimo do nosso coração, mente e alma5”. A Meditação nas Escrituras deve ser norteada por um desejo profundo de ouvir o Senhor através da ação do Espírito Santo, um anelo por descobrir a vontade do Pai a fim de podermos obedecer. Logo, Meditação é mais do leitura, mas é colocar sua vida em contato com a vontade de Deus, ciente de que as implicações serão transformação de caráter e obediência prática. Meditar é mais que folhear a Bíblia procurando textos bonitos e inspirativos, é colocar-se diante do Pai para ouvir sua direção. Sem 4 5

Confissão de Fé de Westminster, Capítulo 1 – Da Escritura Sagrada, Artigo 2. Dallas Willard, O Espírito das Disciplinas, p. 177.

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disposição para relacionar-se com o Pai e para se submeter ao senhorio de Cristo, a Meditação torna-se apenas um momento literário, hora de leitura e não de transformação profunda no poder do Espírito.

Todo ouvidos Eugene Peterson, em seu livro “Um Pastor Segundo o Coração de Deus” nos diz que há uma grande diferença em lermos as Escrituras com nossos olhos e ouvi-la com nossos ouvidos. Ele diz: “O interesse dos cristãos nas Escrituras tem sido sempre o de ouvir Deus falar, e não analisar notas morais. A prática comum é desenvolver uma disposição para ouvir – o ouvido absorto em vez do olho distante – ansiando por tornar-se ouvinte apaixonado da Palavra em lugar de um frio leitor de página”6. Para meditar na Palavra é necessário transformar olhos em ouvidos e ter uma completa disposição de ouvir, mas afinal quais os métodos para voltarmos todos os nossos ouvidos para as Escrituras?

Logística do silêncio Há uma logística que deve ser preparada para termos um tempo qualitativo com a Palavra. Estamos falando de três coisas: tempo, lugar e método. O tempo envolve desde a hora do dia em que você vai separar para meditar até mesmo o tempo que você tem disponível para fazer isso. A hora de meditação deve ser uma hora de tranqüilidade, onde você possa estar sozinho e relaxado tanto quanto possível. Geralmente a melhor hora é na manhã, quando o coração ainda não está agitado com a correria do dia. Contudo, outra hora tranqüila do dia pode ser encontrada, como o período do entardecer, depois do café e de um banho relaxante. Se você realmente prioriza seu momento com a Palavra, vai encontrar um momento para estar com o Pai através dela. Se você está esperando ter uma vaga na sua agenda para meditar, ou improvisa diferentes horários a cada, então muito provavelmente você não terá constância, perseverança e refrigério na meditação. Faça seu momento. Quanto à duração, é melhor ter um momento de meditação qualitativo e breve do que tentar separar uma quantia de tempo que atrapalharia demais sua agenda e se sentir pressionado a terminar logo. Lembrese: é importante que o tempo seja qualitativo e isso não necessariamente envolve investir horas na meditação. O segundo ponto a se decidir é o lugar. O lugar em que você vai meditar deve propiciar para você solitude, compenetração, certa dose de privacidade. Evite lugares onde há muito trânsito de pessoas e lugares onde você possa ser continuamente interrompido ou receber muitos estímulos e não conseguir se concentrar. Dependendo do método que você utiliza, poderá precisar de uma superfície para escrever e material, então prepare esses itens com antecedência. Finalmente, há a necessidade de se escolher um método de meditação. Como fazer? Meditar e orar? Meditar enquanto oro? Escrever ou não a meditação? Usar um devocionário ou apenas as Escrituras?

Galgando os níveis Pessoalmente, creio que a escolha do método deve obedecer um critério muito óbvio: o nível de maturidade daquele que vai meditar. Se você está em um nível iniciante, seria bom que a princípio pudesse obter um devocionário que pudesse trazer um texto bíblico já exposto para você. Estes devocionários trazem grande enriquecimento do conhecimento do texto e sugestões de orações. Se você já caminhou com devocionários e quer um contato mais corpo a corpo com as Escrituras, pode experimentar ler grandes porções de textos e grifar passagens que te tocarem mais e assim aumentar seu conhecimento geral dos livros da Bíblia. Se você já leu a Bíblia algumas vezes, você pode passar a meditar em livros, dividindo-os em passagens e fazer anotações escritas de sua meditação. Em que nível você está agora? Vamos ver alguns detalhes mais de perto no próximo encontro.

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Eugene Peterson. O Pastor Segundo o Coração de Deus. Rio de Janeiro: Textus, 2000.

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O como Nada é mais importante para a vida de meditação nas Escrituras do que a motivação de ouvir o Pai, de conhecer a vontade do Criador revelada nas Escrituras. Contudo, ainda existe a necessidade de definirmos o método a ser utilizado e algumas dicas técnicas que podem ajudar na leitura das Escrituras no momento devocional. Embora o método não substitua a motivação adequada, certamente a técnica tem seu lugar na vida de meditação.

Técnicas e métodos Vamos dar uma olhada em quatro modelos de meditação nas Escrituras mais utilizados que podem ser de grande utilidade7. Dispus os métodos em uma ordem que julgo crescente, não em valor, mas em nível de elaboração e profundidade. 1- Devocionários: Através desses guias de meditação nas Escrituras podemos iniciar a prática de um tempo devocional. Não necessita grande familiaridade com as Escrituras nem grande bagagem para interpretação, além de ser uma ótima escola de aprendizado bíblico. Ideal para cristãos que estão buscando maior conhecimento e maturidade. 2- Plano de leitura bíblica global: Através de planos de leitura, ler a Bíblia toda em 1 ano. Este método já exige um contato mais corpo a corpo com a Bíblia e vai acabar levando o leitor a uma pesquisa maior para compreender a seqüencia histórica, o contexto dos livros e etc. Uma Bíblia de estudos pode ser muito útil. O ritmo é de em média 5 capítulos por dia. 3- Plano de leitura de livros: Esse método é mais focado na leitura de porções menores das Escrituras, livros ou conjuntos de pequenos livros. Você pode ler textos menores e se concentrar mais em um aspecto do texto que te chame a atenção, aumentando assim o foco sobre um número menor de conceitos. 4- Meditação escrita sobre perícopes: Uma perícope é uma pequena porção textual que faz parte da grande narrativa, mas conserva dentro de si características literárias que fazem dela uma pequena história dentro da história. Ela tem começo, meio e fim. Ao meditar de forma escrita, você vai lidar uma perícope em três momentos básicos: I- Explicação: Depois de ler e compreender o texto, você formula uma breve explicação do mesmo. II- Aplicação: Em espírito de oração, você registra o que o Senhor falou ao seu coração, o que aquele texto diz a você, como ele se aplica à sua vida naquele exato momento. III- Oração: Você escreve uma resposta, uma oração ao que o Senhor comunicou a você por meio da ação do Espírito através das Escrituras. Isso já será o gancho para seu tempo de oração.

Dicas Algumas técnicas muito simples podem ajudar você a se aproximar do texto e explorá-lo com mais profundidade. Primeiro, faça perguntas ao texto. Deixe de lado sua familiaridade e leia com uma atitude curiosa, desejoso de saber e dialogar. Pergunte onde, como, com quem, por e para quê. As perguntas vão ajudá-lo a se aprofundar mais no texto. Se o texto não tem a pretensão de responder à sua pergunta, o que ocorre bastante, não o force a responder, mas perceba então que perguntas seriam mais adequadas. Segundo, preste atenção ao gênero literário, ou seja, se é um poema, uma narrativa, uma parábola, uma profecia, etc. Quando você entender o gênero pode lidar com o texto de forma mais correta, visto que cada gênero tem características muito próprias e que por si só já pedem um tipo específico de leitura. E finalmente, visualize. Não se prenda às palavras, mas abra sua imaginação para ver o que o narrador quer que você veja. Deixe as palavras entrarem em você e te levarem a sentir a dor, ver as expressões, observar os detalhes. Use sua imaginação para ver Jesus andando, falando e amando.

Lectio Divina A meditação é uma disciplina que pode ser desempenhada dentro de vários métodos. Ao longo da história uma forma de meditação mais contemplativa foi desenvolvida a partir de experiências monásticas, 7

Para uma lista mais completa de métodos, sugiro o livro “12 Maneiras de Estudar a Bíblia Sozinho”, de Riack Warren.

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onde monges se dedicavam a meditar na Escritura em um profundo espírito de oração. Esse método é conhecido como Lectio Divina, uma expressão latina que quer dizer “Leitura Divina”, ou “Leitura Espiritual”8. A Lectio Divina está presente na vida da comunidade cristã desde o ano 220 d.C., com os Pais da Igreja, mas ganhou princípios mais claros a partir dos escritos de Guigo Cartujo, um monge que viveu por volta do século XII. A Lectio Divina a princípio foi praticada individualmente mas ganhou dimensões comunitárias na experiência dos monges ao longo da Idade Média. A Lectio não é um método de estudo das Escrituras, visto que não é esse o propósito central da disciplina. São Gregório Magno, no séc. VI, afirmou ser a Lectio Divina um “repouso em Deus”9, o deleite de uma experiência de ir ao Pai através da sua Palavra, visando descansar a alma no Senhor. Ela começa nas Escrituras, mas o fim é a presença do Pai. Existem duas grandes tradições com relação à Lectio Divina10. A tradição Monástica, ligada aos Pais do deserto, que possui uma estrutura bem simples e bastante espontânea, e a tradição Escolástica, desenvolvida já no final da Idade Média, e que possui uma estrutura mais racional e preocupada com a hierarquia. Vamos nos ater à tradição Monástica, na qual a Lectio Divina possui basicamente 4 momentos11: 1Lectio: o primeiro passo é a leitura do texto. A leitura deve ser feita com calma, atenção, humildade e total dependência do Espírito Santo, que vai guiá-lo na Escritura. Tome um pequeno trecho da Sagrada Escritura, leia o texto quantas vezes e forem necessárias. Procure identificar as coisas importantes desta perícope: o ambiente, os personagens, os diálogos, as imagens usadas, as ações. É importante identificar tudo com calma e atenção, como se estivesse vendo a cena. A leitura é o estudo assíduo das Escrituras, feito com aplicação de espírito. 2Meditatio: começa, então, a diligente meditação. Ela não se detém no exterior, mas sonda profundamente o texto, considera atentamente sobre o que esta Palavra está iluminando em minha vida e a realidade em que vivo hoje. Quais são as circunstâncias que ela me questiona e me incentiva? Depois de ter refletido sobre esses pontos e outros semelhantes no que toca à própria vida, a meditação começa a pensar no prêmio, nas promessas de relacionamento de Jesus para mim. 3Oratio: Quanto à Oratio, toda boa meditação desemboca naturalmente na oração. É o momento de responder a Deus após havê-lo escutado. Esta oração é um momento muito pessoal que diz respeito apenas à pessoa e Deus. Não se preocupe em preparar palavras, fale o que vai ao coração depois da meditação: se for louvor, louve; se for pedido de perdão, peça perdão; se for necessidade de maior clareza, peça a luz divina; se for cansaço e aridez, peça os dons da fé e esperança. Enfim, os momentos anteriores, se feitos com atenção e vontade, determinarão esta oração da qual nasce o compromisso de estar com Deus e fazer a sua vontade. 4Contemplatio: Quanto ao último passo, a Contemplatio, não diz respeito a qualquer coisa que possamos fazer, mas é a esperar pela ação do Pai. É um momento no qual se permanece em silêncio diante de Deus. O Senhor poderá conduzi-lo à contemplação, ou dar-lhe apenas a tranquilidade de uns momentos de paz e silêncio, ou comunicar-lhe seu perdão e graça, ou simplesmente dar a você a oportunidade de estar diante de sua presença. Não se esqueça da necessidade de visualizar uma Actio, ou seja, uma ação prática que possa levar esse momento para dentro da vida comum, a fim de não tornar o momento de Lectio uma mera experiência mística sem compromisso com o discipulado de Cristo. A Lectio também pode ser feita em grupos, onde a leitura do texto pode ser alternada ou com uma pessoa só, seguido de momento onde cada um pode compartilhar o que o Senhor trouxe ao seu coração e finalmente orações. Deve haver o cuidado de não transformar o momento em debate, mas apenas de compartilhamento e mútua edificação.

