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CLEUSA TELLES GUIMARÃES
O banheiro serve a tantas coisas que é onde mais me empenhei na decoração, na transformação, enfim, é o melhor lugar para se estar na minha casa. O tapete mais bonito, as plantas mais verdes, os quadros que mais me agradam, as fotografias mais repletas de boas lembranças, a vela acesa de chama mais devota. Os objetos que me são mais caros estão lá. Escolhi o meu banheiro para nele acomodar uma estante muito bonita metade ela própria, metade escrivaninha, que abriga os meus livros de culinária que não são poucos; logo à vista está À mesa com Proust. No meu banheiro, se se folhear muito, acha-se uma boa paella valenciana, reais fajitas com mole de chocolate, original shakshouka israelense, maravilhosa moqueca de badejo com camarão, saboroso risoto aos cinco cogumelos, peras recheadas com sorvete de baunilha e banhadas com calda de chocolate quente, o verdadeiro tiramissu com mascarpone e delícias mais. O banheiro é o lugar ideal para se comer escondido.
FATOS FITAS POESIA
“...
Sumário
9
A vaca
13
Infantis?
20
Caieira
25
Profissionalismo
28
Cocô bola
35
Traíra
42
Mãe, você pensa?
46
Amor cachorro
49
Privilégio
56
Nenúfares
67
Pitecantropa
73
Ah!...
76
Curiosidade
83
Curvas e prazeres
91
Gestos
96
Dulcería de Celaya
105
Empadinha de chocolate
109
Liberdade
114
Natália
117
Pontos e cruzes
124
Caminhada na Praça da Liberdade
129
Pela metade
134
Comendo com o nariz
137
Existe?
140
Stael
142
Ora-pro-nóbis
145
Pimenta de bico
148
Carta a Nadia Gotlib
152
A rosa
155
Circunstâncias
160
Se me bastassem!
166
Quem é ela?
167
Cerrado
169
Icebergs
170
Alcançável
172
Três putas
174
De que morre um beija-flor?
176
Almas
178
O coque
180
O voo
182
O retrato
184
Ah! Aquele olhar!...
187
D. Sinhá
Apresentação
Esta é uma coletânea de crônicas, textos e reminiscências para homenagear os setenta anos da Cleusa. Um presente de toda a família para exibir a sua linda escrita que trata de temas, emoções e sentimentos os mais variados possíveis, amarrados por uma fita de minúcias e delicadezas. Mas a bela escrita não é o seu único dom: cozinheira de mão cheia, faz pratos deliciosos que nem o mais sensível chef consegue fazer igual. Condimenta daqui, salpica de lá, corre de cá e, ao final, tem-se uma comida sofisticada, impecável, prazerosa ao mais exigente dos paladares, assim como sua escrita. Se é difícil entender tanta sensibilidade para escrever e cozinhar, não é mais fácil explicar a pessoa dessa escritora nascida na pequena cidade de Poté. Talvez apenas outra criança, tão criativa e vivaz quanto ela, consiga fazer um esboço, ainda que singelo, da Cleusa. Para Nina, sua netinha de cinco anos, a vovó é artista. A vovó é engraçada e faladeira. A vovó é maluca. A vovó é muito egagerada: mais camarão! Mais purê de batata! A vovó gosta de cores vivas. Ela gosta de roupas bonitas. Quando toma café, faz bico com os lábios, igual girafa. Mamãe falou que foi o tio Vinícius que falou isso. Ela gosta de tomar café. A vovó é mais inteligente do que a mamãe. Por quê?
Porque ela sabe mais coisas porque viveu mais. A vovó é brava e gosta de viajar e de praia. A vovó fica úmida quando entra no mar. Ela faz comida gostosa: capeletti. Conta histórias de bruxa muito bem. Ela tem muita ernegia. É a melhor vó do mundo.
