Copyright 2015 © Comissão organizadora do XII EELL: Frederico José Machado da Silva, Angela Mendonça, Anelilde Lima e Joelma Gomes dos Santos, Suelany Christtinny Ribeiro Mascena (.orgs) É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa do autores e organizadores. Por se tratar de uma publicação do tipo ANAIS, a comissão organizadora do XII EELL, isenta-se de qualquer responsabilidade autoral de conteúdo, ficando a carga do autor de cada artigo tal responsabilidade.
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Revisão Os autores Catalogação na publicação (CIP) Ficha catalográfica produzida pelo editor executivo Si383 SILVA, F. J. M. Mário de Andrade: Brasis, tupis e carnavais. Anais eletrônicos. XII Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura / Frederico José Machado da Silva; Angela Mendonça; Anelilde Lima; Joelma Gomes dos Santos; Suelany Christtinny Ribeiro Mascena (orgs.). – Pipa Comunicação, 2015. 250p. : Il., Fig., Quadros. (e-book) 1ª ed. ISBN 978-85-66530-53-7 1. Língua. 2. Literatura. 3. Mário de Andrade. 4. Anais. 5. XII EELL. I. Título. 400 CDD 82 CDU c.pc:19/15ajns
Prefixo Editorial: 66530
Comissão EditoriaL Editores Executivos augusto noronha e Karla vidal
Conselho Editorial alex sandro gomes Angela Paiva Dionisio Carmi Ferraz santos Cláudio Clécio vidal Eufrausino Cláudio pedrosa Leila ribeiro Leonardo pinheiro mozdzenski Clecio dos santos bunzen Júnior pedro Francisco guedes do nascimento regina Lúcia péret dell’isola ubirajara de Lucena pereira Wagner Rodrigues Silva Washington ribeiro
Ficha técnica Xii EnContro sobrE o Ensino dE LÍngua E LitEratura Mário de Andrade: Brasis, tupis e carnavais apoiadorEs Curso de Letras da Faculdade de Ciências humanas de olinda Central do Empreendedor maturi Comunicação EQuipE dE organização Frederico José Machado da Silva – Coordenador (FACHO) Angela Mendonça – Coordenadora (FACHO) anelilde Lima (FaCho) Eraldo Batista da Silva Filho (FACHO) Joelma gomes dos santos (FaCho) Suelany Ribeiro (FACHO) Viviane Gomes (FACHO) marCa E idEntidadE visuaL do EvEnto maturi Comunicação
Apresentação
Mais uma vez entregamos ao público uma edição dos Anais do Encontro sobre o Ensino da Língua e Literatura da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO)1. Para nós, do Curso de Letras da FACHO é uma grande alegria publicar o registro de nosso maior evento anual. O formato e-book, que adotamos desde nossa última edição, além de ecologicamente correto, proporciona um compartilhamento mais efetivo das ideias discutidas na XII Edição do EELL. Nesta edição, mais de 40 pesquisadores apresentaram seus trabalhos, além de contarmos com lançamentos de livros, conferência e mesas-redondas. O EELL representa um espaço para pesquisadores iniciarem sua vida acadêmica. Muitos pela primeira vez, como alguns que hoje estão na organização do evento, puderam apresentar trabalhos, divulgar ideias, conversar com seus pares. É essa a missão do EELL, fazer com que estudantes universitários tornemse pesquisadores. E é com imenso prazer que abrimos as portas de nossa casa para receber vocês. A comissão Organizadora
1. Por se tratar de uma publicação do tipo ANAIS, a comissão organizadora isenta-se de qualquer responsabilidade autoral, seja de conteúdo ou de estrutura, ficando a cargo do autor de cada artigo tais responsabilidades.
Sumário 13 A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES Caio Victor Lima Cavalcanti Leite; Orientadora: Profª Drª Amara Cristina de Barros e Silva Botelho 31 A LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS ALUNOS? Ginete Cavalcante Nunes 51 A PERSONAGEM POR EXCELÊNCIA Jaerson Barbosa da Silva 63 ASPECTOS DO REAL MARAVILHOSO E DA MEMÓRIA EM “OS PASSOS PERDIDOS” DE ALEJO CARPENTIER Amanda Barros de Melo 81 ASPECTOS SOCIOCOGNITIVOS NO ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO EM GÊNEROS DO DOMÍNIO JORNALÍSTICO Maria Sirleidy de Lima Cordeiro 95 AVALIAÇÃO: UM OLHAR SOBRE O TEXTO DO ALUNO SURDO Soraya Gonçalves Celestino a Silva
129 CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA Lílian Noemia T. de Melo Guimarães 147 FRATURAS DE SI E DA ESCRITA: EXPRESSÕES HOMOERÓTICAS EM WILL & WILL Rafael Venâncio; Hermano de França Rodrigues 171 GÊNERO, IDENTIDADE E A EXPRESSÃO DO SABER FEMININO NO REGRESSO AOS MITOS NA OBRA MOÇAMBICANA O SÉTIMO JURAMENTO Camilla Rodrigues Protetor (UPE) Orientadora: Profª DrªAmara Cristina de B. e S. Botelho 189 LEI 10.639: CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ESPAÇO ESCOLAR Isabel Cristina Gomes Viveiros Barretos; Jeandro Cabral Pereira; Maria Estela Epifânio dos Santos; Suelany C. Ribeiro Mascena 205 MÁRIO DE ANDRADE, GRAÇA ARANHA E A CONTRIBUIÇÃO DOS MANIFESTOS À CULTURA BRASILEIRA Roberto Belo
223 MODULAÇÕES DO ÓDIO: DESEJO E CLANDESTINIDADE Hermano de França Rodrigues 237 NAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL EM VIVA O POVO BRASILEIRO João Matias de Oliveira Neto 257 O CONTEXTO COMO ELEMENTO CONSTITUINTE DO SENTIDO NO GÊNERO STAND-UP Geovana Felix Oliveira do Nascimento 271
O CONTO ANGOLANO – CONTRIBUIÇÃO PARA A APLICAÇÃO DA LEI 10.639/2003 Joelma Gomes dos Santos Cheng de Andrade; Lindivalda Marta Santos
291 O DILEMA DA MATERNIDADE: DA FANTASIA À PSICOSE Angeli Raquel Raposo Lucena de Farias; Hermano de França Rodrigues 303 O GLOBO E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA: (RE)CONSTRUÇÃO DE OBJETOS DO DISCURSO Flávia Ferreira da Silva Rocha
319 O TEXTO PIADÍSTICO E A EXCLUSÃO SOCIAL ATRAVÉS DAS CONSTRUÇÕES ESTEREOTÍPICAS: O NEGRO E A LOIRA Ana Carolina A. de Barros 335 O TRIUNFO DA MORTE: A CRUELDADE NO FEMININO Renata Maria Silva de Souza; Hermano de França Rodrigues 345 SILAS: MEMÓRIA, LINGUAGEM E CULTURA AFROBRASILEIRA Ana Valéria Ubaldo da Silva
Resumo Este trabalho integra os resultados da pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq intitulada Crítica social e Gênero em As Meninas, de Lygia Fagundes Telles, finalizada em julho de 2015, à qual faz parte do projeto macro intitulado A ficção produzida por escritoras de Língua Portuguesa, atrelado ao Centro de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade de Pernambuco – CELLUPE. O objetivo deste artigo é realizar uma análise acerca da construção das personagens femininas presentes no referido romance. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de abordagem qualitativa, na qual foram realizados levantamentos teóricos acerca da temática de gênero e personagem, e posterior releitura e análise do romance. A partir da análise da obra, constata-se a presença de uma narração de onisciência seletiva múltipla que possibilita às três personagens femininas protagonistas exporem suas subjetividades, logo, levando o leitor a conhecê-las intimamente. Soma-se o fato de as protagonistas estarem rodeadas por várias personagens femininas secundárias que dão prosseguimento à narrativa. Foram utilizados como referenciais teóricos os escritos de Candido (2006); Brait (1998); Forster (1974); Zinani (2013); entre outros. Palavras-chave: Literatura; Personagem; Feminino; Gênero.
A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM AS MENINAS DE LYGIA FAGUNDES TELLES Caio Victor Lima Cavalcanti Leite1 Orientadora: Profª Drª Amara Cristina De Barros e Silva Botelho2
Introdução O romance As Meninas, de 1973, de autoria de Lygia Fagundes Telles, traz diversificadas personagens femininas, sendo três protagonistas – Lia, Lorena e Ana Clara – e as demais personagens secundárias que rodeiam as principais e dão consistência ao enredo da narrativa. Embora se verifiquem momentos em que o enredo seja apresentado por um narrador onisciente em terceira pessoa, o leitor, frequentemente, entra em contato com as ações psíquicas e físicas das personagens protagonistas através do processo de narração onisciente seletiva múltipla, no qual se depara com um narrador que penetra na mente das personagens, revelando-lhes pensamentos, desejos e até suas percepções e observações acerca do ambiente em que se situam. Observa-se, na narrativa, a construção de personagens femininas com alto grau de densidade psicológica e perfis divergentes, fator determinante para que o leitor enxergue nelas uma representação do sujeito feminino do
1. Graduando do curso de Licenciatura em Letras pela Universidade de Pernambuco (UPE); bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq. E-mail: caaio_cavalcanti@yahoo.com.br 2. Professora Doutora do curso de Letras da Universidade de Pernambuco (UPE); E-mail: acristinabotelho@gmail.com 13
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Brasil dos anos 60-70. Sendo assim, a análise da construção desses seres ficcionais torna-se o fator norteador do presente artigo. Para introduzir a pesquisa, abordam-se conceitos acerca de personagem. Sua importância dentro da obra, caracterização e construção são alguns dos eixos levados em consideração no primeiro tópico. Dentre os teóricos referidos neste tópico, tem-se Forster (1974), Brait (1998) e Candido (1987). No segundo tópico, são apresentados os conceitos relacionados ao estudo de gênero feminino na narrativa. Teóricos como Zinani (2013), Louro (2010), Butler (2003) são alguns dos referenciados. No último e terceiro tópico, ocorre a análise do romance, e posteriores resultados. A metodologia utilizada por este trabalho é de natureza bibliográfica tendo como fonte o romance e demais abordagens teóricas. Há a verificação de excertos da obra e posterior análise, além da leitura interpretativa dos pressupostos teóricos trabalhados e a consequente adequação destes para fundamentação da análise objetivada.
A CONSTRUÇÃO DO SER DE FICÇÃO Segundo Oswald Ducrot e Tzvetan Todorov (1972) citados por Brait: Uma leitura ingênua dos livros de ficção confunde personagens e pessoas. Chegaram mesmo a escrever “biografias” de personagens, explorando partes de sua vida ausente do livro (“O que fazia Hamlet durante seus anos de estudo?”). Esquece-se que o problema da personagem é antes de tudo linguístico, que não existe fora das palavras, que a personagem é “um ser de papel”. Entretanto recusar toda relação entre personagem e pessoa seria absurdo: as personagens representam pessoas, segundo modalidades próprias da ficção. (BRAIT, 1998, p. 11).
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Observa-se que os seres fictícios, chamados personagens, são criações de um determinado ficcionista. O que Brait traz à tona é a relação deste ser ficcional com o ser real, humano. A autora faz questão de ressaltar que a personagem é um ser que existe num mundo fictício, logo, não existe fora deste contexto, entretanto, acaba por representar os seres humanos. Tal ponto de vista comunga com a seguinte afirmação de Candido: A personagem é um ser fictício, – expressão que soa como paradoxo. De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe? No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser fictício, isto é, algo que, sendo uma criação da fantasia, comunica a impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a concretização deste. (CANDIDO, 1987, p. 52)
É a junção de variadas características, atribuídas à personagem pelo autor, que possibilita a verossimilhança e identificação desse ser ficcional pelo leitor. Portanto, gestos, cor da pele, cor dos cabelos, determinadas atitudes ou reações são alguns dos elementos que permitem o reconhecimento do leitor àquela criação única que é a personagem de ficção. Para Candido (1987), a personagem torna-se mais lógica, mais coesa que o ser humano por conta da exposição destas características e por sua existência estar totalmente limitada ao contexto ficcional. Os seres humanos são mais inconstantes e não se reduzem a um olhar único (do escritor). A técnica de caracterização dessas personagens, de acordo com Candido (1987), vem a ser definida, no século XVIII, por Johnson (apud Candido, 1987, p. 58), que as enquadra em dois tipos: “personagens de costumes” e “personagens de natureza”. Sendo as “personagens de costumes” mais superficiais, 15
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fáceis de definir e compreender pelo leitor; enquanto que as “personagens de natureza” costumam ser mais densas psicologicamente, sendo complexa sua definição e entendimento. Forster (1974) retoma essas caracterizações classificando as personagens em “redondas” e “planas”. Sendo, segundo o autor, plana, toda aquela personagem construída em torno de uma só característica durante o percurso de toda a narrativa. Ou seja, a personagem plana é superficial, de fácil identificação; enquanto entende-se por personagem redonda aquela que consegue surpreender o leitor, fugindo do esperado. De acordo com Brait (1998), o narrador é parte essencial na configuração da personagem de ficção. Ou seja, o leitor é levado a conhecer e compreender o ser ficcional a partir da narração, sendo ela em primeira ou terceira pessoa. Dentre as possibilidades da construção da personagem, Brait nos traz uma das concepções de que “o narrador é uma câmera”. A autora deixa claro, com isso, que o receptor da narrativa acompanha a estória através de um narrador em terceira pessoa. Brait categoriza esse tipo de narrador como univalente, entretanto, afirma que, para os fins da obra, é necessário que esse narrador se faça presente para “a composição do espaço, o desenho do ambiente, a caracterização da postura física da personagem e a utilização do discurso indireto livre para expressar os pensamentos e as emoções dessa criatura combinam-se de forma harmônica [...]” (Brait, 1998, p. 55). Brait ainda explicita a narração em primeira pessoa, na qual, o autor dá à personagem a tarefa de descrever, construir as personagens da obra com a qual estão relacionados. Essa apresentação dos fatos em primeira pessoa pode ocorrer pela própria personagem protagonista ou por uma personagem secundária, testemunha das ações da narrativa. No caso do romance corpus deste artigo, vale salientar que a autora faz uso da narração em primeira pessoa pelas protagonistas. Entretanto, o recurso narrativo de As Meninas
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é um pouco mais complexo por conter três personagens protagonistas que dividem a narração, expondo seus pensamentos e demais ações de forma desordenada, possibilitando ao leitor imergir na mente desses seres ficcionais, o que exemplifica uma transmissão da estória através do recurso narrativo conhecido por Onisciência Seletiva Múltipla3. Torna-se evidente que no caso do autor de um romance ficcional optar pela construção e exibição de suas personagens pelo ponto de vista de uma dessas criaturas, ainda assim, ele continua sendo seu único criador, logo, [...] deveríamos reconhecer que, de maneira geral, só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades criadoras. (CANDIDO, 1987, p. 68).
Candido (1987), afirma que o romancista tem uma intencionalidade ao criar determinadas personagens. Sendo assim, é importante que se trace uma relação entre o contexto social-histórico vivido pelo autor do romance para que se entenda parte da natureza dos seres criados. Entretanto, o mesmo autor propõe que a análise da construção de uma personagem se volte, prioritariamente, para os próprios elementos fornecidos pela narrativa, “[...] portanto, originada ou não da observação, baseada mais ou menos na realidade, a vida da personagem depende da economia do livro, da sua situ-
3. Para Friedman (1967), a Onisciência Seletiva Múltipla é um recurso narrativo utilizado pelo autor para dar total independência às personagens de contarem a estória de acordo com seus pontos de vista. Logo, a aparência das personagens, suas falas, os cenários são todos transmitidos ao leitor através da visão delas mesmas. 17
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ação em face dos demais elementos que o constituem: outras personagens, ambiente, duração temporal, ideias” (CANDIDO, 1987, p. 78).
GÊNERO E FEMINISMO EM PROTAGONISMO EM AS MENINAS As Meninas é definitivamente um romance que põe em evidência o sujeito feminino. Isso se confirma ao observar-se a presença de três protagonistas femininas narradoras, rodeadas por dezenas de outras personagens femininas que dão volume à narrativa. O enredo gira em torno de três amigas – Lia, Ana Clara e Lorena – que vivem, juntas, numa pensão comandada por freiras na cidade de São Paulo. Cada uma dessas personagens apresenta suas particularidades, pensamentos, devaneios ao leitor gerando uma multiplicidade de vozes femininas dentro da narrativa. O romance coexiste com a ascensão de vários movimentos sociais, entre os quais, pode-se destacar o Feminismo já que, [...] aproximadamente na década de 1970, as feministas perceberam que as diferenças entre homens e mulheres, elaboradas socialmente ao longo da história pela cultura, não eram ruins em si mesmas. Essas diferenças aumentavam a diversidade humana e sua riqueza criativa, oferecendo mais valores para os indivíduos se identificarem no curso da sua vida, sendo uma maneira de promover e aumentar a liberdade. O que era negativo era o fato de usar estas diferenças para criar hierarquia e poderes desiguais. [...] (ALBERNAZ; LONGHI, 2009, p. 78-79)
Observa-se que a década de 70 contribui decisivamente para um repensar dos indivíduos na sociedade. O movimento Feminista destaca-se por denunciar as relações desiguais entre homens e mulheres, 18
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[...] será no desdobramento da assim denominada “Segunda Onda” – aquela que se inicia no final da década de 1960 – que o feminismo, além das preocupações sociais e políticas, irá se voltar para as construções propriamente teóricas. No âmbito do debate que a partir de então se trava, entre estudiosos e militantes, de um lado, e seus críticos ou suas críticas, de outro, será engendrado e problematizado o conceito de gênero. (LOURO, 2010, p. 15).
Logo, cresce a discussão acerca da conceituação de gênero. Uma das principais teóricas modernas que trata desta temática é Judith Butler (2003). Para ela, gênero, nada mais é que uma condição de identidade própria de cada indivíduo. Afirmação que é confirmada por Louro (2010): [...] gênero constitui a identidade do sujeito (assim como a etnia, a classe, a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir, portanto, a algo que transcende o mero desempenho de papéis, a ideia é perceber gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o (LOURO, 2011, p. 29).
Entretanto, é importante salientar que, por muito tempo, a ideologia de gênero era utilizada como justificativa para o patriarcalismo estabelecer e delimitar poder sobre sujeitos do gênero feminino. Daí ser um dos objetivos do movimento feminista desconstruir essa relação binária que compreende e limita o gênero como atrelado ao sexo biológico e impõe uma hegemonia masculina. Logo, [...] o paradigma que se propõe fundamenta-se na igualdade de oportunidades e no respeito à diferença, o que implica não só o abandono de práticas que reproduzem os traços característicos da cultura tradicional, mas também na superação de estigmas de gêneros cristalizados e no reconhecimento da própria capacidade e competência. (ZINANI, 2013, p. 75).
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Portanto, a escolha de Telles em dar voz e construir diversas personagens femininas contribui fortemente na identificação e representação do público leitor feminino, solucionando, assim, uma das críticas feministas à crítica literária: “a necessidade de criar um grupo social formado por autores e público leitor irmanados no mesmo pressuposto comum: a linguagem da mulher” (ZINANI, 2013, p. 41).
AS PERSONAGENS FEMININAS DE AS MENINAS A primeira personagem a ser apresentada ao leitor é Lorena. Vinda de família tipicamente burguesa, Lorena passa boa parte da narrativa em seu quarto fantasiando situações hipotéticas e ouvindo os álbuns de sua banda favorita. Quase como se vivesse uma realidade paralela que ela projeta para si mesma, Lorena chega até a criar um romance com M.N., um homem casado e com filhos, talvez para satisfazer sua necessidade de idealizar um amor ou pela ausência da figura masculina, já que seu pai e irmão Remo morrem; enquanto Rômulo, seu segundo irmão, vive em viagens. Em diversos momentos, Lorena chega a idealizar encontros com seu amante imaginário: Cinema, imagine. Zona perigosa, tem milhares de zonas perigosas onde a mulher dele ou a prima... Acho que o melhor lugar para a gente se ver é o hospital porque se o mundo é grande aquele hospital ainda é maior. Doutor Marcus Nemesius está? Eu pergunto e a enfermeira principal fala com a subordinada e a subordinada fala com a subordinada da subordinada que por sua vez fala com aquela lá longe, a que escapou da corrente, o sapato branco, a memória branca. “Por acaso é você que está
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esperando o doutor Melloni?”, ela vem e pergunta, depois de duas horas e meia. Não, esse não. Por acaso estou esperando o doutor Marcus Nemesius, ele está? “Acabou de sair”, ela diz. “Não serve outro médico?” (TELLES, 2009, p. 22).
Observa-se, neste excerto, que a personagem cria, em detalhes, situações irreais. Lorena acredita que o hospital seja o melhor lugar para encontrar-se com seu amante, já que este não poderia ser visto com ela. Muitas das narrações dessa personagem são monólogos interiores, dotados de situações hipotéticas e fantasiosas que também podem ser justificadas por sua solidão. Por ter origem numa família burguesa, tradicional, Lorena apreende valores e comportamentos daquele contexto. Tal situação é exposta no trecho a seguir: “Quem mais quer se casar, Lorena? Quem? Só os padres e as prostitutas. E um ou outro homossexual, entende?” Quis dizer: eu, eu! Adoraria me casar com M.N., não existe uma ideia mais joia, queria me casar com ele, sou frágil, insegura. Preciso de um homem em tempo integral. Com toda a papelada em ordem, acredito demais em papel, herdei isso de mamãezinha (TELLES, 2009, p. 73).
A passagem acima expõe o desejo de Lorena em casar-se com M.N., o que ratifica os valores de uma sociedade tipicamente patriarcal4, na qual a mulher deposita na figura masculina confiança para cumprir papéis e agir sobre determinados contextos em que ela, por conta de convencionalismos e estereótipos, deve abrir mão.
4. Para Freyre (2004), o sistema patriarcal fundamenta-se em explicitar diferenças entre o papel do homem e da mulher na sociedade. Cabendo à mulher a tarefa de “dona de casa”, mas ao homem o papel central, de poder. 21
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Tal pensamento é reflexo da relação que Lorena tinha com sua mãe. Muitos valores e tradições patriarcais eram perpassados através das relações familiares, especialmente as burguesas. Entretanto, é importante salientar que Lorena, por viver em constante relação com figuras femininas, além de ter perdido seu pai logo cedo, começa a visualizar certas situações de maneira diferente. Nota-se o início de uma mudança de pensamentos e atitudes da personagem que exemplifica-se quando, em conversa com sua mãe, diz não ter interesse em casar-se apenas por convenção, embora, ainda assim, conserve um amor platônico por M.N., e sonhe em ver-se casada com ele. Nota-se, então, que Lorena mimetiza um sujeito feminino que começa a enxergar-se num dualismo crescente entre seguir o tradicional ou buscar a inovação. Tal situação não ocorre com a personagem Lia. Estudante de Ciências Sociais, simpatizante do Socialismo e integrante de um grupo militante de esquerda, a personagem foge de todos os estereótipos e convenções tradicionais. Lia organizava encontros secretos com seu grupo de esquerda visando articular-se para denunciar o regime ditatorial imposto pela ditadura civil-militar vigente naquele momento histórico. Logo, verifica-se que a personagem mimetiza um sujeito feminino mais consciente, mais ativo e disposto a lutar pelos seus ideais, característico dos anos iniciais da década de 70. Essa natureza anticonvencional de Lia é exemplificada quando, em conversa com Lorena, ela exibe um pensamento singular em relação a Deus: Quando abro os olhos, dou com Lorena me observando. Faço-lhe um carinho na cabeça. Ah, sim. Deus. - Também fui anjo de procissão, papa-hóstia, fui tudo. Acreditava com aquela força da infância, um fervor. Justamente por isso poderia haver uma reconciliação, entende? Não sei explicar, Lena, mas assim que comecei a tomar consciência do que se passava na minha cidade, no mun22
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do, me deu tamanho ódio. Fiquei uma fúria. Sem dúvida ele existe, eu pensava, mas é só crueldade. Desse estado passei para a ironia, fiquei irônica, mas é bricoleur, sabe o que é um bricoleur? Na minha rua morava um baiano santeiro que pegava sobras de objetos, fragmentos meio ao acaso, sem plano, juntava as peças com jeito, ele tinha muito jeito, e acabava formando suas maquininhas. Comecei a achar que Deus era simplesmente isso, um bricoleur de gente. Catava uma sobra aqui, outra lá adiante formando suas engenhocas (TELLES, 2009, p. 215).
Outro momento em que Lia exibe sua particular personalidade transgressora é, quando, em conversa com a mãe de Lorena, ela expõe sua visão acerca dos homossexuais: - Fico tão feliz em saber que continua pura – murmurou com uma expressão de beatitude. Mas logo a testa se franziu. A voz ficou embuçada: - Você não acha que ela se interessa pouco por sexo? Tenho às vezes tanto medo, está me compreendendo? Aumentou tanto ultimamente, você sabe, essas moças... Mastigo mais um bombom. Não quero ser rude, mãezinha, mas acho completamente absurdo se preocupar com isso. A senhora falou em crueldade mental. Olha aí a crueldade máxima, a mãe ficar se preocupando se o filho ou filha é ou não homossexual. Entendo que se aflija com droga e etcétera, mas com o sexo do próximo? [...] (TELLES, 2009, p. 205).
Nota-se, no excerto acima, o confronto de duas gerações. De um lado, a mãe de Lorena, personagem que representa a mulher vinda de família essencialmente patriarcal de mentalidade heteronormativa; enquanto, de outro, temos Lia, uma figura feminina que foge de todos os padrões impostos por uma sociedade de essência machista. A autora de As Meninas optou por fazer uso de um recurso de construção da personagem de forma curiosa. Por apresentar uma narração através das 23
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três personagens protagonistas, é comum ao leitor fazer uma visualização desses seres fictícios através da visão de uma das protagonistas. Evidencia-se tal observação no excerto a seguir: Fico olhando a caixa de lenços que ela foi buscar. Guarda tudo em caixinhas de pano florido, essa é de papoulas vermelhas e azuis com fundo preto. Tem ainda as de prata e couro que ficam nas prateleiras da estante. E sinos. Por onde o irmão passa, manda um sino. [...] (TELLES, 2009, p. 15).
Neste trecho, Lia narra um comportamento da amiga Lorena que consiste em colecionar sinos que o irmão a enviava sempre que voltava de viagem. Nota-se que o leitor vai se familiarizando com as personagens a partir da ótica das demais personagens. Em contraponto, é válido salientar que as próprias personagens protagonistas exibem ao leitor suas subjetividades e características, conforme se vê a seguir: Tenho um metro e setenta e sete. Sou modelo. Uma beleza de modelo. O que mais você quer? Bastardo. Se esta cabeça me desse uma folga, pomba. Queria ter uma abóbora em lugar da cabeça mas uma abóbora bem grande e amarelona. Contente. Semente torrada com sal é bom pra lombriga, ainda tenho o gosto e também daquele remédio nojento. Não quero a semente mãe, quero a história. Então à meia-noite a princesa virava abóbora. Quem me contou isso? Você não mãe que você não contava história contava dinheiro (TELLES, 2009, p. 37).
No trecho anterior, a personagem Ana Clara apresenta-se ao leitor através de monólogo interior. Tal recurso permite com que o receptor aproxime-se do universo das protagonistas de tal modo que, por momentos, sente-se como um amigo íntimo destes seres de ficção. 24
A CONSTRUÇÃO DA PERSONAGEM FEMININA EM AS MENINAS, DE LYGIA FAGUNDES TELLES
Ana Clara é uma das personagens mais complexas da narrativa. Com uma infância difícil, na qual, sofre um abuso sexual consentido pela própria mãe, além de não saber a identidade do pai, a personagem demonstra fragilidade em diversos momentos da narrativa, estando quase sempre em companhia de seu namorado, Max. O uso frequente de drogas e álcool também faz parte do comportamento dessa personagem. Diante de tal realidade, Ana Clara é alvo de preocupações por parte das demais personagens que a rodeiam, conforme se observa na citação: – Você conhece, filha? – Quem? – Esse noivo. Parece que é muito rico, mas não gosta dele, gosta do outro, do Max. Fala muito nesse Max, viciado também. Um caos completo. [...] - Se interna e se desintoxica. Perfeito. Depois de uma semana, de um mês, tem alta, não pode ficar internada a vida inteira. Então recomeça tudo igual, a senhora sabe disso melhor do que eu. Não vejo saída. – Queria fazer análise, prometi pagar o tratamento, ficou de ver o médico, mas quando pergunto que médico escolheu ou quando vai começar, vem com respostas vagas, adia, é incapaz de uma decisão. Ontem chegaram as roupas que andou comprando. Devolvi tudo, nem a pensão ela pode pagar e nem espero que pague. Mais dívidas com o cobrador insolente exigindo um sinal. Meus céus (TELLES, 2009, p. 145).
No trecho anterior, explicita-se a preocupação crescente da freira do pensionato Madre Alix e Lia em relação à Ana Clara. É possível perceber que Ana Clara acumula dívidas e problemas e não busca soluções para mudança de comportamento. Talvez a situação da personagem se justifique por conta da infância difícil que teve, já que, em vários momentos da narrativa relembra momentos em que viveu com sua mãe, além de mencionar o Dr. Algodãozinho, possivelmente a pessoa que a estuprou, como se pode ver a seguir: 25
Anais Eletrônicos - XII EELL
Com a ponta da língua empurrou o pedaço de gelo até o céu da boca. Na realidade o céu é lá em cima sem nenhuma dor. O inferno começa em seguida com as raízes. Tanta raiz se entrelaçando umas nas outras. Solidárias. - Ele vivia trocando o algodão dos buracos dos dentes, passava semana, mês, ano e ele vinha com aquele algodãozinho na pinça, ficou sendo o Doutor Algodãozinho. - Mas você tem bons dentes, ahn? Não tem, Coelha? Meu lindo. Meu inocente amor. - Tenho. - Então o Doutor Algodãozinho era bom. Era. Era ótimo. Mudava o algodãozinho enquanto o buraco ia aumentando. Aumentando. Cresci naquela cadeira com os dentes apodrecendo e ele esperando apodrecer bastante e eu crescer mais pra então fazer a ponte. Uma ponte pra mãe e outra pra filha. Bastardo. Sacana. As duas pontes caindo na ordem de entrada em cena. Primeiro a da mãe que se deitou com ele em primeiro lugar e depois... Fui passando pela ponte a ponte estremeceu água tem veneno maninha quem bebeu morreu. Quem bebeu morreu. Ela cantava pra me fazer dormir mas tão apressada que eu fingia que dormia pra ela poder ir embora duma vez. No cinema tinha sempre uma mãe cantando romântica pros filhinhos abraçados nos bichinhos de pelúcia. Avó também costumava contar histórias, mas por onde andava minha avó era uma coisa que eu gostaria de saber. Queria ter uma avó como a Madre Alix. Ter uma avó como a Madre Alix é ter um reino (TELLES, 2009, p. 38-39).
O uso constante de drogas e bebidas alcoólicas pode representar uma fuga a essa realidade complexa pela qual Ana Clara teve de ser submetida. É importante ressaltar que a personagem secundária Madre Alix é uma figura que, por vezes, assume o papel de avó das protagonistas do romance – como a própria Ana Clara revela no trecho anterior. Madre Alix sempre se mostra atenta a cada situação e momento vivido pelas personagens, con-
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cretizando uma relação de afeto para com elas, tal como ocorre no trecho que segue: - Sou forte à beça. - Não, Lia. Vocês são frágeis, filha. Você, Lorena. Quase tão frágeis, quanto Ana Clara. Haja o que houver, não deixe de me dar notícias. Conte comigo. - Vou lhe mandar meu diário, Madre Alix. Ao invés de cartas, um diário de viagem! Ela me acompanha até a porta. - Posso lhe dar uma epígrafe? É de Gênesis, aceita? - pergunta e sorri. Sai da tua terra e da tua parentela e da casa de teu pai e vem para a terra que eu te mostrarei. É o que você está fazendo - acrescentou. Hesitou um pouco: - É o que eu fiz (TELLES, 2009, p. 150 - grifos no original).
Portanto, Madre Alix surge como uma personagem capaz de fazer as três protagonistas refletirem e buscarem a apreensão de alguns valores transmitidos pela freira do pensionato. Ou seja, esta personagem surge como importante instrumento de criação e transformação das protagonistas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Lygia Fagundes Telles tornou-se referência na construção de singulares personagens femininas na literatura brasileira. As Meninas é o romance da autora que melhor evidencia essa questão por conter três protagonistas femininas narradas sob vários pontos de vista. Durante a narrativa, observa-se que as personagens vivenciam situações cotidianas que exercem forte influência na construção de suas subjetividades, o que evidencia personagens que vivem em constante modificação e trans-
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formação, daí caracterizassem como redondas, no dizer de Forster, como já se mencionou anteriormente. Através do uso de recursos narrativos como o fluxo de consciência e monólogo interior, o leitor passa a enxergar tais personagens de forma mais ampla. É através da visão de Lia, Lorena e Ana Clara que o leitor visualiza os ambientes, os acontecimentos e, principalmente, a construção de cada uma das personagens secundárias que vão surgindo no decorrer da narrativa. Fato que permitiu afirmar-se a presença de um narrador onisciente seletivo múltiplo. Além disso, é importante salientar que Telles consegue mimetizar, na narrativa, o sujeito feminino do fim da década de 60 e início da década de 70. Através de personagens femininas densas e com perfis diversificados, enxerga-se, acima de tudo, o universo feminino e suas particularidades. Sendo assim, Telles merece reconhecimento por usar a literatura a favor de problemáticas inerentes ao ser humano, como as questões de gênero, logo, formando um leitor consciente de aspectos tangentes à questão do feminismo que começa a assumir maior dimensão, além da capacidade de refletir e questionar acerca da realidade que lhe é circundante.
REFERÊNCIAS ALBERNAZ, Lady Selma Ferreira; LONGHI, Márcia. Para compreender gênero: uma ponte para relações igualitárias entre homens e mulheres. In: SCOTT, Parry; LEWIS, Liana; QUADROS, Marion Teodósio de. Gênero, diversidade e desigualdades na educação: interpretações e reflexões para formação docente. Recife: EdUFPE, 2009. BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Editora Ática, 1998. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. 5ed. Revista. São Paulo, Editora Nacional, 1976.
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Resumo Este artigo objetiva apresentar algumas considerações a respeito de como têm sido realizadas as aulas de literatura no Ensino Médio. Pretende-se mostrar como a escola e os professores têm agido em relação à leitura dos textos literários no ambiente escolar, enfatizando técnicas que venham a contribuir com a melhoria das aulas de literatura no ensino médio. Foi identificada uma espécie de crise no ensino da literatura no ensino médio, algo bastante visível no âmbito escolar e que pode ser interpretada de diferentes ângulos. Outro foco importante deste trabalho foi levantar as representações da literatura como patrimônio cultural da humanidade, alguns questionamentos são feitos, como por exemplo: Como vem sendo ministrado o ensino da literatura em turmas do ensino médio? Qual a visão sobre as funções da literatura norteiam o trabalho do professor no ensino médio? O que os denominados orientadores curriculares podem trazer de contribuição para o ensino da literatura no ensino médio? Por que o ensino de literatura vem sofrendo uma crise nos dias atuais? O que pensam os alunos do 3º ano do Ensino Médio sobre o estudo da disciplina de literatura? Este estudo também busca refletir sobre a importância do ensino da literatura no Ensino Médio para despertar e instigar o aluno a ler os textos literários com prazer. Para isso, elaboramos e aplicamos questionários com 3 turmas do 3º ano do Ensino Médio. Os resultados da pesquisa evidenciam a importância do trabalho do professor como um agente de promoção da leitura literária e nos mostra a visão que os alunos do 3º ano do Ensino Médio têm sobre a literatura e o trabalho do professor com os textos literários. Desta forma, este estudo também se justifica pela tentativa de contribuir com os debates a respeito do trabalho sistematizado com o texto literário no ensino médio de forma significativa e que instiga o aluno a continuar lendo os textos literários, promovendo assim, o letramento literário no Ensino Médio. Palavras-chaves: Ensino de Literatura; Texto literário; Ensino Médio.
A LITERATURA NO ENSINO MÉDIO: O QUE DIZEM OS ALUNOS? Ginete Cavalcante Nunes1
INTRODUÇÃO O ensino de literatura vem sofrendo uma crise no Ensino Médio, pois muitos alunos rejeitam a disciplina, entendendo-a como um trabalho inútil. Isso é possível de se perceber em conversa com professores e alunos das mais diversas escolas, que as aulas da disciplina literatura não são geralmente apreciadas. Em visitas e conversas com estudantes pudemos perceber que no Ensino Médio, no que concerne ao ensino de literatura o máximo que se alcança é o ensino da história da literatura brasileira, e ainda muito superficialmente, dicotomia entre os estilos de época, dados biográficos dos autores, algumas características do gênero, rima, métrica, apenas aspectos tradicionais do estudo de literatura, ou seja, numa perspectiva pouco atraente para os jovens. Quando os textos literários aparecem, vêm fragmentados e para dar suporte às características dos períodos literários, quando não são utilizados simplesmente para aulas de gramática. Percebe-se uma dificuldade dos professores de Língua Portuguesa, às vezes até uma resistência, para o ensino de leitura literária e o trabalho com textos canônicos, por considerá-los pouco atraentes aos alunos, quer seja pela temática ou pela linguagem utilizada. O aluno do ensino médio, na maior parte das vezes, já não tem mais contato com o texto literário na íntegra, mas apenas com fragmentos que
1. Cursa o Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) E-mail: ginetecavalcante@bol.com.br 31
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são usados como exemplos para compreensão da gramática ou como mero modelo para exemplificar características de determinada escola ou gênero literário, contribuindo ainda mais de forma negativa com o desinteresse dos alunos pelo estudo da literatura. Portanto ratificamos o discurso de Todorov (2009) quando diz que “o estudante não entra em contato com a literatura mediante a leitura de textos literários propriamente ditos, mas com alguma forma de crítica, de teoria ou de história literária.[...] para esse jovem, literatura passa a ser então muito mais uma matéria escolar a ser aprendida em sua periodização do que um agente de conhecimento sobre o mundo , os homens, as paixões, enfim, sobre sua vida íntima e pública. Para corroborar com esse pensamento vejamos o que dizem os PCNs de Língua Portuguesa documentos oficiais que versam sobre o ensino de literatura no Ensino Médio: Pensar sobre a literatura a partir dessa autonomia relativa ante o real implica dizer que se está diante de um inusitado tipo de diálogo regido por jogos de aproximações e afastamentos, em que as invenções de linguagem, a expressão das subjetividades, o trânsito das sensações, os mecanismos ficcionais podem estar misturados a procedimentos racionalizantes, referências indiciais, citações do cotidiano do mundo dos homens. (BRASIL,1997,p.37)
Com isso, podemos depreender o motivo pelo qual as aulas de literatura no ensino médio têm causado um “afastamento” por parte dos alunos e não uma “aproximação”, fazendo estes entenderem-na como um trabalho inútil e desnecessário.
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O ENSINO DE LITERATURA: AS AULAS NO ENSINO MÉDIO O retrato da maioria das aulas de literatura no Ensino Médio tem sido a desenhada por Cosson (2006), onde a literatura no Ensino Médio resume-se a seguir de maneira descuidada o livro didático. São aulas essencialmente informativas nas quais abundam dados sobre autores, características de escolas e obras, em uma organização tão impecável quanto incompreensível aos alunos. Raras são as oportunidades de leitura de um texto integral, e, quando isso acontece, segue-se o roteiro do ensino Fundamental, com preferência para o resumo e os debates, sendo que esses são comentários assistemáticos sobre o texto, chegando até a extrapolar para discutir situações tematicamente relacionadas. (COSSON, 2006, p. 92)
Segundo Cosson (2006) a prática pedagógica, que não privilegia a adequada leitura literária, está colaborando para a falência do ensino de literatura. A literatura não está sendo trabalhada no ambiente escolar de forma a garantir sua função essencial: construir e reconstruir a palavras que nos humaniza. Sendo assim, a prática pedagógica precisa ser repensada. Faz-se necessário superar a noção conteudista do ensino e compreendê-lo como uma experiência de leitura a ser compartilhada, incorporando uma maior aproximação dos alunos com os textos literários. A leitura literária é uma realização que deve acontecer no Ensino Médio através do texto literário. Cosson (2006) ainda pontua: No ensino médio, o ensino da literatura limita-se à literatura brasileira, ou melhor, à história da literatura brasileira usualmente na sua forma mais indigente, quase como apenas uma cronologia literária, em uma 33
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sucessão dicotômica entre estilos de época, cânone e dados biográficos dos autores, acompanhada de rasgos teóricos sobre gêneros, formas fixas e alguma coisa de retórica em uma perspectiva para lá de tradicional. Os textos literários quando aparecem, são fragmentos e servem prioritariamente para comprovar as características dos períodos literários antes. (COSSON, 2006, p. 21)
Para o crítico literário Afrânio Coutinho, não são adequados ao ensino especifico de literatura: Entre nós, o que e geral é o método expositivo, são exposições panorâmicas, em ordem cronológica, o mais dos casos reduzidos a um catálogo de nomes e títulos de obras, acompanhadas as vezes de dados bibliográficos, resumos de enredos ou classificação dos autores por escolas. Não será mal dizer que nada disso e Literatura.(COUTINHO, 1978,p. 118)
Em Ensino de Literatura: uma proposta dialógica para o trabalho com literatura, William Roberto Cereja procura compreender e explicar as práticas escolares de literatura no ensino médio no Brasil, para tanto irá mapear em sua pesquisa os motivos de seu fracasso, bem como propor alternativas para melhorar sua qualidade. Em sua investigação chega à conclusão de que um dos grandes problemas ainda é a manutenção de alguns métodos tradicionais. Com pequenas variações, a abordagem da literatura [...] tem sido a consagrada pela tradição: apresenta-se a cronologia histórica das escolas literárias, a contextualização histórica (distanciada do texto), os autores e obras mais importantes [...], as características relevantes de cada período e de cada autor. A leitura efetiva de textos literários ocorre ocasionalmente e assume um caráter ilustrativo (CEREJA, 2005, p. 52).
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A esse respeito ainda é importante notar o que diz Cereja (2005) sobre como são ministradas as aulas de literatura no Ensino Médio: [...] o objeto central das aulas de literatura, em vez de ser o texto literário, é constituído de um discurso didático sobre literatura, produzido pelo professor e/ou pelos manuais didáticos. Dessa forma, é fácil notar que a finalidade real das aulas de literatura não é o alcance dos objetivos propostos pelos programas escolares, mas tão somente a apropriação passiva, pelo aluno, desse discurso didático. (CEREJA, 2005, p. 12).
Cosson e Cereja desenham bem como acontecem as aulas de literatura no ensino médio e deixam claro a ideia de que como o âmbito escolar é um espaço privilegiado para o ensino da Literatura, onde o seu estudo é sistematizado no Ensino Médio, portanto, esse ensino requer aulas que não se esgotem nas lacunas da periodicidade literária, tão pouco na linguagem distante de alguns textos, mas que se tornem vivas no diálogo com outros textos, mais próximos dos alunos, os quais diminuam a distância destes com algumas obras, tão importantes para a cultura e memória do povo, não deixando jamais de se trabalhar com o objeto de materialização da literatura: o texto literário. Cereja (2005) ainda afirma que “falta aos professores de literatura clareza quanto à especificidade do objeto que ensinam. Sendo a literatura uma arte verbal, o ensino de literatura deve necessariamente comportar o desenvolvimento de habilidades de leitura de textos literários e reflete ainda que a formação profissional do professor é um dos fatores responsáveis pelo sucesso do curso de literatura”. O crítico literário Afrânio Coutinho analisa o ensino da literatura e observa que há várias formas de fazê-lo; todavia, duas abordagens são utilizadas com maior frequência pelos educadores: a histórica e a filológica.
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Coutinho explica: A abordagem histórica leva-nos a reduzir o ensino da literatura ao da história literária, ou seja, à exposição da ambiência histórica, social ou econômica, que teriam condicionado a produção das obras, e da vida dos autores nos seus pormenores exteriores e na sua psicologia. O ensino da literatura, consoante esse critério, passou a reduzir-se ao estudo histórico das literaturas, isto é, ao conhecimento do meio social, político, histórico, econômico e da vida dos escritores, confundindo assim o fato histórico e o fato literário, que são as obras elas próprias. O aprendizado reduzia-se, em última análise, à memorização de nomes, títulos e datas, ou a alguns pitorescos fatos biográficos. (COUTINHO,1978, p. 10)
Infelizmente é esse o retrato das aulas de literatura no Ensino Médio e assim a literatura está correndo um grande perigo: ser reduzida à história e perder a sua principal função: ser uma ponte que liga a imaginação-razãoreflexão. O filósofo e linguista búlgaro Tzvetan Todorov em sua obra A Literatura em perigo (2009) resalta sobre a forma como se dá o ensino de Literatura no Ensino Médio e o iminente perigo que esse tipo de ensino traz à literatura: O conhecimento da literatura não é um fim em si, mas uma das vias régias que conduzem à realização pessoal de cada um. O caminho tomado atualmente pelo ensino literário, que dá as costas a esse horizonte (“nesta semana estudamos metonímia, semana que vem passaremos à personificação”), arrisca-se a nos conduzir a um impasse – sem falar que dificilmente poderá ter como consequência o amor pela literatura. (TODOROV, 2009, p. 12)
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Assim, responder a um questionário sobre livros como “Senhora” e “Memórias Póstumas de Brás Cubas” em que o aluno tem que recolher informações como clímax, protagonista, antagonista, cenário, tempo, foco narrativo, etc. São atividades que podem tirar o foco do real ensino da Literatura como a Arte muitas vezes o aluno gosta de ler mas não gosta de ter que responder aos questionários, pois o foco não era a estória mas o conteúdo, onde o aluno tem que focalizar a leitura na estrutura e isso faz com que ele não goste de Literatura. Todorov (2009) define o perigo pelo qual passam milhões de jovens pelo Brasil. Uma “didática” pouco aprazível da Literatura, distanciando assim os alunos do gosto pela Literatura onde o texto literário não exerce o seu papel de ser um aliado às práticas cotidianas da sala de aula, em que o professor deve trabalhá-lo sem retirar ou desmerecer as suas características específicas, mostrando , analisando e debatendo com os alunos as suas propriedades específicas e sobretudo lendo o texto literário com os alunos.
LITERATURA PARA QUÊ? Diferentemente das demais disciplinas, a literatura pode se tornar apaixonante tanto à razão quanto à emoção de uma pessoa. Infelizmente a Literatura deixou de ser arte e tornou-se para muitos apenas uma matéria, principalmente nos vestibulares onde um poema é tratado da mesma forma que um anúncio, uma bula, um bilhete, uma receita. Isso é a “desmoralização e desqualificação da literatura”. Notemos o que diz Gustavo Bernardo (1999): Por que a literatura tem importância institucional? Por que é ensinada nas escolas e nas universidades? Por que tantos alunos, e até mesmo muitos professores (mormente das chamadas disciplinas exatas), consi-
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deram o estudo da literatura o supra sumo da cultura inútil e, a despeito, ela continua a ser ensinada e cobrada, com significativo espaço na grade curricular e nos exames vestibulares? (BERNARDO, 1999, p. 148).
Percebe-se assim a importância do ensino da literatura e que está tem a palavra como sua propriedade e como a palavra é objeto de exploração artística na arte literária, sendo-a de uso imensurável no corpo da linguagem, isso permite ao homem a prática de vida, fazendo conhecer-se, com a expectativa de conviver em sociedade, quando interage com esse texto sabendo as diretrizes que o sustenta como ser cultural. Nesse contexto, Todorov (2009) pontua que: A literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano (TODOROV, 2009, p. 23,24).
As Orientações Curriculares do Ensino Médio, de 2008, defendem a especificidade da literatura dentro do estudo da linguagem e se propõem a ratificar a importância da presença da disciplina no currículo do ensino médio. Ainda com base também nas orientações curriculares nacionais para o ensino médio (2008, p. 49), que identificaremos posteriormente pelas siglas OCNEM, os PCN do ensino médio, ao incorporarem no estudo da linguagem os conteúdos de Literatura, passaram ao largo dos debates que o ensino de tal 38
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disciplina vem suscitando, além de negar a ela autonomia e a especificidade que lhe são devidas. Percebe-se, numa visão especifica a necessidade de dar a relevância precisa ao ensino de literatura no ensino médio, pela qualidade e especificidade do texto de caráter literário, uma vez que este sobrepõe os limites do uso da palavra. Observa-se que para a formação do leitor e o produtor de textos artísticos para a fase, cabe um exercício prático e objetivo de exploração minuciosa de tais textos, sabe-se que com essa prática os alunos aprenderão a ser e a ter atitudes de homens de status privilegiados no seu convívio social, isso é permissivo mediante o saber, que desde tempos da burguesia humanista a literatura era tão valorizada que chegou mesmo a ser tomada como sinal distintivo de cultura (OCNEM, 2008), pois ter passado por Camões, Eça de Queirós, Alencar, Castro Alves, Euclides da Cunha, Rui Barbosa, Coelho Neto e outros era demonstração de conhecimento, de cultura. Sendo a literatura de suma importância e indispensável ao ser humano pela sua capacidade formativa e de nos fazer olhar introspectivamente o nosso ser é importante notar o que diz as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL/MEC 2008) sobre o porquê de a disciplina de literatura ainda estar presente no currículo do Ensino Médio: Imersos nesses tempos, mais do que nunca se faz necessário a pergunta: por que ainda a Literatura no currículo do Ensino Médio se seu estudo não incide diretamente sobre nenhum dos postulados desse mundo hipermoderno? Boa parte da resposta pode ser encontrada talvez no próprio conceito de Literatura tal como o utilizamos até aqui, isto é, no seu sentido mais restrito. Embora se possa considerar, lato sensu, tudo o que é escrito como Literatura (ouve-se falar em literatura médica, literatura científica etc.), para discutir o currículo do Ensino Médio tomaremos a Literatura em seu stricto sensu: como arte que se constrói com palavras. (Orientações Curriculares para o Ensino Médio 2008,p.52)
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O trecho citado nos deixa claro que num mundo e numa escola cada vez mais pragmáticos, reconhecer o direito e a importância de se trabalhar de forma efetiva a Literatura, pois esta é indispensável, porque transgride o senso comum, por que nos desloca, permitindo um olhar diferente para o mundo, porque nos faz descobrir o que não pensávamos existir, inclusive em nós, porque permite a experiência do belo. O potencial formador da literatura é garantia de autonomia e liberdade. Nossos alunos do Ensino Médio têm o direito à literatura e uma literatura que os tornem pessoas reflexivas, críticas, capazes de argumentar e contra argumentar, de pensar sobre si e sobre o outro, situações que a literatura tem “o poder” de proporcionar. O principal argumento para se continuar a ensinar literatura e respondendo à pergunta: Literatura para quê? É o de que a leitura literária é um direito de todos. Negar o contato com qualquer tipo de representação artístico-literária é privar o jovem de exercer sua humanidade plenamente.
METODOLOGIA DA PESQUISA A pesquisa realizou-se em três escolas distintas de Ensino Médio da Rede Estadual de Ensino e seus respectivos alunos de três turmas do 3º ano do Ensino Médio no município de Araripina/PE. Os sujeitos da pesquisa foram três turmas do 3º ano do Ensino Médio num total de 146 (cento e quarenta e seis) alunos, assim distribuídos: T1: 43 alunos; T2: 48 alunos; T3: 55 alunos.Vale-nos ressaltar que fizemos a análise geral das três turmas e que decidimos chamar de T1 (turma um),T2 (turma dois) e T3 (turma três) duas turmas de cada escola que foram resumidas então em uma só turma para melhor análise dos dados. A pesquisa foi descritiva incluindo-se um estudo observacional, onde se comparou três grupos similares, no nosso 146 (cento e quarenta e seis) 40
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alunos, para entender através do questionário aplicado o que estes alunos pensam sobre o ensino de literatura no ensino médio e que relação eles têm com os textos literários. A coleta de dados deu-se através de do instrumento de pesquisa; um questionário dirigido aos alunos com (10) dez questões. Após a coleta de dados foram analisadas as respostas dos questionários. A forma de abordagem deu-se através de uma conversa informal, em seguida foi entregue os questionários aos alunos. Diante da natureza da questão proposta, realizou-se a pesquisa quantitativa em relação aos alunos. A pesquisa quantitativa deu-se a partir do momento em que se foi ao campo, atuou-se na pesquisa fazendo a coleta e análise dos dados. Nessa atividade buscou-se pesquisar as impressões dos alunos quanto à aula de literatura e que relação eles têm com os textos literários. As perguntas do questionário de sondagem têm o objetivo de investigar o que os alunos compreendem como conceito e importância da literatura, e a função do trabalho com o texto literário. As (10) dez questões foram objetivas, porém dentro delas os alunos poderiam discorrer de forma objetiva sobre suas impressões no que tange à aula de literatura no Ensino Médio e responderem se esta aula promove ou não entre eles a leitura literária.
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RESULTADO E ANÁLISE DOS DADOS
Em resposta à primeira questão Para você o que é LITERATURA? 19% dos alunos disseram que literatura é uma disciplina escolar, 37% consideram literatura como arte da palavra, e 44% entendem a literatura como expressão dos sentimentos.
Em resposta à segunda questão Você gosta de LITERATURA? 83% dos alunos disseram que gostam de literatura e 17% disseram não gostar de literatura. 42
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Em resposta à terceira questão O Professor de literatura “conservador” – só trabalha com textos canônicos. O professor de literatura “democrático” – lança mão de qualquer texto, de Fernando Pessoa a raps. O seu professor (a) é mais: conservador democrático 57% dos alunos disseram que seu professor é mais conservador e 43% disseram que seu professor é mais democrático.
Em resposta à quarta questão O seu professor (a) tem sido intermediário entre o livro e você, nas suas leituras? Tem ajudado a compreendê-lo, a interpretá-lo? 86% dos alunos disseram que sim e 14% disseram que não.
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Em resposta à quinta questão Você se sensibiliza nas aulas de literatura? Ou seja, é uma aula agradável, de descobertas e curiosidades? 95% dos alunos disseram que sim e 5% disseram que não.
Em resposta à sexta questão O seu professor usa os textos literários para trabalhar gramática? 91% dos alunos disseram que sim e 9% disseram que não.
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Em resposta à sétima questão Como você costuma agir em relação às obras indicadas pela escola? 9% dos alunos disseram que lêem todas as obras, 15% disseram que lêem quase todas as obras, 69% dos alunos disseram que lêem algumas obras e 7% dos alunos disseram que nunca lêem as obras.
Em resposta à oitava questão Para você estudar literatura serve para:
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Formar cidadãos críticos e leitores assíduos Conhecer a vida e época dos principais escritores Aprender textos literários Compreender melhor o mundo em que vivemos
27% dos alunos disseram que estudar literatura serve para formar cidadãos críticos e leitores assíduos, 29,5% dos alunos disseram que estudar literatura serve para conhecer a vida e época dos principais escritores, 14% dos alunos responderam que estudar literatura serve para aprender textos literários e 29,5% dos alunos responderam que estudar literatura serve para compreender melhor o mundo em que vivemos.
Em resposta à nona questão Seu professor tem uma prática motivadora no ensino de literatura? 94% dos alunos disseram que sim e 6% disseram que não.
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Em resposta à décima questão Como você qualifica o ensino de literatura no 3º ano? 30% dos alunos disseram achar ótimo, 43% dos alunos disseram achar bom, 23% dos alunos disseram achar regular e 4% dos alunos consideraram ruim.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura no Ensino Médio deve ser ensinada de maneira aprazível e o texto literário de ser trazido e trabalhado pelos professores e trabalhados de forma significativa na sala de aula e não serem tratados apenas como textos simplesmente destinados à leitura silenciosa. Sendo assim, sem dúvida alguma os alunos se apropriariam de suas características e o letramento literário seria promovido. As ideias aqui contidas são reflexões, não acabadas, mas com possibilidades, dentre muitas existentes de se pensar com mais carinho na importância do ensino da literatura no ensino médio de forma sistemática e a contribuição que esse ensino poderá trazer para a formação do leitor literário.
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A partir desse pensamento chega-se a pensar na urgência de colocar o aluno em contato efetivo com o texto literário e que este promova uma experiência literária única, que por sua vez, estimulado, assuma sua própria visão de mundo para a fruição estética e consiga distinguir o literário e o não-literário. E nesse contexto, espera-se que haja um ensino completo e uma aprendizagem significativa e dotada de mudanças. Entendendo-se que a Literatura é um centro de formação de leitores competentes o texto literário nos liberta dos monologismos e nos leva aos dialogismos com a vida, com os outros e com o mundo e o professor de literatura deve criar expectativas no aluno para que ele descubra o universo literário, desenvolvendo sua interação com o texto e fazendo suas reflexões com as leituras feitas. Diante dessas reflexões torna-se importante reafirmar o pensamento de Cosson (2014) quando diz que a leitura literária nos oferece a liberdade de uma maneira tal que nenhum modo de ler poderia oferecer, pois a experiência da literatura é um modo único de experiência e essa experiência deve ser vivenciada, promovendo assim o Letramento Literário no Ensino Médio.
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Resumo Após o estudo e apreciação dos vários gêneros literários tais como, fábula, romance, auto, etc., é comum o despertar da curiosidade que impele a análise de classificação das personagens em discentes do curso de Letras. Este artigo tem como objetivo propiciar, aos alunos de Letras, informações que facilitem a compreensão da estrutura dessa classificação e por conseguinte a análise do título. Como principal aporte teórico foi utilizada a obra de Aguiar e Silva e dentre os vários e interessantes gêneros e autores renomados e de outros não tão conhecidos, foi escolhido o conto intitulado “Amaral, Amaralina e Amarantes”, da autoria de Piauiense Armengador de Versos, (2015). A metodologia utilizada foi a análise e classificação das personagens em ordem crescente de importância para o texto. Como conclusão, verificou-se que “Amaralina” de fato é a protagonista da narrativa. Diante desta constatação, segundo os critérios da análise, o título indicado tornou-se inadequado, e em substituição, foi sugerido ou outro - “Amaralina: com o microfone no contra fluxo”. Palavras-chaves: Romance; Fragmentação da narrativa; Análise estrutural; Oswald de Andrade.
A PERSONAGEM POR EXCELÊNCIA Jaerson Barbosa da Silva1
INTRODUÇÃO No século XX, a partir do estruturalismo, surge uma espécie de teoria semiótica da narrativa (ou narratologia) que se propõe a estudar a narratividade em geral. A narrativa é compreendida por vários gêneros literários, e apresenta-se em forma de romances, fábulas, novelas, e entre os vários gêneros encontra-se o conto. O conto, segundo a definição de Araújo (2015), encontrada no site da revista Infoescola (2006): • É uma narrativa linear e curta, tanto em extensão quanto no tempo em que se passa; • A linguagem é simples e direta, não se utiliza de muitas figuras de linguagem ou de expressões com pluralidade de sentidos; • Todas as ações se encaminham diretamente para o desfecho; • Envolve poucas personagens, e as que existem se movimentam em torno de uma única ação; • As ações se passam em um só espaço, constituem um só eixo temático e um só conflito;
1. Graduando em Letras (FACHO), jaersonbarbosa.dasilva@gmail.com 51
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• A habilidade com as palavras é muito importante, principalmente para se utilizar de alusões ou sugestões, frequentemente presentes nesse tipo de texto. Observando tais características, foi escolhido entre os vários existentes, o conto intitulado Amaral, Amaralina e Amarantes, da autoria de Piauiense Armengador de Versos. O conto trata da estória de Amarilina. Uma locutora da emissora de rádio de uma pequena cidade, onde ficou famosa quando foi surpreendida em meio a uma relação de sodomia, extraconjugal, com o seu companheiro de trabalho, Amaralino, nas dependências da emissora. O caso teve grande repercussão na cidade e tornou-se motivo de zombarias na boca dos achincalhadores de plantão. Este trabalho teve como mola propulsora, a curiosidade despertada em alunos do curso de Letras para compreender como se desenvolve o processo de classificação das personagens em uma narrativa, bem como, a escolha do seu título. Seu objetivo, é propiciar a esses alunos informações que facilitem a compreensão da estrutura dessa classificação e por conseguinte a análise do título. Como principal aporte teórico foi utilizada a obra de Aguiar e Silva e a metodologia utilizada foi a análise e classificação das personagens em ordem crescente de importância para o texto. Para iniciarmos, devemos atentar para o fato de que o reconhecimento e a valorização da personagem são de suma importância para a criação e desenvolvimento de um texto literário. Ao se falar de criação, entenda-se que estamos saindo do mundo real, e entrando em um mundo imaginário composto por personagens portanto, em um mundo fictício. Segundo Rosenfeld (2005), Em termos lógicos e ontológicos, a ficção define-se nitidamente como tal, independente das personagens. Todavia, o critério revelador mais óbvio é o epistemológico, através da personagem, mercê da qual se patenteia – as vezes mesmo por meio de um discurso especificamente fictí52
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cio – a estrutura peculiar da literatura imaginária. Razões mais intimamente “poetológicas” mostram que a personagem realmente constitui a ficção. (ROSENFELD,2005, p. 27).
Diante dessa afirmação, percebe-se que a personagem tem papel fundamental na composição de uma ficção. E como tal, pela sua participação no desenvolvimento da narrativa pode ser classificada como personagem redondo (ou esférico), que surpreende, ou personagem plano (ou linear), que mantém o comportamento no desenrolar da trama, como vimos, o conto tem a característica de unir em uma única ação todos as suas personagens o que as aproxima da classificação plana por haver o desenvolvimento do texto e não das personagens. De acordo com Foster, (1927), As personagens desenhadas ou planas são definidas linearmente apenas por um traço, por um elemento característico básico que as acompanha durante todo o texto, esta espécie de personagem tende frequentemente para a caricatura e apresenta muitas vezes uma natureza cômica ou humorística. [...] A personagem plana não altera o seu comportamento no decurso do romance e por isso, nenhum acto ou nenhuma reação da sua parte podem surpreender o leitor. (FORSTER, 1927, p.67 apud AGUIAR e SILVA, 2005).
Em oposição a essas figuram as personagens modeladas ou redondas, vejamos o que afirma, em relação à elas, Aguiar e Silva (2005), As personagens modeladas, pelo contrário, oferecem uma complexidade muito acentuada e o romancista tem de lhes consagrar uma atenção vigilante, esforçando-se por caracterizá-las sob diversos aspectos. Ao traço recorrente próprio das personagens planas, corresponde a multiplicidade de traços peculiar das personagens redondas. (AGUIAR E SILVA,2005, p.710).
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Contudo, poder-se-ia afirmar que todas têm a mesma classificação no quesito de importância para a narrativa? Certamente que não. Embora todas assumam funções necessárias para o desenrolar da narrativa, a depender de sua participação nela, as personagens podem ser classificadas como mais ou menos importante. Aos olhos dos mais simplistas, essa afirmação parece elucidar todas as dúvidas em relação ao assunto. Todavia, o que torna uma personagem mais ou menos importante para uma narrativa? Qual é o critério adotado para se fazer tal escolha? Seria o fato de ser chamada de José, Maria, João, Washington ou mesmo Marguerite? Não. O que torna uma personagem importante não é o seu nome, e sim a sua relevância para a narrativa, a ação ou a sequência de ações por ela cometida, ou sofrida. Dentro de uma narrativa há elementos como: espaço e tempo, entre outros, que podem ser observados, no entanto, nos ateremos a analisar as personagens.
CLASSIFICAÇÃO DAS PERSONAGENS O conto Amaral, Amaralina e Amarantes, foi o escolhido para servir de base analítica das personagens. Dentro de uma narrativa, as personagens atuam e sofrem ações que, dependendo da importância dessas ações em relação ao texto, são classificadas. A personagem homodiégetica está relacionada a sua participação de classificação secundária e como narrador na diegese. Segundo Aguiar e Silva (2005, p.761) se, “o narrador é co-referencial com uma das personagens da diegese, participando da história narrada, classificar-se-á como homodiegético”. A apresentação do narrador do conto aparece na frase, “Por esse tempo, eu era aprendiz de sonoplasta e ouvi muitos cochichados pela emissora.” Para início da análise, exploraremos a personagem homodiegética do
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aprendiz de sonoplasta que, embora se apresente como narrador não fala sobre si mesmo e sim, de outras personagens. A sua importância para o texto é tão inexpressiva que, se tivesse ele omitido sua função na emissora, não acrescentaria ou causaria prejuízo à narrativa, pois ele aparece apenas como uma personagem terciária, no site Dicas de Roteiro, o qual disponibiliza dicas de como criar personagens e roteiros, Scott Myers, (2011 apud Olivetti 2012) afirma que, as personagens são classificadas em três níveis, “Primário: Os personagens principais. Secundário: Personagens recorrentes que são de menor importância. Terciário: Personagens que aparecem em uma, talvez duas cenas para um propósito específico, limitado”. Olivetti também exemplifica a maneira de identificar as personagens sem confundir sua classificação, o primário pelo primeiro nome, o secundário pelo sobrenome e o terciário por um título genérico, como nos exemplos, guarda-costas nº 1, homem gordo e espectador enlouquecido. Similarmente acontece no texto quando o narrador se autonomeia como, “aprendiz de sonoplasta”. Esta classificação embora divirja em parte, também se aproxima de outros autores em relação às personagens principal e secundária. Para melhor entender de como se processa uma classificação de personagem, se faz necessária a compreensão de quão ela é importante para a significação da narrativa. Segundo Aguiar e Silva (2005, p. 687), “sem personagem, ou pelo menos um agente, na verdade, não existe uma narrativa, pois, toda a sua significação só se concretiza com a referência das ações com uma personagem ou um agente”. Observa-se no trecho do texto, “Amaralina com Amaralino faziam um programa ao meio dia.” Baseado em que toda a concretização do significado depende da referência das ações em relação a personagem, é interessante salientar que, para um homem de uma cidade pequena que comete ações libidinosas, tais ações não o afetam, e não são dignas de polêmicas ou
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comentários maldosos, pelo contrário, o torna mais popular. Todavia, nenhuma consequência positiva ou negativa, em relação à Amaralino, foi relatada no texto, o que torna a personagem Amaralino que, embora tenha participado da ação motivadora, juntamente com Amaralina, do desenvolvimento do texto e afora a nomeação que lhe foi dada, quase tão desprestigiada, em relação a classificação, quanto a de uma terciária. Quanto as personagens de Amaral e Amarantes, vejamos o que diz, sobre eles, o texto. “Os brindes distribuídos pelos candidatos eram coisas modestas, tanto que Amaral e Amarantes também se uniram nos brindes.”, elas praticam ações cotidianas, politicagens, que embora ilegais, são tão comuns aos políticos e bem conhecidas por todos os brasileiros. Apresentam-se apenas para compor o cenário, e no texto não apresentam nem participam de ações que para a narrativa lhes favoreçam uma grande importância, ou sirvam de motivo para um conto, podendo ser classificadas como secundárias, deuteragonistas. Segundo Aguiar e Silva (2005, p. 699), o deuteragonista é a personagem secundária mais relevante. Neste contexto, pode-se concluir que as personagens Amaral e Amarantes se encaixam perfeitamente nesta classificação, pois do mesmo modo que compõem o quadro, não se opõem ao personagem principal e não podem ser consideradas antagonistas. Como afirma Aguiar e Silva (2005, p.700), quando diz que o antagonista se contrapõe à personagem principal e que em muitos textos pode até coincidir com o deuteragonista e os comparsas, as personagens acessórias episódicas. Como já visto, falou-se sobre a personagem terciária, secundária nas funções de deuteragonista e antagonista. Afora estas temos a personagem principal. A personagem principal é o ponto de partida para a definição da classificação de todas as outras. A ela, é reservada a função de protagonista. Segundo o dicionário online Lexos (2015), protagonista é, “definição: Prota-
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gonista - subst. m+f. 1. Aquele que se destaca num processo: o protagonista da reforma, 2. Pessoa que desempenha o papel principal: o protagonista do filme.” Tomando por base essa definição, no conto Amaral, Amaralina e Amarantes, encontramos a personagem Amaralina que, embora, não chame a atenção por nenhum feito heroico ou extraordinário, consegue transpor os limites de um “escondidinho” da emissora e tomar conta do cenário da cidade na qual vive. Segundo Giovanni Sinicropi (1997 apud Aguiar e Silva (2005, p. 699), “O protagonista representa, na estrutura dos actantes ou agentes que participam na acção narrativa, o núcleo ou ponto cardeal por onde passam os vetores que configuram funcionalmente as outras personagens.”. Ora, percebe-se que o fato ocorrido entre Amaralina e Amaralino, a íntima relação entre um homem e uma mulher é um ato corriqueiro e comum entre os gêneros desde o início da humanidade, pode-se dizer até que é banal para os nossos dias. Por que então classificar a personagem Amaralina como protagonista? De acordo com o Dicionário priberam (2013), a palavra protagonista vem do grego Protagonistés e significa - O principal ator. Pessoa que ocupa o primeiro lugar em qualquer acontecimento. Promotor. Interveniente em episódios da vida cotidiana. Poder-se-ia então, considerá-la uma heroína? Não, em absoluto. Sobre herói, Aguiar e silva (2005) diz, No neoclassicismo, o herói inscreve-se sempre num espaço ético-ideológico privilegiado, sendo impensável a existência de um herói que, pela sua condição social, pela sua psicologia, pelo seu comportamento moral, etc., viesse pôr em causa os valores socioculturais institucionalizados e aceites pelos grupos sociais hegemônicos. Noutros contextos históricos e sociológicos, pelo contrário, pode ser valorizada por um movimento artístico, por um grupo de escritores ou até por um escritor isolado, a transgressão dos códigos prevalecentes numa dada sociedade: o herói, em vez de se conformar com os paradigmas aceites e exaltados pela
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maioria da comunidade, aparece como um indivíduo em ruptura e conflito com tais paradigmas, valorizando o que a norma rejeita e reprime (homossexualidade, adultério, sadismo, etc.). Nestas condições, o herói assume o estatuto de um anti-herói quando perspectivado e julgado segundo a óptica dos códigos sociais maioritariamente prevalecentes. (AGUIAR E SILVA, 2005, p. 700).
Diante de tais afirmações poderíamos afirmar que, a personagem Amaralina não se enquadra como heroína. Ao ser analisada pelos aspecto axiológico destacamos: o fato de as regras sociais e de moralidade serem, hipocritamente, muito rígidas em cidades pequenas, sobretudo, no interior, onde a maioria da pessoas são conhecidas pelos nomes e apelidos, alcunhas ou cognomes a depender da região e nível cultural, o fato de ter um relacionamento fora do casamento, a relação escandalizadora de sodomia e somado a tudo isso o fato de falar mal e tornar pública a vida de seus conterrâneos em seu programa na emissora, pode-se dizer que ela se enquadra perfeitamente como uma anti-heroína. Quanto ao fato de Amaralina ser considerada a protagonista, é absolutamente indiscutível, sim, ela o é. O que torna importante uma personagem para o texto, não é ela por si só ou a ação, por ela, cometida ou sofrida, e sim, as circunstâncias, o enfoque e a referenciação dessas ações em relação a personagem.
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TÍTULO O que vem a ser um título? Bueno (2007, p. 756), apresenta como significado, TÍTULO, s. m. Inscrição que se põe no princípio de um livro, capítulo etc., indicando o assunto do mesmo; rótulo; letreiro; denominação honorífica; denominação; subdivisão de código, estatuto etc.; reputação; pretexto; intuito; fundamento; documento ou fundamento que torna autêntico um direito; (Qím.) grau de uma solução química. tí. tu. lo.
Ratificando a citação acima Cardoso (2010), afirma, “O título é uma designação atribuída a um determinado texto. É como uma certidão de nascimento, um registro quase obrigatório.”. A escolha do título de um texto, livro, manchete de jornal, anúncio publicitário, etc., é de grande relevância por servir de primeiro contato causador de simpatia ou repulsa o que muitas vezes pode definir o sucesso ou fracasso do conteúdo a ele relacionado. Segundo afirma Cardoso(2010), “O cuidado dispensado ao título, independente de quando é escrito, deve ser redobrado. Ele direciona a leitura, oferece uma ideia do texto, nos coloca em um trilho. Isto sem falar que o título pode despertar, no leitor, o interesse pela leitura.” O leitor muitas vezes escolhe um determinado texto, entre tantos outros, sem a legítima convicção do motivo de sua escolha, isso é feito de maneira tão automática que passa despercebida a atração e capacidade de sensibilização que o título denota. Para ser percebida a importância da escolha do título, Felipe, Sousa e Morelli (2004) em um artigo na Revistas Unipar afirmam que, para avaliar o que se compreende de um texto se faz necessário fazer previsões do vai ser lido a partir do título, podendo essas previsões serem acatadas ou descartadas. Diante de tais observações e seguindo essa linha
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de raciocínio, o que não proíbe ou descarta outras linhas, pode-se afirmar que, o título do texto analisado, embora traga consigo os nomes das personagens, não indica ou pelo menos deixa, ao leitor, uma possibilidade de imaginar o que ele encontrará no texto, portanto, de acordo com a visão da análise, é inadequado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A ação cometida pela personagem por todos os motivos já apresentados, obteve grande repercussão e sem ela não haveria motivos para o conto. Portanto, pode-se classificá-la como protagonista. Devido ao motivo do destaque da personagem, por ela trabalhar em uma emissora de rádio e ter como ferramenta de trabalho um microfone, uma ressalva poderia ser feita como sugestão ao título do conto seria “AMARALINA: com o microfone no contrafluxo.”
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PROTAGONISTA. In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, em linha 2008-2013, <http://www.priberam.pt/DLPO/protagonista>. Acesso em 07 jun. 2015. PROTAGONISTA. In: Dicionário Online de Português, Lexus, 2015. Disponível em: < http://www.lexico.pt/protagonista/>. acesso em: 07 jun. 2015. Scott Myers, 2011. Traduzida por: OLIVETTI, Valeria, 2015. Dicas de Roteiro. Disponível em: http://dicasderoteiro.com/2012/02/17/tres-niveis-de-personagens-primariosecundario-e-terciario/>. Acesso em 29/05/2012. VERSOS, Um Piauiense Amengador de, Amaral, Amaralina e Amarantes, 2015. Disponível em:<http://www.recantodasletras.com.br/content-filter-alert.php?level=moderate&ref= %2Fcontos%2F5235361> Acesso em: 07 jun. 2015.
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Resumo O real maravilhoso tem sua origem como uma das armas do surrealismo contra o mundo racionalista. No entanto, Alejo Carpentier se desiludiu com o surrealismo e buscou redefinir o conceito do Real maravilhoso em suas obras, nesse sentido se configura nosso primeiro objetivo, compreender os aspectos dessa categoria recriada por ele especificamente no livro “Os passos perdidos”. O segundo intento desta pesquisa é elucidar as representações da Memória na obra em foco, pois, a recordação, em toda obra, se dá como uma revelação, como uma tomada de consciência que altera a percepção de realidade em que a personagem se insere. Deste modo, se justifica a coerência de nossa opção por unir os aspectos do Real maravilhoso e da Memória na análise de “Os passos perdidos”. Para compor o arcabouço teórico nos pautamos em BOSI (1997); BERGSON (2006); ASSMANN (2011); CARPENTIER (1985); CAMAYD-FREIXAS(1998); CHIAMPI (1980), dentre outros. Por fim, nossa postura diante do nosso objeto de estudo, é aquela já colocada por Said (2007, p.82), “adentrar no processo da linguagem já em funcionamento nas palavras e fazer com que revele o que pode estar oculto, incompleto, mascarado ou distorcido”. É a leitura minuciosa do texto que envolve recepção e resistência, situando o texto como parte de uma rede de relações. Palavras-chaves: Real maravilhoso; Memória; Carpentier.