Muitos autores e correntes também usam a expressão “Leitura Orante”, ou seja, leitura mesclada com oração. Dom Thomas Keating, no artigo “Lectio Divina, Ouvindo a Palavra de Deus nas Escrituras”. 10 Idem. 11 Extraído e adaptado do artigo de Dom Orani João Tempesta, intitulado “Lectio Divina”. 8 9

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A Oração Como suspira a corça pelas correntes das águas, assim, por ti, ó Deus, suspira a minha alma Salmo 42.1

Conversar com o Criador A oração é a disciplina que se segue imediatamente após a meditação. Isso por que as Escrituras e a oração estão entre os principais meios através dos quais Jesus abençoa, fortalece, ensina e conforta seus discípulos, ou seja, eles são meios de graça.12 Mas afinal, o que é a oração? Como orar? Existem formas mais acertadas ou erradas de orar? Vamos lidar primeiro com o conceito de oração. O que é orar? Hallesby diz que a oração é “deixar Jesus entrar em nosso coração” e “abrir a porta, dando a Jesus acesso às nossas necessidades, permitindo que Ele exercite seu poder para supri-las”.13 Eugene Peterson diz que “a oração é uma aventura ousada rumo à linguagem, que coloca nossas palavras juntas com aquelas palavras cortantes, vivas, que penetram e dividem alma e espírito, juntas e medulas e, impiedosamente, expõem cada pensamento e propósito do coração”.14 A oração é essa realidade em que se estabelece comunicação entre Deus e o homem. Gostaria que você pudesse pensar que orar nada mais é do que falar, conversar com o Criador. É simples por que é uma conversa e é extremamente complexa por que é uma conversa com Deus. Como você pode imaginar, uma conversa é um lugar de comunicação comum a duas pessoas, ou seja, duas pessoas falam e ouvem. Assim, o Senhor se dirige a nós por meio de sua Palavra e respondemos em oração. Peterson insiste que nossa palavra não é nunca a primeira, mas sempre a resposta.15 Orar é conversar com o Criador, voltar ao relacionamento que fomos criados para ter, do qual o pecado nos cortou. Orar é estar com o Pai, falando e ouvindo.

Relacionamento e comunicação Costumamos pensar em oração como uma forma de obter benefícios do Criador, mas as Escrituras enfocam algo primeiramente: relacionamento. Não existe relacionamento entre duas pessoas que não se comunicam, e se dizemos que temos um relacionamento com o Pai por meio de Jesus então entendemos que é no momento de oração que esse relacionamento se torna evidente, real, palpável e inegável. Orar é estar com o Criador, é comunicação e relacionamento. Como afirma César, “a prática da oração é a arte de entrar no Santo dos Santos e de se colocar na presença do próprio Deus em espírito, por meio da fé, valendo-se do sacrifício de Cristo, e falar com Deus com toda a liberdade por meio da Palavra audível ou silenciosa”.16 A oração é o ambiente de comunicação em que Deus e o homem se comunicam. Mas como pode o homem pecador se dirigir ao Deus Santo? Como é possível que nós venhamos a ter essa comunicação com o Criador sendo pecadores?

O canal da oração Oramos e costumeiramente, no fim da oração dizemos: “Em nome de Jesus, Amém”. Orar em nome de Jesus não é apenas um costume da igreja, mas é uma prática que traduz a verdade de que não oramos Catecismo menor de Westminster, pergunta 88. O. Hallesby, no livro “Oração”, página 7. 14 Eugene Peterson, no livro “Um pastor segundo o coração de Deus”, página 41. 15 Eugene Peterson, no livro “Um pastor segundo o coração de Deus”, página 43. 16 Élben M. Lenz Cézar, no livro “Prática Devocionais”, página 19. 12 13

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baseados em nossa própria justiça ou em nossos méritos. Oramos ao Pai e ele nos ouve por que Jesus abriu um caminho para nós por meio de sua morte. A oração só é possível por causa de Jesus, que morreu na cruz em nosso lugar e rasgou o véu que se interpunha entre nós e o Pai (Marcos 15.38). A imagem do véu rasgado aponta para os efeitos da obra de Jesus ao rasgar toda a separação que havia entre o Criador e o homem caído por causa do pecado. Por causa de Jesus não somos mais estranhos ou inimigos diante de Deus, mas filhos. Jesus é nosso canal de oração e é por causa dele que podemos nos achegar ao Pai e orar como o próprio Jesus nos ensinou a orar, chamando-o de Pai. Jesus é a base, o ambiente, o por que da oração, assim como de tudo em nós.

Jesus e sua escola de oração Jesus não apenas foi um homem cuja vida estava profundamente imersa na oração como ensinou seus discípulos a orar. O ensino de Jesus não foi uma mera tabela do que dizer no momento de oração mas o Senhor quis mostrar aos seus discípulos que a oração passa necessariamente por algo muito mais essencial e profunda que é uma atitude de oração. Vamos nos concentrar por agora no texto do Evangelho de Mateus, no capítulo 6, versos 5 a 8, onde Jesus ensina sobre a motivação e o conteúdo da oração.

A motivação da oração Estamos no Sermão do Monte, um dos blocos de ensino de Jesus mais famosos entre todos os Evangelhos. A partir do início do capítulo 6 Jesus começa a mostrar como os discípulos devem realizar suas práticas de justiça, especialmente montando um contraste em relação à forma como os fariseus exercem suas práticas de justiça. A partir do verso 5 Jesus nos diz para não orarmos como os hipócritas, se referindo aos fariseus. Os fariseus eram um tipo de partido religioso do tempo de Jesus muito conhecidos de todo o povo. Eles eram muito admirados pelas pessoas em geral que pensavam que esses homens eram super-homens da religião judaica, pois eram grandes conhecedores das Escrituras e também se orgulhavam de serem observadores rígidos dos mandamentos. Contudo, Jesus constantemente denuncia que os fariseus fazem todas estas coisas não para agradarem ao Pai mas para serem glorificados pelos homens, e serem admirados por eles. Jesus então ordena que o discípulo não ore em lugares públicos como esses caras, e orienta que o discípulo entre em seu quarto e feche a porta para orar. O que está em questão não é o lugar mas a motivação, que não deve ser de parecer mais crente do que os outros, mas de ter relacionamento com o Pai, que nos vê em secreto. O Senhor instrui que a motivação de orar seja pura, correta: ter relacionamento qualitativo com o Pai. Muitas motivações distorcidas podem nos levar à oração: barganha, medo, hábito religioso, culpa. Contudo, Jesus diz que um bom tempo de oração deve começar com a motivação adequada.

O conteúdo da oração Depois de falar sobre a motivação da oração, Jesus ensina sobre o que orar, qual o conteúdo da oração. Jesus diz para não usarmos de vãs repetições, como os gentios, que presumem que serão ouvidos por ficar tagarelando sempre as mesmas coisas. Bem, afinal o que está em jogo aqui? Afinal, não podemos orar constantemente pelas mesmas pessoas ou motivos? O que está em jogo aqui é o conteúdo da oração, que não deve ser reduzido a um mero jogo de pedir e receber. Jesus diz para não orarmos como os gentios, ou seja, pessoas que serviam aos ídolos indo aos templos para fazer suas preces a essas falsas divindades. O que isso tem a ver? Bem, o lance é que essas pessoas não iam até os templos para se relacionar com esses deuses, mas para buscar favores nas mais diversas áreas da vida. Dependendo da necessidade, seria necessário pedir a um deus responsável por aquela área. O que estava em questão não era relacionamento, mas apenas o atendimento de uma necessidade. Pedir, pedir e pedir para finalmente receber.

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Jesus nos alerta para que nossos momentos de oração não sejam transformados em um balcão de pedidos e barganhas. Se você parar para pensar é uma grande tentação entrarmos no momento de oração para simplesmente agradecermos o que recebemos e pedirmos o que ainda precisamos sem sermos necessariamente pessoais, sem falar de nós mesmos, sem abrir nossos corações para conversar com o Pai. O Mestre nos aponta o caminho para não reduzirmos o conteúdo da oração a uma tagarelice sem fim, nos assegurando que o Pai sabe tudo que temos necessidade antes que venhamos a pedir. Jesus não está dizendo para não pedirmos, já que, como bem observou Calvino, devemos orar pedindo ao Pai como expressão de dependência e para obter maior confiança, mas não devemos fazer do Pai um entregador de pizzas e nem da oração uma lâmpada mágica.

Logística de Oração Como a meditação, a oração é uma prática devocional que precisa ser constante e fluente para obtermos progresso no discipulado e crescimento espiritual. Precisamos então desenvolver uma logística de oração, ou seja, precisamos estabelecer quando orar, com que freqüência, por quanto tempo. Quando vamos definir essa logística logo podem surgir pessoas que dizem que separam um tempo específico de oração, e outras que dizem que gostam de orar ao longo do dia. Outras pessoas gostam de orar em seu quarto, enquanto algumas pessoas preferem orar caminhando ou cercados pela natureza. Algumas pessoas preferem longas orações, e outras orações mais sintéticas e constantes. Afinal, tem receita pra isso?

Daniel e Paulo Creio que é na equalização de dois modelos que vamos encontrar o equilíbrio para uma logística que possa não apenas nos dar coordenadas importantes, mas fazer da oração um hábito que nos molda dentro do estilo de vida do discipulado. Os dois caras que quero destacar são Daniel, o Profeta, e Paulo, o Apóstolo. O livro do profeta Daniel narra a vida desse homem piedoso, conhecido por seu caráter e sabedoria. Em um evento da vida de Daniel que o levou à cova dos leões (Dn 6), temos um retrato da vida de oração desse servo de Deus. Daniel separava três momentos específicos de oração ao Pai ao longo do seu dia. Todo dia, em três horários diferentes, Daniel ia para casa e se colocava de joelhos na presença do Pai para orar (Dn 6.10) Creio que é muito importante termos um momento específico de oração em nossa agenda diária, por que se deixamos para orar ao sabor do desenrolar do nosso dia, podemos ter um dia ou até mesmo uma semana muito complicada e lá se foi nosso tempo de oração. É preciso fixar uma hora de oração para não cairmos na inconstância que muitas vezes nosa arrasta para uma vida de oração improdutiva e estéril. Mas separar um momento fixo de oração não vai suprir todas as nossas necessidades, pois à medida que nos levantamos do nosso momento de oração, no desenrolar do dia, novos eventos e necessidades vão aparecer e alguns deles podem e devem ser levados ao Pai em oração. Por isso, devemos ver o outro lado da rotina de oração no ensinamento de Paulo, expresso em sua Primeira Epístola aos Tessalonicenses, capítulo 5, verso 17: “Orai sem cessar!”. Devemos continuar orando ao longo do dia, falando com o Pai sobre diversas coisas, sempre deixando nosso coração exposto para que Ele possa nos confortar, nos guiar, nos fortalecer e nos preservar da tentação. Jesus ordenou a seus discípulos que sempre vigiassem e orassem, pois o espírito está pronto mas a carne é fraca (Mt 26.41). Não devemos simplesmente deixar para orar quando der, mas não podemos reduzir nosso relacionamento com o Pai ao momento de oração. O equilíbrio entre esses dois modelos vão nos mergulhar profundamente em um estilo de vida construído com oração.

Oficina de oração Tão importante quanto a questão de quando orar, são os temas da duração e do lugar. No entanto, vou ser breve pois ambas são questões que um pouco de bom senso pode resolver. O lugar de oração deve ser um ambiente que possa te proporcionar solitude, privacidade, certa comodidade física (mas não muita para não dormir ou viajar hein!) e alguma inspiração. Orar em nossa casa, em algum cômodo silencioso e

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sozinhos, é a prática comum, mas às vezes para quebrar um pouco a rotina podemos ir orar em algum lugar cercado de belezas naturais que possam nos inspirar. Todavia, a questão do lugar deve obedecer às possibilidades que temos, obviamente. Quanto ao tema de quanto tempo investir em oração, temos de ter em mente que a quantidade de tempo não significa necessariamente qualidade de relacionamento. O tempo de oração naturalmente se alonga à medida que nos aprofundamos nessa disciplina, por isso devemos enfocar que o tempo de oração seja primeiramente qualitativo, e conforme nossa prática se aprofundar, também será quantitativo. Separe um momento produtivo e ore!

Verticalidade e horizontalidade Costumamos pensar na oração apenas em seu aspecto vertical, ou seja, como um meio de relacionamento entre nós e o nosso Pai. De fato, esse aspecto da oração foi enfatizado pelo próprio Jesus, mas ao mesmo tempo há uma perspectiva da oração que é horizontal, onde oramos juntos diante do Senhor, como povo de Deus. Existem alguns salmos que enfatizam essa realidade da oração comunitária, salmos que nascem dos momentos de oração do povo de Israel diante do Senhor, tanto nos períodos de confissão nacional quanto nos momentos de louvor comunitário que estavam intimamente associados às práticas de culto do templo. Um exemplo vivo dessa dimensão comunitária de oração são os salmos de romagem (Salmos 120 a 134) orados e cantados pelos israelitas enquanto esses subiam em caravanas para as festas do templo em Jerusalém. Esses salmos são cheios de expressões no plural, orações feitas em comunidade. Na verdade, as dimensões vertical e horizontal da oração não devem se cruzar apenas nos momentos de culto, mas ao longo da nossa prática de vida de oração, à medida em que oramos com nossos irmãos na fé. Devemos adquirir o hábito de orar com outros discípulos, orando uns pelos outros e por causas comuns do Evangelho. O hábito de orarmos juntos deve permear todas as nossas estruturas relacionais, desde amizades, namoros até a própria família. Ao orarmos juntos estamos aprendendo a orar uns com os outros, estamos fortalecendo nossa fé mutuamente, bem como aprofundando laços importantes entre nós e o próprio Senhor. A oração deve então se equilibrar em torno desses dois momentos que não são excludentes mas complementares: a oração em solitude e a oração em comunidade. Não devemos orar somente quando estamos com o irmão, mas não devemos orar apenas sozinho.