A vaca Planta-se árvore, planta-se ideia, planta-se tapa na cara; mas vaca plantada só existe mesmo na Rua Leopoldina, Santo Antônio. Grandona! Peituda! Lá está ela. Pintada de branco com algumas bolotas amarronzadas. E não é que a vaca foi mesmo plantada? Isto mesmo! Plantada! Percebi isso logo quando me mudei para a rua vizinha. Passaram-se duas semanas e a vaca não havia sido removida. Até hoje não sei quem plantou a vaquinha bem no meio do passeio da Rua Leopoldina. Suponho ter sido algum artista plástico conceituado. Já pintaram e bordaram com essa pobre vaquinha. Já foi preta, roxa, verde e muitas cores mais. Um dia apareceu sem as tetas, e logo mil indagações surgiram sobre quem tivera a coragem de tamanha maldade. Julgou-se que tivesse sido algum menino de rua, faminto, tentando achar leite, ainda que fosse empedrado. Mas eu não acredito que essa fome o tenha levado a comer as tetinhas, não. Creio que foi mesmo um maníaco cruel e muito entendido mesmo. A perícia com que foi feita a curetagem em suas bases escalavradas impressionou: algodãozinho, gases, esparadrapos, tinta vermelha imitando sangue, etc… Graças a Deus 9
que dona Vaca é assim, uma vaca gorda, forte, cimentuda. Continuou lá, feliz da vida, sem arredar um pé. Mas não pensem que esse foi o único ato de vandalismo que a pobrezinha sofreu. Não! Arrancaram-lhe o rabo, furaram-lhe os olhos, cravaram-lhe nas entranhas picareta e coisas outras. Um dia, enfiaram-lhe no cuzinho pétreo uma bandeira da Tchecoslováquia, uma do Japão e outra da Chechênia (estranhíssimo! Pelo menos se fosse uma brasileira!). Mas não me entristeço, não, porque o pai da vaca, a mãe (ninguém sabe quem a projetou e modelou), está sempre consertando a pobrezinha. Ela amiúde recebe manifestações de carinho: no dia das mães, por exemplo, ela ganhou um lindo vaso de crisântemos dourados, que naturalmente foi logo roubado; numa manhã de inverno amanheceu com uma capa vermelha: Chapéuzão Vermelho protegendo-se de lobos humanos sem coração nem piedade. Numa primavera ficou uma graça ao aparecer toda desenhadinha de flores coloridas. Numa sexta-feira da paixão ela foi toda vestida de preto. Num Carnaval ganhou, de verdade, uma fantasia de pierrot. Mas naturalmente que ela nem sempre é consultada sobre que indumentária ou adereço lhe cai bem: no Natal passado tentaram vesti-la com uma roupa de Papai Noel, e a maior esquisitice não foram as longas barbas brancas, mas o rabo, que não quiseram ocultar. Esta ideia de plantar é muito interessante: planta-se semente de verdade, da fé, plantam-se mudas, planta-se gente, quando se diz “plantou-se em frente à loja”, plantou-se uma vaca, e, por incrível que pareça, planta-se cocô. A vaca foi, por sinal, muito bem plantada, pois, apesar de ter sido marretada, agredida, estuprada, até, permaneceu lá. Esqueci-me de contar: uma vez, desceu a Rua Leopoldina um caminhão destrambelhado que destruiu grande parte da sua cobertura de cimento; dilacerou-lhe as entranhas, 10
pondo à mostra os seus intestinos metálicos. Não caiu por terra, não berrou, não babou, não verteu uma única lágrima, mesmo que fosse um sumo duro e esverdeado do cimento que a compõe; e ao ser reestruturada, nem protestou para desistir de continuar levando a vida de vaca pública, filha de todos, e parida das mãos de um humano. Mas voltando ao aludido plantio do cocô, aconteceu-me de ver, durante muito tempo, um baita cocô plantado à minha porta. Só que havia uma grande diferença: alguém o plantava à noite e eu acabava com ele pela manhã. O cagador noturno, de certa forma, era tão artista quanto o da vaca. O cocô lembrava um daqueles artificiais, comprados prontos, muito bem feitos, lustrosos, com aquela pontinha enroladinha e depois afiladinha lá em cima e que a gente por brincadeira põe na mão de