Aspectos do Real Maravilhoso e da Memória em “Os passos perdidos”, de Alejo Carpentier Amanda Barros de Melo1 “O maravilhoso nasce do rechaço da realidade, mas também do desenvolvimento de uma nova consciência, de uma realidade nova que tem liberado esse rechaço” ARAGON, 1999, p.439
Por seu caráter de oposição, o real maravilhoso é uma das armas do surrealismo contra o mundo racionalista, a surrealidade seria uma linha do real que reuniria todas as imagens que nos rodeiam. Os surrealistas passaram a se interessar por viagens, conferências e o continente americano foi um dos lugares mais recorrentes, basta lembrar que o argentino Aldo Pellegrini foi o primeiro a organizar um grupo que representasse o movimento no continente americano. Além disso, a América exercia grande fascínio sobre os vanguardistas europeus por seu caráter mítico, pela mistura de culturas e pela natureza exuberante. Mas assim como Ernesto Sábato e Julio Cortazár, Alejo Carpentier também se desiludiu com o surrealismo, eles passaram a encará-lo como uma “fábrica de truques mágicos” palavras de Carpentier; para ele, a união de objetos estranhos não representava o maravilhoso, esses encontros fortuitos eram uma falsificação do que seria o maravilhoso. Na esteira desse senti-
1. Atualmente, é doutoranda em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora de Língua Portuguesa e Literatura do Colégio Militar do Recife (CMR). Endereço eletrônico: amandabarrospe@gmail.com 63
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mento, em 1949 torna pública sua decepção com o surrealismo ao publicar “O reino deste mundo”, obra que procura redefinir a ideia de maravilhoso. No prólogo desta, Carpentier afirma que a evidência do que seria o real maravilhoso se deu durante sua permanência no Haiti, no próprio cotidiano do lugar, no entanto, ele percebe que essa presença não era privilégio do Haiti e sim um patrimônio do continente americano. Ele termina o prólogo se perguntando: “Mas o que é a história da América toda se não uma crônica do real-maravilhoso?” (1949, p.9). Segundo o autor, O maravilhoso começa de maneira inequívoca quando ele surge a partir de uma alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação incomum ou singularmente favorável às riquezas invisíveis da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias de realidade, percebidas com particular intensidade em virtude de uma exaltação do espírito que leva a uma forma de “estado limite”. Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé. (CARPENTIER, 1985, p.4)
A primeira epígrafe do primeiro capítulo de “Os passos perdidos” são versículos bíblicos do livro deuteronômio, lá encontramos Deus falando ao povo dos castigos que eles sofreriam pela desobediência: “E os céus que estão sobre tua cabeça serão de bronze; e a terra que está debaixo de ti, de ferro. E tatearás ao meio-dia, como tateia o cego na escuridão” (Deuteronômio, 28. 23-29) O livro bíblico trata das peregrinações do povo pelo deserto, “os passos perdidos” do povo de Israel. O narrador carpenteriano já nas primeiras páginas se coloca alheio à realidade em que se insere, afirmando que “empreendia estranhas viagens pelos meandros de uma cidade invisível” (2008, p.12). Nosso foco neste trabalho será o personagem-narrador, ele nos conduz 64
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a perceber indícios de que o meio que ele se encontra incialmente não faz muito sentido para si. A confluência das descrições poéticas da natureza com o que de fato faz sentido para esse personagem se inicia aqui e vai introduzindo no leitor a anunciação de uma realidade diversa em que o eu e o espaço ao redor configuram uma significação diferenciada. Por exemplo: relembro essas gotas caindo sobre minha pele em deleitosas alfinetadas, como se fossem a primeira advertência – ininteligível para mim, então – do encontro. Encontro trivial, de certo modo, como são, aparentemente, todos os encontros cujo verdadeiro significado só se revelará mais tarde, na trama de suas implicações... Devemos procurar o começo de tudo, seguramente, na nuvem que arrebentou em chuva aquela tarde, com tão inesperada violência que seus trovões pareciam trovões de outra latitude. (CARPENTIER, 2008, p.16)
Quando terminamos de ler a narrativa e sabemos o fim, essa “advertência” do primeiro capítulo se ilumina com o final, a chuva vai estar sempre presente e por causa das muitas águas das chuvas ele não conseguirá voltar o povoado que ele tinha escolhido como casa, como realidade. Nesta citação também é fundamental observar a frase: “devemos procurar o começo de tudo”, esse é o projeto literário de Carpentier, também o projeto da narrativa enquanto ficção, é o desejo da personagem principal e é o que configura a busca do real maravilhoso, a busca pelas origens. Segundo Camayd-Freixas (1998), o real maravilhoso está oculto e o “trabalho do artista é descobri-lo e fazê-lo manifesto” (p.92). Na narrativa em estudo, o musicólogo está em busca de instrumentos musicais primitivos, é por isso que ele sai do seu lugar e tal feito lhe traz o “prazer do insólito” (CARPENTIER, 2008, p.17). No início da narrativa, ele se diz “exasperado por não poder mudar nada em sua existência regida sempre por vontades alheias” (2008, p.18) até que um dia, correndo na chuva, encontra um Cura65
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dor que afirma procurar ele, e o leva para ouvir um disco em um gramofone, nesse momento: Viro-me para encher minha taça quando soa às minhas costas o gorjeio de uma ave. Surpreso, olho o ancião que sorri com ar suavemente paternal, como se acabasse de me dar um presente inestimável. Vou perguntar-lhe, mas ele reclama meu silêncio com um gesto indicador em direção ao prato que gira. Algo diferente vai-se escutar agora, sem dúvida, Mas não. Já estamos na metade da gravação e prossegue esse gorjeio monótono, cortado por breves silêncios, que parecem de uma duração sempre idêntica. Não é sequer o canto de um pássaro muito musical, pois ignora o trino, o portamento, e só produz três notas, sempre as mesmas, com um timbre que tem sonoridade de um alfabeto morse soando na cabine de um telegrafista. O disco vai quase terminando e ainda não compreendo onde está o presente tão apregoado por quem me fora um tempo meu mestre, nem imagino o que tenho eu a ver com um documento interessante, no máximo, para um ornitólogo. Termina a audição absurda e o Curador, transfigurado por um inexplicável júbilo, pergunta-me: “Compreende? Compreende?”. E me explica que o gorjeio não é de pássaro, mas sim de um instrumento de barro cozido com que os índios mais primitivos do continente imitam o canto de um pássaro antes de ir caçá-lo, em rito possessório de sua voz, para que a caça lhes seja propícia. “É a primeira comprovação de sua teoria”, diz-me o ancião, abraçando-me quase com um acesso de tosse. (2008, p.20-1)
Essa iluminação incomum, essa revelação privilegiada do milagre que o Curador sente ao ouvir o som do instrumento de barro é a materialização do real maravilhoso, é uma das imagens fortes da narrativa que evidenciam essa nova realidade. O musicólogo ainda está alheio a ela, ele não a compreende e ainda ironiza. O percurso da personagem nesse sentido é muito interessante, porque ele está numa vida que não o apetece, mantém um casamento rotineiro e sem amor, também mantem uma amante. Mas 66
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depois desse fato com o Curador, ele relembra o quanto era apaixonado pelo seu antigo estudo acerca da origem da música, e de sua engenhosa teoria do “mimetismo-mágico-rítmico” e de vários sonhos que ele tinha deixado para trás pela tirania do cotidiano. Daí surge a proposta de retomar o estudo sobre os instrumentos primitivos com uma viagem aos lugares mais intocados da “selva do Sul”. Nesse entremeio há um constante reconhecimento da personagem pela paisagem local, pelo idioma, pelos hábitos e costumes de sua infância e adolescência. E nesse percurso ele vai retomando antigas sensações e prazeres, como “a faculdade de dormir a qualquer hora” (2008, p.90), sempre tomado pela nostalgia do que se havia perdido. Nesse início da mudança, a personagem chega a dizer que diante das conhecidas imagens eu me perguntava se, em épocas passadas, os homens teriam saudade das épocas passadas, como eu, nesta manhã de estio, tinha – como se os tivesse conhecido – de certos modos de viver que o homem perdera para sempre (2008, p.39)
Aqui a representação da memória se realiza diante das imagens que produzem percepções de uma lembrança que é até certo ponto desconhecida da personagem, já que ele fala de “modos de viver” que se perderam para sempre, ou seja, ele busca recordar-se de um tempo que não é o seu, um tempo “primitivo”, primeiro, não vivido por ele, mas por outros. Nesta problemática da imagem enquanto lembrança, cabe citar Bergson (2006, p.145) para quem “as imagens, com efeito, serão sempre coisas, e o pensamento é um movimento”, daí seu caráter provisório, não definitivo, caracterizado por um processo de associação em nossa inteligência. No decorrer da narrativa, ele vai percebendo que em sua vida em Nova Orleans, “os discursos haviam substituído os mitos” (2008, p.99) e o quanto
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se perdera por aquilo. É interessante observar que nossas concepções e experiências (pós) modernas de tempo e espaço alteraram profundamente nossa relação com o passado, hoje temos uma necessidade constante de “manter” a memória viva de algum modo, justamente pela sensação de fluidez do tempo e da consciência de uma vida que não possui uma verdade única que dê sentido à existência. A personagem constata, na observação de seu espaço, que “jamais poderia ter imaginado uma quebra tão absoluta do homem do Ocidente como a que se estampara aqui em resíduos de espanto.” (2008, p.103) Outro aspecto importante da obra é o seu forte apelo sinestésico, em certo momento o narrador recorda, Nada há nesse odor que se possa qualificar de agradável. E, no entanto, tonifica-me, como se sua verdade respondesse a uma oculta necessidade do meu organismo. O que me acontece é algo parecido ao do camponês que regressa à granja paterna, depois de passar alguns anos na cidade, e põe-se a chorar de emoção ao sentir a brisa que cheira a esterco (2008, p.121).
Mesmo o mau cheiro do esterco é capaz de suscitar a revelação de um real maravilhoso, de uma antiga vida em que a beleza estava simplesmente no cotidiano. Nesse trecho podemos também depreender aquilo que Santo Agostinho constata em suas Confissões, para ele, conhecemos a partir dos nossos sentidos e, no palácio da memória, as imagens das coisas sensíveis se oferecem ao pensamento que as recorda. Os sons, as cores, os cheiros, tudo estaria disponível a nós à medida que quisermos recordá-los. Conforme o autor, Estando a língua em repouso e a garganta em silêncio, canto o que me apraz. [...] Do mesmo modo, conforme me agrada, recordo as restantes percepções que foram reunidas e acumuladas pelos outros sentidos. As-
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sim sem cheirar nada, distingo o perfume dos lírios do das violetas, ou então, sem provar nem apalpar, apenas pela lembrança, prefiro o mel ao arrobe e o macio ao áspero (2013, p.223).
Agostinho não ignora o esquecimento como constituinte da memória, para ele, a memória retém o esquecimento que se encontra presente não por si mesmo, mas por uma imagem sua. Se não como nos lembraríamos dele?! Agostinho reconhece a grandeza da memória e sua importância, mesmo sem poder compreendê-la em sua totalidade, assim como nós hoje. No decorrer da narrativa, a personagem resolve cada vez mais adentrar lugares remotos da selva, e nesse processo constata que “o que mais me assombrava era o interminável mimetismo da natureza virgem. Aqui tudo parecia outra coisa, criando-se um mundo de aparências que ocultava a realidade, pondo muitas verdades em interdição” (2008, p.179). Segundo Bosi (1997, p.47) “a memória permite a relação do corpo presente com o passado e, ao mesmo tempo, interfere no processo “atual” das representações”. Tanto o é que ele começa a repensar suas verdades, suas representações; É como se tudo ficasse suspenso, afinal, tudo na selva era metamorfose, e ele sente medo por isso. Segundo Carpentier (1976, p.65-6), todo o insólito, todo o assombroso, tudo o que sai das normas estabelecidas é maravilhoso. [...] O feio, o desforme, o terrível, também pode ser maravilhoso. [...] O real maravilhoso que eu defendo, e é o real maravilhoso nosso, é o que encontramos no estado bruto, latente, onipresente em todo o latino-americano. Aqui o insólito é cotidiano, sempre foi cotidiano.
O assombro pela perda de si e de um novo reconhecimento perpassam toda obra através do musicólogo, esse encontro com o real maravilhoso, que 69
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na verdade para Carpentier pertence unicamente ao americano, poderia ser problematizado e repensado em termos dessa suposta exclusividade. Será que fora das Américas não seria possível encontrar tal realidade?! Tal mistura e encanto?! Fica para nós a sensação, mesmo com base no desconhecido, que os encantos dessa nova realidade vistos pela personagem central de “Os passos perdidos” não seriam exclusivos e podem, na verdade, centrar-se muito mais na subjetividade de quem o “vê”. Uma evidência desta premissa poderia aparecer no momento em que ele chega ao povoado e toma consciência que nada era mais alheio à sua realidade que o absurdo conceito do Selvagem. A evidência de que desconheciam coisas que eram para mim essenciais e necessárias estava muito longe de vesti-los de primitivismo. [...] Ali, no chão, junto a uma espécie de fogareiro, estavam os instrumentos musicais cuja coleção me havia sido encomendada no começo do mês. [...] pareceu-me que entrava em um novo ciclo de minha existência. A missão estava cumprida. (2008, p.188)
Segundo Chiampi (1980, p.32), “real maravilhoso é a união de elementos díspares, precedentes de culturas heterogêneas, que configura uma nova realidade histórica, que subverte os padrões convencionais da racionalidade ocidental”. É exatamente o que o narrador constata ao perceber que nada do que ele entendia como “selvagem” ou “primitivo” fazia sentido naquela realidade, sua forma racional de pensar não era adequada a essa nova configuração. Para Carpentier, a mistura de elementos, cada um contribuindo com seu “barroquismo”, culminaria no real maravilhoso da América. Ele busca a essência e as formas americanas, no intuito de reorganizar a ordem das coisas do mundo. Segundo CAMAYD-FREIXAS (1998, p.106)
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o projeto de Carpentier se reparte necessariamente em três aspectos: realidade, percepção e expressão. O real maravilhoso se refere unicamente aos dois primeiros. Dados mais ou menos objetivos acerca da natureza e do homem americano (o real), percebidos do ângulo adequado, afetam o sujeito de tal modo, que este os interpreta como ‘maravilhosos.
Concordamos com esta citação, afinal, “a origem e a fonte de toda realidade, seja de um ponto de vista absoluto, seja prático, sempre está, em nós mesmos” (SCHÜTZ apud LIMA, 1983, p. 191). Então, mesmo que a literatura trate de uma única “realidade interior”, o eu e o outro, o sujeito e o objeto estarão condensados e serão percebidos e projetados pelo leitor. Pois, como bem coloca Iser (1975, p.385) “há no texto ficcional muita realidade que não deve ser só identificável como realidade social, mas que também pode ser de ordem sentimental e emocional”. Tendo em mente que cada época tem seus próprios sistemas de sentido, não obstante as essências, é interessante também notar que “a literatura é o lugar dialético onde se articulam estruturas textuais e extratextuais” (MACHADO & PAGEAUX, 1998, p.120), e que, conforme Zéraffa (1971, p. 13), “o paradoxo do romance é o de toda obra de arte: ela é irredutível a uma realidade que, entretanto, traduz”. Enfim, sabemos que toda literatura contém elementos do real, sejam eles de ordem social ou emocional, se assim não fosse, não haveria o reconhecimento por parte do leitor nem a efetivação dos sentidos que a obra propõe. Outro aspecto interessante a se perceber em “Os passos perdidos” são as transformações pela qual o “eu” da personagem principal passa, num dado momento da narrativa ele afirma, Eu percebia esta noite, ao olhá-los, quanto dano me fizera um prematuro desarraigamento deste meio que fora meu até a adolescência; quanto contribuíra para me desorientar o fácil deslumbramento dos homens de minha geração levados por teorias aos mesmos labirintos intelectuais,
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para fazerem-se devorar pelos mesmos Minotauros. Certas ideias me cansavam, agora, de tanto as ter defendido, e sentia um obscuro desejo de dizer algo que não fosse o cotidianamente dito aqui [...]. Certos temas da ‘modernidade’ pareciam-me intoleráveis (CARPENTIER, 2008, p. 79-80).
Esta sutil “crise de identidade”, quase uma irritação por ter se tornado um outro diferente do que se gostaria, pode ser compreendida por nós na medida em que percebemos uma visão de um sujeito, que antes era visto como unificado, agora se encontra fragmentado, deslocado e descentrado. “A identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2006, p. 13). Assim, a chamada ‘crise de identidade’ é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2006, p. 07)
Ainda na esteira deste tema, segundo Kathryn Woodward (2008), a identidade é relacional, ou seja, ela se constrói na relação com o Outro, é também marcada pela diferença. O musicólogo de Carpentier está totalmente enquadrado nesta problemática, através de uma comparação com o que se perdeu e um reconhecimento da diferença de uma cultura à outra, ele não apenas repensa suas certezas quanto resolve mudar de vida completamente. A construção da identidade, portanto, é tanto simbólica quanto social. A autora ainda afirma que “uma das formas pelas quais as identidades estabelecem suas reivindicações é por meio do apelo a antecedentes históricos” (2008, p.11). E é na busca de suas raízes da infância, no país de seu nascimento e no contato com o idioma perdido que o musicólogo se encontra e se vê partilhando um real maravilhoso. 72
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Além disso, as formas de representação também constituem nossa identidade, seja pelas escolhas de algumas palavras, seja pela ideologia, seja pelo que consumimos. Essa representação simbólica evidencia caminhos da nossa identidade plural e móvel. A migração, processo pelo qual o narrador de “os passos perdidos” passa, também é responsável por isso, afinal, a globalização impulsiona o deslocamento cada vez maior das pessoas dentro do globo, essa mistura provoca tanto a instabilidade das identidades como sua ‘crise’. Segundo WOODWARD (2008, p.25), As identidades em conflito estão localizadas no interior de mudanças sociais, políticas e econômicas, mudanças para as quais elas contribuem. As identidades que são construídas pela cultura são contestadas sob formas particulares no mundo contemporâneo - num mundo que se pode chamar de pós-colonial. Este é um período histórico caracterizado, entretanto, pelo colapso das velhas certezas e pela produção de novas formas de posicionamento.
Este colapso de certezas e esta nova forma de posicionamento se confirma, dentro outros trechos, pela conclusão a que a personagem chega depois de sua vivência na selva, Estas reflexões me levavam a pensar que a selva, com seus homens ousados, com seus encontros fortuitos, com seu tempo não transcorrido ainda, havia me ensinado muito mais quanto às próprias essências de minha arte, ao sentido profundo de certos textos, à ignorada grandeza de certos rumos, que a leitura de tantos livros que jaziam já, mortos para sempre, em minha biblioteca. Com o Adelantado compreendi que a obra máxima proposta ao ser humano é a de forjar um destino para si mesmo. Porque aqui, na multidão que me rodeia e corre, ao mesmo tempo desaforada e submetida, vejo muitos rostos e poucos destinos. [...] Já não aceito a condição de Homem-Vespa, de Homem-Ninguém,
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nem admito que o ritmo de minha existência seja marcado pelo porrete de um comitre” (CARPENTIER, 2008, p. 273-4)
As crises do homem moderno em sua essência são partilhadas por muitos, afinal, a literatura trata de temas e problemáticas relativas ao homem, seu criador. Portanto, mesmo a obra mais individualista carrega em si uma natureza que nos é comum, e que nos une a todos. Até no extremo da ilogicidade pós-moderna nós leitores somos capazes de encontrar certa identificação mediante a própria ilogicidade da vida e do mundo. Sabemos que “a complexidade da vida moderna exige que assumamos diferentes identidades, mas essas diferentes identidades podem estar em conflito” (WOODWARD, 2008, p.31). Isso é evidente em meio aos conflitos vividos por nós: guerras, ataques terroristas, vandalismo, atos desumanos, tudo isso nos conduz a repensar nossos posicionamentos e por consequência, modificar nossa identidade. Diante das vivências do século XX e seu contexto histórico, movido por guerras e grandes deslocamentos, que alteraram o modo de vida das pessoas, e, até certa efervescência teórica no que diz respeito a estudos críticos de arte, percebe-se consideráveis mudanças. As obras literárias modernas são objetos de estudo que, via de regra, assumem um caráter experimental, onde a tradição é questionada, retrabalhada ou levada aos seus limites máximos. Carpentier se insere nesse grupo. Neste caso, também vale ressaltar a afirmação de Candido (1968, p.74) sobre a função do escritor: “o que se dá é um trabalho criador, em que a memória, a observação e a imaginação se combinam em graus variáveis, sob a égide das concepções intelectuais e morais.” Ou seja, as circunstâncias em que a obra é produzida, combinadas com uma análise profunda do texto, podem evidenciar certos critérios de escolha, bem como de temas que perpassam a obra literária.
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Concordamos que “os textos literários são ‘produtores de códigos’ e ‘transgressores de códigos’, bem como ‘confirmadores de códigos’: eles podem nos ensinar novas maneiras de ler, e não apenas reforçar as já existentes” (EAGLETON, 1991, p. 171). A literatura enquanto obra feita por homens irá sempre representar esse “humano” de alguma forma, forma esta que muda com o tempo, o contexto e que se concretiza no ato da leitura, no momento da interpretação. Por conseguinte, concordamos com Henry James ao afirmar que […] o romancista deve escrever a partir de sua experiência. […] Há um ponto em que o sentido moral e o sentido artístico se aproximam muito; e isso sob a luz bastante óbvia de que a qualidade mais profunda de uma obra de arte sempre será a qualidade da mente do criador. (1995, p. 28; p. 44.)
Carpentier com sua carreira jornalística, desde cedo envolvido por questões políticas, preso por isso inclusive, forçado a mudar-se para França em fuga, não poderia deixar de refletir em suas obras suas experiências com uma realidade social injusta, com um mundo repleto de incoerências e também seu “entre lugar” no mundo. O musicólogo de “Os passos perdidos” se encontra e se encanta com o “mundo novo” da selva, para ele O que se abre diante de nossos olhos é um mundo anterior ao homem. [...] Estamos no mundo do Gênese, no fim do Quarto Dia da Criação. Se retrocedêssemos um pouco mais, chegaríamos aonde começara a terrível solidão do Criador – a tristeza sideral dos tempos sem incenso e sem louvores, quando a terra era desordenada e vazia, e as trevas estavam sobre a face do abismo (CARPENTIER, 2008, p.201-2)
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A percepção de uma realidade distinta conduz a personagem a encarar o mundo como maravilhoso, desconhecido e original. E ele resolve ficar lá de vez. Começa a repensar as razões do mundo em que vivia antes, e de como elas não eram reais nem verdadeiras. Lá ele poderia contemplar a realidade da vida, do mundo, compreender as pessoas. Ele afirma que está lá “antes de tudo para sentir e ver” (p.227) e não para pensar. Ele chega a se perguntar se as formas superiores da emoção estética não consistirão, simplesmente, num supremo entendimento do criado. Um dia, os homens descobrirão um alfabeto nos olhos das calcedônias, nos pardos veludos da falena, e então se saberá com assombro que cada caracol manchado era, desde sempre, um poema (CARPENTIER, 2008, p.228).
Aqui um aspecto fundamental do maravilhoso se revela: a fé. Segundo Camayd –Freixas (1998), Carpentier apela para o irracional para conseguir alcançar o real maravilhoso, daí a necessidade da fé. A doutrina do “encontro imprevisto” dos surrealistas consistia na justaposição dos objetos mais díspares, analogamente, Carpentier vê no choque de culturas um encontro imprevisto dos ideários universais, processo gerador do maravilhoso na realidade. Para Freixas, a autenticidade da arte para Carpentier se acha sempre no regresso às origens, e, na América onde essa fé ainda é viva, o artista poderia recuperar as raízes primeiras da arte. No entanto, na narrativa, o musicólogo não consegue voltar para o povoado, ele não encontra mais a passagem no rio, o que comprova que esse ideal de busca às origens e fé funciona enquanto projeto, porque a realidade é hostil a isso. Esse primitivo é inalcançável, o protagonista tenta voltar, mas adverte que é impossível “desandar o andado”. Por isso, Freixas coloca que “Os passos perdidos” representa o final de um ciclo na narrativa carpenteriana do real maravilhoso. O que sobrevive é a fé enquanto projeto como um chamado ao artista latino-americano.
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Retomando a questão da memória na obra estudada, Bosi (1997, p.47) elucida que “pela memória, o passado não só vem à tona das águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra, ‘desloca’, estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência”. Quase em toda obra o narrador está lembrando-se de algo que passou, contando a nós leitores suas experiências, suas memórias ao observar o que existia no povoado de Santa Mónica de los Venados: Lembrança viva de certos mitos que eram, em suma, presença de uma cultura mais honrada e válida, provavelmente, que a que deixáramos lá. Para um povo era mais interessante conservar a memória da Canção de Rolando que ter água quente nos domicílios. Agradava-me que ainda restassem homens pouco dispostos a trocar sua alma profunda por algum dispositivo automático que, ao abolir o gesto da lavadeira, levava também suas canções, acabando de repente, com um folclore milenar (CARPENTIER, 2008, p.134).
A personagem valoriza a memória e critica a substituição de antigos hábitos, que carregavam uma história, pelas invenções da modernidade. A recordação em toda obra se dá como uma revelação, como uma tomada de consciência que altera a percepção de realidade em que a personagem se insere. Numa viagem não só pela selva venezuelana como pelo próprio eu interior que a partir do outro, seja pela paisagem ou pelos nativos, ele consegue encontrar-se. Como afirma Carlos Fuentes, em Carpentier “naturaleza y cultura se unem solo para transfigurarse, para adinarse en una elaboración mítica del paisaje perdido entre el caos y el cosmos” (FUENTES apud CARPENTIER, s/d, p.13). Também como diria Assmann (2011, p.70), “reformulação da identidade sempre significa também reorganização da memória”. E acompanhamos esse processo no decorrer da narrativa, também reconhecendo a memória como “penetrante e invasora” (BOSI, 1997, p.47) em nós leitores. 77
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Por fim, na última página do livro lemos, Aqui se pode ignorar o ano em que se vive, e mentem aqueles que dizem que o homem não pode escapar de sua época. A Idade da Pedra, tanto como a Idade Média, ainda se oferecem a nós no dia que transcorre. Ainda estão abertas as mansões sombrias do Romantismo, com seus amores difíceis. Mas nada disto se destinou a mim, porque a única raça que está impedida de se desligar das datas é a raça dos que fazem arte, e não só têm de se adiantar a um ontem imediato, representado em testemunhos tangíveis, mas também se antecipam ao canto e à forma de outros que virão depois, criando novos testemunhos tangíveis em plena consciência do que foi feito até hoje. (2008, p. 297)
Carpentier conclui refletindo sobre o próprio ofício de artista, de acordo com o texto acima, pensando sobre aquele que inevitavelmente está preso ao tempo e todo seu contexto, aquele que funciona como arauto do que virá e tradutor do que já existe, sempre criando novos testemunhos. Sua visão da prática artística poderia ser vislumbrada por esse trecho da narrativa que nos elucida que aos que não fazem arte é possível ignorar o tempo e ter qualquer época à sua disposição, que os passos perdidos dos que estão presos ao tempo podem idealizar passos de um “tempo sem tempo”, e reconstruir ou perder a si mesmos nesse ideal.
REFERÊNCIAS AGOSTINHO, Santo. Confissões. Rio de Janeiro: Vozes, 2013. ARAGON, Louis. La pintura desafiada. In: CALVO SERRALER, Francisco; GONZÁLEZ GARCÍA, Ángel; MARCHÁN FIZ, Simón. Escritos de arte da vanguardia 1900/1945. Madrid: ISTMO, 1999. BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das. Letras, 1997.
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ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011. BERGSON, Henri. Matéria e memória. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CAMAYD-FREIXAS, Erik. Realismo y primitivismo: relecturas de Carpentier, Asturias, Rulfo e García Márquez. Lanhan/New York/Oxford: University Press of America, 1998. CARPENTIER, Alejo. O reino deste mundo. Trad.: João Olavo Saldanha. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1985. ______. Os passos perdidos. Tradução Marcelo Tápia. São Paulo: Martins, 2008. ______. Lo Barroco y lo Real Maravilloso. Ensayos. Habana: Editorial Letras Cubanas, 1984. Conferência proferida no Ateneo de Caracas, em 22 de maio de 1975, sobre a relação do barroco com o real maravilhoso americano. CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispanoamericano. São Paulo: Perspectivas, 1980. FUENTES, Carlos. Alejo Carpentier. In: CARPENTIER, Alejo. El siglo de las luces. Caracas: Biblioteca Ayacucho, s/d. RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007.
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Resumo Este trabalho parte da perspectiva de apresentar uma discussão teórica e analítica sobre a ocorrência e o comportamento do encapsulamento anafórico no discurso da mídia. O encapsulamento é um recurso coesivo constituído por um sintagma nominal (demonstrativo + um nome núcleo) que sinaliza a retomada de uma porção textual anteriormente descrita (CONTE, 2003) e que pode funcionar como uma poderosa estratégia textual de construção de sentidos e progressão temática, pois empacota as informações velhas e (re)categoriza estas informações apresentando novas predicações para o discurso (FRANCIS, 2003; MELO, 2008). Fundamentado sob as bases da Linguística Textual, da Análise Crítica do Discurso e da Sociocognição, o artigo utiliza uma metodologia de caráter essencialmente analítico e interpretativo com base na abordagem qualitativa. Este estudo mostra que as escolhas lexicais utilizadas não só encapsulam as partes precedentes como também apresentam uma carga de ideologias que reflete pontos de vista. Palavras-chaves: Encapsulamento Anafórico; Inferências; Progressão tópica; Construção de sentido.
ASPECTOS SOCIOCOGNITIVOS NO ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO EM GÊNEROS DO DOMÍNIO JORNALÍSTICO Maria Sirleidy de Lima Cordeiro1
INTRODUÇÃO Discorrer acerca dos aspectos sociocognitivos no encapsulamento anafórico em notícias e reportagens sobre as manifestações em São Paulo implica investigar o comportamento do sintagma nominal encapsulador, o qual irá funcionar como uma poderosa estratégia textual de construção de sentidos e progressão temática que sinaliza a retomada de uma porção textual anteriormente descrita (CONTE, 2003), como também, irá exercer um papel norteador para a construção da significação, indicando uma possibilidade interpretativa da parte encapsulada. O encapsulamento anafórico (CONTE, 2003; FRANCIS, 2003) é um sintagma nominal anafórico formado preferencialmente por um pronome demonstrativo e um nome núcleo, este nome núcleo funciona como predicador que expressa um sentido que está relacionado não só a interface do cotexto, mas também a interface de um contexto que perpassam a produção do texto/discurso e que podem ser perceptíveis pelas escolhas lexicais utilizadas. Este trabalho, ora apresentado, é uma maneira de proporcionar o fortalecimento das práticas de produção e interpretação textual pertencente
1. Aluna de doutorado em Linguística pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e bolsista Capes. E-mail: sirleidy_lima@hotmail.com. 81
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a alguns gêneros textuais, como notícia e reportagem, e ainda, ampliar os estudos que envolvem o discurso jornalístico, porque segundo Marcuschi (2007, p.168) “é muito difícil informar sem manipular”, nesta perspectiva, vê-se que os discursos midiáticos utilizam o encapsulamento anafórico como uma ferramenta de textualização para direcionar as opiniões públicas contra ou a favor das manifestações em São Paulo.
AS ESCOLHAS LEXICAIS E O DISCURSO JORNALÍSTICO O encapsulamento anafórico é uma estratégia textual discursiva constituído por um sintagma nominal (pronome demonstrativo + um nome núcleo) (KOCH, 2004; CONTE, 2003). A escolha desse nome núcleo realizada pelo autor do texto vai exercer um papel fundamental para a construção da significação, indicando uma possibilidade interpretativa da parte encapsulada, bem como, vai garantir a progressão tópica-textual. Marcuschi (2004) postula que o léxico é como uma rede de relações conjunta que envolve aspectos sociais, culturais e cognitivos para a produção de sentido socialmente situado, e Falcone (2003), assevera que: “as escolhas lexicais são socialmente motivadas e norteadas por posicionamentos políticos e ideológicos” (FALCONE, 2004, p.119). Nesta perspectiva, vê-se que o item lexical, escolhido para compor o sintagma nominal do encapsulamento anafórico, precisará de elementos contextuais e cognitivos para a produção de significações. No entanto, sua escolha não é aleatória, pelo contrário, o autor do texto ao fazer a seleção desse léxico para empacotar a parte precedente, depositará uma interferência semântico-axiológica em maior ou menor grau, a fim de nortear a compreensão do leitor sobre os acontecimentos anteriormente descritos.
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Desse modo, o nome núcleo do sintagma nominal no encapsulamento anafórico introduz um objeto de discurso que categoriza e recategoriza a progressão tópica textual. Segundo Melo (2008), o sintagma nominal do encapsulamento anafórico é um léxico-predicativo que além de empacotar as informações precedentes, pode nortear o sentido do texto e construir pontos de vista diversos sobre a porção textual anaforizada. O presente estudo parte, também, de uma reflexão e abordagem acerca do discurso jornalístico, pois como postula Van Dijk (1994), os discursos contidos na mídia podem construir normas e valores que legitimam as ideologias de um grupo social específico. Em face disto, percebe-se que a mídia utiliza o encapsulamento anafórico para direcionar características e sentidos sobre determinados fatos que acontecem no cotidiano. O sentido, neste trabalho, é visto como um modo de compreender algo através de experiências compartilhadas que são construídas numa rede de relações sociais, históricas e culturais (SALOMÃO, 1999; MELO, 2008).
ARTICULAÇÃO ENTRE CONTEXTO, TEXTO E INFERÊNCIA No campo dos estudos linguísticos, pesquisadores apontam a inferência e a importância do contexto nas relações sociais e linguísticas. Segundo Van Dijk (2012, p.32), “o contexto influencia de algum modo uma palavra, um trecho, um sentido, um acontecimento, ou torna possível para eles certa interpretação” (VAN DIJK, 2012, p. 32). Nesta perspectiva, percebe-se que o contexto opera na produção de um texto (falado ou escrito), como também, nas práticas sociais discursivas mediadas pela cognição. No que se refere ao processo de inferência, este trabalho traz a cognição como mediadora das interações comunicativas capaz de envolver experiências sociais, históricas, culturais e situacionais. Para Koch (2011), 83
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as inferências constituem estratégias cognitivas por meio das quais o ouvinte ou leitor, partindo da informação veiculada pelo texto e levando em conta o contexto (em sentido amplo), constrói novas representações mentais e/ou estabelece uma ponte entre segmentos textuais, ou entre informações não explícitas no texto (KOCH, 2011, p. 50).
Desse modo, verifica-se que, a inferência extrapola as operações lógicas, e passa a ser uma compreensão dos implícitos. Em face disto, a construção do sentido de um texto (falado ou escrito), não é apenas do sistema linguístico, nem tampouco, só do artefato textual, pode-se dizer que é bem mais complexa, pois, o sentido é construído através das conexões e dimensões interativas do cotexto2 (elementos da superfície do texto) aos elementos de um contexto (elementos das vivências, das experiências coletivas e individuais socialmente situadas) que percorrem a produção do discurso e consequentemente desvelam as relações axiológicas que existem entre elas. Para Marcuschi (2007, p. 88), “dizer que algo é isso ou aquilo é dizer com base num raciocínio desenvolvido numa atividade inferencial, ou seja, com base na inserção num contexto de uma ação discursiva”. Em face disso, os processos inferenciais ocorrem em atividades cognitivas, discursivas e contextualmente situados. Assim, a inferência dá-se como uma maneira de explicar ou de preencher espaços vazios que inter-relacionam as informações explícitas com as informações e implícitas, apoiadas no escopo sociocognitivo. Nesse panorama teórico, atribui-se fundamental relevância ao estudo do encapsulamento anafórico, por se tratar de uma estratégia textual-discursiva que constrói relações inferenciais na produção de significações e na progressão temática do texto a partir de um conjunto de saberes de natureza social, histórica e cultural.
2. Cotexto e contexto - palavras muito usadas nos escritos de Marcuschi (2000; 2003; 2004; 2008). 84
ASPECTOS SOCIOCOGNITIVOS NO ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO EM GÊNEROS DO DOMÍNIO JORNALÍSTICO
PANORAMA METODOLÓGICO Este trabalho faz uso de uma metodologia essencialmente qualitativa, com recorrência à quantificação, secundariamente, para melhor organização interpretativa dos dados coletados, e utiliza uma abordagem teórica e interpretativa com base nos fundamentos teóricos explicitados neste trabalho. O corpus é constituído de dez textos, entre eles notícias e reportagens de divulgação pública on-line, sobre a manifestação dos estudantes em São Paulo, entre os dias 08/06/2013 a 10/06/2013 no jornal Folha de S. Paulo (disponível no site www.folha.com.br). É importante ressaltar que a propensão por este veículo de comunicação justifica-se pelo alto índice de circulação3 deste jornal no país. A escolha do corpus se deu em razão de investigar a forma de ocorrência do encapsulamento anafórico na produção dos gêneros, notícia e reportagem, em situações conflituosas e de observar como os aspectos sociais e cognitivos se materializam em escolhas linguísticas, sejam elas no plano lexical, textual ou sócio-discursivo. Mediante estas seleções, analisamos o comportamento textual-discursivo dos encapsulamentos anafóricos, categorizando-os de acordo com DUAS estratégias de retomada anafórica que indicam o acesso ao sentido construído pelos encapsulamentos:
3. Informação obtida pelo Índice Verificador de Circulação (IVC) de veículos impressos e digitais (http://www.ivcbrasil.org.br), e da Associação Nacional de Jornais (ANJ). 85
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1. Retomada por meio de nomes-núcleos que recaem sobre o dito, isto é, recaem sobre nomeações e categorizações de forma aparentemente “neutra”; 2. Retomada implícita por meio de nomes-núcleos que recaem sobre o modo de compreensão do que foi dito, isto é, recaem sobre nomeações e categorizações de forma axiológica e com função predicativa.
O ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO NAS NOTÍCIAS E REPORTAGENS Ao fazer uso do encapsulamento anafórico nas notícias e reportagens sobre as manifestações, o autor estará norteando o leitor quanto à forma de entendimento que este deverá ter em relação ao tópico textual-discursivo em desenvolvimento e à argumentação construída nas notícias. Assim como assevera Marcuschi “as estratégias jornalísticas para relatar opiniões não são mera questão de estilo, pois as palavras são instrumentos de ação e não apenas de comunicação” (MARCUSCHI 2007, p.168). Em face dessa perspectiva, os discursos contidos na mídia se materializam em escolhas linguísticas que enquadram situações linguísticas socialmente situadas e, ao mesmo tempo, funcionam como poderosas estratégias de manutenção ou manipulação de argumentos, gerando pontos de vista diversos na interpretação do leitor. Para melhor evidenciar a nossa discussão, expõe-se alguns trechos das notícias e reportagens extraídas do jornal Folha de S. Paulo de publicação online. Nessas notícias e reportagens, os sintagmas nominais, com função cognitivo-discursiva de encapsulamento anafórico, constituem-se como um processo de referenciação o qual empacota as informações velhas e (re)ca-
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ASPECTOS SOCIOCOGNITIVOS NO ENCAPSULAMENTO ANAFÓRICO EM GÊNEROS DO DOMÍNIO JORNALÍSTICO
tegoriza estas informações apresentando novas predicações para o discurso (FRANCIS, 2003; KOCH, 2004a, 2006, 2011; MELO, 2008), por meio de dois caminhos percorridos pelos nomes-núcleos do sintagma nominal, são eles: 1. por meio de nomes-núcleos que recaem sobre o dito, isto é, recaem sobre nomeações e categorizações de forma aparentemente “neutra”; 2. por meio de nomes-núcleos que recaem sobre o modo de compreensão do que foi dito, isto é, recaem sobre nomeações e categorizações de forma axiológica e com função predicativa. Vejamos os exemplos (1), (2) e (3), abaixo: (1) As três estações e a estação Consolação chegaram a fechar durante o protesto. Apesar disso, o sistema funcionou normalmente. O cálculo de todos os prejuízos sofridos pelo metrô ainda serão calculados. O Metrô estimou o prejuízo em R$ 73 mil e disse que vai responsabilizar e acionar judicialmente os autores por danos ao patrimônio público, para que os contribuintes e demais usuários não tenham que arcar com o custo desse lamentável episódio. [grifo nosso]4 (2) Haddad também disse que seriam necessários R$ 6 bilhões para a implantação da tarifa zero no sistema de ônibus da capital, uma das reivindicações do MPL, e que não haveria como obter esses recursos, em detrimento de investimentos em outras áreas. [grifo nosso]5 (3) Segundo a pesquisa, que ouviu 1.066 pessoas nos dias 6 e 7 de junho, 34% consideram a administração Haddad ótima ou boa, 42% regular e 21% ruim ou péssimo. Conforme o levantamento, 58% dos entrevistados consideram que o
4. Trecho retirado do jornal Folha de S. Paulo no dia 07/06/2013. 5. Trecho retirado do jornal Folha de S. Paulo no dia 09/06/2013. 87
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petista fez menos do que esperavam. Em abril, eram 49%. O crescimento dessa rejeição ocorreu em uma semana em que foi anunciado um aumento da tarifa do ônibus... [grifo nosso]6
Os trechos destacadas em negrito “desse lamentável episódio/esses recursos/dessa rejeição” representam categorizações da porção antecedente do texto. O exemplo (1) corresponde a um rótulo retrospectivo que nomeia uma extensão do discurso, neste caso, as informações recaem sobre o dito, empacotando as informações precedentes como episódio. No entanto, o item lexical lamentável corrobora e intensifica uma construção discursiva de um episódio que trouxe alguns prejuízos à sociedade. Isso nos mostra que, nesse caso, a retomada anafórica recai sobre o que foi dito anteriormente, no entanto, com o modificador lamentável vemos um julgamento valorativo das informações anteriormente descritas. Assim, os sintagmas “desse lamentável episódio” sumarizam as informações de forma predicativa, expressando julgamentos valorativos e oportunizando a ativação de um novo referente discursivo, o qual é criado sob a base das informações precedentes, com a introdução e a recategorização do referente. Nos exemplos (2) e (3), o nome núcleo escolhido para compor o sintagma nominal não foi repetido de forma explícita anteriormente no texto, pelo contrário, resulta em uma possibilidade interpretativa da porção anterior, que extrapolam o texto e que são construídas a partir de um caminho inferencial construído por uma inferência realizada através de conhecimentos sociais, culturais e históricos, ativados sociocognitivamente, como afirmam Melo (2008) e Cordeiro (2015). No exemplo (2), o sintagma nominal do encapsulamento anafórico esses recursos está retomando a poção textual: seriam necessários R$ 6 bilhões
6. Trecho retirado do jornal Folha de S. Paulo no dia 10/06/2013. 88
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para a implantação da tarifa zero no sistema de ônibus da capital. Nesse caso, não há a repetição de um item lexical mencionado anteriormente. Esses recursos é um sintagma nominal que se configura como um encapsulamento o qual nomeia uma extensão do discurso de maneira bem próxima do que foi dito precedentemente. Portanto, a retomada anafórica acontece com a intenção de encadear no velho, predicações novas, projetando na progressão temática algumas informações que não estão presentes no texto, mas que são presumíveis pelos modelos de contexto7. No (3), o sintagma nominal do encapsulamento anafórico dessa rejeição está retomando a poção textual: nos dias 6 e 7 de junho, 34% consideram a administração Haddad ótima ou boa, 42% regular e 21% ruim ou péssimo. Conforme o levantamento, 58% dos entrevistados consideram que o petista fez menos do que esperavam. Em abril, eram 49%. Nesse caso, compreendemos que o sintagma nominal dessa rejeição configura-se como um encapsulamento anafórico que apresenta uma possibilidade interpretativa da porção encapsulada construída por meio de inferências e aspectos sociocognitivos (MELO, 2008). Assim, as informações presentes no texto sinalizam o tipo de retomada anafórica que dá acesso ao sentido. No entretanto, vale ressaltar que no exemplo (3), o que vai ajudar e interferir na compreensão do sintagma nominal são os elementos contextuais e os modelos cognitivos, uma vez que o jornal expõe uma concepção intersubjetiva da porção anteriormente descrita, como rejeição. Sendo assim, o sentido construído na atividade discursiva indica a ideia de que essas informações partem de um conhecimento compartilhado
7. O termo “modelos de contexto” é definido por Van Dijk (2012) no livro Discurso e Contexto: uma abordagem sociocognitiva. Para esse autor “os modelos de contexto organizavam os modos como nosso discurso é estruturado e adaptado estrategicamente à situação comunicativa global” (VAN DIJK, 2012, p.107). 89
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da sociedade, o que, na verdade, indica um ponto de vista do jornal. Os resultados obtidos com o levantamento quantitativo dos dois tipos de retomada anafórica, já citadas na metodologia anteriormente, serão apresentados em gráfico. Vejamos abaixo, na figura 1, o gráfico com as quantificações dos encapsulamentos anafóricos nas notícias e reportagens sobre a manifestação em São Paulo. Figura 1: Quantificação gráfica dos encapsulamentos anafóricos
Fonte: Dados retirados do jornal Folha de S. Paulo entre os dias 08/06/2013 a 10/06/2013. Elaboração nossa.
No que se refere à análise das notícias e reportagens de publicação on line no jornal Folha de S. Paulo, foram encontrados 8 (oito) encapsulamentos anafóricos, ao todo. Sendo que dessas oito ocorrências, 2 (duas) foram por meio de uma retomada anafórica por meio de nomes-núcleos que recaem sobre o dito e 6 (seis) foram através da retomada anafórica implícita por
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meio de nomes-núcleos que recaem sobre o modo de compreensão do que foi dito, na qual o sentido é construído por uma inferência sociocognitiva realizada através de conhecimentos sócio-históricos-culturais que permitem se chegar à compreensão de que o foi expresso na porção anaforizada. Os dados numéricos demonstram que nas notícias e reportagens sobre as manifestações em São Paulo, entre os dias 08/06/2013 a 10/06/2013 no jornal Folha de S. Paulo de divulgação pública on line, há quantidade menor de ocorrência da retomada I - que recaem sobre o dito e há uma quantidade maior de ocorrência da retomada II- indicando que a retomada anafórica por inferência sociocognitiva, é a maior opção de escolha para o uso do encapsulamento anafórico. Isso indica que o(s) autor(es) e a escrita jornalística, deste jornal, estão construindo discursivamente sentidos sobre os fatos do cotidiano os quais necessitam de mais conhecimentos compartilhados e inferências que correspondem às suas concepções axiológicas e ideológicas e, ao mesmo tempo, direcionando o modo como o leitor pode interpretar e compreender o mundo nestas situações socialmente situadas. Assim, conforme assevera Melo (2008), o sentido contido no léxico encapsulador “evidencia um modo de apresentação da compreensão; um ponto de vista; uma possibilidade interpretativa da parte precedente do texto (MELO, 2008, p.72)”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A proposta deste artigo foi investigar os aspectos sociocognitivos no encapsulamento anafórico em notícias e reportagens sobre as manifestações em São Paulo, a fim de apresentar o papel do encapsulamento anafórico no discurso da mídia, como também, mapear a ocorrência deste fenômeno textual-discursivo que envolve produtor-texto-leitor na construção de sentidos.
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As análises mostram que o encapsulamento anafórico mostra relevância tanto nos processos de textualização e produção de sentido, quanto nas relações de poder, ao demonstrar que as partes encapsuladas constroem pontos de vista da porção precedente do texto. Entre as retomadas do tipo I (retomada anafórica por meio de nomes-núcleos que recaem sobre o dito) e do tipo II (retomada anafórica implícita através de nomes-núcleos que recaem sobre o modo de compreensão do que foi dito, por meio de inferência sociocognitiva), encontramos mais ocorrência de encapsulamento anafórico por meio da retomada II. Isso significa dizer que o jornal, nessas notícias e reportagens, encapsulou as informações precedentes de maneira mais intersubjetiva e utilizando itens lexicais para a composição do encapsulamento que apresentam inferências e aspectos sociocognitivos, com um sugestivo grau de manipulação de ideias. Com este estudo, chega-se à confirmação de que o comportamento do sintagma nominal do encapsulamento anafórico muda o tópico discursivo mexendo com a progressão temática-referencial, e consequentemente no sentido. Pois ao utilizar, nas notícias e reportagens analisadas, mais vezes a retomada II - por inferência sociocognitiva - o autor está conduzindo o leitor a acessar as informações socialmente situadas por meio de inferências e expressando julgamentos valorativos pertencentes à sua8 compreensão social, histórica, ideológica e cultural. Todavia, ressalta-se ainda, o indicativo de que mais pesquisas devem ser realizadas para investigar esta importante estratégia textual-discursiva, bem como, para convocar o leitor/ouvinte para fazer leituras mais atentas e críticas dos gêneros notícia e reportagem.
8. Esta compreensão social, histórica, ideológica e cultural pode ser do autor/enunciador (jornalista) ou até mesmo do jornal. 92
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Resumo Este artigo tem como objetivo analisar as estratégias utilizadas na avaliação da produção textual do aluno surdo pelos professores da rede pública municipal de Olinda e Paulista e como eles se definem como avaliadores. Como metodologia elegemos um estudo embasado na abordagem qualitativa interpretativa de caráter descritivo, tivemos como instrumentos de coleta de dados entrevistas semiestruturadas com professores de sala regular. Na análise dos dados utilizamos a análise do conteúdo na perspectiva de Bardin (2011). Os sujeitos da pesquisa foram três professores de Língua Portuguesa, distribuídos em três turmas regulares do 5º ano do Ensino Fundamental, um em Olinda e dois em Paulista. Os resultados das entrevistadas da pesquisa apontaram que a maioria dos professores, apesar de afirmarem que utilizam adaptações nas atividades dos alunos surdos, como estratégias, sentem dificuldades em avaliar uma turma inclusiva e se definem como sendo despreparados. Palavras-chaves: Aluno surdo, Produção textual, Avaliação.
AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo Soraya Gonçalves Celestino da Silva1
INTRODUÇÃO No mundo a história da educação do surdo sofreu muitas modificações, no Brasil também não foi diferente, vivenciou três filosofias educacionais: Oralismo2, Comunicação Total3 e Bilinguismo4. Principalmente, nas últimas décadas aconteceram várias conquistas em relação aos seus direitos no âmbito educacional, e compreendeu-se que os surdos têm sua própria identidade, e o direito de comunicar-se em sua modalidade específica de linguagem a Libras, que foi oficializado com a publicação da LEI Nº 10.436 de 24 de abril de 2002 que além de reconhecê-la garantiu o apoio ao seu uso e difusão, bem como prever seu ensino em concomitância com o da modalidade escrita da Língua Portuguesa não devendo, esta, ser substituída pela língua de sinais. E posteriormente o Decreto Nº 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que a regulamenta.
1. Professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE) em Olinda e Paulista, Mestra em Linguística e Ensino (UFPB), sorayagcsilva@gmail.com. 2. Oralismo - [...] o oralismo é uma abordagem que visa à integração da criança surda na comunidade ouvinte, enfatizando a língua oral (GOLDFELD, 1997). 3. Comunicação Total - é a utilização de qualquer recurso linguístico seja a língua de sinais, a língua oral ou códigos manuais, para propiciar a comunicação entre as pessoas surda (CICCIONE, 1990). 4. Bilinguismo - é uma proposta de ensino por escolas que se propõem a tornar acessível à criança duas línguas, a língua de sinais e a língua portuguesa, (Quadro, 1997).. 95
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As propostas educacionais para os (as) alunos (as) surdos (as)5 objetivam o desenvolvimento pleno de suas capacidades, e a educação bilíngue propõe o acesso a duas línguas no contexto escolar, considerando a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como a língua materna ou primeira língua (L1) e base para o ensino da Língua Portuguesa na modalidade escrita, como segunda língua (L2). A situação da educação dos surdos é tema preocupante devido às suas dificuldades e limitações, e as práticas escolares têm nos mostrado que, ao final da escolarização básica os alunos surdos, na grande maioria, apresentam dificuldade de ler e escrever com desenvoltura e competência. Quando se reflete sobre o processo de ensino e aprendizagem, destaca-se a avaliação como ferramenta de análise eficaz e eficiente da prática de ensino. A avaliação possibilita a promoção do processo de ensino, preservando ou reconduzindo as atividades didáticas, redefinições dos objetivos, adequações de conteúdos e materiais, e escolha da metodologia aplicada na prática de ensino. Podendo, portanto, ser aplicada com alunos ouvintes e/ou surdos. Esta pesquisa parte do interesse na área da surdez que esteve sempre presente em minha trajetória acadêmica desde a graduação em Pedagogia, na especialização em Educação Especial, e estendeu-se à profissional, como professora do Atendimento Educacional Especializado (AEE), na sala de recursos multifuncionais (SRM), atuando na educação de surdos. Nesse intermédio, tenho convivido com inúmeros questionamentos relacionados às situações linguísticas, culturais e pedagógicas dos surdos, para os quais procuro respostas nas discussões acadêmicas, em congressos e simpósios. O que me chamou a atenção foi o atraso escolar da maioria dos alunos surdos e a falta de interação com o professor ouvinte na sala de aula, o que
5. Daqui em diante nomeados apenas como alunos surdos 96
AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
deve ser decorrente da falta de uma língua comum, para que ocorra o processo de aquisição da escrita da Língua Portuguesa pelos surdos. Pressuponho que o professor ao avaliar a produção textual do aluno surdo, não leve em consideração as peculiaridades linguísticas desses alunos. Ao eleger como objeto de pesquisa “avaliação: um olhar sobre o texto do aluno surdo” levantamos algumas questões para serem observadas nesse estudo: Que estratégias são utilizadas em sala de aula para avaliação do aluno surdo? Como o professor se define como avaliador da produção textual do surdo? Essas questões nortearão a discussão do nosso trabalho, para respondê-las, essa pesquisa foi realizada em duas escolas públicas municipais de Olinda e Paulista. Essa pesquisa traz como objetivo principal analisar as estratégias utilizadas pelos professores da rede pública municipal de Olinda e Paulista para a avalição na produção textual dos alunos surdos. Elencamos como objetivos específicos: aprofundar o conhecimento sobre avaliação da escrita do aluno surdo; Quais parâmetros utilizados para avaliar textos de surdos e ouvintes; analisar as estratégias utilizadas pelos professores na correção da produção textual, para surdos e ouvintes; perceber como o professor se define ao avaliar o texto do aluno surdo. Esperamos, com esse trabalho, poder contribuir de alguma forma para os estudos sobre a avaliação da Língua Portuguesa escrita do surdo, pois as pesquisas voltadas para esse tema ainda são restritas. Queremos também chamar a atenção dos professores, para repensar a respeito da avaliação de surdos inclusos em sala regular nas instituições escolares, de modo que ocorra uma ressignificação no ensino e na prática avaliativa de sala de aula.
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AQUISIÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA COMO L2 PARA O SURDO Em temos psicolinguísticos, a primeira língua da criança é sempre uma língua natural. As crianças ouvintes precisam aprender o português, língua oral-auditiva, para isso faz-se apenas necessário que ela esteja em contato com pessoas que falam. O mesmo acontece com as crianças surdas que para a aquisição da Libras, língua da modalidade visual-espacial, necessita do contato com surdos adultos ou ouvinte que a utilizem. Apesar dos alunos surdos serem brasileiros, eles só aprenderá o português se submetido a um processo formal de aprendizagem, com metodologias específicas e professores especializados para este fim. Portanto, sua L1 (natural) será a Libras e a Língua Portuguesa será aprendida como L2. Esse tema vem esclarecer que são poucos alunos surdos que tiveram a oportunidade de uma educação bilíngue, a grande maioria dos alunos surdos está no sistema da educação inclusiva, desta forma, enfrentam vários problemas em seu processo de alfabetização, visto que, para se obtiver êxito faz-se necessário o conhecimento da sua primeira língua, a Libras, e no aprendizado da segunda língua, o português escrito. Mas, infelizmente o português é ensinado como primeira língua igual para os alunos ouvintes e surdos, isto é, com base na oralidade, situação que em nada favorece aprendizagem dos alunos surdos. É por meio da Libras que a linguagem da criança surda evolui, e por meio dela que as possibilidades cognitivas e conceituais para nomear e classificar acontece. A L1 assume um caráter mediador e de apoio na aprendizagem do Português, como L2, as leituras desses alunos são realizadas na L1, para compreensão, decodificação, discussão e produção de textos. Portanto, a L1 pode interferir na escrita desses alunos e refletir na produção textual em Português. 98
AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
A inserção de um indivíduo em um ambiente linguístico possibilita a aquisição da gramática dessa língua, tornando-o capaz de produzir sentenças. Fernandes (1999) esclarece os meios de aprendizagem do surdo, explicando que ”dominar a língua é dominar regras gramaticais, e os mecanismos cerebrais responsáveis por esse processo não estão escravizados à leitura e à escrita e tão pouco a ouvir e falar corretamente”. A qualidade da oferta e o tempo de exposição que o surdo tem da L1 influenciará na aquisição da L2, ressaltamos a importância de inseri-lo, desde cedo, através da L1 em um ambiente linguístico, com livros de histórias e textos escritos. Svartholm afirma que: Os textos, por si só, não comunicam nada para a criança surda. [...] A única forma de assegurar que os textos se tornem significativos para os alunos surdos é interpretá-los através da língua de sinais, em um processo semelhante ao observado na aquisição de uma primeira língua (SVARTHOLM, 1997, p. 30).
É através da leitura interpretada que as crianças surdas farão suas hipóteses sobre a língua portuguesa para consolidar na escrita. Segundo De Lemos (1998, p. 29), lendo para a criança, interrogando a criança sobre o sentido do que escreveu, escrevendo para a criança ler, o alfabetizador insere-a no movimento linguístico-discursivo da escrita. Quadros (1997) cita diferentes autores que estudaram o estatuto de diferentes línguas de sinais e seu processo de aquisição, por alunos surdos, de uma língua escrita que represente a modalidade oral-auditiva. Esses pesquisadores (Anderson, 1994; Ahlgren, 1994; Ferreira-Brito, 1993; Barent, 1996; Quadros, 1997) pressupõem a aquisição da língua de sinais como L1 e propõem a aquisição da escrita da língua oral-auditiva como L2. Considera-
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Anais Eletrônicos - XII EELL
-se aquisição da L2, qualquer língua aprendida após a L1, e que fatores como personalidade, socialização, motivação e outros aspectos afetivos interferem na aprendizagem. Considera-se aquisição da L2, qualquer língua aprendida após a L1, e que fatores como personalidade, socialização, motivação e outros aspectos afetivos interferem na aprendizagem, como citam Faria e Assis (2012) que “uma teoria geral de aquisição de segunda língua precisará abranger os fatores internos (os processos cognitivos e os aspectos afetivos gerais e individuais), os externos (os diferentes contextos de aprendizagem) e sua inter-relação”. Comungam desse pensamento com a teoria de Krashen (1995) apud Brochado (2003); o mecanismo de aquisição de uma segunda língua está formado, entre outros, por estes três elementos fundamentais: o input ou entrada de informação, o organizador e o filtro afetivo, conforme a figura 1 e a descrição a seguir. Figura 1: Representação do processo de aquisição
Fonte: Sampaio (2012, p.50)
Input: é o estímulo linguístico externo, que pode ser o conjunto de textos codificados na língua a adquirir que o indivíduo vê, escuta ou lê.
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
Filtro afetivo: é aquela parte do cérebro do estudante que seleciona do input a informação que chegará ao organizador. Baseia-se em fatores afetivos. Organizador: é aquela parte do cérebro do estudante que estrutura e retém subconscientemente o sistema da nova língua. A partir do input compreensível, constrói gradualmente as regras linguísticas (gramaticais e textuais) que o estudante usará mais adiante para produzir textos que não tenha memorizado anteriormente. Baseia-se em princípios cognitivos: utiliza critérios lógicos e analíticos para organizar conhecimentos. De acordo com a teoria de Krashen (1995), só podemos adquirir uma L2 quando somos capazes de compreender os textos orais e/ou escritos nesta língua. Por isso, acredita-se que a aprendizagem se torna eficiente, quando o professor prioriza atividades voltadas mais para o conteúdo semântico, do que para a forma dos textos (gramática). Durante todo processo de aquisição da L2, a língua vai ser assimilada e vai se aperfeiçoando à medida que o aluno surdo aprende um novo código linguístico. Em relação à aprendizagem das regras gramaticais da L2, Este mesmo autor afirma que não é necessário excluí-las dos programas de ensino, entretanto, como já foi dito anteriormente, não podem ser seu eixo central. A aprendizagem dessas regras, não será suficiente para o domínio pleno da L2, pois a memorização não solucionará todas as necessidades comunicativas do aluno. Na mesma obra ele ainda faz a distinção entre aquisição e aprendizagem da língua, comparando os aspectos distintos em que se diferenciam:
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Anais Eletrônicos - XII EELL
Aquisição e aprendizagem da L2 APRENDIZAGEM
AQUISIÇÃO O indivíduo tem interações reais (comunicação
O indivíduo aprende a partir de situações não
natural) com os falantes da língua que adquire.
reais (ditados, exercícios de diversos tipos).
O indivíduo se fixa no conteúdo da mensagem
O indivíduo se fixa especialmente na forma das
mais do que na forma.
mensagens.
Não há ensino de regras gramaticais nem cor-
O indivíduo aprende através de regras gramat-
reção de erros.
icais e há correção dos erros.
O indivíduo não está consciente das regras que
O indivíduo está consciente das regras apren-
adquire.
didas para corrigir o que diz ou escreve.
O indivíduo, às vezes, pode autocorrigir-se e o
Usa geralmente as regras aprendidas para cor-
faz utilizando sua intuição linguística.
rigir o que diz ou escreve.
Segundo uma hipótese, existe uma ordem
Não há uma só ordem de aprendizagem das
natural de aquisição das diferentes estruturas
estruturas. Os programas somente coinci-
da língua.
dem na ordenação do mais simples ao mais complexo, que pode ser diferente da ordem natural.
Está muito relacionada com atitude. O in-
Está muito relacionada com aptidão. O indi-
divíduo deve ter boas atitudes (motivação,
víduo deve ter boas aptidões (conhecimen-
interesse, etc.) para adquirir a língua.
tos gramaticais, inteligência para aprender a língua).
O indivíduo tem estado exposto (tem escutado
O indivíduo produz um determinado item
ou lido) um item linguístico (uma estrutura,
linguístico, depois de havê-lo compreendido
uma palavra, etc.) muitas vezes antes de
pela primeira vez.
produzi-lo.
Fonte: Krashen, 1995 apud Brochado, 2003, pp. 40-41) 102
avaLiação: um oLhar sobrE o tEXto do aLuno surdo
A produção de texto oral ou escrito tem como base dois sistemas, um adquirido e outro aprendido, o primeiro é um sistema linguístico adquirido subconscientemente e o segundo são conhecimentos aprendidos conscientemente que servem para modificar ou corrigir os textos segundo Krashen (1995). A aquisição e a aprendizagem estão interligadas, já que podem ocorrer em contextos formais ou informais. Ambas pretendem conduzir o aluno à produção de textos na L2, como vemos na figura 2: Figura 2: Aquisição e aprendizagem em segunda língua
Fonte: Sampaio (2012, p. 53)
Estudos indicam estágios de aprendizagem da escrita, isto é, no processo de aquisição do português escrito, as pessoas surdas constroem um sistema que não mais representa a L1, porém ainda não representa a língua alvo, a L2. Esses estágios são chamados de interlíngua. Corroboram Valentini & Bisol (2011) quando afirmam que “a interlíngua ainda não é o português escrito convencional, mas apresenta regras e uma composição que não é mais da língua de sinais”. Por isso, algumas produções textuais dos surdos apresentam uma estrutura de difícil compreensão, por ainda não ter estrutura ou regras do português escrito e lembram um pouco a L1. Quadros e Schmiedt (2006) apud Brochado (2003) descrevem três estágios de interlínguas:
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1º Estágio: Escrita mais próxima à língua de sinais apresenta falta ou inadequação de artigos, preposições, conjunções, usa de verbos no infinitivo, raro emprego de verbos de ligação (ser, estar, ficar). É comum em fase inicial de aquisição da escrita. 2º Estágio: Apresenta uma intensa mescla das duas línguas. A estrutura da frase possui ora características da língua de sinais, ora características gramaticais da frase do português. As frases e palavras aparecem justapostas, não resultam em efeito de sentido comunicativo. Há o emprego de verbos no infinitivo e também flexionados, às vezes, emprego de verbos de ligação com correção. Aparece o emprego de artigos, algumas vezes concordando com os nomes que acompanham. 3º Estágio: Mais próximo do português escrito convencional, com emprego maior e mais adequado de artigo, preposição, conjunção, flexão dos nomes, flexão verbal e emprego de verbos de ligação ser, estar, ficar (QUADROS E SCHMIEDT, 2006, p. 34).
Atualmente, existem textos escritos por surdos que são semelhantes aos textos escritos por estrangeiros, o que vem reforçar que o tempo de exposição à língua, a importância de instrução formal e inserção cultural são imprescindíveis na aprendizagem. Partindo desse pressuposto ao se pensar, especificamente, sobre a aquisição da L2 por alunos surdos e com base nas pesquisas de Berent (1996), Quadros (2011, p. 107) apresentam alguns aspectos fundamentais: a. O processamento cognitivo espacial especializado dos surdos: b. O potencial das relações visuais estabelecidas pelos surdos; c. Possibilidade de transferência da Libras para o português; d. As diferenças nas modalidades das línguas no processo educacional; e. As diferenças dos papeis sociais e acadêmicos cumpridos por cada língua;
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
f. As diferenças entre as relações que a comunidade surda estabelece com a escrita tendo em vista sua cultura; g. Um sistema de escrita alfabética diferente do sistema de escrita com línguas de sinais; h. A existência do alfabeto manual que representa uma relação visual com as letras usadas na escrita do português. Tanto para surdos quanto para os ouvintes, o ensino da Língua Portuguesa deve ser pautado na interação discursiva tendo como unidade de ensino o texto, valorizando tanto o uso da língua, o ler e o escrever, quanto à reflexão sobre a língua, o conhecimento linguístico. É importante que o processo de aquisição da leitura e escrita do português pela criança surda apresente um significado social e o professor inclua atividades que explorem todos os níveis de conhecimento da língua: o lexical, o sintático, o semântico e o pragmático. Quadros (1997) conclui que o aluno surdo precisará desenvolver uma relação direta entre a palavra, a estrutura gráfica/texto escrito e o seu significado de forma contextualizada, pois sua aquisição não será baseada no som. Podemos dizer que o professor de alunos surdos para proporcionar a sua inclusão deve se preocupar em tornar mais compreensíveis a Língua Portuguesa, os inputs linguísticos disponíveis e os insumos que os alunos recebem do ambiente pedagógico. Tudo isso, levando em consideração que na escola o português é uma língua utilizada em todas as situações de aprendizagem e interação, porque para o aluno surdo é difícil produzir e compreender essa língua. Diante desses fatos, podemos perceber que o ensino da Língua Portuguesa não é uma tarefa fácil e a sua aprendizagem é uma conquista para a autonomia do surdo, assim como a avaliação dessa língua é um ponto merecedor de reflexão. 105
Anais Eletrônicos - XII EELL
AVALIAÇÃO DA LÍNGUA PORTUGUESA COMO L2 A inclusão educacional é uma realidade na educação brasileira e deve proporcionar ao aluno surdo a garantia do seu acesso ao processo de ensino-aprendizagem de forma plena e igualitária. Embora alguns professores defendam que é preciso tratar todos os alunos igualmente e ao fazerem isso reproduzam atitudes excludentes. As escolas inclusivas precisam se conscientizar de que o português é a L2 para o surdo, e que este tem que ser ensinado como L2 e não como L1 sabem como fazem com os alunos ouvintes tomando como base a oralidade ou o princípio do som. Colaboram Thoma e Klein (2009, p.99) ao afirmar que “o sucesso ou fracasso escolar do aluno se relaciona diretamente com as imagens e representações que dão ao surdo certas dificuldades de aprendizagem, ligadas a uma suposta inferioridade cognitiva e linguística”. Contudo o fracasso escolar do surdo está muitas vezes na forma como é conduzida a aprendizagem da leitura e escrita da língua portuguesa. Essa inclusão não pode partir da igualdade de acesso tendo como base a língua de instrução que é o português. Sobre a inclusão de alunos surdos, Hoffmann (2009) afirma que: [...] são aprendizagens diferentes. Neste sentido, diferenciar não significar não significa subestimar, mas cuidar do jeito que cada um precisa. E essa diferenciação se estende ao acompanhamento do professor, a análise das manifestações dos estudantes que deve se dar a partir das condições próprias do contexto educativo e de formas de divulgação dos seus desempenhos ao longo do processo (HOFFMANN, 2009, p. 44).
Não se pode negar que, por mais espaços que os surdos tenham conquistado, os discursos advindos da cultura ouvinte continuam a narrar os
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
surdos pelo viés da limitação e da incapacidade, determinando os lugares que devem e os que não devem ocupar. Camillo (2009) diz que: A avaliação se inscreve numa rede discursiva, colocando os alunos como alvos de estratégias disciplinadoras que investem constantemente na normalização, correção, na regulação dos corpos através de vigilância e punição. Ao colocar-se na vitrine a avaliação na educação de surdos, é possível entender como se produzem “verdades” sobre alunos no espaço da escola e discutiras estratégias disciplinares envolvidas nas práticas avaliativas (CAMILLO, 2009, p.69).
Dentre os documentos que asseguram aos aprendizes surdos uma avaliação diferenciada em português por escrito, sublinha-se o Decreto Federal nº 5.626/2005 no seu Art. 14. § 1º Incisos VI e VII, o qual considera que o aluno com surdez tem direito a uma avaliação diferenciada, apresentando em seu texto o seguinte: VI – adotar mecanismos de avaliação concretos com aprendizado de segunda língua, na correção de provas escritas, valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a singularidade linguística manifestada no aspecto formal da língua portuguesa; VII – desenvolver e adotar mecanismos alternativos para a avaliação de conhecimento expressões em Libras, desde que devidamente registrados em vídeos ou em outros meios eletrônicos e tecnológicos.
É de responsabilidade de a escola traçar objetivos para cada aluno surdo, definir mediante o nível de escolarização quais estratégias e vocabulários que devem conter na produção textual desses alunos. Para então, definir critérios de avaliação, sem deixar de considerar a língua portuguesa como L2. É relevante que o professor tenha um olhar diferenciado na hora de avaliar 107
Anais Eletrônicos - XII EELL
e refletir sobre as hipóteses, estratégias, erros e acertos, pois essa reflexão é fundamental para que novas ações sejam planejadas durante o ensino e a aprendizagem. Faria e Assis (2012) contrastam os traços linguísticos da Língua Portuguesa e da Libras, ressaltando que essa análise não pretende ser completa, no sentido de preencher todos os aspectos linguísticos das línguas citadas. As autoras concluem que é preciso que o professor avalie e analise os textos escritos pelos alunos, para listar os “erros”, classificá-los (estabelecendo uma tipologia, a frequência com que ocorrem e as prováveis causas) e elaborar estratégias pedagógicas para auxiliar os alunos a superá-los. A avaliação do texto do aluno surdo deve ter uma metodologia que deverá ser explicada e discutida com o próprio aluno, cabendo ao professor chamar atenção para os aspectos diferenciados nas produções escritas e proceder a reescrita dos textos, demonstrando a norma padrão da língua, permitindo ao aluno através de atividades linguísticas que perceba as diferenças entre a estrutura da Libras e da L2. Essas mesmas atividades deveram ser tomadas como parâmetro para acompanhar a evolução do seu processo de aprendizagem. Sugerem Bolsanello e Ross (2005) que o professor ao avaliar um texto produzido por alunos surdos observe o que segue: a. Procure valorizar o conteúdo desenvolvido, buscando a coerência em sua produção, mesmo que a estrutura frasal não corresponda aos padrões exigidos para o nível/série em que se encontra; b. Verifique se o uso de palavras aparentemente inadequadas ou sem sentido não indica um significado diverso do pretendido pelo aluno; c. Considere os possível equívocos em relação ao uso de tempos verbais e a omissão ou inadequação do uso de artigos, preposições, decorrentes do desconhecimento da língua portuguesa ou da interferência da Libras;
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
d. Compreenda que o vocábulo “pobre” ou limitado, deve-se às poucas experiências significativas com a língua portuguesa que viveu; e. Utilize as próprias produções do aluno para avaliar seu progresso, evitando comparações com os demais alunos (BOLSANELLO E ROSS, 2005, p. 18).
Desta forma, os professores podem mensurar o conhecimento adquirido pelos alunos, tomando como base a avaliação inicial e as atividades realizadas nas avaliações processuais podendo extrair o máximo de informações, uma vez identificadas essas informações, planejarem e implementarem adequações que os ajudem a aprender. Desta forma os professores podem melhorar a validade da instrução e das suas avaliações. Para planejar e realizar atividades de avaliação para alunos surdos entendem Russel e Airasian (2014), que os professores devem estar cientes das adequações específicas requeridas para sua deficiência. As quais podem ser utilizar diversos tipos de acomodações tais como: • Modificar o formato da apresentação da avaliação: usar orientações escritas, em vez de orais; olhar para o aluno quando este estiver falando; usar língua de sinais; fornecer materiais visuais (ex: fluxograma, imagens, tabelas, etc.) e fazer pré-leitura da pergunta; • Modificar o formato das respostas: fornecer exemplo de respostas esperados; permitir o uso de calculadora, textos e dicionários; fazer uma avaliação semelhante ao que foi ensinado em sala durante as aulas e verificar mais de uma vez se o aluno entendeu as questões e as respostas desejadas; • Modificar o tempo da avaliação: oferecer tempo extra; oferecer intervalo extra durante a prova, se necessário; • Modificar o ambiente da avaliação: colocar o aluno longe de distrações; aplicar a prova em local silencioso e separado, quando necessário (RUSSEL e AIRASIAN, 2014, p. 181).
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Todas essas categorias incluem muitas das acomodações mais comuns utilizadas em sala de aula. Colabora Russel e Airasian (2014) ao afirmar que “os professores devem mostrar sensibilidade às percepções que os alunos têm uns dos outros e, portanto, tornar suas avaliações e seus procedimentos modificados o mais acessíveis quanto possível, de forma a não chamar atenção para as diferentes necessidades dos alunos”. Essas acomodações são aquelas que a maioria dos alunos irá perceber durante a avaliação, é necessário que o professor faça uma sensibilização com toda a turma para esclarecer a necessidade dessa avaliação diferenciada devido às especificidades do aluno surdo. E ter uma conversa reservada com o surdo para estabelecer essas acomodações. Sobre as estratégias e procedimentos para a avaliação da aprendizagem escolar do aluno surdo Bolsanello e Ross (2005) estabelecem algumas estratégias a seguir: Estratégias e procedimento para avaliação da aprendizagem escolar do aluno surdo Na leitura e na interpretação do texto: aplicam-se a todas as áreas do conhecimento, pois todas elas consideram Língua Portuguesa em sua organização. a) Todas as atividades de leituras devem ser contextualizadas em referências visuais que permitam aos alunos uma compreensão prévia do tema implicado. A leitura das imagens auxiliará a leitura das palavras; b) na interpretação de textos permitir o uso de diferentes linguagens, como é o caso das artes plásticas (desenho, pintura, escultura, murais e maquetes) e cênicas (teatro, dramatização e mímica...); c) não solicitar a leitura em voz alta por razões óbvias; d) permitir a resposta na forma de linguagem utilizada pelo aluno, seja a Libras ou a comunicação gestual natural.