Metodologia da oração A oração não deve ser encaixotada e deve vir de um coração entregue, desprendido, rendido em oração. Contudo, devemos ter em mente que é necessário estabelecer uma forma de orar para não ficarmos presos a temas muito redundantes no nosso tempo de oração. A oração possui uma gama de atitudes diante do Pai: louvor, engrandecimento, gratidão, confiança, petição, arrependimento, confissão, entre outros. Entretanto, por não adquirirmos o hábito de uma agenda de oração, ficamos muitas vezes presos ao padrão pedido-agradecimento-confissão. A agenda de oração é um roteiro de oração que montamos e registramos em um caderninho ou algo semelhante. Tendo esse registro em mãos no momento da oração podemos estabelecer uma sequencia na qual possamos desfrutar de diversos aspectos da oração, além manter um rol de motivos pelos quais queremos orar constantemente e uma lista de pessoas pelas quais nos comprometemos a interceder. Nossa agenda de oração pode seguir o padrão ACASI: adoração, confissão, agradecimento, súplicas e intercessão. O momento inicial é de adoração, no qual nos colocamos diante do Pai confessando seus atributos, sua beleza, seu amor, louvando ao Pai, ao Filho e ao Espírito por sua graça que nos recebe em oração. O louvor coloca nossos olhos na grandeza do Senhor, de maneira que o momento inicial da oração é uma volta dos nossos sentidos para a pessoa do Pai. A partir da grandiosidade, da justiça e do amor do Pai somos levados a admitir e confessar nossa pequenez, nossa fragilidade e nosso pecado. A confissão deve ser sincera, direta, objetiva e confiante na

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graça do Pai. Devemos ter em mente que o Pai já conhece todos os nossos pecados e até sabe os que nós mesmo desconhecemos. Confessamos para nos humilharmos diante de nosso Senhor e como uma foram de rendição à sua graça. A confissão e a certeza do perdão são o ambiente através do qual podemos colocar diante do Pai nossa gratidão. A gratidão é um aspecto muito importante de toda a vida cristã, pois declara que o Senhor derrama sua bondade sobre nós, pecadores. Agradeça pela cruz de Cristo, agradeça pela vida, pelas bênçãos, pelas dificuldades. Finalmente, nos entregamos ao Senhor em súplicas, pedindo por motivos pessoais, e em intercessão, pedindo por outras pessoas, orando para que o Pai fortaleça irmãos na fé e para que outros conheçam o Evangelho.

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O Jejum Não só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus Mateus 4.4

A disciplina mal falada Richard Foster, em seu livro Celebração da Disciplina, afirma que o jejum é uma das disciplinas mais mal compreendidas, mal aplicadas e negligenciadas de nossa época17. Para Foster, os motivos são por um lado a ligação histórica do jejum às práticas ascéticas dos mosteiros e por outro lado a pregação nutricional de que ficar sem comer é um atentado contra a saúde. De fato, o jejum é uma disciplina pouco ensinada nas comunidades cristãs atualmente, e frequentemente é ligada ou a um fanatismo indesejável ou é colocada de lado como coisa antiga e sem propósito. Entretanto, o jejum é uma prática que tem grande visibilidade no Antigo Testamento, sempre compreendida como uma disciplina de abstinência de importância e profundidade, ligada ao lamento ou à humilhação do arrependimento (2Sm 12.16; Jn 3.5-8). A prática do jejum não fica restrita ao Antigo Testamento, mas o próprio Jesus jejuou (Mt 4) e pressupôs em suas instruções aos discípulos que estes também haveriam de praticar o jejum (Mt 6.16-18). Embora o jejum não seja enfatizado longamente nos escritos do Novo Testamento, o próprio Jesus nos deu exemplo e ensinamento a respeito desta disciplina, o que por si só nos deve levar a considerar esta disciplina mais de perto.

Um apetite diferente O jejum como este é referido nas Escrituras é a espontânea abstinência de comida e/ou bebida. Entretanto, existem diferentes níveis de jejum, o que é confirmado pelo jejum de Daniel, que por um dado tempo "não comeu nada saboroso; carne e vinho não provou; e não usou nenhuma essência aromática, até se passarem as três semanas" (10.3). E qual o propósito de jejuar? Em um sentido amplo, o propósito do jejum é uma rendição profunda ao Senhor. Esta rendição pode envolver uma atitude de humilhação, de arrependimento, de louvor, de busca e até mesmo de consagração para uma ocasião ou questão especial. O período de jejum deve vir acompanhado de uma profunda prática de oração. Jejuar é abrir mão do alimento para focar na verdade de que nem só de pão viverá o homem, que não é apenas uma máquina fisiológica que pode ser saciada pelas realidades materiais que o cercam. O jejum é esta rendição à suficiência do Pai, é uma rendição à justiça, ao cuidado, ao poder e ao amor que só estão no Pai, recursos que estão em Cristo e que são derramados sobre nós pela pessoa do Espírito. O jejum é tirar o foco de qualquer outro apetite para focar nossa ânsia somente em Cristo. Esse efeito amplo do jejum sobre todos os nossos apetites, não apenas o apetite gastronômico, é assim explicado por Willard: “O jejum ensina a temperança ou o auto controle e, portanto, ensina moderação e abstenção em relação a todos os nossos impulsos básicos. Desde que o alimento tem grande influência em nossa vida, os efeitos do jejum se difundirão por toda a nossa personalidade”.18 O jejum envolve necessariamente uma atitude de humilhação que aceita o fato de que o Senhor é a nossa maior necessidade, que não temos por nós mesmos os recursos que precisamos. Essa atitude inicia na renúncia do alimento, mas se estende para todas as áreas da nossa vida que costumam desfocar nossa consciência da necessidade do Pai.

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FOSTER, Richard J. Celebração da Disciplina, p. 40. WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas, p.167

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Evitando as ciladas O jejum é uma disciplina que traz consigo tentações, como todas as demais, mas de certa forma há uma cilada que é mais insinuante do que nas demais disciplinas: o orgulho espiritual. O jejum, por ser uma disciplina que exige ao mesmo tempo espontaneidade e rigor, pode vir a deteriorar num sentimento de superioridade espiritual, justiça própria e até mesmo um toque de manipulação do próprio Deus. Devemos manter em mente que o jejum deve produzir em nós um profunda consciência de nossa necessidade do Senhor, uma postura humilhada e rendida. Para tanto, devemos jejuar com os propósitos já citados em mente, e com uma motivação pura em nossos corações, sobre o que conversaremos adiante.

Motivação acertada Em seu ensino sobre a vida do Reino, Jesus ensinou seus discípulos sobre o jejum. Para compreendermos o ensino de Jesus como ele está registrado em Mateus 6.16-18 devemos antes visualizar algumas características desse texto. Primeiro, é importante notar que Jesus tinha alertado os discípulos sobre a necessidade de terem uma justiça maior do que a dos escribas e fariseus (Mt 5.20). As pessoas que ouviram Jesus isto devem ter rido ou chorado a princípio, pois os escribas e fariseus eram conhecidos por seu íntimo conhecimento dos mandamentos bem como de sua escrupulosa atenção para com eles. Mas então Jesus começa a mostrar que o discípulo deve superar a hipocrisia farisaica de obedecer os mandamentos apenas exteriormente. O discípulo deve alinhar não apenas sua prática com a lei, mas essencial e primeiramente seu coração. É esse o espírito das aplicações da lei que Jesus faz: que o seu coração esteja alinhado com o Reino (Mt 5.21-48). Logo após mostrar que o discípulo do Reino deve estar completamente rendido e mergulhado no Reino até o mais profundo de seu coração, Jesus começa a falar sobre as práticas de justiça, ou seja, disciplinas espirituais. Na introdução de seu ensino sobre as práticas de justiça, Jesus mostra como a questão da motivação é essencial para todas elas (Mt 6.1). Jesus previne que o discípulo oriente sua prática para a finalidade de alcançar glória religiosa como os fariseus e escribas. A motivação acertada é o começo do sucesso da disciplina espiritual. O contrário também é verdade. Ao ensinar sobre o jejum, Jesus ensina que não devemos jejuar com o fim de nos mostrarmos mais espiritualizados para os que estão à nossa volta (Mt 6.16). Lembre-se sempre: jejuar é render-se à justiça do Pai e não uma forma de nos sentirmos melhores conosco mesmos. Como bem notou Foster, utilizar boas coisas para nossos próprios fins é sinal de falsa religião19, e isso é aplicável em especial ao jejum. A motivação de jejuar deve ser portanto de render-se ao Senhor, confessar nossa necessidade dele acima de todas as outras.

A logística da entrega Assim como nas demais disciplinas, devemos pensar também em uma forma prática de executar o jejum. Em seu livro Celebração da Disciplina, amplamente citado em nossas aulas, Foster dá dicas muito legais para quem quer começar a prática do jejum. Vou colocar algumas delas aqui, mas se você se interessar pode ir até a fonte. Primeiro, devemos começar devagar e então ir progredindo na disciplina. Inicie com períodos curtos de jejum, tirando uma refeição, talvez utilizando o método de jejum parcial, em que se consome alguma bebida leve, um suco ou algo assim. Logo você poderá perceber como seu corpo reage ao jejum e talvez estender para um período de 24 horas e assim por diante. Em segundo lugar, quebre seu jejum com refeições leves e com um tempo especial de devoção. Separe um tempo de oração especial antes da entrega, de maneira que você possa ter um tempo de privacidade, oração, gratidão e alegria na presença do Senhor. A entrega não deve ser feita de qualquer maneira, mas com oração e um profundo sendo de humildade e rendição.

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FOSTER, Richard. Celebração da Disciplina, p.45

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Em terceiro, nas primeiras vezes em que jejuar mais longamente não se abstenha de ingerir água. O jejum absoluto é muito rigoroso e deve ser incrementado aos poucos. Finalmente, ao se habituar à prática do jejum você poderá realizar jejuns de 36 horas, 3 ou até 7 dias. Foster afirma que o jejum não deve ser prolongado demasiadamente e que diabéticos, cardíacos e mulheres grávida devem evitar de maneira praticamente absoluta o jejum. Acima de tudo, que o tempo de jejum possa ser acompanhado de tempos de oração, adoração, entrega e solitude. A atitude externa de abstinência deve vir acompanhada de uma atitude interna de entrega ao Senhor, acompanhando o espírito do jejum.

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A Solitude Bom é aguardar a salvação do Senhor, e isso, em silêncio Lm 3.26

Jesus em solitude A solitude era uma disciplina muito conhecida dos primeiros discípulos e amplamente praticada pelo próprio Jesus. Ele iniciou sua jornada ministerial passando quarenta dias sozinho no deserto (Mateus 4:1-11). Na ocasião da escolha dos doze apóstolos, o Senhro passou a noite inteira sozinho em um monte deserto, em profunda oração (Lucas 6:12). Logo depois do milagre da multiplicação de pães e peixes, Jesus mandou que os discípulos partissem pelo mar, despediu as multidões e “subiu ao monte a fim de orar sozinho...” (Mateus 14:23). Após curar um leproso, Jesus “se retirava para lugares solitários, e orava” (Lucas 5:16). Finalmente, quando estava prestes a enfrentar os sofrimentos da cruz, Jesus se recolheu em solitude e oração no jardim do Getsêmani (Mateus 26:36-46). A solitude era o momento no qual Jesus mantinha a perspectiva clara das coisas, e geralmente antes ou depois de fatos e eventos cruciais ao longo dos Evangelhos, Jesus procurava estar só com o Pai. A solitude era a disciplina através da qual Jesus mantinha-se conectado com a perspectiva do Pai acerca das coisas, de maneira que nem os apelos das multidões para coroá-lo nem as acusações e ameaças dos líderes religiosos pudessem demovê-lo de sua missão.