um amigo a quem se pediu para fechar os olhos. Esse cocô me fez muita raiva, mas graças a Deus era plantado sempre no mesmíssimo lugar. Eu já podia, de olhos fechados, desintegrá-lo com jatos fortes de mangueira sem ter que me dar cu a cu com ele todas as manhãs. Até ocorreu a mim e ao meu marido estar de vigília para descobrir o desavergonhado defecador: arranjaríamos uma espingardinha e no momento fatal daríamos um tiro a esmo para que o desgraçado se assustasse e fizesse, pelo menos, o maldito incompleto. E, para nossa vingativa satisfação, ele passaria a ser um artista frustrado, com uma obra inacabada, pela metade. A vigília não ocorreu, mas alguma coisa aconteceu e o cocô já não mais existe. O cagatório, como já era chamada a área por toda a família, ficava entre um poste de luz e uma enorme e linda árvore, que tendo estendidos seus longos braços, só colaborava com o cagador misterioso, não permitindo ao poste iluminar o que deveria. Aconteceu que a árvore começou a desfolhar-se e foi secando, secando, e nós gracejando, dizendo que ela estava 11
era morrendo de tanto respirar, toda noite, o cheiro do “maldito”. Mas um dia, passando debaixo dela, meu marido percebeu que um pó muito fininho caía lá de cima, incessantemente. Os cupins atacaram-na, e não houve jeito. Telefonamos para a prefeitura para que a cortasse, apesar de ser muito triste cortar uma árvore, ainda mais uma tão bonita. Mas, de qualquer jeito, um dia ou outro ela despencaria de sua nobreza secular, causando prejuízo a nós ou a algum passante, que, no mínimo, para nossa infelicidade, não seria o famigerado cagador. Sabe-se lá? Talvez a pobre tivesse desistido de viver na condenação desditosa de abrigar todas as noites um cagador e sua obra imunda. Será que a exemplo de certas pessoas, que, inconscientemente atraem para si doenças fatais, tenha ela invocado os cupins? A novela dos cupins, embora menos suja, foi tão comprida quanto à do cocô. Durante uns sete ou oito meses telefonamos diariamente para a prefeitura pedindo para que cumprisse a promessa do corte da árvore; e esse foi o tempo que aguentamos lavando o cagatório todas as manhãs daquele pedaço de nossas vidas. A árvore morreu, o poste iluminou, o cagão sumiu. E a vaquinha da Rua Leopoldina? Não foi para o brejo. Continua lá, para o que der e vier. Gosto muito dessa vaquinha! Mas… fico imaginando vacas e mais vacas esculpidas em todos os passeios de Belo Horizonte!
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Infantis? Estava eu um dia passando pela Rua Carijós, em pleno centrão de Belo Horizonte, num daqueles trechos bem movimentados e cheios de camelôs, quando um homem deslizou até meus pés um saco encardido, meio sujo, seguro pela boca, contendo nada mais nada menos que um enorme falso gato que quase me matou do coração. Um gato preso num saco assusta, mas um miado horrível, agudo, imaginado de um gato de bigodes, dentes e rabo é aterrador. O susto, para gozação dos transeuntes, fez-me dar um pulo para o lado, soltar um berro e um palavrão, a que sou bem chegada; creio que foi um dos melhores “fé da puta” da minha vida. Afastei-me com as pernas bambas e o coração disparado e pensando sobre como um palavrão se presta mais a um desabafo, a uma exteriorização brusca de uma raiva interior que a qualquer outra coisa. Mas, um dia, estando a atravessar uma avenida com o sinal verde, passou-me à frente, tranquilamente, ou melhor, desavergonhadamente, um carro bastante veloz. Parei abruptamente no meio da avenida e calmamente soltei um sussurrado, sincero e educado “puta que pariu!”. Fiquei ali, sonsando, meio lerda, talvez