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
Na elaboração de exercícios e questões: procure evitar a utilização de questões que exijam apenas respostas escritas. A elaboração do enunciado é fundamental, simplifique-o, evite construções muito longas e pouco objetivas. Deste modo, na resposta à pergunta, o aluno terá pistas visuais que o levarão ao acerto, independente do seu conhecimento do português. Utilie: De acordo com a sua opinião a) Pinte os desenhos que mostram os cuidados com o meio ambiente; b) ligue o menino aos bons cuidados com o meio ambiente; c) enumere com 1(BONS) e 2 (MAUS) cuidados com o meio ambiente; d) marque com um X as alternativas certas; e) desenhe alguns cuidados com o meio ambiente. De modo geral: a) Planeje atividades com diferentes graus de dificuldades e que permitam diferentes possibilidades de execução (pesquisa, questionários, entrevistas, etc.) e expressão (apresentação escrita, desenho, dramatização e maquetes); b) proponha várias atividades para trabalhar um mesmo conteúdo. Ex.: pontos cardeais (vivências, observações, leituras, pesquisa, construção coletiva, etc.); c) combine diferentes tipos de agrupamentos de alunos, facilitando a visualização do aluno surdo e sua consequente integração com os colegas (círculo, duplas, grupos, etc.).
Fonte: Bolsanello; Ross (2005, p. 20)
Percebemos que os autores Airasian e Russel (2014), e Bolsaneelo e Ross (2005) comungam da necessidade do uso de acomodações ou estratégias de acordo com nomenclatura usada por cada um, o que devemos ter em mente é que todos os conteúdos que têm como pré-requisito a oralidade ou a percepção auditiva para sua compreensão precisam que os professores utilizem estratégias para que se efetive a aprendizagem do aluno surdo.
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As escolas inclusivas preocupam-se com um currículo preso aos objetivos da sequência linguística; em avaliar a competência do surdo na L2; em saber se o aluno aprendeu; com os instrumentos utilizados na avaliação. E a falta de fluência da L1 tanto pelos professores quanto pelos surdos é um fator relevante para o sucesso ou fracasso escolar.
METODOLOGIA Essa pesquisa se caracteriza como qualitativa, de caráter descritivo e seus dados serão detalhados por meio da análise do conteúdo na perspectiva de Bardin (2011). Justifica-se a escolha pela pesquisa qualitativa segundo Chizzotti (1991, p. 80) a valorização da relação entre sujeito e objeto, ressaltando que a “contradição dinâmica do fato observado e a atividade criadora do sujeito observam as oposições contraditórias entre o todo e a parte e os vínculos do saber e do agir com a vida social dos homens”. Já a delimitação de caráter descritivo deu-se em função de que esse tipo de pesquisa estabelece relações entre as variáveis do objeto de estudo, o qual consiste, principalmente, em observar, registrar, analisar e descrever os fatos sem manipulá-los, verificando sua frequência e relação com os outros fatores. O corpus coletado foi constituído por dados obtidos de uma entrevista através de um questionário semiestruturado, a qual depende da disponibilidade dos participantes e foram realizadas individualmente, a fim de manter a discrição das informações. As escolas aqui citadas serão representadas pelas siglas E1 para a de Olinda e E2 a de Paulista. Participaram desta pesquisa três professores (as)6 de Língua Portuguesa, que receberam os codinomes Carla, Bruno e Aline,
6. Duas mulheres e um homem, daqui em diante nomeados apenas como professores 112
AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
distribuídos em três turmas regulares do 5º ano do Ensino Fundamental, no turno da tarde, uma em Olinda e duas em Paulista. As análises dos dados foram discutidas através de trechos das narrativas dos entrevistados com os referenciais teóricos sendo distribuídos nas seguintes questões: 1) a quantidade de alunos surdos existentes na sala de aula; 2) o conhecimento dos professores sobre a estrutura da Libras; 3) como o professor avalia o aluno surdo; 4) quais estratégias utilizadas por ele para avaliar esse aluno; 5) que parâmetros utilizam para considerar o texto do aluno surdo e do aluno ouvinte e 6) como o professor se autodefine avaliando o texto do aluno surdo. As entrevistas foram transcritas, observando-se a fidedignidade às respostas dadas pelos professores participantes. Em seguida, os dados foram organizados em categorias e dispostos em tabelas, para posterior análise. Os dados qualitativos foram analisados a fim de que pudéssemos obter uma melhor compreensão do objeto de estudo, é o que mostraremos no capítulo a seguir.
ANÁLISE DOS DADOS Discutiremos a seguir as respostas das entrevistas realizadas com os professores e transcreveremos conforme seus posicionamentos a fim de garantir a legitimidade do trabalho e a opinião desses profissionais. Foram ressaltados dois pontos: as estratégias utilizadas em sala de aula para avaliação do aluno surdo e a autodefinição do professor como avaliador da produção textual do surdo.
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Anais Eletrônicos - XII EELL
Tabela 1: Quantitativo de alunos surdos na sua sala regular PROFESSORES
QUANTITATIVO DE ALUNOS SURDOS
Carla
1
Bruno
1
Aline
1
Fonte: Elaborada pela autora, 2015
Acredita-se que o número de alunos surdos se mantem na média de um por sala, devendo-se ao fato do aluno surdo estar a pouco tempo inserido no ensino regular, todavia, essa é uma realidade que está relacionada à inclusão dos alunos surdos no contexto educacional, o que contribuirá gradualmente para o aumento do acesso, permanência e nivelamento de oportunidades no ensino regular desses alunos. Destaca-se aqui o papel do professor, quanto ao trabalho desenvolvido em sala de aula, onde se faz necessário que sejam atendidas as especificidades destes alunos, havendo uma valorização de todas as diferenças, e que esta esteja pautada nos objetivos da educação, visando o exercício da cidadania e a preparação para ser inserido nos vários contextos sociais. Uma educação para todos. A seguir verificaremos a se o professor conhece a estrutura da Língua de Sinais:
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
Tabela 2: O professor conhece a estrutura da Língua de Sinais PROFESSORES Carla
CONHECE A ESTRUTURA DA LÍNGUA DE SINAIS Sei que ela está dividida em três partes. A 1ª que é a posição das mãos, a 2ª que é a estrutura do sinal em relação ao corpo e a terceira que é a movimentação do sinal com o meio.
Bruno
Sim, fiz vários cursos, mas não sei trabalhar.
Aline
Sim, mas não sei trabalhar.
Fonte: Elaborada pela autora, 2015
Souza e Góes (1999) afirmam que o processo de inclusão do aluno surdo vem sendo acompanhado por professores e profissionais que desconhecem a Libras e as condições do bilinguismo do surdo, por esta razão se sentem despreparados para atuar com esses alunos. É o que percebemos nas respostas dos professores Bruno e Aline que mesmo afirmando conhecer a estrutura da Libras não sabem utilizá-la com os alunos. No Decreto nº 5262 de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a Lei nº 10.436, e trato da inclusão da Libras como disciplina curricular no seu Capítulo II, Art. 3º nos § 1º e § 2º descritos abaixo: Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. § 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de 115
Anais Eletrônicos - XII EELL
Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério. § 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto. Embora o referido decreto determine o ensino da Libras nos cursos de licenciatura no período de um semestre, percebemos que apenas um semestre não é o suficiente para a aprendizagem de uma nova língua, e nem o capacita para ensiná-la. Da mesma forma que os professores graduados anteriormente ao decreto necessitam de um curso de Libras, os graduados posteriormente ao decreto devem também fazê-lo. Questionamos aos participantes se o aluno surdo passava por uma avaliação diferenciada dos demais alunos e como era realizada esta avaliação. Apenas um professor respondeu que não realizava uma avaliação diferenciada para seu aluno. Para melhor compreensão de como os professores avaliam seus alunos surdos, as respostas do questionário foram redigidas na integra na Tabela 3. Salienta-se que a intenção não foi julgar ou fazer comparações entre os professores, e sim perceber qual o entendimento de cada professor em relação ao tema: avaliação do aluno surdo.
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
Tabela 3: Como os professores avaliam os alunos surdos PROFESSORES
COMO OS PROFESSORES AVALIAM OS ALUNOS SURDOS
Carla
Minha avaliação é processual e para isso anteriormente foi elaborado um planejamento após conhecer o aluno e assim estabelecido metas para ele. E de acordo com o desenvolvimento do aluno, à medida que as metas são alcançadas, vou lhe atribuindo conceitos que infelizmente depois tenho que dar notas.
Bruno
Atividade em sala e prova coletiva.
Aline
Como ele está inserido no processo de alfabetização esta avaliação é feita diariamente observando os avanços na Libras, desenvolvimento da escrita e ele conta com o apoio do interprete de Libras.
Fonte: Elaborada pela autora, 2015
Na Tabela 03 referente à avaliação dos alunos surdos, feita pelos professores, pode-se observar que as professoras Carla e Aline avaliam de forma diferenciada, como é determinado no Decreto- Lei 5.626/05 em seu Art. 14. § 1º, Incisos VI e VII, mencionado anteriormente. Percebe-se, por meio das respostas dos professores, que a forma com que eles avaliam seus alunos contribui para que não sejam punidos ou negligenciados por não saberem ler e escrever tal qual o aluno ouvinte, alfabetizado na Língua Portuguesa. Isso nos remete ao teórico Aquino (2007) quando nos fala da missão do professor, que é de levar o conhecimento e preparar cidadãos conscientes, deste modo, mais do que educar; a grande missão do professor é: fazer o aluno compreender o mundo em que vive e como ele se define nesse mundo, contribuir para a formação de um aluno consciente e 117
Anais Eletrônicos - XII EELL
crítico, capaz de atuar no presente e de ajudar a construir o futuro para uma sociedade mais justa e igualitária. Como afirma Vigotsky (1991) um professor empenhado em promover a aprendizagem de seu aluno, tem que interferir em suas atividades psíquicas, notadamente em seu pensamento, pois é o aluno que dirige o seu próprio processo de aprender. No caso do aluno surdo, o professor precisa utilizar toda a sua capacidade e habilidade para conseguir atingir essa atividade acima citada, isto é, estimular o potencial que esse aluno possui. Na atuação do professor, temos que levar em consideração que ele sempre planeja ações cujos objetivos e metas devem atingir ou refletir-se no aluno. Assim, buscaram-se entender nesta pesquisa quais ações os professores desenvolveram para atender o seu aluno surdo. A Tabela 10 demonstra estas estratégias. Tabela 4: Estratégias utilizadas para avaliar o aluno surdo PROFESSORES
ESTRATÉGIAS UTILIZADAS
Carla
A principal estratégia para a avaliação é ter a possibilidade de se adaptar o currículo de acordo com as necessidades do aluno, pois com o currículo fechado é impossível avaliar o aluno surdo, haja vista as dificuldades de interpretação e escrita que os mesmos possuem.
Bruno
Utilização de figuras; o uso da Libras associada ao português escrito e o auxílio do intérprete.
Aline
Observações; atividades de sondagem com auxílio de figuras; jogos; brincadeiras e ativid
Fonte: Elaborada pela autora, 2015
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
Com relação às estratégias utilizadas, observa-se que os professores Bruno e Aline relatam a utilização de recursos visuais (figuras) para atender ao aluno surdo. Segundo Airasian e Russel (2014) o professor deve utilizar material visual na avaliação do aluno surdo, já que faz parte das acomodações necessárias para verificação da aprendizagem, uma vez que o surdo necessita dessa linguagem visual para poder interagir e construir significado. A professora Carla mencionou a questão da adaptação curricular, embora não tenha exemplificado qualquer situação de uma forma geral foi, também, abordado pelos outros professores. Brasil (2003, p. 34) nos esclarece bem quando afirma que: [...] as adequações curriculares constituem possibilidades educacionais de atuar frente às dificuldades de aprendizagem dos alunos. Pressupõem que se realize a adequação do currículo regular, quando necessária, para torná-lo apropriado as peculiaridades dos alunos com necessidades especiais.
Não um novo currículo, mas um currículo dinâmico, alterável, passível de ampliação, para que atenda realmente a todos os educandos. Nessas circunstâncias, as adequações curriculares implicam na organização pedagógica e nas ações docentes fundamentadas em critérios que definam: o que o aluno deve aprender; como e quando aprender; que formas de organização do ensino são mais eficientes para o processo de aprendizagem; como e quando avaliar o aluno. Na LDBEN (1996) no artigo 24, inciso V consta que a avaliação deve ser contínua e cumulativa em relação ao desempenho do aluno, com prevalência dos aspectos qualitativos sobre os quantitativos e dos resultados ao longo período sobre os de eventuais provas finais. Questionou-se aos participantes sobre os parâmetros por eles utilizados para avaliar um texto de um aluno surdo e um ouvinte. 119
Anais Eletrônicos - XII EELL
Tabela 5: Parâmetros utilizados para avaliar textos de alunos surdos e ouvintes PARÂMETROS UTILIZADOS
PROFESSORES Carla
Se esse aluno surdo consegue sintetizar as ideias de um texto em Libras e após isso fazer um texto escrito mesmo com as dificuldades que possua vou considerar o desenvolvimento como conquistado. O aluno ouvinte vou avaliar levando em conta todas as normas é claro; porém não quer dizer que não levo em conta a dificuldade que esse aluno possa ter, mas a compreensão do texto é o principal.
Bruno
Sabendo que os alunos aprendem de forma diferente, em momentos também diferentes, e que existem fatores externos e internos que precisam ser levados em consideração e com os surdos não podia ser diferente. Tais fatores são: conhecimentos prévios, família, experiência em grupos da comunidade.
Aline
O aluno que me refiro para essa pesquisa não produz texto.
Fonte: Elaborada pela autora, 2015
A professora Aline apenas faz uma referência ao seu aluno que não produz texto, mas, não explica o seu ponto de vista, não sendo possível formular qualquer comentário. Os professores Carla e Bruno buscam atuar conforme preconizam os teóricos, de acordo com suas respostas. A professora Carla, apresenta o foco da avaliação da escrita dos surdos valorizando o conteúdo, suas tentativas de produzir significados na escrita, mesmo que as palavras sejam inadequadas e nem sempre redigidas da maneira convencional.
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
O parâmetro de comparação deve considerar as produções do próprio aluno surdo nos diferentes estágios que percorre, apresentando características decorrentes da interferência da Libras e da sobreposição das regras da nova língua que está aprendendo. A LDBEN (1996) prevê a integração dos alunos com necessidades especiais no sistema regular de ensino, porém muitos professores reclamam e dizem que não estão preparados para receber esses alunos. Frente ao exposto, julgou-se necessário questionar aos participantes como eles se autodefinem como avaliadores da produção textual do aluno surdo. Tabela 6: Como o professor se autodefine como avaliador da produção textual do surdo PROFESSORES
COMO O PROFESSOR SE AUTODEFINE
Carla
Não sinto dificuldade nenhuma. Às vezes sinto que o surdo tem muita dificuldade em escrever também não só por conta da surdez em si, mas por ser prático ao surdo a Libras. Porque aprender uma língua cheia de regras se tenho uma língua que me identifica e pra mim é muito mais fácil. Sinto isso por que vejo a diferença dos textos de alunos surdos oralizados e não oralizados. Os oralizados têm uma facilidade bem maior e os textos apresentam uma maior coerência. Os não oralizados tem uma dificuldade bem maior e sempre me questionam o porquê de terem que aprender o português e como fica o texto em Libras.
Bruno
Pouco preparado para avalição mais profunda.
Aline
Não me sinto bem, porque falta em mim maior conhecimento desse universo do surdo.
Fonte: Elaborada pela autora, 2015
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Anais Eletrônicos - XII EELL
Nessa última questão das entrevistas realizadas confirmamos que os professores Bruno e Aline possuem dificuldades em avaliar uma turma com alunos ouvintes e surdos. Em conversa informal após entrevista, foi comentado pelos professores que, o que mais preocupa é o fato de não saberem até onde o aluno entendeu o conteúdo, o tempo limite para a realização das atividades e provas, e não poderem ofertar a mesma atenção aos ouvintes e surdos, e se sentem despreparados para avaliar as atividades em português do surdo. Os professores demonstram uma preocupação com os métodos de avaliação, como se a avaliação fosse um momento distinto, e não parte do processo de aprendizagem. Além disso, muitas vezes, os instrumentos utilizados não são adequados para a avaliação de determinadas aprendizagens. Corrobora Vasconcelos (1998, p. 44) ao dizer que a avaliação é um processo que “implica uma reflexão crítica sobre a prática, no sentido de captar seus avanços, suas resistências, suas dificuldades e possibilitar uma tomada de decisão sobre o que fazer para superar os obstáculos”. A argumentação de Vasconcelos serve tanto ao professor quanto ao aluno, ou seja, a prática pedagógica do professor deve ser refletida e revista constantemente, além de oportunizar ao aluno a percepção de seus progressos e a superação dos seus obstáculos. O professor Carla afirma: “não sinto dificuldade nenhuma como avaliadora de aluno surdo”, isso confirma que, quando o professor conhece, entende e se comunica em Libras com seu aluno, cria um ambiente linguístico. Utilizar recursos visuais e materiais adequados torna acessível o processo de ensino aprendizagem para eles, vários estudos indicam que existe uma correlação entre o estabelecimento e desenvolvimento da linguagem e o desempenho escolar.
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a trajetória teórica da nossa pesquisa, buscamos fazer um estudo sobre a avaliação da Língua Portuguesa na educação de surdos, a fim de analisar as concepções e estratégias utilizadas pelos professores da rede pública municipal de Olinda e Paulista para a avalição dos alunos surdos. Essa análise se deu a partir das entrevistas com professores de Língua Portuguesa que tivessem alunos surdos inclusos. Além disso, apresentamos algumas teorias de aquisição da Língua Portuguesa como L2 para o surdo, considerando que a L1 é pré-requisito para o ensino da Língua Portuguesa na modalidade escrita, e também, para que ocorra a comunicação, interação e a valorização de sua aprendizagem, atendendo ao seu direito constitucional de acesso e usufruto com qualidade na sua educação. Considerando que o domínio da Libras é pré-requisito para o processo de aprendizagem da Língua Portuguesa e que este se concretiza dialogicamente, logo, compartilhar uma língua comum entre surdo e o professor é condição essencial de comunicação para efetivação do processo de ensino dessa língua. No entanto, o professor ouvinte que não é proficiente em Libras, provavelmente, fique impossibilitado de perceber algumas especificidades do surdo em relação às suas necessidades de aprendizagem, em consequência a mediação necessária ao ensino dessa língua não acontece satisfatoriamente. Nas entrevistas realizadas nas escolas E1 e E2, os três professores afirmam conhecer a estrutura da Libras e que utilizam imagens como estratégia para adaptar as atividades, infelizmente na prática confirmamos que os professores Carla e Bruno não o fazem como determina a LDBEN - Lei nº 9.394/96, em seu artigo 59, no qual preconiza que os sistemas de ensino
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Anais Eletrônicos - XII EELL
devem assegurar aos alunos currículo, métodos, recursos e organização específicas para atender às suas necessidades, poucas ações são realmente concluídas neste sentido, ficando por conta da educação especial a responsabilidade pelos alunos inseridos nas turmas do ensino regular. Verificamos que os professores não conseguem garantir a interação com seus alunos surdos, devido à falta de interação, consequentemente passam a não mediar o conhecimento e não efetivam o seus papeis com esses alunos, e se definem como “despreparados” para avaliarem uma turma inclusiva. Para eles, o ato de avaliar esses alunos, é extremamente complexo, é um verdadeiro dilema que faz parte da sua vida escolar e que posteriormente transforma-se em desafio que eles terão de enfrentar, visto que, a avaliação é algo indispensável ao processo de ensino e aprendizagem. Verificamos que o professor utiliza como parâmetro para correção das produções textuais dos surdos as produções dos alunos ouvintes, e a faz, em sua maioria, utilizando a avaliação somativa para classificá-las. Como sabemos as produções dos surdos não podem ser comparadas com as dos ouvintes que tem o português como língua materna (L1) e a do surdo, a Libras, portanto, o parâmetro de comparação deve considerar as produções do próprio aluno surdo, nos diferentes estágios que percorre, apresentando características decorrentes da interferência da Libras e da sobreposição das regras da nova língua que está aprendendo, que como vimos anteriormente, são os estágios da interlíngua. Colocar em prática critérios diferenciados de avaliação na escola significa reconhecer e respeitar a diferença linguística dos alunos surdos e evitar que ocorram discriminações e marginalização no contexto escolar. Como só podemos avaliar o que ensinamos, os critérios em cada avaliação deve ter pontos específicos, exemplo, se ensinarmos o uso dos pronomes pessoais, através de uma metodologia de ensino com recurso visual, para que o aluno
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AVALIAÇÃO: um olhar sobre o texto do aluno surdo
surdo possa entender, apenas esse critério deverá ser avaliado no texto desse aluno e não todos os aspectos gramaticais da Língua Portuguesa. Consequentemente, um olhar diferenciado do professor nas produções escritas de alunos surdos é ponto de partida para concretizar, na prática, o diálogo com as diferenças, respeitando as possibilidades e limitações de seu aluno, para valorizar sua identidade surda.
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Resumo A atividade de compreensão textual consiste em ultrapassar os limites da decodificação. Essa ideia é transmitida por professores e por distintos materiais didáticos presentes na escola, um deles é o livro didático. Em atividades de compreensão presentes nestas obras, por exemplo, é comum se ver algumas questões que apresentam o contexto como um aspecto relevante para que o aluno não se detenha a decodificar o texto. Com base nisso, indagamo-nos: qual o tratamento dado ao contexto em livros didáticos? Com base nisso, pretendemos, neste artigo, investigar o tratamento dado ao contexto em livros didáticos de Língua Portuguesa. O corpus do trabalho constitui-se de uma coleção de livros de Língua Portuguesa de Ensino Médio aprovada pelo PNLD (2012). Como resultado, pudemos constatar que a noção de contexto adotada nas obras é, primordialmente, a que Van Dijk (2012) nos esclarece como sendo o “entorno” de determinada situação social. Palavras-chaves: Contexto; Compreensão; Livro Didático.
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA Lílian Noemia T. de Melo Guimarães1
INTRODUÇÃO Discursos sobre contexto existem há muito tempo sob pontos de vista distintos em várias áreas Literatura, Semiótica e Artes, Estudos do Discurso, Análise Crítica do Discurso, Sociologia, Etnografia e Antropologia, Psicologia, Ciências da Computação e em variados campos de estudo da Linguística (VAN DIJK, 2012). Diante de tantos olhares para o tema, poderíamos indagar se haveria a necessidade de se levantar neste artigo mais discussões sobre o assunto. Acreditamos, entretanto, que estas discussões não estão finalizadas e que todo olhar direcionado para o tema é sempre válido. Frente a tantas abordagens sobre esse assunto, procuraremos centrar nossa atenção para ele tomando por base os pressupostos teóricos da Sociocognição. Assumimos esta posição, pois consideramos, ancorados em Van Dijk (2012), que o contexto não é um aspecto que está fora do texto, mas sim, uma construção interacional (re)elaborada entre os participantes de uma interação a partir de variados elementos em uma situação social específica que os interlocutores tomam como relevantes para a sua produção discursiva (idem). Contexto é um tema bastante discutido quando se reflete sobre interpretação de textos. Isso porque, a partir do contexto, segundo Marcuschi (2008), é que se processa a compreensão textual. Como destaca o autor, “será
1. Aluna de doutorado e bolsista Capes do Programa de Pós-Graduação em Letras PPGL/UFPE. E-mail: lilian.noemia@gmail.com 129
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necessário ter clareza não apenas em relação ao que se deve entender por informação no processo de compreensão textual, mas também sobre o que vem a ser contexto” (p.249). Essa afirmação permite que a compreensão textual seja vista como uma atividade que ultrapassa os limites da decodificação. Essa ideia é transmitida por professores e por distintos materiais didáticos presentes na escola, um deles é o livro didático. Em atividades de compreensão presentes nestas obras, por exemplo, é comum vermos algumas questões que apresentam o contexto como um aspecto relevante para que o aluno não se detenha a decodificar o texto. Com base nisso, vem-nos em mente a seguinte indagação: qual o tratamento dado ao contexto em livros didáticos? Diante de tantos materiais, chama-nos à atenção para a investigação em livros didáticos (LD), pois estas obras constituem-se em um local que influencia na construção discursiva do aluno. A partir disso, pretendemos de maneira geral, neste artigo, investigar o tratamento dado ao contexto em livros didáticos de Língua Portuguesa Ensino Médio. O corpus selecionado para a análise constitui-se de uma coleção de livros didáticos do Ensino Médio, Português: contexto, interlocução e sentido, editado e publicado pelas autoras Maria Luiza Abaurre, Maria Bernadete Abaurre e Marcela Pontara, em 20102. No primeiro momento, este trabalho trará uma abordagem mais específica sobre os temas contexto, livro didático e compreensão de texto. Em seguida, vamos expor um exemplo de análise, procurando demonstrar, de modo geral, os resultados obtidos em relação ao tratamento que as obras didáticas dão ao contexto.
2. Mais adiante explicaremos, em detalhes, o critério de seleção desta coleção para a análise neste artigo. 130
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
NOÇÕES DE CONTEXTO Expõe Van Dijk, em Discurso e Contexto, que em diversas disciplinas, como também, em diferentes campos da Linguística, o tema contexto veio e vem sendo apresentado com um sentido e com implicações levemente distintas. Entretanto, explica o autor que, em geral, nenhuma das publicações destes campos apresentam, de fato, estudos aprofundados sobre a teoria de contexto. Van Dijk (2012), com isso, procurando realizar um estudo mais sólido, debruça-se a finco sobre o tema e apresenta-nos uma rica investigação sobre ele. O aspecto central de tal pesquisa é mostrar que a noção de contexto ultrapassa parâmetros óbvios de como vem sendo comumente tratada pelas teorias clássicas. Afirma o autor que é difícil defender, de maneira mais ou menos satisfatória, uma noção de contexto. É possível a utilizarmos “sempre que queremos indicar que algum fenômeno, evento, ação ou discurso tem que ser estudado em relação com seu ambiente, isto é, com as condições e consequências que constituem seu entorno” (p.19). Com isso, quando nos deparamos com a ocorrência de propriedades de algum fenômeno, não só o descrevemos, mas também, o explicamos em termos de alguns aspectos de seu contexto. Mostra Van Dijk (2012) que os estudos da Psicologia Cognitiva direcionados para o processamento textual proporcionaram algumas ideias sobre o que se poderia, talvez, denominar como “contexto cognitivo do discurso”. A partir daí, o interesse no papel exercido pelo contexto no processamento do discurso começou a ganhar espaço nas discussões. Mas, diferentemente do que Van Dijk veio a desenvolver, tais estudos, com raras exceções, basearam-se na ideia de contexto associada a uma mente socialmente isolada (VAN DIJK; KINTSCH apud VAN DIJK, 2012). Apenas no final dos anos 70 e início dos anos 80, estudos começaram a ser desenvolvidos em direção a
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uma abordagem mais discursiva e interacionista. As estruturas do discurso passaram a ser estudadas mais sistematicamente em seu contexto social, histórico e cultural. Entretanto, em linhas gerais, tais análises “limitaram esse contexto ao contexto verbal, ou cotexto para unidades linguísticas ou para o uso da língua” (p.23). Atualmente, destaca o autor que, mesmo muitos estudos já demonstrando que o contexto constitui-se como um ponto primordial para que possamos compreender fenômenos complexos que ocorrem em nosso dia a dia, essas investigações não expõem claramente o conceito de contexto a qual se referem. Diferentemente disso, Van Dijk define, em detalhes, o que seria contexto na língua, cognição, sociedade e cultura. Um resumo dos principais pressupostos de tais definições demonstra-se nos seguintes aspectos: os contextos são construtos subjetivos dos participantes, sem desconsiderar suas propriedades sociais e intersubjetivas; são experiências únicas; são modelos mentais; são dinâmicos; são um tipo específico de modelos de experiência; são amplamente planejados; são esquemáticos; têm bases sociais; e controlam a produção e compreensão do discurso. A partir disso, em contraste a um determinismo defendido pelas teorias clássicas, percebe-se que os contextos passam a ser considerados como “co-construções situadas e dinâmicas, cujas ações dos interlocutores continuamente as reconfiguram” (FALCONE, 2012, p. 275). Ou seja, quando discursamos algo, não há uma relação objetiva entre esse discurso e os aspectos contextuais, há sim interpretações que os interlocutores elaboram sobre esses aspectos (ibidem). Tomar por base tais conceitos para entender o processo de compreensão textual é de extrema importância, uma vez que as propriedades (inter) subjetivas dos interlocutores, os conhecimentos compartilhados entre eles e a ação de como interpretam os aspectos contextuais serão tidos, a partir de agora, como peças fundamentais para a compreensão de textos. 132
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
O processo de compreensão textual, como bem sabemos, perpassa todos os âmbitos e práticas discursivas. Somos constantemente instigados a exercer tal processo. Na escola, por exemplo, os alunos são motivados de maneira recorrente a refletirem e dizerem o que compreendem sobre os textos/ discursos, sejam orais ou escritos, aos quais se deparam. O livro didático, por exemplo, constitui-se em um material, que traz à tona, seja qual for a área, uma série de questionamentos sobre compreensão. Isso justifica o nosso interesse por esta obra quando nos debruçamos a estudar o tema contexto. No próximo tópico, teceremos alguns poucos comentários sobre esse material, a fim de deixarmos claro o que entendemos, ancorados nos aportes teóricos, por livro didático.
LIVRO DIDÁTICO: BREVES COMENTÁRIOS Analisar livro didático é importante, pois, como diz Marcuschi (2001, p.46), “parece legítimo supor que, mesmo numa época marcada pela comunicação eletrônica e pela entrada de novas tecnologias, o material didático continua sendo uma peça importante no ensino”. Os livros didáticos, como são leitura obrigatória para muitas pessoas, acabam oferecendo uma precondição importante de seu poder (VAN DIJK, 2008). Compartilhando com essa ideia, Pimenta (2006) mostra que essa obra é considerada como uma das ferramentas mais utilizadas pelos professores e alunos para adquirir conhecimentos e, “muitas vezes, representa o único objeto real de leitura” tanto para esses discentes como para alguns desses docentes (PIMENTA, 2006, p.123). Segundo Souza (1999), esse material possui um caráter de autoridade que encontra sua legitimidade na crença de que é um depositário de um saber a ser decifrado, pois se supõe que contém uma verdade sacramentada a ser transmitida e compartilhada pelo professor. Por isso que, muitas vezes, 133
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ele é tido como fonte última (e às vezes) única de referência na sala de aula. Consideramos, entretanto, que “o livro didático é, geralmente, um dentre os componentes de uma situação de aprendizagem” (SOUZA, 1999, p.102). Ele não é a principal “arma” para a atividade pedagógica do professor, mas é um dos recursos que pode e deve ser abordado de forma crítica (ibidem). Lajolo (1996) mostra que o material escolar pode ser constituído de inúmeros elementos que vão influenciar no processo de aprendizagem dos alunos. Entretanto, alguns deles são tidos, segundo a autora, como mais essenciais do que outros, uma vez que podem influir mais diretamente no processo de ensino-aprendizagem na sala de aula. Entre esses elementos, destacam-se os livros didáticos, que, na sociedade brasileira, são considerados como elementos “centrais na produção, circulação e apropriação de conhecimentos, sobretudo dos conhecimentos por cuja difusão a escola é responsável” (p.4). Com base nesses fundamentos, poderíamos dizer que, para nós, o livro didático constitui-se em um instrumento, perpassado por ideologias, no qual discursos diversos são veiculados a fim de ajudar no processo de aprendizagem dos alunos sobre as diversas temáticas que ele contempla. Essa obra, além disso, constitui-se, a nosso ver, como um meio que tem a função de ajudar no processo de ensino dentro e fora da sala de aula. Com a importância destas obras no âmbito escolar, muitos linguistas, sobretudo a partir dos anos 80, começaram a se debruçar sobre elas, e continuam a fazê-lo. Vários trabalhos e pesquisas surgem direcionando análises, sob distintos aspectos, para diferentes livros didáticos (COSTA Val; MARCUSCHI B., 2005; ROJO; BATISTA, 2003). Muitos destes trabalhos centram a atenção para o tema da compreensão nestas obras. Pesquisas realizadas por Marcuschi (1996, 1999, 2008); por Kleiman (2004) entre outras nos dão grandes explicações acerca do assunto. Vejamos mais adiante, a título de esclarecimento, algumas dessas abordagens que são realizadas. 134
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
COMPREENSÃO EM LIVROS DIDÁTICOS Para se falar sobre compreensão em livros didáticos é relevante explicitarmos primeiramente qual conceito de leitura resolvemos adotar como norte em nosso trabalho, uma vez que, segundo Marcuschi (2008), os atos de “ler e compreender são equivalentes” (p.239). Tomamos como guia os seguintes pressupostos: leitura não deve ser vista como um ato de “extração de conteúdos” ou identificação de sentidos de um texto, mas sim, como um “ato de produção e apropriação de sentido que nunca é definitivo e completo” (p.228). De acordo com o autor, quando assumimos esta definição, a compreensão deixa ser considerada como uma “atividade de garimpagem” do texto, ou seja, como um ato de decodificação de mensagens, de identificação e apropriação de informações estritamente textuais (p.268). A compreensão passa a ser vista como uma atividade de construção, como um processo ativo e reflexivo; e o texto, com isso, passa a ser encarado como uma proposta de sentido que se acha aberta a várias alternativas de compreensão. Desse modo, o leitor passa a assumir um papel fundamental na construção de sentidos do texto, vindo a ser considerado como seu co-autor. Com base nisso, Marcuschi defende que a compreensão deve ser considerada como “um processo cognitivo”, pois cada leitor tem uma bagagem de experiências distintas que será de grande importância para a realização de inferências e produção de sentido do que leem (p.239). Isso justifica o fato de que um mesmo texto pode apresentar diferentes compreensões quando lido por distintos leitores. Mas isso não quer dizer que um texto pode oferecer qualquer possibilidade de compreensão, pois “compreender é produzir modelos cognitivos compatíveis preservando o valor-verdade” (POSSENTI, 1990; 1991 apud MARCUSCHI, 2008, p.257).
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Em relação aos livros didáticos, Marcuschi (2008), baseando-se em uma detalhada análise que realizou, no fim dos anos 90, de manuais de ensino de Língua Portuguesa, assegura que a atividade de compreensão resume-se no geral a uma tarefa de identificação e extração de informações textuais e de conteúdos. Os exercícios não admitem respostas alternativas a perguntas de compreensão, “raramente levam a reflexões críticas sobre o texto e não permitem expansão e construção de sentido” (p.267). Tomando por base tais conclusões e as próprias considerações defendidas pelo autor acerca da relação entre compreensão e contexto (“compreender uma expressão linguística ou um texto em uso é entendê-lo em seus contextos” (p.234)), poderíamos dizer que as atividades nos materiais analisados por Marcuschi não contemplaram a devida importância dos contextos para o processo de compreensão. Como muitas mudanças vêm ocorrendo no ensino de Língua Portuguesa, e consequentemente nos livros didáticos (os PNLD nos mostram isso anualmente), indagamo-nos qual o tratamento que se dá ao contexto a partir das atividades de compreensão nos LD. Detivemo-nos a apresentar as análises que respondem a esse questionamento no próximo tópico.
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CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
CONTEXTO EM LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ALGUMAS ANÁLISES Antes de nos deteremos às análises vale a pena detalharmos alguns dos procedimentos metodológicos que adotamos. Como critério de seleção do corpus, elegemos uma coleção que foi aprovada pelo sistema de avaliação do Programa Nacional do Livro Didático e, portanto, resenhada no Guia PNLD/20123, pois todas as obras: trazem textos, informações, conceitos, noções e atividades capazes de colaborar, em maior ou menor medida, com os objetivos oficiais estabelecidos para cada um dos quatro grandes objetos de ensino da disciplina: leitura, produção de textos escritos, oralidade e conhecimentos linguísticos (BRASIL, 2011, p.12).
Das onze coleções aprovadas pelo PNLD, elegemos uma das três mais distribuídas pelas escolas da Rede Pública de Ensino, em todo o Brasil, em 2013. Para tal seleção, investigamos, no site do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE (em uma parte destinada ao PNLD), os dados estatísticos de distribuição integral dos livros aos alunos, e dos manuais didáticos aos professores, correspondente a cada ano (1º, 2º e 3º)4. Somadas essas quantidades de distribuições, uma das três mais requisitadas e traba-
3. Quando iniciamos as análises deste trabalho, o Guia do Ensino Médio 2012 era o mais recente e os livros didáticos aprovados por ele já estavam distribuídos nas escolas. Hoje, já temos disponibilizado o Guia 2015 (www.fnde.gov.br/programas/livro.../livro-didatico-dados-estatisticos) e as edições dos livros já estão mais atualizadas. 4. Tais dados foram exibidos na tabela “Valores de aquisição por título - Ensino Médio (regular e educação de jovens e adultos)”. 137
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lhadas nas escolas públicas foi a seguinte: Português: contexto, interlocução e sentido (2010). Devido a isso, ela foi o alvo de nossa análise. A coleção é composta por três volumes, divididos em três Eixos de Ensino: Literatura, Gramática e Produção de Texto. Segundo o Guia, as atividades dos livros “favorecem o desenvolvimento da habilidade de leitura, [...] e exploram a materialidade do texto na apreensão de seus múltiplos sentidos” (p.44). Em relação à produção de texto, as obras são descritas positivamente por apresentarem qualidade e propriedade na seleção dos textos para estudo. Além disso, “os conceitos apresentados estão de acordo com o que têm divulgado os estudos linguísticos contemporâneos voltados para o texto e o discurso” (p.46). Como tínhamos a intenção de verificar quais noções de contexto eram trabalhadas por estas obras didáticas, decidimos focar o nosso olhar para os exercícios dos livros que mencionavam a palavra contexto no enunciado da questão5. No Eixo de Literatura, nas três séries, essa palavra, em comparação as outras partes da obra didática, aparece com menor frequência. Constatamos que nos exercícios das três séries, a palavra contexto sempre vem associada a outros termos, como: o contexto da história; do poema; da época; do momento literário; de circulação; do trecho citado; criado pela cena; e cultural. Já, no Eixo de Gramática das três séries, o item lexical contexto é bastante recorrente nos exercícios, principalmente em um dos capítulos do livro do 1º ano, que traz o título “A construção do sentido”. Nele, as autoras expõem o conceito de contexto e enfatizam a sua importância para a construção de sentido de um texto: “o contexto é o conjunto das circunstâncias (sociais,
5. Mesmo sabendo que a palavra contexto não necessariamente precisa estar explícita nos enunciados das questões para sabermos que, muitas vezes, tais enunciados contemplam esta noção, detivemonos a este critério de análise devido ao espaço limitado de exposição de dados e análises neste artigo. 138
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
políticas, históricas, etc.) associadas a um texto. [...] A identificação do contexto é essencial para que se compreenda o sentido do texto” (p.251). Como maneira de os alunos exercitarem o que aprenderam, esse assunto é um dos focos de mais atenção nos exercícios. Com isso, muitas questões apresentam o seguinte enunciado: “[...] considerando o contexto, responda [...]”. O que nos chama à atenção é o fato de tais atividades apresentarem, quase que unicamente, gêneros imagéticos, como, anúncios, charges, cartuns e tiras, para trabalharem a temática do contexto. É como se ele estivesse diretamente associado à imagem. O leitor é induzido a visualizar a figura apresentada para poder compreender o texto e, com isso, responder a questão. Já nos livros de 2º e 3º ano, o termo contexto é abordado com menor frequência. Nos casos em que aparece, é muito comum, além de ser associado à imagem de alguns gêneros, ele também ser relacionado a uma situação (às vezes aparecendo as expressões “contexto formal” e “contexto informal”) e a um tempo, aos quais o leitor deverá se reportar para compreender o texto. No Eixo de Produção Textual, cada capítulo das três séries dedica-se a abordar um gênero textual e, em seguida, propõe uma atividade de escrita desse gênero. A palavra contexto aparece sempre no início de todos os capítulos. As autoras expõem os objetivos que pretendem alcançar com a abordagem do tema e um deles sempre é o “contexto de circulação” do gênero textual que irá ser ensinado6. A noção de contexto, com isso, sempre é tratada como sendo o espaço em que tais gêneros são veiculados. Ele é retomado nas atividades dos capítulos quando as autoras propõem aos alunos que o levem em consideração para produzirem o gênero trabalhado na unidade.
6. No livro de 1º ano, os gêneros trabalhados são: relato pessoal, carta pessoal, diário e resenha; no de 2º ano são: crônicas, biografias e autobiografias, texto enciclopédico, cartas argumentativas, artigo de opinião e editorial; e no de 3º ano: contos, relatório, dissertação e texto de divulgação científica. 139
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Com base no levantamento desses dados e nas análises realizadas, como um todo, pudemos constatar que o termo contexto foi bastante trazido nas atividades dos livros presentes em todos os Eixos. As autoras procuram demonstrá-lo como sendo um aspecto importante para a compreensão textual. Vejamos um exemplo7: Figura 18
Na 5ª questão, a associação entre contexto e compreensão fica evidente quando, referindo-se ao enunciado, “É. O amor é cego”, as autoras indagam
7. Por conta de espaço, apresentamos um exemplo apenas. Entretanto, as considerações que levantamos sobre os dados referem-se à análise dos trabalhos realizados em toda a coleção de livros. 8. Questão retirada do livro do 2º ano; p. 510. 140
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
ao leitor se seria possível, caso o contexto fosse desconsiderado, compreender esse enunciado. Tal indagação é importante, uma vez que direciona o leitor a visualizar o quanto o contexto é relevante para que o enunciado não seja compreendido apenas como uma afirmação “genérica” (o fato de o sentimento amoroso levar os apaixonados a verem a pessoa amada como idealizada, sem enxergar possíveis defeitos que eventualmente tenham). Como também demonstra que uma interpretação baseada no contexto é mais completa, uma vez que não se detém apenas aos aspectos sintáticos indagados na primeira proposição. Entretanto, a nosso ver, a noção de contexto, a partir desta indagação na questão, ainda não fica totalmente clara. Não sabemos, ao certo, se o contexto é tido como algo que, unicamente, está “além” deste enunciado (ou seja, os elementos contextuais do anúncio publicitário) ou algo que explora as múltiplas inferências dos alunos tomando por base suas interpretações. Esta noção fica explícita apenas na próxima questão. Na 6ª questão, observamos que as autoras, quando indagam “que elementos do texto caracterizam esse contexto?”, procuram associar o contexto aos elementos do próprio texto. O contexto é tido como uma categoria observável, visível no próprio texto, ou seja, é tido como um elemento que pode ser caracterizado e determinado pelo próprio texto. Essa noção permite que a relação estabelecida entre o contexto e a compreensão seja objetiva e direta. Sendo assim, o que irá permitir a compreensão do enunciado “É o amor é cego” não são as interpretações que os alunos fazem, com base numa bagagem de experiências prévias, dos elementos contextuais. O que irá determinar a compreensão são esses próprios elementos que estão visíveis no anúncio publicitário. Não são levados em consideração, na atividade, quais são os modelos cognitivos que o aluno/ leitor tem sobre os elementos contextuais que são apresentados no anúncio. Ou seja, quais são os conhecimentos que esse aluno tem a respeito de um conjunto de características negativas que envolvem 141
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uma mesma cidade, como, inversão térmica, trânsito louco, problemas. Além disso, não são levantados questionamentos sobre quais são os conhecimentos prévios que esse leitor tem acerca da metáfora “O amor é cego”. Consideramos que o acesso a esses modelos é o que vai contribuir para a construção do sentido do enunciado associado ao anúncio publicitário. É importante deixarmos claro, neste momento, que estamos longe de defender que a teoria de contexto, bem como aprendemos nos estudos acadêmicos, e que fundamenta a elaboração deste artigo, precisaria vir explicitada nesta questão do livro e em todas as obras didáticas analisadas. Acreditamos, sim, que a maneira com que os elementos de contextualização são apresentados a partir das atividades dos livros dão-nos o alicerce para entendermos tal teoria. Bem como já expusemos, o que nós desejamos analisar foi o tratamento oferecido às noções de contexto que perpassam as atividades em LDP. Não desejamos averiguar, por exemplo, como as atividades trabalhavam com a definição ou descrição do que viria a ser contexto, mas sim, como esse aspecto era abordado, a partir dessas atividades, de modo que viesse a contribuir para a compreensão textual. A partir disso e das análises, como um todo, pudemos constatar que a noção de contexto que perpassa as atividades não coloca em destaque o papel do sujeito no processo de compreensão. Embora as questões procurem considerar a importância dos elementos contextuais na atividade, os questionamentos não mostram o contexto como sendo o resultado de uma construção subjetiva do aluno. O que se vê nas atividades, de maneira geral, é muito mais o que Van Dijk (2012) denomina como um “contexto verbal” ou o “entorno” de determinada situação social. Essa visão permite que as possibilidades de compreensão textual não ultrapassem os limites da identificação de elementos que vão estar visíveis no próprio texto. Acreditamos, a partir disso, que o simples fato de um exercício de compreensão textual lançar mão do item lexical “contexto” em seu enun142
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
ciado não significa dizer que a atividade está levando em consideração os conhecimentos prévios que os alunos têm acerca dos elementos contextuais que o texto apresenta para poder compreendê-lo. A nosso ver, os modelos cognitivos de experiências variadas dos leitores são levados em consideração quando a noção de contexto que dá sustentação às atividades de compreensão fundamenta-se em uma perspectiva Sociocognitiva. Isso permite que a relação existente entre contexto e compreensão ultrapasse os limites do que está visível no próprio texto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Observamos o quanto foi plausível os livros didáticos abordarem o contexto em suas atividades de compreensão. Essa abordagem já demonstra que a lacuna existente desse tema nas pesquisas realizadas com livros didáticos nas décadas de 70 e 80, aos poucos, deixa de existir. A ênfase para o contexto nas atividades de compreensão nas obras analisadas mostra que o texto é considerado como um “evento comunicativo” em que se concentram não somente ações linguísticas, mas também, sociais, históricas e cognitivas. A noção de contexto adotada nas obras é, ainda, primordialmente, aquela que Van Dijk (2012) nos esclarece como sendo o “entorno” de determinada situação social. É como se a imagem, a classe social, o sexo, a idade, a cultura, os papeis dos interlocutores etc. constituíssem o próprio contexto, e ele determinasse a compreensão do texto. Entretanto, no tocante às atividades de compreensão textual presentes nessas obras, se temos em mente o quanto são relevantes as interpretações intersubjetivas dos indivíduos sobre os elementos contextuais que lhes são apresentados nas atividades, poderemos considerar que o sentido esperado para um texto não pode ser tido como único. Ou seja, as possibilidades de compreensão podem ser consideradas como múltiplas, pois as experiências 143
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e conhecimentos prévios dos alunos leitores são distintos e o que cada um considera ser relevante em um mesmo texto apresentado na atividade pode não ser para outra pessoa. Sendo assim, acreditamos que tomar por base esse viés Sociocognitivo para entendermos a importância do contexto nas atividades de compreensão dos livros didáticos ajuda-nos a considerar o aluno não mais como um sujeito secundário no processo de compreensão textual, e sim, como um sujeito essencialmente ativo, e a perceber que os exercícios de compreensão vão muito mais além do que uma simples identificação de informações que estão na superfície do texto.
REFERÊNCIAS BRASIL. MEC. SEB. Guia de livros didáticos: PNLD 2012; Língua Portuguesa. Brasília: Ministério da Educação, 2011. COSTA Val, M; MARCUSCHI, B. (Orgs.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: CEALE/Autêntica, 2005. FALCONE, F. Discurso e contexto. Eutomia: Revista de Literatura e Linguística, p.264284, 2012. Disponível em <http://www.revistaeutomia.com.br/v2/wp-content/ uploads/2012/08/Discurso-e-cogni%C3%A7%C3%A3o_p.264-2841.pdf>. Acesso em 10 de dez. 2013. KLEIMAN, A. Abordagens de leitura. Scripta, Belo Horizonte, vol. 7, n. 14, p.13-22, 2004. LAJOLO, M. Livro didático: um (quase) manual de usuário. Em Aberto, v. 16, nº 69. p. 3-9, 1996. MARCUSHI, L. A. Compreensão ou copiação? A propósito dos exercícios de leitura nos manuais de ensino de língua. Em aberto. INEP: Brasília. p. 64-82, 1996. ______. O livro didático de língua portuguesa em questão: o caso da compreensão de texto. Cadernos do I Colóquio de Leitura do Centro-Oeste. Goiânia: UFGO, p.38-71, 1999. ______. Compreensão de texto: algumas reflexões. In DIONISIO, A. P.; BEZERRA, M. A. O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001. p.46-59 ______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. 144
CONTEXTO EM LIVROS DIDÁTICOS DE LÍNGUA PORTUGUESA
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Resumo Na Grécia Antiga, os relacionamentos sexuais entre homens eram encarados pela sociedade como uma prática pedagógica. A sexologia do séc. XIX foi responsável por atribuir às práticas homossexuais um caráter patológico. A psicanálise, debruçando-se sobre as questões do inconsciente, procurou afirmar a plasticidade do desejo, colocando-o a serviço das moções pulsionais. À procura de explicações para comportamentos considerados, à época, perversos e bizarros, o mestre vienense interpretou a homossexualidade como um outro caminho, dentre os inúmeros itinerários forjados pela sexualidade. Mas, não só as correntes psicanalíticas, como também obras de ficção têm dado uma nova abordagem para os sujeitos homoeróticos. É o caso do romance Will & Will, de John Green e David Levithan, publicado em 2015. Assim, numa conexão entre a psicanálise (pós) freudiana e a literatura infanto-juvenil, nossa pesquisa pretende analisar o personagem Will Grayson, ante o desvelamento de sua sexualidade no âmago de uma sociedade marcada por convicções heteronormativas. Palavras-chaves: Homossexualidade; Psicanálise; Identificação.
FRATURAS DE SI E DA ESCRITA: EXPRESSÕES HOMOERÓTICAS EM WILL & WILL Rafael Venâncio1 Hermano de França Rodrigues2
INTRODUÇÃO Will & Will. Um nome, um destino é um romance que compõem a cartografia da literatura infanto-juvenil escrito pelos norte-americanos John Green e David Levithan, publicado no ano de 2014. A temática do livro explora os conflitos de dois adolescentes que vivem dilemas em sua vida social, de forma paralela, seus dramas se unificam no dia em que se encontram pela primeira vez, e se descobrem possuidores do mesmo nome, coincidentemente. Mas, aparentemente, só o nome lhes é comum, pois nas demais coisas são inteiramente opostos. Com o enredo composto em vinte capítulos e o foco narrativo é em primeira pessoa, sob a ótica ordenada dos dois protagonistas: eles expressam, sob seu próprio ponto de vista, os aspectos e impressões das situações a que são levados. A fim de criar um maior paralelismo na trama, os autores optaram por diferenciar os personagens principais em, praticamente, tudo: condição financeira, ensino, família, escola, amigos e sexualidade; ou seja,
1. Graduando em Letras Português na Universidade Federal da Paraíba, pesquisador do LIGEPSI/ CNPq. E-mail: venanciorafaelecritor@gmail.com. 2. Professor Adjunto II do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas e do Programa de PósGraduação em Letras na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: hermanorg@gmail.com. 147
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enquanto um Will tem uma estrutura familiar aparentemente satisfatória, estuda numa das melhores escolas dos Estados Unidos e se afirma hétero, o outro advém de uma família sem a presença do pai, vive em condições financeiras apertadas e estuda numa escola de estrutura física precária. Além disso, os escritores se valeram de uma maneira bastante peculiar para apresentar os capítulos nos quais o ponto de vista está no segundo Will: as letras maiúsculas não são inseridas nem mesmo após o ponto final ou de continuação, semelhante a conversas registradas em chat nas redes sociais, o que, por sua vez, nos permite pensar a razão pela qual o discurso e a forma de expressá-lo são desta forma e não de outra. Vale considerar que, a homossexualidade retratada neste romance, por meio deste personagem, demostra o quanto a literatura infanto-juvenil tem aberto um espaço significativo a temáticas que exploram o campo da subjetividade, na sua área mais complexa, a saber, a sexualidade. Em vista disso, nossa pesquisa pretende, num diálogo entre a psicanálise (pós) freudiana com a literatura, sondar o personagem Will Grayson, ante o desvelamento de sua própria sexualidade, numa sociedade movida por padrões heteronormativos. A escolha da abordagem veio a partir dos diversos discursos acerca das homossexualidades advindos das áreas de domínio e saber, na sociedade ocidental, discursos estes que fora, se modificando e permitiram uma melhor elucidação sobre o tema. Por exemplo, Michel Foucault, em seu primeiro volume sobre a História da Sexualidade – A Vontade de Saber -, desmitificou a ideia alimentada por diversos historiadores de que existia uma repressão categórica acerca do sexo. Para ele, “a ideia do sexo reprimido, não é somente objeto de teoria” (1999, p. 13), mas um meio pelo qual se pretende “dizer a verdade sobre ele”, verdade que as instancias de poder se consideram como as únicas detentoras, quais sejam: a religião ou a pastoral cristã, com seus sacramentos, onde a confissão era o mais eficaz; a pedagogia, sempre vigilante no que se referia à sexualidade da criança, em perigo e perigosa e, por 148
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fim, a medicina, com seus padrões heteronormativos, patologizando toda e quaisquer manifestações contrárias à natureza, corroborando com a Igreja nas interdições, para o que se acreditava ser o bem da humanidade. Na verdade, houve uma evolução nos discursos, nas diversas camadas do poder, que pudessem lidar com as múltiplas sexualidades periféricas, isto é, práticas sexuais que não estavam de acordo ou dentro do casamento sacramentado e, neste sentido, A sodomia [...] era um tipo de interdito e o autor não passava de seu sujeito jurídico. O homossexual do século XIX torna-se uma personagem: um passado, uma história, uma infância, um caráter, uma forma de vida; [...] Nada daquilo que ele é escapa à sua sexualidade [...] (1999, p.43).
A razão para esta estigmatização do homossexual pode ser bem explicada pela mudança ocorrida na realidade social, sofrida a partir do século XIX: a burguesia, movida pelo capitalismo e pelo Iluminismo, passou a perceber a distinção dos sexos, não só pelo víeis anatômico, mas também por atividades que atribuíam para cada um deles; “a distinção entre os sexos passa agora a justificar e a colocar diferenças morais aos comportamentos femininos e masculinos, de acordo com as exigências da sociedade burguesa” (CECCARELLI; FRANCO, 2010, p.122): o homem, superior a mulher em força e inteligência, era apto ao trabalho e a produtividade, a mulher, historicamente frágil, cabia à tarefa de cuidar da casa e dos filhos a fim de que os mesmos, quando crescessem, continuassem o ciclo de produção na sociedade, iniciada por seus pais. O homossexual, por sua vez, não podia reproduzir, logo, não daria continuidade ao ciclo e isso acabaria com a família nuclear, entendida como a célula da sociedade burguesa. Ceccarelli e Franco, explicam que,
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O preconceito social que estigmatiza e rotula o homossexual até os dias de hoje é um produto da ideologia evolucionista burguesa, na qual se criou uma crença em uma vivência sexual “normal” e “civilizada”, a partir do momento em que o sexo se transformou em elemento político e social relevante para a época. [grifo nosso] (Ibid, 2010, p. 123).
A partir daí, como bem Foucault discorre, começou a se produzir discursos médico-jurídicos sobre a homossexualidade, cujas práticas eram consideradas ameaçadoras à sociedade, e a psiquiatria da época passou a classificá-los como perversos, invertidos, desviados do caminho natural da sexualidade, patologizando-os e, talvez sem perceber, contribuindo para a intolerância e discriminação destas pessoas. Com estes dados preliminares, nos lançamos ao desafio de investigar estes fatos no corpus do qual dispomos. É evidente que, como afirmamos, se trata de uma historia contemporânea, logo, estes discursos patologizantes não se encontram, com tanta intensidade e frequência, nas áreas da medicina, senão, ainda, claro, por questões de princípios matrizes, na esfera religiosa cristianizada do ocidente.
A homossexualidade ante a sociedade ocidental A história de Will Grayson é narrada a partir do ponto de vista do próprio personagem que se mostra apático no que concerne à vida social. Ao que lhe parece não é viável estabelecer um laço afetivo com as pessoas de seu meio uma vez que elas não compreenderiam os problemas por que passa. Neste sentido, o adolescente construiu relações superficiais de amizade,
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ou melhor, com uma pessoa apenas, por nome Maura, sua colega de sala de aula, cuja conduta, parecia muito consigo mesmo: maura não está exatamente a minha espera [...] desde que me lembro, o que dá mais ou menos um ano. [...] em algum momento do ano passado, a melancolia dela encontrou minha desgraça, e maura achou que a combinação era boa. não tenho tanta certeza assim. [...] (GREEN; LEVITAN, 2015, p.34).
De fato, Will não confia na, suposta, amiga, pelo contrário, suspeita de que ela tenha algum interesse em sua pessoa, de ordem sexual, de modo que busca sempre, com a indiferença que lhe caracteriza, evitar qualquer que seja as investidas dela. Esta atitude de defesa, no entanto, não é apenas com a colega, pois é levada a todas as pessoas que, dentro da comunidade escolar, estejam em sua volta bem como no trabalho e em casa, com sua mãe. Maura é a única pessoa que procura, por meios nenhuns pouco convencionais, extrair de Will a explicação para suas atitudes antissociais: a garota, se fazendo passar por outra pessoa, com o fictício nome de Isaac, se aproxima de Will nas redes sociais e o engana, até o ponto que descobre que ele é homossexual; assim que tem certeza disso, não satisfeita, Maura arquiteta uma maneira de revelar a verdade de uma forma humilhante para se vingar da falta de confiança de Will em sua pessoa. O que certamente Maura não compreendeu nas atitudes de Will referentes à sua sexualidade era o quanto, para um adolescente, na sociedade em que ele está, é difícil se aceitar homossexual e revelar-se a esta mesma sociedade cristianizada que considera natural, somente, relações heteronormativas em detrimento de qualquer outra que não esteja engajada nos
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padrões monoteístas oriundos do judaísmo e posterior cristianismo3. Entretanto, na Grécia e Roma Antiga, berço da civilização ocidental, as práticas e relacionamentos homoeróticos eram encarados como importante para a formação pedagógica e militar de um jovem grego4, e, o fato de pô-la em prática, não fazia um garoto menos homem do que qualquer outro. “Parece claro que as uniões entre homens mais velhos e rapazes eram comuns, toleradas e, em muitos casos, exaltadas como supremacia de ‘amor’, quer em Atenas quer em Roma.” (GARDON, 2009, p.61). Não importava, vale ressaltar, aos gregos e, posteriormente, aos romanos o gênero do parceiro, mas o que se fazia com ele: em ambas, o homem adulto devia usar o falo adequadamente, ou seja, conforme o poder e a função que lhe foi dada, ele devia penetrar e não ser penetrado pelo outro, isso equivale dizer nos nossos dias que, o que se esperava de um homem adulto era que ele fosse sempre o ativo na relação sexual. Neste sentido ser passivo não tinha tanta importância, caso o sujeito fosse um adolescente, escravo ou prostituto, a desonra estava no fato de permanecer na passividade mesmo depois de adulto.
3. A história está ambientada nos Estados Unidos, não queremos dizer que os norte-americanos são preconceituosos ou completamente preconceituosos no que se refere às questões da sexualidade, apenas afirmamos que, tal qual o Brasil, a crença religiosa se afigura como reguladora de padrões sexuais e, portanto, da ideia do que é normal e natural. 4. Logicamente nos referimos à pederastia: esta prática pretendia, através dos ensinamentos de um homem mais velho, despertar o adolescente para a filosofia, atletismo e militarismo. A relação sexual entre o discípulo e seu mestre era socialmente aceitável, na medida em que servia para torná-lo hábil e competente para se tornar um homem. 152
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O requisito fundamental da conduta sexual era que o cidadão macho fosse o parceiro activo em qualquer encontro sexual. [...] Ser penetrado significava submeter-se simbolicamente à autoridade do outro, algo que marcou todo o tecido da cidadania e da dominação do mundo antigo. [...] (GARDON, 2009, p. 63).
O que foi assimilado pelos romanos, evidentemente, era exatamente isso: eles eram penetradores, que subjugavam as nações a sua volta, de modo que era vergonhoso que um cidadão romano se submetesse a outro homem de uma maneira menos dominadora. Mas, tanto na Grécia quanto em Roma, a prática sexual em si não era motivo de extremas condenações, somente o monoteísmo judaico condenou com a morte tanto o ativo quanto o passivo: “O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação, deverão morrer, e seu sangue cairá sobre eles.” (Levítico 20:13). Conforme William Naphy nos aponta é interessante notar que, diante das práticas do Oriente, o judaísmo foi à única religião que se preocupava com a conduta sexual dos seus integrantes, isso porque “O Deus de Israel não tinha qualquer relação sexual. No entanto, deixou uma ordem explicita na Bíblia para procriar [...] Não há qualquer noção do sexo como prazer; o que interessa é a procriação” (2006, p.38). Vale compreender que, em comparação as demais nações que viam o sexo como parte essencial de seus cultos e cerimonias místicas, o judaísmo só entendia a relação sexual com fins procriativos, o Deus de Israel não admitia que houvesse qualquer relação da ordem sexual que fugisse a regra, para Ele, tão natural e com um objetivo especifico: a união do pênis e da vagina produziria um filho. O cristianismo, oriundo dele, abrangeu as noções
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de pureza para questões mais simbólicas e não somente de práticas.5 Além disso, sendo herdeiro do monoteísmo mosaico, o cristianismo disseminou e proliferou a ideia de uma relação natural e, portanto, agradável a Deus: a heteronormativa.
“Nem todos os caras são canalhas como meu pai” A família de Will é composta, unicamente, por ele e sua mãe, não há a presença do pai, tão necessária no modelo patrirárquico quanto no da burguesia. Na realidade, essa figura é conhecida, mas, não se faz presente, a única coisa que nos é revelado é que, na ótica de Will, esse pai quis se distanciar tanto da mãe quanto do filho, de modo que, para ambos, viver com a lacuna deixada é difícil. Will evita, por quaisquer razões, falar sobre seu pai, certamente porque não teria nada de bom para falar dele: a figura do pai lhe é inteiramente estranha ou, pior, desprovida de qualquer inspiração de respeito: “eu poderia lembrar a ela que nem todos os caras são canalhas como meu pai, mas ela contraditoriamente odeia quando falo mal dele.” (Ibid, 2015, p.82) [grifo nosso]. Roudinesco, discorrendo sobre a perda do poder patriarcal na sociedade ocidental esclarece que, contrariamente aos novos paradigmas sociais, era inconcebível pensar uma família sem a presença paterna: “heroico ou guerreiro, o pai dos tempos arcaicos é a encarnação familiar de Deus, verdadeiro rei taumaturgo, senhor das famílias”. (2003, p.13)
5. Por exemplo, no judaísmo o adultério era condenado com a morte, Jesus, no entanto, condenava não só a prática como o desejar. 154
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O pai era, como afirma a doutora, a verdadeira encarnação de Deus, no sentido de, como “herdeiro do monoteísmo, reina sobre o corpo das famílias”. A mãe nada mais era do que um receptáculo do sêmen deste homem, Roudinesco revela, de modo que, para que a família se constituísse era indispensável, antes de tudo, um casamento legitimado e sacramentado e a fidelidade incondicional da esposa, sem qual o homem não poderia reconhecer como seu o filho que procedesse da união. Por outro lado, a fidelidade do homem para com a esposa não era importante: ele poderia ter quantas amantes quisesse e emprenhar tantas outras, se não estavam dentro da esfera sacramentada, seus filhos eram nada mais do que bastardos e, portanto, nem mesmo família. Vale ressaltar que, neste contexto, a união não era determinada pela compatibilidade dos interessados, mas sim pelo interesse de famílias outras que desejavam enriquecer a custa dos filhos. Em outras palavras, casamento era algo muito importante para se atrelar com o amor e, com isso, neste contexto, Por conseguinte, o pai é aquele que toma posse do filho, primeiro porque seu sêmen marca o corpo deste, depois porque lhe dá seu nome. Transmite portanto ao filho um duplo patrimônio: o do sangue, que imprime uma semelhança, e o do nome [...] que confere uma identidade, na ausência de qualquer prova biológica e de qualquer conhecimento do papel respectivo dos ovários e dos espermatozóides no processo da concepção. (ROUDINESCO, 2003, p.14)
As mudanças sociais, no entanto, contribuíam para a perda do poder deste modelo familiar, como bem frisamos no inicio deste trabalho: uma nova sociedade, diferente daquela medieval, crescia, era movida pelo capitalismo, almejando sempre, segundo Ceccarelli, o desenvolvimento econômico. para tal, era importante distinguir quais as atribuições do sexo feminino e do masculino que pudessem perpetuar um ciclo de evolução bastante lucra155
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tivo: ao homem competia a força do trabalho, a mulher, cuidar dos filhos, daí procede a ideia de que a família é célula da sociedade, no sentido que, somente por meio dela, o ciclo continua. Roudinesco nos diz que, longe de parecer que este patriarcado continua a perder força, ele se constitui “o patriarca do empreendimento industrial”. Se for bem verdade que a figura do pai conseguiu se fortalecer neste momento, por outro lado, [...] ao se outorgar à mãe e à maternidade um lugar considerável, proporciona-se meios de controlar aquilo que, no imaginário da sociedade, corre o risco de desembocar em uma perigosa irrupção do feminino, isto é, na força de uma sexualidade julgada tanto mais selvagem ou devastadora na medida em que não estaria mais colada à função materna. (Ibid, 2003, p. 21).
É importante enfatizar que, não só na esfera econômica, o novo modelo de família, chamado de nuclear ou elementar (à sociedade, acrescentemos), se estabeleciam também, uniões a partir do amor e consenso de ambas as partes, onde a mãe tinha cada vez mais poder, em detrimento, como dissemos, do pai que decaia a olhos vistos. O espaço não permite, no entanto, que detalhemos outras mudanças ocorridas e seus desdobramentos, contentemo-nos a, passando por estes detalhes, explicar que os laços com os quais a família celular se fez, logo, com o passar de alguns anos, se mostraram frágeis, pois, um dos elementos de maior importância, o casamento, foi perdendo a força, antes tão necessária, haja vista que o amor romântico acabava-se e o divórcio foi, como consequência, permitido. A esse respeito, vale citar, novamente, Roudinesco: Considerado um sacramento pelo direito canônico, depois como necessário à legitimação dos cônjuges e de seus filhos no direito laico, o casamento perdeu efetivamente sua força simbólica à medida que
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aumentava o número dos divórcios. Como podia ele continuar a encarnar o poder do vínculo familiar se este já não era mais indissolúvel? (2003, p.71)
De fato, a partir deste novo paradigma, as famílias passaram por uma recomposição em todos os aspectos, antes impensados, a começar (e é isso que nos interessa) do reconhecimento legal dos filhos, ditos bastardos, pelo pai ou, na ausência deste, somente pela mulher solteira, cuja vida social não mais era vista com maus olhos: o pai só comparecia se a mãe achasse que era importante ou indispensável e não era somente o discurso do homem que legitimava seu rebento, a mulher podia fazê-lo e o Estado obrigava. Além do mais, os filhos podiam ser evitados, caso não fossem desejados, apesar disso já ser uma prerrogativa da família elementar. Entendemos, então, a família de Will Grayson, apesar do personagem bem como a mãe, não se pronunciarem de maneira mais significativa acerca da figura paterna: é possível deduzirmos que este homem se aproximou desta mulher, iludiu-a, engravidou-a, recusou-se a apoiá-la e, talvez, sugestionou que abortasse a criança6. Certamente ela não o fez e, também, conseguiu obrigá-lo a reconhecer juridicamente (ou não) o bebê, o qual desprezou e desapareceu sem deixar vestígios. tiny: cadê seu pai? estou totalmente despreparado para a pergunta. fico tenso. eu: eu não sei. o toque de tiny tenta me tranquilizar [...] mas não consigo lidar com isso. (Ibid, 2015, p.243)
6. Não nos esqueçamos de que a decisão de abortar a criança só pode ser tomada pela mãe, mesmo que o genitor não o deseje e que no Brasil, mesmo com o Estado criminalizando a prática, há meios outros para executá-lo. 157
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Na cena em análise, Tiny, oriundo de uma família rica com figuras parentais presentes, sente a ausência de uma figura paterna na casa de Will que, neste momento, é o seu atual namorado. Como visita na residência, ele agrada a mãe do rapaz, mas, curioso, percebe a falta de uma figura de forte, certamente que o garoto percebe a fragilidade da mãe de Will, entretanto, não conseguiu ver, até o momento, as marcas profundas que o abandono do pai causou, porque, para começar, ele nem mesmo sabia que era traumático para o namorado falar sobre isso. De fato, Will não consegue reelaborar este acontecimento, apesar de, no que diz respeito a sua vida social de um modo geral, conseguir, superficialmente, construir alguma relação afetiva com aqueles que estão a sua volta, o adolescente se percebe problemático e culpa o pai por não conseguir lidar de outra maneira com seus conflitos: ela [minha mãe]provavelmente só está preocupada com o dia em que vou acordar e perceber que metade dos meus genes são tão orientados em ser um filho da puta que vou desejar ser um filho da puta. bem, mãe, adivinhe só? esse dia aconteceu há muito tempo e eu gostaria de dizer que é aí que entram os comprimidos, embora eles lidem apenas com os efeitos colaterais. (Ibid, 2015, p.82).
Apesar de desfragmentada atualmente, a família nuclear é um modelo que está incutida no imaginário do sujeito, pois, segundo Freire (2014), nela encontra-se segurança, cumplicidade e laços afetivos, que a cultura obriga as funções parentais a ter. De acordo com que expusemos, o modelo elementar de família é recente e tem como propósito, se não desfazer, ao menos, enfraquecer o antigo regime patriarcal de outrora, ao mesmo tempo em que alterava a percepção acerca dos seus integrantes, e, neste sentido,
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Revestido de um novo poder genealógico, o filho passou a ser visto, no seio da família burguesa, como um investimento na transmissão do patrimônio e como um ser desejado, e não mais um “acidente de percurso” (ROUDINESCO, 2003, p. 48). [grifo nosso].
Mas, o rapaz sabe que, de fato, isso não ocorreu, ou seja, que não foi desejado, ou, em outras palavras, planejado, de modo que, no campo consciente, o ódio edípico7 que, em tese, devia estar recalcado, submerge, porém, reconhecer este ódio ou verbalizá-lo, de acordo com a cultura, representada por sua mãe, é tido como uma transgressão: “Honra teu pai e tua mãe”, diz o texto bíblico 8 na Epistola de Paulo aos Efésios, “este é o primeiro mandamento com promessa”. Não à toa, a psicanálise, durante a primeira metade do século XX, foi vista como uma ciência pansexualista, por teorizar acerca da sexualidade inerente no seio destas famílias. Michel Foucault (1999, p.106), considerando esta desconfiança acerca da psicanálise, concorda que, Era natural que suscitasse desconfiança e hostilidade no início, pois levando ao limite a lição de Charcot, tratava de percorrer a sexualidade dos indivíduos fora do controle familiar; punha a claro essa sexualidade sem recobri-la com o modelo neurológico; melhor ainda, punha em questão as relações familiares na análise. Mas, eis que a psicanálise, que parecia, em suas modalidades técnicas, colocar a confissão da sexua-
7. Freud elaborou o Complexo de Édipo na sociedade vienense da qual fazia parte, marcada, logicamente, pelo modelo de família elementar: os filhos nutrem sentimentos de amor e hostilidade em relação a seus pais. Conforme Antonio Quinet (2006, p.104), no Édipo simples do homem, “o desejo pela mãe se associa a um desejo de eliminar o pai.” 8. Recorremos a este mandamento do Decálogo, porque a cultura ocidental está fundamentada nos princípios do cristianismo que encara como monstruosos filhos que se insurgem contra aqueles que os criaram ou geraram. Numa medida menor, o personagem é vitima deste mandamento: sua mãe, mesmo ciente da conduta do pai, não gosta que seu filho verbalize o ódio que sente por ele. 159
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lidade fora da soberania familiar, reencontrava, no próprio seio dessa sexualidade, como principio de sua formação e chave de sua inteligibilidade, a lei da aliança, os jogos mesclados dos esponsais e do parentesco, o incesto.
Conseguimos compreender, portanto, pelo menos em parte, a razão pela qual o rapaz se utiliza de remédios para combater a depressão que se instalou em seu psiquismo, mas é não somente hostilidade que existe nesta relação, na realidade, conforme Quinet (2006, p.104), “Freud confessou que as coisas não são tão simples assim, pois não correspondem ao que se verifica na clinica.”
“Olhe, mãe, eu sou totalmente gay” Chegamos a um ponto de nossa pesquisa que se faz necessário entender a homossexualidade do personagem em análise. Antes de tudo, devemos elucidar que não existe um só tipo de homossexualidade, logo, também não há uma só explicação para elas. Não queremos, com esta investigação, supor, como muitos psicanalistas fizeram, que a homossexualidade seria, de algum modo, uma doença psíquica ou uma fixação no desenvolvimento da sexualidade que configuraria numa perversão, pelo contrário, com Freud, reconhecemos que, A homossexualidade não é, certamente, nenhuma vantagem, mas não é nada de que se tenha de envergonhar; nenhum vício, nenhuma degradação, não pode ser classificada como doença; nós a consideramos como uma variação da função sexual (JONES, 1979, p. 739).
E ainda, no que se refere a nossa pesquisa, com qual estamos utilizando a psicanálise, vale trazer a memória as palavras do mestre vienense que, 160
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Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições pulsionais (FREUD, 1976, p. 211). [grifo nosso].
Esclarecidas nossas intenções, retomemos nossa investigação com as bases freudianas. Como verificamos anteriormente, Will apaixonou-se pelo suposto Isaac, este, mesmo se revelando uma mentira de Maura, agia de maneira maternal para com Will. Isaac correspondia ao ideal do garoto sobre o mundo e a maneira de dividir esta concepção, logo, a identificação era uma consequência esperada nesta situação, de tal maneira que o rapaz se sentiu seguro para, com este outro, compartilhar momentos importantes de seu dia-dia, o que Isaac retribuía, fazendo a mesma coisa. Era, na visão de Will, confortável possuir alguém como Isaac, cujo modo de ser, em tudo se assemelhava ao seu. Vale ressaltar que houve neste relacionamento virtual uma idealização que permitiu ao personagem apaixonar-se; em termos psicanalíticos, diríamos que o que ocorreu em Will foi um processo de identificação. O encontro pessoal entre ambos, por sua vez, confirmaria, na perspectiva do protagonista, todas as expectativas ou, pelo menos, a parte mais importante. Sabemos qual foi o resultado deste encontro, de modo que, agora, o que nos chama a atenção é o motivo pelo qual Isaac foi escolhido como objeto de amor, é neste momento que buscaremos na psicanálise de base freudiana as prováveis respostas a esta inquirição. Freud, a partir de 1920, propõe uma significativa mudança no aparelho psíquico que havia elaborado anteriormente: no primeiro, ele era dividido em três partes: consciência, entendida como o estado de percepção dos fatos ao redor do sujeito; pré-consciente, cujo conteúdo não está presente ao mesmo
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tempo, e se faz necessário à intervenção de representações verbais para que venha ao campo consciente e, por fim, o inconsciente, cujo conteúdo o sujeito não tem acesso, uma vez que está recalcado. Neste sentido, Freud explica, portanto, a ação do consciente e pré-consciente (O Ego e o Id, 1923, p.11-12): “Estar consciente” é, em primeiro lugar, uma expressão puramente descritiva, que invoca a percepção imediata e segura. A experiência nos mostra, em seguida, que um elemento psíquico — por exemplo, uma ideia — normalmente não é consciente de forma duradoura. É típico, isto sim, que o estado de consciência passe com rapidez; uma ideia agora consciente não o é mais no instante seguinte, mas pode voltar a sê-lo em determinadas condições fáceis de se produzirem. [...].