A disciplina da verdade A solitude é a decisão consciente de nos abstermos de relacionamentos com as pessoas20 com a finalidade de nos concentrarmos em nosso relacionamento com o Pai. Para muitos escritores, como Bonhoeffer e Tomas Merton, a solitude é a disciplina que abre as portas para as demais e deve ser praticada regularmente ao lado da oração, da meditação e também do jejum. Em grande parte somos fruto do nosso meio, somos moldados e formatados pelas relações que temos com as outras pessoas e não raras vezes esses relacionamentos nos levam para longe de um relacionamento profundo com o Pai. A solitude faz o caminho inverso, pois pretende nos levar à abstinência de todos os demais relacionamentos para estar com o Pai e assim fazer o caminho de influência inverso. A solitude nos protege de sermos moldados e destruídos por nossas relações. Bonhoeffer escreveu sobre essa realidade: “Aquele que não pode estar sozinho, tome cuidado com a comunidade. Aquele que não está em comunidade, cuidado com o estar sozinho. Cada uma dessas situações tem, de si mesmas, profundas ciladas e perigos. Quem desejar a comunhão sem solitude mergulha no vazio de palavras e sentimentos, e quem busca a solitude sem comunhão perece no abismo da vaidade, da auto-enfatuação e do desespero”.21 Muitas vezes nos perdemos em nossos meios sociais. Perdemos nossa identidade, nossos referenciais, e lutamos para fugir de nós mesmos, de nossa dor e angústia em meio a conversações vazias, relacionamentos superficiais e até certo ponto pecaminosos. A solitude nos leva a um encontro conosco mesmos, com o Pai, com a verdade. A solitude é estar consigo mesmo para se ouvir, se conhecer, se ver. Para Calvino, quanto mais nos conhecemos mais conhecemos a Deus, e quanto mais conhecemos a Deus mais compreendemos e conhecemos a nós mesmo num ciclo que não pode ser desligado. Em suas próprias palavras: “E assim na consciência de nossa ignorância, presunção, miséria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte, senão no Senhor, se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo que é bom, a pureza da justiça, e daí somos por nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus”.22

20WILLARD,

Dallas. O Espírito das Disciplinas, p.159. APUD FOSTER, Richard J. Celebração da Disciplina, p.80 22 CALVINO, João. 21

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A solitude nos dá esse ambiente necessário ao crescimento do conhecimento de nós mesmos e do Pai, nos libertando da escravidão de atuarmos o tempo todo diante das pessoas com as quais nos relacionamos. A solitude é a disciplina da verdade, é o momento em que as máscaras não funcionam e somos confrontados com a realidade de nós mesmos.

Solitude, não solidão Como todas as disciplinas, a solitude possui suas ciladas e devemos estar atentos para essa realidade enquanto nos envolvemos nas disciplinas espirituais. A solitude á uma das disciplinas de abstenção do nosso cardápio de disciplinas, onde nos abstemos de relacionamentos com outras pessoas por algum tempo para dizer ao Pai que o principal relacionamento que temos é o Senhor. Por causa dessa abstinência a solitude pode acabar tomando ares de solidão espiritualizada. A solidão é a condição em que estamos desligados de relacionamentos relevantes e profundos devido ao abandono, à fuga, ao medo de relacionamentos. A solidão é o resultado de uma vida de egocentrismo, de vaidade. Segundo Foster, a “solidão é vazio interior. Solitude é realização interior”.23 A solidão é em si mesma, enquanto a solitude é uma disciplina realizada com o fim de estarmos com o Pai para podermos amar as pessoas que estão à nossa volta mais e melhor quando a disciplina terminar. James Bryan Smith mostra como podemos diferenciar a disciplina da armadilha da seguinte maneira: “Solitude é passar um tempo separado das outras pessoas. Geralmente experimentamos a solidão quando não há ninguém por perto, mas não é desse tipo de solidão que estamos falando. A solitude é um tempo que passamos intencionalmente conosco mesmos e com Deus. Então, Deus pode fazer algo poderoso dentro de nós na área da identidade”.24 A solidão se caracteriza pela insuficiência de interação e comunicação emocional e pela falta de aproximação afetiva que é fruto da superficialidade das relações. A pós-modernidade, tão marcada por grandes avanços científicos e tecnológicos e pela expansão dos meios de comunicação tem gerado, paradoxalmente, uma crescente sensação de solidão. Essa solidão é na verdade fruto de individualismo, de auto-proteção e de uma atitude pecaminosa e auto-centrada em que o indivíduo se recusa a se envolver em relacionamentos onde possa ser amado e por sua vez amar. A solitude nos liberta da solidão, pois ao estarmos e sermos na presença do Pai, tirando nossas máscaras, estaremos cada dia mais aptos para sermos nós mesmos com as pessoas à nossa volta e nos conectarmos verdadeiramente com elas.

A Margem A disciplina da solitude é mais uma prática que devemos trazer para dentro de nossos hábitos devocionais. Mas como conseguir tempo para poder estar, simplesmente estar? Fomos educados para fazer e realizar, e a princípio a simples renúncia ao ativismo pode parecer perda de tempo e uma completa irresponsabilidade. Contudo, se você entendeu realmente o ponto dessa disciplina, então sabe que ela é necessária e até mesmo vital para o seu crescimento em Cristo. Mas então, como fazer? Como implementar? Bem, creio que Smith nos dá uma dica muito legal para podermos conseguir implantar pequenos momentos de solitude ao longo da nossa semana: a margem25. Vivemos muitas vezes com nossas agendas no limite, enfiando coisas para fazer nos mínimos espaços para não termos nenhum tempo de ócio, afinal tempo é dinheiro. No entanto, por causa dessa nossa vida insana de coisas para fazer, não conseguimos separar tempo para simplesmente ser. Margem é o espaço de tempo que separamos para simplesmente estar. É a recusa a entupir nossa semana de atividades para nos sentirmos úteis. A margem é programar-se para ter algum tempo livre entre as atividades de maneira que não seja necessário você sair correndo de uma coisa para a outra. É dentro da margem que você estará em solitude. 23

FOSTER, Richar J. Celebração da Disciplina. p.79 SMITH, James Bryan. O Maravilho e bom Deus, p.205. 25 Idem, p.159 24

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Bem, então vamos para as dicas finais. Separe uma hora no seu dia para curtir você mesmo. Prepare uma xícara de café, sente-se, respire e esteja em solitude com o Pai. Saia com margem de tempo para o trabalho, dirija tranquilamente e gaste alguns momentos dentro do carro antes de começar a trabalhar, em solitude com o Pai. Separe um dia da semana para ir a um lugar que você gosta e ficar lá algum tempo, em solitude com o Pai. Crie o hábito de assistir o cair da tarde, ou ver o pôr-do-sol de vez em quando. Solitude é o tempo em que você olha só para o Pai, e contempla toda a sua beleza.

A difícil tarefa de calar Poucas coisas são tão incômodas nos dias atuais como o silêncio. Estamos habituados de tal maneira aos ruídos, sons, vozes e notas que nos rodeiam que pensar em um lugar quieto, profundamente quieto, por mais de alguns instantes pode se tornar amedrontador. Como afirmou T. S. Eliot, “onde deve ser encontrado o mundo em que ressoará a palavra? Aqui não, pois não há silêncio suficiente”.26 Mas por que tememos o silêncio e a quietude? Talvez as respostas estejam dentro de nós. A solitude possui uma disciplina, que embora distinta, é sua irmã gêmea. Como afirma Willard, “silêncio e solitude em geral andam de mãos dadas. Assim como o silêncio é vital para a verdadeira solitude, assim também a solitude é necessária para que a disciplina do silêncio seja completa. Poucas pessoas podem ficar em silêncio na companhia de outras”.27 Enquanto a solitude é abster-se de relacionamentos com pessoas por algum tempo, o silêncio é o aprofundamento desse momento em uma atitude interna de quietude. Se a solitude nos leva a uma afastamento físico da agitação, das conversas e dos ruídospara um ambiente externo de quietude, o silêncio é quando a solitude entra na alma, faz morada em nós. A disciplina do silêncio consiste em conseguir acalmar e embalar o próprio coração em uma atitude de audição do Senhor. A espinha dorsal dessa disciplina é a quietude aliada à audição. “Muito embora o silêncio às vezes envolva a ausência de linguagem, ele sempre envolve o ato de ouvir. O simples refrear-se de conversar, sem um coração atento à voz de Deus, não é silêncio”.28 O silêncio é calar diante do Senhor para simplesmente estar com ele, sem procurar articular o que lhe dizer. Silenciar e ouvir, simplesmente. Talvez aqui possamos encontrar a face temível do silêncio, por que uma vez que a solitude avança para dentro de nós se tornando silêncio interior, podemos ver o quanto procuramos manipular a Deus com nossas orações, com nossa fala. Ao nos calarmos, tomamos consciência da verdade assustadora e intimidadora de que o Senhor conhece nossos rins, e a despeito de nosso palavrório diante de sua presença, seu olhar sonda nossas vísceras. O silêncio é a disciplina que leva a cabo os efeitos da solitude, por isso a forma tão próxima com que ambas são abordadas pelos escritores devocionais. Estar na presença do Pai e abrir mão de tentar manipulálo e ouvi-lo. Quando desistirmos de nos justificarmos diante do Pai, ou de impressioná-lo com nossas pretensas declarações de amor, o que ouviremos? Talvez não venhamos a ouvir nada, mas a ver com os olhos do nosso coração o olhar do Pai em nossa direção através da cruz do calvário. Então teremos ouvido aquilo que as palavras não podem exprimir.

Exercícios de silêncio29 Como já investimos tempo considerável na disciplina da solitude, vamos apenas indicar alguns exercícios de silêncio. Silenciar na presença do Senhor mantendo o foco em ouvir a pessoa do Pai é uma prática que cresce com o tempo e, como as demais disciplinas, inicia difícil e pedregosa. Foster nos ajuda 30 com a sugestão de dois exercícios para começar. O primeiro é o “palmas para baixo, palmas para cima”. Sente-se confortavelmente em um lugar de solitude e, com as palmas das mãos voltadas para baixo sobre seu próprio colo em posição de entrega, ore entregando todas as necessidades que você tem ao Pai através de Jesus. Nesse momento você fala com o 26

APUD FOSTER, Richard. A Celebração da Disciplina, p.79 WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas. p.163 28 FOSTER, Richard. A Celebração da Disciplina, p.81 29 WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas, p.163 30 FOSTER, Richard. A Celebração da Disciplina, p. 24 27

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Pai. Depois, você silencia e, voltando suas mãos agora para cima em postura humilde de recebimento, começa o tempo de silêncio e audição. Deixe o Espírito sussurras a verdade do cuidado e da graça do Pai ao seu coração. Outra prática que ajuda a não deixar a mente divagando no período de silêncio é concentrar-se em sua própria respiração. Assentado confortavelmente, preste atenção à sua respiração e comece a controlá-la para que seja mais profunda e lenta. Comece a aliaro soltar do ar com uma atitude de entrega de preocupações e problemas, com breves orações de entrega e ao inspirar lentamente silencie e ouça.

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A Comunhão Como é bom e agradável viverem unidos os irmãos! Salmo 133

Comunidade A caminhada cristã nunca é uma peregrinação solitária, já que não devemos perder de vista que o Senhor nunca chamou pessoas para junto de si: o Pai prepara, separa e levanta sempre um povo. Dizendo isto quero significar a verdade de que ninguém foi chamado para caminhar sozinho no Evangelho, mas somos chamados para caminhar com uma comunidade que já existia antes de nós e continuará existindo após nossa partida. A comunhão é uma disciplina construída sobre a verdade de que o Senhor chamou para si um povo, uma nação santa (2Pedro 2.9). Essa verdade é tanto visível no Antigo Testamento, personificada na própria nação de Israel, como no Novo Testamento, quando Jesus deixa uma comunidade de discípulos que devem caminhar sempre lado a lado (João 15.12-17). Jesus sempre estimulou seus discípulos a construírem relacionamentos no Reino, enviou-os em duplas e enfatizou sempre a necessidade de que houvesse amor entre seus aprendizes. Viver em comunidade é nosso grande privilégio e nosso grande desafio. É nosso privilégio porque a comunhão entre os discípulos é resultado da união com Cristo. Como Paulo enfatiza em sua epístola aos Efésios, capítulo 2, versos 11 a 22, o efeito maravilhoso da salvação de Jesus sobre seu povo é que por meio de seu sacrifício Jesus venceu todo isolamento, toda separação para fazer de nós família de Deus (v.19). Ao mesmo tempo, viver em comunidade é um grande desafio devido à sobrevivência da pecaminosidade em nós. Somos pessoas diferentes, feridas, incompreendidas e ainda por cima pecadoras. Tudo isso cria graves dificuldades para que venhamos a construir relacionamentos sólidos, baseados no amor do próprio Jesus. A comunhão, que é uma grande bênção do Pai para nós, pode se tornar muitas vezes uma séria dificuldade. Não devemos perder de vista essas duas realidades: o privilégio e a dificuldade. Deixar de lado qualquer tipo de idealismo em relação às pessoas e à igreja é um passo fundamental para a construção de uma verdadeira espiritualidade comunitária. Como afirmou Warren: “quanto mais rápido renunciarmos à ilusão de que uma igreja deve ser perfeita para que a amemos, mais rápido deixaremos de fingir e admitiremos que somos todos imperfeitos e precisamos da graça. Esse é o início da verdadeira comunidade! Toda igreja deveria afixar uma placa: “Pessoas perfeitas não precisam entrar. Este lugar é somente para os que admitem ser pecadores...”.31 Dietrich Bonhoeffer, escrevendo em seu clássico Vida de Comunhão, afirma que “aquele que ama mais seu sonho de comunidade cristã que a própria comunidade cristã, se tornará o destruidor de cada comunidade cristã, não importa o quão honestas, sérias e sacrificiais sejam suas intenções”.32 Não devemos amar os outros discípulos pelo que eles deveriam ser, mas pelo que eles são. Este é o início da construção de uma comunidade.

