Língua e literatura na contemporaneidade: o status do leitor multitarefa. Parte 2

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Resumo O presente artigo enfoca a argumentação escrita em português por surdos usuários da LIBRAS (Língua Brasileira de Sinais), especificamente, a identificação de marcas da LIBRAS na argumentação em comentários analíticos escritos em português, resultantes de processos da retextualização de comentários feitos em LIBRAS pelos mesmos produtores dos textos escritos. Para tanto, adotamos o modelo de Leitão (2000), para quem o argumento baseia-se numa unidade triádica composta pelo argumento (constituído de ponto de vista e justificativa), contra-argumento e resposta. O objetivo deste trabalho foi identificar sequências textuais nos textos argumentativos escritos em português produzidos por surdos que apresentam marcas da LIBRAS, categorizando e verificando se essas marcas predominam nos argumentos de maior força. A análise do corpus revelou que a maioria dos voluntários usou apenas a estrutura argumentativa mínima (ponto de vista – justificativa). Palavras–chave: argumentação; LIBRAS; escrita em português; surdos


MARCAS DA LIBRAS NA ARGUMENTAÇÃO ESCRITA EM PORTUGUÊS POR SURDOS Camila Michelyne Muniz da Silva (UFPE/CNPq)1 Orientadores: Profª. Drª. Gláucia Nascimento (UFPE/CNPq)2 Prof. Me. Jurandir F. Dias Júnior (UFPE/CNPq)3 Profª. Drª. Wilma Pastor (UFPE/CNPq)4

INTRODUÇÃO Nos últimos anos, tem-se observado o crescimento da atuação dos surdos em diferentes setores da sociedade, de onde costumavam ser alijados. Entendemos que isso se deve à criação da Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que reconhece a LIBRAS como forma de expressão e comunicação das pessoas com deficiência auditiva, e do Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que dispõe sobre a inclusão da LIBRAS nos currículos escolares; sobre a formação do professor e instrutor de LIBRAS; sobre a educação das pessoas surdas; a formação do intérprete e sobre os direitos dos surdos. A partir dessa legislação, a sociedade começou a abrir mais espaço para os indivíduos desprovidos de audição. Porém, segundo dados do censo de 2010 do IBGE, há um total de 9.717.318 de indivíduos com algum tipo de deficiência auditiva no país. Desse grupo, com 5 anos ou mais de idade, 7. 281. 134 são alfabetizados. Na faixa etária de 7 a 19 anos, 813.249 frequentam escolas ou creches e 655.769 deles são alfabetizados. Segundo o Ministério da Educação, em 2010, o número de matrículas de pessoas com algum tipo de defi-

1. Estudante do curso de Letras/Licenciatura - UFPE. camilamichelyne@hotmail.com 2. Professora Doutora - UFPE. profa_glaucia@yahoo.com.br 3. Professor Mestre - UFPE. jurajr@gmail.com

4. Professora Doutora - UFPE. wilmapastor@gmail.com 313


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ciência auditiva era de pouco mais de 70.000, destes, pouco mais de 50.000 em escolas comuns e quase 20.000 em escolas especiais. A partir desses dados, podemos perceber o quão distantes ainda estão os surdos de uma formação escolar plena, item indispensável na construção de uma sociedade inclusiva e igualitária. Diversos fatores contribuem para que isso aconteça. Um deles, segundo Nascimento (2008), é o fato de que a escola brasileira ainda não está bem preparada para dar a devida assistência aos surdos. A maioria dos professores que dão aulas de todos os componentes curriculares para surdos demonstram saber muito pouco sobre o universo da surdez e sobre as práticas de letramentos desse grupo social. Provavelmente, isso é o que resulta práticas pedagógicas insatisfatórias e desestimula o ingresso e a continuidade de muitos surdos na educação formal. Os surdos pertencem a uma minoria linguística usuária de uma língua que, embora seja a segunda língua oficial do Brasil, ainda é desconhecida de muitos, a LIBRAS, que é aprendida naturalmente com o convívio entre pessoas surdas, sendo considerada sua língua natural, ou L1. Para interagir com a maioria ouvinte da sociedade em que estão inseridos, precisam aprender o português escrito como segunda língua ou L2, e isso faz com que tenham que lidar com duas línguas de naturezas bastante distintas: uma gesto-visual, a LIBRAS; e outra oral-auditiva, o português. Sabemos que a fala é a matriz para a aprendizagem da escrita. Embora haja diferenças entre a fala e a escrita, essas duas modalidades de uso de uma língua oral-auditiva apresentam mais semelhanças do que diferenças entre si (MARCUSCHI, 2001). Por isso podemos afirmar que a fala, modo natural de expressão das pessoas em geral, constitui uma matriz para o modo artificial de expressão, que é a escrita. Os ouvintes aprendem a modalidade escrita de sua língua usando como modelo a fala dessa mesma língua. Já os surdos, aprendem o português escrito, em geral, sem terem desenvolvido a capacidade de fala (o que é possível na maioria das vezes). Por esse motivo, os textos escritos por surdos apresentam uma superfície híbrida (NASCIMENTO, 2011), em que atuam dois sistemas distintos: o do português e o da LIBRAS. Essa superfície híbrida expressa o fenômeno

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denominado de interlíngua (SELINKER, 1972; 1994 apud NASCIMENTO, 2011), que consiste no uso de características da língua materna (L1) e da língua alvo no mesmo texto, na medida em que o aprendiz vai tendo contado com a L2. A escrita de textos em geral em português é uma atividade que oferece bastantes dificuldades para esses indivíduos. Em relatos informais de professores de surdos, esses profissionais dão conta de que os textos escritos que parecem oferecer mais dificuldades de produção para os surdos são os que expressam a atividade discursiva da argumentação. Isso ocorre mesmo com os surdos que demonstram significativa desenvoltura nas interações face a face por meio da LIBRAS. A argumentação é a atividade discursiva de defesa de um ponto de vista, com o objetivo de persuasão, ou seja, com o objetivo de convencer o interlocutor que o ponto de vista do argumentador é correto e coerente. De acordo com Velasco (2010, p. 42), “um texto argumentativo é aquele que comporta ao menos um argumento, sendo possível a identificação tanto da tese central defendida (conclusão), fruto da inferência, como também das informações que embasam tal base (premissas).” Com base em Leitão (2000), podemos, também, denominar a conclusão como ponto de vista e as premissas como as justificativas para a validação desse ponto de vista. De acordo com Eemeren, Grootendorst; Kruiger, 1987 apud Leitão, 2000, a argumentação pode ser definida como uma atividade social de natureza discursiva em que indivíduos que expressam pontos de vista divergentes sobre um tema e defendem suas posições com vistas ao convencimento de seus interlocutores. “Nesta perspectiva a argumentação se define, portanto, como uma atividade de natureza eminentemente dialógica (envolve multiplicidade de perspectivas) e dialética (pressupõe oposição)”. (LEITÃO, 2000, p. 351). Entendemos, por isso, que como a atividade da argumentação possibilita aos indivíduos a defesa de suas ideias, pode contribuir para que, em diferentes contextos sociais, os indivíduos possam lutar por direitos de cidadania e defendêlos. Além disso, especialmente quando inclui além da expressão de ponto de vista e uma justificativa, um contra-argumento (antecipando um enlace de um