O mestre vienense menciona que, no trabalho analítico, há sempre uma força que tenta impedir que outras ideias venham à tona, ou seja, de serem representadas pela linguagem e, deste modo, tornem-se conscientes, a isso ele denominou repressão 9, de maneira que “o reprimido é, para nós, o protótipo do que é inconsciente.”. Com isso, Freud percebeu a existência de dois tipos de inconscientes: o que poderia ser lembrado e outro que, recalcado, não poderia. De posse destas conjecturas, o doutor, formula a ideia: [...] de uma organização coerente dos processos psíquicos na pessoa, e a denominamos o Eu da pessoa. A este Eu liga-se a consciência, ele domina os acessos à motilidade, ou seja: a descarga das excitações no mundo externo; é a instância psíquica que exerce o controle sobre todos os seus processos parciais, que à noite dorme e ainda então pratica a
9. Na realidade, dependendo da tradução de O Ego e o Id, o termo é substituído por recalque, por motivos didáticos, a partir de agora substituiremos um pelo outro, ou seja, quando estivermos efetuando a análise mencionaremos recalque. 162
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censura nos sonhos. Desse Eu partem igualmente as repressões através das quais certas tendências psíquicas devem ser excluídas não só da consciência, mas também dos outros modos de vigência e atividade. (Ibid, 1923, p.14)
Em outras palavras é este Eu10 que exerce o recalque, a fim de defender-se das consequências inerente à consciência de determinadas lembranças, logo, o próprio eu é, também, o maior sintoma da ação do inconsciente: pois grande parte de sua constituição o é. Indo adiante em suas considerações, a partir de comportamentos típicos da clinica, Freud revela: na medida em que, durante o tratamento, vai-se descobrindo as razões para determinados comportamentos, há uma maior resistência por parte do paciente, que nem sequer a sente como tal, e esta provoca o retorno de sintomas antes superados. A esse processo, normalmente alimentado por um sentimento de culpa, Freud denominou Ideal do Eu, ou Superego.11 O aparelho psíquico agora é interpretado por Freud como: Id, sede dos desejos fantasísticos, movido pela pulsão de vida e o principio do prazer; ego, o que é manifesto, movido pelo principio de realidade, responsável por negociar com o id, o que deve ser realizado e, por fim, o superego, regido pela pulsão de morte, de ordem sádica, cuja função é interditar as ações do id.12
10. Novamente nos vemos presos a questões de traduções, a Companhia das Letras recomenda que, por intuição, façamos a substituição de termos como eu para ego. 11. Na tradução da qual dispomos, o ideal do eu é denominado Supereu, por considerarmos que nossos leitores estão mais habituados ao termo Superego, o empregaremos. 12. A dinâmica parece simples, mas é bem mais complicada, tentemos elucidar aqui: o superego é o herdeiro do Complexo de Édipo, ou seja, ele introjeta, se identifica e dissexualiza as figuras parentais, neste processo, o erotismo que é da ordem da pulsão de vida, é retirado e o superego, originalmente sádico, interdita as ações do id, pois é da ordem da pulsão de morte. 163
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O Complexo de Édipo se dá, conforme vimos, pela relação triangular dos pais para com o filho, marcada, por parte da prole, pelo amor a mãe 13 e consequente rivalidade para com o pai. Este último, possuidor da mãe, é o empecilho na concretização dos desejos edípicos. No que se refere a Will, ele procede de uma estrutura familiar sem a presença do pai, o que nos levaria a pensar que ele não se identifica com a figura paterna ou que o triangulo edípico não está completo, entretanto, a trama nos revela que, mesmo com a ausência deste pai, o ódio é manifestado, racionalizada como resultante de sua negligencia. Freud, no entanto, percebe de outra forma a importância destas identificações: os efeitos delas serão duradouros e podem explicar a forma como os substitutos serão escolhidos e a maneira como serão lidado pelo sujeito: Isso nos leva de volta à origem do ideal do Eu, pois por trás dele se esconde a primeira e mais significativa identificação do indivíduo, aquela com o pai da pré-história pessoal. Esta não parece ser, à primeira vista, resultado ou consequência de um investimento objetal; é uma identificação direta, imediata, mais antiga do que qualquer investimento objetal. Mas as escolhas de objeto pertencentes ao primeiro período sexual e relativas a pai e mãe parecem resultar normalmente em tal identificação, e assim reforçar a identificação primária (1923, p.28).
Nada mais natural para a criança do que rivalizar com seu pai, pelo amor de sua mãe, entretanto, na medida em que o Ego se desenvolve recalca estes sentimentos eróticos bem como os hostis, o caso de Will não parece ser uma exceção, mas, acrescentemos, Freud não se contentou na simplificação de sua teoria, muito menos, nos daremos por satisfeitos por termos chegados
13. Para os kleinianos a mãe (o seio nutridor) é o primeiro objeto de amor do bebê. 164
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a essa conclusão, o que expomos até o presente momento é denominado o complexo de Édipo simples, ao que devemos acrescentar que as relações edípicas são marcadas pela ambivalência, ou seja, ao mesmo tempo em que se pode amar, também odeia-se as figuras parentais, sendo esta a gênese da bissexualidade.14 Assim, Will ama o seu pai, cujo nome não é mencionado uma única vez. Quinet explica esta inversão ao discorrer sobre uma possível gênese da homossexualidade: Essa ‘inversão’ é relativa ao dito Édipo normal ou positivo: ao invés de rivalizar com o pai, o homem homossexual o ama [...] Essa interpretação, quase canônica, encontra-se efetivamente em Freud, mas não foi sua última palavra em relação ao complexo de Édipo. (2006, p.103)
De fato, Freud não se contentou só na simples formulação destas considerações, pois, segundo ele: Uma investigação mais penetrante mostra, em geral, o complexo de Édipo mais completo, que é duplo, um positivo e um negativo15, dependente da bissexualidade original da criança; isto é, o menino tem não só uma atitude ambivalente para com o pai e uma terna escolha objetal pela mãe, mas ao mesmo tempo comporta-se como uma garota, exibe a terna atitude feminina com o pai e, correspondendo a isso, aquela ciumenta e hostil em relação à mãe. Essa interferência da bissexualidade torna muito difícil compreender as primitivas identificações e esco-
14. Esta é a grande diferença do complexo de Édipo simples para o completo: as relações e sentimentos de ordem erótica pelas figuras parentais são ambivalentes, ou seja, tanto se ama quanto se pode odiar o pai e a mãe, rivalizando com um deles pelo amor do outro, a bissexualidade é, portanto, constitutiva no individuo. 15. Para Freud, o complexo de Édipo positivo é aquele que se desenvolve de forma que o menino, rivalizando com o pai, tem a mãe como seu primeiro objeto de amor, o negativo é o contrário. 165
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lhas objetais, e ainda mais difícil descrevê-las de modo inteligível. (Ibid, 1923, p.30)
Não ignoramos que a mãe assumiu um forte papel, desdobrando-se entre o trabalho e os cuidados com o filho, ou seja, esta mulher foi tanto o pai quanto a mãe, mas não podemos omitir o fato de que Will sentiu falta de uma presença mais forte, apesar de ter se identificado com este pai, odiando-o, desenvolvendo um superego tirânico que o enclausurou num estado de depressão crônica. A partir das identificações que teve, o garoto se encerrou em seu próprio mundo: tornou-se introspectivo, calado e incapaz de estabelecer laços duradouros: Maura não era confiável, Isaac uma mentira, Tiny por demasiadamente extravagante. Um por um foi saindo de sua vida, e certamente, Gideon, colega de escola que se aproximou, não permaneceria por muito tempo. A nenhuma dessas pessoas, Will permitiu que entrassem, de fato, na sua vida, em parte porque não se sentia capaz de corresponder, em outra parte porque sentia medo delas. Talvez, suponhamos, o abandono do pai tenha gerado este medo: se o pai o abandonou o que impediria os outros de fazerem o mesmo? Neste caso, melhor seria largá-los ou criar laços superficiais. Gideon parecia estar conseguindo penetrar o muro de indiferença de Will, pois, como Isaac, este novo amigo se prestava a cuidar dele, auxiliando-o nos problemas que teria de enfrentar: a essa altura gideon sabe tudo o que aconteceu. não só comigo e com tiny, mas comigo e maura, e comigo e minha mãe, e basicamente comigo e o mundo inteiro [...]. gideon: tudo faz sentido eu: faz? gideon: completamente. eu teria feito as mesmas coisas que você fez. eu: mentiroso.
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gideon: não é mentira então, totalmente do nada, ele estende o dedo mindinho. gideon: juro, sem mentiras (GREEN; LEVITHAN, 2015,p.332)
Diante destas escolhas, percebemos que a busca de Will era por alguém que fosse forte como pai, mas que tivesse os cuidados da mãe, no fim das contas ele buscava, nestes substitutos a fundição destas figuras, a fim de que pudesse concretizar, no campo real, as exigências do id.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Discorremos acerca da homossexualidade retratada no romance Will & Will, entender os discursos que permeiam em nossa sociedade sobre o tema, logo, percebemos que, por questões econômicas, o homossexual era considerado um transgressor, na medida em que não podia dar continuidade ao ciclo elementar da família nuclear. Em um primeiro momento, munidos de dados históricos do berço da civilização ocidental, compreendemos que as práticas homoeróticas, estavam ligadas a eduação pedagógica dos jovens cidadãos gregos bem como, ao romano, que assimilou a cultura grega, a única exigência que se podia esperar era a utilização do falo adequadamente, ou seja, o homem devia, em qualquer relação, penetrar e não ser penetrado. A passividade, portanto, era encarada como uma maneira de se submeter simbolicamente a outrem. com o advento do cristianismo, no entanto, herdeiro do monoteísmo judaico, as noções de pureza e sexualidade foram restringidas ao casamento e ao relacionamento heteronormativo que visava a procriação. Neste sentido, a ciência corroborou com o pensamento religioso, quando patologizou toda e qualquer relação que não estivesse dentro dos padroes estabelecidos. No segundo momento abordamos o declínio deste modelo nuclear de família: 167
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antes formado por figuras bem distintas, agora pode ser construído, mesmo com a ausência de uma destas figuras. Neste ponto, compreendemos o personagem em foco no que diz respeito a sua depressão e declarado ódio ao pai que não é mencionado. No terceiro momento, com as teorizações de base freudiana, procuramos analisar o protagonista bem como suas relações com as demais pessoas de seu meio social. Percebemos o predomínio de uma transferência a (quase) todos os que se envolveram com ele afetivamente e verificamos a evolução de um superego tirânico que o impedia de construir laços afetivos fortes e duradouros. Por fim, consideramos que isso se dá pela identificação com estas figuras parentais, cuja fundição o garoto buscava em Isaac e os posteriores, resultado da complexidade do complexo de Édipo freudiano.
REFERÊNCIAS CECCARELLI, P. Roberto. O que as homossexualidades têm a dizer à psicanálise (e aos psicanalistas). 2012. Disponível em: <http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=1500> Acesso em: 12.09.2015. CECCARELLI, P. Roberto. Psicanálise, sexo e gênero: algumas reflexões. 2010. Disponível em: <http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=1483>. Acesso em: 12.09.2015. CECCARELLI, P. Roberto; FRANCO, Samuel. Homossexualidades: verdades e mitos. 2010. Disponível em: <http://ceccarelli.psc.br/pt/?page_id=142> Acesso em: 12.09.2015. Democratizar o amor e a amizade II. Jurandir Freire Costa. Local: Café filosófico, 2014. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=vRuXtIgnGFc> Acesso em: 20.11.2015. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1999. FREUD, Sigmund. O ego e o id. In: Obras completas. Volume 16. São Paulo: Cia das Letras, 2010. GARDON, Stephen. História da sexualidade: da Antiguidade à revolução sexual. Lisboa: Editorial Estampa, 2009.
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GREEN, John; LEVITHAN, David. Will & Will: um nome, um destino. Rio de Janeiro: Galera, 2015. NAPHY, William. Born to gay: história da homossexualidade. Lisboa: Edições 7O, 2006. QUINET, Antonio. Homossexualidades em Freud. In: QUINET, Antonio; JORGE, Marco Antônio Coutinho (orgs.). As homossexualidades na psicanálise: na história de sua despatologização. São Paulo: Segmento Farma Editores. 2013. ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
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Resumo O presente trabalho tem por corpus a obra O Sétimo Juramento, da autoria de Paulina Chiziane. Este romance focaliza problemas e acontecimentos sociais e históricos de Moçambique, portanto apresenta uma visão factual e literária de uma sociedade rica em problemas sociais. Assim as descrições na narrativa de O Sétimo Juramento resultam da observação do real tendo em vista que a personagem feminina vive o conflito entre a tradição e a modernidade, entre a submissão e o autoincentivo numa sociedade pós-colonial que se encontra no caos da guerra civil. Assim, o caráter e a personalidade das personagens femininas ganham complexidade, corroborando para adquirirem características próprias do ser humano de gênero feminino principalmente no que se refere à crença nos mitos. Desse modo, o presente trabalho tem por objetivo a análise das questões de gênero, identidade e mitos, no romance O Sétimo Juramento cuja temática gira em torno de personagens que buscam a construção de suas identidade, através de suas relações com os mitos. Foram tomadas como norte as teorias de Zinani (2013) e Butler (2003), no que diz respeito a analise de Gênero. A respeito de identidade e mito, Eliade (1972; 2010), Leite (2012), Hall (2011). Cresce-se que este trabalho traz os resultados finais do subprojeto de Iniciação Científica do PFA subordinado ao projeto principal intitulado A ficção feminina produzida por escritoras de língua portuguesa - gênero, sociedade e letramento literário que faz parte CELLUPE – Grupo de pesquisa certificado pelo CNPq. Palavras-chaves: Literatura; Moçambique; Gênero; Identidade; Mito.
GÊNERO, IDENTIDADE E A EXPRESSÃO DO SABER FEMININO NO REGRESSO AOS MITOS NA OBRA MOÇAMBICANA O SÉTIMO JURAMENTO Camilla Rodrigues Protetor Amara Cristina de B. e S. Botelho
INTRODUÇÃO O trabalho objetivou desenvolver uma proposta em que gênero, identidade, sociedade e mito foram essências para a concretização dos resultados da análise. Em O sétimo juramento da autoria de Paulina Chiziane. Os resultados foram alcançados, principalmente, a partir do aporte teórico de Zinani (2013) e Butler (2003), Eliade (1972; 2010), Leite (2012) e Hall (2011). Ao se tratar de uma obra escrita por e sobre mulher, a teoria de gênero é indispensável, numa sociedade tomada pelo caos da guerra e da pós-colonização, e da forte ligação entre as personagens com os mitos, sendo este ultimo, muitas vezes, tomado como busca da identidade, mesmo quando o mundo moderno exerce forte marca na cultura que integram o imaginário local. Desta forma, cabe dizer que em uma literatura emergente como a moçambicana, a identidade da sociedade é também tomada como aspecto de análise dentro da obra, visto que os escritores se valem de uma língua privilegiada para tratar das mazelas e do silêncio histórico e sócio-cultural que é imposto ao povo africano. A importância da oralidade destaca-se na leitura da obra, que está inserida num país onde as lembranças são resgatadas através da oralidade, na qual estão presentes cultura, história, religião e costumes de um povo multicutural, multilinguístico e multiétnico. 171
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Cabe também ressaltar, que para este trabalho foram coletadas teorias que comprovam, dentro da própria obra, que há um forte traço de oralidade e de poeticidade na escrita de Paulina Chiziane, como ela mesma diz, considera-se uma contadora de histórias. Assim, baseado num rico aporte teórico o presente trabalho busca discutir os pontos acima citados.
DISCUTINDO ASPECTOS TEÓRICOS A literatura moçambicana tem um caráter emergente e desde o século passado vem ganhando grande apreso e visibilidade dentro do quadro literário. Esta por vez, trata-se de uma literatura de cunho social que denuncia os problemas sociais e o poder do patriarcado imposto às mulheres. A oralidade como marca dessa literatura biográfica é recorrente como forma de atenuar as críticas presentes no romance, principalmente aquelas que dizem respeito à mulher. Para Leite (2012), A literatura tem a sua raiz na oralidade. Mesmo após o desenvolvimento da literatura escrita, a oralidade continuou a exercer influência e a ser um elemento determinante. [...] A insistência nos intertextos culturais, orais, indígenas, das literaturas africanas faz parte de um projeto de definição do estatuto nacional das literaturas emergentes, especialmente após a descolonização. (LEITE, 2012, p.163-164).
Alguns teóricos chegam a problematizar que a literatura africana é uma copia das literaturas européias, pois dizem que a oralidade é africana, mas a escrita é européia. É desta forma, que eles se utilizam do recurso oral para reafirmar e firmar a literatura como própria, a fim de enaltecer a existência de uma identidade literária. A partir desta marca da oralidade, é possível
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rememorar à figuras antigas que contam histórias, ou seja, os griots. Diz Leite (2012, p. 18) a respeito, “Essa ideia de herança oral, radicada nos mestres africanos, os griots, vai levar a criar uma noção de continuidade entre a tradição oral e a literatura africana.”. A partir dessas figuras, Chiziane traz para a obra uma leveza e suavidade nos traços linguísticos próximos da prática oral. Duarte (2012), assim como Leite (2012), considera que a oralidade seja um pilar para as produções africanas, pois revalida a presença do tradicionalismo nacional. Ela ainda diz que, “[...] em sociedades alicerçadas em culturas orais, como as africanas, que fizeram da tradição oral patrimônio histórico, literário e filosófico, que sem rejeitar a escrita defendem a preservação da oralidade como sistema vivo [...]”, Duarte (2012, p.28). Apreende-se de tal maneira, que a oralidade constitui-se como modo de resgatar e manter os traços da cultura existente antes da chegada do colonizador. Desta forma, ambas relembram a importância da oralidade e consequentemente da figura dos griots. Já Goody (2012) centra os conceitos num mundo modernista, que tem influência na tradição oral, mas que não vivi apenas. Na sua interpretação social, a oralidade serve como forma de contar histórias e fábulas que na maioria das vezes só são aceitas por crianças. Os adultos, por sua vez, distinguem como ele mesmo fala, a língua verdadeira da língua falsa. Ele também rememora a figura dos griots, impondo-lhe um outro sentido, quando os coloca como “griôs-intelectuais”, chamados assim por lerem o Corão e apresentarem influências islâmicas. Goody também os aproxima dos menestréis trovadorescos, que usam cantorias e batuques. As concepções de Rosário (2010) aproximam-se das definições propostas por Goody, quando ele diz que a prática da tradição oral em perdendo espaço entre os mais jovens, porém uma boa parte da sociedade recorre as
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prática orais como fator religioso, a fim de ligar-se as tradições e costumes. Para ele, “A tradição oral é um sistema social, econômico [sic] e cultural, não é apenas um conjunto de contos, lendas e mitos.” (ROSÁRIO, 2010, p. 142). Baseado nas concepções identitárias de retorno aos mitos, de firmação de uma literatura emergente, de figuras como os griots, Hall (2011) traz em uma das suas concepções de identidade, uma formulação posterior a uma independência colonial, que tem por base os aspectos míticos de uma sociedade em formação. Sedo assim, identidade pode ser vista como Uma história que localiza a origem da nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão distante que eles se perdem nas brumas do tempo, não do tempo “real”, mas de um tempo “mítico”. Tradições inventadas tornam as confusões e os desastres da história inteligíveis, transformado a desordem em “comunidade” [...] e desastres em triunfo [...]. Mitos de origem também ajudam povos desprivilegiados [...]. Eles fornecem uma narrativa através da qual uma história alternativa ou uma contranarrativa, que precede às rupturas da colonização [...]. Novas nações são, então, fundadas sobre esses mitos. (Digo “mitos” porque, como foi o caso com muitas nações africanas que emergiram depois da descolonização, o que precedeu à colonização não foi “uma única nação, um único povo”, mas muitas culturas e sociedades tribais diferentes). (HALL, 2011, p. 55-56).
Entende-se então, que Hall (2011) e Eliade (1972; 2010) referem-se ao tempo primordial como se fosse algo aquém da sociedade, determinado por um endeusamento e consagração de algo que não existe mais, daí a forte ligação dos povos arcaicos com os mitos. A partir destas concepções, acaba-se por aludir às questões de identidade propostas por Appiah (1997, p. 244), o qual questiona um pressuposto colocado no inicio deste trabalho, que diz respeito a uma construção de uma
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identidade coletiva, onde ele aponta que, “O problema, é claro, é que a identidade grupal só parece funcionar – ou, pelo menos, funciona melhor – quando é vista por seus membros como natural, como “real”.” Assim, constata-se que a identidade coletiva é substancial para a sociedade moçambicana. Verifica-se assim que ao utilizar-se da língua privilegiada, de um colonizador europeu que mudou toda uma organização cultural e religiosa, os escritores desta literatura – que no século passado fora chamada de emergente, mas que hoje vem ganhando espaço não só na literatura, mas pela sua abrangência teórica – partem em busca de uma identidade presa ao tradicionalismo mítico preservado na memória de uma população colonizada. No que diz respeito à identidade africana, Rosário (2010) faz uma ressalva ao termo moçambicanidade, que liga a sociedade moderna às raízes locais. Raízes estas que, por vezes, se integram aos conceitos de mito e ritos associados a preceitos arcaicos. A ligação com os mitos, nos romances de Chiziane é recorrente, ganha um caráter profano, por associar-se ao moderno e ao tradicional através de rituais regados de consagrações orgiáticas. O mito no romance faz-se presente, e por vezes, a sua recorrência ganha um caráter profano. Eliade Mircea, em seu livro O Sagrado e o Profano, diz que, O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar o começo do tempo, ab initio. [...] O mito e pois a história do que se passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do tempo. (ELIADE, 2010, p. 84)
E acrescenta que “É evidente que se trata de realidades sagradas, pois o sagrado é o real por excelência. Tudo o que pertence à esfera do profano
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não participa do Ser, visto que o profano não foi fundado ontologicamente pelo mito, não tem modelo exemplar.” Eliade (2010, p. 85) A ligação mítica na obra corpus é de suma importância assim como o foi para as sociedades antepassadas, arcaicas. Eles – os mitos – acentuam uma identidade sócio-cultural e histórica da religião Moçambicana, a qual é enfatizada por Chiziane em seus romances quando apresenta o imaginário de seus personagens em relação às entidades locais. Em O sétimo juramento, a autora traz passagens que profanam o sagrado, quando apresenta a realidade crua de alguns rituais. Dentre eles destaca-se o rito de iniciação ou passagem de David, onde ele deve manter relação com uma mulher e um espírito. Paulina faz questão de ressaltar também que: A transformação do religioso no profano é um processo universal. O Natal dos cristãos é uma festa comercial de pai natal, prendas e festas de loucura, onde as pessoas dão largas à devassidão, bebem, roubam, matam, mergulhando a sociedade inteira numa barbárie absoluta [...]. (CHIZIANE, 2008, p. 91)
Para Eliade,o sagrado e o profano se diferenciam pois, Tudo quanto os deuses antepassados fizeram – portanto tudo o que os mitos contam a respeito de sua atividade criadora – pertence à esfera do sagrado e, por consequência, participa do Ser. Em contrapartida, o que fazem sem modelo mítico, pertence à esfera do profano: é pois uma atividade vã e ilusória, enfim, irreal. (Eliade, 2010, p. 85)
A narrativa ora analisada trata das práticas de feitiçaria que, segundo Leite (2012), foram proibidas nos primeiros anos do pós-colonialismo colocando a sociedade numa dualidade religiosa entre a espiritualidade mítica e a cristandade. Assim, ela diz que O sétimo juramento tem seu curso guiado 176
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por um mundo mágico-espiritual, que está diretamente ligado a uma família burguesa urbanizada em que o confronto entre mítico e realidade está assimilado ao cotidiano. Lourenço do Rosário (2010) traz questionamentos que corroboram para uma firmação mítica para a sociedade moçambicana, para ele parte da população, seja burguesa ou não, de alguma forma tem uma ligação com a feitiçaria. Para isso, Chiziane utiliza-se da narrativa feminina oral quando expõe não só estes questionamentos religiosos, mas a crítica social ao fato da personagem principal – Vera – regressar a uma espécie de tempo mítico sagrado para reaver os valores comportamentais, éticos e espirituais da sua família. Diz Leite (2012), Procura a narradora fazer conhecer o passado, e o presente, que se alimenta desse passado, remodelando-o; como numa pesquisa palimpséstica, analisa as adulterações provocadas pelas diversas assimilações, desde a colonial, à pós-independência. As histórias ilustram tal saber, efabulam a tradição, percorrem uma temporalidade específica, uma vez que se trata da reapropriação de uma voz e um conhecimento seculares, retomada e resposta em atitude griótica de pedagogia crítica. (LEITE, 2012, p.202)
A PROBLEMTICA DE GÊNERO E O SÉTIMO JURAMENTO O romance, O Sétimo Juramento, é duplamente feminino, não só pela autoria, mas por relatar o cotidiano de uma personagem feminina. Nele Paulina Chiziane levanta a problemática de gênero, ressaltando o silêncio patriarcal e colonizador que colocam as mulheres em condição de submissão, pois a autora busca, ao longo da narrativa uma desconstrução da subversão 177
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de um gênero que ao longo da história social, cultural e política foi rodeada de tabus e preceitos. Muitas vezes a mulher é vista como símbolo de sensualidade e erotismo. Ela é tratada, quase como, um aparato social e rodeada de tabus e preceitos restritos e singulares. Essa questão é discutida por Barbosa(2011) quando traz em sua teoria a problemática da crítica feminista que lutava por igualdade, mas houve um desvio de foco quando subverterem a discussão ao estimulara bipolaridade dos sexos. Posteriormente surgem os questionamentos acerca do gênero que são mais abrangentes, vão além do conceito de sexo, como delimitador e biologicamente constituído, pois o entende como uma construção relacionada ao fator identitário. Judith Butler (2003), em sua obra, Problemas de Gênero, traz a ideia de que precisa-se desconstruir os pressuposto estabelecidos historicamente quando a finalidade é a análise e crítica de gênero. Esta discussão corrobora para que se analise também a questão do feminismo e a dualidade entre gênero e sexo. Porém para Lauretis (1994, p. 206 apud Barbosa, 2011, p.17), “a noção de gênero pode ser tão limitadora quanto às noções elaboradas pelos estudos centrados na identidade, por reforçarem a dicotomia homem/mulher. [...]” Estas discussões proposta por Laurentis (1994) são também questionada por Butler e Beauvoir que sei nterrogam sobre o seguinte: o que define este ou aquele sexo como masculino e feminino, o que seriem comportamentos afeminados ou masculinizados? Simone de Beauvoir (apud Butler 2003 p.27) diz que “não se nasce mulher”, interpretando-a, resumidamente, cabe dizer que tornar-se mulher é algo que resulta de uma imposição social. Essa dualidade entre sexo e gênero, está longe de ser solucionada. Cabe dizer que a crítica feminista achou nos conceitos de gênero o fim da bipolarização sexual e a forma de se identificarem como sujeitos femininos, 178
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negando o suprassumo e a supremacia do sexo. “Em outras palavras, esse sujeito feminino proclama, concomitantemente, dois desejos: ser diferente e ser igual.” Barbosa (2011, p. 22) Assim pode-se dizer que, [...] na categoria gênero se reconhece que há diferença biológica entre os sexos. Porém a categoria opera com esta distinção de uma forma nova. As estudiosas de gênero percorreram a história da biologia, e esta ciência já considerou que a diferença sexual era baseada na conformação dos órgãos sexuais, depois passou a ser baseada na concentração hormonal. Levando em conta esta mudança ao longo do tempo, as estudiosas de gênero afirmam que por meio dos significados culturais é que nós, seres humanos, definimos as qualidades da natureza para definir o sexo. Ou seja, o próprio sexo, mesmo que seja da ordem da biologia, é definido culturalmente. [...] (ALBERNAZ; LONGHI, 2009, p.83)
Cabe também ressaltar, ainda que segundo as mesmas autoras, [...] as diferenças percebidas entre os sexos nos orientam para fazer as classificações sobre o que é ser homem e o que é ser mulher, mas não determinam como serão os conteúdos dessa definição. Ou seja, as qualidades masculinas e femininas são elaboradas baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos, mas não são determinadas biologicamente. Ao longo do tempo dentro de uma sociedade, e, na comparação entre elas, estes conteúdos variam, por isso é possível dizer que as definições de masculino e feminino - ou seja, o gênero - são criações humanas decorrentes da vida em sociedade. [...] (ALBERNAZ; LONGHI, 2009, p.83)
Nesta perspectiva de submissão histórica contrapondo-se a uma emancipação modernista da mulher, pode-se salientar que elas veem construindo em contraponto literario um sistema próprio, no qual a literatura torna-se a
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vereda mais eficaz para se falar sobre a mulher para a mulher, por se constituir uma escrita própria que vem se consagrando e ganhando cada vez mais espaço no mudo pós-moderno. Butler (2003), Zinane (2013) levantam toda uma problemática a respeito de uma construção feminina, literária e social, corroborado para uma mudança no status feminino. A respeito desta dualidade entre sexo e gênero, Butler aponta, Se o gênero ou o sexo são fixos ou livres, é função de um discurso que, como se irá sugerir, busca estabelecer certos limites à analise ou salvaguardar certos dogmas do humanismo como um pressuposto de qualquer analise do gênero.(BUTLER, 2003, p.27).
Como já explicitado anteriormente, Chiziane realiza severas críticas ao poder do patriarcado e a sociedade machista, como se pode verificar na citação que segue: Mulher é fruta boa. Mulher é tranquilidade e frescura. [...] Mulher é mãe, Mulher é terra que Deus colocou à disposição do homem como rampa de lançamento de voo da vida. [...] No mundo do poder patriarcal dizem que o homem é deus. [...] No mundo do poder masculino,a mulher é escrava o homem e o homem escravo da sociedade. A existência da mulher é insulto, insignificância. (CHIZIANE, 2008, 36-37)
SÍNTESE E LEITURA CRÍTICA DE O SÉTIMO JURAMENTO O romance em analise – O sétimo juramento – faz parte de um conjunto de oito obras da autoria de Paulina Chiziane, sendo esta sua quarta publicação. As problemáticas que circundam a obra dão norte ao destino 180
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de uma família burguesa e urbana de uma Moçambique assolada pelo caos pós-colonialista. Cabe destacar a importância das personagens femininas que vivem os acontecimentos, desmistificando a supremacia do sexo patriarcal, corroborando para um desfecho em que a mulher adquire um caráter mutável à medida que se prende ao tradicionalismo religioso moçambicano. A escrita de Chiziane, como diz Leite (2012), é pedagógica, recurso concedido pela marca da oralidade e da poeticidade que servem para expressar as severas denúncias sociais do país. A narrativa trata da história de Vera, que sempre foi submissa aos mandos do marido – David –, este por vezes, matem uma intima relação com a magia negra para livrar-se das dividas da empresa onde é diretor. Para tal, ele necessita passar por rituais, nos quais passa a manter relações com mais três mulheres, das quais duas darão frutos aos pactos de David. Esta é a maneira encontrada por Chiziane para introduzir em seu romance traços poligâmicos, como se pode observar no trecho que segue: – [...] Terás quatro esposas, quatro pilares que te erguerão até o mais alto dos montes. Não irás ao seu encontro, nem elas virão no teu encalço. Envolver-se-ão no cruzamento dos caminhos. – [...] quatro, assim o dizem as conchas do teu destino. Bom número. Quatro membros tem o homem. Quatro patas têm os bichos mais fortes da natureza. Quatro paredes tem um edifício. Quatro rodas tem um carro. Quatro é um número de estabilidade.” (CHIZIANE, 2008, p. 87)
Os números cabalísticos são recorrentes na narrativa, dentre eles, Chiziane escolhe um número sagrado e religioso para dar nome a sua obra. Assim, o número sete é sagrado por excelência, pois David descobre que na vida fez sete juramentos, todos relacionados aos ritos, o batismo, o casamento, os ritos de magia, totalizando como diz a autora, sete juramentos. 181
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Ao longo da narrativa, Avó Inês, conduz Vera a revelar-se e tomar partido da sua importância para a família. Assim sendo, Avó Inês funciona como uma espécie de griot, que liga a modernidade à tradição e uma vereda que liga o sagrado e o profano, pois foi através de seus ensinamentos que Vera buscou a raízes do seu povo para libertar a família. Assim Eliade (1972) diz, Numa fórmula sumária, poderíamos dizer que, ao “viver” os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando num tempo qualitativamente diferente, um tempo “sagrado”, ao mesmo tempo primordial e indefinidamente recuperável. (ELIADE, 1972, p.17)
Observa-se também que os nomes das personagens têm significação mágica, pois através do personagem adivinho, Chiziane (2008, p. 83) diz: “– Nome é herança sagrada. É matéria, espírito, vida e morte. Através dele os mortos se encarnam e os vivos transmigram. Nome é anterioridade e posterioridade. Em resumo, é o universo inteiro em poucas palavras.” A ligação entre o gênero – feminino – e os mitos é forte, pois há referência ao Lobolo em que Chiziane (2008, p.90) mostra a submissão feminina, quando o narrador – que é onisciente – diz: “Lobolo é casamento. E como todos os casamentos do mundo é um contrato de desigualdade e injustiça, em que o homem jura dominar a mulher, e a mulher jura subordinar-se e obedecer até o fim dos seus dias.” Na passagem abaixo, a autora crítica não só a submissão da mulher diante desse ato sagrado, mas expõe uma crítica à sociedade patriarcal e limitadora. Todas as mulheres gostam de lobolo, mesmo as feministas ao extremo. Porque dignifica. Dá estatuto. Prestigia. Porque no dia do lobolo-casamento, a mulher Sai da invisibilidade, do anonimato, e se torna o centro das atenções, rainha uma vez na vida. Porque a sociedade inteira fica a
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saber que conta com mais uma mulher adulta, séria, digna, com mais uma família, um lar. O que as extremistas não entendem, neste caso, é que não é só o lobolo que condiciona a prisão da mulher, mas todo o sistema social. (CHIZIANE, 2008, p.90)
A volta as raízes como forma de redenção dos problemas, acentua-se a cada vez que David interage com os ritos. A obra é regrada de crítica religiosa, porque mesmo sendo moçambicanos e tendo em seu histórico um quinhão das raízes míticas, a família retratada agem como se fossem brancos, ou seja, viveu um processo de assimilação da cultura do colonizador, angariando dele não só os costumes, mais a religião e a língua. Onde a religião católica é mais forte do que a africana, como explicitado abaixo. Assim, Chiziane traz passagens do que se pode chamar do lembrar e esquecer. David e Vera sentem-se pecadores quando regressam as raízes de sua terra e não se reconhecem, aos modos da cultura eurocêntrica. No trecho abaixo, David reflete sobre o que fez, sobre seu retorno aos ritos míticos, pois a voz narrativa tece o seguinte comentário: [...] Colocou os defuntos e outros deuses à altura dos homens para mais depressa socorrerem os problemas do universo. A eles cabe o papel intermediário entre o homem e o deus maior. Na zona dos tsonga os possessos falam em ndau, em zulu e em nguni. Mas porquê estas línguas e não as línguas maternas dos possessos, verdadeira língua dos seus antepassados? David corre a memória para os velhos tempos da escola católica. Nos anos cinqüenta, o padres não pregavam noutra língua que não fosse o latim. Porque era a língua da pureza. Do papa. Língua do céu. Língua de Deus. (CHIZIANE, 2008, p.106)
No inicio da narrativa, Vera também se vê ligada a tradição e a rejeita, dizendo: “[...] Entre a luz e as trevas. Faz uma profissão de fé e declara: creio apenas nos vivos, nos mortos não. Não creio nos falsos adivinhos, suspira, 183
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todos me sugerem que procure a verdade nos mistérios do oculto, mas eu, Vera, jamais entrarei na casa de um curandeiro por nada deste mundo.” Chiziane (2008, p. 26) O caráter moralizador da história se faz presente em todo discurso narrativo, quando Chiziane critica a prostituição infantil, vivida pela personagem Mimi, na qual David tem consciência de seus atos, mas age por impulsos e não recua. Ele lembra o adivinho ter-lhe dito que teria quatro mulheres e que elas seriam importantes para a continuidade do ritual. Do ponto de vista ficcional, incesto é coisa boa, embora na sociedade moderna moçambicana seja crime. Desta forma, pode dizer que o incesto na obra liga-se a uma religiosidade intrínseca, resultante de uma sociedade tradicional, não cristã. David, apresenta, consoante a citação abaixo, uma visão de mundo moderna e cristão, que contradiz com a tradição pois [...] sente a voz da consciência visitando a alma. Prostituição infantil é crime que nem Deus perdoa. Os que apregoam a moral nada fazem para modificar as coisas. Esta criança foi aliciada a vender o sexo em troca de pão, como única alternativa de sobrevivência. (CHIZIANE, 20018, p. 119)
O incesto também é visível , quando David usa sua própria filha como serva e mulher, David abraça a filha e voa com ela por paraísos sem fim. Adormecem, sonham e despertam. Delira. Corpo de Deus, sangue de Deus. Redenção. Corpo de mim, sangue de mim. Solução. Bebi o sangue do meu sangue para dinamizar o curso da vida. Incesto é cura, sacrifício. [...]. (CHIZIANE, 2008, p.182)
O fantástico mimetiza a sociedade exposta por Chiziane, pois o exotérico explica na história a moralidade da família moçambicana. 184
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Cabe também a Vera e a sua ligação com os mitos cosmogônicos, ou seja, aqueles ligados à origem do mundo, dar-lhe um retrato redondo, que pois sua mudança de comportamento encaminha a obra para outro final. Assim, Chiziane torna a realidade ficção e a relação mítica para resgata a cultura Moçambicana. “Neste sentido, os mitos e os ritos arcaicos ligados ao espaço e ao tempo sagrado podem-se reduzir, ao que parece, a outras tantas recordações nostálgicas [...].” (ELIADE, 1997, p. 504.)
CONSIdERAÇÕES FINAIS Singularmente, o trabalho apresentou a rica construção de Paulina Chiziane na escrita de O sétimo juramento, obra esta na qual pôde-se observar aspectos que estão intimamente ligados ao mito, à cultura, às denuncias sociais, ao caráter moralizador e às relações de gênero numa sociedade pós-colonial. Estes temas ligam-se as vivências de uma família negra e burguesa de Moçambique que busca, a partir da magia, o equilíbrio financeiro e a restauração da moral. Ao colocar a mulher em evidência, a autora busca a identidade feminina e a reafirmação do gênero, desmistificando a bipolaridade dos gêneros e a subversão patriarcal a qual sempre fora exposta, além de trazer à tona a quebra do silêncio e a condução da narrativa por uma visão mítica, ética e feminina. O recurso oral no romance denota flexibilidade e poeticidade próprias do caráter de oralidade. A narrativa permitiu comprovar não só os conflitos sócias detendo-se prioritariamente naqueles vividos pela célulamater da sociedade, ou seja, o núcleo familiar, a partir do momento em que mimetiza a realidade da fa-
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mília moçambicana através das personagens que vivem os acontecimentos narrados em O sétimo juramento. Intenciona-se que este trabalho seja continuado em busca de um maior conhecimento da obra da autora moçambicana e que venha a contribuir para atender o que apregoa a lei 10.630/2003, a qual coloca como disciplina obrigatória no ensino básico aspectos históricos e culturais dos países africanos que, sem sombra de dúvida, fazem parte da cultura brasileira, tendo em vista os aspectos étnicos que ligam o povo brasileiro a tradição afra, além de que o Brasil tanto como Moçambique terem sido colonizados pelo mesmo povo de cultura eurocêntrica. Assim, o presente estudo objetivou não só a sondagem dos temas anteriormente comentados, como também, integrar a conclusão do projeto de iniciação cientifica financiado pelo PIBIC-PFA.
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Resumo Este artigo tem o objetivo de dialogar sobre a Lei 10.639, que torna obrigatório o ensino de Artes, Cultura e História Afro-brasileira no currículo escolar, além de observar a sua aplicabilidade em algumas escolas públicas e particulares da Região metropolitana do Recife. Refletimos também sobre os dez anos de vigência da lei e a evolução de lutas contra o racismo, baseando-se no legado jurídico. Por meio deste trabalho, propomos ainda sugestões de leitura e mediações para professores do ensino médio e fundamental. Este trabalho é fruto do trabalho do grupo de pesquisa “Lei 10.639: percorrendo os caminhos da identidade, oralidade e cultura afro”, formado por discentes da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda - FACHO, e iniciado em março de 2014. Palavras-chaves: Lei 10.639/2003; literatura infantil; infantojuvenil; cultura africana; afro-brasileira.
LEI 10.639: CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA NO ESPAÇO ESCOLAR Isabel Cristina Gomes Viveiros Barretos1 Jeandro Cabral Pereira1 Maria Estela Epifânio dos Santos1 Suelany C. Ribeiro Mascena2
INTRODUÇÃO Como se sabe, a educação é um bem social, um direito de todos, resultado de uma interação entre família, escola e sociedade. Essa relação pode ser vista no primeiro artigo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.” (BRASIL, lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.) Em convergência com essa concepção estão os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s) que inserem no currículo escolar, uma educação voltada para a valorização da cultura, incluindo os aspectos sociais e históricos das etnias que compuseram o Brasil. No entanto, muitas dessas percepções,
1. Graduandos em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO) e integrantes do grupo de pesquisa de iniciação científica, cujo projeto tem por título: Lei 10.639: percorrendo os caminhos da identidade, oralidade e cultura afro. 2. Coordenadora do projeto de pesquisa mencionado, Professora da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO) e Doutoranda em Letras, com ênfase em Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 189
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voltadas a um caráter igualitário, fragmentam-se quando são colocadas em prática. Um bom exemplo é o ensino marginalizado da história e da cultura afro. Por isso, os movimentos sociais, sobretudo o movimento negro, encabeçaram lutas que visavam diminuir essas fronteiras e os estereótipos na escola. Ao longo da História, várias leis foram sancionadas a fim de diminuir e/ou amenizar o racismo, como: a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgada em 1948, a Lei Afonso Arinos, nº 1390 de 03 de julho de 1951, que caracterizava a segregação e discriminação racial como uma contravenção penal, inferior ao crime, mas que deveria ser averiguada. A partir dessa norma, os negros e mulatos resgatavam, pouco a pouco, a cidadania amputada no processo escravocrata. A posteriori, a Constituição de 1988 torna inafiançável o crime de racismo: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei” (BRASIL, Constituição de 1988). Em 1989, a lei Caó (Lei nº 7.716/89), proposta do deputado Luiz Alberto Caó, caracterizou, ou melhor, descreveu os crimes de racismo citados na Constituição: “a Lei Caó também definiu como crime sujeito a pena de prisão, entre outros, o ato de, por motivo de raça ou cor, recusar ou impedir acesso de pessoas a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador.” (Disponível em: <http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2006/09/19/legislacao-anti-racista-avanca-desde-a-constituicao-de-1988>) No ano seguinte, 1990, a lei 8.801/90 torna claros os crimes praticados, sob a ótica racista, pelos meios de comunicação. Em 1997, o Congresso aprova a Lei 9.459/97, que estabelece penas e multas às práticas racistas. Desde o final da década de 1940, a justiça tenta amenizar e, com o decorrer dos anos, punir práticas discriminatórias. Essas leis foram estabelecidas com o intuito de amenizar a segregação racial, não declarada, do nosso país. Até a criação
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da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996, não se havia pensando, em garantir na prática escolar, a importância das etnias, indígena e negra, para a formação cultural do Brasil. Apenas na década seguinte é que se institui a obrigatoriedade do ensino dessas matrizes no espaço escolar. Em 2003, foi promulgada, no Governo do Presidente Luís Inácio Lula da Silva, a lei 10.639/2003, considerada um grande avanço para os militantes da causa afro. Ela pretendia suavizar a visão distorcida da figura do negro, bem como buscar uma perspectiva mais adequada, sua valorização e propagação no âmbito escolar. Mas para isso, não basta apenas redigir um projeto de lei. É necessário problematizar, em diversas esferas da sociedade, a importância desses povos para a formação histórica e cultural do nosso país, assim como, a formação de profissionais capacitados, a elaboração de materiais didáticos e paradidáticos que trabalhem esses aspectos. Quando pensamos em trezentos anos de escravidão, se torna possível entender que essas leis configuram uma reparação ao genocídio do povo e da cultura negra. O racismo está arraigado no modo de ser do brasileiro e é visto cotidianamente nos ditos populares, nas piadas, nas propagandas televisivas, no mercado editorial, nas diferenças das oportunidades, na educação, nas famílias, nas igrejas (que marginalizam e diabolizam as religiões de matriz africana), na nossa história, e principalmente no modo de como negamos as nossas raízes, cultuando uma cultura sob a ótica europeia. Tendo em vista os exemplos mencionados, faremos uma análise em quatro escolas da Região metropolitana do Recife, uma escola Estadual, uma Municipal e duas particulares (do ensino fundamental ao médio), a fim de perceber se a Lei 10.639/2003 é de fato cumprida. Esse levantamento foi feito a partir de entrevistas e observações das bibliotecas dessas instituições de ensino. Dessa forma, pensamos em contribuir, plausivelmente, para uma diagnose da lei. Este artigo também elenca algumas obras de cunho infantil
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e infantojuvenil, que podem ser trabalhadas em sala de aula, tendo em vista uma problematização de questões da identidade, da memória, da cultura e da oralidade.
APLICABILIDADE DA LEI 10.639 NAS ESCOLAS PÚBLICAS E PARTICULARES DA REGIÃO METROPOLITANA DO RECIFE A lei 10.639/2003 completou dez anos de vigência no ano de 2014 e ainda tem muitos espaços a serem abarcados e percorridos. Apesar de haver uma ampliação nas discussões sobre a temática, ainda há muita resistência, por parte dos docentes, a aplicar esses conteúdos em sala de aula. Os motivos são vários: a ausência de conhecimento, preconceitos culturais e religiosos, negação de uma identidade afro, resistência de pais e alunos, barreiras solidificadas pela gestão e coordenação escolar e a falta de disciplinas obrigatórias, no currículo acadêmico, que dialoguem com a questão citada. Em virtude disso, sentimos a necessidade de analisar algumas escolas públicas Estaduais e Municipais, e escolas particulares, quatro no total, para diagnosticar a aplicabilidade da Lei 10.639/2003. Duas delas são públicas e as demais particulares, localizadas nas cidades de Paulista e de Olinda, todas situadas na região Metropolitana do Recife. O questionário, endereçado aos professores, continha inúmeras indagações, das quais citamos: área de formação, nível de escolaridade, conhecimento da lei 10.639/2003 e a sua prestabilidade no espaço escolar. Nesses quesitos, obtemos as seguintes porcentagens:
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Itens analisados
Escolas Públicas
Escolas Particulares
Escolaridade dos Profes-
100% possuem nível superior
100% possuem nível superior
sores
completo
completo
Acervo de literatura infan-
40% possuem acervo adequado
100% não possuem livros adequa-
tojuvenil afro-brasileira da
60% não possuem acervo
dos
98% sim
10% sim
2% não
90% não
Aplicabilidade nas aulas de
2% aplicam
10% aplicam
língua portuguesa
98% não aplicam
90% não aplicam
biblioteca Se já ouviu falar da lei
Diante dos dados expostos, fica notória a necessidade de avançar em relação à aplicação da referida lei. Sabe-se que houve avanços, muitos profissionais já a conhecem, outros a utilizam. As escolas tentam inserir no currículo, ainda que sutilmente, as diretrizes da lei 10.639/2003. No entanto, falta uma problematização coletiva da importância da lei. Se conseguirmos, como profissionais da educação, trabalhar em sala de aula os temas citados, conseguiremos projetar um futuro calcado na diminuição do preconceito e do racismo. Embora todos os professores entrevistados possuam nível superior completo, sendo alguns pós-graduados, isso não tem sido suficiente para garantir um recorte afro-brasileiro no espaço escolar. As universidades devem inserir no próprio currículo disciplinas que dialoguem com essa proposta. Os cursos de licenciatura precisam adequar-se as propostas sugeridas pelo Ministério da Educação (MEC), entretanto, se observa o não emprego das
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exigências. Vários pesquisadores têm-se dedicado a pesquisas com foco na lei 10.639/2003, e a maioria converge com os dados obtidos neste trabalho. Os órgãos competentes para a manutenção da Educação no Estado e Prefeitura, as Secretarias de Educação, precisam comprometer-se e garantir a formação de professores em Artes, História e Cultura Afro-Brasileira. A lei já fora instituída, agora precisa ser posta em vigor. Ao longo dos dez anos de atuação, procurou-se desconstruir o mito da democracia racial. Autores e editoras foram incentivados a publicarem material suficiente, para trabalhar essa temática, pelo viés da interdisciplinaridade. Nesse caso, é preciso difundi-la não apenas no espaço escolar, mas também como sujeitos sociais, responsáveis por nossas próprias ações. Por isso, forma ainda sugeridas mediações que colaborem com o trabalho dos docentes em sala de aula.
OBRAS QUE DIALOGAM COM A LEI 10.639/2003 Ao decorrer da nossa pesquisa, analisamos algumas obras literárias que abordam questões sobre a valorização e identidades afro. Sendo assim, decidimos expô-las como sugestão para professores e profissionais da educação, trabalharem em sala de aula e ou/ampliarem os conhecimentos acerca de narrativas que desenvolvam perspectivas de igualdade e de valorização racial.
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As tranças de Bintou: tradição e oralidade O livro As tranças de Bintou (DIOUF, 2010) conta a história de uma criança esperta e cheia de curiosidades acerca das tradições do seu povo. Bintou não gostava dos birotes3 que usava e sonhava com as tranças das mulheres mais velhas. Sentia-se feia, sem graça e não gostava da imagem que refletia nas águas claras. Admirava as tranças da sua irmã mais velha. “Minha irmã, Fatou, usa tranças e é muito bonita. Quando ela me abraça, as miçangas das tranças roçam minhas bochechas.” (DIOUF, 2010, p.6) A garotinha não aceitava usar os quatro birotes questionava o porquê de todas as mulheres usarem tranças, exceto as crianças da aldeia. Esse costume é explicado por sua avó, uma mulher sábia e respeitada pelos mais jovens: Vovó diz enquanto afaga minha cabeça.” Todos a invejavam, e ela foi se tornando uma menina vaidosa e egoísta. Foi nessa época, e por isso, que as mães decidiram que as crianças não usariam tranças, só birotes, porque assim elas ficariam mais interessadas em fazer amigos, brincar e aprender. (DIOUF, 2010, p.10)
A explicação dada pela avó é algo que a garota, na sua inocência infantil, não consegue compreender e até mesmo aceitar. Os ritos e costumes tradicionais estão presentes na cultura africana e na tribo, da qual Bintou faz parte e está inserida. A menina almeja as tranças, mas as tradições da aldeia impedem-na de tê-la. Outro ritual que aparece no decorrer da narrativa é a festa dada para apresentar e nomear a nova criança do povoado, o irmão da Bintou. Nessa festividade, a garota encanta-se pelas longas tranças de uma
3. Penteado feminino que reúne os cabelos no cocuruto da cabeça. Disponível em: <http://www. dicio.com.br/birote/.> Acesso em: 28 de agosto de 2014. 195
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brasileira, que vai à aldeia para a festa do mais novo integrante. Ao mesmo tempo que há a admiração pela figura da estrangeira, a tristeza preenche a alma da menina que novamente indaga sobre o uso dos birotes. Com eles, sentia-se muito feia. Por que não podia usar tranças? Bintou sente-se tão triste que decide ver o mar. Observa que há duas pessoas precisando de ajuda, se afogando. Não pensa duas vezes, vai em direção à tribo e pede ajuda. Os garotos são salvos graças à interferência da menina. Uma atitude tão nobre faz com que ela receba uma “premiação” do povo da aldeia. Sonha com tranças. Imagina que quando acordar será uma garota, bonita e graciosa. Quando acorda é surpreendida por sua avó que pede para sentar-se no chão. A sábia mulher vai mexendo delicadamente os cabelos da neta, tratando-os com carinho e leveza. Bintou encanta-se com o que vê no espelho. A avó colocou beleza nos birotes da menina, enfeitou-os com pássaros e cores. Não se vê mais feia nem diferente dos demais. Os olhares lançados sobre essa belíssima história podem ser trabalhados em turmas do ensino fundamental e médio. É claro que haverá as discrepâncias no entendimento de cada faixa etária, para isso é necessário que o professor, como mediador da turma, elabore recortes e problemáticas diferenciadas, por exemplo: roda de debates incentivando o imaginário, comparações entre a cultura brasileira e africana, como eles se percebem dentro da história, dentre outros. Dentro do contexto da sala de aula, a obra fornece um campo imensurável para discussão e aprendizagem da cultura e literatura africana, das diferenças e do respeito pelo costume do outro. O livro desconstrói no leitor estereótipos do povo africano. Há indivíduos que só conhecem a África pelo viés do sofrimento, da pobreza e da miséria. A mídia é uma das grandes responsáveis por perpetuar tais imagens. Esse
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continente tão imenso e plural é diminuído às cenas de fome e guerra, deixando de lado as belas paisagens, a alegria do povo, a grandeza dos ritos, das tradições e das formidáveis cores que encantam o imaginário. As tranças de Bintou (DIOUF, 2010) também aborda uma visão universal do conflito interior do ser humano, a aceitação de si mesmo. Tendo em vista os pontos citados acima, nota-se a importância de trabalhar as literaturas africanas nas escolas, por uma perspectiva democrática e conscientizadora. Um dos desafios hoje é aplicar a lei 10.639/2003 coerentemente.
Menina bonita do laço de fita: identidades e alteridades Menina bonita do laço de fita (2005), da escritora Ana Maria Machado, é uma obra voltada para o público infantil que demonstra a diversidade das “cores” entre humanos e animais. Narra a história de uma menina negra, linda, de cabelos amarrados com fitas. Ela é admirada por um coelho branco, que sonhava em ser negro. Ele perguntava sempre à garota, o que deveria fazer para ficar pretinho como ela. Muito criativa, mas sem saber dar uma resposta, a menina inventava as seguintes receitas: tomar café, cair na tinta preta, comer jabuticaba. Certo dia, a mãe dela percebeu que a menina inventava várias mentirinhas para enganar o pobre coelho. Explicou ao bicho que na verdade tudo não passava de uma arte de uma avó preta, ou seja, possuía aquela cor devido à ancestralidade. Então, a menina percebeu que a solução para o animal era casar-se com uma coelha preta a fim de ter filhotes de cores variadas. E foi isso que o bichinho fez. Casou-se com uma coelhinha preta e teve filhotes coloridos: malhados, listrados e pretos.
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Para aplicação em sala de aula o texto é muito interessante. É possível passar para cada um dos alunos o valor de sermos nós mesmos, e de que todos os nossos traços físicos são determinados por herança genética. É possível abordar o amor ao próximo sem distinção de raça, cor ou etnia.
O cabelo de Lelê: cabelos e memórias Ensinar crianças de origem afrodescendente a importância da valorização do seu cabelo, da sua pele, não é tarefa fácil. Sabe-se que ambos são dois fortes ícones identitários e ao longo do tempo foram, tornaram-se a representação social de beleza. No livro O cabelo de lelê (2012), da autora Valéria Belém e com as ilustrações de Adriana Mendonça, a característica negra, o cabelo crespo, é motivo de insatisfação. A menina, personagem da obra, faz questionamentos e indagações a respeito dos seus cachinhos, como podemos observar em: “Lelê não gosta do que vê / — De onde vêm tantos cachinhos?/ Pergunta sem saber o que fazer” (BELÉM, 2012, p.5). É perceptível a não aceitação de Lelê em relação ao seu cabelo. Muitas crianças têm dificuldade em aceitá-lo da forma natural, pois são vítimas de comentários e zombarias preconceituosos, como a denominação de “cabelo ruim”. Isso causa na criança a sensação de vergonha e da própria negação de suas raízes, já que os traços, pele e cabelo, que caracterizam a herança afro, são taxados, respectivamente, de inferior e feio. A curiosidade leva a menina a pesquisar sobre o seu passado: “Toda pergunta exige uma resposta./ Em um livro vou procurar!/ Pensa Lelê no canto a cismar.”(BELÉM, 2012, p.9) Apesar das dúvidas, dos questionamentos e da não aceitação, Lelê não se acomoda, a personagem busca entender sua origem através dos livros:
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Fuça aqui, fuça lá. Mexe e remexe até encontrar o tal livro, muito sabido!, que tudo aquilo pode explicar. (BELÉM, 2012, p.13)
Lelê se deleita na história e descobre as suas origens afro. Conhece os costumes, a cultura, a importância do cabelo para as comunidades africanas, como os penteados e o significado espiritual que eles mantinham com esses povos. Vejamos o trecho abaixo: Depois do Atlântico, a África chama E conta uma trama de sonhos e medos De guerras e vidas e mortes no enredo Também de amor no enrolado cabelo Puxado, armado, crescido, enfeitado Torcido, virado,batido, rodado São tantos cabelos, tão lindos, tão belos! (BELÉM, 2012, p.13)
Viajando pelo continente africano, Lelê conhece os territórios, as “tribos” e as lutas por eles defendidas. Depara-se também com as variações do cabelo afro, que foge dos padrões europeus. Desde o século XIV, a fiação dos cabelos afro é bem variante. Nesses povos, o cabelo comunicava, muitas vezes, o estado civil, a identidade étnica, religião, riqueza e o status na comunidade. A apresentação do seu exterior (esteticamente) era tão relevante quanto o significado social. Em algumas comunidades, as mulheres apreciam uma linda cabeça com longos e grossos cabelos. Antes de tudo, ele tem que ser jeitoso, higienizado, bem penteado e apresentado. Os penteados, vale ressaltar, não se limitam às tranças, aos birotes, aos cachos rasta e dreadlocks, estes ganham enfeites miçangas e búzios.
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O contato com o livro faz Lelê deslumbrar-se com sua ancestralidade: Brinca e solta o sentimento O negro cabelo é pura magia Encanta o menino e a quem se avizinha Lelê já sabe que em cada cachinho Existe um pedaço de sua história Que gira e roda no fuso da terra De tantos cabelos que são a memória. (BELÉM, 2012, p.25-27)
A menina passa a valorizar sua identidade no momento em que descobre os porquês dos seus cachinhos. Inova-os com inúmeros penteados, cada um era um pedaço de sua história. Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre incompleta, está sempre “em processo”, sempre “sendo formada” (HALL, 2006, p.38).
A obra finaliza com a seguinte indagação: “Lelê ama o que vê./ E você?”. A autora aproveita o texto para expor a imagem de algumas crianças de etnias diferentes, propondo ao leitor uma sugestão de convivência, respeito e afirmação étnica. Dialogando sob essa perspectiva, é possível afirmar: “[...] todos os alunos negros e não negros, bem como os seus professores, precisam sentir-se valorizados e apoiados. “Depende também, de maneira decisiva, da reeducação das relações entre negros e brancos, o que aqui estamos designando como relações étnico-raciais.” (Disponível em: <http://portal.mec. gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf>).
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Sendo assim, é necessário incentivar os alunos a valorizar sua herança ancestral, levando-os a questionar a realidade que os circunda. Frases de efeito como “cabelo ruim não, cabelo crespo” podem ser problematizadas juntamente com a obra O cabelo de Lelê (2012). Dessa forma, professor e texto literário podem, juntos, combater as marcas do racismo, que são tão evidentes no nosso país.
CONSIDERAÇÕES FINAIS É inegável as contribuições que a lei 10.639/2003 proporcionou nos dez anos de sua vigência. Apesar das grandes dificuldades, a sua efetivação é uma conquista que deve ser valorizada por todos aqueles que contribuíram, diretamente ou indiretamente, para a sua elaboração. Sabe-se, também, que ela, por si só, não conseguirá mudar a realidade da nossa nação, porém, tem contribuído e contribuirá ainda mais para propagar novos olhares acerca da questão afro. O Brasil é um país, que apesar de não se classificar como racista, é um dos mais excludentes do mundo. Diferentemente de outros, que possuem o preconceito declarado. Sabe-se que nenhuma das duas posturas é positiva, mas quando a sociedade é capaz de reconhecer os erros, fica mais fácil de combatê-lo. O racismo brasileiro é silencioso, cínico e desestrutura o andamento sadio de qualquer país. Não somos racistas, mas as oportunidades entre “brancos e negros” são diferenciadas. A maioria da população negra preenche os presídios, as comunidades, a criminalidade e as ruas. Dados que são contraditórios diante da afirmação “não somos racistas”. A lei 10.639/2003 não é colocada em prática por uma parte das escolas. De acordo com os dados obtidos nesta pesquisa, essa realidade se dá pela ausência de profissionais capacitados, bem como alguns estereótipos que
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ainda perpassam a cultura afro-brasileira. As bibliotecas, locais que deveriam difundir a leitura, viraram meros depósitos de livros e raramente possuem bibliotecários. Ainda que haja material disponível para trabalhar é necessário que os professores tenham conhecimento da existência deles. Pensando nisso, analisamos algumas obras que dialogam com temáticas africanas e afro-brasileiras a fim de auxiliar e lançar novos olhares a profissionais interessados nessa área. Como pesquisadores comprometidos com a causa mencionada, fizemos questão de propagá-la ao longo de nossa trajetória profissional e também como sujeitos sociais. Levantar dados, refletir e dialogar são passos fundamentais para cobrar das autoridades responsáveis uma fiscalização da lei, bem como uma ampliação dos debates que envolvam a causa afro-brasileira.
REFERÊNCIAS BELÉM, Valéria. O cabelo de Lelê. 2.ed. São Paulo: IBEP, 2012. BRASIL. Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Dispõe sobre a obrigatoriedade no currículo oficial da temática História e Cultura Afro- Brasileira. Disponível em: <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>. Acesso em 28 de agosto de 2014. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em 27 de agosto de 2014. BRASIL. Parecer n.º: CNE/CP 003/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf>. Acesso em 03 de setembro de 2014. BRASIL. Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Dispõe sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>. Acesso em 25 de agosto de 2014. DIOUF, A. Sylviane. As tranças de Bintou. Tradução Charles Cosac. 2.ed. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
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HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11.ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Editora Ática, 2005. MALACHIAS, Rosangela. Brancos na escola. Cabelo bom. Cabelo ruim! São Paulo: Nove & Dez Criação e Arte, 2007.
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Resumo O presente trabalho visa a discutir a relação do ensaio A escrava que não é Isaura (ANDRADE, 1960) com A emoção estética na arte moderna (ARANHA, 1983), buscando refletir sobre como ambos os autores se comportam ante sua defesa a favor do movimento modernista brasileiro. Trata-se de um estudo comparativo em que semelhanças e diferenças serão apontadas para uma possível reflexão epistemológica, segundo as análises teóricas, em literatura comparada, apontadas por autores como Candido (1993), Coutinho & Carvalhal (1994) entre outros. Nossa pesquisa busca também discutir como os manifestos “Pau Brasil”, “Antropófago”, “Regionalista”, “Anta” e “Festa” pensaram e conceberam a ideia de identidade cultural brasileira. Para tanto, fizemos um recorte histórico-crítico sobre como e para que foi gestada cada uma dessas correntes. Palavras-chaves: Manifestos Modernistas; Modernismo brasileiro; Semana de Arte Moderna.
MÁRIO DE ANDRADE, GRAÇA ARANHA E A CONTRIBUIÇÃO DOS MANIFESTOS À CULTURA BRASILEIRA Roberto Belo1 Começo por uma história. Quasi parábola. Gosto de falar por parábolas como Cristo... Uma diferença essencial que desejo estabelecer desde o princípio: Cristo dizia: “Sou a Verdade”. E tinha razão. Digo sempre: “Sou a minha verdade”. E tenho razão. A Verdade de Cristo é imutável e divina. A minha é humana, estética e tranzitória. Por isso mesmo jamais procurei ou procurarei fazer proselitismo. É mentira dizer-se que existe em S. Paulo um igrejó literário em que pontifico. O que existe é um grupo de amigos, independentes, cada qual com suas ideias próprias e ciosos de suas tendências naturais. Livre a cada um de seguir a estrada que escolher. Muitas vezes os caminhos coincidem... Isso não quer dizer que haja discípulos pois cada um de nós é o deus de sua própria religião. Mário de Andrade
1. Graduado em Letras pela UFPE. Formado em Administração pela UFRPE. Poeta, Escritor e Produtor Cultural. Desenvolve a pesquisa Os Discursos Curriculares e a Questão do Pluralismo Religioso em Escolas Públicas de Pernambuco (CNPq/UFPE/2015), sob orientação do Prof. Dr. Gustavo Gilson Oliveira. É membro do Núcleo de Estudos Oitocentista (UFPE/CNPq) e do grupo de estudo Teoria do Discurso e Educação (CNPq/UFPE), que está associado a Rede LatinoAmericana de Teoria do Discurso e a Associação Brasileira de Currículo, em parceria com a FUNDAJ, FACEPE e CNPq. Tem projetos apresentados e publicados em revistas e em congressos nacionais na área de Livro, Leitura e Literatura. E-mail: poetarobertobelo@globomail.com ou roberto.belo@ufpe.br 205
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INTRODUÇÃO O artigo aqui apresentado visa a discutir a relação do ensaio A escrava que não é Isaura, de Mário de Andrade, com A emoção estética na arte moderna, de Graça Aranha, buscando refletir sobre como ambos os autores se comportam ante sua defesa a favor do movimento modernista brasileiro. Trata-se de um estudo comparativo em que semelhanças e diferenças serão apontadas para uma possível reflexão epistemológica, segundo as análises teóricas, em literatura comparada, apontadas por autores como Candido (1993), Coutinho & Carvalhal (1994) entre outros. Tanto Andrade quanto Aranha expôs veementemente sua crítica ao modelo clássico vigente, demonstrando conhecimento de causa e inovando a arte em vários aspectos. O modernismo é, antes de tudo, um movimento político, de inclusão, de renovação do que se tinha de melhor naquela época em questão de arte. Piada ou não, coerente ou não, não importa, importa-se o desenvolvimento artístico que o país obteve, em muitas áreas, com aqueles novos ideais. Mário de Andrade (1990, p. 26) afirma que o movimento se firmou em três princípios fundamentais, a saber, 1) o direito permanente à pesquisa estética, 2) a atualização da inteligência artística brasileira, e 3) a estabilização de uma consciência crítica nacional. Nesse sentido, o protesto realizado pelos modernistas revelou os brasis diversos e a nossa identidade nacional. Nossa pesquisa busca também discutir como os manifestos “Pau Brasil”, “Antropófago”, “Regionalista”, “Anta” e “Festa” pensaram e conceberam a ideia de identidade cultural brasileira. Para tanto, fizemos um recorte histórico-crítico sobre como e para que foi gestada cada uma dessas correntes. Ora, é sabido que depois de 1922, vencidos os maiores obstáculos para a aceitação das ideias modernistas, surgiram vários grupos de escritores com
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propostas diferentes quanto à nova literatura que deveria ser feita; o fato é que as duas primeiras décadas do século XX representam, para a maior parte do mundo ocidental, um momento contraditório, cheio de conflitos e rupturas em relação a muitos valores e ideias do século anterior. Todos os setores da vida humana - social, político, econômico, cultural, científico e tecnológico – sofrem mudanças que alterarão profundamente a visão de mundo do homem moderno.
Desenvolvimento Antes de adentrarmos propriamente na discussão, é interessante assinalar que o interesse pela literatura comparada surgiu no final da década de 1970, sendo por isso algo novo e ainda muito recente no Brasil; todavia, é importante apontar que esses estudos teóricos têm nos possibilitado estudar sob a ótica de um novo modelo historiográfico e analítico para se pesquisar os textos literários, sendo a compreensão do literário como resultante de uma relação dialética entre fatores internos e externos, sociais e históricos (CANDIDO, 1993; COUTINHO & CARVALHAL, 1994). Para um estudo aprofundado sobre os estudos comparativos em teoria literária, consultar a referência bibliográfica deste trabalho. O modernismo não surgiu do nada, é interessante lembrar; outras correntes foram importantes para a construção deste projeto maior chamado Modernismo, a saber, o Futurismo com seu lirismo catártico, chocando tudo e a todos nos meios publicitários; o Expressionismo através de uma poesia denominada de interrupção, que chamava a atenção por se utilizar do melhor que qualquer verbo e substantivo poderiam dar, inclusive desfazendo-se da pontuação para construir um estilo próprio; o Cubismo, que olhava com outros olhos o mesmo objeto, como se fossem quadros ci-
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nemáticos, dando margem a novas análises e interpretações; o Dadaísmo com seu terrorismo artístico, explosivo, que violentava a palavra; o Surrealismo, que serviu de base para uma ruptura consciente e produtiva, em que visava aos verdadeiros valores estéticos, considerando a obra de arte como ela é, de fato, e as técnicas ou procedimentos submetidos. E é na poesia que melhor se vê essas implicações, por isso Mário foi um profundo admirador dessas correntes, sobretudo dessa última, que valorizava a liberdade das palavras, a desarticulação da sintaxe e as imagens choques presentes em sua obra. O movimento foi uma prova concreta de que a rebeldia às vezes é necessária. Chega uma hora em que é insustentável permanecer e defender ideias que não têm sentido nem função para determinado público. A obra de arte não regra ninguém, por que então ela deve ser regrada? Achamos isso a maior falta de consideração. O Modernismo foi um atentado que deu certo. Na história da humanidade sempre foi assim: alguém teve que perder a cabeça. Não foi diferente com os modernistas, que desde 1902 já davam início das suas transgressões, com Canaã, de Graça Aranha, por exemplo, e seguidamente acompanhado pelOs Sertões e até mesmo pelo discurso “brasfêmico” do João do Rio durante sua posse na Academia Brasileira de Letras. O movimento teve inclusive apoio de pessoas da burguesia, como Paulo Prado, intelectual paulista. Não foi diferente quando Rimbaud rompeu com o que se tinha de melhor no seu tempo, ou Alighieri. A verdade é que sob aplausos e/ou vaias, os modernistas fincaram a navalha e cortaram ao meio a fruta, como poetizara o João Cabral de Melo Neto. O modernismo é, antes de tudo, um movimento político, de inclusão, de renovação do que se tinha de melhor naquela época em questão de arte. Piada ou não, coerente ou não, não importa, importa-se o desenvolvimento artístico que o país obteve, em muitas áreas, com aqueles
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novos ideais. Mário de Andrade (1990, p. 26) afirma que o movimento se firmou em três princípios fundamentais, a saber, 1- o direito permanente à pesquisa estética, 2 – a atualização da inteligência artística brasileira, e 3 – a estabilização de uma consciência crítica nacional. Nesse sentido, o protesto realizado pelos modernistas revelou os brasis diversos e a nossa identidade nacional. Não cabe no Modernismo um modelo de Belo, mas um Belo múltiplo, que atenda a todos; porque a beleza não pode ser uma coisa definida e absoluta: “Cada um que se interrogue a si mesmo e responda que é a beleza?” Defendemos, assim, que o Modernismo foi também um projeto de inclusão. O segredo da arte, diz Aranha, está nela mesma, porque ela é eterna, enquanto o homem é por excelência um animal artista. Unidos é possível entendermos o Todo Universal. A arte é tudo aquilo que transmite sentimento, porque a emoção geradora da arte ou a que esta nos transmite é tanto mais funda, mais universal quanto mais artista for o homem, seu criador, seu intérprete ou espectador, e não algo definido simplesmente como o Belo. É na essência da arte que está a Arte. Nesse sentido, Mário concorda com Graça Aranha, e diz que há dois “Belos”, um artístico, outro natural. E condena a unilateralização da beleza, pois se acreditou, segundo ele, que o Belo da arte era o mesmo Belo da natureza. Uma tolice pré-determinada julgar a beleza sob um aspecto apenas. O Belo artístico independe do Belo da natureza; isso ele deixa bem claro. Não é à toa que estamos sempre a procura do Belo, porque a beleza é uma consequência. Além disso, a poesia tem sua verdade, não a verdade determinada. Ora, “toda manifestação estética é sempre precedida de um movimento de ideias gerais, de um impulso filosófico, e a Filosofia se faz Arte para se tornar Vida”, afirma Aranha, daí a presença do Belo também na poesia modernista, mas um Belo segundo a própria obra de arte, porque cada obra
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de arte assegura sua beleza própria. Quando tratam da questão estética em si mesma, porque o modernismo é um movimento estético, vê-se uma consonância de ideias muito claras em ambos os autores, tanto que um complementa o outro. Não há temas poéticos, porque o cotidiano começa a fazer parte da literatura. Não se tem um grande tema, como defendem os conservadores. Cada artista constrói, agora, sua própria poética. Não se tem mais a poética, mas as poéticas: “Cada um é livre de criar e manifestar o seu sonho, a sua fantasia íntima desencadeada de toda a regra, de toda sanção”. Assim sendo, a arte deve ser livre, porque “o gênio se manifestará livremente, esta independência é uma magnífica fatalidade e contra ela não prevalecerão as academias, as escolas, as arbitrárias regras do nefando bom gosto...”, conclama Aranha. Cada artista age conforme os impulsos do seu próprio temperamento, porque a impulsão lírica é livre e nasce do eu profundo, independe de nós, independe da nossa inteligência. Interessante que nessa perspectiva “é o leitor que se deve elevar à sensibilidade do poeta não é o poeta que se deve baixar à sensibilidade do leitor”, brinca Mário. Chega um momento ápice da festa em que os modernistas saem do esteticismo e vão de encontro ao outro Brasil, o Brasil profundo, como dissera Mário, iniciando-se pela arquitetura e por último pelo popular. A vida é de todos e para todos. Esse reconhecimento parte dos intelectuais, que, consultando a liberdade das impulsões líricas, puseram-se a cantar tudo: os materiais, as descobertas científicas e os esportes, como assinalara Mário em seu texto. Daí, entendemos que a linguagem é/está intrinsecamente com/o povo, e está nas ruas; por isso, abaixo a retórica! Há, sobretudo em Aranha, uma forte crítica ao academicismo, que mata e esfria a arte e a literatura. Porém, a grande saída para isso tudo, segundo Aranha, é o que ele denomina de profundidade, pois esta é a palavra para se definir a imensidão da arte, do desconhecido. É necessário ir além de, 210
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porque “da libertação do nosso espírito sairá a arte vitoriosa”. Tudo o que foi oferecido ao público naquela semana histórica: pintura extravagante, esculturas absurdas, músicas alucinadas, poesia aérea e desarticulada é o nascimento da arte propriamente brasileira. Libertos os modernistas das amarras que os prendiam, puderam criar sua própria poética, uma poética propriamente brasileira, que é o que Aranha chamou de vida vivida na sua profunda realidade estética. Uma vez libertos, os artistas brasileiros puderam valorizar sua gente, criando uma arte compromissada com a identidade nacional. Mário, em contraposição ao parnasianismo, conclama o verso livre, a rima livre e a vitória do dicionário, ou seja, a palavra é quem deve vencer. Sempre. O que importa no Modernismo não é mais a erudição do leitor para se entender o poema, mas a alegoria que se estar trabalhando; daí a importância do artista criar marcações na sua obra para que o seu público identifique o sentido dado, sabendo que cada obra tem sua particularidade. Porque a obra de arte deve ser cheia de significado, deve ter além de uma linguagem “sofisticada”, signos múltiplos que revelem sua profundidade. Ora, a arte literária não tem como foco a realidade, mas a imaginação; a realidade como ela é interessa a ciência, enquanto a literatura a arte. Machado de Assis é um exemplo evidente disso: superou a própria condição enquanto pessoa, e mais, superou também a literatura do seu tempo. Para se entender o verso, Mário aponta que é o verso o elemento da linguagem oral que imita, organiza e transmite a dinâmica do estado lírico. E essa liberdade do verso e rima livres não quer dizer abandono total do metro, não, a obra é quem determinará o emprego que melhor lhe convier, como por exemplo um soneto, em que a métrica é fundamental. Mas o artista jamais deve se fechar em normas preestabelecidas; ele deve ser livre para criar e transformar.