A disciplina dos relacionamentos Uma disciplina crucial e vital em nossa caminhada cristã certamente é a comunhão. A comunhão ocorre quando “nos engajamos nas atividades comuns de adoração, estudo, oração, celebração e serviço com outros discípulos. Ela pode envolver grandes grupos ou apenas umas poucas pessoas”.33 Quase todas

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WARREN, Rick. Uma vida com propósitos, p. 142. BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. 33 WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas, p. 188. 32

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as práticas devocionais que listamos até agora podem ser feitas tanto individualmente como comunitariamente. Meditar nas Escrituras, orar e jejuar são práticas que podemos realizar com outros irmãos. A comunhão é a disciplina dos relacionamentos, e por isso a comunhão é uma expressão genuína da fé cristã, pois Jesus veio nos reconectar a relacionamentos. A salvação é a experiência de termos um novo relacionamento com o Pai por meio de Cristo e de termos um novo relacionamento uns com os outros por meio de Cristo. Essa é a lição profunda que Jesus deixa a seus discípulos na imagem da videira e dos galhos, no capítulo 15 do Evangelho de João. Nessa parábola, Jesus deixa claro que estar conectado a ele é estar conectado ao outro discípulo, e que a expressão de um relacionamento frutífero com Jesus é o amor pelo próximo. A comunhão é a disciplina onde o cristianismo é forjado e atestado.

Espiritualidade comunitária A disciplina da comunhão é o caminho para a construção de uma espiritualidade comunitária, ou seja, uma forma de caminhar espiritualmente ao lado de outros discípulos. As Escrituras enfatizam a disciplina da comunhão como parte essencial da construção da espiritualidade, de tal maneira que podemos até mesmo dizer que a comunhão é essência da fé cristã. Mas por que a comunhão é tão essencial? Por que a comunhão é uma conseqüência da salvação em Cristo. Ao longo de todo o capítulo 15 do Evangelho de João Jesus mostra três áreas de relacionamentos do discípulo: a relação com Cristo (versos 111), a relação com o outro discípulo (versos 12-17) e finalmente a relação da comunidade com o mundo (versos 18-27). Jesus aponta para a relação comunitária como um desdobramento do fato de que os discípulos estão em Jesus como galhos enxertados em uma árvore. Por que eles estão em Jesus e Jesus está em seus discípulos, eles agora são membros uns dos outros, unidos por meio de Jesus em uma comunidade de discípulos. Na seção central do texto, onde Jesus enfoca a comunhão, o Senhor enfatiza o mandamento do amor. O amor é o caminho para se exercer a prática da disciplina da comunhão, para através da comunhão edificar uma espiritualidade comunitária, marcada por relacionamentos profundos e curadores. Entretanto, nosso grande desafio é adentrarmos profundamente o sentido da palavra “amor” aqui no texto, já que somos desafiados a nos amarmos uns aos outros não a partir dos nossos padrões de amor, mas a partir dos padrões do próprio Jesus. “Que vocês se amem como eu amei vocês!” João 15.12. Geralmente nossos discursos a respeito do amor são bastante dilatados, mas quando somos realmente desafiados a amar na prática não temos muita idéia do que isso significa. Contudo, as Escrituras nos declaram como funciona esse amor, e o que fazer para traduzir na comunhão nosso amor por Jesus e pelos outros discípulos.

Construindo comunidade com amor A comunidade de cristãos da cidade de Corinto era uma igreja muito conhecida dos cristãos primitivos. Essa comunidade era famosa por ter cristãos que operavam com dons magníficos, uma igreja operosa e que agregava muitos convertidos por seu dinamismo. Entretanto, Paulo escreve para essa igreja para repreendêla por uma falta grave que estava sendo uma constante na forma como esses irmãos estavam construindo sua comunidade: a falta de amor. É com este pano de fundo em mente que podemos compreender uma das passagens mais belas das Escrituras: 1Coríntios 13. Neste texto Paulo mostra duas realidades importantes para a comunidade dos coríntios. A primeira é a verdade de que realizações, por maiores que sejam, não possuem qualquer relevância sem o amor (versos 1-3). Precisamos construir nossa espiritualidade, nossos projetos, nossas vidas e tudo mais com amor, por que é o amor que faz nossas obras efetivas, relevantes, transformadoras nas vidas das pessoas que estão à nossa volta. A segunda verdade é a realidade de que o amor não é algo que sentimos, mas é a forma como escolhemos agir. James Hunter, em O monge e o executivo, mostra de maneira clara como o amor muitas vezes é reduzido ao que sentimos, e como não podemos controlar nossos sentimentos em grande parte do

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tempo, pensamos que amar é algo que depende de diversos fatores. Entretanto, "o amor é o que o amor faz"34. Amor é o que fazemos. Vamos então olhar a lista de atitude que Paulo enumera para mostrar como construirmos uma comunidade de amor. Amar é ser paciente com as pessoas. Amar é ser bondoso. Amar é não explodir em ciúmes, é não se achar melhor do as outras pessoas e nem se deixar levar pela arrogância. Amar é não ser inconveniente, descuidado ao tratar com as pessoas. Amar é procurar o bem do outro e não ser egoísta. Amar é engolir a ira e não descontar os problemas em outras pessoas. Amar é não guardar rancor das faltas das pessoas contra nós. Amar é buscar a justiça, fazer o certo e ter prazer na verdade, sem mentir ou manipular o nosso irmão. Amar é sofrer pelo outro. Amar é acreditar, no Pai e nas pessoas que estão à nossa volta. Amar é esperar. O amor tudo suporta, vence as barreiras e desafios que pareciam impossíveis.

Culto comunitário A disciplina da comunhão não pode ser resumida a um momento específico, como as demais disciplinas. Na verdade, sempre que estamos com outros discípulos, seja comendo, compartilhando, conversando e até mesmo jogando vídeo game, estamos em comunhão. Entretanto, existe um momento especial em que a comunhão dos santos se torna mais profunda e densa: o momento de culto comunitário. O culto comunitário acontece quando nos reunimos em comunidade para nos voltarmos como o povo no poder do Espírito para o Pai que nos redimiu em Jesus Cristo. Quando estamos reunidos em adoração ao Pai a comunhão se mostra de uma maneira toda especial como uma disciplina de espiritualidade comunitária. O culto comunitário pode tomar diferentes formas de acordo com a tradição cristã da comunidade, suas ênfases e até mesmo sua localização geográfica. Contudo, embora a liturgia, os cânticos e orações possam variar em diversos aspectos, cultuar é quando nos reunimos para juntos colocarmos nossa gratidão, adoração e petições diante do Senhor, bem como para receber sua Palavra e Sacramentos. Talvez o culto comunitário seja uma das instituições da igreja que mais precise de um resgate de sentido e de valor, por que muitas vezes confundimos o culto com uma apresentação de performance religiosa. O momento de louvor torna-se um show, cujo fim principal é desfrutar de boa música. As orações públicas tornam-se um momento de exibicionismo religioso e a pregação deteriora em uma palestra de fundo motivacional, cheia de boas idéias mas vazia de autoridade que provem somente das Sagradas Escrituras. O culto comunitário é o momento em que os discípulos agregam diversas práticas devocionais de maneira comunitária. Temos oração, temos meditação na Palavra, temos comunhão e adoração. O culto comunitário não é o momento de nos assentarmos e usufruirmos passivamente dos produtos religiosos que nos são oferecidos. Este é o momento em que a comunidade se ajunta para adorar o Pai por meio de Cristo Jesus no poder do Espírito Santo.

Engajado em uma comunidade Ter comunhão com outros cristãos é uma disciplina que simplesmente não pode ser programada e institucionalizada como algumas outras disciplinas, entretanto podemos fazer nossa parte para que essa disciplina seja efetiva em nossas vidas. Vamos pensar em três escolhas que podemos e devemos fazer para que a comunhão seja uma realidade. A primeira escolha que devemos fazer é nos engajarmos em uma comunidade. Com a proliferação cada vez maior de comunidades evangélicas em nosso país temos uma grande variedade de possibilidades de denominações para congregar e talvez por isso mesmo muitos acabem flutuando de comunidade em comunidade durante grande parte do tempo. Contudo, para que a disciplina da comunhão seja real devemos nos engajar em uma comunidade e sermos constantes ali para podermos construir relacionamentos que possam crescer. Caso contrário, poderemos correr o risco de não desenvolvermos laços profundos com nenhuma comunidade, sabotando a disciplina da comunhão. 34

HUNTER, James. O monge e o executivo, p.62.

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A segunda escolha é adotar uma postura de abertura para relacionamentos novos e mais profundos na comunidade na qual estamos engajados. Sermos constantes em uma comunidade é o primeiro passo e passar a cultivar novas amizades é o segundo e muito importante momento da espiritualidade comunitária. Pequenos gestos como cumprimentar pessoas, mesmo que seja desconhecidas, no início e no fim do Culto comunitário surtirão efeitos maravilhosos. Muitas pessoas só esperam um gesto carinhoso para poderem retribuir, correspondendo nossa gentileza e atenção. Não devemos nos colocar em nosso lugar esperando que as pessoas venham até nós, mas devemos tomar a iniciativa e fazer nossa parte para que haja um clima agradável de respeito e atenção em nossa comunidade. A terceira escolha envolve investir para que alguns relacionamentos nossos dentro da comunidade se tornem amizades sólidas e profundas. Não podemos ser amigos de todos os irmãos da comunidade, e o fato de que existem círculos de amizades dentro de nossa igreja não deve entristecer nosso coração. Esses círculos não podem ser fechados nem fazer acepção de pessoas, claro, mas o fato é que embora você possa ser simpático com muitos irmãos, você só terá amizades profundas com alguns poucos. Invista nessas amizades, a ponto de poder contar com esses irmãos para sua caminhada espiritual. Engajamento, abertura e aprofundamento.

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A Confissão Confessem os seus pecados uns aos outros e orem uns uns pelos outros para serem curados Tiago 5.16

Baile de máscaras A vida cristã pode se deteriorar muito facilmente em atuação religiosa e a comunhão se tornar um grande baile de máscaras. Isso acontece por que muitas vezes estamos em estágios básicos do discipulado, mas somos levados a atuar como discípulos maduros por pressão de nossa comunidade ou de nós mesmos. Ao invés de investirmos em nossa maturação espiritual, gastamos tempo e energia aprendendo a atuar mais e melhor para que venham a pensar que somos aquilo que aparentamos ser. Foster afirma que os efeitos dessa atuação são desastrosos para nosso crescimento espiritual. “Vivemos a comunidade dos crentes como uma comunhão de santos antes de vê-la como uma comunhão de pecadores. Chegamos a sentir que todos os outros progrediram tanto em santidade que nos encontramos isolados e sozinhos em nosso pecado. Não suportaríamos revelar nossas falhas e deficiências aos outros. Imaginamos que somos os únicos que não puseram os pés na estrada do céu. Portanto, escondemo-nos uns dos outros e vivemos em mentiras veladas e em hipocrisia”.35 A confissão é uma disciplina que possui dois ambientes: a confissão individual, feita ao Pai em oração, e a confissão comunitária, que acontece dentro do ambiente da comunhão. Vamos enfatizar aqui a segunda perspectiva, já que a primeira já foi tratada na disciplina da oração. Segundo Willard, “confissão é uma disciplina que funciona dentro da comunhão. Nela, permitimos que pessoas confiáveis conheçam nossas fraquezas mais profundas e nossas falhas. Isso nutre nossa fé na provisão de Deus para nossas necessidades por meio do seu povo, nosso senso de ser amado e nossa humildade diante de nossos irmãos. Assim permitimos que alguns amigos em Cristo saibam quem somos na verdade, não retendo nada importante, mas procurando manter a máxima transparência. Deixamos de carregar o peso de esconder e fingir, que normalmente absorve uma quantidade espantosa de energia, e engajamo-nos mutuamente nas profundezas da alma”.36 A confissão, portanto, é o ambiente em que nos engajamos na prática de retirar as máscaras, parar de atuar e falar a realidade a respeito de quem somos e como estamos com pessoas com as quais temos uma profunda comunhão, pessoas que não vão nos destruir com sua crítica, mas que vão nos exortar em amor e orar conosco. A confissão é o intervalo do baile de máscaras.