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possível opositor), a argumentação se mostra como uma ferramenta de grande peso no desenvolvimento de aprendizagens. Considerando, portanto, a relevância da argumentação tanto para a defesa de ideias e, consequentemente, para defesa de direitos de cidadania, quanto para a otimização de processos de aprendizagem, entendemos que o ensino formal de estratégias de argumentação é indispensável a todos os indivíduos. Como já informamos acima, as superfícies dos textos escritos em português por surdos são híbridas, ou seja, apresentam marcas da LIBRAS. Em se tratando de gêneros textuais predominantemente argumentativos, consideramos a hipótese de que as sequências que expressam a defesa da opinião do autor surdo devem apresentar bastantes marcas da LIBRAS, visto que é esta língua que expressa de modo mais legítimo suas visões de mundo. Acreditamos, inclusive, que essas marcas devem ser mais evidentes nos argumentos de maior força na sequência textual. Como estes indivíduos demonstram mais dificuldades com textos escritos de natureza argumentativa, defendemos que os professores devem conhecer as peculiaridades de textos argumentativos escritos por surdos, a fim de que possam contribuir para que esses estudantes desenvolvam bem habilidades e competências para expressarem por escrito em português, de modo mais claro, suas ideias, além de poderem desenvolver aprendizagens em geral, nas reflexões e raciocínios que envolvem o processo de argumentação.

REVISÃO DA LITERATURA Argumentação Em diferentes contextos sociais, as pessoas necessitam argumentar, isto é, defender suas opiniões, apresentando justificativas. Logo, entendemos que argumentar é uma atividade pela qual defendemos nossos pontos de vista. De acordo com Ducrot (1987), a argumentação está inscrita na estrutura semântica de uma língua, de modo que, mesmo em textos predominantemente narrativos,

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por exemplo, é possível perceber uma orientação argumentativa. Há textos, porém, que apresentam a atividade argumentativa de modo mais evidente, ou seja, apresentam argumentos (ponto de vista e justificativa). Estes são os textos que interessam a esta pesquisa. Como já informamos, para Leitão (2000), a argumentação como uma atividade social e discursiva realizada por meio da justificação de pontos de vista que considera visões contrárias, a fim de proporcionar mudanças na representação dos participantes quanto ao tema abordado. Para essa autora, a argumentação é uma atividade de natureza dialógica, pois envolve referência ao discurso de um opositor (mesmo que este seja hipotético) e pressupõe oposição, embates de ideias (LEITÃO, 2000, p. 351). Além disso, a argumentação é uma discussão essencialmente crítica ao possibilitar a construção, negociação e transformação dos pontos de vista, pois pode desencadear processos de revisão de tais pontos, quando inclui enlaces de contra-argumentação. Assim, diante do confronto entre o ponto de vista do argumentador e dos pontos de vistas alternativos, surgem dúvidas e contra-argumentos que incitam o argumentador a examinar e rever sua posição. Tal revisão se dá por meio de reafirmação, ajustamento ou abandono do ponto de vista anteriormente defendido. Segundo Leitão, 2000, sendo uma atividade discursiva, possibilita nos indivíduos o processo de revisão dos seus pontos de vista, através do exame de pontos de vista contrários apresentados pelos interlocutores, além de dúvidas e contraargumentos dos interlocutores. Assim, o argumentador pode reafirmar, ajustar ou abandonar o seu ponto de vista. Segundo essa autora, o argumento baseia-se numa unidade triádica composta pelo argumento, contra-argumento e resposta. No argumento, expõem-se o ponto de vista e a justificativa; o contra-argumento é a ideia que vai de encontro ao ponto de vista apresentado pelo argumentador; e a resposta é a reação do falante aos contra-argumentos levantados. Também já informamos, mas consideramos importante reiterar aqui a concepção de Velasco em relação ao texto argumentativo. Para esse autor, um texto argumentativo é aquele que comporta ao menos um argumento, constituído da

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tese central defendida (conclusão), fruto da inferência, como também das informações que embasam ou justificam a tese (premissas). Devido à necessidade de refletir e raciocinar para construir argumentos, Velasco (2010) também defende a importância da argumentação nos processos de aprendizagem. Considerando um texto predominantemente argumentativo, Ducrot (1987) apresenta as noções de classe argumentativa e escala argumentativa. A classe argumentativa consiste num argumento ou numa sequência de argumentos de igual valor, direcionados para uma conclusão (p, p são argumentos para a conclusão r). Já a escala argumentativa consiste numa série de argumentos, indo dos mais fracos para os mais fortes, direcionados para uma mesma conclusão (p, p’ são argumentos para a conclusão r). Embora a argumentação seja uma atividade bastante comum no dia a dia, esta pode ser aprimorada na escola. Considerando que essa atividade, quando realizada por meio da escrita, oferece mais dificuldades para os surdos do que outras atividades linguístico-discursivas, entendemos que deva ser dada uma atenção especial ao ensino da argumentação escrita na educação de surdos.

A escrita dos surdos Por ser uma minoria linguística usuária de uma língua vísuo-espacial, os surdos utilizam o português escrito como forma de interação com os ouvintes. No processo de aquisição da língua portuguesa escrita, está presente o fenômeno da interlíngua (SELINKER, 1972; 1994), que se caracteriza pela mistura, ou pelo imbricamento das duas línguas em questão: a língua materna, já internalizada, e a segunda língua, em processo de aquisição/aprendizagem. Esse fenômeno não é exclusivo dos surdos, pois pode ser observado em textos produzidos por qualquer aprendiz de segunda língua. No caso dos surdos, a interlíngua se caracteriza por um tipo de hibridismo estrutural bastante atípico (NASCIMENTO, 2008), pelo fato de terem que lidar com dois sistemas linguísticos de naturezas bastante distintas, uma vez que uma língua é vísuo-espacial (LIBRAS) e a outra,

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oral-auditiva (português). Essas sequências híbridas podem parecer, à primeira vista para os leitores leigos no assunto, ininteligíveis, pelo fato de serem atípicas. Porém, e possível construir sentidos a partir dessas sequências, especialmente em função do léxico constituinte da superfície textual. Por meio da seleção lexical, percebe-se que o indivíduo discorre logicamente sobre um assunto. A interlíngua é um processo constituído por fases. Cada uma das etapas da interlíngua refere-se ao sistema linguístico empregado por um falante não nativo num determinado momento do processo de aquisição/aprendizagem de L2. Como explica Dias Júnior (2010, p. 56): Esse sistema apresenta características da língua materna do aprendiz e da língua-alvo, somadas à criatividade que o estudante vai adquirindo/ aprendendo, à medida que se expõe à L2. Não há como determinar a quantidade de fases que a interlíngua poderá apresentar, sabe-se, somente, que quanto maior o nível de exposição, mais rápido será o processo de aquisição/aprendizagem da língua-meta.