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Aranha e Mário, tocados pelo compromisso que lhes cabe, registram que o movimento foi uma ruptura, um abandono de princípios e de técnicas consequentes; foi na verdade uma revolta contra o que era a inteligência nacional. E a Imprensa foi utilizada poderosamente para os fins em que os modernistas desejaram; ela acompanhou todo o desenrolar das confusões e todos desdobramento artísticos; sem o movimento, não compreenderíamos muito bem o país de hoje, porque foi nesse movimento que se revelou a verdadeira fisionomia brasileira. Foi um protesto para o bem da nação que surgiu da necessidade de se conhecer o Brasil profundo. Baseado numa linguagem criativa e numa realidade contextual (ÁVILA, 1975, p. 30), o modernismo sobressai lutando por uma consciência criadora nacional. Há aí um projeto verdadeiro de literatura, uma literatura compromissada com o lugar. Houve várias manifestações, vários movimentos, como o paubrasil, o verdeamarelo, a antropofagia entre outros que contribuíram para uma ruptura mais consistente e diversificada, conforme apontaremos mais adiante, tanto que o resultado não poderia ser melhor: a liberdade da arte e do artista, mais do artista que da arte, porque a arte sempre esteve livre, mas nós a estávamos criando em cativeiro. Não foi uma repulsa fácil, como declarou Menotti Del Picchia: foi uma estética de reação, combativa e guerreira, oposta aos convencionalismo em vigor. Inclusive, pode-se dizer que o movimento nasceu sob o signo do sincretismo literário e artístico. Diante disso tudo, vê-se, em Mário, exemplo de intelectual atualizado e cheio de motivação para transgredir com as normas estabelecidas, uma vez que essas não tinham sentido nem funcionalidade para sua gente; bebeu nas mais importantes fontes de conhecimento da época, como Paul Dermée, Apolinaire, Hans Becher, August Strammer, Cendrars, Carrá, Baudouin, Tzara, Palazeschi e outros mais intelectuais citados no texto discutido.
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No A escrava que não é Isaura, Mário deixa claro suas influências dos ismos que lhe chamavam a atenção, tanto que a fórmula somatória de Paul Dermée: lirismo + Arte = poesia, está presente também em Jean Epstein, esses dois intelectuais marcaram época. Quando fala da liberdade das palavras, o autor se baseia em Marinetti, que nos revelou o poder sugestivo, simbólico, universal, associativo e musical da palavra em liberdade. Para Mário, a criação artística era a mimese rudimentar, que se legitima por uma relação de máxima proximidade com o movimento do subconsciente, das flutuações da vida anímica. Havia nele, uma apreciação intelectual incrível, que denominou de crítica. Como explica Nunes (1975, p. 47), a nova poética defendida por Mário, distancia-se do lirismo puro pela introdução de dois intermediários: a crítica e a palavra, que foram utilizadas para corrigir a definição determinada por Dermée; segundo a nova fórmula apresentada, fica assim definido: lirismo puro + crítica + palavra = poesia. Ora, é importante ressaltar também que a ação crítica da inteligência e a ação da palavra se conjugam para condensar o estado lírico que as suscitou. Mário defende que o lirismo nasce do Eu profundo, sendo necessário à arte um máximo de expressão obtido com um máximo de lirismo e um máximo de crítica. Assim, o autor de A escrava que não é Isaura discorre sobre a importância do máximo de expressão, e que o poeta deve obedecer as motivações que estimulam o movimento lírico, isto é a dinâmica do subconsciente.
Os manifestos Sabe-se que depois de 1922, vencidos os maiores obstáculos para a aceitação das ideias modernistas, surgiram vários grupos de escritores com propostas diferentes quanto à nova literatura que deveria ser feita.
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Alguns desses grupos tiveram duração efêmera, decerto, mas isso são sinais da inquietação cultural que marcou a época. Na verdade, as duas primeiras décadas do século XX representam, para a maior parte do mundo ocidental, um momento contraditório, cheio de conflitos e rupturas em relação a muitos valores e ideias do século anterior. Todos os setores da vida humana – social, político, econômico, cultural, científico e tecnológico – sofrem mudanças que alterarão profundamente a visão de mundo do homem moderno. De um lado, a Anta, do outro, o Tamanduá: uma luta ideológica. Cenários sociais e políticos múltiplos, movimentos literários e artísticos também múltiplos: é já no início da década de 1930 que se têm cinco importantes correntes de criadores da literatura, formando assim diferentes grupos, denominados tradicionalmente, segundo Wilson Martins, dinamistas, espiritualistas, desvairistas, primitivistas e nacionalistas. Martins, porém, dá preferência a seguinte nomenclatura que já tínhamos adotado: Pau-brasil e Antropofagia como movimentos de esquerda e Verdamarelismo, Anta e Festa como movimentos de direita. Inicialmente, Oswald de Andrade lança, em 1924, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil. Tal qual a madeira pau-brasil fora o primeiro produto de exportação do Brasil-Colônia, Oswald desejava criar a primeira poesia de exportação brasileira, a poesia pau-brasil, como ficou conhecida. Demonstrando revolta e irreverência contra a cultura acadêmica e contra a dominação cultural europeia em nosso país, a corrente defendia a criação de uma poesia primitivista, construída com base em uma revisão crítica de nosso passado histórico e cultural e na aceitação e valorização das riquezas e contrastes da realidade e da cultura brasileiras. Uma das mais importantes propostas do Manifesto da Poesia Pau-Brasil é: “Nenhuma fórmula para a contemporânea expressão do mundo. Ver com olhos livres”.
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Oswald achava que a forma como víamos o país e a nós mesmos não era compatível com a nossa visão dos colonizadores europeus, vindo daí todo tipo de preconceito sobre nós mesmos. Ver com olhos livres pressupõe uma abertura para assumir tudo o que somos, como se fôssemos uma criança que estivesse vendo o país pela primeira vez. Agora, do ponto de vista técnico, o movimento propõe a criação de uma língua brasileira – a língua sem arcaísmos, sem erudição, a contribuição milionária de todos os erros; a síntese; o equilíbrio e a surpresa. Vemos com a publicação, quatro anos depois, do Manifesto Antropófago, a ideia da devoração e da digestão cultural. Exaltava o progresso e a era presente: “Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das ideias. A língua sem arcaísmo, sem erudição. Natural e neológica”. Em seguida, como reação ao tipo de nacionalismo defendido por Oswald no Pau-Brasil e aos matizes anarquistas de seu autor, surge, em São Paulo, o grupo Verde-Amarelo (1926), constituído por Menotti Del Picchia, Plínio Salgado, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo e outros. Trata-se de um grupo com ideias filosóficas camufladas, tendo em vista que não revelava suas reais intenções partidárias. Esse grupo afirmava que sua regra era “a liberdade plena de cada um ser brasileiro como quiser e puder”; o seu nacionalismo era entendido como “de afirmação, de colaboração coletiva, de igualdade dos povos e das raças, de liberdade do pensamento, de crença na predestinação do Brasil na humanidade, da fé em nosso valor de construção nacional”. Lutaram defendendo um nacionalismo ufanista, com inclinação para o nazi-fascismo, conforme ficara comprovado mais tarde, com a adesão de Plínio Salgado ao integralismo, o grupo criticava que o movimento Pau-Brasil era “afrancesado”. Tomando a anta e o índio tupi como símbolos da nacionalidade primitiva, em 1927, o
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grupo verde-amarelo transforma-se no Manifesto da Anta. Contrapondo-se ao canibalismo, a começar pelo símbolo de uma anta, esse grupo revela seus ideais nazistas/fascistas, pregando certa passividade referente às reflexões sociais, e esquecendo-se que a modernidade é um mundo de conflito. E, que o romance é o gênero de conflito por excelência, ou seja, o mundo ou é aquém ou além da medida do herói, mas não é igual. A personagem estará sempre em conflito com o seu mundo. Revidando com sarcasmo o primitivismo xenófobo da Anta, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Antonio de Alcântara Machado e Raul Bopp lançam o mais radical de todos os movimentos: o Antropofágico. Esse movimento, que aprofunda e amplia as propostas já presentes em Pau-Brasil, conta com um grupo maior de intelectuais, que se agregam a Oswald e Tarsila, ela mesma – autora do quadro inspirador das ideias antropofágicas, o Abaporu – aba = homem; poru = que come. Aquela figura monstruosa, com os pés enormes plantados no chão brasileiro, onde também há um cacto, sugeriu a Oswald a ideia da terra, do homem nativo, selvagem, antropófago. O movimento pretende manter com as vanguardas e com a cultura europeia em geral uma relação que Oswald denominou antropofágica: de deglutição, devoração crítica de suas influências de modo a recriá-las, tendo em vista a redescoberta do Brasil, em sua autenticidade primitiva. Em contraposição à anta, o grupo toma como símbolo o tamanduá. Todos os ideais do movimento fora divulgado pela Revista de Antropofagia. Em outras palavras, os antropófagos não negam a cultura estrangeira, mas também não a copiam nem a imitam. Assim como os índios primitivos devoravam seu inimigo, acreditando que assim assimilavam suas qualidades, os artistas antropófagos propõem a “devoração simbólica” da cultura estrangeira, aproveitando dela suas inovações artísticas, porém sem perder nossa própria identidade cultural. Trata-se, portanto, de um aprofundamento da ideia da “digestão cultural” já proposto anteriormente. 216
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Não é difícil distinguir ideologicamente os movimentos liderados por Oswald de Andrade e os liderados por Plínio Salgado, uma vez que os primeiros tendem ao anarquismo e ao comunismo, e os últimos ao fascismo e ao nazismo. Contudo, não é tão fácil diferenciar o Pau-Brasil da Antropofagia, já que um deu origem ao outro e ambos tinham uma posição crítica diante da cultura e do passado brasileiro. Todavia, o Pau-Brasil volta-se mais para a “redescoberta” dos valores brasileiros e era menos agressivo ideologicamente. Já a Antropofagia representava um posicionamento ideológico mais firme, com bases assentadas no comunismo, no matriarcalismo e nas teorias freudiana. Tratando-se de cultura, vê-se que a grande preocupação de Oswald de Andrade é: O que vamos comer? Vamos comer somente o que nos interessa? Qual arte exportar e importar? Ele deixa claro que a imitação, por exemplo, não é antropofagia, mas que antropofagia é uma cultura juntar-se a outra e dar sua contribuição como resultado da junção; e, assim, nos revela que a cultura é algo dinâmico. Enquanto isso, tem-se no Nordeste o conhecido Manifesto Regionalista do Nordeste (1926), programa cultural lançado por vários intelectuais do Nordeste brasileiro e cuja finalidade era “desenvolver o sentimento de unidade do Nordeste, já tão claramente caracterizado na sua condição geográfica e evolução histórica e, ao mesmo tempo, trabalhar em prol dos interesses da região nos seus aspectos diversos: sociais, econômicos e culturais”. Esse regionalismo, segundo Freyre, se fundamenta em três conceitos: Região, Tradição e Modernidade. Vieira (2013, p. 46) nos diz que tradição significa, para Gilberto Freyre, as experiências sociais, estéticas e culturais das nossas raízes; por região, Freyre acata o que é proveitoso dessas mesmas experiências sociais, estéticas e culturais no âmbito de cada circunscrição federativa do país, enquanto modernidade significava mudança, mas não a mudança em si, do novo pelo novo, mas sim a mu-
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dança pelas transformações que resultam de uma reflexão crítica. Assim, tradição não é somente o que firma a unidade brasileira mas também o que urde o presente de cada região com o seu passado, o que religa passado e presente e, por sua vez, definirá os caminhos do futuro; logo, a relação entre tradição e região será o traço caracterizador do Brasil não como algo ‘uniforme’, ‘indistinto’ e amorfo, mas como uma unidade (tradição) que se compõe das suas diversidades (regiões); diversidades que se reconhecem como partes de um todo chamado Brasil, porque encerram elementos dessa unidade; assim, “em Freyre, tradição, região e modernidade são conceitos que não convivem separadamente, um precisa do outro para cumprir o destino que o futuro reservava ao Brasil: o de ser a primeira grande civilização tropical moderna no século que começava a nascer” (Idem). O grupo uniu-se, firmou-se e perpetuou. Por sua vez, o grupo Festa carrega fortes traços simbolistas, e, além de defender uma visão de arte ligada ao Espírito, está diretamente ligado aos impactos da Primeira Guerra Mundial que foram sentidos por todos, levando a um sentimento de desilusão geral, uma falta de confiança no próprio homem. A atmosfera de desespero instaurada leva, então, o homem a buscar, no passado, elementos para alimentar a mente e o espírito. Se o grupo dos escritores da Semana de Arte Moderna, diante da inconstância da Modernidade, voltou-se para o passado com o intuito de justificar um projeto para o futuro, o movimento Festa se particularizou por tomar uma direção inversa: segurou-se no passado com o intuito de restaurar os valores perdidos no presente. Os intelectuais desse manifesto compreendiam que, para inovar, era preciso primeiro conhecer e compreender os antigos modelos, ou seja, era necessário dialogar com o passado. Portanto, defendiam uma modernidade nascida a partir da continuidade, não da ruptura. Para o grupo, a
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arte estava ameaçada pelo materialismo e pelo cientificismo que estavam atrelados ao processo de modernidade. Via a atualidade como um momento de desordem, tumulto, mas, também, propício para repensar e reorganizar os impactos do passado. Assim, eles criaram, então, um projeto estético e intelectual voltado para a renovação e valorização do espírito. O movimento se opunha às outras tendências modernistas pela visão de fundo espiritualista e filosófico, representando a expressão de uma unidade artística universalista que propunha repensar e redefinir o conceito de coletividade numa arte transcendental. Nesse sentido, Cândido (1965, p.135) nos diz que o grupo espiritualista diante da ameaça aos valores tradicionais, trazida pelos modernistas primitivistas, reage no sentido de uma preservação, ou reajustamento de valores sociais, políticos e ideológicos.
Considerações Finais A modernidade literária e artística devem estar intrinsecamente ligadas ao reavivamento da imaginação. Partindo disso, Mário explora sobre o verso livre, a rima livre e a vitória do dicionário; também substitui a ordem intelectual pela ordem do subconsciente, a rapidez, a síntese e o polifonismo, que sustentam a nova poética. Tudo isso o autor pôde comparar, testar a partir da música, sobretudo; um forte realismo psicológico predominou dentro do espírito pragmatista que o norteava no trabalho intelectual de assimilação das ideias. Há até um certo primitivismo por parte do autor,que é revelado através do seu sarcasmo irônico, polêmico e metafórico. Graça Aranha, por sua vez, defende e tenta explorar ao máximo um modernismo voltado para a integração do universo através da emoção estética e o domínio sobre a natureza bárbara pela inteligência. Daí seu esteticismo metafísico, volta-se inclusive para uma certa comunhão íntima
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das almas como substrato nacional e o grupo de festa, que voltado para a espiritualização da arte e da sociedade, configura-se reagindo contra a estética e a interpretação sócio-histórica do movimento do Pau-Brasil. Aí está a diferenciação ideológica de alguns modernistas, sobretudo quando se fala na Antropofagia. Este, através principalmente de Oswald de Andrade, retomou o impulso da rebeldia surrealista que Mário defende e aprimorou o primitivismo, objetivando uma crítica contundente da sociedade brasileira. Ante tudo isso, pode-se dizer que de forma alguma o movimento modernista fora homogênio, pelo contrário. Não existiu um estilo modernista, mas artistas diversos discutindo pontos diversos e plurais da nossa arte. Nesse processo político de (re)pensar nossa arte tipicamente nacional, o papel da linguagem foi indispensável; aliás, a linguagem foi a protagonista da festa. Sem ela nada do que foi feito, se fez. Nesse sentido, Sant’Anna (1975, p. 56) diz que os modernistas lançaram-se no “exercício consciente-inconsciente da escrita utilizando recursos futuristas, dadaístas e falando repetidamente numa linguagem freudiana que prenunciava o Surrealismo de Breton...”.
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Resumo Este artigo, numa tentativa de interface entre a semiótica greimasiana e a psicanálise lacaniana, busca examinar, no conto Felicidade Clandestina, uma geração de sentidos que não se inscreve apenas na linearidade, embora sintagmaticamente seja esta a impressão que se impõe. Essa ilusão é, na verdade, constitutiva de qualquer sistema lingüístico uma vez que o sujeito falante, ao inserir-se numa situação enunciativa, julga-se sempre senhor do seu discurso e, como tal, julga ter o total domínio sobre sua fala, organizando-a na linearidade de suas intenções. No entanto, à sua revelia, traindo-se a si mesmo, esse sujeito inconscientemente provoca “falhas” nessa linearidade, deixando escapar significações capazes de manifestar seus pensamentos reservados, suas vontades reprimidas, enfim, desejos recalcados. Palavras-chaves: Semiótica; Psicanálise; Desejo.
MODULAÇÕES DO ÓDIO: DESEJO E CLANDESTINIDADE Hermano de França Rodrigues1
INTRODUÇÃO O estabelecimento de uma interlocução entre a semiótica greimasiana e a psicanálise fundada por Lacan tem como respaldo algumas convergências metodológicas, principalmente no que concerne à apreensão e “rastreamento” dos registros de sentido - semas contextuais -, retroativa ou linearmente articulados, que se deslocam sob a concretude lingüística na qual os discursos se materializam e se revelam. Nesse âmbito, o discurso se configura como uma entidade polisotópica de significações justapostas e reconhecíveis pelas iterações semânticas, num movimento contínuo de retornos e recuos, e não como uma somatória linear de significados sígnicos. Esse movimento de “costura”, de amarração, capaz de ancorar o sentido a psicanálise denomina de point de capiton. A semiótica, por sua vez, o institui como isotopia. É um mecanismo que permite, através da ligação, da reorganização dos semas espalhados nos enunciados (cadeias significantes), (re)construir uma possível significação, uma linha isotópica de leitura que se irrompe a partir do desmonte do todo para as partes. Segundo BEIVIDAS (p.343), o aforismo lacaniano o significante sempre representa o sujeito para outro significante faz emergir a ilação de que nas várias isotopias pelas quais o discurso constrói seus efeitos de sentido, há uma orientação isotópica intimamente relacionada à subjetividade do su-
1. Professor de Literaturas de Língua Portuguesa, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas, da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: hemanorg@gmail.com 223
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jeito, na qual sua “verdade” estaria inscrita e onde se daria a dialética do desejo. Nessa “região” discursiva, estariam as significações que o próprio sujeito tenta esconder, recusar, negar. Corresponderia ao que o gôngora da psicanálise cunhou de fala cheia. Paralelamente à isotopia do desejo, estabelecem-se outras redes semânticas cuja função é despistar o olhar e a escuta do “outro”. São falas vazias onde o sujeito, conscientemente, situa a falácia cotidiana – engodo discursivo –, da qual ecoa a vivência familiar, a historicidade profissional e as observações sentimentais. Quando esse falso discurso é perpassado, perfurado por lapsos, atos falhos, denegações e outras formas semióticas, a isotopia recusada vem à tona, desvelando um sujeito que se constitui por aquilo que tenta ocultar, mascarar. A semiótica, em seu núcleo operacional, concebe a existência de um sujeito cujas ações em busca de um objeto de valor organizam profunda e superficialmente as significações que se movimentam no discurso. Todas as transformações operadas no universo narrativo decorrem de modificações da relação entre esses dois pólos. É um vínculo que se estabelece por meio de uma relação de desejo: o sujeito é aquele que quer, que pretende o objeto. Advirta-se, no entanto, que sujeito e objeto não são personagens, são, na verdade, entidades actanciais/discursivas que definem relações, operam mudanças e conservam estados. Na estrutura elementar da narrativa, em cujo centro estão presentes o sujeito e o objeto, surgem outros agentes que atribuem uma dinamicidade à relação base. Aparece, então, o Destinador que incita o sujeito a adquirir o objeto desejado e o Anti-sujeito – actante com o qual o sujeito se afronta polemicamente. De modo análogo, a psicanálise lacaniana institui um percurso da subjetivação em que se articulam “estruturas” responsáveis por garantir uma possível semiotização do inconsciente. Constitui, na verdade, um modelo matemático em que os axiomas operacionais da doutrina erigida 224
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por Lacan encontram-se dialeticamente situados: o outro, ao confrontar-se agressivamente com o sujeito lacaniano, orientando-o na construção especular imaginária de sua identidade, desempenha uma função semelhante à de anti-sujeito; o Outro, sujeito do inconsciente, define-se na sua relação com o objeto a, assim como o sujeito semiótico se constrói na relação com seu objeto de valor. Ambos se constituem como sujeitos discursivos. O objeto a, elemento da falta que incita o desejo, detém uma funcionalidade que pode ser comparada àquela assumida pelo objeto de valor no arcabouço metodológico da semiótica. Ambos são responsáveis pelo não-estatismo do sujeito, cujas ações (movimentos) em busca do objeto almejado são radicalmente necessárias à sua existência modal, psicológica e discursiva. Este estudo, numa tentativa de interface entre a semiótica greimasiana e a psicanálise lacaniana, busca examinar, no conto Felicidade Clandestina, uma produção de sentidos que não se inscreve apenas na linearidade, embora sintagmaticamente seja esta a impressão que se impõe. É uma ilusão constitutiva de qualquer sistema lingüístico uma vez que o sujeito falante, ao inserir-se numa situação enunciativa, julga-se sempre senhor do seu discurso e, como tal, julga ter o total domínio sobre sua fala, organizando-a na linearidade de suas intenções. No entanto, à sua revelia, traindo-se a si mesmo, esse sujeito inconscientemente provoca “falhas” nessa linearidade, deixando escapar significações capazes de manifestar seus pensamentos reservados, suas vontades reprimidas, enfim, desejos recalcados. São significações que subjazem ao dito. Para extraí-las, faz-se necessário percorrer as tramas do dizer, ler as entrelinhas, deixar-se enlear nas teias significantes, proceder à leitura do sentido que não deu certo. Leitura que tem como base estranhamentos e rupturas, hesitações e recomeços, redes isotópicas homogêneas e heterogêneas, em suma, fenômenos característicos da língua enquanto sistema dinâmico.
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ESCRITA E DESEJO Felicidade Clandestina, de Clarice Lispector, é uma narrativa que se desenvolve em dois planos: o da imanência (nível onde as significações são apreendidas a partir da decodificação linear dos elementos lingüísticos constituintes das cadeias significantes) e o da essência, cuja operacionalização se efetiva preponderantemente nas erupções que barram a linearidade do dito, expelindo sentidos denegados. O conto, numa leitura estritamente superficial, centra-se sob a figura de uma menina, devoradora de livros, que anseia ter em mãos uma obra (Reinações de Narizinho) pertencente a uma outra colega – a filha do dono da livraria. Esta, numa atitude cruel, alimenta na “pobre” menina o desejo de um dia possuir o livro. Ela diz poder emprestá-lo, mas não o faz. Todas as manhãs, a “ingênua” vítima cumpre sua angustiante tortura: dirigir-se à casa de seu algoz e receber uma dolorosa negativa. A mãe da perversa garota, ao descobrir o feito da filha, a repreende e entrega à “silenciosa” menina o tão desejado objeto. Todavia, mergulhando nas subjacências do texto, percebemos que a relação entre as duas meninas envolve requintes de maldade e maquiavelismo. Ambas são perversas e utilizam as “armas” que possuem para exercer, uma sobre a outra, um tipo especifico de tortura. Em termos psicanalíticos, a criança, no seu estágio de inserção no mundo, precisa confrontar-se especularmente com o outro para constituir-se enquanto sujeito. É vivenciando e reconstituindo esse processo identitário que as protagonistas são introduzidas no conto. Desprovidas de um nome que as particularize, elas se constituem na diferença, na discordância, na falta. O embate físico projeta apenas duas imagens de um engodo que se dissolve nas atitudes, nos gestos, nas palavras. São esses mecanismos extra
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e intralinguísticos que fazem emergir a essência das personagens. Elas são fisicamente distintas, todavia se assemelham interiormente pela perversidade e iniqüidade que destilam. A narrativa se desenvolve a partir da enunciação da menina-narradora que, sem condições financeiras para adquirir o tão estimado livro, pede-o emprestado a sua antagonista, que aproveita a oportunidade para impor a sua vítima um doloroso suplício. Esse ser humano insensível é figurativizado com atributos físicos que acentuam radicalmente sua maldade. Em contraposição, a “meiga” menina, instituindo-se como dona do discurso, oferece a si própria um revestimento figurativo que a insere no universo da bondade, da vitimização: Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas éramos achatadas. [...] nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres.
Percebe-se, então, uma reprodução da metáfora do espelho. É ao confrontar-se, ao comparar-se polemicamente com o outro (a menina “má”), numa busca angustiante de mostrar-se diferente, de ser fisicamente o que a outra não é, que a narradora começa paradoxalmente a assimilar-se, a identificar-se com sua rival. Institui-se um jogo maquiavelicamente feminino em que ambas usam aquilo que é objeto de cobiça da outra para lhe causar inveja. Enquanto uma possui a beleza, a outra possui Reinações de Narizinho. O livro, instrumento de desejo e que guarda a felicidade, parece, numa leitura mais aprofundada, não ser a maçã de ouro desejada ardentemente pelas deusas da mitologia grega, mas a simbologia da falta, o instrumento que incita o desejo, que dá sentido à vida. Não é à toa que esse objeto surge
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preso à figura paterna. A iníqua menina, apesar de todos os seus “defeitos”, é agraciada com algo que a torna privilegiada: “possui o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria”. Nessa cadeia sintagmática, o signo pai se destaca em relação aos outros elementos lingüísticos. Em termos relacionais, ele é o elemento determinado e, como tal, responsável pelo foco semântico da estrutura. Simbolicamente, representa aquele que detém o poder, que instiga a busca, o desejo. Possuindo um PAI dono de livraria, consequentemente, estaria a desafortunada menina saciando seu desejo imaginário. Essa relação simbólica – a figura paterna enquanto representação da falta (objeto a) – adquire ressonância no texto pela recusa da filha do dono da livraria em utilizar os livros. Se o livro ocupa, metonimicamente, o lugar do objeto a, a filha, na sua condição familiar, não poderia possuí-lo. Além disso, é o desprezo pelos livros que possibilita e condiciona o desejo da narradora. A diagramação seguinte oferece uma sistematização do conflito:
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A tensão que se instaura no texto decorre da oposição entre duas isotopias. A primeira (S1) corresponde àquela onde o discurso inconsciente se revela. Constitui-se na oposição entre o sujeito, que se trai, quando sua fala se choca com a fala do outro. A segunda (S2) compreende o discurso falacioso, o lugar onde o sujeito se perde ao desconhecer o seu próprio desejo. Transpondo essas reflexões para o texto em análise, pode-se dizer que a narradora realiza um percurso, na ordem do imaginário, visando obter o livro cujas histórias lhe trarão felicidade; e um percurso, na ordem do inconsciente, em que obter o livro é preencher a falta e, ao mesmo tempo, obter poder. O Outro (o desejo), nesse esquema, apresenta-se como o destinador que incita a narradora a realizar a performance necessária, com vistas a conseguir aquilo que pode satisfazê-la – o livro. Para tê-lo em suas mãos, a “inocente” menina submete-se a uma tortura que ela própria qualifica de chinesa. Tal tortura consiste em dirigir-se todas as manhãs à casa de sua rival na esperança de que ela lhe entregue, em forma de empréstimo, o tão 229
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esperado livro. Mesmo consciente das intenções cruéis de sua “prestativa” inimiga, a pobre menina rende-se a sua pena: E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.
Esse extremo sacrifício não estaria escondendo, camuflando uma ação ainda mais cruel? Como se sabe, a beleza é algo que falta à filha do dono da livraria. Obviamente, a presença de uma menina loira e esguia todos os dias à sua porta estaria evidenciando o seu desfavorecimento físico. E tal atitude também constitui uma ação igualmente perversa. A pacata menina se silencia e se humilha não por benevolência, mas por vilania. Uma falha, inconscientemente provocada no seu discurso de vítima, atesta a sua entrada no universo da maldade: Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, altinhas, de cabelos livres.
A vingança pressupõe uma ação anterior. Se a dona do livro é pura vingança, isso significa que ela foi, num passado, alvo de determinadas ações que a feriram e a magoaram, ações consideradas por ela injustas. No entanto, a narradora se abstém de qualquer culpabilidade uma vez que era imperdoavelmente bonitinha, ou seja, nada fez para ser merecedora de tão singela beleza. A outra, alimentando uma corrosiva inveja, é que não se conforma com esse fato. Essa é uma leitura superficial! Na verdade, é a narradora que
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coloca a sua “agradável fisionomia” como estopim do conflito. É ela que julga ter uma “superioridade física” em relação à sua oponente. Assim como sua rival que chupa balas, com barulho, para demarcar território, para ser reconhecida em seu poder, a “inofensiva” menina insiste em ser o espelho que a sua adversária rejeita. Estruturalmente, a progressão enunciativa do conto é marcada por uma morosidade e monotonismo. As ações se reiteram constantemente, provocando, no leitor, a impressão de que o drama do dia seguinte também o persegue. A partir do momento em que se institui, no texto, o ritual maquiavélico entre as protagonistas, desencadeia-se uma repetição da expressão “o dia seguinte”. Propositalmente, essa expressão vem acompanhada do elemento “NO”, marcando semanticamente uma pausa, um estatismo, uma possível resolução do conflito, e do lexema ATÉ, quebrando a pausa e anunciando a continuidade, a angústia, a frustração em se esperar o outro dia. Todavia, é a promessa que dá sentido à existência da narradora. Acreditar que um dia terá o livro em suas mãos é embevecer-se de um líquido vivificador capaz de revigorar a esperança e o ânimo. Sob o efeito da privação, ela busca, incessantemente, o gozo, a satisfação. A cada “não” recebido, a desafortunada menina se torna mais forte e perseverante. É como se pressentisse que viver é deixar-se guiar por uma simples promessa, cujo cumprimento não se tem garantia. É procurar persistentemente por algo mesmo sabendo que não irá encontrá-lo. Para a psicanálise, esse renascer do desejo corresponde à demanda. Quanto mais a demanda se desenvolve, mais aumenta a distância com o objeto: Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era meu modo estranho de nadar
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pelas ruas de Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.
A expressão “dessa vez nem caí” revela uma solidez emocional que passa a existir quando se descarrega e se mantém o desejo. Desejar significa, paradoxalmente, privar-se do objeto. Nesse sentido, o estado de disjunção, caracterizado pelo interstício entre sujeito e objeto, não se configura como uma condição disfórica. A menina penetra no mundo significante, imerge-se na vida no momento em que se impõe como sujeito desejante. Essa posição lhe garante a possibilidade de trazer para si objetos eleitos (o livro) como objetos substitutivos, colocados metonimicamente no lugar do objeto perdido. Observe-se o gráfico:
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No texto, o conflito entre posse e privação instaura o desejo que, por sua vez, define as relações entre as personagens. A dona do livro situa-se num estágio de necessidade. Ela, desprovida daquilo que almeja (a beleza), enclausura-se num mundo em que a privação ordena e condiciona suas atitudes. Nada faz para preencher a falta. Pelo contrário, motivada pela necessidade, realiza um percurso no qual tenta subjugar aquelas que assinalam, perante seus olhos, a deficiência que detém. Em posição dialética, encontra-se a narradora. Esta se constitui na relação de não-privação e posse do objeto cobiçado. Depois de inúmeras tentativas em prol da obtenção do livro, a pertinaz menina é sancionada duplamente: recebe, da mãe de sua rival, o ambicionado livro e, com isso, ergue-se como a vitoriosa no jogo da maldade. Cumpre ressaltar que o livro é dado como empréstimo, o que se mostra coerente e necessário visto que a posse definitiva significa renunciar a vida, abandonar o desejo. A própria menina, inconscientemente, prevê o fato. Ela desencadeia a demanda ao fingir que não está com o livro para, dessa forma, não fazer cessar o desejo; ao criar a ilusão de que o perdeu só para ter o prazer de procurá-lo; ao distanciar-se dele só para sentir sua falta; ao ler algumas linhas e julgar que não foi o suficiente. Em suma, ela cria as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade: Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes.
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Outro fato interessante que merece ser destacado é a intervenção da figura materna que culmina na resolução do conflito. Se o pai é o dono da livraria, o “possuidor” legítimo do livro, por que não é ele o responsável pelo desfecho da intriga? Possivelmente, a resposta reside na dialética do desejo. A criança, ao constituir-se como sujeito desejante, eleva a mãe à posição de Outro. O desejo que a instiga é, na verdade, o desejo do desejo do Outro: o falo. O pai, enquanto figura castradora nesse processo, não poderia ceder o objeto. Sua função é evidenciar a falta e, com isso, levar à privação do objeto. Percorrendo todo o texto, verifica-se o engendramento de uma isotopia que ratifica o livro como um objeto erotizado. A menina, ao possuí-lo, o institui como amante e se coloca como mulher. Algumas imagens reforçam essa idéia: ela deita-se com o livro e o coloca sobre seu colo; antes, aliás, o aperta sobre o peito. No início do conto, instaura-se como uma devoradora de livros e ao se referir, pela primeira vez, ao instrumento que tanto desejara, reveste-o de figuras relacionadas à sexualidade, como, pudor, comer e dormir: Era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. [...] Às vezes, sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo. [...] Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.
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Resumo A partir de uma análise do livro Viva o Povo Brasileiro, do escritor João Ubaldo Ribeiro, entendemos que um diálogo pode ser estabelecido acerca das noções de nação e identidade nacional a partir deste romance. Neste trabalho, entendemos que problematizar tais noções significa buscar a sua abrangência para além dos significados conferidos pela historiografia e teoria social, propondo uma relação entre literatura e conhecimento sociológico presente no desafio de pensar a construção de uma nação a partir da identidade nacional construída a partir de personagens, cronologias e ambientes narrativos. Ao entrecruzar estas noções, pensamos tanto nas estruturas narrativas do romance como no modo como estas noções são trabalhadas, principalmente, a partir de Benedict Anderson, Hobsbawm e Antônio Candido. Ao fim, uma análise dos elos narrativos e dos personagens devem nos mostrar como estas noções estão intercaladas com aquelas identificadas na literatura especializada. Palavras-chaves: Nação; Identidade nacional; Pensamento social brasileiro; João Ubaldo Ribeiro; Literatura brasileira.
NAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL EM ‘VIVA O POVO BRASILEIRO’ João Matias de Oliveira Neto1
INTRODUÇÃO Ao se reportar ao conceito de nação e identidade nacional, tem-se em mente a atualidade destas reflexões. Vez e outra, temas como a igualdade racial, o Brasil e suas contradições, a identidade brasileira voltam às discussões ordinárias do dia-a-dia. Segundo Renato Ortiz (2013), no Brasil e América Latina haveria uma obsessão pelo nacional fazendo com que a problemática da identidade seja recorrente. Através de uma análise histórica dos níveis de percepção e autopercepção dos brasileiros, sobretudo de escritores, Antônio Cândido (2011b) distingue que o Brasil, em meados de 1930, foi tido como o país do futuro e, logo mais, dada a assunção de uma “consciência do subdesenvolvimento”, o Brasil passou a ser percebido muito mais em termos de “faltas”, dentro de suas próprias contradições sociais, do que propriamente de “sobras” de um país novo, cujo futuro promissor esperava aproximá-lo das metrópoles, referências do que então se tinha por civilização. De todo modo, as considerações são sobre um mesmo e rico objeto: o Brasil enquanto nação e identidade nacional. Nesta proposta de artigo, dialogo com o romance Viva o Povo Brasileiro, do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, para mostrar como questões que tangenciam o gênero romance ainda se encontram presentes no imaginário
1. Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em nível de doutorado. E-mail: j.matias@msn.com 237
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ficcional de um importante escritor brasileiro. Nele, podemos perceber que a identidade brasileira gira em torno de dois polos, um polo de autoridade, simbolizado pelo português, outro de submissão ou resistência, simbolizado por negros e índios em constante apelo de libertação e vingança. Mas, Viva o Povo Brasileiro também se configura enquanto um romance histórico, e por isso lida com a proposta de contar quatro séculos de história da Bahia através do ponto de vista de uma alma à busca do que é ser brasileiro, ou antes, do próprio povo brasileiro. Antes, importa perceber que para a sociologia e, em especial, o pensamento social brasileiro este tema perpassou a ótica de autores importantes quando nem bem a sociologia se constituiu enquanto ciência formal, a exemplo de Silvio Romero, Euclides da Cunha e Lívio de Castro. Assim, Antônio Cândido (2006) discute três fases de apropriação deste tema por autores nacionais, enfatizando que a própria trajetória da sociologia no Brasil se ateve, inicialmente, a uma perspectiva de construção da nação a partir de critérios evolucionistas de etapas históricas para a definição de raça, cultura e comportamento. Isto é, indo de uma sociologia baseada em intuições pessoais com uma retórica cientificista até uma elaboração sistemática e metódica sobre os problemas nacionais, devidamente pontuados em seus “fatos essenciais da realidade brasileira” (raça, pobreza, desigualdade social). Cândido, melhor dizendo, reconhece que no panorama da nossa história intelectual, o advento relativamente recente de uma sociologia científica se deu na medida em que os estudos sociais conseguiram, aqui, superar a mentalidade literária a que se haviam até então ligado indissoluvelmente. A literatura foi entre nós uma espécie de matriz, de solo comum, que, por mais tempo que em outros países, alimentou os estudos sobre a sociedade, dando-lhes viabilidade numa cultura intelectualmente pouco diferenciada. (CÂNDIDO, 2006, p.291)
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Tal interpretação significa dizer que aqueles que primeiro se depararam com as ciências do homem exprimiram suas primeiras impressões sobre o Brasil e sua formação histórica, étnica e social com linguagem, métodos e disposições pessoais de escritores. Neste âmbito, voltamos à formulação de Brasil como um país do futuro, porém com cara e corpo de país subdesenvolvido, tal qual foi descrito no início desta apresentação. Desde 1930, ao deparar-se com uma visão sobre o Brasil diferente da visão corrente no século 19, a consciência de um subdesenvolvimento foi se construindo a partir da percepção de um atraso material e da fragilidade de instituições que não concorriam para a formulação do Brasil como um país do futuro (CANDIDO, 2011a, p.170). Assim, a compensação deste atraso viria através de uma supervalorização do regional, espécie de mudança de perspectiva que, em princípio, evidenciaria a “realidade dos solos pobres, das técnicas arcaicas, da miséria pasmosa das populações, da sua incultura paralisante” (idem, p.171). Afinal, para esta literatura, como reagir à condição de periferia do capitalismo e colocar-se em um ponto de vista global e transnacional? Em relação à formação desta identidade, Cândido ainda coloca que esta literatura, do ângulo político, pode ser encarada como “peça eficiente do processo colonizador” (CANDIDO, 2011ª, p.199). A literatura brasileira, neste sentido, foi submetida a um processo geral de colonização, sendo expressão muitas vezes de um colono “europeizado” e em posição de domínio tal que se impõem valores e regras de estilo. Esta literatura é parte de um “mecanismo de dominação” à medida que, ao se reconhecer enquanto nação, ainda não fazia a flexão necessária de sua consciência enquanto colonizada e subdesenvolvida, despindo-se de um espírito nacional romântico que enfatiza a “transcendência às coisas, fatos e pessoas” como fórmula de percepção do nacional (idem, p.204).
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Pelo exposto, pode-se entender que a literatura, na verdade, é uma narração do passado ou, na concepção de Cândido (2011a, p.210), “correção do passado”, e daí derivariam, por exemplo, a construção do índio, do mestiço e da tutela dos intelectuais na invenção de “um passado que já fosse nacional” como importantes para a formação desta pátria (idem, p.211). Tal nação, em outras palavras, é refém de um passado que une e aproxima escritores e leitores, personagens e comunidades, espaço e tempo em um mesmo ideal de convivência e simultaneidade. Para a literatura, erigir heróis ou personagens importantes para esta comunidade é parte de um processo de se reconhecer, continuamente, como um espaço de convivência em comum, isto é, uma comunidade sentimental ou imaginada. Neste artigo, trabalhamos com a perspectiva de nação a partir da influência da literatura na composição desta nação, ou seja, nas suas diferentes formas de narrar o “eu” e o “outro”, conforme proposto por Hall (2006), ao mesmo tempo em que definimos nação como uma comunidade imaginada ligada pela ideia de simultaneidade na compreensão de uma unidade que une pessoas em torno de uma comunhão de vidas. Dito de outra forma, “uma comunidade política imaginada – imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo tempo soberana.” (ANDERSON, 2008, p.32). Uma comunidade, por sua vez, que subsiste da invenção de um passado em comum, por diversos meios que sejam utilizados na comunhão de marcas visíveis ou audíveis que se distinguem como próprias desta comunidade, quando a nação, no fim das contas, é a “garantia última quando a sociedade fracassa” (HOBSBAWM, 2000, p.282). Ao avaliar o romance de João Ubaldo Ribeiro em termos de traços de aproximação de personagens, contextos e enredos que dialogam com a formação de um “povo brasileiro”, remete-se implicitamente aos recursos utilizados por este escritor para distinguir no livro critérios que o aproximem
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da história do Brasil primeiro enquanto nação e, depois, na relação desta com seus signos e distinções, ou seja, identidade nacional. Neste trabalho, tento construir a partir deste livro uma ideia de simultaneidade característica de uma nação e, dentro dos meandros entre a identidade e a diferença, os polos de ordem e desordem, autoridade e subordinação, que envolvem a construção desta identidade nacional. Para a construção de uma análise deste romance, utilizo como referência o método de observação proposto por Antônio Cândido, em relação a uma consciência do subdesenvolvimento, apropriação de recursos estilísticos e de uma correspondência entre polos que decorrem de “uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou destino das pessoas nessas sociedades” (CANDIDO, 1970, p.70-71). Atendo-me ao que foi proposto, busco observar como a nação está implícita na ideia de simultaneidade, comunidade imaginada e construção de uma nação a partir da narração de um passado em que, subjacente à ideia de identidade nacional, faz-se a partir dos polos de alteridade que implicam em identidade e diferença. Para todos os efeitos, a análise que segue em curso busca uma apropriação que permita aproximar a análise de um romance de viés histórico da construção de um pensamento sociológico que contribua para pensarmos nação e identidade nacional dentro de um livro significativo da nossa literatura. A partir de uma elaboração conceitual destes conceitos, podemos ler com mais sensibilidade e argúcia alguns dos temas trabalhados pelo escritor no romance Viva o Povo Brasileiro.
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NAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL De um ponto de vista contemporâneo, Renato Ortiz (2013) reforça a contemporaneidade deste tema ao fazer uma análise sobre como a identidade nacional se encontra na esfera do consumo, na constituição política de estados-nação e na ideia de “totalidade” que, na visão do autor, é aquilo que aproxima nação e cultura. Através deste “espírito de um povo”, um ideal de integração se realiza, agregando o que se encontra disperso. Tendo a cultura como “a consciência coletiva que vincula os indivíduos uns aos outros” essa percepção se viabiliza pela preservação de “traços de seu passado histórico, sua herança e transmiti-la para outras gerações (daí a importância da escola)” (idem, p.612). Na história do Brasil, Ortiz (2013) destaca vários pontos sobre os quais os brasileiros refletiram acerca de seu próprio passado histórico. Cabendo dizer que esta nação é uma libertação de seus “constrangimentos pretéritos” (idem, p.614), questões como a mestiçagem, a abolição da escravatura ou a proclamação da república voltam como uma “complementação” de histórias que não foram narradas, por exemplo, pelo negro ou pelo índio. Resultado de processos massivos de exclusão dessas vozes, parecia haver uma subalternidade intransponível, dando a visão de diferentes interpretações do Brasil por diferentes intérpretes, com diversas maneiras de ver a mestiçagem e a própria “diversidade na unidade” (ibidem, p.615). Os critérios essencialistas de formação desta identidade, sobretudo identidade de raça, para Ortiz, foram um ponto de partida que o motivou a desmistificar essas formulações, ao afirmar que a identidade “é uma construção simbólica que se faz em relação a um referente” (ORTIZ, 2013, p.621). E que essas distinções simbólicas tinham a presença do outro como um fator determinante tanto de representações simbólicas como da própria formação
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da nacionalidade. Na história do pensamento social, esta transição também foi importante à medida que, para o autor, passou-se de um ideal de “essência” para o de representação, algo refletido nas ciências sociais ao longo do século XX, mais precisamente na antropologia cultural. De algum modo, a ideia de totalidade, que aproxima o conceito de nação ao conceito de cultura na leitura de Ortiz (2013), aproxima-se de uma ideia de simultaneidade das experiências dos indivíduos, no modo como membros da “mais minúscula das nações” jamais se encontrarão ou se conhecerão, porém continuarão a manter em mente uma imagem ou símbolo vivo de comunhão entre eles (ANDERSON, 2008, p.32). Em outra perspectiva, Anderson também aproxima o conceito de nação ao de uma jornada, apropriando-se de Victor Turner. Jornada esta na qual o indivíduo viaja por tempos, condições e lugares, sendo capaz de atribuir um significado a estas jornadas, exigindo uma interpretação para entendê-las (ANDERSON, 2008, p.92). A metáfora é válida, mas sob o condicionante de reiterar outro conceito que leva novamente o eixo do debate para um “vínculo imaginário” que aproxima os sujeitos, sobretudo em sua própria capacidade de atribuir significados – longe, portanto, de uma noção essencialista de nação, cultura ou identidade. Esses vínculos imaginários estão relacionados ao modo como a nação se faz, para além dos sistemas culturais que Anderson (2008) destaca como influentes em sua formação histórica. Nas suas raízes culturais, segundo o autor, o amadurecimento do conceito de nação advém de uma “inevitabilidade do pluralismo vivo de outras religiões”, enquanto conceito influenciado pelos princípios de mortalidade e continuidade próprios das comunidades religiosas, e do alomorfismo de “pretensões ontológicas” e de “extensão territorial”, próprio dos reinos dinásticos ao se reconhecerem diante de outros. Assim, oferecendo uma resposta mais adequada tanto à ideia de finalidade
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como de formação de um povo a partir de questões sobre sua própria existência, a nação vai além dessas comunidades imaginadas por uma ideia de simultaneidade. Em outras palavras, os indivíduos se unem por um vínculo imaginário no qual há um “tempo messiânico em que haveria uma simultaneidade de passado e futuro em um presente instantâneo” (ANDERSON, 2008, p.54). Segundo Anderson (2008), a nação enquanto percepção temporal faz-se, para além dos sistemas culturais, através de dois instrumentos: o romance e o jornal. Isto é, a comunidade imaginada se faz também através de “meios técnicos para representar o tipo de comunidade imaginada correspondente à nação” (ANDERSON, 2008, p.55). Sobretudo na modernidade e mundialização dos meios e saberes, na leitura de Renato Ortiz (2013), a ideia de simultaneidade em um “tempo vazio e homogêneo”, propiciada pelas inter-relações e interações de diferentes personagens, indivíduos, situações e acontecimentos que unem pessoas dentro de um mesmo espaço e tempo, corresponde a um “organismo sociológico” ou uma “comunidade sólida”. Nestes, indivíduos se mantêm ligados por um vínculo imaginário no qual é possível reconhecer o representado e, a partir desta cumplicidade compreensiva, o jornal ou o romancista saberiam descrever uma casa de modo a ser compreendida pelo leitor. Exatamente como se ambos tivessem ligados por uma “imaginação nacional” (ANDERSON, 2008, p.61-62). Os elos de ligação entre escritor e leitor, jornal e público, por sua vez, têm uma origem e um fim, para além da segurança que o capitalismo tipográfico tem para fomentar este tipo de percepção: um passado histórico entre ambos. Os mecanismos de atestação ou imputação da identidade seriam reproduzidos a partir de pensamentos sobre quem somos “nós” e quem são os “outros” e, na leitura de Hobsbawm (2000), torna-se difícil separar a nação da identidade nacional. Uma vez compartilhado um determinado passado, subentende-se que esses indivíduos teriam histórias para contar ou narrar, 244
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e tais histórias precisariam de “marcas visíveis e audíveis” nas quais eles se veriam culturalmente semelhantes ou diferentes de outros (idem, p.281). Toda a perspectiva teórica que optamos por trabalhar até então remete à aquela indicada por Stuart Hall (2006) no processo de atestação de identidade. Para o autor, identidade e diferença se encontram ligadas à medida que o conjunto de características, símbolos, língua e comportamentos que distinguem um “eu” enquanto identidade se baseia na observação e distinção em relação a um “outro” significante. Por mais que este significante se afaste do conjunto de características que perfazem a sua comunidade, para Hobsbawm (2000, p.282), “o indivíduo ainda precisa construir narrativas ou mitos de um passado ao qual se aproxime”. Nesta perspectiva levantada, tanto a identidade não obedece a critérios essencialistas de sua atestação, quanto o indivíduo tem relativa liberdade de opção por nova identidade ou comunidade, uma vez que há um passado histórico em comum que o prende. Para Anderson (2008, p.88), muitas vezes os critérios de inclusão de um povo em uma nacionalidade obedecem a uma integração a partir da língua, a exemplo dos crioulos na Espanha, ou uma reordenação dessas populações ao nível da consciência dos espanhóis os incluiria dentro desta nacionalidade. De todo modo, também para este autor a “constituição física e pessoal da nação está ligada com um ideal de identidade nacional, uma vez que tanto jornais de caráter local quanto muçulmanos distinguiam, por características diversas, o que eles ‘eram’ por aquilo que eles ‘não são’”. Tudo, por isso mesmo, uma definição que obedece a critérios de atestação e diferença. Na literatura, questões de identidade e diferença se encontram no estilo, nos recursos, ferramentas e mesmo na percepção sobre o público. Ao propor uma mudança pela “consciência do subdesenvolvimento”, Cândido assume que houve uma mudança de perspectiva de identidade nacional a partir de um processo de releitura do passado histórico e da percepção sobre o meio em que se vive. Mesmo assumindo estilos que buscassem supervalorizar 245
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a dimensão do regional, como parte de uma reação desta nova percepção da realidade brasileira, o romance brasileiro não escapa da genealogia que aponta indícios da influência do romance europeu. Para Antônio Cândido (1970), o uso de recursos e ferramentas pode ser uma prova de dependência colonial ou de reconhecimento de que seria preciso igualar-se às literaturas europeias pela consciência das particularidades brasileiras, apostando na recriação de estilos que, pela universalização do regional, podem criar relações transnacionais que coloquem esta literatura lado a lado com suas históricas referências.
A PARTIR DE VIVA O POVO BRASILEIRO Toda a nossa explanação anterior chega, finalmente, ao modo como refletimos o romance de João Ubaldo Ribeiro. Romance de personagens fortes, a narrativa que se desenrola começa pela alma do Alferes Brandão Galvão que, na iminência de entregar-se às brumas e fragatas de uma terra em vias de independência, abandona sua alma na esperança de que, mesmo sem nada levar das suas experiências, sonhe “desvairadamente”. E esta deixa tomar-se como critério para chegarmos a uma narrativa que, inconscientemente, cumpre o ponto de vista do colonizador, a partir da figura do Barão Perilo Ambrósio, do índio Capiroba, da negra Dadinha e do mulato Amleto Ferreira. A partir do recurso do discurso indireto livre, somando-se a traços da oralidade em partes que remetem ao fluxo de consciência, a exemplo do relato da negra Dadinha a respeito do passado e de suas lembranças da escravidão, pode-se dizer que os critérios de identidade e diferença estão bem delineados no nascimento e morte dessas personagens. Através do Barão Perilo Ambrósio, figura da corte e polo de autoridade ao qual todas as personagens antes citadas se sentem submissas, tem-se uma distinção característica do polo da ordem e desordem, por exemplo, que Antônio Cândido percebe em 246
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sua leitura do romance Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida: Esta afirmativa só pode ser esclarecida pela descrição do sistema de relações dos personagens, que mostra: (1) a construção, na sociedade descrita pelo livro, de uma ordem comunicando-se com uma desordem que a cerca de todos os lados; (2) a sua correspondência profunda, muito mais que documentária, a certos aspectos assumidos pela relação entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século XIX. (CÂNDIDO, 1970, p.71).
Tomando por exemplo esses polos da ordem e da desordem a que se refere Cândido é que formulamos para o entendimento de Viva o Povo Brasileiro os polos da autoridade e da subordinação. Espécies de equivalentes, estes polos do bem e do mal se encontram misturados, ao mesmo tempo em que são complementares, sobretudo ao mostrar uma inversão deles, por exemplo, na parte em que o índio Capiroba pratica o canibalismo com dois holandeses escravizados por ele. Mas, a dialética da ordem e da desordem entra, aqui, como na dubiedade dos personagens tratados por Antônio Cândido no romance de Manuel Antônio de Almeida: em Viva o Povo Brasileiro, a trajetória do personagem Perilo Ambrósio aponta para um colonizador, ao mesmo tempo que representante da ordem, repleto de sadismos e vícios perversos; o mulato Amleto Ferreira, ao mesmo tempo que serviçal exemplar, um herdeiro dado a exercer a autoridade de maneira persecutória com seus empregados. Neste viés, segundo Cândido: Ordem e desordem, portanto, extremamente relativas, se comunicam por caminhos inumeráveis, que fazem do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas. (CANDIDO, 1970, p.72) 247
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Polos opostos à medida que, segundo Antônio Cândido, passeiam entre o lícito e o ilícito, com uma ordem que é “dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz” (CANDIDO, 1970, p.77), os personagens de Viva o Povo Brasileiro comunicam-se por uma ideia de simultaneidade de suas ações no modo como estão implícitas características desta sociedade: o suborno constante das figuras de autoridade aos negros alforriados, a hipocrisia do comportamento das autoridades, a posição dúbia do negro diante de uma desordem generalizada da qual, implicitamente, ele deve se servir para se elevar socialmente. Em Viva o Povo Brasileiro, a ideia de simultaneidade de ações e personagens que, para estarem dentro de um mesmo enredo, sequer precisam se comunicar para sabermos que pertencem a este ambiente, esta história e este país, vale-se de uma condição do romancista em anunciar já de início uma história do Brasil a partir de uma alma que se pretende brasileira. Para Anderson (2008), a comunicabilidade entre dois personagens que não se encontram se dá de tal forma que essas sociedades são entidades sociológicas de uma realidade tão sólida e estável que é possível até descrever os seus membros se cruzando na rua sem nunca se conhecerem, e mesmo assim mantendo ligações entre si. (...) todas essas ações são executadas ao mesmo tempo no relógio e no calendário, mas por agentes que não precisam se conhecer, e esta é a novidade desse mundo imaginado que o autor invoca no espírito de seus leitores. (ANDERSON, 2008, p.56)
Assim, em Viva o Povo Brasileiro, os personagens índio Capiroba e Barão Perilo Ambrósio sequer se comunicam, mas fazem parte de um mesmo passado histórico, constituído em uma nação a partir de um sentimento de comunhão neste mesmo passado, segundo Hobsbawm (2000), e assim inte-
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ragindo com um elo do romancista com a história, e dele com a imaginação do leitor. Isso faz com que o conceito de nação, em Viva o Povo Brasileiro, possa ser observado como o próprio desejo da alma do Alferes, um herói nacional, em reencarnar: ao constituir como um elo de ligação entre personagens e épocas distintas, faz-se ela uma representação da cronologia, da simultaneidade e da continuidade que prescreve o “vínculo imaginário”, segundo Anderson (2008), no qual a comunidade imaginada surge nos jornais e romances. Em outra perspectiva, é a própria representação do representado culturalmente, na leitura de Renato Ortiz (2013), ou a invenção do passado e da construção de uma narrativa de comunhão entre pessoas, segundo Hobsbawm (2000). Em termos de identidade nacional, não se pode dizer que o romance de João Ubaldo Ribeiro adentra o gênero característico de um romance regionalista nos moldes de 1930. Ao mostrar a fragilidade das instituições e um atraso tanto material quanto social, pode-se dizer que há uma consciência de subdesenvolvimento em uma avaliação profunda e irônica sobre o processo de formação histórica da identidade brasileira, sobretudo pelo fato de a alma, personagem do romance, buscar uma identidade nos tipos sociais deste romance. Se a nação se faz a partir do desejo desta alma, a identidade nacional estaria no terreno das interações e inter-relações reais entre personagens. A saber, logo no início do romance, assim João Ubaldo Ribeiro retrata a curiosidade da alma: Mas talvez nem seja verdade que ela teria sido encantada pelos engodos, ardis e necromancias que se entrelaçam no ar de Amoreiras, porque, cada vez com mais assiduidade e interesse, deu para frequentar os locais onde o alferes recebia homenagens, deu para vibrar de satisfação, com uma felicidade que jamais experimentara, quando pormenores de sua fala às gaivotas eram lembradas ao povo pelos declamadores, em
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alexandrinos sinfônicos, ordens inversas arrebatadoras, proparoxítonas troantes como tonéis martelados, metáforas cujos contornos jamais se dissolviam, adornando o ar de esculturas gelatinosas e frementes. (RIBEIRO, 2014, p.19)
Vê-se, por esta passagem, e ao longo do romance, o escritor fazer nítida referência a uma influência da literatura estrangeira na fala das pessoas, através de “alexandrinos sinfônicos” e outras figuras de linguagem. A formação de uma identidade consciente do subdesenvolvimento, por este viés, é refém dos critérios de identificação usados pelo escritor para fazer soar no imaginário do leitor que esta identidade, sobretudo em um momento de independência do próprio Brasil, ainda é uma afirmação subserviente ao legado português. Fazendo-se, portanto, uma afirmação do “eu” em relação a um “outro”, a identidade aqui não estaria bem formada, ao mesmo tempo que o escritor se vale deste e de outras passagens para fazer menção a como o caráter ambíguo desta identidade está, por exemplo, na petição do mulato Amleto Ferreira, herdeiro da fortuna do Barão Perilo Ambrósio, para tornar-se um inglês de berço (RIBEIRO, 2014). À luz de uma reflexão sobre o atraso e o subdesenvolvimento, é que Cândido (2011b, p.178) aponta que parte dessa tomada de consciência também se faz através da percepção de “dependência cultural”. Mesmo que este seja um processo inegável de formação da nação, isto é, a nossa situação de povos colonizados, um esforço de pensar a literatura enquanto instrumento para pensar a nação também deriva de observar como nos colocamos em um ponto de vista global. Em outras palavras, como reagimos a uma condição de periferia? Para o romancista, haveria o duplo desafio de arvorar-se de recursos e técnicas literárias advindas de uma influência europeia para, tomada a consciência de subordinação e subdesenvolvimento, tanto da técnica quanto da nação para a qual este se reporta, traduzir a consciência do
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subdesenvolvimento em reação transnacional sem se reduzir a nativismos ou regionalismos que reforçam uma visão de exotismo a qual à sensibilidade europeia interessa (idem, p.189). É emblemático, por exemplo, o modo como João Ubaldo Ribeiro se utiliza da figura do Barão Perilo Ambrósio para tecer irônicas críticas ao papel do colonizador no Brasil de outrora: Mas onde está a autoridade do governo, onde está o discernimento do bem geral, que não se pode nem falar em meter essa gentalha ociosa a trabalhar forçada nas obras públicas e em tantas outras onde teria serventia, sem que se levantem esses que julgam poder fazer prosperar um Império com luvas de pelica e obras de caridade? Hoje o que se vê é que paga mais a pena ser vadio e sem ocupação que indivíduo prestante, e ainda lá dizem mal, sem nada conhecerem do que se passa, dos homens como eu, que no ostracismo carregam a Nação às costas! Que fariam sem produção? Viveriam de almoçar discursos e beber lágrimas que derramam pelos desocupados e inúteis? (...) Sou sincero com Vossa Reverendíssima quando digo que, como brasileiro, patriota e temente a Deus, não posso deixar de abrigar esperanças, embora não as justifique senão pela fé. De resto, monsenhor, temo, temo, temo pelo futuro do Brasil. (RIBEIRO, 2014, p.107).
Como um despertar desta consciência do subdesenvolvimento, observa-se a ironia com que o escritor destila, a partir de uma visão identitária do colonizador para com o colonizado, a subserviência que, no caso apresentado, retrata os negros que trabalham para o Barão Perilo Ambrósio. Parte da formação desta identidade brasileira, para além dos critérios que distinguem o “eu” do “outro”, da parte do escritor também se subleva a sensibilidade da manifestação da consciência do subalterno. Sobre esta passagem e a proposta de um romance de viés histórico e que retrate um processo de independência que, ao mesmo tempo, é um processo de subordinação:
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As áreas de subdesenvolvimento e os problemas do subdesenvolvimento (ou atraso) invadem o campo da consciência e da sensibilidade do escritor, propondo sugestões, erigindo-se em assunto que é impossível evitar, tornando-se estímulos positivos ou negativos da criação. (CANDIDO, 2011b, p.190)
Esta consciência do subdesenvolvimento se revela de forma mais característica e direta na fala do Negro Leléu, da matriarca Dadinha, do índio Capiroba, uma vez que estes sofreram um violento processo de subordinação e violência através da imposição colonial. De certa forma, em relação ao passado do Brasil, o que João Ubaldo Ribeiro faz é uma inversão da versão dos primeiros cronistas e romancistas do império: invertendo os “valores sancionados da civilização metropolitana” (CANDIDO, 2011a, p.200), o escritor fala pelos excluídos e, ao retratar o colonizador, ironiza as posições ocupadas por eles. Em outras palavras, a identidade que se quer construir seria uma inversão da “função ideológica de uma literatura diretamente ligada aos mecanismos de dominação” (idem: 201). Por fim, complementa a visão do colonizador e do colonizado pintada por João Ubaldo Ribeiro uma intenção de “correção do passado”, mas com o viés de uma ironia fina sobre as suposições de uma colonização harmônica e fidedigna a um determinado passado narrado por autores românticos. Uma vez que, segundo Cândido (2011a), a literatura colonial foi parte desse processo de construção nacional, e da identidade nacional, a colonização não pelo que poderia ter sido, mas pelo que de fato foi é uma das chaves que pode ser identificada em Viva o Povo Brasileiro como uma forma de refletir o processo de construção do Brasil. Se, na esfera da construção de uma consciência nacional, cabe ao escritor e à literatura observar imposições e adaptações de padrões culturais,
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a sua inversão ou tensão para a construção de novos passados é uma experiência de narração da própria nação, e também uma maneira de conferir à literatura do período colonial novos significados. Em Viva o Povo Brasileiro, a construção desta identidade parece ocorrer através de uma ideia de simultaneidade violenta em relação a um passado que, embora já fosse nacional, não foi propriamente narrado de outros modos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência de escrita deste trabalho foi, em parte, reflexo de inquietações sobre a noção de nação que geralmente é construída por romances de viés histórico, a exemplo de Viva o Povo Brasileiro. Para além do valor literário e do modo como são construídos, vale observar que tanto o conteúdo quanto a forma destes romances são relevantes. Viva o Povo Brasileiro não é um livro fácil de ser lido e, por estes critérios, afirmo que a maneira como o livro foi construído pode ser um modo de questões nacionais surgirem de um conteúdo intrínseco à construção dos personagens, situações, ambientes e à própria narrativa. Concordando com Antônio Cândido (1970), problematizo ao colocar que a forma, a técnica narrativa e os recursos linguísticos também são importantes, inclusive como definição do nacional. Se a ideia de simultaneidade trabalhada até então visa a construir enredos nos quais vínculos imaginários podem ser observados nestes textos, a forma como esta ideia de simultaneidade é construída, bem como por que meios estes vínculos imaginários são feitos, subentende a utilização de uma ferramenta que marca um território dentro do modo de construir uma narrativa e, também, receber influências externas. Em outras palavras, os modos de narrar a nação também seriam interessantes a partir do instrumental no qual é feito e, dentro dos recursos, saber o que se esconde por trás de uma
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mera escolha por um recurso linguístico ou outro. As ironias, neste sentido, vão além do conteúdo. Por fim, cabe observar, como Cândido (2011a), até que ponto uma literatura de “dois gumes” se constrói de forma transnacional. Em outras palavras, a tessitura que liga a imaginação nacional e a criatividade reflexiva pode conter mais indícios de separação ou junção de horizontes do que se percebe em uma leitura rápida de Viva o Povo Brasileiro. Em se tratando de narrativas que se propõem a pensar uma determinada história da nação, caberia ao sociólogo interessado neste processo criativo observar como, e a partir de que meios, o escritor se utilizou de uma pesquisa acurada sobre a história do Brasil, leitores e intérpretes para costurar o seu texto. Nesta seara, uma leitura hermenêutica do próprio processo criativo na literatura levaria a sociologia a olhar para os métodos de composição de uma narrativa ficcional do mesmo modo como olha para os métodos de formulação de um problema sociológico. E, na iminência de compreender este processo, propor um trabalho sociológico compartilhado, dando “voz” à escolha de um informante habilitado, mesmo que a partir de um livro.
REFERÊNCIAS ANDERSON, B. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras. 2008. CANDIDO, A. A sociologia no Brasil. Tempo Social: Revista de Sociologia da USP, v.18, n.1. 2006. CANDIDO, A. Dialética da malandragem (caracterização das Memórias de um sargento de milícias). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, nº 8, São Paulo: USP. 1970. CANDIDO, A. Literatura de dois gumes. In: Antonio Candido. A educação pela noite & outros ensaios. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011a. pp. 169-196. CANDIDO, A. Literatura e subdesenvolvimento. In: Antonio Candido. A educação pela noite & outros ensaios. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011b. pp. 197-217. ORTIZ, R. Imagens do Brasil. Revista Sociedade e Estado, n° 3, v.8, set/dez. Brasília: UNB, 2013.
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Resumo Este artigo se apresenta com o objetivo de ressaltar o contexto como um elemento crucial na formação do sentido no humor. Por meio de análises em trechos de apresentações do gênero stand-up, observa-se o modo como o contexto influencia nas violações ou êxitos no momento em que o sentido é formado na interação. Desse viés, foram analisadas as enunciações formadas dentro deste gênero nas perspectivas de Marcuschi e Bakhtin sobre gênero e Benveniste sobre o processo da enunciação Palavras-chaves: Contexto. Sentido. Gênero. Stand-up.
O CONTEXTO COMO ELEMENTO CONSTITUINTE DO SENTIDO NO GÊNERO STAND-UP Geovana Felix Oliveira do Nascimento1
INTRODUÇÃO Preliminarmente a abordagem do contexto que sucede em um gênero textual faz-se necessário um discernimento do que seriam os gêneros textuais. Os gêneros são noções cotidianas usadas pelos falantes, que se apoiam em características gerais e em situações rotineiras para identificá-los. É neles que se constrói a interação comunicativa, designados como fenômenos sociointerativos. O humor no stand-up é concebido a partir das observações que são feitas, pelos humoristas, do cotidiano. Se o espectador não está inserido no mesmo contexto que o humorista, o sentido, juntamente com o humor, não é atingido. É com frequência que não compreendemos o motivo pelo qual não conseguimos achar algo engraçado, pois não paramos para pensar por que isso ocorre. O sentido não é construído porventura. Este artigo tem por objetivo evidenciar o contexto como um elemento crucial na formação do sentido no humor, além de salientar a participação das dêixis como componente constituinte do sentido no stand-up e focalizar as situações em que há transgressões e condições de felicidade para a construção do humor.
1. Pós-graduanda em Metodologia da Tradução: Língua Inglesa, FAFIRE. Email: geovana.felix@gmail. com 257
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GÊNERO TEXTUAL No que concerne ao gênero textual, em um primeiro contato é comum acharmos que se trata de um tópico banalizado e que temos um vasto conhecimento nessa área. Marcuschi (2008) já dizia que estamos vivendo atualmente uma espécie de explosão de estudos sobre gêneros, não obstante sejam poucos os trabalhos de qualidade. Os gêneros aglomeram o texto, o discurso e descrevem a língua e a visão da sociedade, além de tentar esclarecer as questões de caráter sociocultural no uso da língua. Em outras palavras, o estudo dos gêneros diz respeito à língua em seu cotidiano nas mais distintas formas. Eles são parte do modo como o ser humano dá forma às atividades sociais. Todo gênero dispõe de uma finalidade que o define e lhe garante um ambiente de circulação. Todo gênero possui uma forma, uma função, um estilo e um conteúdo. Por essa razão, é com grande facilidade que reconhecemos rapidamente quando um texto pertence a um gênero ou a outro. Sem os gêneros seria impossível estabelecer uma comunicação verbal. Apoderamo-nos deles como uma forma de socialização totalmente necessária para a comunicação. Bakhtin (1997) afirma que a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados – orais e escritos – concretos e únicos que se originam da atividade humana. Todos os nossos desempenhos estão ligados aos enunciados. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São frames para a ação social [...] São os lugares onde o sentido é construído [...] Gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros [...]. (BAZERMAN, 2006. p.23)
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Por serem dinâmicos e donos de uma complexidade bastante variável, não é possível determinar a quantidade dos gêneros textuais. Unicamente se explica como são formados e como atuam na sociedade. São heterogêneos, pois se realizam de forma variada. Sob esse ponto de vista, Marcuschi (2008) traz o exemplo do gênero telefonema. Notamos claramente quando se trata de um telefonema, mas este pode tornar-se narração, argumentações, descrições. Assim, observamos que um telefonema não pode ser visto simplesmente como um único gênero.
O Gênero Stand-up Neste sentido já nos inteiramos de que o gênero é uma noção do cotidiano utilizada pelos falantes que se amparam nas características gerais e nas situações diárias para serem percebidos. É imprescindível explicitar que os gêneros não surgem fortuitamente: são condicionados pela sociedade e se constroem na interação comunicativa. Assim, os gêneros se determinam com base nos objetivos dos falantes. Trata-se de uma questão de uso. Em consequência do momento histórico em que estão inseridos, os gêneros vão sofrendo modificações e constantes atualizações. A este respeito é relevante regressarmos à questão da heterogeneidade. Cada situação social dá origem a um gênero com suas características próprias. Tomemos como exemplo o gênero stand-up (do inglês stand-up comedy) – que será cuidadosamente examinado posteriormente. O stand-up comedy, como qualquer outro gênero, possui sua função, forma e estilo excepcional. O humorista que tenciona fazer uso desse gênero deve se apresentar em pé (daí o termo “stand-up”), sem acessórios, cenários, caracterização, personagem ou o recurso teatral da quarta parede.
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O texto utilizado é autoral, feito pelo próprio comediante, que o apresenta com base em suas observações, sejam elas do cotidiano, ou das notícias que veiculam a sociedade. Este gênero ressurtiu de outros gêneros, como o one man show – que ainda se confunde com o stand-up, mas permite outras abordagens, tais como a interpretação de personagens, músicas e cenários – e o monólogo de humor. Bakhtin (1997) relaciona a formação de novos gêneros ao aparecimento de novas esferas, e de novas necessidades do ser humano. Um gênero está inscrito em outro, por isso, Bakhtin dividiu os gêneros em dois grupos: os primários e os secundários. Numa breve definição, os gêneros primários se atribuem às situações comunicativas cotidianas, instintivas, informais e imediatas. Os secundários, na maior parte das vezes intermediados pela escrita, aparecem em situações comunicativas mais abstrusas. Para melhor elucidar essa questão dos gêneros primários e secundários, examinemos novamente o stand-up. Como dito anteriormente, uma de suas características fundamentais é a apresentação do texto autoral, logo, o humorista precisa engendrar um texto (gênero primário) que irá transmutar para o então stand-up (gênero secundário). Tanto um quanto o outro possuem a mesma essência, o importante é esclarecer que ambos são formados pelo mesmo fenômeno: os enunciados.
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ENUNCIAÇÃO E O STAND-UP Os gêneros são coleções percebidas de enunciados. Os enunciados são delimitados, têm começo e fim, ocupam lugar definido no tempo e no espaço e são percebidos como portadores de algum sentido. (BAZERMAN, 2001)
Com o que foi dito em relação aos gêneros, percebe-se que existe uma íntima relação entre gênero e enunciado. Para melhor compreendermos essa vinculação é preciso que fique clara a abordagem da enunciação. Benveniste (1974) diz que a enunciação é a língua em exercício por um ato individual de utilização, isto é, um falante faz uso da língua para produzir enunciados. A enunciação é a instância formadora do enunciado. Este pressupõe um ato de comunicação social, é a unidade real do discurso. Há uma interação entre os sujeitos falantes. Em uma performance de stand-up, também podemos constatar esse fenômeno. No exemplo abaixo, podemos perceber quando o humorista interage com o público durante a sua apresentação. (1) [...] tem bastante gente que tá casada aqui hoje pode levantar a mão aí! (+) oh, quando levanta é a mulher que levanta ali (+) a mulher sempre levanta (+) o homem não¸ [...].2
2. Rafael Bastos. Stand up comedy de Rafinha Bastos (Casamento). 2006. Disponível em: <http:// www.youtube.com/watch?v=vdMD2jCdWP4> 261
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O enunciado comporta frequentemente elementos que remetem à instância da enunciação: a dêixis. De origem grega, “dêixis” é um termo que significa apontar ou indicar. São os pronomes pessoais, demonstrativos, possessivos, adjetivos e advérbios (apreciativos, espaciais e temporais). “Dêixis” se refere ao modo pelo qual a língua se codifica ou gramaticaliza os traços do contexto da enunciação. Voltemos ao exemplo anterior (1). Interessado em saber quem são os casais presentes na plateia, o humorista faz uso dos advérbios de lugar aí e ali. Esses termos não se atribuem a nenhum lugar específico em todas as ocasiões de uso. São marcadores de espaço para algum lugar específico dado pelo contexto. Por conseguinte, os falantes que o ouvem percebem claramente o lugar a que ele se refere, pois estão inseridos no mesmo contexto que ele. É por meio da linguagem que o homem se constrói como sujeito, dado que, somente ao produzir um ato de fala ele constitui-se como eu. Eu é aquele que diz eu. O eu só existe por oposição ao tu. Esse conhecimento é indispensável para que a linguagem se torne discurso. O enunciador é o responsável pelo enunciado, no qual ele se marca como primeira pessoa. O enunciatário é o tu a quem ele se dirige. O enunciatário é também sujeito produtor do discurso, pois o enunciador, ao produzir um enunciado, leva em consideração o enunciatário a quem ele se dirige. Numa apresentação de stand-up, por exemplo, o humorista (enunciador) deve ter uma atenção especial para o público (enunciatários) com o qual ele está lidando e é esse público que determinará a escolha dos assuntos a serem abordados.