Crescimento real A disciplina da confissão é a porta de entrada para conhecermos o crescimento real, verdadeiro. A confissão faz isso por meio de um efeito duplo: primeiro por que ao retirar as máscaras podemos tomar consciência da gravidade de nossas faltas e pecados, e segundo por nos depararmos com a necessidade de uma transformação real em lugar da atuação fútil. “A confissão também ajuda a evitar o pecado. Provérbios 28.13 diz que ‘quem esconde os seus pecados não prospera, mas quem os confessa e os abandona encontra misericórdia’. Obviamente, ‘confessar’ ajuda a ‘abandonar’, pois persistir num pecado dentro de um círculo íntimo de relacionamentos (sem mencionar a comunhão no corpo transparente de Cristo) é insuportável”37 35

FOSTER, Richard. Celebração da Disciplina, p.119 WILLARD, Dallas. O Espírito das Disciplinas, p.189 37 Idem. 36

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A confissão é o ambiente onde podemos ser redimidos do pecado e da hipocrisia, cuja finalidade é mascarar o pecado. Por isso o Apóstolo Tiago, no final de sua epístola, recomendou a confissão como caminho de crescimento e amadurecimento, de cura e transformação: “Confessai, pois, os vossos pecados uns aos outros e orai uns pelos outros, para serdes curados” Tiago 5.15a. Por causa de sua profundidade de comunhão e por seus efeitos libertadores, a confissão é uma vigorosa disciplina da vida cristã. A confissão pode nos levar a um conhecimento maior de nosso pecado e assim também da graça de Deus, pois o conhecimento de nós mesmos e o conhecimento de Deus são duas realidades interligadas, conforme nos ensinou Calvino. Quanto mais nos conhecermos, mas conheceremos o Pai.

O “b a ba” da confissão A disciplina da confissão deve ser articulada em um contexto de comunhão e confiança. Entretanto, para que os momentos de compartilhamento resultem em bênçãos e crescimento, devemos observar alguns princípios muito claros para que a coisa se desenrole direito. O primeiro princípio é que a experiência de compartilhar fraquezas e pecados deve ser feitas de maneira específica, clara e determinada. Não devemos generalizar ao dizer o que é o nosso pecado, numa tentativa de conservar nossa pretensa dignidade. “Uma confissão generalizada pode livrar-nos de humilhação e vergonha, mas não produzirá cura interior. As pessoas que foram a Jesus, foram com pecados óbvios, específicos, e cada uma delas foi perdoada. É muitíssimo fácil evitar nossa verdadeira culpa numa confissão geral. Em nossa confissão trazemos pecados concretos. Todavia, ao chamá-los de concretos, não me refiro somente aos pecados do coração: orgulho, avareza, ira, medo, bem como pecados da carne: preguiça, glutonaria, concupiscência, crime”38. O segundo princípio é deixar que o Espírito gere em nós o quebrantamento necessário para que a confissão seja profunda e sincera. Nos acostumamos a alguns pecados e dependendo da maneira como articulamos a confissão esta pode soar fria e indiferente. A tristeza é necessária a uma boa confissão. “A tristeza, no que se relaciona com confissão, não é antes de tudo uma emoção, embora esta possa estar presente. É uma repugnância por haver ofendido o coração do Pai. A tristeza é expressão da vontade antes de ser expressão das emoções. Em verdade, o estar emocionalmente triste sem uma tristeza piedosa e da vontade destrói a confissão”. 39 O terceiro princípio para a construção de uma confissão poderosa é a decisão determinada de abandonar o pecado. Confessamos nosso pecado orando para sermos curados da culpa, pedindo ao Espírito de Deus que renove em nós o desejo de não pecarmos mais. “Pedimos a Deus que nos dê um ardente desejo de viver santamente, e um ódio pela vida ímpia... Buscamos de Deus a vontade de ser libertos do pecado quando nos preparamos para fazer confissão. Devemos desejar ser conquistados e governados por Deus, ou, se não o desejamos, desejar desejá-lo. Tal desejo é um dom gracioso de Deus. A busca deste dom é uma das condições prévias para se confessar a um irmão ou irmã”40.

Como ouvir Quando estamos engajados em uma comunidade de suporte e comunhão, a confissão é articulada e ouvida por todos. Todos fazemos confissões e todos recebemos confissões. Portanto, olhando pelo lado de quem ouve a confissão, é necessário estabelecer princípios claros de audição que possam nos direcionar na tarefa de sermos cheios de graça e de justiça diante das vidas de quem ouvimos. Este é o nosso desafio: graça e justiça, sem exclusão de uma das duas mas ambas, e ao mesmo tempo. Disse Bonhoeffer: “Quem quer que viva sob a Cruz e tenha discernido na Cruz de Cristo a suprema fraqueza de todos os homens e de seu próprio coração, verificará que não existe pecado que lhe seja 38

FOSTER, p.123 Idem. 40 Foster, p.124 39

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estranho. Quem quer que outrora se tenha sentido horrorizado pela hediondez de seu próprio pecado que cravou a Cristo na Cruz, já não ficará horrorizado nem mesmo pelos mais grosseiros pecados de um irmão.”41 Precisamos ouvir com graça que resulta de uma profunda compaixão. Não estamos ali para determinar um juízo, mas para nos compadecermos, para orar e curar. Graça. Entretanto, a graça produz a justiça. Ouvir uma confissão quebrantada com o coração compassivo não deve nos fazer perder de vista o fato de que por amarmos o irmão devemos ouvi-lo, orar com ele, e então exortá-lo e animá-lo a a abandonar o pecado. Jesus nos ensinou assim ao ordenar a uma mulher que ele não julgou que não pecasse mais42. Graça que produz justiça! Ouça, ore, cure, e então exorte e anime, mostra a verdade da Palavra e fortaleça. Graça e justiça,

41 42

APUD FOSTER, p. 124 Evangelho de João, Capítulo 8, verso 11.

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O Serviço O Filho do Homem Homem não veio para ser servido, mas para servir Mateus 20.28

O monstro do orgulho Dentre os efeitos colaterais da queda, o mais destrutivo para a espiritualidade do homem e expressão mais clara do pecado é a auto-suficiência. A auto-suficiência foi um dos combustíveis da tentação no Éden, visto que Eva veio a desejar o fruto, em especial por causa dos efeitos que ele teria sobre sua condição de criatura (Gn 3). O fruto daria conhecimento, poder que faria com que ela e Adão não fossem mais meras criaturas mas semelhantes ao Criador. Assim, eles poderiam cortar qualquer vínculo de dependência e serem como deuses, auto-suficientes, e então não precisariam mais depender da bondade do Criador. A queda foi uma conseqüência da não aceitação da condição de criatura, o desejo de ser Criador. O desejo de ser seu próprio deus passar a habitar profundamente a alma humana desde a queda. Bertrand Russel, famoso pensador ateu do século XX, afirmou que “se fosse possível, todo homem gostaria de ser Deus. Apenas alguns poucos no entanto, admitem que é impossível”. Enquanto na antiguidade a sociedade levava o indivíduo a pensar mais socialmente, a modernidade ampliou tanto a margem dentro da qual uma pessoa pode agir sem levar em conta o outro que isso acabou desembocando em um tempo em que a maior coisa que existe é o “eu”, um eu auto-suficiente. A auto-suficiência tem expressão clara no orgulho humano, uma postura que pode se desdobrar em arrogância, um profundo sentimento de superioridade que rebaixa todos à nossa volta para nos sentirmos melhores e maiores. As Escrituras denominam essa postura de “soberba”. Por muitas vezes vamos ouvir os escritores bíblicos nos dizendo que o Senhor odeia a soberba: “Deus resiste aos soberbos” Tiago 4.6A. O orgulho não é uma característica exclusiva de uma pessoa ou outra, mas um lugar comum de todos nós filhos de Adão e filhas de Eva. O profundo desejo de não darmos satisfação de nossa vida a Deus e o sentimento de superioridade para com o próximo são sintomas que podem ser sentidos e cada coração humano. É importante notar que a soberba, ao contrário do que deveríamos esperar, é o caminho mais curto para a ruína e para a destruição. Como afirmou o autor de Provérbios, “a soberba precede a ruína, e a altivez de espírito a queda” 16.18.

O remédio perfeito Contudo, como para cada área destruída de nosso ser existe uma graça da parte do Criador, para o nosso orgulho e arrogância também há um remédio: a disciplina do serviço. “Pelo serviço, nós engajamos nossos bens e forças na promoção ativa do bem dos outros e da causa de Deus no mundo. Aqui temos de fazer uma importante distinção. Nem todo ato que pode ser feito como uma disciplina precisa ser feito como uma disciplina. Muitas vezes, eu serei capaz de servir a outras pessoas simplesmente como um ato de amor e de justiça, sem considerar como isso pode melhorar minha habilidade de seguir a Cristo. Certamente não há nada de errado com isso, e pode até fortalecer minha vida espiritual. Mas eu posso também servir a outras pessoas para me afastar da arrogância, do egoísmo, da inveja, do ressentimento e da cobiça. Neste caso, meu serviço é empreendido como uma disciplina para a vida espiritual”.43

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WILLAR, Dallas. O espírito das disciplinas, p. 183.

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O serviço é a nossa disposição de empregarmos nosso tempo, recursos e habilidades para servirmos as pessoas que estão próximas a nós, nos colocando em uma posição humilde com relação a elas uma vez que a estamos servindo. Obviamente, não é necessário sequer dizer que muitas pessoas que estão em posição de serviço não tem a motivação de servir. Podemos sentir superioridade e arrogância em seu serviço. Contudo, para que o servir seja de fato uma disciplina temos de compreender que servir não é apenas o que fazemos do lado de fora, mas o que fazemos do lado de fora a partir de uma motivação do lado de dentro. O serviço é a disciplina da humildade, a disciplina que nos ajudará a lidar com nosso orgulho tantas vezes descontrolado e inflado, para que venhamos a nos ver como de fato somos: homens e mulheres que temos defeitos e virtudes, e que dependemos absolutamente do nosso Criador.

O modelo de serviço A disciplina do serviço, como as demais, não deve ser feita de qualquer maneira, uma vez que não se trata do mero ato exterior de servir alguém mas sim de uma disciplina cujo objetivo é nos fazer mais semelhantes a Jesus. Obviamente, nosso modelo de serviço não poderia ser outro senão nosso Senhor e Salvador. Jesus viveu intensamente a realidade do serviço ao longo de sua vida. Curando os doentes, ensinando as multidões ou mesmo discipulando seu grupo de aprendizes, Jesus mostrou a todo tempo o serviço que vai em direção ao outro motivado pelo amor, cheio de graça e de verdade. Entretanto, nenhuma outra imagem nos mostra com tanta vida e cor o Jesus servo como a narrativa do lava pés que João nos legou em seu Evangelho (João 13.1-20). João nos conta que no início da última ceia o ambiente era bastante complexo e até meio turvo. Judas já tinha sido fisgado por Satanás e havia decidido de fato trair a Jesus. Jesus sabia que esses eram seus últimos momentos com seus aprendizes. Os discípulos estavam confusos, ansiosos imaginando o que aconteceria a seguir. No meio de toda essa agitação, Jesus, que era a pessoa mais honrada daquele banquete, o anfitrião, deixa seu lugar de honra e após tirar sua veste de anfitrião e tomar uma toalha, passou a assumir o lugar do mais simples reles escravo. O escravo que lavava os pés dos convidados de um banquete antes destes tomarem seus lugares era o mais baixo tipo social do tempo de Jesus, o menor entre os próprios escravos. Não é de se estranhar que Pedro tenha se sentido desconfortável ao ver seu Mestre naquela posição e tenha se negado a ter seus pés lavados, no que foi repreendido por Jesus. Após lavar os pés a todos, inclusive de Judas, Jesus passa então a esclarecer sua lição, mostrando que se ele mesmo havia servido os discípulos, então eles deveriam de semelhante maneira servir uns aos outros. “Eu dei o exemplo a vocês para que vocês façam da mesma forma” Jo 13.15 O serviço de Jesus por seus discípulos era a expressão mais clara de seu amor sacrificial por eles, o tipo de amor que o havia levado a abrir mão da eternidade para se tornar homem, o mesmo amor que o levaria para a cruz. Amor sacrificial. Nosso modelo de serviço é o próprio Jesus, que lavou os pés de seus aprendizes e morreu por eles e por nós. Paulo foi alguém que compreendeu a lição de serviço de Jesus, embora não tenha sido um dos primeiros discípulos. Na abertura das epístolas escritas aos romanos (1.1) e aos gálatas (1.10), Paulo usa um termo grego para se referir a si mesmo: doúlos. O doúlos era o escravo responsável por lavar os pés dos convidados dos banquetes, bem como lavar as latrinas e outros serviços que lhe eram atribuídos. Este escravo era o menor entre os escravos. Certamente Paulo havia compreendido a lição de Jesus, e embora tenha sido o mais operoso dentre os apóstolos, não governou com poder ou mesmo orgulho sobre as comunidades que plantou ao longo de suas viagens missionárias, mas a serviu com o mesmo espírito e disposição que Cristo antes havia lavado os pés aos seus discípulos.