Diante disso, a escola tem um papel fundamental no sentido de promover aos surdos a aprendizagem satisfatória do português escrito, para que produzam textos cada vez menos híbridos e atípicos, e possam estabelecer a comunicação com os ouvintes da maneira mais clara possível. Através de um trabalho mais voltado para o desenvolvimento de suas capacidades de leitura e produção de textos poderão ter com a escrita correta do português, mais uma ferramenta de ação na sociedade, bem como de diminuição das ideias preconceituosas com relação à sua produção textual.

METODOLOGIA DO TRABALHO Para realização da pesquisa foram feitas 13 sessões para coletas de dados. Participaram 13 candidatos voluntários, todos com perda auditiva entre profunda e moderada; indivíduos que são usuários da LIBRAS entre 12 a 26 anos; sendo 6 319


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deles com formação no ensino médio, e 6 com formação superior. Entre os voluntários, 7 residem na cidade do Recife, 2 residem no município de Limoeiro e 4 residem no município de Caruaru. Em princípio, pretendíamos coletar dados apenas de voluntários do Recife e de Caruaru, a fim de verificar se havia alguma diferença no desempenho dos surdos na escrita, o que poderia indicar diferença de qualidade da assistência escolar aos surdos entre os locais. Porém, devido à dificuldade de conseguir voluntários, decidimos proceder a coletas também em Limoeiro, município que se situa a 70 km do Recife. Considerando a proximidade daquele município desta capital, e sabendo que os surdos de Limoeiro têm contato bastante frequente com os surdos do Recife, uma vez que muitos estudam e trabalham aqui, entendemos que as diferenças de desempenho podem ser muito semelhantes aos surdos que moram no Recife. Então, incluímos as produções dos voluntários de Limoeiro na mesma categoria das produções dos voluntários do Recife. Os encontros para as coletas consistiram na apresentação da pesquisa ao candidato voluntário e sua aceitação mediante assinatura de um termo de consentimento; apresentação do tema sobre o qual o voluntário deveria expor seu(s) ponto(s) de vista por meio da LIBRAS; gravação em vídeo do comentário argumentativo do voluntário; retextualização feita pelo voluntário do seu texto gravado; digitalização e digitação dos textos; análises dos textos escritos, levando em consideração o processo de retextualização LIBRAS-português, as sequências argumentativas de maior peso e as marcas da LIBRAS presentes nessas sequências. Os comentários argumentativos resultantes das retextualizações feitas pelos voluntários serão apresentados na próxima seção deste relatório. Adotamos, para a identificação dos voluntários, códigos alfanuméricos, de modo a preservar suas identidades, a saber: R (Recife), C (Caruaru), L (Limoeiro) e os números equivalentes à ordem de coleta dos dados em cada local. Com os textos produzidos pelos voluntários devidamente digitalizados e digitados, procedemos à identificação das sequências argumentativas. Optamos por dois modelos de argumentos. O primeiro, apresentado por Velasco (2010), segundo o

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qual um argumento se constitui de uma tese central, ou ponto de vista, e pela(s) premissa(s), ou justificativa(s), que é uma estrutura argumentativa mínima. O segundo, apresentado por Leitão (2000), trata-se se um modelo triádico, que inclui as estruturas, além do ponto de vista e da(s) justificativa(s) contra-argumento e resposta, na constituição de um argumento completo. O que foi recorrente nos textos do corpus foi o modelo de argumento ponto de vista e justificativa. Para a análise, a fim de demonstrar diferentes fenômenos simultaneamente num mesmo texto, decidimos marcar em cores distintas cada parte dos argumentos identificados, a saber: de verde ponto de vista/conclusões, de azul as justificativas/premissas, e de vermelho as marcas da LIBRAS.

RESULTADOS A partir da análise dos textos e da tabela com os dados pessoais dos participantes,5 pudemos chegar ao primeiro achado relevante, embora previsível, da pesquisa: quanto maior o grau de escolaridade, maior a possibilidade de preservação dos sentidos pretendidos. Dos 7 voluntários que possuem ensino superior completo, 3 defenderam seu ponto de vista com maior clareza. A análise revelou que nem todos os voluntários produziram textos predominantemente argumentativos�. Dos 13, 4 produziram narrativas, dentre essas produções, 1 se constitui de relatos das próprias experiências do surdo para embasar seu ponto de vista a respeito do tema proposto, como podemos observar em R/L/V4: “Como professores educar na minha infância? Só aprendi a ler os livros

5. Esclarecemos que compreendemos, tal como defende Ducrot (1987), que existem diversos mecanismos inerentes à própria estrutura semântica da língua que podem direcionar o sentido de um texto para a argumentação. Em função disso, apenas a seleção do vocabulário de um texto, por exemplo, mesmo que este seja predominantemente expositivo, pode indicar uma direção argumentativa do autor, isto é, a valoração positiva ou negativa de um fato, fenômeno, tema etc. Ou seja, pode-se argumentar por meio de outros tipos textuais, que não o tipo argumentativo. Contudo, solicitamos aos voluntários da pesquisa a produção de comentários, gêneros que visam à exposição de opiniões do autor, vinculadas a justificativas dessas opiniões. Por esse motivo, optamos por analisar apenas os textos que apresentaram esse perfil linguístico-discursivo. 321


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e Ø[com] colegas, os professores me explica pouco. Muitos professores deixava eu passar para outra série, aprendi pouco a disciplina na escola inclusiva.”. Por esse motivo, este foi considerado para a análise. Os 3 demais são também narrativas de experiências pessoais dos autores, porém sem a finalidade de defender um ponto de vista, já que este não foi exposto, como se pode constatar em CV4: “Eu sou (nome do voluntário) espero anos 2005 (nome da escola) eu ver professo não conheço fala muito nada não ainda responde nada ganhou i eu gostou muito professor mal chuta porque professor fala gosta muito ouvir eu esto triste muito bom difícil meno matematica fim”. Nesse texto, não percebemos a formação de um argumento (conclusão e premissa), há apenas uma narração de fatos que aconteceram na vida escolar do voluntário, mas sem menção a uma opinião e defesa dessa opinião. Os demais voluntários (9) produziram textos predominantemente argumentativos, apresentando argumentos constituídos de ponto de vista-justicativa. Considerando o modelo proposto por Leitão, eles não apresentaram contra argumentos, que são ideias que refutam o ponto de vista do argumentador e que provocam uma reflexão sobre o mesmo, resultando na sua modificação ou permanência. O modelo ponto de vista-justificativa produzido pelos voluntários se enquadra naquele proposto por Velasco, em que há uma conclusão, que é a tese central do texto, e as premissas, que são as justificativas. Podemos perceber no trecho de RV1 “A escola Bilingue é importante para os alunos surdos, porque ter tudo o dentro de material a própria surda, atividade de conhecimento do mundo dos surdos, a cultural surda, identidades surdas, visual o espaço de expressão facial e o corporal, contexto em LIBRAS e etc...” a apresentação do seu ponto de vista (em verde) e a sua justificativa (em azul). O segundo achado que nos parece importante diz respeito ao conector mais usado para a ligação entre o ponto de vista e a justificativa: o ‘porque’, que a nosso ver, se deve ao fato de essa ser uma palavra do português que possui um sinal correspondente em LIBRAS, que é usado tanto para perguntas, quanto para respostas. Outras conjunções como ‘pois’, ‘como’, por exemplo, não têm sinal próprio