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esperando que um buzinaço começasse, que eu desse de novo outro pulo para o lado e que de novo eu fosse motivo de gozação, como na história do gato no saco. Mas nada disso aconteceu, tendo eu então tempo para saborear a minha mais gostosa ação do dia: dizer um simples “puta que pariu”. Mas, por um segundo, infinitamente curto segundo, meus olhos depararam com a risada de um motorista, esperando pelo sinal verde seguinte; durante bom tempo da minha vida eu pensei sobre aquela risada, pois que ela nasceu no exato momento em que meus olhos avistaram aquela boca, e suponho que uma rara e preciosa coincidência também dirigiu o olhar do motorista para a minha, no exato e fugaz momento em que falei baixinho o palavrão-protesto para o motorista mal-educado. Como um jato forte de mangueira a tal risada brotou lá das entranhas do tal sujeito, mas tão gostosa, tão sincera e tão necessária que eu duvido que ele tenha tido naquele resto de tarde algum aborrecimento, alguma tristeza ou mau humor. Intriga-me ainda não saber o real motivo daquela risada. Será porque o palavrão veio de uma senhora? Será que, estando ela muito bem vestida: com um blazer preto, cachecol de lã enrolado no pescoço e botas, um palavrão não lhe conviria? Quem sabe não houve motivo nenhum e o tal sujeito estava mesmo era precisando desabafar, rir de alguma raiva ou tristeza encalacrada dentro de si? Não sei. O fato é que o meu “puta que pariu”, nesse caso, ajudou mais a um estranho que a mim mesma. Um colar de bijuteria, com contas de formas, motivos e coloridos diferentes, garante, ao tê-las presas pelo mesmo fio, a visão de uma assimetria agradável; a risada do tal motorista transportou-me ao palavrão que a provocou e este por sua vez levou-me de novo ao falso gato que por sua vez me fez lembrar de gato de verdade e outras coisas mais da minha infância. Morávamos na fazenda. O controle de toda 14
a meninada era relegado, para satisfação de nós, maiorzinhos, apenas aos passares de olhos dos adultos sobrecarregados com os afazeres domésticos de todo o casarão. Éramos doze filhos, e, por vezes, mesmo antes que um de nós andasse, outro já vinha nascendo. Sempre havia um engatinhando aqui e ali, principalmente pela enorme cozinha, onde havia sempre gente perambulando, e cozinhando. A cozinha comunicava-se com uma enorme varanda onde havia uma mesa grande com seus bancos toscos e sempre forrada de vermelho. A varanda, por sua vez, se abria sobre o pomar: porta aberta para as minhas recordações que me fazem ainda ver com imaginária nitidez as duas enormes mangueiras e um abacateiro espiando-nos enquanto tomávamos as refeições; tão verdes e vivos quanto o são as minhas lembranças. Corações magoados de folhas e cores diferentes atufavam-se no alicerce carcomido da casa e gerânios coloridos amaciavam a visão longa daquele pomar tão rico e majestoso que se alongava até o córrego, do qual nem conseguíamos ouvir o cantoreio. Essa descrição minuciosa de varanda, flores, quintal, pomar, vai justificar a narração do caso, e de outros mais, sobre o gato do camelô. Meu pai sempre foi um homem honrado, trabalhador, muito religioso, e por mais que me esforce, pois eu era uma capetinha em figura de gente, muito malina, como diziam, não me ocorre ter ouvido dele mais do que duas admoestações quaisquer. Contam que meu pai uma vez ficou oito dias e oito noites sem praticamente beber e comer por ter dado uma palmada em um filho pequeno. Mas, se varada não levei dele, arrastão de orelha, sim! E que arrastão! Atravessou uma cozinha, uma varandona, uma sala de jantar enorme, outra de visitas…! Eu e um dos meus irmãos do meio costumávamos ficar até tarde na cozinha fazendo guerra de feijões, enquanto a cozinheira, cochilando, os catava sobre 15