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(2) [...] a palavra homem não combina com a palavra fidelidade (++) da mesma forma que a mulher não combina com a palavra baliza (+) pronto¸ ( ( risos ) ) desculpa tá falando a verdade [...]3
Ao ouvir e compreender o enunciado, o enunciatário toma para si atitudes responsivas, ou seja, ele pode concordar ou não. É socialmente estabelecido que o homem é quem mais trai numa relação afetiva e que a mulher não sabe dirigir. A intenção do enunciador, aqui o comediante, é agir no sentido de induzir uma resposta, seja ela positiva ou negativa. Bakhtin estabelece que esse tipo de atitude seja característica peculiar do enunciador.
O CONTEXTO NO STAND-UP Antes de partirmos para a perspectiva do contexto e do que a ele é incumbido, é interessante acrescentar o que diz Levinson (1983) a respeito do vínculo entre dêixis e contexto. Como bem lembra o autor, a relação entre língua e contexto se exprime nas estruturas das próprias línguas e esse fenômeno é visto mais claramente por meio da dêixis. A Pragmática é que dá conta dessa conexão, pois é ela que abrange os aspectos da estrutura linguística que dependem do contexto, como princípios do uso e da compreensão. Versar sobre o contexto não é tão simples quanto pode parecer num primeiro momento. É certo que o contexto dos enunciados interfere de um modo ou de outro na formação do sentido. E é, talvez, por mexer com o sentido, que possamos confundir o espaço do contexto com a Semântica. A
3. Idem. 263
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fronteira entre a semântica e a pragmática parte justamente da perspectiva do contexto. Cabe à semântica a significação que não depende do contexto e o que depende dele é transferido para o campo pragmático. Entretanto, é preciso cautela ao fazer uma distinção tão radical. Ambas estão ligadas ao contexto de alguma forma, porém seus objetivos são diferentes. É imprescindível levar em consideração a intenção do falante. Para a pragmática o essencial é a intenção comunicativa do enunciador ao produzir um enunciado. Para compreendermos um pouco mais o contexto, podemos dizer que é preciso fazer uma distinção entre as situações efetivas da enunciação, em toda a sua diversidade de aspectos, e a seleção dos aspectos culturais e linguísticos que são importantes para a produção e interpretação das enunciações. Dessa forma, o contexto não só abrange as instâncias enunciativas, mas também os fatores extralinguísticos. Devemos levar em conta o mundo social e psicológico em que o usuário da língua opera em determinado momento. Lyons (1977) relaciona o contexto a alguns aspectos, como por exemplo: o papel do falante, o status social, a adequação do lugar e tempo, o conhecimento do nível de formalidade, e o conhecimento do gênero. (3) [...] eu acho que todo catequista deveria levar as crianças na região da vinte e cinco de março (+) sério (+) porque você tem vários exemplos bíblicos ali (+) aquela coisa quando você morre não vai nem pro céu nem pro inferno (+) o purgatório ( ( risos ) ) eu acho que quando você chega ali na ladeira do porto geral ( ( risos ) ) você tem a visão do purgatório sabe” (+) aquele monte de gente [...]4
4. Robson Nunes. Comedy Central Apresenta: ROBSON NUNES. Disponível em: <http://www.youtube. com/watch?v=--eN2B5q2GM>. Acesso em: 01 dez. 2012. 264
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O falante não faz uso da língua isoladamente. Sempre há uma relação a alguma situação, a um cenário, pessoas e acontecimentos dos quais vão brotar o significado. Em (3) notamos que o humorista descreve uma realidade que é vivida pela plateia. O ouvinte se apoia nas pistas que são deixadas no momento da enunciação para a identificação dos referentes. Percebemos que a expressão Vinte e Cinco de Março é uma região, como esclarece o comediante, e que o humor é construído a partir do que se sabe sobre essa área, o que acontece nesse lugar. Os enunciatários são sensíveis ao contexto. Se aquilo que está sendo colocado no momento da enunciação não faz parte do conhecimento de mundo dele, haverá uma transgressão na construção do sentido. No momento em que o enunciatário se identifica com o que o enunciador está falando, forma-se o sentido. O contexto é constitutivo do sentido e este sentido emerge a partir da interação entre interlocutores. O contexto diz respeito a um conjunto de suposições que fazem parte do contexto cognitivo do enunciador e do enunciatário, e que é ativado na memória a partir da interação que se estabelece entre eles. Van Dijk (2011) aborda essa perspectiva do contexto e cognição e diz que os contextos são construtos únicos, são acionados de acordo com as experiências vividas – percepções, conhecimentos, perspectivas, opiniões e emoções – de cada participante no momento da interação. Uma das armas poderosas do gênero stand-up é a abordagem de temas do cotidiano, como dito anteriormente. É essa característica que gera no público uma resposta imediata. O riso é provocado pela cumplicidade, pela interação entre o enunciador e o público que o assiste (o enunciatário). Não obstante, essa arma também pode ser um fator instável, pois o enunciador não sabe se durante a interação irá atingir o enunciatário, como podemos notar em (4), quando o humorista comenta sobre um tópico que não é de conhecimento do público. 265
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(4) [...] tá saindo aí direto na na mídia agora também o casamento do príncipe william ne’, você viram” (++) não” vieram do sri lanka pra cá então” ( ( risos ) ) saiu no mundo inteiro esse negócio agora [...]5
A essência prolixa do contexto não deve ser vista como uma falha na língua. É, antes de tudo, uma forma de garantir a riqueza e a proliferação do sentido. A enunciação no stand-up, ou em qualquer outro gênero, tem sentido na medida em que o contexto está sendo delimitado por um horizonte. Existe uma relação de interdependência entre os contextos, sejam eles situacionais, culturais, biográficos, históricos, dentre outros. Todos esses elementos interagem durante a produção de uma enunciação. (5) [...] eu fiquei imaginando (+) já pensou a galera que foi convidada/VOCÊ ser convidado pra ir num casamento desse. EU não gostaria’ porque a lista de presentes do príncipe william’ ((risos)) (+) o eike bastista ia olhar e porra tá caro heim ( ( risos ) ) (+) vou esperar entrar no peixe urbano aí eu vou ((risos)) [...]6
Observemos o exemplo (5) acima. Para poder processar o que o humorista está falando, o público precisa ativar a sua percepção em relação à situação que ele está colocando. É necessário acionar os elementos contextuais que estão inseridos nesta enunciação. Se o casamento é de um príncipe, então se imagina que os presentes serão caros. Aqui o humorista brinca com o fato de que nem mesmo um milionário poderia comprar o
5. Léo Lins. Léo Lins fala sobre o casamento real. 2011. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=FdZ-TEYgm-M>. Acesso em: 01 dez. 2012. 6. Léo Lins. Léo Lins fala sobre o casamento real. 2011. Disponível em: <http://www.youtube.com/ watch?v=FdZ-TEYgm-M>. Acesso em: 01 dez. 2012. 266
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presente ideal. O uso de nomes próprios e as dêixis são os referenciais para a construção do sentido e é neste ponto de vista que parte a perspectiva do horizonte. A enunciação comunicativa é dinâmica. A língua é dinâmica. O contexto se transforma o tempo todo. Constrói-se para cada situação comunicativa nova. Durante a interação, vimos que os interlocutores acionam conhecimentos contextuais e são esses os conhecimentos dos quais dependem a constituição do significado. O contexto se manifesta através de um horizonte que limita o âmbito do qual as interações tomam sentido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, procuramos entender as relações existentes entre gênero e enunciação; contexto e significado. Utilizamos os gêneros como um meio de socialização totalmente necessária para a comunicação. A língua é uma forma de ação; quando queremos exercer qualquer tipo de poder ou influência recorremos ao discurso. Nenhum falante fala por falar. Quando o comediante de stand-up se submete a relatar algo engraçado, sua intenção é claramente atingir o seu público de alguma forma, seja provocando o riso ou uma crítica. O sentido desponta a partir de uma interação entre interlocutores, dado que o contexto é aquilo que delimita o horizonte que guia o enunciatário ao campo de sentido que ele busca. O mundo social e psicológico em que o usuário da língua está inserido em determinado momento é um aspecto fundamental a ser levado em conta. Os contextos se intercambiam e o falante é quem controla essa busca por informações que o levarão até o desenlace perfeito.
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Vídeos Charles Bazerman e Carolyn Miller. Bate-papo acadêmico. Recife, 2001. Disponível em: <http://www.nigufpe.com.br/batepapoacademico/bate-papo-academico1.pdf>. Acesso em: 03 dez. 2012. Léo Lins. Léo Lins fala sobre o casamento real. 2011. Disponível em: <http://www. youtube.com/watch?v=FdZ-TEYgm-M>. Acesso em: 01 dez. 2012. Rafael Bastos. Stand-up comedy de Rafinha Bastos (Casamento). 2006. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=vdMD2jCdWP4> Acesso em: 04 dez. 2012 Robson Nunes. Comedy Central Apresenta: Robson Nunes. Disponível em: <http:// www.youtube.com/watch?v=--eN2B5q2GM>. Acesso em: 01 dez. 2012.
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Resumo Esta pesquisa tem como objetivo suplementar o olhar crítico do professor, formado ou em formação, a respeito das produções literárias africanas em língua portuguesa, a partir do estudo do papel da literatura. É ainda intuito deste trabalho oferecer alternativas críticas de leitura e abordagem do conto produzido em Angola por alguns dos principais nomes do referido cenário literário, como José Luandino Vieira, Arnaldo Santos, Uanhenga Xitu e Agostinho Neto, na tentativa de atender ao previsto na lei 10.639/2003, não deixando reduzir-se a sua apreciação ao exotismo que ainda parece instantâneo e persistente no tocante aos assuntos relacionados ao continente. A pesquisa, amparada pelos pressupostos críticos e teóricos de António Candido (2010), Íris da Costa Amâncio (2008), Antoine Compagnon (2012), Zilá Bernd (2011), et al, entende o conto, como forma narrativa literária que recorta o mundo e apreende momentos de uma sociedade, cultura ou povo. Palavras-chaves: Lei 10.639/2003; Conto angolano; Ensino; Literaturas africanas de língua portuguesa.
O CONTO ANGOLANO - CONTRIBUIÇÃO PARA A APLICAÇÃO DA LEI 10.639/2003 Joelma Gomes dos Santos Cheng de Andrade1 Lindivalda Marta Santos2
INTRODUÇÃO Como é sabido, a Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, tornou obrigatório o trabalho com os conteúdos e temas que dizem respeito à África e sua História e às produções culturais do referido continente, nas escolas de ensino fundamental e médio, públicas e privadas. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, atualizada em 2010, traz, em seu bojo, importantes avanços do ponto de vista do reconhecimento de nossa identidade cultural e da abertura dos horizontes da escola e das relações étnico-raciais como um importante componente para o avanço também nas relações de ensino/ aprendizado. Esta pesquisa manteve, durante sua realização, um diálogo crítico a respeito da referida LDB, tendo em vista a alteração trazida à Lei 9394/96 pela Lei 10.639/2003, já citada, que acrescenta a aquela os artigos 26-A, 79-A e 79-B que estabelecem o seguinte:
1. Doutora em Letras com ênfase em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, é professora de Literaturas africanas de língua portuguesa na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – FACHO. Email: joelmamj@gmail.com. 2. Graduanda em licenciatura em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – FACHO, é orientanda da professora Dra. Joelma Santos na Iniciação Científica, cujo projeto teve este artigo como resultado; e na pesquisa de Trabalho de Conclusão de Curso que discute a concepção de “resistência” e sua apropriação pela expressão literária de William Blake, Odete Semedo e Cruz e Sousa. 271
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Art.26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. §1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. §2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. §3º (VETADO) Art.79-A. (VETADO) Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.
Outro texto também de fundamental importância para o entendimento do que propõe a Lei em questão, e que também foi amplamente discutido durante a realização da pesquisa, e que não podemos deixar de trazer à baila para o que ora se introduz é o Parecer Homologado pelo Conselho Nacional de Educação, aprovado em 10/03/2004, (processo nº 23001.000215/2002-96) tido como Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, e que traz como assunto exatamente as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. O referido Parecer tem a nobre função de explicar e ampliar os temas e recortes que propõe a alteração à LDB. Nas palavras da relatora, a professora doutora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva: O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da Educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura e identidade. Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropo272
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lógicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe à divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – descentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada. É importante salientar que tais políticas têm como meta o direito dos negros se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias, manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. É necessário sublinhar que tais políticas têm, também, como meta o direito dos negros, assim como de todos os cidadãos brasileiros, cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente instaladas, equipadas, orientados por professores qualificados para o ensino das diferentes áreas de conhecimentos; com formação para lidar com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações, sensíveis e capazes de conduzir a reeducação das relações entre diferentes grupos étnico-raciais, ou seja, entre descendentes de africanos, de europeus, de asiáticos e povos indígenas. Estas condições materiais das escolas e de formação de professores são indispensáveis para uma educação de qualidade, para todos, assim como o é o reconhecimento e valorização da história, cultura e identidade dos descendentes africanos. (2004, p.2-3)
As novas diretrizes e bases curriculares que oferecem as alterações supracitadas são de um ganho social sem medidas, se pensarmos no que verdadeiramente significa a expressão “relações étnico-raciais”. Tendo em vista a pluralidade cultural brasileira, percebe-se como imprescindível um trabalho no tocante às relações e oportunidades de ensino/ aprendizado mais igualitárias. Entretanto, a modificação da lei veio “de baixo para cima”, provocando aquilo que entendemos como um descompasso entre a academia de formação de professores e as escolas. 273
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O atual descompasso entre a formação acadêmica do profissional de educação e o que estabelece a lei é, portanto, algo flagrante na formação dos licenciandos, sobretudo, em Letras, nosso principal campo de atuação. Mesmo tendo a Lei 10.639/2003 já completado mais de dez anos de sua entrada em vigor, é impressionante o desconhecimento e o despreparo do docente do curso Letras e de licenciados das mais diversas áreas de atuação no tocante às contribuições africanas para a composição do tecido cultural brasileiro, e maior ainda é o desconhecimento das produções literárias dos países africanos de língua portuguesa, como Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe. Mesmo já incluindo em sua matriz curricular, no caso de nossa instituição, como obrigatórios, os conteúdos relacionados ao cerne da Lei, a carga horária muito reduzida e ainda pouco satisfatória que oferece a disciplina intitulada “Literaturas africanas de língua portuguesa” não oferece preparo suficiente para aqueles que irão trabalhar com os conteúdos de que trata a Lei em questão. Uma das disciplinas afetadas pela modificação na LDB é a de literatura. O texto legal propõe que sejam inseridos aspectos da produção artística advinda de países africanos como parte do trabalho de conscientização e (re)valorização da cultura negra. As literaturas africanas de língua portuguesa produzidas pelos cinco países já referidos oferecem uma aproximação facilitada pela coincidência linguística existente entre estes e o Brasil. Mas é digno de nota o fato de que muitas outras literaturas advindas de outros países como: Estados unidos, Portugal e Inglaterra já sejam trabalhadas nos cursos de licenciatura em Letras, com cargas horárias maiores e distribuídas por semestres; e sem pretensão pura e simplesmente de valorização cultural desses povos, pois estes já são valorizados naturalmente por suas posições históricas privilegiadas. Uma primeira reflexão proposta por esta pesquisa é a seguinte: qual o papel da literatura na relação leitor/ mundo? Como o texto literário pode ser uma ferramenta crítica para que o professor (em 274
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formação) adquira um preparo (que se manterá em constante aperfeiçoamento ao longo de sua carreira docente, mas) que contribua, em sua futura atuação escolar, para o cumprimento da Lei 10.639/2003, sem reduzir o texto literário a questões simplesmente de ordem raciais que possam acabar desvalorizando (num efeito contrário) o tecido artístico, a capacidade criativa de seus autores? O conto é gênero que por sua extensão e forma, facilita um contato mais aprofundado da com a literatura angolana tendo em vista sua lida em sala de aula com futuros alunos, mas também por ser o gênero mais recorrente, ao lado da poesia, em livros didáticos de níveis escolares dos mais variados. O contato, a partir desta pesquisa, com os contos angolanos inseridos em seus respectivos contextos de produção, e numa leitura em que sejam oferecidos os auxílios de disciplinas acessórias como a História, a Antropologia, a Sociologia e a Geografia, permite que se procure pensar as relações que se podem estabelecer entre literatura e sociedade. Nos contos em questão são problematizadas questões que atravessam o tecido social em diversas perspectivas como: a educação infantil e o papel muitas vezes opressor da escola, as relações entre negros e brancos, a noção de preconceito de cor e de preconceito social, a divisão de classes e as diferenças culturais, entre outras questões de ordem da criação literária e do escritor como intelectual sintonizado com as questões do mundo a sua volta. A pesquisa e sua realização atrelada ao desenvolvimento da Iniciação Científica teve como objetivo suplementar a necessidade do público professor, formado ou em formação, a respeito das produções literárias africanas em língua portuguesa, a partir do estudo do conto angolano, tendo em vista a lida com esse conteúdo, pensando principalmente nas disciplinas de língua portuguesa (na qual se empregam conteúdos de literatura do 6º ao 9º ano junto com a os de língua portuguesa), e, sobretudo, na disciplina de literatura (tendo em vista o ensino médio), observando o previsto na lei 10.639/2003. 275
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Como é sabido, os livros didáticos escolares do ensino regular já apresentam os conteúdos relacionados às novas diretrizes e bases para a educação brasileira. Para levar ao fim e ao cabo a iniciativa deste trabalho, buscamos atingir três fins específicos: 1. apresentar, ler e discutir algumas das principais obras em prosa (contos) dos ficcionistas representativos da produção literária angolana, inserindo-as em seu contexto de produção e tendo à mão fundamentos teóricos e críticos coerentes com sua complexidade artístico-literária; 2. oferecer alternativas de abordagem dessas produções e seus temas em sala de aula, tendo em vista a construção de saberes de base para a promoção de uma aplicação efetiva da lei 10.639/2003 que não reduza as obras literárias a uma simples exotização de seus temas ou militância negra, reconhecendo o talento criativo de seus escritores e dando ênfase a suas propostas estéticas; 3. promover o contato do licenciando em Letras com as produções literárias narrativas angolanas, fornecendo a ele instrumentos críticos e teóricos que consigam repercutir os textos discutidos num nível relevante para o ensino-aprendizado de literatura.
A LITERATURA E SUAS CONTRIBUIÇÕES Considerando cada conto como um movimento de seu ator em direção ao mundo do qual recolhe elementos para a sua criação, partimos também de uma noção mais antiga de conto, ou de estórias. Contando com a postura crítica de Nádia Battella Gotlib (2006), observa-se que: [...] Cada conto traz um compromisso selado com sua origem: a da estória. E com o modo de se contar a estória: é uma forma breve. E com o modo pelo qual se constrói este seu jeito de ser, economizando meios narrativos, mediante contração de impulsos, condensação de recursos, tensão das fibras do narrar.
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Porque são assim construídos, tendem a causar uma unidade de efeito, a flagrar momentos especiais da vida, favorecendo a simetria no uso do repertório dos seus materiais de composição. Além disso, são modos peculiares de uma época da história. E modos peculiares de um autor, que, deste e não de outro modo, organiza a sua estória, como organiza outras, de outros modos, de outros gêneros. Como são também modos peculiares de uma face ou de uma fase da produção deste contista, num tempo determinado, num determinado país. [...] A sequência dos elos que motivam a ocorrência de um conto tende, também, ao desdobramento, em mil e uma contingências. (GOTLIB, 2006, p.82. grifos da autora.)
Tendo o conto, como gênero narrativo, uma relação tão íntima com o autor e com o mundo que o rodeia, é preciso mover ainda uma reflexão sobre o movimento que empreende o autor, empurrando uma recriação de elementos do mundo exterior ao texto, para enfim habitar o texto de modo sui generis. O volume de Literatura e Sociedade, de autoria de Antonio Candido (2010), teoriza a respeito do poder de seleção que cabe ao autor durante seu percurso criativo, mas que cabe apenas ao texto uma sua revelação. Na primeira parte de seus estudos de teoria e história literárias, Candido (2010) discute as relações que se podem estabelecer entre literatura e vida social. O que, para uma proposta de utilização de textos africanos em sala de aula para a conscientização ou valorização dessas literaturas e culturas, soa como de fundamental importância para seu adequado entendimento. Imbuídos do espírito indagante de todo pesquisador, ombreamo-nos a Candido (2010) que também reflete: [...] Qual a influência exercida pelo meio social sobre a obra de arte? Digamos que ela deve ser imediatamente completada por outra: qual a influência exercida pela obra de arte sobre o meio? [...] Algumas das
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tendências mais vivas da estética moderna estão empenhadas em estudar como a obra de arte plasma o meio, cria o seu público e as suas vias de penetração, agindo em sentido inverso ao das influências externas. (CANDIDO, 2010, p. 28-29.)
Ainda com Antonio Candido (2010), foi possível perceber a importância dos fatores socioculturais para uma obra literária, mas também foi possível observar como há fatores mais decisivos e menos decisivos para sua composição. Os mais decisivos, segundo o teórico, “se ligam à estrutura social, aos valores e ideologias, às técnicas de comunicação”. (CANDIDO, 2010, p.31.). Entendendo, portanto, a literatura também como um produto social, mas não a reduzindo a este aspecto, a bibliografia empregada como base para o desenvolvimento desta pesquisa foi cautelosamente eleita, a exemplo de estudos como o de Antoine Compagnon (2012), Literatura Para Quê?, que pensa uma utilidade ou função para o texto literário. O estudo de Compagnon (2012) foi útil para pensarmos “por que ensinar literatura, se queremos entender ou refletir sobre o valor da presença negra e reconhecer as culturas africanas e suas capacidades criativas?” Para o que propõe a lei, como empregar a literatura, no caso, o gênero específico para objeto de análise, o conto? Antoine Compagnon (2012) defende, assim como nós, que: A literatura deve, portanto, ser lida e estudada porque oferece um meio – alguns dirão até mesmo o único – de preservar e transmitir a experiência dos outros, aqueles que estão distantes de nós no espaço e no tempo, ou que diferem de nós por suas condições de vida. Ela nos torna sensíveis ao fato de que os outros são muito diversos e que seus valores se distanciam dos nossos. (COMPAGNON, 2012, p.60.)
Dois volumes de críticos angolanos compõem as bases para esta discussão, a saber: Reflexões Sobre a Cultura Nacional, de Henrique Abranches (1980); e Breve História da Ficção Narrativa nos Últimos 50 Anos, de 278
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Luís Kandjimbo (2013). Ambos são imprescindíveis, tanto como tentativa de um olhar crítico autóctone, como por seu conteúdo per si. Abranches (1980) tece uma abordagem do que se entende por sociedade angolana em sua passagem por fases históricas, desde o que ele chama de período “pré-colonial” (ABRANCHES, 1980, p.11), até suas propostas e estratégias de transformação cultural imbuídas de uma mística tradicional, da noção de negritude. O período em que prolifera o conto, os anos 1950, é entendido por Henrique Abranches (1980) como aquele em que se nota: [...] Já o nacionalismo esclarecido, sustentado pela necessidade e a compreensão das massas, alimentado pelo vigor combativo de novas gerações de intelectuais. Dos anos 50 até a Libertação cresce em Angola uma nova expressão cultural, porta-voz dos interesses das massas nacionais que aspiravam a sacudir dos ombros a exploração colonialista e que de modo nenhum se compraziam com qualquer outra forma de exploração. Foi necessário vencer inúmeras dificuldades neste processo da implantação de uma nova cultura, uma cultura que equacionava os problemas da nossa história social e política como os problemas do povo e da sua luta contra a opressão. Foi necessário ultrapassar barreiras nocivas à unidade nacional revolucionária, barreiras como o tribalismo, o racismo e talvez até muito particularmente, aquilo que se tem chamado o ‘complexo do colonizado’. (ABRANCHES, 1980, p.13. grifos do autor.)
A cultura, e, por conseguinte, a literatura, como elemento desta, surge, como renovada, nutrindo-se de uma raiz política, popular. Nela, sem dúvida alguma se podem flagrar elementos que em algum momento compuseram ou compõem o tecido cultural de um povo, e que se deve, ao olhar e investimento artístico de um escritor, intelectual sintonizado com as questões de seu povo. 279
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A importância do trabalho antes mencionado de autoria de Luís Kandjimbo (2003) está no fato de realizar um levantamento e inserção contextual das principais obras e autores dentre as produções literárias angolanas, e dentre estas, aquelas escolhidas e também já mencionadas com parte integrante do corpus de análise desta pesquisa. O referido professor, também teoriza a respeito dos critérios de nacionalidade e composição de cânone nacional. Do vasto conteúdo de terreno ainda virgem em termos de contato com os alunos vindos do ensino médio para a formação acadêmica e docente na rede privada de ensino, sem nenhum preparo em relação ao grande tema desta pesquisa, foi feita uma seleção nos terrenos da literatura, crítica e teoria que proporcionasse a este professor (em processo) uma formação complementar. Tendo a pluralidade, complexidade e diversidade de expressões culturais, artísticas, literárias que cabem num sintagma como “África”, um outro recorte foi necessário para realização do trabalho de análise. Devido à proximidade em relação à língua que lá se oficializou e devido mesmo aos laços e ligações historicamente estabelecidos entre esta e a nossa nação e identidade nacional, o cenário escolhido foi Angola, e, por conseguinte, a sua produção literária. Em termos de narrativa, foram privilegiadas, nesta pesquisa, as discussões e análises daqueles textos literários que são enquadrados sob o selo de “conto”, tendo em vista alguns dos principais autores que compõem o chamado cânone angolano de produções literárias. A discussão sobre o conto, como narrativa, foi necessária para que se entendessem peculiaridades do gênero dentro do terreno da ficção literária. Valendo-nos de uma metodologia que colocou os textos literários discutidos como ponto de partida e de chegada para os desdobramentos dos temas propostos para discussão, utilizamos também a teoria e a crítica como ferramentas auxiliares, iluminadoras do percurso reflexivo. O primeiro aspecto discutido do texto literário é a sua capacidade de dizer “do mundo” e “sobre o mundo”, tendo como base os pressupostos de 280
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Antonio Candido (2011), teórico e crítico que rediscute aquilo que se denominou pura e simplesmente “sociologia da literatura”. Voltando ainda a Candido (2011), é possível, diante dos objetivos propostos para a pesquisa, perceber como os fatores “externos” a um texto literário, em especial o conto angolano, que compôs o corpus de análise desta pesquisa, são trabalhados por seus escritores, artistas da voz (pois consideramos a dimensão oral do conto angolano) e da palavra, em sua expressão escrita, os transportam para dentro do texto fazendo com que nele, de modo ficcional, se repercutam questões de um povo, de uma cultura, de uma nação, do homem. Nádia Battella Gotlib (2006) propõe o conto como forma narrativa para observarmos o nível de elaboração que foi atingindo a partir dos efeitos propostos por cada artista que a ele se dedicou. Como afirma a teórica: [...] Sob o signo da convivência, a estória [o conto] sempre reuniu pessoas que contam e que ouvem: em sociedades primitivas, sacerdotes e seus discípulos, para transmissão dos mitos e ritos da tribo; nos nossos tempos, em volta da mesa, à hora das refeições, pessoas trazem notícias, trocam ideias e...contam casos. [...] Estórias há de conquistas e de perdas. Estórias que seguem para a frente. Ou para frente retornando. Variam de assuntos e nos modos de contar. Desde quando? Embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e permaneça como hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos, ainda não marcados pela tradição escrita, há fases de evolução dos modos de se contarem estórias. (GOTLIB, 2006, p.5-6).
Teria em Angola o conto uma função também de (re)construção de uma identidade perdida, ligada ao povo, com o intuito de uma espécie de recuperação de uma época remota, a do griot, contador de estórias, ancestral, antecessor dos contistas modernos? Para Zilá Bernd (2011), “uma literatura que se atribui a missão de articular o projeto nacional, de fazer emergir os 281
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mitos fundadores de uma comunidade e de recuperar sua memória coletiva, passa a exercer somente a função sacralizante, unificadora [...]” (p.20). A abordagem da crítica foi útil para percebermos como a ideia de projeto nacional ou cultural unificador de um ideal de nação ou povo se aproxima do que se entende por utopia, já que se faz impossível pensar em homogeneidade quando se tem em mente um país e uma produção tão multifacetada como a dos países africanos, a exemplo do que acontece em Angola. Ainda amparados pelas propostas e abordagens de ensino/aprendizado de literatura de William Roberto Cereja (2005) e Iris Maria da Costa Amâncio (2008), lançamos um olhar investigativo a respeito do conto angolano em sua dimensão didático/pedagógica.
O CONTO ANGOLANO O “modo de contar” angolano tem seus pés fincados na palavra oral e muitos escritores se valem de elementos que acabam por “borrar” as fronteiras entre o oral e escrito. A história das Letras em Angola tem uma ligação íntima com os movimentos de resistência cultural frente ao poderio colonial português. Como se sabe, Angola esteve sob domínio lusitano por cerca de cinco séculos, o que fez com que toda a literatura ali produzida fizesse um movimento de busca de valores e de uma autonomia discursiva, de uma dicção muito própria. De acordo com Laura Cavalcanti Padilha (2007): A segunda metade do século XX vê acirrar-se em Angola um movimento de problematização e resistência cultural pelo qual se procura reafirmar a diferença da angolanidade por tanto tempo marginalizada pelos aparatos ideológicos do colonizador e, naquele momento histórico, pensada como um absoluto. Nesse movimento mais amplo, cabe às produções literárias o papel de difundir e sedimentar essa busca de alteridade na cena simbólica angolana. Articula-se, então uma fala li282
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terária que tenta superar a fragmentação do dilacerado corpo nacional, restabelecendo-se, assim, não uma unidade perdida, já que esta nunca existiu, mas uma espécie de unificação em torno de ideais comuns que movessem a engrenagem da história em outro sentido. [...] Retomando mais detidamente a relação da ficção angolana com a escrita, vê-se que tal relação se mascara, até quase a segunda metade do século XX, sobretudo, pela dependência em relação ao discurso estético do colonizador, contrariamente à ficção que circulava pela voz e se caracterizava pela reafirmação dos valores de origem, sempre colocados na periferia por aquele mesmo colonizador para quem as práticas autóctones significavam uma não-cultura. (2007, p.17-19)
A promoção de uma atmosfera de contato crítico com o conto dos principais ficcionistas angolanos foi realizada por meio de reuniões que se utilizaram de exposições orais e dialogadas, exibição de vídeos e slides, rodas de leitura e discussão, estudos dirigidos, e debates que tiveram como apoio um arsenal crítico e teórico que levou em consideração o universo angolano em sua especificidade. O papel que a literatura assumiu em Angola, como bem explica a crítica supracitada, fez-nos perceber que a literatura pode conter uma espécie de chave do mundo, e, por conseguinte, também do mundo angolano. As análises, como passo fundamental desta pesquisa têm início com uma reflexão a respeito da lei 10.639/3, e ainda, sobre como o artista e a sociedade se inter-relacionam, na constituição de um tecido artístico, para produzir uma literatura que repercute questões do mundo, e, ao mesmo tempo em que forma uma ponte entre universos tão distintos, e acaba proporcionando o contato com aspectos de uma sociedade. A influência do meio social na obra de arte, na medida em que um complementa o outro, uma vez que arte, como literatura, é também um produto social por ser o mecanismo de expressão da sociedade. Existe complementaridade entre a obra de arte e o ambiente que lhes serve de pano de fundo, o externo não apenas exerce um 283
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papel estético, nem pode ser entendido simplesmente como a causa da obra de arte, mas atua como constituinte essencial da obra. Segundo ainda Antonio Candido (2010), deve-se perceber a obra de arte como um todo indissolúvel, fruto de um tecido costurado por características sociais divergentes, porém complementares. O fator social apenas fornece matéria (ambiente, costumes, traços grupais, ideias) que serve de veículo para conduzir a corrente criadora, ou vai além disso e atua na obra determinando aquilo que a torna uma obra de arte? Tendo em mente o conto angolano, em suas diversas manifestações e expressões, refletimos: o que este pode nos proporcionar, tendo-o como ponte, ou ponto de contato com as culturas africanas? Mais especificamente: qual é a influência que o meio social exerce no conto “A fronteira do asfalto”, de Luandino Vieira? Como podemos aprender sobre Angola e sua cultura, a partir de uma narrativa como esta? Torna-se necessário enxergar o fator social como agente da estrutura e não como matéria nem enquadramento, alinhando-o como fator estético, pois uma análise crítica mais profunda na obra de Luandino Vieira nos levará a outros elementos responsáveis pelo aspecto e pelo significado de sua obra. Então, se refletirmos sobre a ficção e a aparente necessidade que o homem tem de narrar o mundo e narrar-se como elemento deste, veremos Luandino como o autor e artista para a estrutura social, narrando o mundo, a si próprio e aos outros como elemento deste. Como tal, ele se torna um comunicante, sua obra e o seu comunicado; e o público o seu comunicando, fazendo fluir uma arte que, é, ao mesmo tempo, de integração (Ricardo, o personagem principal do seu conto tem acentuadas algumas características de determinado grupo social – negro, pobre, etc.) e de diferenciação, a medida, que acentua as diferenças e as peculiaridades entre ele e os outros personagens (Marina era loira de olhos azuis; Ricardo, negro, vivia do outro lado da rua asfaltada onde não havia passeio, mas casas de pau-a-pique e ruas de areia, etc.). Na voz do narrador, 284
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flagra-se o desequilíbrio entre as duas personagens por conta de sua condição e da pressão social que os sufocava: – Que a minha presença em tua casa... no quintal da tua casa, poucas vezes dentro dela!, não estragará os planos da tua família a respeito das tuas relações... Estava a ser cruel. Os olhos azuis de Marina não lhe diziam nada. Mas estava a ser cruel. O som da própria voz fê-lo ver isso. Calou-se subitamente. – Desculpa – disse por fim.
Virou os olhos para o seu mundo. Do outro lado da rua asfaltada não havia passeio. Nem árvores de flores violeta. A terra era vermelha. Piteiras. Casas de pau-a-pique à sombra de mulembas. As ruas de areia eram sinuosas. (VIEIRA, 2007, p.40)
É preciso, porém, compreender que o autor interiorizou e reconstruiu o fator social presente em sua obra, elaborando-o de uma maneira estética diferenciada dentro de sua criação, mas apontar as dimensões sociais de uma obra (referência a lugares, datas, manifestações de determinados grupos presentes na história, etc.), é uma tarefa de rotina, não bastando assim para definir um caráter sociológico de estudo, mas para ajudar a identificar, na obra, a expressão de uma determinada época ou sociedade; no caso do conto “A fronteira do asfalto”, de Luandino Vieira, a expressão social de dois grupos distintos. A narrativa, escrita no início dos anos 1950, na Angola ainda colonial, representa e critica a organização da cidade de Luanda, sua capital, dividida em classes e tons de pele. A presença portuguesa instaura a relação conturbada entre as personagens. Marina, filha de colonos brancos; Ricardo, negro, filho da lavadeira negra que trabalhou muitos anos na casa da mãe da menina. Os dois protagonistas, quando crianças nutriam um convívio livre de redomas e preconceitos de cor e de classe. O conto faz-nos refletir 285
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exatamente sobre a fase transição para a vida adulta e de como esta nos imbui de formas determinadas socialmente por uma estrutura cruel que impõem os mais privilegiados. Marina e Ricardo, apesar do afeto existente entre eles, vivem o dilema da separação, imposto por algo maior, e que eles mesmo não conseguem entender. O fator externo faz parte da estrutura da obra, apesar de não defini-la, assim, pura e simplesmente. Como se sabe, muitos outros fatores que a compõem (ideais do autor, sua perspectiva de mundo e etc), condicionam e motivam, entrelaçando-se para formar um todo em que tudo está tecido num conjunto onde cada coisa vive, tem sua função e atua sobre a outra. O autor cria, e representa experiências de mundo, obviamente, a seu modo. Ele seleciona temas, elementos e os recombina, apresentando algo novo, mas que diz respeito ao mesmo mundo de onde fora “extraído”. A partir de uma das reflexões de Luis Costa Lima (2003) de que o homem é um animal simbólico no tocante a sociedade e seus sistemas de representação, concluímos que nossa inserção num agrupamento social se dá por meio de uma rede de símbolos que, como atmosfera que nos envolve, compõe os nossos sistemas de representação (LIMA, 2003, p.85.) O problema, portanto, estaria em acreditarmos que o simbólico é secundário ao ser humano, quando, na verdade, não há zonas isentas do simbólico e a sociedade respira e transpira representações. Logo, somos levados a crer, como Nelson Goodman (apud ISER, p.44-45.), que criamos mundos novos a partir de mundos velhos, inventando possibilidades para ter acesso ao inacessível, formando um elo entre os mundos em que vivemos e que nos permite nos relacionarmos e entendermos uns aos outros, ligados pelos substratos comuns a todos os homens, um campo de encontros e dispositivos mentais semelhantes, que estaria no plano da linguagem e das potencialidades comuns a todos os seres humanos: a simbolização.
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As ficções, e os contos, como sua extensão, seriam, portanto, reveladores de nossa capacidade criativa de nos reinventarmos numa tentativa infinita de busca de nós mesmos, uma espécie de chave para penetrarmos mundos e realidades impenetráveis, as quais só poderemos experimentar através da ficção que transgride os limites de nossa existência e de nossas realidades. Agostinho Neto, no conto “Náusea”, proporciona uma reflexão a respeito do passado colonial de Angola, a partir de uma construção artística do mar como alegoria que se desdobra em metáforas do sofrimento, do desprezo às coisas da terra angolana, às tradições. A “Náusea” sentida pela personagem do velho João é interpretada pelo seu jovem sobrinho, desconhecedor do passado histórico de Angola, como sinônimo de ressaca de bebedeiras. O mar. A morte. Esta água! Esta água salgada é perdição. O mar vai muito longe, por aí fora. Até tocar o céu. Vai até a América. Por cima, azul, por baixo, muito fundo, negro. Com peixes, monstros que engolem homens, tubarões. O primo Xico tinha morrido sobre o mar quando a canoa se virou ali no mar grande. Morreu a engolir água. E o mar é sempre kalunga. A morte. O mar tinha levado o avô para outros continentes. O trabalho escravo é Kalunga. O inimigo é o mar. [...] A civilização ficou embora ao pé da praia, a viver com Kalunga. E Kalunga não conhece os homens. Não sabe o que o povo sofre. Só sabe fazer sofrer. [...] Abaixou-se para apanhar uma concha colorida. Olhou para Kalunga e sentiu-se mal. Um coisa subia-lhe da barriga ao peito. O cheiro do mar fazia-lhe mal agora. Enjoava. Desviou os olhos de Kalunga. (AGOSTINHO NETO, 1980, p.25-29)
A análise dos contos dos autores anunciados seguiu-se presencialmente durante as reuniões de orientação para a pesquisa, buscando observar a capacidade criativa dos escritores em questão e também o horizonte histórico de suas produções. Tanto Luandino Vieira (2007) como Agostinho Neto (1980) são intelectuais de posições políticas bem definidas no cenário 287
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angolano das lutas de libertação do povo oprimido pelo poderio colonial português. Luandino Vieira esteve à frente de cargos diretivos do partido MPLA – movimento popular pela libertação de Angola, tendo sido preso por acusação de atividades subversivas. Agostinho Neto, mais conhecido como poeta, liderou o partido e levou o país à independência, assumindo o cargo de primeiro presidente de Angola.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da realização da pesquisa, tivemos em mente a construção de uma base de saberes que possibilitasse a aplicação da lei 10.639/2003 nas práticas de ensino-aprendizado de literatura angolana com vista no aspecto principal que propõe a mudança na LDB. O conhecimento de produções literárias da índole das daquelas analisadas e discutidas ao longo da realização desta pesquisa e amparadas por um suporte crítico e teórico adequado proporciona aos estudantes um contato direto com elementos da história do país (do continente africano) que contextualizam a produção literária desvencilhando-a de um olhar exótico ou estereotipado. Atingindo os objetivos propostos no início desta atividade de pesquisa, proporcionamos um contato aprofundado com as produções literárias dos principais contistas angolanos, nos desbruçamos sobre histórias, sem desprezar o fator cultural porque impregnado no texto, mas ainda sem a isso reduzi-lo, pois levamos em consideração a capacidade criativa dos autores, suas propostas estéticas, os movimentos editoriais a que estavam relacionados e o seu horizonte literário de produção. Pensar aspectos das relações sociais, a questão da diferença, elementos das línguas locais, da cultura, da História e da formação de Angola, (do continente africano) através do conto, como gênero literário, é possível, 288
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utilizando-se do apoio de disciplinas acessórias que podem iluminar o texto e permitir que nosso alunado se sinta inserido e valorizado como afrodescendente, sem incorrer em visões estereotipadas, mas num esforço conjunto de respeito à dignidade do homem em sua plenitude.
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Resumo A maternidade é um processo que afeta a mulher não apenas em seus aspectos físicos, mas também em seus movimentos psíquicos. A mulher se vê numa avalanche de mudanças e estas afetam seu psiquismo de distintas formas, podendo haver a instalação de uma depressão ainda durante a gestação, bem como de um estado psicótico. Nesse contexto, a psicose e a maternagem foram estudados pela psicanalise desde seu fundador, o médico vienense Sigmund Freud, até os autores pós-freudianos atuais. Freud, a partir de seus estudos sobre a neurose, conseguiu observar as raízes da psicose, afirmando que, na neurose, um fragmento da realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao passo que, na psicose, a realidade é ignorada, remodelada. O psicótico repudia a realidade e tenta substituí-la pelo mecanismo do delírio e alucinação. No processo de construção da maternagem, o médico e psicanalista britânico Winnicott lança novo olhar, mais preciso e sensível, ao teorizar sobre a mãe suficientemente boa, ou seja, aquela que consegue prover um ambiente acolhedor, e utilizando o recurso do handling e holding. A partir da teoria psicanalítica, este trabalho se propõe a estudar o processo de psicose materna experienciado pela protagonista do filme “O bebê de Rosemary”. A personagem, a partir do momento que descobre sua gravidez, adentra num mundo de terror, acreditando que está inserida em um plano diabólico criado pelo seu marido e um casal de vizinhos. Palavras-chaves: Psicanálise; Cinema; Maternagem; Psicose.
O DILEMA DA MATERNIDADE: DA FANTASIA À PSICOSE Angeli Raquel Raposo Lucena de Farias1 Hermano de França Rodrigues2
INTRODUÇÃO Quando nasce um bebê, nasce uma mãe. Algumas pessoas já ouviram esse velho lema sobre a maternidade, e podemos inferir ainda que um bebê não existe sem uma mãe. Tal afirmação foi colocado pela médico pediatra e psicanalista da Escola Britânica Donald Winnicott, quando ele afirmou que o bebê é parte da relação mãe-bebê, não tem como existir sozinho. A maternagem surge na mulher desde do desejo em ser mãe. Nesse processo cabe os planos que serão feitos sobre a vida do filho, as concepções sobre educação dos filhos, com quem ele deve parecer, como será sua personalidade, etc. Quando se descobre grávida, a mulher passa a idealizar mais veemente os planejamentos sobre o infante. Ocorrem uma avalanche de mudanças, sendo elas, físicas, endócrinas, no sistema familiar, e psicológicas. Algumas vezes pode-se descobrir que existe diferença entre desejar um filho e conceber um filho. A futura mamãe pode sucumbir nessa diferença, adentrando em transtorno psíquicos como uma depressão e, mais ferozmente, numa psicose materna. Nesse contexto, a psicanálise, desde seu primórdio, procurou estudar e compreender o processo materno, a relação mãe-bebê, como também
1. Mestranda do curso de Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). 2. Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba - UFPB 291
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os transtornos psíquicos como a psicose. Compreendendo que o processo materno afeta sobremaneira a psique da mulher, a psicanalise preocupou-se em analisar a psicose materna, entendendo que este é um movimento deveras utilizado pelas mulheres, desde uma psicose “saudável” (o estado de loucura “normal” de Winnicott), até a psicose materna sinalizada pelos delírios e alucinações. Assim, o pai da psicanálise, Sigmund Freud (1856–1939), médico vienense, a partir de seus estudos sobre neurose e suas pacientes histéricas, já se preocupava em compreender o desejo materno e suas consequências. Os psicanalistas pós freudianos, em especial o médico britânico Winnicott, analisou veemente a relação mãe-bebê e todo processo dessa relação. A maternidade e todas as magnitudes que a cerca tem sido um tema largamente discutido no meio psicanalítico Como também, a psicose é um fenômeno amplamente avaliado por Freud e seus seguidores psicanalíticos, dentre eles Lacan e o próprio Winnicott. Diante dessa explanação, esse trabalho irá analisar o processo materno psicótico compreendido pelo viés da psicanálise a partir do seu fundador Freud passando pela compreensão do psicanalista Winnicott. Como amparo para análise, utilizaremos o recurso fílmico a partir da análise da personagem Rosemary no filme norte estadunidense “O Bebê de Rosemary” (Rosemary’s baby, 1968). Nesse filme, a personagem principal que leva o título do filme, é uma mulher de aspecto frágil mas, que de alguma forma, consegue livrar seu filho do mal que a assombra. Mesmo sendo um filho desejado com seu marido, Guy, ela adentra num mundo sombrio da psicose, acreditando que seu marido, um ator medíocre, até então sem sucesso, está envolvido com seus vizinhos, o casal de idosos Roman e Minnie Castevet, numa relação macabra, estando ela gerando o filho do diabo. Guy, narcisista preocupado com sua ascensão profissional, não demonstra grandes expectativas diante a gestação 292
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de Rosemary, mesmo tendo afirmado seu desejo de ser pai algumas vezes, corrobora ainda mais com a insegurança de Rosemary diante do processo materno e todas as modificações que a gestação acarreta, o que faz com que ela adentre cada vez mais na instancia psicótica materna.
MATERNAGEM E SEU PROCESSO PELA PSICANÁLISE Ser mãe é algo que habita nos diálogos contemporâneos. A partir de uma cultura que foi sendo criada, a mulher só estará completa quando ela for mãe. Porém, esse panorama desse amor incondicional e idealizador da família encabeçada pelo amor materno nem sempre se deu como verdade. Até o século XV e XVI, o cenário familiar e os sentimentos de infância e relação materna eram diferentes. Badinter (1987) diz que “cenas de família eram raras, embora houvesse a instituição família propriamente dita, enquanto realidade vivida. Os filhos não eram tratados com cuidados especiais e geralmente enviados a amas-de-leite, mulheres camponesas e pobres que cuidavam destas crianças até certa idade”. Assim, a concepção de mãe devota ao filho, em especial no processo de amamentação, era vista de forma distinta da atual, em que a mulher deve amamentar e se fazer presente desde a ideia de estar gerando seu bebê. Corroborando com tal fato, Martins (2007) diz que com a modernidade, a mulher que não se sente preparada para ser mãe ou que não exerce seu papel social materno são valoradas negativamente ou vista como patologia. Através dos estudos freudianos psicanalíticos, a ideia de um amor materno primitivo é rompido. Com a criação do que Freud chamou de pulsão, o pai da psicanalise coloca os determinantes do indivíduo para além do biológico e do natural. Lacan (1998, pag. 865), definiu a pulsão freudiana como “a pulsão, tal como é construída por Freud a partir da experiência do inconsciente, proíbe ao pensamento psicologizante esse recurso ao instinto 293
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com ele mascara sua ignorância, através de uma suposição de uma moral na natureza”. Assim, para Freud, o sujeito é determinado a partir das dimensões eróticas, mesmo para as necessidades básicas. Dessa forma, diz Freud que os cuidados necessários direcionados ao infante, promovidos primeiramente e primordialmente pela mãe, são permeados por questões pulsionais que são regidas pela via do desejo. Portanto, ao exercer a maternidade, parte da mulher o desejo de cuidar e zelar por ela, direcionando toda sua energia libidinal unicamente aos cuidados e necessidades da criança. A energia pulsional precisa existir na mulher. Os estudos do pai da psicanálise foram, primeiramente, construídos baseado nas pacientes histéricas e o primado do pênis, ou seja, a inveja que a mulher teria do falo masculino. Em seu escrito A sexualidade feminina (1931), o meste vienense afirma que existem três possibilidades de inscrição da mulher no seio cultural e social como sujeito sexual. A primeira possibilidade se trataria da inibição sexual feminina, a segunda seria a ideia de inveja do pênis, e a terceira seria o processo de maternidade. Nessa última condição, o filho seria o falo tão desejado, anteriormente direcionado ao poder de se ter um pênis. Nessa relação, o infante seria como o que falta à mãe, isto é, o falo. Se a mãe deseja o falo, a criança será o falo para satisfazer o desejo materno, colocando o filho no lugar de significante do desejo feminino, deixando-a presa na situação de mãe. A criança, enquanto falo materno, separa a mulher da instancia de uma sexualidade insatisfeita, adentrando nu mundo de gozo “absoluto”, sendo por isto que as mulheres têm o desejo de terem filhos. Porém, essa teoria é posta à prova pelos psicanalistas pós freudianos e contemporâneos, pois entende-se que a mulher é um ser erotizado, narcisado e que exige outras soluções a sua demanda. Reduzir seus desejos a relação mãe-bebê (falo) seria um reducionismo as necessidades femininas.
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Mais adiante, no estudo sobre o narcisismo, no texto “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), ponto fulcral na sua teoria, Freud asseverou que a o caráter afetuoso dos pais diante seus filhos, é na uma forma de reviver e reproduzir seu próprio narcisismo, há tempos abandonado. Assim o filho tem papel de reparar as feridas narcísicas, realizando aquilo que os pais não conseguiram. Assim, as fantasias mais primitivas podem ressurgir diante da presença da geração de um bebê. A gestação impõe a mulher o retorno inconsciente a suas vivencias mais primitivas, seja na relação com a mãe ou com quem exerceu a função materna. Nesse retorno surgem as fantasias em relação a maternagem. Para o bebê é construído um lugar em que estes são o centro de tudo, como nas palavras de Freud, “sua majestade o bebê”. A criança é inscrita numa cadeia simbólica na qual está presente o narcisismo dos pais. A teoria Winnicottiana sobre a relação mãe-bebê e o processo da maternidade talvez seja uma das teorias psicanalíticas que conseguem captar a completude dessa relação. Sua teoria sobre o amor materno faz referência ao que ele denominou de mãe suficientemente boa, caracterizada pela formação do estado da preocupação materna primária. A preocupação materna primária é um estado de fusão entre o bebê e a mãe, onde o bebê não existe sem a mãe, e a mãe não existe sem o bebê. Assim, ele conceituou a preocupação materna primária para se referir a um estado psicológico muito especial da mãe, que a torna sensível às necessidades básicas de seu filho. Tal estado tem início ainda na gestação, sendo acentuado no seu final, estendendo-se até as primeiras semanas ou meses após o parto. Dificilmente as mães o recordam depois que o ultrapassam, sendo que essa lembrança tende a ser reprimida. (ESTEVES, ANTON, PICCINNI, 2011, p. 79)
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Esse procedimento adotado pelas mães se assemelha a uma patologia, o que ele chamou de “loucura normal” sendo um indicativo de salubridade psíquica, possibilitando a mãe de conectar-se a seu filho, adaptando-se de forma sensível as necessidades do infante. Ainda, em relação a mãe suficientemente boa, Winnicott traz que é necessário que seja criado um ambiente apropriado para a chegada e entrada do bebê na vida da mãe e de todo seio familiar. Assim, nos primeiros meses do bebê, a mãe suficientemente boa terá três funções descritas pelo psicanalista, sendo estas: a função de holding (sustentação), handling (manejo) e apresentação de objetos. O holding se caracteriza pela forma como o bebê é sustentado físico e psicologicamente por sua mãe. Ao ser colocado no colo, o bebê precisa sentir segurança de que, por exemplo, não será derrubado. No início do desenvolvimento do bebê, Winnicott fala que está em torno do “segurar”, que envolver o acalentar no colo, segurar com firmeza, aquecer o bebê, etc. (WINNICOTT, 1956). A técnica do handling “é a experiência de contato com diversas partes do corpo; o toque através das mãos cuidadosas da mãe facilitando a formação de uma parceria psicossomática”. (WINNICOTT, 1956). A apresentação de é a ausência necessária da mãe mostrando-se insubstituível, sendo assim apresentado novos objetos ao bebê. Winnicott (1983) diz que uma experiência essencial para a relação do bebê com a mãe e com o mundo, pois a criança conhece o mundo através do que a sua mãe o apresenta, onde está experiência precisa ser fonte de angústia e satisfação, através do vínculo afetivo. Esses três processos servem para maturação do bebê, levando-o a independência necessária para sua sobrevivência. É importante que a mãe compreenda que o bebê precisa atingir essa independência afastando-se
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relativamente dela. Nesse contexto, é importante que a mãe não engolfe seu filho, impossibilitando que ele atinja sua independência e se compreenda como ser distinto de sua mãe. Caso contrário, podemos inferir que essa relação materna está sendo posta por um movimento psicótico realizado pela mãe. A psicose adentra no filho, à medida que a mãe não o permite se reconhecer como outro indivíduo.
PSICOSE Freud determinou três estruturas psíquicas para o indivíduo, sendo: neurose, psicose e perversão. É importante ressaltar que o tema da psicose é tratado por Freud, com base na sua prática com a neurose, tendo como pilar estrutural, o mecanismo do recalque. Freud disse que tanto na neurose como na psicose ocorre o fracasso do eu em acordar as exigências pulsionais relativas a infância. O que difere uma do outro é que a neurose é resultado do conflito entre o eu e o isso, na psicose é o conflito da relação entre o eu e o mundo externo. Como explicação da sentença supracitada, Santos & Oliveira (2012, pag. 77) citam Freud (1924b/1996) assinala que em ambos os casos há uma perda na relação do eu sujeito com a realidade; porém o autor ressalta que os mecanismos e as consequências desse afastamento da realidade são totalmente díspares. Na neurose, o eu, através do recalque, suprime a pulsão oriunda do isso. Assim, o neurótico se distancia de um fragmento da realidade e a particularidade patológica de cada neurose encontra-se nos processos que fornecem uma compensação substitutiva à parte danificada do isso. Esta é a definição do retorno do recalcado mediante o fracasso do recalque, a partir da qual depreendemos o mecanismo dos
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sintomas neuróticos e das demais formações do inconsciente. Na contrapartida do neurótico, que restringe apenas uma parcela da realidade, na psicose ocorre a rejeição radical desta que caracteriza sua estruturação patológica. Por conta da fuga do eu na relação com o mundo externo, há a predominância do isso ou, em outras palavras, do inconsciente, em suas manifestações.
Para Freud, a instancia psicótica é uma doença da defesa do eu para se preservar. O eu expulsa uma ideia intolerável, superinvestida por ele, e assim, separa-se também da realidade externa. Nasio (2011) completa dizendo que, o eu da psicose divide-se em duas partes: uma rejeitada e perdida, e outra que alucina esse pedaço como uma nova realidade. Quando um paciente sofre de alucinações auditivas, a voz que o insulta é um pedaço errante de seu eu. Assim, o processo psicótico começa pela expulsão brutal de um pedaço do eu e culmina em realidade alucinada. Para Freud, a alucinação e o delírio são uma forma de construir uma nova realidade.
ANÁLISE DO FILME O filme conta a história do casal Rosamery e Guy passados na década de 60. Rosemary, mulher devota ao marido, de aspecto frágil, sempre reitera o desejo de ter um filho. Guy, ator de TV e teatro, ainda não atingiu estabilidade profissional, situação que o atormenta frequentemente. O casal decide mudar para esse apartamento, deveras adorado por Rosemary. Ao chegarem iniciam o planejamento de terem um filho. A concepção desse bebê ocorre de forma estranha e dolorosa para Rosemary. Sob efeito de álcool, ela sonha está sendo usada por uma seita, onde será penetrada por um mascarado, acreditando ser ele mandado pelo diabo.
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Desde a concepção do bebê, já se percebe uma personagem fragilizada. A concepção não condiz com a real vontade de se tornarem pais. Guy desdenha do sonho de Rosemary, como em todo decorrer do filme, Guy se mostrará alheio as dores da esposa. Para englobar o transtorno vivido pela personagem, eles são apresentados ao casal vizinho a eles, o Sr. Roman Casevet e Sra. Minnie Casevet, que se demonstram bisbilhoteiros. Guy encanta-se pelo casal, enquanto Rosemary tenta afastar-se. Tal relação assombra mais ainda a insegurança de Rosemary diante seu marido. A relação quase paterna de Roman com Guy, faz-se diante a psique de Rosemary, eu seu marido ponha-se cada vez mais distante. A personagem descobre estar grávida. Ao contar para seu marido, ambos demonstram frieza e distanciamento diante da notícia. Guy preocupa-se mais com o teste que irá fazer do que com a notícia de que será pai pela primeira vez. Vai-se, assim, criando um cenário diabólico na personagem. A amizade de Guy com os vizinhos é fruto de um pacto que seu marido fez com os Casevet (que tem ligação com o diálogo) em troca de fama e sucesso profissional. Essa troca se dará com a entrega de seu filho aos Casevet, haja visto que esse bebê é filho do diabo. Como vimos a maternagem parte do desejo da mulher em idealizar-se como mãe. Ela coloca suas expectativas, medos, sensações e todo seu contexto narcísico. As vivencias mais primitivas do ser serão recapituladas, revividas, reinventadas. A infância ressurge de forma até mesmo feroz, transformando-se num verdadeiro algoz, caso a mulher não saiba controlar-se, conviver e reformular sua vivencias até o presente momento. No caso da maternagem, todos esses percursos são muito delicados, devido as diversas transformações ocorridas.
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Na personagem percebemos que ela tem um contexto muito sofrido diante sua infância. Sua criação junto as freiras na escola são sempre vividas em sonho sob forma de castigo e punição. Seus sonhos são angustiantes, perdidas em alto mar, seguidas por monstros. Percebe-se que o desejo de ser mãe e o querer ser mãe andam em vias distintas. O casal demonstra tal sentença desde o momento em que é anunciada a gestação. Guy demonstra-se sempre preocupado com sua profissão, indagando poucas vezes sobre o estado Rosemary, e como o filho está. Sales (2000) ressalta que quando o filho passa de uma condição imaginária e se faz real com a descoberta de uma gravidez, ocorre uma ambivalência materna entre o desejo e o querer. Muitas vezes ocorre um planejamento da gravidez, mas sem o desejo de ter filho. É nesse quadro de insegurança que a psicose se instaura em Rosemary quando se ver desamparada diante de sua infância, diante seu marido, e agora diante de seu bebê, que é um estrangeiro, diferente do que foi idealizado, sairá do campo da fantasia e adentrará num campo do real.
REFERENCIAS BADINTER, E. O mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987. ESTEVES, C. M.; ANTON, M. C.; PICCININI, C. A. Indicadores da preocupação materna primária na gestação de mães que tiveram parto pré-termo. Psicol. clin., v.23, n.2, p. 75-99. Rio de Janeiro: 2011. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0103-56652011000200006&lng=en&nrm=iso>. FREUD, S. Sobre o narcisismo: uma introdução. Edição standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996. LACAN, J. M-E. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. MARTINS, A. P. V. Vamos criar seu filho: os médicos puericultores e a pedagogia materna do século XX. História, Ciências, Saúde, 15(1), 135-154. 2007.
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SANTOS, T. C. dos; OLIVEIRA, F. L. G. de. Teoria e clínica psicanalítica da psicose em Freud e Lacan. Psicol. Estud., v. 17, n. 1, p. 73-82, Mar. Maringá, 2012. Disponível em: <http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722012000100009&lng=en& nrm=iso>. WINNICOTT, D. Preocupação materna primária. In: Winnicott, D. W. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993. WINNICOTT, D. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983.
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Resumo Neste trabalho investigamos como o jornal O Globo constrói e reconstrói o objeto-de-discurso do governo João Goulart e da tomada do poder pelas Forças Armadas. Para tanto, apoiamo-nos teoricamente na Linguística de Texto, utilizando o conceito de referenciação, segundo os trabalhos de Mondada e Dubois (1995), Apothéloz e Reichelir-Béguelin (1995), Koch (2004) e Koch & Marcuschi (1998). Nosso corpus é constituído por dois editoriais publicados por O Globo. O primeiro, veiculado em 02 de abril de 1964, quando à primeira hora, O Globo manifestou explícito apoio ao golpe de Estado e o segundo, em 31 de agosto de 2013, quase 50 anos depois, O Globo decidiu fazer mea culpa, considerando um erro o apoio dado ao golpe militar, tornando público este posicionamento por meio do editorial “1964”. Os resultados nos sugerem que a revisão do apoio de O Globo à ditadura se trata de um discurso a contragosto em razão da persistência de termos como “intervenção dos militares” e “apoio editorial à ditadura”. Palavras-chaves: Referenciação; Editoriais; Ditadura civil-militar brasileira.
O GLOBO E A DITADURA CIVIL-MILITAR BRASILEIRA: (re)construção de objetos do discurso Flávia Ferreira da Silva Rocha1
INTRODUÇÃO Investigamos neste trabalho como O Globo constrói/reconstrói o processo de referenciação da tomada do poder pelas Forças Armadas com o golpe militar de 1964. Confrontamos as escolhas feitas pelo jornal em dois momentos históricos diferentes e mesmo opostos: o primeiro, quando, em 2 de abril de 1964, o veículo de comunicação publica o editorial “Ressurge a Democracia”, associando-se de forma incondicional ao golpe; o segundo, quando em agosto de 2013, publica o editorial “1964”, reconhecendo que se solidarizar à tomada do poder pelos militares foi um erro. Vale salientar que o primeiro editorial veio a público poucos dias após a intervenção militar e que o segundo foi publicado a menos de um ano de fazer meio século de instalação do golpe e quando o Brasil foi varrido por uma onda de protestos que em última instância exigia, embora por via difusa, um revisionismo do papel exercido pelas diversas instituições do país, quer públicas, quer privadas. Filiamo-nos ao ponto de vista de que a língua não significa o mundo de maneira objetiva, como se fosse um espelho da realidade. Assim, ao contrário do que defende a Semântica Formal, adotamos a visão segundo a qual o texto é constituído não por objetos-do-mundo, mas por objetos-de-
1. Mestra em Linguística pela UFPE. E-mail: flaviafsr7@yahoo.com.br 303
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-discurso. Estabelecemos que a realidade não é anterior à sua construção discursiva. Isso não equivale a dizer que o mundo das coisas e dos fenômenos não exista, mas a que a realidade é constituída pela linguagem, que também é constituída pela realidade. Fundamentados teoricamente em Mondada & Dubois (1995), Apothéloz & Reichelir-Béguelin (1995), Koch (2004) e Koch &Marcuschi (1998), procuramos evidenciar as nominalizações escolhidas e por que numa ocasião foram feitas uma e não outra escolha. Do ponto de vista organizacional, este estudo apresenta dois momentos: o primeiro, uma breve exposição da perspectiva teórica adotada nesta investigação e o segundo a análise do corpus.
Objetos-do-discurso vs. Objetos-do-mundo Adotamos neste trabalho o ponto de vista segundo o qual a condição de existência da língua é a própria existência de indivíduos historicamente situados que a utilizem. Como afirma Koch (2004: p. 56/57), “Em última análise, a língua não existe fora dos sujeitos sociais que a falam e fora dos eventos discursivos nos quais eles intervêm (...)”. Também seguimos o entendimento de que a língua não refere diretamente os objetos do mundo, numa relação de espelho, como advoga a Semântica Formal. Bem ao contrário, as entidades que os sujeitos designam por meio de expressões nominais em processos de (re)categorização são objetos discursivos, e não objetos do mundo (MONDADA & DUBOIS: 1995). De acordo com Apothéloz & Reichler-Béguelin (1995), “(...) os chamados “objetos-do-discurso” não preexistem “naturalmente” à atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, mas devem ser construídos como produtos – fundamentalmente culturais – desta atividade”.
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Portanto, ao identificarmos o processo de referenciação presente nos editoriais “Ressurge a democracia” e “1964”, estamos identificando categorias construídas por um sujeito falante da língua em um contexto social, político e ideológico dado, e não categorias naturais, que preexistissem à discursivização. A usurpação do poder pelos militares é um fato do mundo objetivo, da realidade. Mas a discursivização desse fato, nominalizando-o como “usurpação”, “tomada”, “assunção” ou “exercício”, é um ato de referenciação, um ato discursivo, que não é anterior ao fato do dito mundo objetivo.
Em nome da solidariedade entusiasmada Vamos aqui observar como O Globo constrói dois objetos-de-discurso que são centrais no editorial que chamamos de nº 01, “Ressurge a Democracia”, publicado em 02 de abril de 1964. São eles: o governo de João Goulart e o golpe militar.
Construção do objeto-do-discurso “Regime militar” Já no título do editorial, “Ressurge a Democracia”, o Globo traz para o discurso o objeto ditadura militar caracterizado como movimento que faz renascer a democracia, uma vez que equivale a manchete a algo como “Movimento Militar faz Ressurgir a Democracia”. Ao mesmo tempo, ao discursivizar a tomada do poder pelas Forças Armadas, como uma ação que restaura as liberdades democráticas, de forma sutil, implícita, referencia o governo anterior, constitucional, legitimado pelo voto popular, o governo de João Goulart, como aquele que fez imergir o processo democrático.
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Como discursivamente são construídos os “assassinos de instituições” João Goulart, os integrantes e adeptos de seu governo são trazidos para o discurso como: 1. Os que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina; 2. Governo irresponsável, que insistia em arrastar o Brasil para rumos contrários a sua vocação e tradições; 3. Legalidade garantidora de subversão, escora dos agitadores, anteparo da desordem; 4. Assassinos de instituições; 5. Desviadores do país de seus grandes destinos; 6. Utilizadores do Estado em favor da desordem, da indisciplina, de tudo o que estava levando o país à anarquia e ao comunismo; 7. Causadores de um futuro incerto; 8. Incapazes de apresentar soluções aos problemas; 9. Gerenciadores dos negócios públicos com má-fé, demagogia e insensatez; 10. Preparadores da comunização; 11. O que despreza a disciplina na Marinha; 12. Destituído do direito de ser considerado um símbolo da legalidade, das condições de chefe da nação e comandante dos militares; 13. Sua [de João Goulart] presença e suas palavras; 14. Vinculado aos adversários da democracia e da lei; 15. Autores de ações subversivas; 306
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16. Vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal; 17. Aqueles que fazem manobras com o presidente; 18. Bandidos; 19. Seus líderes [dos bandidos]; 20. Chefes militares [dos bandidos]. Apresentados como encarnação do mal, o presidente João Goulart e seus aliados não preexistem como objetos anteriores ao discurso, mas são discursivamente constituídos pelo processo de referenciação, como observamos abaixo. (1) Graças à decisão e ao heroísmo das Forças Armadas, que obedientes a seus chefes demonstraram a falta de visão dos que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina, o Brasil livrou-se do Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições. (2) Sua presença e suas palavras na reunião realizada no Automóvel Clube, vincularam-no, definitivamente, aos adversários da democracia e da lei. (3) livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal (4) Se os banidos, para intrigarem os brasileiros com seus líderes e com os chefes militares, afirmarem o contrário, estarão mentindo, estarão, como sempre, procurando engodar as massas trabalhadoras, que não lhes devem dar ouvidos.
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Ao trazer para o discurso o governo João Goulart, seus aliados e seguidores, o Globo o faz ideologicamente, como acontece em qualquer processo de referenciação, e com propósitos bem definidos: a demonização desse governo e a louvação dos militares golpistas que acabavam de tomar o poder. Assim, “os que tentavam destruir a hierarquia e a disciplina”, “Governo irresponsável, que insistia em arrastá-lo para rumos contrários à sua vocação e tradições”, “adversários da democracia e da lei”, “vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal” e “bandidos” não correspondem a categorias naturais, senão a um elaborado e complexo processo de referenciação. Noutra perspectiva, outro sujeito, com outro propósito, poderia referir os mesmos objetos como “os que tentavam destruir o autoritarismo”, “Governo sensível, que pretendia levá-lo a novos rumos que fossem ao encontro da igualdade”, “aliados da participação popular”, “defensores da socialização da riqueza” e “revolucionários”.
O discurso constitutivo dos militares redentores De forma oposta, como emissários da redenção, O Globo faz emergir no texto os militares que derrubaram um governo constitucionalmente eleito e usurparam o poder. O jornal define os militares e seus aliados civis como: 1. Patriotas sem vinculação política; 2. Bravos militares; 3. Protetores dos brasileiros contra seus inimigos; 4. Corporações militares; 5. Solicitados pelos anseios nacionais; 6. Libertadores da nação de um amargo fim;
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7. Movimento apartidário; 8. Setores conscientes da vida política brasileira; 9. Aliança dos mais ilustres políticos, dos mais respeitados governadores; 10. Esses líderes civis; 11. Dignos da gratidão [esses líderes] do nosso povo; 12. Movimento vitorioso; 13. Movimento sem dono; 14. Movimento da pátria; 15. Movimento do Regime; 16. Movimento sem oposição a reivindicações populares ou ideias que se enquadrem nos princípios constitucionais e objetivem o bem do povo e o progresso do país; 17. Socorro da Providência Divina; 18. Instrumento de superação da crise sem maiores sofrimentos e luto; 19. Um favor [a intervenção militar] de que devemos ser dignos; Como observamos no exemplo do processo de referenciação no Editorial 01, o que trazemos para o universo textual não são elementos naturais do mundo, com existência anterior ao discurso, mas a discursivização, a construção dos objetos-de-discurso, o que fazemos sempre com critérios ideológicos. É o propósito da ideologia que leva O Globo a não referir, uma vez sequer, a tomada do poder pelos militares como “golpe”, utilizando, em vez disso,“movimento”, conforme vemos nas passagens:
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(5) Este não foi um movimento partidário. Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais. (6) Mas, por isto que nacional, na mais ampla acepção da palavra, o movimento vitorioso não pertence a ninguém. (7) Salvos da comunização que celeremente se preparava, os brasileiros devem agradecer aos bravos militares, que os protegeram de seus inimigos. (8) ... as Forças Armadas chamaram a si a tarefa de restaurar a Nação na integridade de seus direitos, livrando-os do amargo fim que lhe estava reservado pelos vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal.
O conjunto dos militares que deram o golpe de Estado e dos civis que apoiaram a tomada do poder é referido como “patriotas”: (9) Porque souberam unir-se todos os patriotas, independentemente de vinculações políticas, simpatias ou opinião sobre problemas isolados, para salvar o que é essencial: a democracia, a lei e a ordem.
setores conscientes: (10) Dele participaram todos os setores conscientes da vida política brasileira, pois a ninguém escapava o significado das manobras presidenciais.
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ilustres líderes políticos: (11) Aliaram-se os mais ilustres líderes políticos, os mais respeitados Governadores, com o mesmo intuito redentor que animou as Forças Armadas.Setores conscientes da vida política brasileira.
Processo de referenciação a serviço do Mea culpa pelo apoio ao golpe Na iminência dos 50 anos de implantação do golpe militar de 1964, o jornal O Globo revê o apoio incondicional que hipotecou aos militares e civis que derrubaram o governo de João Goulart, admitindo, no Editorial 02, que a decisão foi um erro.
Re-construção do objeto-do-discurso “Regime militar” Se agora outro é o propósito, outras são as escolhas e construções dos elementos discursivos no processo de referenciação. Nós não vamos encontrar ocorrências como “adversários da democracia” ou “bandidos” para João Goulart e seus seguidores, nem “bravos militares” ou “protetores dos brasileiros” para os militares e seus adeptos.
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Uma nova discursivização para João Goulart e seus adeptos No Editorial 02, João Goulart e os apoiadores do governo aparecem como: 1. João Goulart; 2. Jango; 3. O radical João Goulart; 4. Herdeiro do trabalhismo varguista; 5. Comunistas que trabalhavam no jornal. A mudança de opinião do sujeito – O Globo – implica, em relação ao Editorial 01, novas opções de construção/reconstrução dos objetos-de-discurso. É reveladora a referência a João Goulart – e em 4 ocorrências – como “Jango”, seu apelido, portanto uma expressão de discurso mais íntimo, própria de aliados ou simpatizantes, e não de adversário ferrenho. Lembre-se que no Editorial 01 não há nenhuma ocorrência de “Jango”. “O radical João Goulart” e “Herdeiro do trabalhismo varguista” são nominalizações muito suaves se comparadas a “Governo irresponsável”, por exemplo. A nova orientação discursiva, o novo ponto de vista exige uma reconstrução dos objetos-de-discurso, que agora não fala mais um sujeito que deplora o governo de João Goulart e exalta a ditadura militar recém-instaurda, mas um sujeito que faz a revisão, a autocrítica desse ponto de vista, que classifica de equivocado. Também “comunistas que trabalhavam no jornal” não tem o poder depreciativo de “Vermelhos que haviam envolvido o Executivo Federal”.
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Se o objetivo do sujeito é então rever o apoio aberto dado ao golpe militar, a um processo de atenuação das críticas a João Goulart corresponde um processo de juízo mais severo aos militares, o que se expressa pelas nominalizações abaixo: 1. O golpe militar de 1964; 2. Intervenção militar; 3. Intervenção dos militares; 4. Golpe; 5. “Revolução”; 6. Intervenção; 7. “revolução”; 8. O movimento dos militares; 9. Naqueles vinte anos; 10. Intervenção; 11. Revolução; 12. A ditadura de 1964; 13. A ditadura; 14. Ruptura institucional; 15. 1964. Ocorrências da feição de “O golpe militar de 1964”, “Intervenção militar”, “Intervenção dos militares” e “Golpe” presentes no Editorial 02, nas quais aparecem “golpe” e “intervenção” são uma novidade absoluta em confronto com o Editorial 01, que não apresenta nenhum destes termos, onde, bem ao contrário, os militares são trazidos para o discurso como “bravos”, “redentores”.
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Embora o sujeito, o jornal O Globo, manifeste a intenção de rever o apoio incondicionalmente dado, e de forma entusiasta, ao golpe militar, tomando-o por um erro, a construção da referenciação parece indicar que o mea culpa é feito a contragosto. Isso pode ser visto, por exemplo em: (12) Globo apoiou editorialmente o golpe militar de 1964”. (13) O GLOBO, de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares. (14) mais ainda em rupturas institucionais.
O apoio dado pelo jornal O Globo à ditadura é atenuado, modalizado como “apoio editorial”. Foi só editorial? Ainda aparece “intervenção dos militares” e “rupturas institucionais” que velam a noção de golpe.