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na LIBRAS, sendo substituídos pelo ‘porque’ em situações de tradução. Além disso, o sinal ‘por que’, para perguntas, é bastante recorrente na argumentação dos surdos por meio da LIBRAS, como introdutor de perguntas retóricas, cujas respostas têm início com ‘porque’ (explicativo ou causal). • Prosseguindo a análise, encontramos marcas da LIBRAS em todos os argumentos, mesmo nos textos dos voluntários que têm um grau de escolaridade maior. Fazemos referência à escolaridade, uma vez que entendemos que, em tese, quanto mais anos de estudo, melhor a qualidade da escrita. Ou seja, esperávamos que os textos escritos por surdos com maior grau de escolaridade apresentassem menos marcas da LIBRAS, fato que não se confirmou. Abaixo, apresentamos sequências textuais para exemplificar o que dissemos: Em RV1 “porque ter tudo”; RV2 “Eu tenho pensando”; RV2 “surdos poder entrar”; R/L/V4 “Vão perdido”; CV2 “Eu entender fazer escrever” (sequenciação de verbos que não obedecem a critérios de construção de tempos compostos, perífrases verbais e da constituição de períodos complexos em português); • Em RV1 “para comunicar entre surdos e ouvintes”; R/L/V4 “É importante continua este discutir”(uso de verbos em contextos em que o português adota o uso de nomes – substantivos e adjetivos); • RV2 “Eu precisa”; RV3 “surdos precisar”; R/L/V4 “professores deixava”; CV2 “eu não entender” (dificuldade com a flexão de tempo, modo, número e pessoa dos verbos); • Em RV2 “propria Ø[para] surdos”; R/L/V4 “Exemplo se a fala for só Ø[de] alunos surdos”; R/L/V4 “Só aprendi a ler os livros e Ø[com] colegas” (omissão de preposições e a inserção desse tipo de palavras em contextos em que estas são dispensáveis).

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Sete dos textos apresentam apenas um argumento, em todo o texto, em sua estrutura mínima: ponto de vista e justificativa: • RV1 “A escola Bilingue é importante para os alunos surdos, porque ter tudo o dentro de material a própria surda, atividade de conhecimento do mundo dos surdos, a cultural surda, identidades surdas, visual o espaço de expressão facial e o corporal, contexto em LIBRAS e etc...”; • RV6 “é o melhor estudar com surdos do que estuda com ouvinte [...]É dentro tudo tem em Libras, até os professores já sabem em Libras são disciplinas também são Libras. No dentro tem ensino sobre gramáticas e várias de português tem o tudo.”; • RV7 “Eu defeso escolhar bilíngue porque, essa bilíngue é surdos todos dentro na escola dentro a bilíngue L1- Llíngua 1 aprender uma língua de sinais L2- língua 2 português este importar + bilíngue aprendizagem vários as disciplinas de informação”; • RV8 “escola inclusiva são eu era criança na escola particular e estudava, ouvintes mais e eu só única surda, sou oral, sala de aula não tem interprete, eu lembrei mais menos 8 ou + anos, tinha muito tímida (vergonha) porque sou idade mais do que alunos menor idade, apenas usava muito boneca, eu fiquei longe Ø [dos]alunos dentro sala de aula diferente. Não aprendir bem e pou nada, prof. Falar a falar, palavras mais vocabulas muitas, só aprendi letra de escrever, uma palavra significado nem nada claraza, ingonara, alguns pouco entendi mas só sei casa, água, comer, lanche só usando sempre e usava dentro Ø[da]minha casa Ø [com] família e só aprender as palavras, minha família não usava libras nenhum, ex só leitura labial puro, eu viver mais inclusiva, alfa até 4° serie, passei mas não ficou perfeita minha

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português tbm nem frases e só palavras sem gênero textual. Veja, 5°s até 8°s são repertidos motivos não tem interprete tbm mãe me explicou mas não entendi bem, por isso tever problema. Prof me explica Tb eu não entendi, prof. Me deu faz de contar e fiquei pouco aprendi. Agora entendi ver social na escola inclusão não tõ bem pq não fiquei melhorando nada, e nem qualidade, nehhum!”; • RV9 “Nunca aprender na hora entender em Português porque eu sou surda é primeira língua de sinais, depois segunda língua Portuguesa, consegui aprendi escrevendo em Ø [língua] Portuguesa. Infelizmente eu era a educação nunca aprender nada (redação), falta muito coisa aprender também aos surdos não sabem escrevem forma de português é dificilmente, falta família ou professor estimular para (o) surdo, sei a família e o professor não sabem em Libras.”; • CV1 “importante que é libras entendo Ø[com] clareza é ver mãos libras cultura assim sentir para os surdos entendo melhor, os professores e interpretes se falar deve interprete ouvindo libras que surdos entenderam bem”; • CV2 “mas minha opinião que eu vi um interprete com ao lado Ø[da] professora explica coisa e eu entendo claro com interprete de Libras. Mas professora não sabe de libras e também alguns libras e falando que eu não entender pouco. Melhor a professora continua falando e interprete de libras fora na sala de ouvintes e m surda com interprete de libras. Eu entender fazer escrever, opinião e redação com professora É bom esse importante inclusão ouvintes e surdos.”. Dos demais, três apresentaram mais de um argumento (sendo um deles a narrativa produzida por um dos voluntários com o intuito de embasar seus argumentos), caracterizando uma escala argumentativa (DUCROT, 1981, p. 182