a enorme peneira de taquara. Pai apareceu de repente, e, sem nenhuma palavra, pegou a mim e a meu irmão pelas orelhas; jamais o caminho entre a cozinha e o meu quarto pareceu tão longo; não pela dor, mas talvez pela constatação dolorosa de que obrigara o meu bondoso pai a agir daquela forma não usual. Cada um de nós dois foi posto, pela orelha, em seu respectivo quarto e cama. Nunca mais houve guerras noturnas, e, se preciso fosse, com as galinhas dormiríamos para compensarmos, logo bem cedo, com a guerra das mamonas nos terreiros de café. Pai, um dia, como costumava fazer, apareceu na cozinha ali pelas três horas da tarde para tomar um cafezinho e roer alguma rosquinha, descansar assim um pouco da labuta cafeeira, agrícola, pecuária, e outras mais em que passava o dia inteirinho. Bem no meio da cozinha, o gatão amarelo, o preferido da minha mãe, brincava com tapinhas para lá e para cá com uma baita cobra “cabeça de patrona”; foi um alvoroço e tanto, e felizmente não havia bebê nenhum engatinhando ali. Escorraçaram o gato e mataram a cobra, mas, a repetição da façanha, desta vez com uma coral, levou o meu pai a fazer o que fez: não sei como, mas pegou esse gato bem pegado pelo rabo, rodou-o, rodou-o e rodando continuou, até que a uma velocidade incrível soltou o infeliz. Esborrachou-se na parede, morrendo instantaneamente. Tudo bem que tenhamos, todos nós, creio, uma maldadezinha, ínfima que seja, escondida no mais recôndito cantinho do nosso interior, que mesmo uma única vez, pode vir à tona, nem que seja mesmo uma única vez em nossa vida, como no caso do meu pacífico pai, mas o que vou relatar a seguir não faz jus a esse meu modo de pensar, não! Pois, às vezes, a maldade parece ser gratuita, natural, fazendo parte de um conjunto de brincadeiras, como uma outra qualquer. Quando crianças, acontecia-nos levar dois ou mais dias para 16
pegarmos um passarinho num alçapão, ou mesmo à noite em seu ninho, com o objetivo específico de segurar-lhes as duas partes do bico e rasgá-lo de fora a fora como se fosse uma tira de pano. Espetar com pauzinhos as bundinhas das tanajuras e vê-las bater as asas freneticamente tentando livrar-se das nossas mãos era muito comum na época certa do ano em que voejavam em grande quantidade pelo terreiro da nossa fazenda. Éramos sempre muitos irmãos, e mais algumas outras crianças cantando “cai, cai tanajura, na panela de gordura!”. Felizmente não participei de um daqueles banquetes gastronômicos de farofa de bundas de tanajura com cebola, alho, urucum, folhas de mostarda e farinha de mandioca, felizmente. Estaria até hoje, creio, com a lembrança daquela comida feita de traseirinhos lixentos e ao mesmo tempo pegajosos impressa na minha língua. E o ensopado de macaco com tomates e batatas, perfumado com alfavaca e alecrim? Por mais que tivéssemos caprichado na limpeza da carne, os pelos nela grudaram; nós comemos o pobre macaco assim mesmo, pois a façanha para capturá-lo numa matinha, assassiná-lo, escaldá-lo, limpá-lo, picá-lo, temperá-lo, cozinhá-lo e levá-lo à mesa havia nos excitado bastante para que o rejeitássemos. Até hoje me é vívida a presença daqueles pelos grudados em minha língua e a tentativa, sem resultado, de retirá-los com as unhas. Tão ruim quanto a sensação estranha de sentir os pelos do símio é a de lembrar tão somente a cor laranja avermelhada do urucum que complementava a ação terapêutica da lagartixa cozida para abrandamento dos sintomas do sarampo. Para a caça à lagartixa, a gente se munia de pedra, estilingue ou outro objeto qualquer que lhe esmagasse a cabeça ou lhe pusesse para fora as entranhas cinzento-esverdeadas. Sabor e textura perdidos, para meu conforto, na recordação daquele prato de cor forte e vibrante. Já saboreei um gambá, desta 17