CONSIDERAÇÕES FINAIS Pudemos observar na análise de objetos-de-discurso no Editorial 01, “Ressurge a Democracia”, e no Editorial 02, “1964”, como já citado anteriormente, que “os objetos-de-discurso” não preexistem “naturalmente” à atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, mas devem ser concebidos como produtos – fundamentalmente culturais – dessa atividade” (APOTHÉLOZ & REICHELER-BÉGUELIN: 1995, p. 228) Mostram os dados o que afirma na mesma linha Mondada, ao postular que a referenciação “...não privilegia a relação entre as palavras e as
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coisas, mas a relação intersubjetiva e social no seio do qual as versões do mundo são publicamente elaboradas, avaliadas em termos de adequação às finalidades práticas e às ações em curso dos enunciadores (2001, p. 9) Vimos que, em decorrência do propósito de dizer, os objetos da realidade “governo João Goulart” e “ditadura militar” são discursivizados de maneira bastante diferentes e até opostas, quando confrontados o Editorial 01 com o Editorial 02. Para exemplo:
Objeto da realidade
Referenciação no Editorial 01
Referenciação no Editorial 02
Governo João Goulart
“bandidos” “governo irresponsável”
“herdeiro do trabalhismo varguista”
Golpe militar
“libertadores da nação” “Providência Divina”
“Ditadura” “Golpe”
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Foi este mesmo exame do processo de construção da referenciação que nos permitiu inferir que a revisão do apoio de O Globo à ditadura, revisão esta expressa no Editorial 02, trata-se de um discurso a contragosto em razão da persistência de termos como “intervenção dos militares” e “apoio editorial à ditadura”. Conclímos com Koch, Os objetos-de-discurso não se confundem com a realidade extralingüística, mas (re)constroem-na no próprio processo de interação. Ou seja: a realidade é construída, mantida e alterada não somente pela forma como nomeamos o mundo, mas acima de tudo, pela forma como, sociocognitivamente, interagimos com ele: interpretamos e construímos nossos mundos pro meio da interação com o entorno físico, social e cultural. Assim sendo, defendemos a tese de que o discurso constrói aquilo a que faz remissão, ao mesmo tempo que é tributário dessa construção. (2004, p. 61)
REFERÊNCIAS APOTHÉLOZ, D. Papel e funcionamento da anáfora na dinâmica textual. In: CAVALCANTE, M. M.; RODRIGUES, B. B.; CIULLA, A. (orgs.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003. KOCH, I. V. Introdução à linguística de texto. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ______. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2005. KOCH, I. V. & MARCUSCHI. L. A. Processos de referenciação na produção discursiva. DELTA, v. 14, número especial, p. 169-190, 1998. MARCUSCHI. L. A. Atos de referenciação na interação face a face. Cadernos de estudos linguísticos, n. 41, jul./dez. 2001, pp. 37-54. ______. A construção do mobiliário do mundo e da mente: linguagem, cultura e categorização. In: ______. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna. Série Dispersos, p. 124-145. 2007.
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MONDADA, L. & DUBOIS, D. Construção dos objetos de discurso e categorização: uma abordagem dos processos de referenciação. In: Mônica Magalhães Cavalcante, Bernadete Biasi Rodrigues, Alena Ciulla (org.). Referenciação. São Paulo: Contexto, 2013. SALOMÃO, M. M. Razão, realismo e verdade: o que nos ensina o estudo sociocognitivo da referência. In: Anna Christina Bentes; Edwiges Maria Morato; Ingedore Villaça Koch (orgs.) Referenciação e discurso. Contexto, São Paulo, 2005, pp. 151-168.
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Resumo Muitos fatores contribuem para a construção da “realidade” sociocognitiva; os textos, enquanto realidade comunicativa humana, e os gêneros, que se adaptam às mais diversas situações de interlocução, refletem uma sociedade que é modelada. Assim, por terem grande força e abrangência, as piadas de negros e loiras fortalecem e/ou reforçam exclusões e traços discriminatórios, que podem ser facilmente visualizados. Na construção do referencial teórico e como suporte para análise, alguns autores foram utilizados: Marcuschi (2002); Morato (2007); Pereira (2002); Guimarães (2002); Sawaia (1999); Van Dijk (1994), entre outros. Serão aqui apresentados dois tópicos principais: “Estereótipos e exclusão- mecanismos socais” e “As figuras do texto piadístico - a loira e o negro”, bem com a análise de um corpus piadístico, objetivando mostrar a não inocência do gênero piada, que sendo propagado geração após geração, detentor de “neutralidade” aparente e funcionado através de uma máscara de “divertimento”, auxiliam, na verdade, na manutenção da exclusão de minorias ou no empreendimento a atitudes racistas, em uma dada realidade social. Palavras-chaves: Construções sociocognitivas; Piadas; Estereotipia; Minorias; Exclusão.
O TEXTO PIADÍSTICO E A EXCLUSÃO SOCIAL através das construções esterEotípicas: o negro e a loira Ana Carolina A. de Barros1
INTRODUÇÃO Os conhecimentos são permeados pelas crenças, pelos valores construídos socialmente, e que, julgados como corretos, estão sensíveis a ideologias que podem fazer sobressaltar preconceitos através também da discursivização. Facilmente, no entanto, são “evidenciados” os preconceitos historicamente difundidos, encontrados em alguns textos, tais como as piadas, que são, por vezes, tidas como inocentes, pois resultam em risos. O “simples” ato de contar piada e o riso ganham, aqui, outra significação, pois funcionam como mecanismos excludentes e destituidores de acessos sociais a algumas minorias, como mulheres e negros. Assim, fica mais claramente aproximada como as percepções de mundo e as criações humanas são atravessadas pela esfera cultural que muito influi na fabricação da realidade (MARCUSCHI,2002) e sobre a qual cada indivíduo interage, reconhece-se, elabora sua identidade de pertencimento, o “nós”, em contraponto ao reconhecimento e elaboração da imagem dos “outros”. Compreender os textos que transitam no ambiente social, sua estruturação, os gêneros textuais sobre os quais se configuram, bem como as imagens transmitidas, é não só perceber o meio em que se vive, mas também que, para uma efetiva interação, faz-se necessário dispor de conhecimentos e compartilhamento de contextos sóciohistóricos similares.
1. Mestranda em Letras (Linguística) pelo PPGL/UFPE. E-mail: barros.anaalmeida@gmail. 319
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Com intuito de entender algumas das construções socialmente elaboradas, é que este trabalho foi desenvolvido. Procurou-se, para tanto, associar a funcionalidade de um gênero textual piada, enquanto um dos tipos relativamente estáveis de enunciados (BAKHTIN [1979] 1992) e o seu “comportamento”, veículo cooperador na perpetuação de exclusões entre os diversos grupos que constituem a sociedade, através da análise realizada em 6 (seis) exemplares piadísticos.
ESTEREÓTIPOS E EXCLUSÃO: MECANISMOS SOCIAIS As sociedades procuram construir traços ou rótulos capazes de caracterizar os sujeitos, que são percebidos, inicialmente, como “estranhos”, adotam-se, perante eles, posturas de desconfiança que geram distanciamentos e minimizam os contatos sociais diretos. Surgem, assim, os estereótipos como um meio que define simbolicamente as percepções que se tem a respeito do outro, imprimindo-lhes rigidez e caráter generalizador, e que não deixa, no entanto, de se configurar como uma maneira de “compreender o mundo”, ao imprimir sentidos às experiências entre sujeitos através das atividades discursivas. Etimologicamente o vocábulo “estereótipo” vem da junção das palavras gregas stereos (rígido) e túpos (traço), e/ou ainda, também, pode estar associado, historicamente, a uma peça de datilografia, um molde, que tinha como função reproduzir uma mesma impressão centenas de vezes. A postura rígida propagada pelo estereótipo tem “amparo” na necessidade humana em organizar informações existentes no mundo, de retratar os outros grupos humanos, considerando a imensa diversidade e heterogenia social, marcando, por assim dizer,“um esforço cognitivo no sentido de ordenar e simplificar o mundo, já que a complexidade e heterogeneidade 320
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que o caracteriza termina por dificultar a possibilidade de representá-lo internamente” (PEREIRA, 2002, p.36). Essa categorização é a forma encontrada de compartilhar determinadas crenças e valores que são capazes de tornar coesos os grupos, isto é, mais unificados e com autoimagem positiva, pois há atribuição de características, geralmente, negativizadas dos outros, tidos como díspares daqueles que participam do ingroup. Desse modo, minimizam-se as diferenças intragrupais e maximizam-se as do extragrupo, mas não só, pois formatam os conhecimentos públicos das práticas de linguagem, o que, nos dizeres de Van Dijk (1994, p.1), gerariam os “esquemas sociais que resultam do que as pessoas compartilham com os outros”. Considerando as circunstâncias a serem exploradas neste trabalho, as piadas, percebe-se uma formação estereotipada, em que componentes preconceituosos são projetados; os “outros” são desvalorizados e, a eles, atribuídas injustas e distorcidas representações, mediante uma memória que se acumula socialmente e evidencia estruturas modelares. Preconceitos trabalham com quadros de generalizações e impossibilidades, sem perspectivação de particularidades e/ou a não percepção do “individual”, bem como acontece na configuração dos estereótipos. Atribuição em quadros generalizantes, na maneira de reconhecer e compreender o mundo, são perpassados pela visão da cultura, que orienta os seus membros a desenvolverem determinadas posturas e formas de enxergar seu entorno, a partir, por certo, de uma dimensão social, que abarca, por exemplo, ideologias e atitudes (VAN DIJK, 2001). Os “outros” são sempre inimigos da cultura e da ordem já estabelecidas. As imagens dos sujeitos hostilizados são repassadas por meio da vivência, do pertencimento, da inserção em instituições - família, escola, religião - e contam com um forte aliado: os meios de comunicação em massa que, com grande poder de influência, por divulgar informações e imagens atribuídas 321
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a sujeitos no meio social, participam efetivamente da manutenção dos estereótipos, mas não só, pois deve-se considerar que nesse embate , aponta-se para as construções humanas significadas, já que “toda a empreitada ou ação do sujeito no mundo se inscreve num quadro social, submete-se às regras de gestão histórico-cultural, não é nunca ideologicamente neutra” (MORATO, 2007, p.316). Algumas teorias são responsáveis pelos estudos que envolvem o processo de formação dos estereótipos, duas chamam especial atenção: a concepção sociocultural, afirma serem os estereótipos construídos na observação do comportamento alheio; e, a teoria da identidade social, em que para manter o status e autoestima, percebe-se o outro “deformado”, e mediante os valores do outgroup justificam-se os preconceitos e os estereótipos difundidos na sociedade. Os estereótipos influenciam no comportamento dos sujeitos diante do mundo, bem como o tipo de reação apresentada por ele quando se depara a grupos rotulados; Deux e Levis (1984, apud PEREIRA, 2002, p.116) apontam que os estereótipos “influenciam na evocação da informação armazenada na memória e na maneira pela qual esta irá intervir no julgamento e no comportamento a ser adotado em relação aos membros do grupo estereotipado”. Por haver imagens solidificadas, o contato direto com estes grupos não permite que o memorizado ceda espaço ao “real”, pois age-se com comodismo “[...] as pessoas tendem a resistir às tentativas de modificação na maneira através da qual percebem o mundo externo, dando preferência às informações que são consistentes em suas visões de mundo” (PEREIRA, 2002, p.118), considerando-se, para tudo isso, o papel imprescindível da linguagem, pois é através dela que se “predica, interpreta, representa, influencia, modifica, configura, contingencia, transforma. (MORATO, 2007, p.317) A constituição dos estereótipos envolve diferentes dimensões: plano cognitivo - relação percebedor x alvo (pessoas que se enquadram em uma 322
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determinada categoria, diferenciando-a de outros grupos); plano afetivo – os grupos dos quais não fazemos parte e pouco interagimos são vistos como negativos; plano cultural – leva-se em consideração o aprendido no meio social. Por atribuir valores a determinados grupos, a estereotipia pode caracterizar os excluídos ou as minorias socialmente constituídas, como reflexo de seus elementos culturais e éticos vigentes; Tosta (2003, apud LEAL,2003, p.101) afirma que excluídos são os que ocupam “um espaço negativo da representação social”, e, consequentemente, teriam um lugar de menor destaque e possibilidades de ascensão. Os indivíduos, em situação de exclusão, têm pouquíssimo acesso aos bens materiais e simbólicos, não participam de movimentos e ações privilegiadas socialmente, suas produções não são reconhecidas e valorizadas no ambiente social, muito pelo contrário, há uma excessiva força para impedir a aproximação desses grupos, sendo a exclusão uma forma perversa, encontrada pelo homem, para reforçar a imagem que tem de si próprio, e, consequentemente, do grupo de pertencimento; protegemo-nos diferenciando, rejeitando, excluindo os “fora do padrão” e não permitindo sua integralização, colocando-os fora das margens ou “engavetando-os”, esse é, portanto, um “processo complexo, configurado nas confluências entre o pensar, sentir e agir e as determinações sociais mediadas pela raça, classe, idade e gênero, num movimento dialético entre morte emocional (zero afetivo) e exaltação revolucionária”. (SAWAIA, 1999, p. 110) A ordem capitalista, em algum grau, teria a ver com processos excludentes ou inclusivos, pois, segundo sua própria lógica, as pessoas nasceriam excluídas e ganhariam lugar e representatividade através dos esforços próprios. É importante, por conseguinte, salientar que cada período histórico atribui a certos grupos este caráter, separando-os: “estar fora, ser diferente, não se submeter às normas homogeneizadoras é estar excluído ou ‘empurrado’ para fora” (VERÁS, 1999, apud MAIOLINO, 2005, p.17). 323
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Os excluídos têm apresentado contingentes cada vez maiores; a apartação não se relaciona apenas ao plano social (negros, mulheres, deficientes, homossexuais), mas também atingem a ordem econômica (meninos de rua, desempregados, sem-teto). Não há propriamente uma categoria que seja responsável pelo enquadre de todas as dimensões que segregam e não existe situação absoluta de exclusão, já que em alguma categoria sempre estar-se-á inserido. Assim, as populações ditas “excluídas” fazem parte da sociedade, não estão a ela alheia e alimentam sua cadeia, mas também indicam como os sujeitos explicitam ou “ocultam”, representam e interpretam através da comunicação/discurso as coisas mundanas, e como podem ser percebidas, nas elaborações das rotinas ou das práticas historicamente marcadas, os textos piadísticos, em um processo que “estabilizou” de maneira cruel a figura feminina, através da loira, e os negros, em demandas socialmente “impostas” e perpetuadas, mas significativamente compartilhadas na construção de imagens, caracterizando ideologicamente e negativamente esses atores.
AS FIGURAS DO TEXTO PIADÍSTICO: A LOIRA E O NEGRO É evidente, no meio social, a construção de grupos específicos que são unidos de acordo com algumas características autoatribuídas ou imputadas pelo ambiente no qual os homens transitam. Sejam essas características apresentadas como inatas ou biológicas, de fato, há o perpassar de uma visão fabricada pela sociedade, imbricados de valores culturalmente estabelecidos e confirmados historicamente, o que aponta, sem dúvidas, para a existência de conteúdos/saberes/elaborações compartilhados, associando-se a Marcuschi (2002, p.47), quando ele diz que “ o mundo comunicado é sempre fruto
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de uma ação cognitiva e não de uma identificação de realidades discretas apreendidas diretamente”, há, nesse enquadre, portanto, a configuração de representações sociais dentro de uma dada coletividade, e que estão profundamente veiculadas à condição compartilhada, que é constitutiva, da cognição humana. São gerados, a partir da discursivização e suas formas manifestas, tratamentos variados e representações das minorias, favorecendo, assim, uma caminhada sobre a linha da desigualdade. Tais diferenças, no entanto, sustentariam a própria constituição da sociedade em seus aspectos discriminatórios ao separá-la em blocos e ao negar o acesso, dos bens produzidos socialmente, a esses grupos, refletindo e propagando quadros compostos por dominados e dominantes. Dois grupos, em especial, são de interesse neste trabalho: o primeiro está relacionado à questão de “gênero”, mais especificamente ao papel da mulher e da sua condição sócio-histórica; o segundo envolve aspectos raciais, ligados precisamente ao negro e à sua representatividade. Os dois grupos são, em nossa sociedade, considerados minorias, pois sofrem algum tipo de privação ou estão à margem, tendo encontrado grandes dificuldades em sua trajetória na ocupação de lugares socialmente reconhecidos. As mulheres, ao longo da construção histórica ocidental, foram submetidas a uma série de desvantagens legais, culturais, econômicas, o que as impediu por muito tempo de participarem de modo atuante e com significativo destaque da sociedade. Elas mantiveram-se em relação de subserviência aos homens, não eram, em sua maioria, atuantes economicamente e nem “preparadas” para ganhar evidência no meio cultural, tampouco, bem vistas quando se destacavam, cabendo-lhes exclusivamente as atividades da vida doméstica. Gradativamente, inserem-se à cultura e à sociedade, cresce seu grau de conhecimento e tornam-se mais ativa, porém não menos vítimas de discriminações, preconceitos e falta de reconhecimento. 325
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É possível perceber tais representações preconceituosas, por exemplo, nas piadas, em que não são encontradas apenas as loiras, mas, antes de tudo, mulheres, que viram motivo de chacota, passam a ser objetificadas e, em nada, destacadas pelo intelecto. Assim, a mulher, nas piadas, ganha um status conotativo de cunho sexual, são instrumentalizadas, bastando-lhes os dotes corporais, que satisfaçam os desejos dos homens, além de serem marcadamente (textualmente) evidenciadas como “burras”. Para que essas sinalizações ganhem determinações e “representem” mundos, gera-se a estruturação de conceitos que trazem à tona uma realidade sociocognitiva difundida e densamente propagada entre as mentes, através de um sistema de crenças amplamente compartilhado e apreendido enquanto “valor-verdade”, bem como significado em ambientes discursivos. É o que pode ser observado no exemplo a seguir: Exemplo 12 – Domingo pela manhã, o homem cortava sua grama calmamente quando sua vizinha loira e gostosa caminhou até a caixa de correio, abriu a caixa e fechou com força e voltou furiosa para casa. O homem continuou lá, aparando a grama quando, de repente, a musa voltou. Ela caminhou bufando até a caixa de correio, abriu e socou a caixa e voltou pra casa batendo o pé. Poucos minutos se passam, quando ela aparece novamente. Com o andar impaciente, abre a caixa de correio, xinga, bate a caixa e volta queixosa. O homem, já bastante curioso com a situação, pergunta: - Algo errado, vizinha? Ao que ela responde: - Tudo errado! Aquele meu computador estúpido vive dizendo que minha caixa de correio está cheia!
2. http://www.novomilenio.inf.br/humor/0212h002.htm 326
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Na piada acima, há o apelo para o aspecto corporal feminino. É válido ressaltar, mais uma vez, que a vizinha não é loira apenas, é uma mulher ou um exemplar do gênero feminino, referenciado como “musa” e “gostosa”, e torna-se, nesses moldes, algo apetitoso (“degustável”) como uma “torta”, um “sorvete”, um “pedaço de carne”; assim, logo após ser a “fome” e o “desejo” saciados pelo homem, tornar-se-iam, essas mulheres, dispensáveis. Essas configurações garantem “o controle cognitivo dos agentes que atuam em tais situações”(Van Dijk, 2015, p.57) e cooperam para a existência de uma força/poder que pode ser mostrada no “tom” , estilo da escrita e conteúdo (VAN DIJK, op.cit) discursivizado. Desse modo, é possível, a partir das valorações ali assumidas, seguir um direcionamento que aponta para a “coisificação” feminina e está respaldada por uma “massa silenciosa” que valida este tipo de tratamento, perpetuando, em termos de estereotipia e preconceito, um desrespeito “justificado” a título de “brincadeiras”, autorizado e naturalmente repetido, em que o êxito, através da risada, propaga um tipo de agressão que categoriza e que situa a figura feminina em um patamar de desprestígio e desrespeito. Como poder-se-á observar, logo na sequência, a figura feminina também é animalizada: a ela, não estariam acessíveis ou seriam domináveis mecanismos cognitivos capazes de fazê-la operar em um nível de compreensão que ultrapassasse o sentido primeiro das palavras. Desse modo, as mulheres não conseguiriam transpor, por exemplo, significações-base. O que de fato há é um menosprezo da condição feminina, apontando, por certo, para uma diferenciação de intelecto e capacidades entre mulheres x homens. Uma vez mais, aponta-se não só para uma desfavorecimento da condição intelectual feminina, mas uma legitimação conferida entre gêneros, em uma relação de superioridade x inferioridade, entre aqueles que poderiam, a exemplo do que comentado anteriormente, configurar um recorte que autorizaria a supremacia grupal ou a validação das relações de poder. 327
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É isso que demonstram o exemplo 2 (“tocer”, como apreendido a desejar a vitória: “Tam-pi-nha!!! Tam-pi-nha!!!”) e o exemplo 3, na sequência, em que essa mesma mulher, qualquer mulher, é incapaz de compreender a funcionalidade dos lactobacilos vivos em um determinado alimento e, por isso, faz uso de um chinelo para matá-los; desdenha-se, rir-se e despreza-se desse ator social. Exemplo 23 A loira estava tentando tirar a tampa da Coca-Cola e não conseguia. - Que inferno! O dono do bar explicou: - Você tem que torcer. E a loira, batendo palmas: - Tam-pi-nha!!! Tam-pi-nha!!! Exemplo 34 Por que a loira toma Yakult com o chinelo na mão? R: Pra matar os lactobacilos vivos.
Torna-se perceptível, nessas piadas, a falta do intelecto feminino. Ela seria, por assim dizer, incapaz de receber e agir de maneira adequada ou com alto grau de deficiência ou infelicidade às mensagens as quais está exposta, sendo chamada de “burra”. Em nossa cultura, a remissão feita ao animal atua como uma espécie sinonímia, de modo associativo, ao desprovimento de inteligência ou à irracionalidade, sugerindo através desse tipo de construção, um caminho que levar-nos-ia à seguinte linha de raciocínio
3. http://gigadicas.com/piadas/piada.php?id_cat=24&id=1056 4. http://titiodoni.com.br/piadas/7-loiras/129-por-que-a-loira-toma-yakult-com-o-chinelo-na-mao328
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dedutível: Se a loira representa a mulher e a loira é “burra”, logo a mulher é “burra”. Tomando por empréstimo uma classificação desenvolvida por Guimarães (2002), ter-se-ia a seguinte compreensão, pós-leitura, das piadas relacionadas às loiras.
Enquadres como este, reforçam as seguintes ideias discursivizadas e impregnadas de violência estereotípica sobre a mulher: I) não precisaria ser inteligente, culta para exercer suas “funções ; II) ser “gostosa”/“palatável” é suficiente para desempenhar o papel que a ela lhe caberia, um instrumento de satisfação masculina, a fim de cumprir as demandas como um objeto qualquer. O segundo ator social analisado nas piadas refere-se ao negro, que por muitos séculos, na história brasileira, foi considerado inferior; sua força de trabalho era comparada a dos animais, “ganharam” rótulo de “coisa” e, assim como as mulheres, foram destituídos de intelecto, além de considerados “indignos” para a ocupação de altos e valorizados cargos na nossa comunidade, refletidos, ainda, nas desigualdades, bem como em uma histórica redução de acessos a direitos e chances dentro dos grupos humanos, o que se torna perceptível em uma desigualdade que habita esferas econômicas e sociais (Fonseca, 2003). O racismo, ainda que ocorra de maneira silenciosa e disfarçada, é facilmente identificado nas construções estereotipadas das piadas, na discri329
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minação do “outro”, como é possível verificar nos exemplos que se seguem: Exemplo 45 Quando preto é gente? R: Quando batem na porta do banheiro e ele diz: “tem gente”. Exemplo 56 Qual a diferença entre um preto e uma lata de merda? R: A lata. Exemplo 67 Como se classificam três pretos? R: Joga os três pra cima, o que voar é urubu, o que pendurar é macaco, e o que cair é merda.
Pela representação das piadas, das nomenclaturas, dos termos comparativos conferidos aos negros (“ser gente”, “merda”, “urubu”, “macaco”), há um distanciamento ou destituição da sua humanidade. Assim, de acordo com Perez (2000, p.68), “se negam aos negros atributos e/ou ações sobre as quais existe um consenso aplicável a seres humanos: nascer, comer, ser inteligente”, diz ainda que é vetada a ele aquilo que o assemelha ao homem. O quadro, com base em Guimarães (2002), dá-nos uma dimensão melhor e maior na compreensão e nos tipos de esquemas lançados quando a piada desumanizada e retrógrada entra em cena:
5. http://thehumornegro.blogspot.com.br/2013/07/as-verdadeiras-peadas-de-negro.html 6. http://www.sergeicartoons.com/preto_lata_de_merda/ 7. http://z6.invisionfree.com/Toskenha_Games/ar/t1546.htm 330
O TEXTO PIADÍSTICO E A EXCLUSÃO SOCIAL através das construções esterEotípicas
Existe, por certo e evidentemente acessível e acessado, através do riso racista, exclusor, preconceituoso, o riso da insensibilidade, contrário a movimentos aproximadores. A piada não se trata, portanto, como pôde ser observado, como um texto inocente, mas é veículo de ideologias e auxiliadora na propagação da exclusão de grupos minoritários que compõem o ambiente social. Ela, certamente, situa uma determinada cultura, seus valores e toda uma triste tradição que foi e ainda é exaustivamente multiplicada e replicada no campo dos planos interacionais. Embora Allport (1954, apud VAN DIJK, 2015) faça referência, em seus estudos, às questões raciais que envolvem os negros, é completamente possível e pertinente trazer sua contribuição como valor para o trato com a realidades das duas minorias aqui destacadas, pois há, por certo, uma linha que exalta dominantes x dominados, superiores x inferiores, e um “poder” que “pode ser exercido por meio da violência ou humilhação verbal em relação aos membros de um grupo minoritário” (p.61).
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CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo desde trabalho, observou-se que os textos são um reflexo do meio em que transitam. Através deles, das construções sociocognitivamente elaboradas, é possível verificar os tipos de preconceitos existentes e reforçados em determinados meios sociais; consistem, os preconceitos, na manutenção constante de esforços que objetivam conservar algumas minorias, negros e mulheres, longe das produções culturalmente elaboradas e validadas historicamente, e em uma barreira de ressignificações. Por meio das piadas, são dispensados, aos grupos supracitados, um tratamento humilhante que os faz permanecer em lugares que os destituam de força e voz em meio à sociedade onde circulam. Nos dois casos, a perpetuação de valores que os desumanizam é feita por meio de palavras ou expressões que desqualificam a importância desses dois personagens na constituição da sociedade, configurando-os ou referenciando-os a um recorte sociocultural que prolifera memórias ou enquadres compartilhados em um longo processo interacional, cujo fio parece ininterrupto. Os preconceitos podem atuar ao lado das estereotipias na manutenção constante de esforços que objetivam conservar algumas minorias, negros e mulheres, longe das produções culturalmente elaboradas e validadas historicamente, e em uma barreira de ressignificações para que o poder (das elites simbólicas) aja nas mentes sociais controlando opiniões/crenças/informações para que exerçam, entre os agentes sociais, determinadas ações (VAN DIJK, 2015) Apreende-se, por certo, que as percepções de mundo e as criações humanas são atravessadas pela esfera cultural que muito influi na fabricação da realidade, apontando-se para uma identidade cultural que é habitada por ideias que fazem sobressaltar preconceitos historicamente difundidos,
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e que, assim, encontram nas piadas um riso perverso, que funciona como mecanismo excludente e de desvalorização de minorias.
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Resumo Escrita em 1968, pelo escritor português Camilo Castelo Branco, Amor de Predição é considerada uma das obras emblemáticas do romantismo lusitano. Seu enredo, forjado ao labor da melancolia e da tragédia, narra as desventuras amorosas dos jovens Simão e Teresa, cujos destinos são marcados pela dor, desilusão e morte. A obra, conquanto aproxime-se do clássico shakespeariano, distingue-se deste ao albergar, em seus flancos, a figura da sofrida e abnegada Mariana, personagem que, por amor a Simão, abdica de sua própria alteridade e, com efeito, deixa-se consumir pelo amor, jamais concretizado. Nessa conjuntura idílica, o belo mancebo, mesmo sem amá-la, mantém-na por perto, enraizando-a em suas queixas. Assim, Mariana, aos poucos, definha-se, tal como o seu desejo. Seus atos, embora parecem ingênuos e frágeis, quando vistos pelo prisma romântico, tornam-se grandiosos e heróicos, neutralizando, inclusive, o drama vivido pela protagonista Teresa, que morre doente num convento. Diante disso, numa conexão entre a literatura e a psicanálise de base freudiana, este artigo objetiva analisar o funcionamento melancólico da personagem Mariana, face ao apego extremo a um objeto amado, capaz de sorver-lhe o desejo, o que promove, em termos psíquicos, o trasbordamento de si mesmo. Palavras-chaves: Romantismo; Psicanálise; Morte.
O TRIUNFO DA MORTE: A CRUELDADE NO FEMININO Renata Maria Silva de Souza Hermano de França Rodrigues
INTRODUÇÃO Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, dois jovens de corações abertos para o amor, fazem partes de famílias distintas, que se odeiam devido a um litígio entre elas. Porém, moradores de casas vizinhas, na cidade de Viseu, apaixonam-se e iniciam um namoro silencioso através das janelas de suas casas que são próximas. Desconfiadas, as famílias, tentam de tudo para impedir a união dos amantes. após algumas tentativas, fracassadas, de casar a filha a um primo, o pai de Teresa (Tadeu de Albuquerque) decide interná-la num convento. Simão Botelho, após travar uma luta com os criados do primo de Teresa, continua na casa de um ferreiro que devia favores ao seu pai. Mariana, filha do ferreiro, apaixona-se por Simão, formando um triângulo amoroso. O contato de Simão e Teresa é mantido por meio de cartas, na esperança da mesma ser resgatada do convento, momento onde Baltasar, primo de Teresa, é baleado e, Simão condenado à morte. Após muita insistência, o pai de Botelho - corregedor - usa suas influências e muda a pena para dez anos de degredo na Índia. Durante o embarque, vê Teresa, que morre tuberculosa. Dias depois da viagem, com o barco em mar aberto, doente, Simão acaba por morrer, ao lançar o corpo no mar, Mariana, filha de João da Cruz, o ferreiro, suicida-se lançando ao mar. Como descrito acima, Camilo Castelo Branco sempre traz, em suas novelas, a temática do amor que surge do íntimo dos jovens, onde embriagados 335
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por tal sentimento lutam, sem nenhuma reserva, por suas paixões muito além dos limites de suas próprias forças. Em seus enredos passionais, descortina uma gama de personagens narcísicos, onde só encontram razão de existir diante da subjetividade do amor, com isso, são marcados pela dor, desilusão e morte. Porém, a subjetividade desse amor acarreta sofrimento e infelicidade devido as convenções sociais, em outras palavras, confronta-se com as necessidades sociais, além disso, traz consigo o anseio de reaver o paraíso. Por isso, a purificação desse amor supramundo se dá devido a incapacidade da sua concretude, contudo, a maneira desses personagens amarem é transcendental, embora sua trajetória seja de amargura. A procura da felicidade, seus personagens não se detêm diante de nenhum obstáculo, mas ao contrário do esperado, são desviados para a desgraça, ou seja, para a ruína (morte). À vista disso, sob o prisma da psicanálise, onde Freud descreve a necessidade que alguns indivíduos têm em não se deparar com a perda, porque a perda requer um investimento de energia psíquica que talvez não esteja ao alcance de uso no devido momento, ou talvez, a estrutura psíquica do individuo não suporte lidar com o vazio, discorremos neste artigo o funcionamento melancólico da personagem Mariana, em Amor de Perdição, que aos poucos, definha-se, tal como o seu desejo.
SOBRE O ROMANTISMO EM PORTUGAL Os ideais românticos foram apregoados em 1986, tendo como países difusores a Alemanha, Inglaterra e França, chegando a Portugal, justamente, em um momento bastante conflituoso, onde fatos históricos, que marcara a evolução socioeconômica, estavam ocorrendo: Ideais da Revolução Francesa, Fuga da Família Real para o Brasil em 1808, Revolução Liberal de 1820 no Porto, Guerra Civil Portuguesa e a Independência do Brasil.
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De maneira natural, o romantismo nasce tendo como característica a exaltação do sentimento, a emoção e a genialidade, opondo-se aos clássicos, ou seja, “(...) uma nova escritura substituíra os códigos clássicos em nome da liberdade criadora do sujeito.” (Bosi, 2013, p.101), deixando suas marcas nas questões sociais e políticas. Por estar vinculado à revolução Francesa e à Revolução Industrial, que mudou a história da Europa, o romantismo evidenciou os valores burgueses e contrariou a nobreza com os seus ideais, em outras palavras, a queda da nobreza e a ascensão da burguesia pontuam todo o movimento romântico. Devido a essa relação entre a Revolução e os ideais românticos, o desenvolvimento econômico e social da burguesia serviu como percursor para este fenômeno cultural alicerçado na liberdade de criação e expressão, na ruptura aos padrões preestabelecidos e na supremacia do indivíduo. Além disso, o romantismo em Portugal, assim como em outros países europeus, esteve relacionado da imprensa, que despertara um novo público leitor o burguês. (...) As produções literárias não seguiam padrões clássicos, de ideologia aristocrática, para o qual não existia processo histórico. Para o novo público, tudo é relativo e está em contínua transformação. Não lhe interessavam padrões clássicos, mas a novidade normalmente veiculada pelos jornais. (Abdala, 2007 p. 162).
O romantismo em Portugal começou com a publicação do poema Camões, de João de Almeida Garret, onde o escritor tenta resgatar o passado e o orgulho do povo português, haja vista, que no momento da publicação deste poema, o país encontrava-se sob domínio inglês e enfrentava grandes perturbações políticas. Sendo assim, em Portugal o processo de instauração do romantismo foi lento e incerto, dividindo-se em três gerações. A primeira apresenta in337
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fluências neoclássicas, além de questões históricas e políticas. Entre seus atores, destacam-se Garret, Herculano e Castilho. A segunda é marcada pela autenticidade da expressão romântica, onde os principais autores são: Camilo Castelo Branco (poeta ultrarromâmtico) e Soares de Passos. Por fim, a terceira apresenta espontaneidade lírica e musical, ou seja, é livre dos exageros ultrarromânticos, destacando-se João de Deus com sua poesia e Júlio Dinis com a prosa. Portanto, é possível ressaltar que a paixão, a emoção e a liberdade resumem o processo criativo dos românticos, ou seja; A natureza romântica é expressiva. Ao contrário da natureza árcade. Ela significa e revela. Prefere-se a noite ao dia, pois à luz crua do sol o real impõe-se ao indivíduo, mas é na treva que latejam as forças inconscientes da alma: o sonho, imaginação. (Bosi, 2007. p. 97)
Como dito por Paz: (...) O romantismo foi um movimento literário, mas também foi uma moral, uma erótica e uma política. Se não foi uma religião, foi algo mais que uma estética e uma filosofia: um modo de pensar, sentir, enamorar-se, combater, viajar. Um modo de viver e um modo de morrer. (...) A poesia romântica não foi só uma mudança de estilo e linguagens: foi uma mudança de crenças, e é isto o que a distingue dos movimentos e estilos poéticos do passado. Nem a arte barroca nem o neoclássico foram rupturas do sistema de crenças do Ocidente. (Paz, 1984, p. 63; 83-88)
CAMILO CASTELO BRANCO Camilo Castelo Branco se destacou na segunda geração romântica de Portugal, foi considerado ultrarromântico, mesmo apresentando traços da realidade realista. Usando os folhetins como técnica, relacionou-se com o 338
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novo público leitor, inovando na escrita e na linguagem literária se destacou como criador da novela passional portuguesa, sendo Amor de Perdição sua novela mais importante. Nascido na freguesia dos Mártires, em Lisboa, Portugal, no dia 16 de março de 1825, Camilo escreveu irreverentes crônicas para jornais. Ingressou na Escola de Medicina na cidade do Porto, mas não concluiu o curso, porém dedicou-se à atividade literária, vivendo exclusivamente de seus trabalhos, com isso, recebeu o título de Visconde concedido pelo rei de Portugal, D. Luís I. Ao longo da sua vida passou por vários descontentamentos familiares, o que ocasionou suas convicções ideológicas acerca da desgraça e fatalidade. No amor não foi diferente, porém suas desilusões lhe serviram como inspiração para suas obras. Como dito, pelo Prof. Dr. Luciano Barbosa Justino, no Congresso Internacional de Semiótica e Cultura, realizado na Universidade Federal da Paraíba, “não há como dissociar a vida de um autor de suas obras”, em outras palavras, o caminho percorrido pelo escritor é retratado em suas obras, ou seja, suas construções literárias são construídas a partir do que é vivido/sabido. Além de escrever sobre temas novelescos, Camilo Também retratou em suas obras o cenário dos costumes de Portugal, quase sempre em concordância com as maneiras de ser e sentir do povo português. Ao tornar-se reconhecido nacionalmente como escritor, em 1889, foi homenageado pela Academia de Lisboa. As principais obras de Camilo Castelo Branco foram: Mistérios de Lisboa (1854); Duas épocas na vida (1854); O livro negro do padre Dinis (1855); Vingança (1858); Cartola Ângela (1858); A morta (1860); O romance de um homem rico (1864); Amor de Perdição (1862); Amor de salvação (1864); O olho de vidro (1866); O retrato de Ricardina (1868); A mulher fatal (1870); Doze casamentos felizes (1861); Estrelas funestas (1861); Estrelas propícias (1863); Coração, cabeça e estômago (1862). 339
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Em 01 de junho de 1890, devido a uma depressão, ocasionada por uma doença que lhe cegou, Camilo comete suicídio em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão. Não apenas escritor, mas jornalista, crítico, dramaturgo, historiador, poeta e tradutor, Camilo deixa mais de duzentos e sessenta obras.
ANÁLISE DA PERSONAGEM MARIANA EM AMOR DE PERDIÇÃO Fazem parte do viver humano os conflitos existências oriundos das perdas, ou seja, é inevitável no decurso de nossa vida relacional não enfrentarmos tais situações, haja vista que estamos em constante mudança, em outras palavras, o corpo que muda ante as fases da vida, os amigos que ganhamos e perdemos, as idas e vindas profissionais, os amores que chegam sem pedir licença para ficar e os amores que vão sem dizer adeus, porém, o diferencial estar na estrutura psíquica do sujeito diante dessas perdas. Em vista disso, Klein relata em seus estudos que é normal o sentimento de medo mediante a perda, uma vez que a perda pode ocasionar uma fragmentação do ego, contudo, a reestruturação desse ego é possível, porém, para que isso aconteça é necessário que ocorra uma transformação narcísica do objeto perdido. À vista disso, percebe-se que o ego da personagem Mariana não se reconstrói, pois sua aflição diante da perda é superior, com isso, ela se funde a esse objeto perdido, ou seja, ela se desfaz e perde-se com o objeto amado, embora não saiba o que perdeu. (...) Veio João da Cruz, e a chorar se lastimou de perder a filha, porque a via delirante a falar em forca e a pedir que a matassem primeiro. Agudíssima foi então a dor do acadêmico ao compreender, como instantaneamente lhe fulgurasse a verdade, que Mariana o amava até o extremo de morrer. (Castelo Branco, 1996. p. 91) 340
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Na melancolia não há necessariamente uma morte e sim uma perda inconsciente do objeto de amor, levando o ego a um estado de pobreza da libido... Dessa forma uma perda se transformou na perda do ego. (Freud, 1920, P. 155) Antes de se apaixonar por Simão Botelho, Mariana tinha sua própria personalidade. Desde cedo, ainda menina, já era responsável pelo lar, pois havia ficado órfã de mãe. No decorrer da narrativa vemos os elogios de seu pai ante a essa mulher de fibra, “vales tu mais, rapariga, que quantas fidalgas têm em Viceu.” (Branco, 1996, p. 72) que com grande avidez, “A Mariana... Aquilo é d’a pele de Satanás.” (Branco, 1996, p. 107) manteve seu pai, João da Cruz, livre de confusão “(...) Se não fosse ela, fidalgo, muitas asneira tinha feito.” (Branco, 1996, p.61). Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade, e uma diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição.
Mariana, aos poucos, definha-se, tal como o seu desejo. Suas ações, apesar de inocentes e tênues, quando contempladas pelo viés do romantismo, revertem-se em glória, paralisando, o drama vivido pela protagonista Teresa, que morre doente num convento. Portanto, ao olhar para ela sob as perspectiva psicanalítica vemos que ela sofreu uma fusão objetal, ou seja, fusionou-se a Simão Botelho, em outras palavras, ela sofreu uma diminuição extraordinária de sua auto-estima, um empobrecimento de seu ego em grande escala. No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia, é o próprio ego. O paciente representa seu ego para nós como sendo desprovido de valor, incapaz de qualquer realização e moralmente desprezível; ele se repreende e se envilece, esperando ser expulso e punido. (Freud, 2010). 341
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À medida que Mariana se distancia do luto, ou seja, por não consegui recompor o objeto amado e perdido, ela se despedaça por não consegui se reorganizar, em outras palavras, sucumbe. “Ela perdeu seu amor-próprio e deve ter tido boas razões para tanto,” conforme Freud (2010). Quando eu vir que não lhe sou precisa, acabo com a vida. Cuida que eu ponho muito em me matar? Não tenho ninguém, a minha vida não faz falta a pessoa nenhuma. O senhor Simão pode viver sem mim? Paciência!... Eu é que não posso... (Branco, 1996, p. 119).
CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do olhar psicanalítico sobre a obra Amor de Perdição cabe ressaltar que na melancolia a tristeza perdura por um tempo maior, devido o esfacelamento do “eu”. Haja vista que a perda inconsciente do objeto amado desintegra o ego, em outras palavras, conduz o ego para uma ruína libidinal. Com isso, o sujeito não consegue se reorganizar, assim, gradativamente vai perdendo seus estímulos, tornando-se incapaz de prosseguir, como ocorre com Mariana, que desiste da vida (comete suicídio) por amor a Simão.
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CORREIA, C. V. A representação do fálico narcisista perante a psicologia corporal. Curitiba: Centro Reichiano, 2010. FREITAS, L. L. T. Análise do caráter: uma nova prática, para uma nova teoria. Curitiba: Centro Reichiano, 2011. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. In: Sigmund Freud. Obras completas. Vol. 12. São Paulo: Cia das Letras, 2010. KEHL, M. R. A melancolia em Walter Benjamin e em Freud. Disponível em: http://conti. derhuman.jus.gov.ar/2010/10/mesa-42/khel_mesa_42.pdf. ROCHA, S. Teoria da sexualidade segundo S. Freud. Disponível em: http://www.artesdecura. com.br/REVISTA/Psicoterapia/teoria_sexualidade.htm. ROSSET, S. Formação do caráter: os fatores de encouraçamento. Disponível em: Acesso em: 07.01.2015. SANTANA, A. L. Complexo de Édipo. Disponível em: http://www.infoescola.com/psicologia/ complexo-de-edipo. SIMIONATO, D. M. Sobre a melancolia em Freud. Disponível em: http://www.ufrgs.br/ psicopatologia/wiki/index.php/Sobre_a_Melancolia_em_Freud.
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Resumo A cidade de Belém do São Francisco está localizada no sertão de Pernambuco, às margens do “Velho Chico”1. A maioria de sua população possui descendência africana. No entanto, após a realização de pesquisas, foi constatado que grande parte dos belemitas2 não se reconhece como negra. A hipótese para esta autonegação é, além do sofrimento causado por atitudes preconceituosas, nota-se a falta de referências negras positivas no município. Este trabalho propõe a investigar e registrar a história de pessoas de Belém que cultivem e valorizem suas raízes e tradições étnicas. Neste ensaio-artigo, as pesquisas realizadas são de cunho etnográfico com o auxílio de análises documentais, entrevistas e observações. Esta pesquisa está embasada teoricamente segundo os pressupostos de Campos (2008), Bobbio (1992), Damata (1986), Hampâté Bâ (1981), Munanga (1994), Oliveira (2004) e Laplatine (2003). Foram investigados os usos, a linguagem, a religião e os costumes da família “Silas”. Eles são conhecidos regionalmente devido a sua união familiar e pela preservação da tradição de seus antepassados. Palavras-chaves: União familiar; Identidade; Religião; Cultura negra; Linguagem.
1. O rio São Francisco nasce na Serra da Canastra em Minas Gerais e possui uma extensão de 2800 quilômetros, banhando os estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas. 2. Quem nasce em Belém do São Francisco é chamado de belemita ou belenense.
SILAS: MEMÓRIA, LINGUAGEM E CULTURA AFROBRASILEIRA Ana Valéria Ubaldo da Silva1
INTRODUÇÃO A cidade de Belém do São Francisco, segundo dados do IBGE, possui atualmente cerca de 20.253 habitantes e está situada no sertão de Pernambuco. Belém fica nas proximidades de cidades pernambucanas como: Cabrobó, Floresta, Ibimirim, Tacaratu, Petrolândia; as quais possuem tribos indígenas reconhecidas como Pankararu e Truká; e de cidades baianas como Rodelas e Abaré, com tribos como os Tuxá. O município também fica próximo às cidades pernambucanas de Salgueiro, Custódia, Mirandiba e Itacuruba, com comunidades negras conhecidas nacionalmente como Conceição das Crioulas. Belém possui um arquipélago com aproximadamente 88 ilhas, situadas entre os estados de Pernambuco e Bahia. Durante o período escravista, os negros fugiam do trabalho escravo e desumano nas fazendas e se refugiavam nos quilombos. Na região do Sertão baiano e pernambucano, muitos deles refugiavam-se nas Ilhas do São Francisco. Essa descendência africana é notadamente percebida nas feições e nos costumes dos ilhéus, assim como em grande parte da população urbana de Belém. Segundo a pesquisadora Carla Siqueira Campos, as Ilhas do São Francisco “[...] apontam alguns indícios históricos e a tradição oral das comunidades lá situadas, indicando a região como propícia a presença de escravos fugidos de outras regiões ou vindos para trabalhar nos empreendi-
1. Cursa o Mestrado Profissional em Letras (PROFLETRAS) na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE). E-mail: ana-valéria-20@hotmail.com. 345
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mentos agrícolas e pastoris”. (CAMPOS, 2008, p.3). Porém, após pesquisas realizadas, foi constatado que grande parte da população belemita não se reconhece ou não se identifica como negra. Esta pesquisa visa empreender um ensaio-artigo sob os moldes antropológicos indicados pelo Prof. Dr. Jorge Miranda de Almeida durante o curso de pós-graduação Latu Senso Ética e Educação para uma Cultura de Paz da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). A ideia para a sua realização surgiu de uma inquietação, como professora, ao perceber por meio de observações realizadas no cotidiano escolar ao longo dos anos e posteriormente constatar através de pesquisas, que a maioria dos estudantes entrevistados também não reconhecia ou identificava suas características étnicas. De um número de 150 estudantes, do 6º ao 9º ano do ensino fundamental II e do 1º ao 4º Normal Médio, que participaram da pesquisa, apenas 4% deles reconheceram-se como negros. Os filhos e netos de pessoas negras, não reconheciam a sua etnia e denominavam-se como brancos, amarelos, pardos, morenos claros e escuros, e até foram citadas cores como cor de jambo e cor de canela. Assumir-se negro ainda é um grande empecilho social e psicológico para muitos belemitas. A hipótese para a causa dessa autonegação é, além do sofrimento e limitação das potencialidades causados por atitudes preconceituosas, tais como: apelidos pejorativos, ofensas e xingamentos inferiorizantes relacionados à cor da pele e ao cabelo afro, vivenciadas no cotidiano e reproduzidas nos vários contextos sociais, nota-se a falta de referências negras positivas no município. Pessoas que possam servir de modelo para que a cultura negra seja mais valorizada em Belém do São Francisco. Autodenominar-se negro pode representar diferentes sentidos para cada pessoa. Para alguns, é ter de assumir toda uma carga semântica negativa e estigmatizada do termo, mas para outros, pode representar o reconhecimento e a valorização de toda uma história de lutas e de resistência de um povo. 346
SILAS: MEMÓRIA, LINGUAGEM E CULTURA AFROBRASILEIRA
Diante do problema apresentado, este trabalho tem como objetivo investigar e registrar a história de pessoas no município que cultivem e valorizem suas raízes e tradições étnicas para fomentar e divulgar os valores culturais e sociais da população negra. A identificação da identidade étnica é um elemento decisivo na luta contra a descriminação, o preconceito e na luta pela valorização social. A definição de si (autodefinição) e a definição dos outros (identidade atribuída) têm funções conhecidas: a defesa da unidade do grupo, a proteção do território contra inimigos externos, as manipulações ideológicas por interesses econômicos, políticos, psicológicos, etc. (MUNANGA 1994, p. 177-178)
Assumir-se negro é identificar-se com um conjunto de referenciais sócio-históricos e culturais, característicos das matrizes africanas. As referências étnicas fundamentam a identidade de cada um e são refletidas no modo de agir, se vestir e de se organizar socialmente. A noção identitária de um povo é muito importante para a formação integral do ser humano, para a aquisição de cidadania e para a valorização dos costumes, crenças e raízes. Neste trabalho, as pesquisas produzidas são de cunho etnográfico, para o levantamento e a coleta de dados foram realizadas análises documentais, entrevistas e observações. Este ensaio-artigo está embasado teoricamente segundo os pressupostos de Campos (2008), Bobbio (1992), DaMatta (1986), Hampâté Bâ (1981), Munanga (1994), Oliveira (2004) e Laplatine (2003). Com esta pesquisa espera-se contribuir para evidenciar representações positivas da cultura negra em Belém do São Francisco como forma de contribuir para a diminuição das concepções de inferioridade racial existentes e auxiliar na formação de uma identidade étnica da população.
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Africanos no Brasil Os negros vieram da África (Guiné, Sudão, Nigéria, Angola, Moçambique) para o Brasil forçadamente para atender à necessidade de mão-de-obra barata de trabalho nas lavouras e foram submetidos a um terrível processo de escravização. Durante três séculos e meio eles foram torturados, inferiorizados, massacrados e vendidos como objetos. Eles foram forçados a deixar de lado sua cultura, crenças, valores, língua e costumes originários da África para se adaptar à cultura do povo europeu. Os africanos não eram considerados seres humanos dotados de história e cultura, o reconhecimento desses legados os caracterizaria como seres humanos dotados de direitos, e isso atrapalharia os interesses econômicos europeus no processo de escravização. O negro poderia ser vendido quando e quantas vezes o seu “senhor” desejasse, independentemente do fato de possuir familiares ou não. Mães eram separadas de seus filhos, maridos de suas esposas, isso resultou na separação e dispersão de inúmeros integrantes das famílias africanas. Essa prática de desmembramento familiar gerou a perda dos vínculos afetivos e consanguíneos entre suas etnias, termo conceituado como “grupo social cuja identidade se define pela comunidade de língua, cultura, tradição, monumentos históricos e territórios” (BOBBIO, 1992, p.449). Os escravos fugiam do trabalho forçado nas fazendas e engenhos pernambucanos. Alguns iam para os quilombos e outros escolhiam as ilhas do rio São Francisco, locais afastados que serviam de proteção e resistência à escravidão. Lá viviam da agricultura de subsistência, da pesca e da caça. A partir do surgimento dos quilombos, os negros tiveram as suas primeiras oportunidades, desde que vieram da África, para construir um núcleo familiar fixo, mesmo que de uma forma tão precária e frágil, pois os negros viviam temerosos em meio à insegurança de serem recapturados por seus senhores. Mesmo assim, foi sobre esta base frágil que os descendentes africanos 348
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reconstruíram suas famílias e resgataram o sentimento de pertencimento familiar perdido durante a escravidão. Foi das margens do Rio São Francisco que esse povo extraía os recursos necessários para a sua sobrevivência no sertão em meio à aridez característica das áreas de caatinga composta por árvores xerófilas, arbustos espinhosos e cactáceos.
A Rua dos Silas Para iniciar este trabalho antropológico realizamos entrevistas orais com Maria do Patrocínio (Patu) no dia treze de agosto de 2011, José Teodoro (primogênito de Sila) no dia vinte e um de agosto, João Ubaldo Sobrinho (primogênito de Mª de Sila) em sete de setembro do mesmo ano e Mª Albertina Ubaldo da Silva (Nininha, ex-mulher de João Ubaldo). Nininha nos acompanhou durante todos os processos de realização dos trabalhos para garantir a sequência cronológica dos fatos, a veracidade das informações e um maior acesso aos entrevistados. Sua colaboração foi essencial para a realização deste artigo-ensaio. Mediante audição de relatos orais, pesquisas bibliográficas, análise de fotos e documentos antigos e mediante observações realizadas durante os meses em que foram realizadas as pesquisas, pudemos identificar alguns vestígios étnicos e religiosos característicos, os quais marcam a singularidade dessa família. A família dos “Silas” é conhecida regionalmente devido a sua união familiar. A maioria dos seus integrantes reside ou já residiu em uma mesma rua, oficialmente batizada como Rua Acelina Mª da Conceição, mas popularmente conhecida como “Rua dos Silas”. O nome da rua foi escolhido em homenagem à matriarca dessa família que foi a primeira moradora desse logradouro. O seu apelido era “Sila” e por isso todos os seus descendentes são conhecidos também por essa denominação. Durante a realização desta 349
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pesquisa buscou-se conhecer o máximo possível sobre a origem, as crenças, usos e costumes característicos dessa família. Segundo relatos colhidos, durante entrevistas realizadas nos meses de julho, agosto e setembro de 2011, não há muita precisão sobre a origem de Sila. Sabe-se que quando criança ela trabalhou de doméstica numa fazenda na Bahia. Mesmo após a abolição em 1888, os ex-escravos continuaram a ser explorados nas fazendas trabalhando em troca de comida, teto ou alguns trocados. Em busca de uma vida melhor, seus familiares foram em busca de terras livres para ocupar e chegaram até a Ilha do Meio. Lá, Sila e sua família plantavam e vendiam as hortaliças na feira de Belém que ainda era um povoado. Sila então conheceu Teodoro Moreno da Silva, natural da cidade de Itacuruba em Pernambuco e casou-se com ele. Teodoro e Sila tiveram nove filhos: José Teodoro da Silva (Zé de Sila), Altino Teodoro da Silva (falecido), Mª Ercina Nunes (Mª de Sila, falecida) Teodoro Filho da Silva (Teodorinho, falecido), Mª do Patrocínio da Silva (Patu), Cláudio Teodoro da Silva (falecido), Mª das Dores da Silva (Dora), Josefa Acelina da Silva (Zefinha) e Francisca Acelina da Silva.
Início da Rua dos Silas Na Ilha do Meio, Sila e Teodoro trabalhavam na agricultura e também obtinham alimentos por meio da caça e da pesca. Em 1919, houve uma grande enchente e as águas do rio São Francisco inundaram as ilhas e quase que totalmente o povoado de Belém, obrigando os ribeirinhos a deixar tudo para trás e reconstruir suas casas em partes mais altas. Por isso Sila, o marido e os três filhos nascidos na época: Zé, Altino e Maria deixaram a ilha do Meio para ir morar em Belém do São Francisco. Construíram uma pequena casa na rua Itacuruba bem distante do centro da cidade. A família plantava arroz,
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batata, mandioca e faziam farinha. Criavam e engordavam galinhas e porcos para se alimentar. Teodoro além de agricultor também trabalhou como marchante 2. Segundo Patu nos dias de “[...] sexta e no sábado tinha carne bastante. Porque meu pai era marchante, matava gado, matava boi para os outros e bode para ele.” Era diferente de hoje, pois antes “Tinha quantidade, mas não tinha variedade” (DA SILVA, 2011, p. 4). Em 18 de agosto de 1959, falece Teodoro Moreno deixando Sila e os nove filhos. A pequena casa em que Acelina morava era de taipa3 com chão de barro socado e, quando chovia, tudo desmoronava. Segundo o relato de Zé de Sila, o filho mais velho, isso acontecia porque “o barro não dava liga4” (DA SILVA, 2011, p.1). Na ausência do pai, ao chegar do trabalho na roça, Zé tinha que ajudar sua mãe a reconstruir a casa todas às vezes que chovia. Inconformada com a situação, Sila e seu filho Zé, com muito esforço, conseguem juntar dinheiro para comprar um pequeno terreno em 1961 situado na antiga Rua Rodelas, num local inabitado próximo ao Riachão5. O terreno foi comprado a Beto, escrivão da comarca de Belém do São Francisco. Sila então construiu outra casa de taipa mais resistente para morar com seus filhos. Segundo a lei nº. 270/1996 da Câmara Municipal de Belém do São Francisco que modificou o nome da Rua Rodelas para Acelina Mª da Conceição em 1996, a casa de Sila foi “a 1ª residência construída na referida artéria6”.
2. É a pessoa encarregada de abater os animais nos abatedouros. 3. Parede de construções rústicas, feita de barro (a que se misturam às vezes areia e cal) comprimido numa estrutura entretecida de varas ou taquaras; pau-a-pique: casa de taipa. 4. Boa qualidade, colar, agregar; 5. Antigo córrego, pequeno riacho. 6. Rua. 351
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Nessa época, Belém ainda não possuía água encanada em todas as ruas e várias pessoas tinham de comprar fichas para utilizar a água do chafariz, situado na Rua Rodelas. Também não havia energia elétrica no período e, durante a noite, utilizavam-se candeeiros à base de querosene para iluminar as casas. Os moradores das imediações tomavam banho e pescavam no extinto Riachão7 que cortava a cidade transversalmente desde a Vila da COHAB8 até a Igreja Nossa Senhora do Patrocínio indo desaguar no Rio São Francisco. Nesse riacho, eram encontrados vários peixes como o dourado, que atualmente está em processo de extinção, em várias regiões da Bacia do São Francisco. Segundo relatos de Patu, com o passar do tempo, um a um os filhos foram casando e construindo suas casas na Rua Rodelas com o objetivo de ficarem juntos e não sair de perto de sua mãe. Mª de Sila foi a primeira a construir sua casa do lado esquerdo da casa de Sila, Patu do lado direito, Zé de Sila ao lado da casa de Maria, Altino morava e trabalhava em uma oficina na mesma rua. Dôra, Zefinha e Francisca sempre moraram com a mãe. Teodorinho e Cláudio não chegaram a morar na rua, mas possuíam casas em ruas bem próximas. Atualmente filhos, netos, bisnetos e trinetos, moram ou já moraram em uma mesma rua, a Rua dos “Silas”. Existem cinco casas na Rua Acelina Mª da Conceição e outras oito, situadas em ruas vicinais, habitadas por integrantes de uma mesma família. A ideia de residência é um fato social, totalizante, conforme diria Márcio Mauss. Ou seja, quando falamos da “casa” não estamos nos referindo simplesmente a um local onde dormimos, comemos ou usamos para estar abrigados do vento, do frio ou da chuva. Mas isto sim- estamos referindo a
7. O Riachão devido ao assoreamento cedeu lugar a um canal de esgoto. 8. Conjunto Habitacional. 352
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um espaço profundamente totalizado numa forte moral. Uma dimensão da vida social permeada de valores e realidades múltiplas. [...] Não se trata de um lugar físico, mas de um lugar moral: esfera onde nos realizamos basicamente como seres humanos que tem corpo físico, e também uma dimensão moral e social. Assim, em casa, somos únicos e insubstituíveis. Temos um lugar singular numa teia de relações marcadas por muitas dimensões sociais importantes, como a divisão de sexo e de idade. (MAUSS apud DAMATTA 1981, p.16)
Para os integrantes entrevistados da família “Sila”, o fato da maior parte dos familiares estarem morando em uma mesma rua, a rua dos “Silas”, é motivo de grande orgulho. Isso evidencia a vontade de permanecerem unidos, em contato com os seus, preservando e partilhando os costumes tradicionais familiares ensinados por Acelina. Esse sentimento é expresso nas palavras de Patu, quando se refere à possibilidade de suas irmãs e sobrinhas se mudarem da rua: Estão todas aí e nem vão sair, porque ninguém vai consentir elas fazerem casa pra sair daí, nem Juliana também vai sair da Casa de Maria, vai não! Porque se sair a casa fecha, aí a dor é maior, separa a família, não é não? Deus me livre fechar essas casas, aqui era tão animado! Nessa rua tinha muita gente! A família toda estava aqui, por isso o povo achou que podia chamar a “rua dos Sila”, porque só era Sila mesmo! Só tínhamos nós mesmos e os outros parentes e amigos vinham das casas deles, passavam os domingos por aqui, só dava Sila. (DA SILVA, 2011, p. 8)
Nota-se que para os “Silas” o significado da palavra casa ultrapassa a dimensão material de morada. O afastamento dos parentes representa a possibilidade de perda dos vínculos afetivos e culturais. A permanência
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dos familiares na rua representa para eles a perpetuação dos valores éticos, religiosos e culturais da família.
Costumes e tradições dos Silas A família dos Silas é descendente de africanos, mas pratica o catolicismo tradicional popular9. Suas práticas religiosas antigas foram provavelmente sobrepostas em favor da religião católica. Um traço cultural bem marcante dessa família é o seu caráter coletivo e comunitário. Zé, o filho mais velho de Sila, durante mais de trinta anos foi decurião10 da ordem dos penitentes11 em Belém do São Francisco, seguindo a tradição de seu pai Teodoro. Grande parte de seus filhos e sobrinhos também seguiram essa tradição. Os penitentes, através dos sacrifícios e do
9. No catolicismo popular não encontramos um culto especial para Deus, a não ser quando ele é representado como o Divino Pai Eterno, o Divino espírito Santo, o Senhor Bom Jesus etc. A capela é o espaço sagrado. Construída, quase sempre, em mutirão, é propriedade e objeto de devoção comum. É ali que o povo faz suas rezas, organiza novenas, faz orações e espera o padre, quando ele vem celebrar a missa e dar os sacramentos. Nessa capela, existe a imagem do padroeiro, o santo de maior devoção. Para os devotos, os Santos são aliados do homem, pois são por meio deles que eles têm acesso a Deus. 10. Chefe dos penitentes. 11. Aquele que pratica a penitência através da oração e da autoflagelação. Durante os rituais e peregrinações os penitentes de Belém do São Francisco não podem mostrar o rosto nem ficar de costas para o altar. Eles utilizam capuzes e túnicas pretas com cruz branca. A penitência é representada em “atos como: jejuns, vigílias, peregrinações que os fiéis – ou a Igreja – oferecem à Deus ao Pai Criador, como provas de que estão arrependidos dos seus pecados; praticados dentre os diversos ramos do cristianismo – de diferentes formas – com a finalidade de expiação dos pecados; tendo o significado de um sacrifício pessoal do fiel, pagando um pecado cometido, ou agradecendo uma graça recebida. (...) Antigamente, acreditavam que, com flagelações no próprio corpo, a alma seria libertada. Essa atitude demonstrava que a alma era mais importante do que o corpo humano.” (Wikipédia, 2011) 354
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sofrimento, buscam a purificação e o arrependimento dos pecados durante o período da quaresma.12 A penitência faz parte da cultura dos Silas. Em Claxton (apud OLIVEIRA, 2004, p.3) obtemos o que seria para a UNESCO o conceito de cultura: [...] el conjunto de los rasgos distintivos, espirituales y materiales, intelectuales y afectivos que caracterizan a una sociedad o grupo social. Engloba no solo lãs artes y lãs letras, sino también los modos de vida, los derechos fundamentales del ser humano, los sistemas de valores, lãs tradiciones y lãs creencias.
A cultura influencia os comportamentos individuais e coletivos de um grupo. Ela repercute diretamente na visão de mundo dos indivíduos que a transmitem para seus descendentes que, se não os praticam, ao menos estão conscientes da relevância de tais preceitos. Sila juntamente com suas filhas integrava um grupo de mulheres rezadeiras que durante a semana santa, entoavam cantos de lamúria ao acompanhar a penitência. Com a idade avançada e sua locomoção prejudicada em 1970, Sila não pôde mais acompanhar o grupo com a mesma vitalidade e pediu que suas filhas perpetuassem esse costume. Em 1973, Patu e Zé de
12. A Quaresma – ‘coresma’, como às vezes nos sertões do lugar se pronuncia – serve à espera: quarenta dias para o que há de vir, todos os anos. Provação que atesta a fé, ela é a medida do devoto. A Quaresma torna visível uma qualidade de ser fiel que aos antigos era a regra – os mais velhos lembram com pesar – e que agora é a rara exceção, cada vez mais. Serve para dizer no corpo, na contenção pública dos gestos, na ostentação mansa e persistente do que não se faz ‘nela’, a vontade de submeter o desejo de tudo à norma de preceito. Por isso serve para atestar aos próprios olhos da alma, aos da família, aos dos vizinhos, quem ainda é cristão católico, quem não o é ‘muito’ e quem já não o é. Serve para mostrar quem ‘cumpre’ [...] mas a Quaresma deve ser vivida com intenções e sinais de uma pesarosa espera: um deus que nasceu homem faz muitos anos vai morrer daqui a alguns dias. A Quaresma é uma restrição dos sentidos para que a memória não deixe de lembrar isto [...]. In: BRANDÃO, C.R. A cultura na rua. Campinas, SP: Papirus, 1989. p.121-122. 355
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Sila, decurião dos penitentes na época, passaram a coordenar os trabalhos e celebrações na Capelinha do Deserto Senhor do Bonfim. Tarefa lhes confiada pelo senhor Manuel Jacinto Filho (Manoel Carpina13), fundador dos penitentes em Belém. Na época, a capelinha ainda estava inacabada, Manoel Carpina havia ficado doente e confiou a responsabilidade da continuação da obra aos filhos de Sila. A origem da capelinha é contada por Patu: O dono dela, seu Manoel, recebeu um aviso, de uma santa em sonho, pediu que construísse uma capela, chamasse os homens para rezar, quando eles não pudessem chamassem as mulheres. Ali ele ficou impressionado. No outro dia o mesmo sonho contando com mais detalhes o que devia fazer, deu a metragem, o nome: Capelinha do deserto do Senhor do Bonfim, o altar como devia fazer, colocar o padroeiro Senhor do Bonfim. (DA SILVA, 2011, p.6)
Essa capela deu origem ao bairro do Bom Jesus. Ela foi a primeira construção daquele local. A capelinha é mantida até hoje através de doações e festas religiosas realizadas anualmente em homenagem ao padroeiro Senhor do Bonfim. De acordo com Patu, as doações são arrecadadas por um grupo formado por suas irmãs, sobrinhos, comadres, afilhados, vizinhos e amigos da família, que sai em cortejo pela cidade de Belém do São Francisco entoando cantos antigos e rezas. O Cruzeiro que há vários anos é carregado por Ditão, fiel colaborador dos festejos, vai à frente da multidão até as casas escolhidas. Os moradores que recebem a visita do Cruzeiro seguem o ritual de beijar a cruz e segurá-la, enquanto percorrem os cômodos de suas casas. Os cantos entoados durante
13. Devido ao ofício de carpinteiro; Manuel Jacinto é também o nome de uma escola municipal situada no bairro Bom Jesus. 356
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a mendicância14 não estão escritos em nenhum livro. A letra, o ritmo e a melodia são guardados na memória dos mais velhos e fazem parte da tradição oral passada de pai para filho. As memórias e os rituais estão atrelados às experiências, como afirma Hampâté Bâ: A tradição oral é a grande escola da vida, e todos os seus aspectos são cobertos e afetados por ela. É ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, aprendizado em um ofício, história, entretenimento e recreação [...] Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e da comunidade, a “cultura” africana não é, portanto, algo abstrato que possa ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem. (HAMPÂTÉ BÂ, 1981, p.168)
Para Nininha, que recebe o Cruzeiro em sua casa há mais de vinte anos, o Cruzeiro “é uma representação da presença de Jesus Cristo. Recebê-lo em casa é uma demonstração de fé, respeito e alegria por estar diante da representação do Senhor.” (DA SILVA, 2011, p.11). Aqueles que recebem o Cruzeiro em casa, tradicionalmente fazem doações em dinheiro ou alimentos em prol do tríduo15 do Senhor do Bonfim. A festa inicia-se em 30 de abril e a partir dessa data, diariamente, a população belemita16 é despertada por hinos religiosos transmitidos através de um carro de som acompanhados pela queima de fogos de artifício. Os festejos encerram-se em 3
14. Aos domingos, eles saem pelas casas pedindo donativos para realizar as celebrações do Cruzeiro. 15. Festa com duração de três dias, em que são realizadas orações e celebrações religiosas, em devoção a uma entidade pertencente a qualquer religião ou credo. 16. Pessoa natural de Belém do São Francisco. 357
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de maio, Dia da Santa Cruz, com a realização de uma Missa solene. Nesse dia, as crianças do bairro do Bom Jesus são batizadas e é oferecido um almoço à comunidade com os itens arrecadados durante todo o mês de abril nas visitas do Cruzeiro. Os integrantes do Cruzeiro vestem roupas brancas para preparar e servir a comida. As mulheres usam também lenços brancos na cabeça. Depois de almoçar, a população sai em procissão pelas ruas da cidade acompanhada pela filarmônica Dionon Pires e pela banda de pífano local. O Dia de Nossa Senhora das Dores, em 15 de Setembro; o Dia de Santa Luzia, em 13 de Dezembro; a penitência no período da quaresma e as celebrações da comunidade, no segundo sábado de cada mês, integram o calendário religioso na Capelinha do deserto Senhor do Bonfim.
Características comuns entre os integrantes da Família Os integrantes da família dos “Silas” comungam várias características que possuem raízes africanas, indígenas e nordestinas. Esses costumes são transmitidos de pai para filho. Alguns se perderam com o tempo e com a chegada da modernidade, mas outros são preservados até hoje. As casas são bastante semelhantes entre si. Elas foram construídas em regime de mutirão, onde cada familiar ajudava a construir a casa um do outro. Os quintais dessas casas são bastante amplos e repletos de árvores frutíferas regionais como: cirigueleiras17, laranjeiras e romãzeiras. Nesses locais, também são cultivadas ervas medicinais como: Capim Santo, Erva-Cidreira, Erva-Doce e Malva-santa. Segundo o depoimento de João Ubaldo Sobrinho,
17. Árvore frutífera, fruto ciriguela. Nome científico Spondias purpúrea, é também conhecida como seriguela, ameixa da Espanha, cajá vermelho e jacote. È rica em vitaminas, carboidrato, cálcio. 358
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neto de Sila, sua avó rezava nas crianças utilizando ramos de plantas para curar doenças como espinhela caída, peito aberto, para afastar mau olhado e outras enfermidades. Ela também fazia lambedores18, garrafadas e chás utilizando plantas medicinais “para curar doenças tais como: Canela, limão, Hortelã, Coentro, Umburana19, Boldo e Cabelo de milho”. A alimentação da família, segundo João Ubaldo, continha itens como “Feijão-de-corda20, quiabo, angu21, pirão22, carne-seca, abóbora, pão-de-crueira23, amendoim, mungunzá branco24, arroz-doce, beiju25, pamonha de milho e farinha de mandioca” (SOBRINHO, 2011, p. 11). Décadas atrás, os muros26 das casas eram delimitados por cercas de algaroba27. Os familiares mais antigos possuíam balaios28 distribuídos pelos cômodos da casa, utilizavam potes de barro para armazenar água e mantê-
18. Remédio caseiro bem doce preparados com vários produtos naturais; Xarope. 19. Umburana (Amburana Cearensis) planta aromática de grande porte usada para fazer chás e xaropes. Possui ação anti-inflamatória e é usada no tratamento de doenças pulmonares. 20. Vigna unguiculata, mas pode ser conhecido como feijão-caupi, feijão-de-corda, feijão-fradinho. 21. Polenta; Papa feita com farinha de mandioca ou de milho. 22. Papa de farinha de mandioca feita quando se mistura esta com água ou caldo quente. 23. Cuscuz de farinha de mandioca. 24. Mungunzá doce; Alimento preparado com milho em grão e servido com leite ou leite de coco. 25. Um tipo de bolo feito com a goma da tapioca ou da massa de mandioca assada. 26. Regionalismo: quintais. 27. A algaroba é uma espécie vegetal nativa das regiões áridas e semi-áridas como a África. 28. Cestos trançados de fibras como palha. 359
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-la fresca, e também usavam a cabaça29 como moringa30. Fumavam pitos31, usavam guias32 ou rosários para a proteção do corpo e do espírito, acreditavam em quebranto33 que poderia atingir as crianças pagãs, mas também as crianças batizadas e aos adultos. As mulheres mais antigas, como Patu e Mª de Sila, executavam atividades manuais como bordados em ponto rococó34 e costuras à mão e à máquina com o intuito de vestir seus filhos, sobrinhos e também confeccionavam roupas para vender. Mª de Sila ganhou fama na cidade devido aos belos vestidos de noiva, que produzia de modo artesanal. Elas também preparavam doces, bolos e frutas em conserva para o consumo da família e dos agregados. De fato, na casa ou em casa, somos membros e uma família e de um grupo fechado com fronteiras e limites bem definidos. Seu núcleo é constituído de pessoas que possuem a mesma substância – a mesma carne, o mesmo sangue e consequentemente, as mesmas tendências. Tal substância física se projeta em propriedades e muitas outras coisas comuns. A ideia de um destino em conjunto e de objetos, relações, valores (as chamadas “tradições de família”) que todos do grupo sabem que importa resguardar e preservar. Disso que isso se chamava “tradição”, e é assim que normalmente falamos desses símbolos coletivos que dis-
29. Fruto do cabaceiro. 30. Pequeno recipiente para armazenar água. 31. Cachimbos ou cigarros de palha. 32. Colares ritualísticos e protetores feitos com miçangas. 33. Estado mórbido atribuído pelo mau-olhado. Abatimento, enfraquecimento, prostração, fraqueza. 34. Utilizado em Bordado e Costura é o nome dado a uma espécie de rosinha feita de fitilho ou em bordado, em ponto de canutilho, usada como enfeite de roupa infantil, de roupa branca feminina etc. 360
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tinguem uma residência, dando-lhe certo estilo e certa maneira de ser e estar [...]. (DAMATTA, 1986, p.16-17)
A família “Sila” é muito conhecida no cenário social belemita, não somente pela preservação dos costumes religiosos, mas também pelo espírito coletivo, pacífico e solidário no cuidado com o outro. Valores esses que tradicionalmente são ensinados aos mais jovens. É bastante comum notar nas mulheres da família um apurado instinto maternal e protetor. São mulheres de muita fibra, que na ausência de seus maridos, assumem o papel de chefes de família. Isso ficou evidenciado nos relatos orais colhidos em entrevistas, quando elas descreviam suas práticas cotidianas: o modo como educavam e sustentavam os filhos, cuidavam dos parentes mais idosos ou doentes e o seu engajamento em atividades comunitárias religiosas. Seguindo a tradição familiar, os padrinhos e madrinhas durante o batismo são encarregados de proteger e ajudar seus afilhados, na presença ou na falta dos pais até o final da vida. Para a família Sila, são considerados parentes além dos filhos, netos, primos, tios e outros que possuem laços consanguíneos, também os afilhados. Todos estes devem obediência e respeito aos mais velhos. O respeito às tradições é expresso através da benção diária. Os jovens são ensinados desde crianças a pedir a benção aos mais velhos, sejam eles parentes ou apenas amigos da família. Nessa família, segundo Nininha “antigamente a benção era pedida de joelhos. Isso reflete o respeito pela cultura, tradição e sabedoria das pessoas mais antigas e a preocupação pelo bem-estar espiritual dos mais novos.” (DA SILVA, 2011, p. 11). Nesse ritual, os jovens devem beijar a mão dos mais velhos e, posteriormente, os mais velhos beijam a mão dos mais novos, como um sinal de benção concedida. O gesto do beijo na mão, acompanhado das palavras “Deus lhe abençoe”, expressam o desejo sincero por uma vida abençoada e próspera para as futuras gerações.” 361
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A cultura é o conjunto dos comportamentos, saberes e saber-fazer característicos de um grupo humano ou de uma sociedade dada, sendo essas atividades adquiridas através de um processo de aprendizagem, e transmitida ao conjunto de seus membros. LAPLATINE (2003, p.96).