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e 183, apud NASCIMENTO, 2001) em que vários argumentos são apresentados, seguindo uma linha do mais fraco para o mais forte, mas apontando para a mesma conclusão. Podemos observar esse fenômeno em RV2: “Eu tenho pensando coisa que preocupado social precisa poder incluso, não poder porque eu quero mais que importante só Ø[escola] propria Ø[para] criança surda, não é especial e escola bilingue para surdos, Ø[porque] tem esforço geral ensina tem metodologia dentro para surdos então caracteristica tem texto Ø[dos] surdos esforço geral porque desenvolvimento melhor aprender claro para bilíngüe lingua 1 – libras, lingua – 2 português é isso certo.[...] por isso governo (MEC) mandam fechado escola acabou só aceitou para inclusão porque MEC não conhece que cultura surda e identidade surda vida então surdos lutar mais insiste que escola bilingue para surdos,(argumento 1); “como inclusão sempre geral surdos tem confusão e prejuidica sala de inclusão, professores, interprete Ø[de] libras, surdos não entendi e confusão por isso alunos cego, ouvintes e surdos sempre apratalham por isso surdos Ø[tem] vidas prejuidica nada desenvolvimento e eu não aceito inclusão impossível.” (argumento 2); “Eu precisa lutar foco só crianças surda para escola bilingue só sala propria Ø[para] surdos pode ensino fundamental surdos aprender coisa cultura, conto, didática, etc. por isso surdos tem desenvolvimento sabem tudo então conhece lingua libras e lingua português crescendo depois ensino médio surdos poder entrar sala de inclusão porque surdos já aprendem melhor então essa inclusão conhecer cultura ouvintes social relacionamento para ouvintes e surdos união desenvolvimento então eu preocupado foco só criança surda pára escola bilingue para surdos.” (argumento 3), quando o voluntário lista três argumentos, sendo, a nosso entender, o segundo o mais forte, pois cita o quanto os surdos são prejudicados nas salas de aula das escolas inclusivas e que por isso, para ele, é impossível a inclusão. O mesmo acontece com RV3: “A crianças todos os surdos precisar os professor só surdos ensnar é aprender libras muito rápido Ø[é] importante”.”(argumento 1) “Os surdo também ouventes grupos porque os surdos precisar aprender Ø [língua] portuguesa é importante é ouventes e muito ensna escreva portuguesa surdos também os surdos é ensna libras é igual impor-

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tante relação os surdos vai conseigo escreva portugues porque precisar surdo e ouventes igual portugus escreva.” (argumento 2), em que são apresentados dois argumentos e, no segundo, o qual apresenta mais marcas da LIBRAS, está seu argumento de maior peso. E em R/L/V4: “Sempre vejo grande o problema na escola inclusiva [...]Como professores educar na minha infância? Só aprendi a ler os livros e Ø[com] colegas, os professores me explica pouco. Muitos professores deixava eu passar para outra série, aprendi pouco a disciplina na escola inclusiva” (argumento 1); “A escola Bilíngue ensina a primeira língua de surdos e segundo (segunda) português para integrar (interagir) com a sociedade, como lê os documentos... Este são principal enduca os surdos são Libras que vão progredir a aprendizagem. A escola inclusiva mostrando a Libras inferior e não tem espaço para educar os surdos. Como os surdos vao aprender sem material a Libras na escola inclusiva? Exemplo se a fala for só Ø[de] alunos surdos Ø [que] usa a Libras e professores usa também, se estiver dois alunos ouvintes dentro na sala surdos, será Ø [que]os surdos (ouvintes) vão entender? Vão perdido! Comparar Ø [o]que os surdos sofre na sala ouvintes por sem entender com professores. É importante continua este discutir, sem parar.” (argumento 2); “Soluciona a qualidade na educação de surdos vai ser difícil.[...] Acho Ø[que] a Educação Bilíngue é importante que pode solucionar os problemas na educação , acredito os surdos não progredir por integra (interagir) com outros alunos surdos como língua. Com professores ouvintes que sabe Libras e os professores surdos que vao ajuda bastante.” (argumento 3), nesse caso, para dar mais peso ao argumento 2, o voluntário usa uma comparação de como seria se a situação vivida pelos surdos na escola inclusiva, em que são minoria linguística, fosse vivida pelos ouvintes inseridos em uma maioria surda. Em ambos os casos, os argumentos de maior força apresentam marcas da LIBRAS, mesmo aqueles produzidos por voluntários com maior grau de escolaridade. Segundo a nossa hipótese, as marcas da LIBRAS nos textos argumentativos dos surdos mostrariam as estratégias de maior força argumentativa. Embora não tenhamos confirmado essa hipótese nas sequências argumentativas dos textos

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analisados, ainda não a abandonamos, em virtude de o corpus ser de pequeno porte e em virtude de termos observado no texto do voluntário RV1 (que tem curso superior completo), uma sequência em que o ponto de vista se apresenta numa estrutura bem próxima do português, mas a justificativa apresenta marcas da LIBRAS, tal como pode ser verificado no excerto a seguir: A escola Bilingue é importante para os alunos surdos (ponto de vista), porque ter tudo o dentro de material a própria surda, atividade de conhecimento do mundo dos surdos, a cultural surda, identidades surdas, visual o espaço de expressão facial e o corporal, contexto em LIBRAS e etc... (justificativa). Além dessas constatações, como já informamos, verificamos que 3 dos voluntários (R/L/V 5, CV3 e CV4) não produziram textos argumentativos. Os textos produzidos têm mais características de narrativas, porém, diferentemente do que já foi observado em outros textos nos quais os autores usaram narrativas para embasarem seus pontos de vista, as narrativas produzidas por estes 3 surdos em particular não tem esse propósito, a nosso ver, se trata apenas de relatar suas próprias experiências sobre o tema proposto, corroborando o relato de alguns professores de surdos sobre o fato de que a atividade discursiva da argumentação é a que mais apresenta dificuldades de produção por parte dos surdos. Um dado que nos chamou a atenção é o fato de que esses 3 três voluntários residirem no interior do estado. Provavelmente, a assistência escolar da capital seja de melhor qualidade.

CONCLUSÕES Os resultados da pesquisa nos fez chegar às seguintes conclusões: a formação escolar básica dos surdos no Brasil ainda não conseguiu atingir um nível satisfatório, tanto do ponto de vista estrutural, quanto do ponto de vista funcional, pois ainda vemos surdos que não conseguem escrever sobre um tema proposto em determinado gênero. Apesar disso, quanto maior o grau de escolaridade, maior a possibilidade de preservação dos sentidos pretendidos nos textos.

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MARCAS DA LIBRAS NA ARGUMENTAÇÃO ESCRITA EM PORTUGUÊS POR SURDOS

Apesar das dificuldades com gêneros de natureza argumentativa, a pesquisa revelou que a maioria dos voluntários conseguem defender seus pontos de vista por escrito em português, embora usem apenas a estrutura argumentativa mínima (ponto de vista – justificativa). Além disso, parece que há a necessidade de estudos mais dirigidos para o conhecimento dos conectores em português. O conector mais usado para a ligação entre o ponto de vista e a justificativa foi o ‘porque’. Conhecendo mais palavras, certamente, os surdos farão usos delas em seus textos. Finalizando, verificamos que, em todos os argumentos, mesmo nos textos dos voluntários que têm um grau de escolaridade maior, há marcas da LIBRAS. Como usuários do português escrito como segunda língua, esses indivíduos precisam receber mais informações a fim de produzirem textos mais próximos da estrutura do português. Também concluímos que a escola ainda precisa de significativa melhoria para conseguir dar a devida assistência a essas pessoas. Mesmo tendo se passado mais de uma década da criação da lei que regulamenta a LIBRAS como forma de comunicação e expressão dos surdos oficialmente no Brasil, e quase uma década da publicação do decreto que regulamenta a LIBRAS como disciplina nas escolas básicas e cursos superiores de licenciaturas, ainda não chegamos a um nível razoável para o ensino da escrita. Não podemos deixar de mencionar que, mesmo em um número bastante pequeno, alguns surdos conseguem chegar ao ensino superior e apresentam alguma melhoria quanto ao aprendizado do português escrito como segunda língua, entretanto, devido às deficiências encontradas no ensino básico, ainda não esboçam satisfatoriamente as competências e habilidades de escrita, principalmente em contextos mais formais de interlocução. A situação parece ser ainda um pouco pior no interior do estado, pois, como pudemos constatar, os voluntários que não conseguiram atender à solicitação da escrita do comentário argumentativo, são das cidades de Caruaru e Limoeiro, o que significa que a educação dos surdos ainda está passando por um processo lento de aprimoramento.