A Motivação de Servir Para que o serviço venha se tornar uma disciplina poderosa em nossas vidas, é necessário que a motivação esteja alinhada com as motivações do próprio Jesus Servo. O apóstolo Paulo deixa claro essa

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necessidade de uma motivação acertada em sua Epístola aos Filipenses, capítulo 2, versos 1 ao 11. Este trecho, conhecido como Hino da Kenosis44, nos mostra que para alcançarmos uma comunhão baseada em amor e unidade, que é o contrário do orgulho e da arrogância, devemos estar cheios de humildade, considerando o nosso irmão superior a nós mesmos! (v.3). Isto fará com que nos preocupemos com nosso semelhante de maneira a não nos preocuparmos só conosco mesmos, mas com ele também. Contudo, como vamos conseguir esse desprendimento de considerarmos nosso próximo superior a nós mesmos e servi-lo? A partir do verso 5, Paulo começa então a invocar o exemplo de Jesus, que mesmo sendo Deus, se esvaziou tornando homem, tornando-se servo, caminhando para a morte em nosso lugar, morte de cruz. Paulo nos mostra o exemplo de Jesus que se esvaziou, descendo e descendo cada vez mais até a cruz. A única motivação que pode tornar nosso serviço uma disciplina em que Cristo venha crescer em nós é o amor que nos leva a nos esvaziarmos assim como Jesus, por amor a nós, se esvaziou. Assim como Jesus lavou os pés de seus discípulos por amá-los, devemos servir, pois o amor “não se ensoberbece” e “não procura os seus interesses” 1Co 13.4,5.

Transformando o cotidiano Embora o serviço seja a expressão mais clara da consciência humilde do discípulo, assim como nas demais disciplinas o serviço é alguma coisa que fazemos. Em primeiro lugar, a consciência de servo irá transformar o nosso cotidiano, pois somos levados a muitos atos de serviço durante a nossa semana. Entretanto, como já vimos antes, podemos fazer essas coisas sem a devida disposição interior de servir o outro em amor, e por isso grande parte das coisas que fazemos são apenas cumprimento de tarefas e não produzem transformação em nós. Lavamos a louça por obrigação, fazemos favores por mera etiqueta social e cumprimos tarefas por que elas precisam ser feitas. A consciência de servo vai nos levar a uma reformulação, a uma profunda ressignificação do nosso cotidiano, pois aprenderemos a ver nessas mesmas coisas que fazemos uma forma de servir a Jesus e aprender a sermos mais parecidos com Ele através do serviço. Nesse primeiro momento, não precisamos pensar em novas formas de servir, mas precisamos aprender a fazer as coisas que já fazemos agora com a disposição interior correta. Lavar a louça, fazer compras no supermercado, enxugar uma água que caiu no chão, ensinar seus pais a mexer no computador ou a digitar uma mensagem de texto, ajudar o irmão mais novo com a lição de casa, etc... A lista de coisas que podemos transformar através da disciplina do serviço é muito vasta e se adapta à vida diária de cada um, mas o essencial é não perdermos de vista que precisamos aprender a tornar nosso serviço expressão do nosso amor pelas pessoas a quem servimos. O serviço feito em amor e humildade certamente tocará as pessoas que servimos e também nos transformará dia após dia em discípulos cada vez mais parecidos com Cristo. Nesse primeiro plano de ação da disciplina do serviço, precisamos visualizar coisas que temos que fazer com certa regularidade, coisas que não gostamos de fazer e nos indagarmos sobre o por que de não gostarmos de fazer estas coisas. Podemos descobrir que as razões podem ir desde a preguiça até mesmo a sentirmos uma desconfortável sensação de humilhação ou rebaixamento. É justamente nesses momentos que precisamos nos lembrar do exemplo que Jesus deu aos seus discípulos lavando seus pés, exemplo que deve libertar nosso coração do orgulho que prefere ser servido a servir.

Transformando a agenda Além de nos ajudar a reformular o nosso cotidiano a disciplina do serviço irá, em um segundo momento, abrir nossos olhos para novas possibilidades de vida. A disciplina do serviço nos levará a imaginar formas novas e poderosas de servir as pessoas que estão à nossa volta, em projetos pessoais e coletivos, articulados e espontâneos. 44

O termos kenosis vem do grego e significa esvaziar-se, mostrando que esse trecho revela o processo de esvaziamento de Jesus de si mesmo para se colocar ao nosso lado como Servo Salvador.

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A disciplina do serviço pode nos levar a um engajamento em ministérios na nossa comunidade, projetos de ação social em nossa cidade e em muitos casos podemos até mesmo começar a sonhar em iniciar projetos de serviço para alcançar comunidades específicas ou públicos específicos. Freqüentemente estamos preocupados com nossas necessidades e a disciplina do serviço nos levará a perceber pessoas e comunidades cujas necessidades são tão grandes e cujos recursos são tão pequenos. Na verdade, não precisamos ir muito longe para descobrir que já existem diversos projetos em nossa cidade visando atingir públicos dos mais diversos, programas nos quais podemos nos engajar investindo nosso tempo, habilidades e recursos visando o bem do outro. O serviço cristão é um dos ingredientes mais poderosos da ação missionária da igreja no mundo. Uma igreja que serve o mundo apresenta o Jesus Servo que veio para servir e não para ser servido.

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A Adoração Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus, o TodoTodo-Poderoso, Poderoso, aquele que era, que é e que há de vir Apocalipse 4.8B

Reconhecimento do Grande e do pequeno Adorar é uma expressão que pode denotar formas muito amplas de dirigir-se ao Pai. De fato, a adoração pode ser compreendida como o contexto inteiro dentro do qual nos relacionamos com o Criador por meio de seu Filho. A adoração é o ambiente dentro do qual a criatura, ciente de sua pecaminosidade e pequenez, se rende à majestade e à grandeza de Deus Pai. Contudo, a disciplina da adoração, para se tornar alvo de prática constante e disciplina, precisa ser um campo restrito dentro do qual venhamos a nos engajar em uma prática de devoção ao Pai. Por isso mesmo, podemos afirmar que enquanto disciplina, a adoração consiste na verdade de que “reconhecemos e expressamos, por meio de pensamentos, palavras, rituais e símbolos, a grandeza, a beleza e a bondade de Deus. Fazemos isso individualmente e também com o povo de Deus. Adorar é reconhecer Deus como digno, atribuindo a Ele grande honra”.45 Adorar é reconhecer que o Criador é único, é Ele mesmo e não outro, e isso implica em assumir nossa condição pequena, dependente e por isso mesmo tão cheia de admiração por um Pai que é eterno, poderoso e cheio de majestade. A adoração nasce da consciência de que, apesar de nossa arrogância e pretensão, não somos deuses, e que portanto só há um Deus e Senhor. Esse efeito duplo de aceitação de quem somos e do reconhecimento do único Eterno é chamado por João Calvino de conhecimento duplo. Para Calvino, quanto mais nos conhecemos mais conhecemos a Deus, e quanto mais conhecemos a Deus mais compreendemos e conhecemos a nós mesmo num ciclo que não pode ser desligado. Em suas próprias palavras: E assim na consciência de nossa ignorância, presunção, miséria, fraqueza, enfim, de nossa própria depravação e corrupção, reconhecemos que em nenhuma outra parte, senão no Senhor, se situam a verdadeira luz da sabedoria, a sólida virtude, a plena abundância de tudo que é bom, a pureza da justiça, e daí somos por nossos próprios males instigados à consideração das excelências de Deus46.

Calvino faz ecoar a voz de Agostinho, que muitos séculos antes havia declarado: “Dupla é a confissão: a do pecado e a do louvor”.47 O profundo conhecimento de nosso próprio pecado é que nos arrebata aos braços amorosos de nosso Senhor em louvor e adoração, em um conhecimento cíclico que não pode ser desligado, pois quanto mais reconhecemos quem o Senhor é, mais nos tornamos conscientes de nossa profunda debilidade e dependência.

Ajoelhar-se diante do Digno Uma história que nos ajudar a perceber as implicações profundas da adoração é justamente a narrativa em que ocorre pela primeira vez a palavra “adoração” nas Sagradas Escrituras. O termo “adorar” é usado 45

WILLARD, Dallas. O espírito das disciplinas, p. 178 CALVINO, João. As Institutas, Volume 1, p.47 47 AGOSTINHO. Confissões, Livros VII, X e XI. Covilha: Universidade da Beira Interior, 2008, p.8. 46

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pela primeira vez na narrativa em que Abraão e Isaque vão juntos à região de Moriá para que o pai possa ali oferecer seu filho como obediência ao comando do Senhor (Gn 22.1-19). No verso 5, Abraão diz aos seus empregados que esperem ali enquanto ele e Isaque vão adorar ao Senhor. Todos sabemos que Abraão não estava indo fazer uma simples oração ou uma oferta de holocausto comum ao Senhor no alto do monte. Ele estava prestes a sacrificar seu filho unigênito para poder cumprir, obedecer, o comando que o Senhor Deus lhe dera (Gn 22.1,2). Aqui, tanto a atitude de Abraão quanto o sentido literal do termo hebraico “adorar” lançam luzes abundantes sobre o que significa a adoração. O termo hebraico traduzido como “adorar”, significa literalmente ajoelhar-se diante de alguém ou algo, reconhecendo a dignidade e honra daquele diante de quem se ajoelha. É uma atitude cheia de reconhecimento e humilhação simultâneas. A atitude de Abraão é totalmente compatível idéia do termo, pois é uma rendição total ao Senhor e sua vontade. A adoração é permeada dessa profunda atitude de entrega, reconhecimento e humilhação diante do Único e verdadeiro Deus.

Seres Teo-referentes Embora adorar seja inicialmente o movimento através do qual “reconhecemos e expressamos, por meio de pensamentos, palavras, rituais e símbolos, a grandeza, a beleza e a bondade de Deus”,48 adoração como disciplina também propõe uma mudança completa nas nossas prioridades e na forma como os nossos amores e paixões se organizam. Na verdade, o tema de ter o Senhor como o objeto do nosso maior amor e alegria se encontra estendido por toda a Sagrada Escritura, explícita no conflito entre a adoração ao Deus verdadeiro e a idolatria aos falsos deuses. Devido à maneira como foi criado, o homem possui um instinto religioso, uma busca interior por uma realidade maior do que ele, aquielo que João Calvino chamava de sensus divinitatis, ou, semen religiones. Conforme Calvino, “Deus dotou os seres humanos de um senso ou pressentimento inato sobre sua existência. É como se algo sobre Deus tivesse sido gravado no coração de cada ser humano.”49 Deus criou o homem para si mesmo, para que sua criatura se deleitasse profundamente em seu Criador, e embora a queda tenha separado e alienado o homem de seu fim último, seu Criador, ainda sim não apagou ou arrancou essa semente religiosa incrustada dentro de seu coração que o leva sempre a desejar por uma realidade que lhe dê sentido à existência. É devido ao fato de ter sido criado por Deus e para Ele que o homem é um ser teo-referente, ou seja, um ser que precisa de algo que transcenda seu mundo para dar sentido à sua vida, seja esse algo o Criador ou algo que é posto em seu lugar, ou seja, um ídolo. Oliveira explica o sentido do termo: “ ‘Teo-referência’ é um conceito empregado por D. C. Gomes para indicar que Deus é o ponto de referência último de toda existência tanto do homem regenerado, pelo poder do Espírito e da Palavra de Deus, quanto do homem não-regenerado”.50 Ou seja, o homem toma Deus como fim último de suas motivações e intenções, seja de forma positiva, voltando-se ao Criador como fim último de sua vida em adoração, seja de forma negativa, negando seu senhorio ou entregando-se a algo de que o homem possa se valer como finalidade de sua existência. O fato é que o homem precisa de algo que lhe dê sentido à vida, e se essa realidade última não for o Criador, será alguma outra coisa, nesse caso um deus criado, um ídolo. A idolatria não se resume à adoração e veneração de imagens e esculturas pelos povos antigos e religiões pagãs, mas a própria “Bíblia internaliza o problema. ‘Ídolos do coração’ são graficamente representados em Ezequiel 14.1-8. A adoração de ídolos tangíveis é, perigosamente, a expressão de um abandono deliberado do Senhor que acontece no coração”.51

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WILLARD, Dallas. O espírito das disciplinas, p. 178 Institutas, livro I, p. 113. 50 OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Reflexões críticas sobre weltanschauung: uma análise do processo de formação e compartilhamento de cosmovisões numa perspectiva teo-referente. In: Fides Reformata XIII: (2008), p. 31, nota 1. 51 POWLISON, David. Idols and the “vanity fair”. In: The Journal od Biblical Counseling XIII: (1995), p.36 49

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Adoração versus Idolatria Devido à sua condição teo-referente, o homem que não se volta para o Criador acaba elevando algo bom da criação à condição de realidade última. Tim Keller explica de forma clara a realidade da idolatria: “O pecado não é somente fazer coisas ruins, mas é mais fundamentalmente tornar coisas boas em realidades últimas. Pecado é construir sua vida e sentido sobre qualquer coisa, mesmo que seja uma boa coisa, ao invés de construí-la sobre Deus. Qualquer coisa sobre a qual construímos nossa vida nos dirigirá e nos escravizará. Pecado é primeiramente idolatria”.52 A adoração é o movimento pelo qual nos voltamos dos nossos ídolos do coração para o Senhor, para obter dele o sentido, a paz, a alegria e a realização que estamos buscando em outros salvadores como dinheiro, sexo, status, família e trabalho. Não há um terceiro caminho a seguir: ou estamos rendidos ao Criador ou estamos adorando algo que fora criador, fazendo dessa realidade o fim de nossa existência. A adoração como disciplina propõe discernirmos os ídolos do nosso coração, reconhecer sua influência sobre nós e nos libertarmos deles através da cruz de Jesus Cristo. A adoração é voltar-se para o verdadeiro Deus.