CONCLUSÃO Essas pessoas marcaram o seu lugar na história, mesmo com o estigma herdado do tempo da escravidão e todas as formas de preconceito sofridas, eles preservaram a sua cultura e sua identidade, permeadas por traços negros, africanos e brasileiros. A memória e a valorização da cultura negra não podem permanecer escamoteadas nos livros e registros oficiais. A história da família “Sila”, um grupo familiar unido e com tradições religiosas tão marcantes no cenário cultural belemita, após a realização deste trabalho está registrada, eternizada e servirá como referência para os jovens de hoje, para estudos posteriores e para as futuras gerações. Os valores que esse grupo transmite a seus descendentes são raridade nos dias atuais. Valores afetivos, éticos, sociais, religiosos e comportamentais que os distinguem e os particularizam dentre os demais indivíduos da sociedade. O homem deixa sua marca no meio em que vive. O fenômeno da cultura é responsável por caracterizá-lo, por demarcá-lo, mas no momento em que esses valores comportamentais e saberes não são aprendidos pelas gerações mais novas, eles podem se perder no tempo e serem apagados da memória. Eles se vão juntamente com os mais velhos. Daí a relevância do registro documental antropológico.
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Resumo O presente artigo tem como objetivo apresentar a dramaturgia de Vinícius de Moraes, analisar um recorte específico dos textos dramáticos do autor, relacionando-os com o contexto do teatro moderno brasileiro. De maneira específica, mostrar que o escritor carioca, ainda que se reinventando a cada nova etapa de sua existência poética, se mostra – através de seu teatro - um legítimo continuador das propostas do grupo espiritualista moderno do qual fez parte, nas primeiras décadas do século passado. Fundamentado principalmente pelos estudos de Northrop Frye, em Anatomia da Crítica (2013); Sábato Magaldi, Moderna Dramaturgia Brasileira (2005); Carlos Augusto Calil, Teatro em Versos (1995) e Décio de Almeida Prado, O Teatro Brasileiro Moderno (2009). Quanto a sua metodologia, o estudo revela e analisa, nos textos selecionados, as ideias neossimbolistas do grupo de pensadores das revistas A Ordem e Festa. Grupo do qual, Vinícius de Moraes é o único a escrever sistematicamente para o teatro. Palavras-chaves: Vinícius de Moraes; Teatro; Modernidade; Espiritualidade e Simbolismo.
TEATRO EM VERSO: O ato contínuo da corrente espiritualista moderna na dramaturgia de Vinícius de Moraes Glauco Cunha Cazé1
INTRODUÇÃO Marcus Vinícius da Cruz de Melo Moraes (1913-1980), comumente cortejado como poeta, compositor e músico, dedicou-se à feitura de textos dramáticos com um propósito bem definido: produzir um teatro em versos2. Ainda em 1927, um pouco antes, portanto, de seu livro de estreia na poesia, O Caminho para a Distância (1933), Vinícius de Moraes escreveu o texto teatral Os Três Amores, uma imitação de A Ceia dos Cardeais (1902), de Júlio Dantas. A partir de então, sua produção dramatúrgica passa a ser construída ao sabor de intermitências pontuais que - seja pelo volume de compromissos que a função de diplomata reclamava, seja por um verdadeiro variar de paixões vivenciadas ao longo de sua trajetória - truncaram em alguns momentos (em outros instigaram) seus exercícios literários mais promissores. Vinícius de Moraes escreveu dezessete peças teatrais3. Seis textos completos e onze incompletos. Desses seis textos completos, quatro subiram
1. Doutorando em Letras – Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. Professor da Faculdade Joaquim Nabuco. E-mail: glaucocaze@gmail.com. 2. “Em primeiro lugar sou poeta. Todas as minhas outras atividades artísticas decorrem do fato de que sou poeta antes de tudo.” Vinícius de Moraes, em entrevista ao Le Bulletin Du Festival International de Cannes, em 17 de maio de 1966. (MORAES, 1995, p.09). 3. Considerando os registros sobre o escritor e sua obra, catalogados pela Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, 1999. 365
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efetivamente aos palcos. Muitos dos textos incompletos registram apenas o tema, o título e os diálogos iniciais, sendo compostos, em sua totalidade, por poucas páginas datilografadas ou manuscritas sobre a história a ser interpretada. Fazem parte de sua produção para o teatro, logo em seguida ao Os Três Amores, os textos, Cordélia e o Peregrino (1936); Orfeu da Conceição (1956); Procura-se uma Rosa (1960/61); As Feras: chacina em Barros Filho (1961); Pobre Menina Rica (1963/65)4; Ópera do Nordeste (adaptação musical de Dom Quixote) tragédia musical em dois atos5, com canções do próprio Vinícius e de Baden Powell; além de outros projetos em dramaturgia que por motivos diversos foram interrompidos, a exemplo de Gilda e Ela; Uma Rosa nas Trevas (tragédia); Três Mulheres; História de Maggy; O Gigante sentado no penico (tragicomédia); Blim ou as aventuras de um playboy marciano na terra; A Perna Ortopédica; As Moreninhas (adaptação no plural do célebre romance de Joaquim Manuel de Macedo); Ganga-Zumba (tragédia lírica) e uma adaptação de O Pequeno Príncipe, de Saint-Exupéry6. Seu exercício teatral de maior sucesso é, notadamente, Orfeu da Conceição (1956), premiado no Concurso de Teatro do IV centenário da cidade de São Paulo e o único a vivenciar uma temporada de relativo sucesso, tornando-se a obra-prima do teatro viniciano. De uma fortuna crítica ainda aquém de suas potencialidades, a dramaturgia de Vinícius de Moraes revela em primeiro plano a presença imperiosa
4. Comédia musical incompleta (parceria com Carlos Lyra). 5. Original datilografado e incompleto. 6. Os projetos incompletos não aparecem, necessariamente, em ordem cronológica de produção. Alguns são escritos no intervalo entre um e outro texto completo, portanto, não representam uma ordem de escrita posterior a Pobre menina rica (1963/65). 366
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do poeta em textos onde o verso se faz majoritário. No teatro de Vinícius, o dramaturgo é forjado pelo poeta. Nos textos que escreveu para o palco, a forma fixa, a métrica regular e o esquema de rimas bem marcado, dividem espaço com o verso livre e com a prosa poetizada, em diálogos intensamente subjetivos. Em Orfeu da Conceição, por exemplo, um soneto monostrófico com versos decassílabos declamados pelo Corifeu inicia a mítica história de Orfeu e Eurídice, contada em formato clássico das grandes tragédias gregas. CORIFEU: São demais os perigos desta vida Para quem tem paixão, principalmente Quando uma lua surge de repente E se deixa no céu, como esquecida. E se ao luar que atua desvairado Vem se unir uma música qualquer Aí então é preciso ter cuidado Porque deve andar perto uma mulher Deve andar perto uma mulher que é feita De música, luar e sentimento E que a vida não quer de tão perfeita Uma mulher que é como a própria lua: Tão linda que só espalha sofrimento Tão cheia de pudor que vive nua (MORAES, 1995, p.56)
Este acrescentamento lírico e esta preocupação estética, formal, que invadem os versos e mesmo a mencionada prosa poética de seus textos teatrais, vêm de uma necessidade primária para o escritor: “A poesia é tão vital para mim que ela chega a ser o retrato de minha vida. Portanto, julgar minha poesia seria julgar minha vida. E eu me considero um ser tão imperfeito” (apud CASTELLO, 1994, p.16). Em verdade, música e poesia confundem-se
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com sua figura humana, tornando-se uma marca pessoal; e em seu teatro, uma interface entre o autor e suas personagens, uma necessidade. Northrop Frye, em seus escritos para Anatomia da Crítica (2013), vai chamar esta marca pessoal de estilo. Segundo Frye, no estilo percebe-se a voz do próprio autor na internalização da voz de muitas de suas personagens. “A concepção de estilo baseia-se no fato de que cada escritor possui seu próprio ritmo, tão distintivo quanto sua caligrafia [...]” (FRYE, 2013, p.423). O gênero dramático se apresenta, ao jovem escritor de ainda catorze anos, em 1927, como uma necessidade de exteriorização de sentimentos e de prática literária. Em Os Três Amores, Vinícius de Moraes procura se desculpar por eventuais fragilidades narrativas, quando a próprio punho, no rodapé de uma das sete folhas datilografadas do texto, confessa: “Foi feito com idade de 14 anos. Peço, pois, ao leitor, ser bondoso, comigo.”
DESENVOLVIMENTO Teatro Brasileiro: Vinícius e o recorte moderno Convencionou-se atribuir dois momentos distintos à vida do teatro brasileiro: um antes e um depois da montagem de Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, em 1943. Com Vestido de Noiva “o que víamos no palco, pela primeira vez, em todo o seu esplendor, era essa coisa misteriosa chamada encenação, de que tanto se falava na Europa” (PRADO, 2009, p.40). Décio de Almeida Prado afirma ainda que o ciclo heroico do amadorismo encerra-se em 1948, com a estreia não menos rumorosa de Hamlet (Shakespeare), apresentado pelo Teatro do Estudante do Brasil. E mais: “a consolidação do que poderíamos chamar de novo profissionalismo veio em 1948 com a criação do Teatro Brasileiro de Comédia” (PRADO, 2009, p.43). 368
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Estes antes e depois que centralizam Nelson Rodrigues na cena teatral do país, podem ser assim entendidos: a) o teatro como contribuição dramática, embora comercial e de foco na figura do primeiro ator (antes de Nelson); e, b) a encenação, a montagem, o resultado final de todo um conjunto, o espetáculo como arte (depois de Nelson). No primeiro momento, ainda e naturalmente sem a participação de Vinícius de Moraes, o teatro que se fazia no Brasil era essencialmente um teatro voltado para lógicas financeiras e o entretenimento. Os artistas envolvidos nas montagens nacionais, via de regra, eram Portugueses, ou oriundos de algum outro país europeu. Um teatro de imitação da natureza, de mercantilização e aburguesamento da arte, como vai pontuar o então crítico teatral Hermilo Borba Filho em textos escritos para a coluna Fora de Cena, do jornal recifense Folha da Manhã, nos idos de 1947/487. As peças eram pensadas e escritas para atores específicos (o primeiro ator), que no auge de seus protagonismos se davam ao luxo de declinar, sem hesitação, papéis a eles atribuídos. No segundo momento, com as ideias iconoclastas da Semana de Arte Moderna de 1922, a cena teatral brasileira, ainda que sem a participação direta de um dramaturgo já revestido das ideias revolucionárias desta chamada primeira fase do modernismo no Brasil, começa a vivenciar uma nova realidade; embora a realização efetiva e programática de um teatro moderno, somente se dê pelas décadas de 1960, uma vez que os custos de produção para espetáculos teatrais era alto e demandava uma logística de grande porte para o momento vivenciado logo após a semana de arte moderna. De qualquer maneira, é o início de uma nova etapa, tanto para os profissionais do teatro, quanto para o público, que passava agora por um processo de transformação significativo.
7. Consoante Luís Augusto da Veiga Pessoa Reis (2009). 369
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Para salvar o teatro, urgia inundar-lhe as bases, atribuir-lhe outros adjetivos, propor ao público – um público que se tinha de formar – um novo pacto: o do teatro enquanto arte, não enquanto divertimento popular. [...] Tarefa que, por necessidade lógica e histórica, só poderia ser levada avante por pessoas que não pertencessem aos quadros do teatro comercial. (PRADO, 2009, p.38)
Comprometido com esta nova mentalidade artística de então, o teatro brasileiro deixava de ser cada vez menos comércio, para ser, plasticamente, cada vez mais arte. O comando escapava das mãos do primeiro ator, acostumado que estava na escolha de um repertório que fosse propício à sua carreira, para untar-se às mãos do encenador, que, de início, precisou conter a vaidade de cada importante intérprete da época. É neste recorte de transposição a uma nova cena teatral do país, que Vinícius de Moraes debuta como um dramaturgo de textos que se perfilam em obediência canônica a uma intensa subjetividade poética, espiritual e neorromântica. A combinação dessas características no teatro de Vinícius é ainda anterior a propagação espiritualista do segundo tempo moderno, e em nada correlata ao contexto de agitação panfletária, incisiva, vivenciado quando da escrita do texto Os três amores, em 1927. Gabriel: Uma mulher e tanto? Jorge: Uma mulher capaz de seduzir um Santo! [...] Havia no meu corpo torrentes de paixão, Um imbecil, eu fui, porém, era impossível. Eu tinha dentro de mim uma volúpia incrível, Agarrei-a em meus braços, beijei-lhe então a boca, Com um desespero lascivo e uma paixão louca. (MORAES, 1927, p.03 Fundação Casa de Rui Barbosa) 370
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No texto, em que o jovem dramaturgo apresenta os personagens Jorge (que amou uma mulher que o abandonou), Arthur (que amou uma mulher que a morte levou) e Gabriel (que não amou ninguém) confabulando sobre a presença ou ausência do amor em suas vidas; percebe-se, como no excerto destacado acima, o impulso neorromântico nas referências à paixão, no culto à mulher idealizada e no apreço à entrega total e absoluta ao sentimento amoroso, embora por estratégias narrativas ainda imaturas, como na opção por rimas simplórias e versos indolentes, por demais dramáticos e já plenamente condenados pelo ideal moderno de poesia que se garganteava pós-semana.
O grupo espiritualista: a ordem e festa Passada a efervescência da Semana de Arte Moderna, onde os pensadores de arte se uniram para, de forma aguerrida, enfrentar a estranheza e a reação do grande público e dos intelectuais conservadores – daí ser tratada de fase heroica e combativa esta primeira etapa do modernismo no Brasil -, a pluralidade de ideias passa a ser agora discutida por grupos distintos que se organizam, ora por ideias afins, ora por bifurcações temáticas diversas. A segunda fase do modernismo brasileiro, que tem início pela década de 30, revela certa tranquilidade no fazer artístico, uma vez que o caráter de enfrentamento do primeiro momento já não reclamava urgência, por já estar, o ideal modernista, devidamente estabelecido. A poesia do período produzia textos de inquietação filosófica e religiosa, ao mesmo tempo em que a prosa alargava a sua área de interesse para incluir preocupações novas de ordem política, social, econômica e regional. A poesia vai, então, universalizar o discurso, ao passo que a prosa vai regionalizar sua temática. Em seu estudo sobre Literatura e Sociedade, quando analisando a fase crítica,
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pouco criadora, embora muito engenhosa das produções literárias atuais8, Antonio Candido lembra que Em poesia, as melhores vozes ainda nos vêm de antes, como a de Henriqueta Lisboa (Flor da morte, 1949) ou Vinícius de Moraes9 (Poemas, sonetos e baladas, 1946), para não citar Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, cujos primeiros livros são de 1930, ou Manuel Bandeira, pré-modernista e modernista de primeira hora. (CANDIDO, 2006, p.135)
A referência a Vinícius de Moraes e a sua poesia neste traço de tempo literário, é também reforçada por Alfredo Bosi, em História concisa da literatura brasileira (2006). Entre 1930 e 1945/50, grosso modo, o panorama literário apresentava, em primeiro plano, a ficção regionalista, o ensaísmo social e o aprofundamento da lírica moderna no seu ritmo oscilante entre o fechamento e a abertura do eu à sociedade e à natureza (Drummond, Murilo, Jorge de Lima, Vinícius, Schmidt, Henriqueta Lisboa, Cecília Meireles, Emílio Moura...)” (BOSI, 2006, p.386)
Os grupos formados ainda na primeira fase, através dos manifestos e revistas, são ampliados e se estabelecem em regiões distintas do país. Segundo Domício Proença Filho, em seu Estilos de época na literatura (2013), os grupos modernistas surgidos após a Semana podem ser assim relacionados: corrente dinamista (Rio de Janeiro), corrente primitivista (São Paulo), corrente
8. Considerando o período de escrita e publicação dos ensaios para o livro Literatura e Sociedade. 9. Grifo nosso. 372
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nacionalista (São Paulo), corrente desvairista (descentralizada), corrente do sentimentalismo intimista e esteticista (descentralizada), corrente regionalista (Recife/Nordeste) e corrente espiritualista (Rio de Janeiro). A corrente espiritualista tinha como algumas de suas principais características, a manutenção da herança simbolista, a defesa da tradição e a universalidade de temas. Antônio Candido lembra que O decênio de 1930 é com efeito, no Brasil, sobretudo em seus últimos anos, de intensa fermentação espiritualista10. [...] A poesia de Augusto Frederico Schmidt, neorromântica, a de Jorge de Lima e Murilo Mendes, católica, marcam neste campo tendências dependentes do modernismo. (CANDIDO, 2006, p.132 e 133)
De maneira mais pragmática, esta corrente espiritualista dos anos 20/30, tomou forma nos poemas, poéticas, artigos sobre estética e posicionamentos políticos publicados nos periódicos A Ordem (1921)11 e Festa (1927)12, no Rio de Janeiro, cobrindo um período que vai de 1921 a 1945, num país já muito marcado pelo positivismo e pela conturbação política. Na revista A Ordem, observa-se, principalmente na contribuição de Durval de Moraes (1882-1948) – principal poeta/articulista -, uma literatura fortemente católica, de tematização de passagens bíblicas e costumes eclesiásticos, a partir de uma volta à metrificação poética clássica, normalmente
10. Grifo nosso. 11. Fundada por Jackson de Figueiredo em 1921 e relançada em 1928/1929 por Alceu de Amoroso Lima. 12. Fundada por Tasso da Silveira e Andrade Muricy, entre outros colaboradores. Com um título sugestivo, que tanto sugere uma referência à Festa Inquieta, de Andrade Muricy, quanto a uma oposição frontal à revista A Ordem. 373
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com alexandrinos ou sonetos, contrariando o que previa o pensamento da poesia brasileira da década de 20, escrita por Mário e Oswald de Andrade, por exemplo. Já em Festa, há uma opção pela espiritualidade e à interioridade. No entanto, diferentemente de A Ordem, a revista Festa quer enveredar no rumo espiritual sem a necessidade de um apelo canônico ou de engajamento mais católico/social. A liberdade era um tema a ser levado em consideração, tanto que se tinha, publicando em suas páginas, autores católicos e outros mais simpatizantes de uma espiritualidade mística, escrevendo poesias, tanto em formato clássico, quanto em versos livres. Assim sendo, Festa tem uma visão de arte mais estetizante e um comportamento muito mais vanguardista. Festa, em seu número 01, de outubro de 1927, trazia um poema-manifesto de Tasso da Silveira que dizia: O artista canta agora a realidade total, A do corpo e a do espírito, A da natureza e a do sonho, A do homem e a de Deus; Canta-a, porém, porque a percebe E a compreende em toda sua múltipla beleza, Em sua profundidade e infinitude... (COUTINHO, 2004, p. 115 e 116)
Nota-se, portanto, que o espiritualismo no Brasil pode ser retratado a partir destes dois modelos: um instintivo e místico, agrupado em torno de Festa, e outro mais hierárquico e católico da parte de A Ordem. À parte, hesitantes entre as novas liberdades formais e a tradição simbolista, agrupam-se os “espiritualistas” da Festa (1927), com Tasso da Silveira, Murilo Araújo, Barreto Filho, Adelino Magalhães, Gilka Machado e, numa segunda fase, Cecília Meireles e Murilo Mendes, que 374
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lograriam dar uma feição inequivocamente moderna a suas tendências religiosas. (BOSI, 2006, p.343)
Poucos são os críticos literários que mencionam, em caixa alta, a contribuição de Vinícius de Moraes a estes periódicos cariocas. Com isso, a participação do escritor aparenta ficar restrita ao envio de textos poéticos para eventuais publicações. Na verdade, Vinícius tem sua filiação abonada ao movimento espiritualista por força da gênese de sua formação intelectual, que se magnetiza ao grupo como por gravidade. A questão de ordem, no entanto, não é a participação direta ou não de Vinícius nos manifestos, nas poéticas e nas articulações do movimento; tão pouco a presença ou ausência de sua voz em defesa pública dos estatutos espiritualistas; ou mesmo a validade estética de suas poesias enviadas às revistas, suporte do movimento. A questão de destaque proposta nesta investigação é o trato de Vinícius para com o gênero dramático, pouquíssimo usual em qualquer outro colaborador das gazetas que promoviam o então grupo espiritualista. Enquanto os pensadores voltados para a contemplação metafísica se rendiam a produção de textos poéticos e/ou artigos/ensaios que referendavam a importância do pensamento religioso nas hastes do movimento moderno do país; Vinícius de Moraes, a despeito de sua colaboração poética ou ensaísta para com as revistas, prosseguia investindo na escrita de textos para o teatro com as claras intenções simbolistas já enumeradas. A linguagem e os códigos dramáticos trabalhados em seus textos para o palco, em nada afrontavam as prerrogativas do grupo Festa. Pelo contrário, o teatro ainda pouco observado que Vinícius produzia desde 1927, mirava mais o céu que a terra, reforçando uma continuidade de características simbolistas observadas em todos os escritos da dramaturgia do escritor. No texto Gilda e Ela, de 1936 (incompleto), que na verdade parece ser uma tentativa primeira de construir o que será, mais adiante, o texto com375
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pleto de Cordélia e o Peregrino, do mesmo ano; percebe-se a intenção do sublime, de uma ascensão no tempo/espaço logo nas rubricas do início do texto. Em Gilda e Ela está escrito: “Uma casa na montanha, sombria, rude mesmo. Paredes de pedra nua, teto baixo, de vigas escuras [...]” (MORAES, 1936, p.01 Casa de Rui Barbosa); em Cordélia e o Peregrino, lê-se: “Um abrigo na montanha, sombrio, rude mesmo. Paredes nuas, teto baixo de vidas escuras, tortuosas [...]” (MORAES, 1995, p.19). Tanto em um texto como em outro, Vinícius projeta a ação dramática para o mais próximo possível de um plano celestial, assim como vai fazer mais adiante, em 1956, quando um morro carioca será metáfora de um Olimpo divino, na concepção de seu Orfeu da Conceição. As didascálias iniciais dos dois textos em questão propõem então uma ação em espaço mais naturalmente elevado, em que os diálogos possam pairar em grandiloquência, possam ser ditos em gestos singelos e nobres, como menciona o interlúdio elegíaco de Cordélia e o Peregrino: Na hipótese de uma abertura da cena, o Peregrino achar-se-á imóvel junto à porta, como perscrutando o silêncio. [...] Ao falarem, as figuras deveriam buscar os gestos essenciais às palavras. A palavras simples, gestos singelos; a palavras nobres, gestos hierárquicos. Em repouso, a imobilidade perfeita, estabilizada em última vibração da tônica anterior. [...] (MORAES, 1995, p.19)
Em Gilda e Ela (que tem subtítulo de poesia), escrito à caneta, num pequeno caderno de anotações, totalizando dez páginas quase que totalmente ilegíveis por conta da caligrafia do escritor; os personagens Gilda, o Poeta, o Aventureiro, o Pai de Gilda e o coro das camponesas, divagam em grande medida ao som de sugestivos versos apóstrofes, como em um chamamento constante por elementos da natureza, por elementos transcendentais, como se percebe no excerto abaixo:
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O POETA: Ó amiga, Ó estrela, Nesse momento íntimo do silêncio em mim! Ó are, Ó lírio triste, Ó tarde nesse ângelus da alma, ó serenidade. [...] Ai de mim, eu venho sem prazer. (MORAES, 1936. Fundação Casa de Rui Barbosa)
Ainda em Cordélia e o Peregrino, que Vinícius vai chamar de forma lírico-teatral, há uma narrativa que vai do metafísico ao físico quando o Peregrino, mergulhado em ondas de angústia acentuada e de contatos com o pessimismo de sua existência, vê, em Cordélia, perfeição de mulher, um refúgio mais ameno e menos penitencioso para sua vida tão inconstante. Cordélia é um ideal de modelo feminino que resgata o Peregrino (alter-ego do dramaturgo) de um ambiente marcado pelo medo e pela morte. O PEREGRINO (tomando-lhe as mãos) Vem, entra Cordélia Fala Cordélia... [...] CORDÉLIA Sei dançar E cantarei para distrair as tuas mágoas Sou ágil, aprenderei o ofício que mais te agradar. E ganharei para teu sustento todo o ouro deste mundo [...] O PEREGRINO É como o espelho de uma lágrima, onde se miram dois mundos O efêmero que vivemos, e o íntimo que morre conosco E ambos passam! Não são as palavras Que morrem; é o poeta que morre
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Levando consigo o que as palavras apenas revelam De tão grande! (MORAES, 1995, p.23, 30 e 32)
Com versos inicialmente de natureza metafísica e transcendental, evoluindo para grandes dramas melancólicos afeitos a uma visão pessimista do ser humano, chegando às tragédias de formato clássico, os textos para o palco de Vinícius de Moraes não se desvinculam do pontual momento espiritualista vivido pelos anos 20 e 30, antes, perpetuam suas teses em redivivos diálogos simbolistas, ainda que o teatro moderno no Brasil começasse a pavimentar textos mais voltados a um pragmatismo político e social.
Uma corrente privilegiada: o teatro político/social De 1927 a 1966, período de escrita dos textos dramáticos de Vinícius de Moraes, o teatro brasileiro ia, em verdade, se consubstanciando na contramão da condução lírica festejada pelo poeta/dramaturgo carioca. Desde os discursos iconoclastas de Oswald de Andrade, com seu Rei da Vela (1933)13, até o teatro que José Celso, em 1968, chamou de teatro da crueldade brasileira – do absurdo brasileiro – teatro anárquico, grosso, cruel, de rompimento com todas as grandes linhas do pensamento humanista, teatro de provocação, não de proselitismo, cuja eficácia política se mediria pelo nível de agressividade (PRADO, 2009, p.116).
13. Que a bem da verdade só ganha projeção a atenção em 1960 por ocasião de uma encenação sob responsabilidade de José Celso Martinez Correia. 378
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a cena teatral moderna no Brasil vinha, gradativamente, se posicionando de maneira mais politizada, engajada socialmente, e menos lírica, subjetiva, distanciada de sentimentos, então, entendidos como anacrônicos. Entre os anos de 1940 e 1970, quando se dá, no país, o deslanche do teatro moderno com o surgimento de um bom número de dramaturgos importantes14, sai de cena o escapismo idealizado de um teatro plasmado de realidades distantes de nossas fronteiras, para entrar em cena esse teatro mais participativo, de ligações diretas com o contexto político e social que chacoalhava o país. Como exemplo dessa bifurcação entre o que desejava esta particular linha do teatro moderno e o que pensava e escrevia o Poetinha, basta lembrar que, enquanto Vinícius de Moraes divagava com enorme força poética sobre o seu Orfeu da Conceição, em 1956; ORFEU: Mulher mais adorada! Agora que não estás, deixa que rompa O meu peito em soluços! Tu enrustiste Em minha vida; e cada hora que passa É mais por que te amar, a hora derrama... [...] Meu verso, meu silêncio, minha música! Nunca fujas de mim! Sem ti sou nada Sou coisa sem razão, jogada, sou Pedra rolada. Orfeu menos Eurídice... (MORAES, 1995, p.68 e 69)
14. Segundo Décio de Almeida Prado “pouco há a assinalar de moderno antes de 1930.” (PRADO, 2009, p.27) 379
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de maneira contemporânea, Jorge Andrade apresentava A Moratória em 1955, em São Paulo; e Ariano Suassuna, Auto da Compadecida em 1956, no Recife. Estas duas últimas peças tinham em comum, a militância teatral, a análise menos rósea da realidade e certo posicionamento nacionalista. “No teatro, a posição nacionalista foi extremamente fecunda porque tinha uma missão imediata: restituir aos brasileiros o lugar que lhes competia [...]” (PRADO, 2009, p.64) O Teatro em Verso produzido por Vinícius de Moraes, ainda que ato reverso destas propostas cênicas desenvolvidas pelas correntes mais metadramáticas do teatro brasileiro, não pode ser visto como antimoderno ou descontinuador de uma mentalidade despertada com a semana de 22. O teatro de Vinícius é moderno, não só por uma ambientação espaço/temporal, mas, e sobretudo, porque representa a presença, ou mais pontualmente o ato contínuo da corrente espiritualista moderna do início do século XX; que não obstante ter tido uma duração diminuta e não ter participado diretamente das cartilhas de formação do teatro moderno , abrigou em suas hastes grandes pensadores como Tasso da Silveira, Andrade Muricy, Augusto Frederico Schmidt, Murilo Araújo, Barreto Filho, Adelino Magalhães e, mais tarde, Cecília Meireles, Murilo Mendes, e o próprio Vinícius de Moraes.
O ato contínuo: a presença espiritualista Embora ladeado por este teatro de reflexões mais socialmente engajadas, que reclamava o proscênio das discussões cênicas no Brasil do século XX, Vinícius de Moraes, dramaturgo, seguia criando personagens, diálogos, cenas e atos para um teatro de via alternativa, de pavimentação mesmo simbolista. Um teatro que, as mais das vezes, convocava ao primeiro plano de suas ideias, a religiosidade, a transcendência e o lirismo poético da corrente mais metafísica do modernismo brasileiro. Ainda que essas características 380
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não representem majoritariamente a força dramática ou o fio temático dos textos, elas pululam como lembranças inequívocas da passagem do escritor pela vertente espiritualista. Exemplos destas lembranças e influências podem ser percebidas em momentos distintos em todos os textos para teatro escritos por Vinícius de Moraes; notadamente nas quatro peças de sua autoria que subiram efetivamente aos palcos. Para não sublinhar, neste momento, todas as características possíveis de vínculo com a ideologia dos grupos Festa e A Ordem, este recorte de investigação teórica destaca as referências à religiosidade presente nos textos, e a construção de personagens que funcionam como materialização inconsciente (ou mesmo consciente) da essência lírica e metafísica do próprio autor. Em Orfeu da Conceição, Vinícius martiriza seu protagonista – poeta e músico - colocando-o num altar metafórico de adoração mítica, onde a intertextualidade com a bíblia se faz, em mais de um momento, de maneira explícita: CORO [...] QUINTA VOZ Creio em Orfeu... SEXTA VOZ Criador de melodia... PRIMEIRA VOZ Orfeu filho de Apoio... SEGUNDA VOZ Nosso Orfeu! TERCEIRA VOZ Nasceu de Clio... QUARTA VOZ E muito padeceu 381
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Sob o poder maior da poesia... QUINTA VOZ E foi pela paixão crucificado... SEXTA VOZ E ficou louco e abandonado... CORO (em uníssono) Desceu às trevas, e das grandes trevas ressurgiu à luz, e subiu ao morro onde está vagando como alma penada procurando Eurídice… (MORAES, 1995, p.94)
No texto Procura-se uma Rosa, o autor contrapõe a inocência e a pureza das personagens Louca da Curra e o Rapaz da Rosa, com a brutalidade dos que fazem uma delegacia de polícia. CORTINA A LOUCA DA CURRA Silêncio, silêncio Que melancolia Perdeu-se uma rosa De dia, de dia. Tristeza, tristeza Que vida vazia Perdeu-se uma rosa Quem a encontraria? (MORAES, 1995, p.126)
O traço subjetivamente poético na voz da personagem Louca da Curra que abre o texto (excerto acima), é dialogicamente semelhante à ingenuidade poética e religiosa do Rapaz que perdeu sua Rosa:
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RAPAZ [...] ... nós queríamos fazer tudo como Deus manda, eu nunca tinha tocado minha Rosa [...] Eu juro pela mãe santíssima que está no céu, quero que minha língua caia de podre e meus olhos não possam mais ver a minha Rosa se eu toquei nela com segunda intenção! O senhor não compreende? ... Nós íamos casar direitinho como Deus quer. Ela gostava de mim e eu dela... (MORAES, 1995, p. 143 e 147)
É a caracterização deste personagem que carrega para o texto o credo no sublime e a devoção espiritual, como se pode perceber em outras passagens do enredo: RAPAZ [...] ... e aí anteontem telefonou uma mulher para dizer que eu não desesperasse porque ela tinha feito uma promessa para Santa Luzia que se eu encontrasse a minha Rosa ela mandava rezar uma missa e até me deixou o telefone dela para eu avisar, uma senhora muito boa. [...] (MORAES, 1995, p. 147)
No texto As Feras: chacina em Barros Filho, Vinícius propõe uma atmosfera místico/religiosa, não só na apresentação do espaço, quando vivifica o sertão nordestino; mas quando caracteriza os protagonistas da história, Francisco de Paula e Maria José, como devotos a uma fé inabalável que será, ao final, transpassada por violências citadinas. FRANCISCO DE PAULA [...] Foi Deus quem mandou o menino. E tudo o que vem de Deus é bom. MARIA JOSÉ Até a seca? Até a separação? FRANCISCO DE PAULA Até a seca, até a separação. Depois da seca, vem a chuva. A terra fica verde de novo. Depois da separação, vem o encontro. A gente fica feliz de novo. Foi Deus que fez a vida assim. (MORAES, 1995, p. 161) 383
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Citações bíblicas ainda aparecem no texto através das falas de outros personagens que compõem a trama, como Isaias Grande: ISAIAS GRANDE [...] Não é só o corpo de uma mulher que é do marido dela. A alma também é – e mais ainda. E se a alma estiver pura, o corpo não tem pecado. Jesus Cristo não perdoou a mulher adúltera? E quem é a gente para se achar com mais razão que Jesus Cristo? [...] (MORAES, 1995, p. 190)
Já no texto Pobre Menina Rica, Vinícius, ainda que subintitulando sua história de “primeira comédia musicada brasileira em grande estilo” (MORAES, 1995, p.217), alarga as impressões de ordem mística quando apresenta a personagem Maria-Moita com uma mãe-de-santo. As canções do texto remetem a uma espiritualidade nagô, a exemplo de: CARIOCA (CANTANDO O SAMBA DO CARIOCA) Vamos, carioca Sai do teu sono devagar O dia já vem vindo aí E o sol já vai raiar São Jorge, teu padrinho Te dê cana pra tomar Xangô, teu pau, te dê Muitas mulheres para amar. [...] MARIA-MOITA Deus fez primeiro o homem A mulher nasceu depois Por isso é que a mulher Trabalha sempre pelos dois [...]
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O rico acorda tarde Já começa a rezingar O pobre acorda cedo Já começa a trabalhar Vou pedir ao meu babalorixá Pra fazer uma oração pra Xangô Pra pôr pra trabalhar Gente que nunca trabalhou! (MORAES, 1995, p.228 e 236)
É bem verdade que textos com referências religiosas não são exclusividade do teatro de Vinícius. A Arca de Noé, seu projeto ao público infantil, escrito em 1970 (posterior, portanto, aos escritos para teatro) e registrado em LP no ano de 1980, está visualizado em três eixos temáticos: o primeiro deles aponta para a religiosidade; o segundo, para a apreensão do humano e dos objetos; e o terceiro, para os animais. A religiosidade é resgatada em sua essência, seja por imagens poéticas que se fundamentam na simplicidade e no despojamento, seja por uma perspectiva inusitada, eivada de comicidade.
CONCLUSÃO O que se pretende sublinhar, a luz deste artigo, é que o teatro produzido por Vinícius mantém vínculos permanentes com a essência simbolista/ espiritualista, independente dos muitos contextos vividos pelo escritor ao longo de sua vida; diferente de sua produção poética ou musical, onde esta relação espiritual é intermitente, por vezes, completamente díspar do Vinícius confessional. Portanto, enquanto a semana de arte moderna inflamava posturas, repensava modelos, sugeria poéticas, alargava o discurso em defesa de uma nova formatação artística; um Vinícius de Moraes primário, envolto em um 385
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perfil de transcendência lírica desde seus primeiros contatos com o reino das palavras - quando aluno do colégio Santo Inácio (de padres jesuítas) no Rio de Janeiro -, investia sua pena no extravasamento versificado para levar a primeiro plano suas preocupações físicas e espirituais com relação ao amor, a vida, o trágico e a tragédia, através de seu teatro.
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Resumo A participação de José de Alencar como um dos principais intelectuais românticos responsáveis pela representação da construção da identidade nacional é inegável. Portanto, o presente trabalho avalia a apresentação dessa identidade por meio de alguns textos do referido escritor, com o intuito de mostrar uma constante discursiva sobre a idealização nacionalista existente no movimento romântico que se estendia desde a representação da figura heroica do índio até a descaracterização do negro, que inclui o conceito de escravidão como paradoxal processo de civilização. Para tanto, iniciamos por considerar a noção de ideologia, de Louis Althusser (1970), de discurso de Maingueneau (2008), relacionando-as com a idealização romântica presente na formação da identidade nacional promovida no século XIX, a fim de apresentar considerações acerca do ideologema conservador presente nas produções românticas da referida época, assim como realizamos políticos, peça teatral (O demônio familiar), romance (O guarani) com o intuito de evidenciar a unidade discursiva conservadora a respeito dos elementos compositores da nação brasileira. O resultado de nossas pesquisas mostrou que, apesar dos textos Alencarianos professarem ostensivamente a urgência de uma identidade nacional livre dos laivos europeus, nas suas entrelinhas, evidenciam uma realidade nacional idealizada e fora do contexto real existente no período, voltada não para o seu interior, mas ainda baseada nos paradigmas desse “Outro”. Palavras-chaves: Nacionalismo; Ideologia; Discurso; Romantismo; Alencar.
UM OLHO AQUI, OUTRO ACOLÁ: O DISCURSO PARADOXAL EM ALGUMAS PRODUÇÕES DE JOSÉ DE ALENCAR Maria Carla Bione Dos Santos1
INTRODUÇÃO A independência do Brasil trouxe como objetivo constituir uma identidade tipicamente nacional.. Sendo assim, como afirma Antônio Candido (2009), a literatura foi utilizada para dar legitimidade ao conhecimento da realidade interna e foi ponto de partida para o projeto nacionalista que se principiou com o Romantismo, pois descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentido nacional, era libertar-se do jugo da literatura clássica, universal, comum a todos, preestabelecida, demasiado abstrata – afirmando em contraposição o concreto espontâneo, característico, particular. (CANDIDO, 2009, p. 333).
Em meio a essa nova realidade, José de Alencar teve uma participação relevante, uma vez que fazia parte no grupo constituinte dos intelectuais engajados na construção dessa identidade nacional. Apesar disso, percebemos a discrepância entre a realidade existente na época e a representação forjada pelo autor. Visto que o Brasil nos parece seguir o percurso de procurar em um passado utópico seus símbolos
1. Graduanda em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda. Artigo orientado pelo Prof. Dr. Frederico José Machado da Silva. Email: carlabione3005@gmail.com. 389
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nacionais, além de ocultar da sua identidade a problemática da escravidão, descaracterizando o negro e o tornando um elemento oculto na literatura romanesca. É por atentar para a importância do referido autor de O guarani nesse aspecto, que o presente trabalho objetiva mostrar como no discurso da construção de uma identidade nacional genuinamente brasileira, professado nos textos de José de Alencar, há aspectos controversos no que diz respeito ao papel de cada elemento constitutivo dessa real identidade, que podem ser observados pela “regularidade enunciativa” encontrada em seus diversos textos, de modo a evidenciar a recorrência de um aspecto essencialmente ideológico formador desse conceito de nação. Para tanto, nosso percurso inicia com a tentativa do esclarecimento do que vem a ser ideologia em concordância com Althusser (1970) e Fiorin (2007), além da acepção de discurso de Maingueneau (2008), com o intuito de compreender sobre o papel deformante da ideologia do nacionalismo e a forma da sua propagação pelo romantismo, que atuou como um aparelho ideológico do Estado. Após a consideração desses textos teóricos, ainda no mesmo capítulo, realizamos uma breve apresentação dos acontecimentos que acometiam o século oitocentista a fim de melhor compreender a ideia de identidade nacional pulsante nesse período. Sendo assim, achamos pertinentes as assertivas de estudiosos no assunto, como Guibernau (1997), Ricupero (2004), Weffort (2006), dentre outros. Em seguida, no capítulo intitulado “Índio, branco e negro: a formação ideológica da nação brasileira”, consideramos textos de Alencar como o romance indianista O guarani, a peça teatral O demônio familiar e alguns textos de origem política, de forma a apresentar leituras críticas deles na tentativa de evidenciar a possibilidade de uma regularidade enunciativa em seu discurso a respeito da formação da identidade nacional. Referente a isso, achamos relevante destacar a visão presente em seu discurso 390
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acerca da escravidão como processo civilizatório por esse fator mostrar que essa regularidade enunciativa foge aos limites do ficcional e se estende aos textos políticos, não literários, de modo a ratificar o componente ideológico presente em tal discurso. Portanto, nossa pesquisa termina por mostrar que há uma interdiscursividade, demonstrada pela “regularidade enunciativa” do discurso alencariano, no que tange a formação da identidade nacional referente aos seus elementos constituintes: negro, branco e índio, que denota um componente de origem ideológica.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE IDEOLOGIA E DISCURSO Ao dissertar sobre ideologia Althusser expõe que “na ideologia, o que é representado não é o sistema das relações reais que governam a existência dos indivíduos, mas a relação imaginária destes indivíduos com as relações reais em que vivem.” (ALTHUSSER 1970, p.82) Destarte, segundo Althusser (1970) a ideologia está articulada às práticas sociais vivenciadas por tais indivíduos e é materializada nos aparelhos ideológicos de Estado. Sobre os aparelhos ideológicos o teórico afirma eles são “certo número de realidades que se apresentam ao observador imediato sob a forma de instituições distintas e especializadas.” (ALTHUSSER 1970, p.43). São esses aparelhos ideológicos de Estado (AIE): 1. o AIE religioso (O sistema das diferentes Igrejas); 2. o AIE escolar (o sistema das diferentes das públicas e particulares); 3. o AIE familiar;
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4. o AIE jurídico; 5. o AIE político (o sistema político de que fazem parte os diferentes partidos); 6. o AIE sindical; 7. o AIE da informação (imprensa, rádio-televisão etc.); 8. o AIE, cultural (Letras, Belas Artes, desportos etc.). Sendo assim, tais aparelhos se diferenciam dos ARE por não fazer uso massivo da violência, embora resida neles algumas estratégias repressivas. Quanto à forma organizacional, podemos encontrar também particularidades entre os ARE e os AIE, pois Enquanto o Aparelho (repressivo) de Estado constitui um todo organizado cujos diferentes membros estão subordinados a uma unidade de comando, a da política da luta de classes aplicada pelos representantes políticos das classes dominantes que detêm o poder de Estado, - os Aparelhos Ideológicos de Estado são múltiplos, distintos, «relativamente autónomos» e susceptíveis de oferecer um campo objetivo a contradições que exprimem, sob formas ora limitadas, ora extremas, os efeitos dos choques entre a luta de classe capitalista e a luta de classes proletária, assim como das suas formas subordinadas. (1974, p.54,55)
Conforme visto, muitos são os AIE e, embora eles, nem sempre, possam agir em consonância, estão unificados pelo poder da classe dominante que tenciona “a reprodução das relações de produção, isto é, das relações de exploração capitalistas.” Em que uma parte é sobrepujada por meio da ideologia, que naturaliza a subalternização imposta. Referente a isso, os aparelhos ideológicos de Estado agem como instrumentos disseminadores das ideologias e determinam os moldes a serem seguidos pelos sujeitos de acordo com seus respectivos papeis sociais. Althusser tematiza: 392
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Cada um deles concorre para este resultado único da maneira que lhe é própria. O aparelho político sujeitando os indivíduos à ideologia política de Estado, a ideologia «democrática», «indireta» (parlamentar) ou «direta »(plebiscitária ou fascista). O aparelho de informação embutindo, através da imprensa, da rádio, da televisão, em todos os «cidadãos», doses quotidianas de nacionalismo, chauvinismo, liberalismo, moralismo, etc. O mesmo acontece com o aparelho cultural [...]. O aparelho religioso lembrando nos sermões e noutras grandes cerimónias do Nascimento, do Casamento, da Morte, que o homem não é mais que cinza, a não ser que saiba amar os seus irmãos até ao ponto de oferecer a face esquerda a quem já o esbofeteou na direita. O aparelho familiar [...] etc. (1974, p.63)
Como já exposto ,segundo a teoria althusseriana ,“uma ideologia existe, sempre num aparelho, e na sua prática ou suas práticas. Esta existência é material.” (ALTHUSSER, 1974, p.84) Ainda sobre a forma indutora da ideologia, Fiorin (2007) discorre que tal aspecto é possibilitado porque “numa formação social, temos dois níveis de realidade: um de essência e um de aparência, ou seja, um profundo e um superficial, não visível e um fenomênico.” (FIORIN, 2007, P.26) De acordo com o referido autor, no nível fenomênico existe a inversão da realidade, pois esse nível pode apresentar relações de exploração como sendo um acontecimento igualitário. Porém essas mesmas relações, podem se revelar de forma desigual no nível de superfície de essência. É por tal razão que o nível fenomênico é detentor de um papel atuante na construção das ideias dominantes em uma respectiva formação social, uma vez que por intermédio dele
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constroem-se os conceitos de individualidade, de liberdade como algo individual [...] as ideias da desigualdade natural dos homens, uma vez que são mais inteligentes ou mais espertos que outros [...] (FIORIN, 2007, p.28)
Portanto, Fiorin (2007) apresenta a noção de ideologia como mecanismo utilizado para justificar os acontecimentos sociais, sendo formulado pelas formas fenomênicas da realidade. Assim, a ideologia segue com o seu caráter deformante. Quanto ao conceito de discurso, consideraremos como proposição o conceito apresentado Em Gênese dos discursos, por Maingueneau (2008, p.15) que entende discurso por “Uma dispersão de textos, cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas”. Sendo assim, consideramos apropriado lançarmos um olhar para os acontecimentos do século XIX no tocante a formação da identidade nacional, uma vez que o nacionalismo ali presente parece ter sido desenvolvido enquanto ideologia, pautado em seus mitos e sob a ótica conservadora do Romantismo.
Século XIX, idealização e a formação da identidade nacional Segundo Guibernau: “[...] o nacionalismo é um sentimento relacionado a uma pátria, uma língua, ideais, valores e tradições comuns, e também com a identificação de um grupo com símbolos [...] que o definem como “diferente” dos outros. A conexão com todos esses signos cria uma identidade, e o recurso a essa identidade teve, no passado, como tem hoje, o poder de mobilizar as pessoas.” (1997, p. 85)
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Portanto, o Brasil tinha como alvo se firmar tal qual nação independente, livre da perspectiva de ser visto com precariedade. Era necessário se emancipar e se libertar da relação especular com a Europa. Assim, iniciou-se o esforço de determinar uma identidade nacional por parte da elite: À emancipação política, à montagem do aparelho estatal, deve-se seguir a emancipação mental, a constituição de uma sociedade relativamente autônoma e diferenciada. (...). Quem procura fazer isso, como projeto deliberado, são certos homens, os românticos, que, na Europa e na América, criam símbolos do que passará a ser conhecido como constituindo nações (RICUPERO, 2004, p.37).
Com a independência, o Brasil possuía uma monarquia constitucional, o que o difere de outros países colonizados. Portanto, era imprescindível ultrapassar os limites administrativos e políticos. Era necessário fazer aflorar sua identidade cultural: “aos homens que forjaram o Estado brasileiro do século XIX impunha-se igualmente a tarefa de forjar uma identidade cultural para o país” (WEFFORT, 2006, p.189). Destarte, parecia necessário formar uma coadunação entre os elementos constitutivos da sociedade e o novo Estado Nacional, um símbolo de unificação.
ÍNDIOS, BRANCO E NEGRO: A FORMAÇÃO IDEOLÓGICA DA NAÇÃO BRASILEIRA Em conformidade com panorama mostrado anteriormente, surge a proposta da produção literária romântica que teve como senda encontrada, a apresentação externa de um Brasil plasticamente belo e forte a fim de manter uma identidade nacional mesmo em face das sólidas influências europeias.
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Portanto, o primeiro passo era unir a ideia de existência de um povo à natureza. Dessa forma, surge a figura do índio destacada pela sua relação com a natureza e enfatizada por representar, dentro da idealização romântica, o ideário de identidade nacional independente, sem olhar para o externo. Concernente a isso, José de Alencar é um significativo representante, pois a sua contribuição para o romantismo brasileiro é irrefutável. Lançou muitas obras, dentre elas, os fascículos d’O Guarani, um romance indianista que tinha como proposta mostrar a relação entre o índio e o europeu, construindo assim a ideia de uma nova civilização que, de acordo com Weffort (2006), apresenta a fusão entre civilização (europeia) e a barbárie (do novo mundo), o que se torna evidente por meio do encontro entre Ceci e Peri – índio e branco. Contudo, o ponto fulcral da nossa inquietação, é o caráter ideológico envolvido dentro dessa busca nacionalista, porque diante da representação de nova civilização a figura do negro foi excluída, ou seja, se por um lado resgatou-se a figura indígena, mesmo que seja pautada num passado longínquo – por outro, não se fez referência ao negro e a factual escravidão. Conforme observado por Weffort: no país novo o indianismo adequou-se como conveniente motivo das elites que buscavam afirmar uma identidade nacional, com a vantagem de evitar o ‘problema’ representado pelo negro (WEFFORT, 2006, p.194)
Portanto, essa representação romântica de nação, como já falado, evidencia um caráter ideológico, pois ao ocultar o negro e descaracterizá-lo, o romantismo brasileiro traz em seu nacionalismo, o papel deformante da ideologia exercido pelos aparelhos ideológicos do estado, ou seja, “é pela instauração (mise en place) dos AIE, em que esta ideologia é realizada e se realiza, que ela se toma dominante.” (ALTHUSSER,1974,p.118)
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No entanto, segundo Althusser (1974), essa instauração da ideologia da classe dominante só ocorre por meio de uma luta entre classe dominante e classes dominadas. Referente a isso, é apropriado o posicionamento de Bosi (1992), quando afirma que Alencar postula uma associação entre o índio e o branco que não dialoga entre si, mas se configura por intermédio de uma relação de dominação, o que denota uma perspectiva colonizadora e excludente que omite o negro e dociliza o índio, visto que a posição heroica e corajosa do último era em virtude do seu auto sacrifício. Destarte, a figura indígena, como apresentada, era produto e resquício do conservadorismo imperial. Sendo assim, ao passo que se propagava a ideia de libertação dos laivos europeus, ao mesmo tempo, mostrava-se o quão a ideologia dominante ,colonizadora ainda estava ativa dentro do discurso nacionalista. Quanto a isso, parece apropriada a seguinte assertiva: Os sujeitos também podem acreditar de boa fé na homogeneidade de suas produções, mesmo quando a análise semântica revela que, em tais textos, em tais fases de sua carreira, eles enunciaram no interior de competências diferentes. (MAINGUENEAU,2008,p.57)
Quanto à figura do negro, Bosi declara: “Alencar ainda pudera fundir índio e português a golpes de folhetim ou no embalo da prosa lírica. Mas negro e branco riscavam-se em um xadrez de oposições sem matizes” (BOSI, 1992, p.246). Sobre essa “oposição”, veremos como o discurso presente nos textos Alencarianos possuem uma regularidade enunciativa que nos faz atentar para o papel deformante da ideologia.
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Quanto ao negro... Conforme já mencionado, a figura do negro ficou à parte no processo inicial de construção da identidade nacional pela perspectiva romanesca. Porém, segundo Alencar ,o negro também faria parte dessa constituição: “esta transfusão de todas as famílias humanas no solo virgem deste continente ficaria incompleta se faltasse o sangue africano” (ALENCAR, 2008, p.74). Não obstante, de acordo com o autor citado, isso não ocorreria de forma paralela à inserção do branco e do índio, pois era preciso primeiro extinguir a escravidão. Se atentarmos para uma das declarações de Alencar, talvez entendamos o porquê estabelecido por ele para tal fato: “sem a escravidão africana e o tráfico, a América seria ainda hoje um vasto deserto”. (ALENCAR, 2008, p.70) Para o autor, o fim da escravidão era um acontecimento que necessitava de um período civilizatório, o que, consequentemente, seria determinante para que o negro, finalmente, pudesse ser visto como elemento participante dessa identidade nacional. Logo, é possível notar em seu discurso dois argumentos de formação ideológica. Primeiro, a escravidão faz parte do processo “natural” da humanidade. O que nos remete a declaração citada anteriormente por Fiorin (2007) sobre o papel deformante da ideologia utilizado para justificar os acontecimentos sociais, com intuito de explicar “a ideia da desigualdade natural dos homens” (FIORIN, 2007, p.28). Segundo, a apresentação estereotipada da identidade negra, que nos textos de Alencar é vista de forma selvagem, pois em seus discursos políticos, “o escravo deve então ser o homem selvagem que se instrui e moraliza pelo trabalho” (ALENCAR, 2008, p.67). Tal concepção pode ser mais bem entendida ao analisarmos a seguinte declaração realizada por Alencar:
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Quem de nós, Senhores, não teve ocasião de ver, uma e muitas vezes, no seio da família, a mão querida e respeitada, reclinando-se sobre o leito de dor onde jazia o escravo, não levada por interesse mesquinho e sórdido, mas pelo impulso desse sentimento da caridade que é o resplendor da senhora brasileira? (ALENCAR, 1977, p.240)
Com isso podemos perceber que há uma espécie de menção a uma bondade, ”caridade” em relação ao negro. Entretanto, vinculado a essa concepção, era existente um conceito de dominação, pois a relação era do “maior” para o “menor” e não entre pares. Parece que havia um temor que uma vez essa ordem fosse rompida, a estrutura da sociedade fosse aluída no âmbito social e, econômico. Nesse sentido, é válido salientar o contexto em que tal sociedade estava inserida, pois a economia dependia da produção agrícola e o trabalho escravo era fundamental para a continuação desse sistema. Ainda, o negro era visto como ser inferior e incapaz de compreender a sistemática da vida em sociedade. Discurso que pode ser observado também no trecho da obra teatral O demônio familiar: Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (ALENCAR, 1857)
Vê-se então que a liberdade para o negro pode ser entendida como uma espécie de punição, haja vista o conceito de inferioridade atribuído a ele. Era compreendido que o negro precisava passar por uma preparação, um melhoramento advindo de um processo civilizatório possibilitado pela escravidão. O que podemos notar ao analisar suas palavras discursadas no ano de 1871:
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Entendeis [os propagandistas, os emancipadores a todo o transe] que libertar é unicamente subtrair ao cativeiro, e não vos lembrais de que a liberdade concedida a essas massas brutas é um dom funesto; é o fogo sagrado entregue ao ímpeto, ao arrojo de um novo selvagem Prometeu? Nós queremos a redenção de nossos irmãos, como a queria o Cristo. Não basta para vós dizer à criatura, tolhida de sua inteligência, abatida na sua consciência: ‘Tu és livre; vai; percorre os campos com uma besta fera... (...). Não Senhores, é preciso esclarecer a inteligência embotada, elevar a consciência humilhada, para que um dia, no momento de conceder-lhe a liberdade, possamos dizer: ‘Vós sois homens, sois cidadãos. Nós vos redimimos não só do cativeiro, como da ignorância, do vício, da miséria, da animalidade em que jazíeis!’ Eis o que queremos. É a redenção do corpo e da alma; é a reabilitação da criatura racional; é a liberdade como símbolo da civilização, e não como um facho de extermínio. Queremos fazer homens livres, membros úteis da Sociedade, cidadãos inteligentes, e não hordas de selvagens atiradas de repente no seio de um povo culto. (ALENCAR, 1977, p.228-229)
Portanto, há no discurso do romancista cearense uma reação de interdependência entre escravidão, civilização e liberdade. O que impossibilitava a aceitação de uma emancipação “imediata” do negro. Embora Alencar una a essa concepção explicações econômicas, políticas, antropológicas etc., o cerne da nossa discussão atenta para a questão ideológica presente nesse discurso que possui uma regularidade enunciativa nos seus textos, quer sejam romances, discursos políticos ou peças teatrais. Pois, conforme visto nessa pesquisa, a figura do negro foi apagada da formação da identidade nacional romanesca, o que denota que essa identidade foi forjada na ideologia colonial e não a partir da realidade que jazia na nova nação, porque ao ocultar o negro, o romantismo que, estava incumbido de anunciar esse conceito de identidade brasileira, age de forma paradoxal ao
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que professava- distanciamento do externo e valorização do que é nosso. Ele possui um efeito retórico e nada empírico. Além do mais, ao construir essa identidade num ideário que oculta a alteridade entre seus componentes, o discurso presente nos textos de Alencar, só reafirma a contrariedade da formação identitária nacional que critica quem está ao lado, mas ao se olhar no espelho ,não enxerga a sua real forma. Pois, o seu olhar ainda é fixado nos parâmetros coloniais que apresenta “o colonizado como uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução”. (BHABHA,1998,p.111)
CONSIDERAÇÕES FINAIS De acordo com pressuposto teórico presente no capítulo inicial dessa pesquisa, vimos que a ideologia possui um caráter deformante, uma vez que naturaliza a subalternização e justifica os acontecimentos sociais. Pois promove, por meio dos aparelhos do Estado, uma disseminação de valores pautados não na realidade, mas construídos com base na ilusão, idealização. Foi por considerar como verdadeiras essas asserções, que iniciamos nosso percurso laboral, com o intuito de refletir até que ponto os pressupostos sobre a criação de uma identidade tipicamente nacional, proclamada nas obras de José de Alencar, eram condizentes com a realidade social existente no período. Com isso, levantarmos a hipótese de que o nacionalismo empregado dentro desses discursos ,serviu como um instrumento de dominação, justificativa para continuação da subalternização e fazia parte de uma teia discursiva evidenciada por uma regularidade enunciativa presente em seus diversos textos. Portanto, achamos pertinente encetar nossa pesquisa por meio de leituras sobre a formação da identidade nacional no Romantismo ,de forma a alcançar a compreensão dos valores que norteavam tal concepção. 401
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Além de realizar leituras críticas de algumas de suas obras como o romance O guarani e a peça teatral O demônio familiar, o que possibilitou realizar uma comparação entre a retórica apresentada em tais obras e a realidade existente, posto que, a proposta do Romantismo era promover, por meio da literatura, uma identidade nacional. Todavia, como mostrado no segundo capítulo do presente trabalho, essa proposta teve como base um caráter ideológico: o índio, em Alencar, servia muito mais aos moldes europeus, de forma a mascarar a identidade nacional. Quanto ao negro, ele foi envolvido numa espécie de sombra que o tornava externo à realidade brasileira, ocultado no romance e apresentado no teatro como um ser inferiorizado e incapaz de se adequar aos desafios da vida em sociedade. Essa visão a respeito do negro foi uma questão que nos incitou a verificar se havia uma extensão desse discurso dominador, ou seja, uma regularidade enunciativa que fugia dos arrabaldes do discurso literário e nos conduziu a examinar textos originados da vida política do respectivo autor. Sobre isso, o subtítulo Quanto ao negro, concluinte do corpo dessa pesquisa, mostrou que, embora Alencar alegasse que o negro fazia parte da constituição da identidade nacional, essa inclusão só poderia ser feita e apresentada após o “processo civilizatório da escravidão”, em outras palavras, o negro precisava ser preparado, para atingir ao “estágio” do branco. Dessa forma, o ficcional e a realidade se inter-relacionam de maneira a atestar uma interdiscursividade reveladora de uma ideologia dominadora, patriarcal. Não intencionamos com isso inferiorizar a importância de José de Alencar na participação da construção da identidade nacional, mas, sim, mostrar que em meio a essa iniciativa, o seu discurso se revelou paradoxal, uma vez que sua retórica enunciava uma coisa e pode ser reveladora de outra. Mesmo que ele almejasse a libertação do Brasil dos laivos europeus, o seu discurso é embebido de valores a serviço da aristocracia, e ainda, se é que podemos por assim dizer, estava com um “olho aqui e outro acolá”. 402
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A discussão a respeito dessa regularidade enunciativa presente nos textos alencarianos, faz parte de um início de uma aspiração de revisitar autores, repensar discursos na tentativa de uma melhor compreensão do que somos tal qual nação. Além de nos possibilitar atentar para o poder deformante da ideologia, que, como condutora das ações, naturaliza acontecimentos de maneira a justificar o processo de dominação.
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Resumo Este artigo tem o propósito de apresentar um estudo de variação linguística de natureza lexical de modo a verificar as denominações que um determinado item possui numa comunidade de fala. Para tanto, será usado o corpus coletado para a construção do Atlas Linguístico de Pernambuco (SÁ, 2013), produto de investigações realizadas em vinte municípios que cobrem todas as regiões do estado e que permitiu documentar suas marcas dialetais tanto de cunho fonético, quanto léxico e morfossintático. Por ora, serão analisadas as respostas da carta 39 referente à pergunta 156 do Questionário Semântico-Lexical (ALiB, 2001) aplicado em Pernambuco: ‘como se chamam as coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar?’, pertencente ao campo semântico jogos e brincadeiras infantis, de modo a constatar o que predomina nos municípios pesquisados. De posse das respostas, será apresentado um estudo diatópico (geográfico) e diastrático (social) sobre as denominações mais relevantes, permitindo que sejam tecidas comparações com outros trabalhos já realizados sobre o mesmo item lexical. A partir dos pressupostos teóricos de Cardoso & Ferreira (1994) e Cardoso (2010), pretende-se refletir sobre os estudos lexicais dentro da Dialetologia e da Geolinguística e baseando-se na variação do item lexical ‘bola de gude’, almeja-se também compreender um pouco melhor do português falado em Pernambuco. Palavras-chaves: Variação lexical; Dialetologia; Pernambuco; Bola de gude.
VARIAÇÃO LEXICAL EM PERNAMBUCO: UM ESTUDO DAS DENOMINAÇÕES PARA ‘BOLA DE GUDE’ Edmilson José de Sá
INTRODUÇÃO Estudos que descrevem a língua quanto à pronúncia, ao vocabulário e casos de concordância estão cada vez mais recorrentes nas mesas dos linguistas. Por um lado, explicam esses processos pela Sociolinguística, cuja responsabilidade aponta para a variação social, calcada na interferência de fatores diastráticos; pela Dialetologia, a partir do método da Geolinguística em que se busca explicar comportamentos fonéticos, lexicais e morfossintáticos por parte da variação regional ou geográfica; pela Etnolinguística, quando a variação existente perpassa pela perspectiva antropológica a partir da qual se relaciona a língua à cultura do falante. Usando o método da Geolinguística, também é possível considerar a variação sob os auspícios da Sociolinguística, inserindo, assim, uma nomenclatura que amalgama as duas extensões. Trata-se da Geolinguística Pluridimensional. É, pois, nesse viés que o corpus usado para este artigo será analisado. Por ora, aspira-se, aqui, decompor um dos aspectos lexicais que se distribuem no Estado de Pernambuco, pertencente ao campo semântico jogos e brincadeiras infantis, a ‘bola de gude’. Assim, usando a literatura especializada, será feito um recorte teórico-metodológico sobre estudos de variação lexical de cunho regional, uma descrição dos estudos já existentes sobre o referido item lexical e uma descrição diatópico-diastrática da variação da ‘bola de gude’ na fala dos pernambucanos. 405
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ABORDAGEM METODOLÓGICA O corpus usado para a construção do estudo em tela foi retirado do Atlas Linguístico de Pernambuco cuja metodologia consistiu na seleção de quatro informantes em cada ponto de inquérito, distribuídos equitativamente quanto ao sexo a duas faixas etárias (18 a 30 anos e 50 a 65 anos) e a escolaridade que não tenha ultrapassado o quinto ano do ensino fundamental (antiga quarta série), à exceção da capital, que também requereu informantes com curso superior completo. Foram, então, escolhidos 20 pontos de inquérito distribuídos nos quatro cantos do Estado, escolhidos segundo sugestões de Ferreira & Cardoso (1994), segundo as quais, é necessário ter mente a realidade socioeconômica, os aspectos históricos e a importância do município para o Estado. Os pontos escolhidos foram: Quadro1: Pontos de inquérito do ALiPE 01
Afrânio
08
Serra Talhada
15
São Bento do Una
02
Petrolina
09
Custódia
16
Taquaritinga do Norte
03
Santa Maria da Boa Vista
10
São José do Egito
17
Caruaru
04
Ouricuri
11
Tupanatinga
18
Palmares
05
Salgueiro
12
Arcoverde
19
Limoeiro
06
Floresta
13
Águas Belas
20
Recife
07
Tacaratu
14
Garanhuns
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Aos informantes foram feitas questões que possibilitam análises fonético-fonológicas, semântico-lexicais e morfossintáticas. A elas foram acrescentadas perguntas de cunho pragmático e prosódico, que são responsáveis por reflexões sobre graus de formalidade e sobre a construção de orações das mais variadas tipologias. Tais questões foram retiradas dos Questionários do ALiB (2001) e, junto a elas, também foram inseridas questões de cunho especifico do Estado, usando, para tanto, campos semânticos sobre frevo, maracatu, renascença e barro, totalizando, assim, a quantia de quatrocentos e sessenta e uma questões. Concluídos os inquéritos e as transcrições das respostas, foram feitas tabelas que registraram as ocorrências mais relevantes e, a posteriori, foram construídas 6 cartas introdutórias e 105 cartas linguísticas, divididas em 50 cartas fonéticas, 47 cartas semântico-lexicais e 8 cartas morfossintáticas, que possibilitaram o registro cartográfico das ocorrências mais relevantes. Dentre as cartas semântico-lexicais construídos, foi selecionada a carta 39, com as designações para o conceito das ‘coisinhas redondas de vidro com que os meninos gostam de brincar’ (QSL 156).
CONJECTURAS TEÓRICAS: VARIAÇÃO REGIONAL E ESTUDOS LEXICAIS Conforme já foi mencionado ao introduzir este artigo, é a partir da sociolinguística que a língua é explicada segundo a interferência de elementos sociais do falante a exemplo de gênero, faixa etária, escolaridade, localização, sendo esses, portanto, pertences à dimensão chamada diastrática. A Dialetologia, por sua vez, se limita a investigar as realizações linguísticas de uma dada comunidade, sem necessariamente, interpretá-las à luz de restrições externas, mas dentro da própria estrutura da língua ou, como tem sido mais
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recorrente, com a adoção do método cartográfico emprestado pela geografia, daí o fato de esse método ser chamado de Geografia Linguística ou, simplesmente, Geolinguística, responsável pelos estudos de variação regional. A aplicação desse método, embora ainda pouco conhecido e não alcunhado, foi pensada por Nascentes (1958), visando à realização de uma descrição detalhada no idioma falado no Brasil. Contudo, esse feito pareceu mais difícil do que ele pensava. Assim, o linguista adiou a elaboração de atlas regionais e também o seu projeto de Atlas Linguístico de Brasil. Nas Bases para a elaboração do Atlas Linguístico de Brasil, o autor preconiza que: [...] embora seja muito vantajoso um atlas feito ao mesmo tempo no país inteiro, pois o fim não é muito distanciado do início, os Estados Unidos, país vasto com belas trilhas, preferiram a elaboração de atlas regionais, para uni-los depois no atlas geral. Igualmente nós deveríamos fazer isto em nosso país que também é vasto (NASCENTES, op cit, p. 07).
Desde o fim dos anos cinquenta, portanto, estão sendo ampliados alguns trabalhos importantes que têm servido de apoio teórico aos estudos variacionistas e, pelo continuum, para as pesquisas geolinguísticas mais recentes (CARDOSO, 2010). O trabalho pioneiro de Nelson Rossi em 1963, chamado Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB, foi a inspiração para a confecção de vários outros trabalhos hoje encontrados tanto nas bibliotecas do Brasil, como do exterior. Após o estudo realizado na Bahia, foram construídos o Esboço de um Atlas Linguístico de Minas Gerais – 1977, o Atlas Linguístico da Paraíba – 1984, o Atlas Linguístico de Sergipe – 1987, o Atlas Linguístico de Paraná – 1994, o Atlas Linguístico e Etnográfico da Região Sul do Brasil – 2002, o Segundo Atlas Linguístico de Sergipe – 2005, o Atlas Linguístico Sonoro de Pará – 2004, o Atlas Linguístico do Amazonas – 2004, o Atlas Linguístico de Paraná - II –
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2007, o Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul – 2007, o Atlas Linguístico do Estado do Ceará – 2010, o Atlas Linguístico de Goiás – 2012, o Atlas Linguístico de Pernambuco - 2013. Existem, ainda, alguns atlas regionais em fase de implantação, que pertencem aos Estados do Maranhão, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, Rondônia, Pará e Alagoas, além de outras dissertações e pesquisas já concluídas ou em elaboração, enfocando atlas microrregionais. Nos atlas linguísticos mencionados, são registradas tanto diatópica quanto diastraticamente variantes de natureza fonética, léxica e morfossintática. Nesse prisma, cabe salientar que o léxico de um povo é bastante variável graças à história e à cultura do falante que detém um vocabulário transmitido de geração pra geração, o que se confirma nas palavras de Biderman (2001, p. 179) quando assevera que o léxico reflete “a somatória de toda a experiência acumulada de uma sociedade e do acervo da sua cultura através do tempo”, ou seja, o léxico de uma língua constitui um grande banco de dados sobre as palavras e outras unidades usadas na linguagem espontânea.
A ‘BOLA DE GUDE’ PELO BRASIL A FORA Para se ter uma ideia de como a ‘bola de gude’ é denominada em alguns estados brasileiros, foram usados os dados registrados em seis atlas linguísticos estaduais. Desses, apenas no Atlas Linguístico de Sergipe II (CARDOSO, 2002), a resposta foi única para todos pontos de inquérito: marraio. Isso se confirma nas palavras do historiador Barreto (2007) quando fala da cidade de Aracaju e de outras, no estado de Sergipe, como palco do que aparentemente seria uma modalidade do jogo apelidada de “jogo do marraio”. Segundo ele, esse jogo adquiriu características peculiares em Sergipe, diferenciando-o daqueles jogados em outras regiões.
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O quadro a seguir apresenta as variantes encontradas em outros estados e as convergências de cada um. Quadro 2: Denominações para ‘bola de gude’ no Brasil AM
GO
MG
MS
PB
Bila
x
Bilazinha
x
Bilha
x
Biloca
x
Bilosca
x x
Biroca
x
Birola
x
Bola de fona Bola de gude
x
Bola de vidro
x
Bolica Bolinha
x
x x
410
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Bolinha de fona
x
Bolinha de gude Bolinha de vidro
x
Bolinha-crica
x
x
x
x
x
x
Bolita
x
x
Botila
x
Bule
x
Burca
x
China
x
Crichi
x
Fona
x
Gude
x
x
Gurca
x
Gurquinha
x
Peteca
x
Tila-tila
x
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ANÁLISE DIATÓPICA E DIASTRÁTICA DOS DADOS REGISTRADOS EM PERNAMBUCO As respostas à pergunta 156 do Questionário Semântico-Lexical (QSL) tiveram algumas realizações que podem delinear possíveis marcas dialetais do falar pernambucano, haja vista a distribuição dessas realizações nas mesorregiões de maneira bastante distinta. A carta 39 do Atlas Linguístico de Pernambuco (SÁ, 2013), conforme a figura 1, pode dar uma ideia da situação. Figura 1: Distribuição das denominações de bola de gude no ALiPE (SÁ, 2013)
À exceção das denominações ‘bola de vidro’ e ‘bolita’, as demais respostas foram bem distribuídas no mapa de Pernambuco, o que se confirma nos percentuais dispostos no gráfico 1: 412
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Gráfico 1: Distribuição percentual das denominações de bola de gude no ALiPE
Conforme o gráfico aponta, a variante ‘bola de gude’, a resposta motivadora atingiu maior percentual, chegando aos 46% do total. O termo ‘bola de gude’ ou simplesmente ‘gude’ está dicionarizado em Houaiss (2009) como um ‘jogo infantil com bolinhas de vidro que, num percurso de ida e volta, devem entrar em três buracos dispostos em linha reta, saindo vencedora a criança que chegar primeiro ao buraco inicial’. Segundo o mesmo dicionário, o termo se origina de ‘gode’, uma espécie de regionalismo do Minho, região portuguesa, com o sentido de ‘pedrinha lisa e redonda’. Com 28%, os informantes responderam ‘bila’, do francês bille ‘bola’. Esse mesmo item lexical na língua de origem está registrado no Atlas Linguistique de la France e no Atlas Linguistique de la Wallonie (joue de billes). No Brasil, apesar da escassez de referências lexicográficas, dicionários de regionalismos registram o verbete como variante lexical do Nordeste, particularmente do Piauí, da Paraíba e de Pernambuco. A denominação ‘ximbra’ foi proferida pelos informantes com 16% do total de ocorrências e, curiosamente, não há uma referência etimológica comprovada a respeito. A despeito de suspeitas de o verbete ser apenas ex413
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pressivo, Pereira da Costa (1937, p.752) fala de uma possível corruptela ou deturpação do vocábulo latino similis ‘similar, igual’. Consta, ainda, em Pereira da Costa (1937) que saiu no Diário de Pernambuco, nº 12 de 1916 a seguinte manchete: “Estão hoje unidos. Separar-se-ão na escolha do Presidente da República, por cuja cadeira tanto um como outro dá a vida. Ximbre com ximbre; retalhos da mesma chita”. Na opinião do autor, a expressão seria uma deturpação de similis cum similibus facile congregantur. Nada impede, conforme o autor, que o vocábulo ximbra se associe a essa origem, simbolizando a matéria com que as bolas eram construídas desde que chegaram ao Brasil na colonização portuguesa. Seis por cento do total de respostas couberam à ‘bolita’. Esse termo, segundo encontrado em Houaiss (2009), advém de bola + ita, influenciado pelo espanhol platino ‘bolita’, com igual sentido e com apenas 4% do total, chega-se à resposta ‘bola de vidro’. Das variantes encontradas em Pernambuco, é possível verificar as convergências com os registros de outros estados. Quadro 3: Distribuição das denominações de bola de gude em Pernambuco e em outros estados GO
MG
MS
Bila Bola de gude
x
Bola de vidro Bolita
x
x
Ximbra
PB
PE
x
x
x
x
x
x x x
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Conforme o quadro apresenta, as variantes ‘bila’ e ‘bola de vidro’ convergem com a Paraíba, enquanto ‘bola de gude’ converge com a Paraíba e com o Mato Grosso do Sul. ‘Bolita’, por sua vez, também foi registrada nos atlas de Goiás e do Mato Grosso do Sul. Fazendo uma breve análise à luz da dimensão diageracional sobre a carta da ‘bola de gude’, é possível perceber uma variação estável (NARO, 1994, p. 84) em relação ao uso dessa variante, uma vez que tanto os mais jovens quanto os que ultrapassam os cinquenta anos a utilizam para designar o objeto de brincadeira infantil. Já a variante ‘bila’ atinge uma frequência maior entre os falantes mais jovens e diminui quando a idade do falante avança, refletindo um caso de mudança em progresso. Já no caso de ‘ximbra’, única marca dialetal de Pernambuco, conforme os dados apontaram, ocorre o inverso, ou seja, a frequência aumentou nos grupos de maior idade, caracterizando-se um processo de mudança, o que faz com que, no futuro, o vocábulo poderá ser completamente arcaizado, enquanto ‘bolita’ ainda não se estabeleceu no sistema.
CONCLUSÃO O estudo realizado permitiu identificar as variantes para ‘bola de gude’ em Pernambuco a partir dos registros cartografados no atlas linguístico do estado nordestino. Considerando que a bola-de-gude se constitui de um item lexical relacionado às brincadeiras infantis, é natural que a quantia de ocorrências variáveis esteja relacionada às questões sócio-histórico-culturais dos povos pernambucano. Percebeu-se no inventário de variantes dois itens que têm ‘bola’ como parâmetro motivador: bola de gude e bola de vidro, ao contrário do que ocor-
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reu em outros estados que registraram denominações para o mesmo caso, enquanto os itens bila e bolita também são encontrados em outros estados. Porém, a verdadeira marca do falar pernambucano se chama ximbra, muito embora não se espere que ela faça parte do inventário linguístico desse povo, haja vista o percentual em que ela perpetua apenas na fala dos habitantes que ultrapassam os cinquenta anos. Mesmo assim, o que foi apresentado nesta pesquisa apenas reforça a necessidade de se conhecer como se expressa o povo de uma comunidade distinta que, mesmo aparentada com outras da mesma região, possui marcas específicas, relacionadas à própria formação de seu povo e de sua cultura.
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