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Concluímos que todos os aspectos encontrados a partir das análises dos dados contribuem para o melhoramento da educação dos surdos com subsídios para criação de práticas pedagógicas que favoreçam seu aprendizado. É muito importante que descobertas como estas não fiquem restritas ao meio acadêmico, mas que possam contribuir de maneira efetiva no desenvolvimento dos surdos.

REFERÊNCIAS DIAS JÚNIOR, J. F. Ensino da língua portuguesa para surdos: contornos de práticas bilíngues. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – Recife: UNICAP, 2010. DUCROT, O. Provar e dizer: linguagem e lógica, São Paulo: Global, 1981 apud NASCIMENTO, G. R.P. do. A coesão textual em livros didáticos para ensino médio. Dissertação de Mestrado em Linguística. Programa de Pós-Graduação em Linguística. Recife: UFPE, 2001. ______. O dizer e o dito. Campinas, São Paulo: Pontes, 1987. FERNANDES, E. Linguagem e surdez. Porto Alegre: Artmed, 2003. IBGE. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/ caracteristicas_religiao_deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia_tab_pdf.shtm > Acessado em 25 de agosto de 2012. KOCH, I. V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1999. LEITÃO, S. A construção discursiva da argumentação em sala de aula. 2000. NASCIMENTO, G. R.P. do. A coesão textual em livros didáticos para ensino médio. Dissertação de Mestrado em Linguística. Programa de Pós-Graduação em Linguística. Recife: UFPE, 2001. ______. Aspectos da organização de textos escritos por universitários surdos. Tese de Doutorado em Linguística. Programa de Pós-Graduação em Linguística. Recife: UFPE, 2008. MARCUSCHI, L.A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 5. ed. São Paulo: Cortez,2004 SELINKER, L. Interlanguage: International Review of Applied Linguistics, 10, 1972. SOUSA, W. A construção da argumentação da língua brasileira de sinais: divergência e convergência com a língua portuguesa. Tese de Doutorado Programa de Pós-Graduação em Linguística. João Pessoa: UFPB, 2009.

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MARCAS DA LIBRAS NA ARGUMENTAÇÃO ESCRITA EM PORTUGUÊS POR SURDOS

RODRIGUES, C. Minoria surda que estuda sai de sala especial para regular. iG, São Paulo, 08/2011. Disponível em <http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/minoria+surda+que+estuda +sai+de+sala+especial+para+regular/n1597119749750.html> , último acesso em 07/09/12, às 10:00 VELASCO, P. N. Educando para a argumentação: contribuições do ensino da lógica. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2010.

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Resumo Nossa vivência como estudantes de português, primeiramente no ensino básico e, em seguida, o conhecimento de livros didáticos como alunos do curso de Letras, indicamnos que estrutura das palavras do português e seus processos de formação, âmbitos de estudo da morfologia, são conhecimentos dos mais negligenciados no ensino básico no Brasil, o que termina por dificultar o desenvolvimento de habilidades e competências linguísticas relevantes dos estudantes. A abordagem reducionista das gramáticas escolares dá ao ensino da língua um perfil incompleto e superficial, o que acarreta uma aprendizagem insuficiente de uma competência de grande relevância. Com o objetivo de apresentar um panorama de uso, foi feita a análise de um corpus constituído de textos atuais (exemplares do gênero notícia) para comparar esse resultado com abordagens de gramáticas escolares e, com isso, refletir criticamente e verificar se essas gramáticas enfocam os sufixos que, de fato, seriam relevantes para estudantes do ensino básico atualmente. Palavras-chaves:morfologia; sufixação; ensino de língua materna; livro didático.


O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO Rodrigo Fagner Araujo dos Santos (UFPE)1 Ygor Simões da Silva Pereira (FAFIRE)2 Orientadora: Profa. Dra. Gláucia Nascimento (UFPE)3

INTRODUÇÃO Não é novidade que o processo de formação de palavras por meio de derivação sufixal, assim como inúmeros outros fenômenos, tem sido abordado de forma superficial e pouco funcional, tanto pelas escolas, quanto pelas gramáticas escolares, o que termina por causar um desfalque nos pilares do ensino básico da língua portuguesa. O fenômeno de formação de palavras através de sufixação “apresenta um alto teor de regularidade e é um componente fundamental da organização linguística, tanto do ponto de vista semântico e gramatical quanto do ponto de vista textual e estilístico” (BASÍLIO, 2013, p. 7). É com base nessa premissa que a pesquisa aqui apresentada analisa o uso de sufixos em textos de mídia escrita com o intuito de verificar os sufixos mais recorrentes hoje no português do Brasil. A partir desse ponto, pretende-se qualificar os sufixos formadores de substantivos de acordo com sua recorrência em relação aos demais para, com isso, comparar a abordagem da gramática escolar com o resultado obtido na análise dos textos. Tanto a análise quanto a comparação trazem informações relevantes

1. Graduando em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) 2. Graduando em Letras pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE) 3. Doutora e professora na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) 333


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sobre a formação de palavras por meio de sufixação dentro de um contexto de uso atual e também sobre o ensino brasileiro que tem como suporte um material que em algumas vezes pode ser considerado insuficiente. Será tomado como ponto basilar o estudo de Basílio (2013) em que o foco não é o de apenas descrever o processo de sufixação, mas também o de mostrar seu valor como “instrumento fundamental na aquisição e expansão do léxico individual ou coletivo” (p. 7). O trabalho está dividido em três partes: na primeira, são expostas algumas noções e conceitos básicos concernentes à sufixação, assim como a abordagem teórica contida em Basílio (2013), que será utilizada aqui como base, e algumas outras obras de apoio como Basílio (1979, 2003), Monteiro (1991) Bechara (2009), entre outros; a segunda parte é reservada para a análise de textos jornalísticos recentes, mais especificamente publicados no mês de setembro e outubro deste ano, do caderno Viver (entretenimento) e Política do Diário de Pernambuco; esta análise trará como resultado uma recorrência de uso e, com essa recorrência, visase comparar a abordagem em 03 (três) gramáticas escolares de uso atual a qual terminam por constituir um padrão que negligencia o ensino, o estudo, a aquisição, a expansão e o aperfeiçoamento do léxico da língua. O último momento do trabalho está destinado a isso.