Enfocar o caráter de Deus A adoração é a disciplina que volta nossos olhos para o Senhor, e nos leva a meditar profundamente sobre os atributos do nosso Criador. Na adoração reconhecemos quem o Senhor é e o reconhecimento de quem nosso Criador é certamente nos levará a meditar na beleza do seu caráter. Por isso, a adoração também consiste em que nos deixemos absorver pelas perfeições de ser de Deus, nos deleitando n´Ele. Entretanto, embora a adoração seja a disciplina através do qual contemplamos o caráter de Deus, o conhecimento do caráter do Criador vem a nós por meio das Escrituras Sagradas. Por meio da disciplina da meditação nas Escrituras, a revelação que Deus faz de si mesmo, vemos o próprio Deus da Palavra revelado em sua Palavra. As Escrituras então são o lugar onde o Criador se apresenta e mostra seu caráter por meio de atos de salvação e de seus atributos que são amplamente revelados. A Confissão de Fé de Westminster, no capítulo 2, parágrafo 1 nos diz assim: Há um só Deus vivo e verdadeiro, o qual é infinito em seu ser e perfeições. Ele é um espírito puríssimo, invisível, sem corpo, membros ou paixões; é imutável, imenso, eterr no, incompreensível, onipotente, onisciente, santíssimo, completamente livre e absoluto, fazendo tudo segundo o conselho da sua própria vontade, que é reta e imutável, e para a sua própria glória. É cheio de amor, é gracioso, misericordioso, longânimo, muito bondoso e verdadeiro galardoador dos que o buscam, e, contudo, justíssimo e terrível em seus juízos, pois odeia todo o pecado; de modo algum terá por inocente o culpado.

Cremos que o Senhor revelou a si mesmo por meio da Sagrada Escritura, mostrando seu caráter que é perfeito, justo e bondoso. A Bíblia é então essa lente através da qual vemos claramente e sem qualquer distorção a beleza do caráter do Pai. Na meditação das Escrituras compreendemos as verdades relativas ao caráter do Senhor, na adoração nos deleitamos no próprio Senhor, trazendo o conhecimento profundamente enlaçado com um espírito de rendição, uma atitude de adoração e de louvor.

Adoração e louvor A adoração é uma disciplina completa, enriquecedora e poderosa para nos transformar em discípulos de uma fé profunda e atuante. Por meio da aceitação de nossa condição de criatura, da rendição do ser, do abandono dos ídolos e da contemplação do caráter do Pai, a adoração como disciplina pretende nos levar a finalmente irromper em louvor diante do Criador. O louvor é a expressão da grandiosidade do Criador de maneira a verbalizar a adoração, e pode ocorrer por meio de orações, canções, gestos ou atitudes físicas,

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KELLER, Timothy. Talking about idolatry em a postmodern age, p.3.

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enfim, qualquer forma que exteriorize o reconhecimento interior e verdadeiro de que o Senhor é perfeito em seu caráter e digno de louvor. A adoração une os laços entre Criador e criatura que foram perdidos na queda. Quando entramos na presença do Pai por meio de Jesus Cristo para adorá-lo e reconhecer sua grandeza e poder por meio da adoração estamos voltando para nosso primeiro lar, estamos fazendo aquilo que fomos criados para fazer, estamos nos deleitando em nosso Criador. Quando o homem de Deus foi levado aos céus, pôde ver claramente e ouvir limpidamente o que lá estava acontecendo. Em trechos do livro de Apocalipse que funcionam como pequenas articulações entre os grupos de visões, João nos relata como é o lugar em que o Senhor habita (Apocalipse 5:6-14; 7.9-12). João vê seres celestiais se prostrarem diante de Jesus e adorá-lo, vê e ouve a voz dos remidos a louvar e glorificar o Redentor pela salvação. Todo o livro de Apocalipse é temperado com esse profundo espírito de louvor e adoração que ritmadamente mostra o triunfo de Jesus em meio aos sofrimentos da igreja enquanto esta é perseguida e oprimida por seus inimigos terrenos e diabólicos. Afinal, a adoração não é algo que fazemos por enquanto, uma paliativo ou coisa parecida. A adoração é o que nascemos para fazer, é o fim último de nossa existência. O homem foi criado pelo seu Criador, para o seu Criador, e a adoração não cessará nunca. A eternidade será um continuum de amor, de relacionamento, de beleza, de contentamento entre a criatura e seu Criador. Enfim, a eternidade será adoração.

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Conclusão O Gap Constantemente nos confrontamos com uma distância enorme que separa o que somos do que gostaríamos de ser como discípulos. Os dias da conversão já estão longe, mas mesmo depois de tanto tempo de fé cristã, depois de tantas pregações ouvidas e tantos cultos freqüentados continuamos sem experimentar crescimento relevante e profundidade apaixonante em nosso relacionamento com Jesus. Todos temos que admitir que essa distância entre o que somos e o que deveríamos ser existe. Essa distância, esse gap53, de fato existe e é justamente nesse lugar que as disciplinas espirituais entram. O papel das disciplinas espirituais é nos levar a viver, experimentar tudo aquilo que conhecemos teoricamente a respeito da fé cristã. Uma vez que estamos em Cristo e abraçamos as verdades da Sagrada Escrituras, “precisamos fortalecê-las no restante de nossa vida por meio de atividades específicas que tem por objetivo tornar as narrativas reais não somente para nossa mente, mas também para nosso corpo e alma”.54 Logo, as disciplinas não acrescentam justiça à nossa vida, como se fosse uma suplementação ao que Cristo fez por nós na cruz, mas são meios de alcançarmos sabedoria refletida em uma nova forma de vida. As disciplinas, portanto, são a ponte que completa esse gap e torna possível a transformação de nossos hábitos e caráter à luz da justiça de Jesus Cristo. As disciplinas não são apenas coisas religiosas que fazemos como forma de confirmar nossa fidelidade a uma denominação ou comunidade religiosa, mas são de fato a forja espiritual na qual somos formados em Cristo. Logo, devemos praticar as disciplinas a fim de podermos nos tornar discípulos que reproduzem em suas próprias vidas a vida de Jesus.

Práticas do dia-a-dia Algo que devemos manter em mente a respeito das disciplinas é que elas são sempre coisas que fazemos, ou seja, são novas práticas, novos hábitos. As disciplinas são a fé em ação, em movimento constante e consciente em direção ao Pai e ao próximo. Ao manter o lado prático das disciplinas em nossa mente, percebemos logo a implicação prática de que não é o bastante saber que oração é o importante mas é preciso separar tempo para orar. Não é o suficiente reconhecer que a Escritura Sagrada é Palavra de Deus, nossa regra de fé e prática, mas é necessário separar tempo e espaço para meditar na Palavra. Não basta saber, é preciso fazer, é preciso praticar e por isso mesmo o nome “disciplinas espirituais” vem bem a calhar para mostrar que o que realmente está em questão aqui é você realizar as práticas devocionais assim como o esportista encara sua disciplina de treinos e provas a fim de habilitar seu corpo aos movimentos e à vitória. A palavra “disciplina” também mostra uma perspectiva das práticas devocionais que é muito importante: as práticas devocionais não são intervenções que fazemos esporadicamente, de vez em quando, em nossa vida religiosa. São o arroz e o feijão da espiritualidade, o escovar de dentes, o amarrar dos cadarços, ou seja, coisas que fazem parte do nosso dia-a-dia, nossa rotina e cotidiano. Oramos, lemos a Escritura e nos voltamos para a solitude não somente quando as coisas saem ao controle ou os problemas e crises nos esmagam, mas sempre. Dia após dia, nos envolvemos com a oração e a Escritura, sendo moldados a cada dia e todo dia pela graça do Pai revelada em Jesus Cristo. A não ser que as disciplinas sejam praticadas regularmente, não veremos crescimento consistente em nossa condição de discípulos. Portanto, nosso desejo é que após dedicarmos tanto tempo estudando as disciplinas espirituais você possa sentar calmamente, analisar sua agenda e formular um plano para colocar o quanto antes estas disciplinas em sua rotina. Sempre achamos tempo para o que é prioritário para nós e se você pôde compreender o quanto essas práticas são essenciais para sua caminhada cristã, certamente você encontrará uma maneira de experimentá-las em sua vida. Que o próprio Espírito de Cristo te fortaleça para que você se engaje nas práticas espirituais e assim cresça em Cristo e deixe Cristo crescer em você a cada dia. 53 54

Termo inglês que quer dizer “intervalo, espaço entre duas realidades”. SMITH, James Bryan. O maravilhoso e bom Deus.São Paulo: Editora Vida, 2010, p.31

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Encontros em Pequenos Grupos Esse material a princípio foi escrito para aulas de escola dominical. Então, para facilitar e estudo em pequenos grupos segue uma tabela com 26 encontros programados, dividindo os capítulos em blocos menores. A tabela indica onde a leitura começa e onde termina (por exemplo, o primeiro encontro inicia no tópico “Introdução” e finaliza após a leitura do tópico “Mas afinal, do que se trata?”). Os encontros poderão ser realizados semanalmente e o grupo poderá discutir como aplicar as disciplinas e os resultados das mesmas.

Encontros

Data

Visto

1. Introdução – Mas afinal, do que se trata? 2. O começo – Meditação e Leitura 3. Todo ouvidos – Galgando os níveis 4. O como – Dicas 5. Lectio Divina 6. Conversar com o Criador – O canal da oração 7. Jesus e sua escola de oração – O conteúdo da oração 8. Logística de Oração – Oficina de Oração 9. Verticalidade e horizontalidade – Metodologia da Oração 10. A Disciplina mal falada – Evitando as ciladas 11. Motivação acertada – Logística da entrega 12. Jesus em solitude – A Disciplina da verdade 13. Solitude, não solidão – A margem 14. A difícil tarefa de calar – Exercícios de silêncio 15. Comunidade – A disciplina do relacionamentos 16. Espiritualidade comunitária – Construindo comunidade com amor 17. Culto comunitário – Engajado em uma comunidade 18. Baile de máscaras – Crescimento real 19. O “b a ba” da confissão – Como ouvir 20. O monstro do orgulho – O remédio perfeito 21. O modelo de serviço – A motivação de servir 22. Transformando o cotidiano – Transformando a agenda 23. Reconhecimento do Grande e do pequeno – Ajoelhar-se diante do Digno 24. Seres Teo-Referentes – Adoração Versus Idolatria 25. Enfocar o Caráter de Deus – Adoração e Louvor 26. O gap – Práticas do dia-a-dia

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Referências AGOSTINHO. Confissões, Livros VII, X e XI. Covilha: Universidade da Beira Interior, 2008, p.8. BONHOEFFER, Dietrich. Vida em comunhão. CALVINO, João. As Institutas, Volume 1, p.47 Catecismo menor de Westminster. CÉZAR, Élben M. Lenz. Prática Devocionais. Confissão de Fé de Westminster. FOSTER, Richar J. Celebração da Disciplina. p.79 HUNTER, James. O monge e o executivo, p.62. KELLER, Timothy. Talking about idolatry em a postmodern age, p.3. O. Hallesby. no livro “Oração”, página 7. OLIVEIRA, Fabiano de Almeida. Reflexões críticas sobre weltanschauung: uma análise do processo de formação e compartilhamento de cosmovisões numa perspectiva teoreferente. In: Fides Reformata XIII: (2008). PETERSON, Eugene. O pastor segundo o coração de Deus. São Paulo: Textus, 2000. POWLISON, David. Idols and the “vanity fair”. In: The Journal od Biblical Counseling XIII: (1995), p.36 SMITH, James Bryan. O maravilhoso e bom Deus.São Paulo: Editora Vida, 2010, p.31 WARREN, Rick. Uma vida com propósitos. WARREN, Rick. 12 Maneiras de Estudar a Bíblia Sozinho. WILLARD, Dallas. O espírito das disciplinas.

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