vez corado na sua própria gordura com rapadura ralada e acompanhado de inhame barbado; só me lembro de que a carne era muito clara e macia. Até que comer passarinho não me parece assim tão cruel, talvez pela sua semelhança com um frango ou outra ave doméstica como marreco, peru, galinha d’Angola; mas um pobre macaquinho! E um gambá? Primeiro procede-se à sua captura, o que não deixa de ser bastante difícil: Sobe-se, à noite, de preferência de lua cheia, numa laranjeira bem alta, velha e espinhenta, e, com auxílio de uma boa vara, cutuca-se o bicho até que ele caia no chão. Uma porretada na cabeça dá cabo à sua pobre vida malcheirosa. Aguentando o seu fedor, tão intenso e insistente, amarra-se-lhe o rabo na ponta de uma vara bem comprida e sapeca-se o pobre, bem sapecadinho, numa fogueira de gravetos e palhas de milho; procede-se em seguida à sua limpeza e tempero. O mau cheiro desaparece. Graças a Deus! Procede-se ao cozimento do gambá como se o próprio fosse uma galinha: ensopado e perfumado com cheiro verde. Essas arregaladas maldades infantis só se apresentam como tal, agora, não me trazendo arrependimento nenhum a lembrança de quando esfregávamos pimenta malagueta nos dois cantos da boca do gato que meio desesperado passava a língua para lá e para cá num ritmo tão harmonioso e cadenciado como o do pêndulo de um relógio; ou, quando ainda pior, o colocávamos dentro de um saco e o batíamos na parede até que morresse; a harmonia cedia então lugar a movimentos estrebuchados e miados terríveis de protesto contra a impotência de não poder se defender do que sabia ser a sua passagem para o outro mundo; das suas sete vidas nada sobrava. Um monte indistinto de almas, ossos, carne, tripas e sangue era despejado, às escondidas, dentro de uma cova rasa no meio do bananal. Cobríamos tudo com folhas secas e gravetos para que ninguém nada descobrisse. 18
E durante muito tempo ouvíamos alguém comentar sobre o desaparecimento repentino e misterioso do gato. Interessante é procurar entender por que tínhamos tanta pena de humanos vítimas de ruindades: o fato de uma vizinha, que estava sempre roxa, a ponto de lhe darmos o apelido de Dona Roxa, apanhar sempre e sempre do marido nos revoltava muito. Uma vez chegamos a pôr dentro da bota do Seu Manoel uma aranha caranguejeira, bem grandona e negra, na esperança de que ela o picasse; e não foi fácil capturar a peluda. Munidos de pequenos lampiões a querosene, passamos algum tempo vasculhando as rachaduras do assoalho e tentando conduzi-la para dentro de uma lata velha e escondê-la até o dia seguinte, para então procedermos à sua prisão dentro da surrada e fedida bota do marido da Dona Roxa. Não me lembro se houve picada ou não, mas o fato é que o maldito marido continuou maltratando a Dona Roxa, chegando ao ponto de, por ciúme doentio e infundado, cortar-lhe um pedacinho da perereca e espetá-lo no arame farpado no alto de uma cerca, à beira da estrada; ninguém se atrevia a tirar dali aquela provinha de desrespeito e desumanidade, tão pequenina, e tão cabeludinha e fedorenta; mas nós, crianças bondosas, à noite conseguimos o intento, para felicidade da injustiçada. Já pusemos ovo cozido fervente dentro de boca de cachorro, apertando-lhe com força os maxilares; já enfiamos talo de abóbora com água apimentada em cuzinhos de galinhas; já depenamos um galo vivo só para assustar no meio da noite a cozinheira; já prendemos inúmeros vaga-lumes em vidro transparente para parecer abajur; já amarramos e acendemos foguete em rabo de gato. E tristes e interessantes coisas mais. E o gato da Rua Carijós? Por onde andou e ficou? Apenas prestou-se ao papel de ser a primeira e não única conta enfiada de um colar de bobagens. 19
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© CLEUSA TELLES GUIMARÃES, 2014. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. É PROIBIDA A REPRODUÇÃO COMPLETA OU PARCIAL DESTA OBRA SEM PRÉVIA AUTORIZAÇÃO POR ESCRITO DA AUTORA.
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