RAIZ E AFIXOS: DEFINIÇÕES GERAIS As palavras do léxico de uma língua são formadas por vários elementos mínimos que são raiz, afixo, vogal temática e desinências. Os elementos que serão focados neste trabalho são os dois primeiros (raiz e afixo), principalmente o segundo. As unidades mínimas de significação, dentro da morfologia, são chamadas de morfemas. Estes são considerados unidades mínimas porque não podem ser subdivididos em outras unidades menores. Nessa categoria, encontram-se a raiz e os afixos da língua portuguesa. O primeiro, em geral, é forma livre, ou seja, não precisa estar ligado a uma outra forma para fazer sentido. Assim: pedra, pedrinha, 334


O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

pedregulho, pedreiro, pedregoso, possuem a mesma raiz de origem grega “pedr”, que significa “rocha” ou “rochedo”. Paralelamente a isso, existem os afixos, que são: o prefixo e o sufixo. Estes também possuem significação, mas de outra natureza que a da raiz. Esta apresenta significado lexical, sendo uma forma livre, ou seja, que pode funcionar comunicativamente de modo isolado como um enunciado; aqueles apresentam significado gramatical. São formas presas. Por esse motivo os afixos precisam estar ligados a uma forma livre para fazer sentido. O prefixo – afixo acrescentado antes da raiz – tem como função principal modificar o sentido básico da raiz a que está atrelado (como, por exemplo: acelera / desacelera; capaz / incapaz). Enquanto o sufixo – afixo acrescentado depois da raiz – tem como função principal alterar a classe gramatical no qual a raiz pertence e/ou complementar o sentido básico da raiz (como, por exemplo: livre [adjetivo] / liberdade [substantivo]; frágil [adjetivo] / fragilidade [substantivo]), além de ambos ajudarem na aquisição e expansão do léxico. Esses dois modos de construir novas palavras, com o acréscimo de formas presas à formas livres, são chamados de derivações afixais. A derivação focada nessa pesquisa é a sufixal (também chamada de sufixação). Esta pode formar: verbos a partir de substantivos; substantivos a partir de verbos; substantivos a partir de substantivos; substantivos a partir de adjetivos; adjetivos a partir de substantivos; e advérbios a partir de adjetivos. Delimitando ainda mais o campo de análise, este artigo foca o processo de derivação sufixal formador de substantivos. Os processos de mudança de classe podem acontecer através de vários sufixos e, em suma, possuem grande valor que podem ser de motivação – como diz Basílio (2013, p. 41) – gramatical ou textual, podendo ser sintática ou semântica, dependendo da necessidade de utilização e de “fatores retóricos e expressivos, em diferentes predominâncias e combinações” de acordo com a situacionalidade em que o(s) interlocutor(es) está(ão) inserido(s). Este processo possui importância fundamental e necessária para a construção e perpetuação de uma língua pois “a expansão do léxico não pode se resumir ao aumento do número de símbolos que todos teriam que decorar. Isso tornaria o sistema pouco eficiente pois sobrecarregaria a memória...” (BASÍLIO,

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2013, p. 10). E é por isso que a língua portuguesa mostra-se eficaz apresentando um desempenho natural e suscetível e de fácil aprimoramento, quando bem aprendida e desenvolvida. Outro processo muito influente dentro da derivação sufixal – funcionando, também, no processo de derivação regressiva – é o de nominalização que, basicamente, consiste em um “processo derivacional que é determinado por uma relação paradigmática geral entre verbos e nomes na língua”. Ou seja, esse processo transforma verbos em nomes, como processo de ressignificação, muitas vezes, motivados por elementos sintáticos e/ou semânticos – transformando verbos em substantivos para adicionar a eles uma qualidade, ou como elemento de coesão e coerência textual, evitando a repetição, quando esta for desnecessária. O termo “nominalização” encobre “não apenas nomes deverbais, mas também nomes morfologicamente básicos associados a verbos. Mais especificamente, a nominalização consiste num processo de associação lexical sistemática entre nomes e verbos” (BASÍLIO, 1979, p. 73 e 74). Basílio também divide o léxico em duas partes: o léxico real e o léxico virtual. O primeiro é o “conjunto de palavras da língua”, que já existem e que são consolidadas no léxico da língua portuguesa; enquanto o segundo é “o conjunto de padrões que determinam as construções lexicais possíveis e sua interpretação”. Isso mostra, mais uma vez, a importância dos sufixos nas “construções lexicais possíveis” e, dessa forma, a importância, também de se focar estudos e pesquisas nessa área, visto seu valor tanto nas palavras já conhecidas pelo individuo como nas palavras que podem ser adquiridas para a expansão do léxico individual ou coletivo, assim como nos processos de interpretação textual (BASÍLIO, 2013, p. 11). A partir dessa conceituação, que abarca noções básicas para o entendimento dos pilares teóricos gerais, será demonstrado adiante a relevância de uma abordagem mais completa e específica ao contexto de uso nas gramáticas escolares. Isso será explicitado por meio da análise de notícias jornalísticas e a comparação do resultado desta análise com a abordagem das gramáticas escolares, que, normalmente, são pouco produtivas, superficiais e mal direcionadas, mesmo que bem intencionadas. 336


O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

USO DE SUFIXOS FORMADORES DE SUBSTANTIVOS RECORRENTES: PESQUISA E RESULTADOS Assim como diz Basílio, “a morfologia se concentra em estudos da flexão” (2013, p. 7), o que mostra o descaso com o tema deste trabalho, visto a regularidade que este possui além de ser extremamente necessário para o entendimento e produção textual, assim como para a aquisição, expansão e desenvolvimento lexical da língua materna. O negligenciamento no ensino desse processo, gera um desfalque no aprendizado que, por sua vez, gera outros problemas, como um efeito “bola de neve”, que termina abarcando outras áreas de estudo e ensino da língua, como, por exemplo, a compreensão de texto. É a partir dessa perspectiva que foi realizada a análise de um corpus atual para identificar sufixos formadores de substantivos recorrentes na língua portuguesa atualmente. Foi utilizada a mídia escrita, mais especificamente notícias jornalísticas do jornal Diário de Pernambuco, de algumas edições do mês de setembro e outubro do ano de 2013. Dentro das edições diárias, foram escolhidos para análise os cadernos: “VIVER”, que possui informações diversas sobre música, exposições artísticas, shows, cultura e entretenimento em geral, abarcando também comentários sobre a vida de famosos e sobre a programação de outros tipos de mídia como internet, rádio e TV; e “POLÍTICA”, tanto particularizada, relacionada ao estado de Pernambuco, quanto mais generalizada, sobre os acontecimentos no país. A escolha dos cadernos foi feita com a intenção de analisá-los separadamente, para localizar recorrências de uso, comparar os resultados e, com isso, identificar se o processo de sufixação varia de acordo com o tema abordado ou se a recorrência geral possui congruência com a recorrência de cada temática4.

4. A análise das notícias jornalísticas foi feita primeiramente no caderno POLÍTICA e depois no caderno VIVER, desconsiderando as palavras repetidas em ambos cadernos. Dessa forma, as palavras que sofrem derivação sufixal estão em maior quantidade no primeiro caderno, visto a não-utilização das palavras que ocorriam a repetição. 337


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Primeiramente, a recorrência dos sufixos foi identificada dentro da análise geral dos dois cadernos e, a partir daí, foi localizado um total de 21 sufixos formadores de substantivos. Estes foram separados, de acordo com o número de maior e menor repetições. Os 06 (seis) primeiros sufixos foram identificados como os mais recorrentes e os 15 sufixos restantes foram identificados como menos recorrentes5. Depois de localizar e distinguir os sufixos, foi feita uma análise dos seus 06 (seis) principais nos cadernos “POLÍTICA” e “VIVER” separadamente. Inicialmente, neste tópico, os resultados serão exibidos separadamente através de porcentagem e, posteriormente, complementados com gráficos que dividirão os 06 (seis) principais sufixos formadores de substantivos que tiveram recorrência nos textos analisados e os demais que atingiram um máximo de até 10 (dez) repetições em toda a análise. O primeiro caderno a ser exposto será o “POLÍTICA”, o segundo será o “VIVER” e, no final da análise, será feita uma comparação entre os dois resultados para identificar se as recorrências possuem uma ordem igual, mesmo com temáticas diferentes, ou se sua ordem produtiva muda, de acordo com o tema abordado.

Resultados do caderno “POLÍTICA”6 A análise do caderno “POLÍTICA” permitiu observar que os sufixos com grande produtividade em ordem de maior recorrência, segundo o resultado de sua porcentagem, são: -ção/-são, com 43,68%; -mento, com 12,28%; -dade, com 11,94%; -ada/-ado, com 9,55%; -ista, com 4,77%; e -agem, com 2,38%. Os demais sufixos formadores de substantivos de menor recorrência foram: -ismo; -ida; -ante; -inha; -ência; -ário; -ura; entre outros, e formaram um total de 15,40%7.

5. A recorrência identificada nos textos seguiu um padrão de repetições formado pela seguinte ordem: acima de 10 repetições, os sufixos formadores de substantivos foram considerados mais recorrentes; e igual ou abaixo de 10 repetições, os sufixos formadores de substantivos foram considerados menos recorrentes. 6. No caderno “política” foram analisadas 56 notícias no total. 7. Em relação a porcentagem, quando transposta para o gráfico, foi feita uma aproximação, colocando um valor mais 338


O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

A recorrência geral desses sufixos formadores de substantivos estão representadas no gráfico a seguir: Gráfico 1 - Gráfico de sufixos mais recorrentes na formação de substantivos do caderno “POLÍTICA”.

Resultados do caderno “VIVER”8 No geral, o gráfico mostra a saliência do sufixo -ção comparado aos demais sufixos recorrentes, formando quase metade das ocorrências. Esse resultado está ligeiramente parecido com o do caderno “VIVER”, que possui também como sufixo recorrente o -ção, porém os outros sufixos não estão exatamente na mesma

“redondo” para facilitar o resultado. 8. No caderno “VIVER” foram analisadas 31 notícias no total. 339


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ordem que o do primeiro caderno analisado. A análise do caderno “VIVER” permitiu observar que os sufixos com grande recorrência, organizados em ordem de maior porcentagem, são: -ção/-são, com 38,13%; -dade, com 16,10%; -mento, com 11,86%; -ada/-ado, com 11,86%; -agem, com 5,93%; e ista, com 4,23%. Os demais sufixos com menores recorrências somam um total de 11,89%. Esses números estão representados através do gráfico abaixo: Gráfico 2 - Gráfico de sufixos mais recorrentes na formação de substantivos do caderno “VIVER”.

Os sufixos que estão no grupo de “outros” são os mesmos que aparecem no mesmo grupo do caderno “POLÍTICA”, possuindo repetições menores e também sendo considerados menos recorrentes9.

9. No geral, os sufixos menos recorrentes foram 15 (quinze). Estes atingiram uma quantidade baixa de repetições, sendo considerados, por isso, menos produtivos. Foram eles: -tória/-tório, com dez repetições; -ário/-ária, com sete repetições; -ismo, com três repetições; -asmo, com uma repetição; -ência, com seis repetições; -ância, com três repe340


O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

Comparação dos cadernos “POLÍTICA” e “VIVER” e resultado geral da análise Através dos resultados isolados, demonstrados pelos gráficos 1 e 2, pode ser feita uma comparação que mostra que os sufixos -ção/-são e -ada/-ado10 foram os únicos que não mudaram de posição, mantendo, respectivamente, o primeiro e quarto colocados nas recorrências, com a mudança de tema. Quanto a mudança de ordem, sobre os mais usados, dos sufixos -agem e -ista, pode-se observar que o tema dos exemplares de gêneros analisados influencia de forma direta para esse acontecimento. O caderno que aborda temas relacionados à política usa expressões com o sufixo -ista, o qual possui um valor semântico que determinam filiações, filosofias políticas e partidárias de algum sistema, como, por exemplo: socialista, comunista, esquerdista etc. O que não acontece com normalidade dentro dos assuntos no caderno relacionado ao entretenimento. Além desse caso, houve também a mudança de ordem em relação ao uso dos sufixos -dade e -mento. Mais uma vez, o tema pode ser considerado influente. O sufixo -dade11 forma substantivos a partir de bases adjetivas, enquanto o -mento forma substantivos a partir de bases verbais. Dessa forma, pode-se considerar que, por ser um caderno que trata de assuntos relacionados ao entretenimento, o caderno viver fez com que o sufixo -dade fosse mais utilizado, visto o seu valor semântico qualitativo. Outra possibilidade de explicação do menor uso do -mento, é o fato

tições; -ura, com seis repetições; -ora, com duas repetições; -ida, com duas repetições; -ante, com cinco repetições; -inha, com três repetições; -eiro, com duas repetições; -ete, com uma repetição; -ice, com uma repetição; e -ata, com duas repetições. 10. Basílio mostra o sufixo -ada/-ado como -da/-do em seu livro. Neste trabalho, foi utilizada a nomenclatura de derivação sufixal que aparece em Monteiro, Bechara e todas as gramáticas que foram utilizadas para análise e comparação: Cereja, Sarmento e Abaurre. Nelas, mostra o sufixo como -ada/-ado 11. O sufixo -dade, é mostrado em algumas gramáticas e livros de pesquisa como -idade (como em Basílio) ou até -(i) dade. Será empregado, neste trabalho, a forma -dade, assim como em Monteiro (1991) e Bechara (2009). 341


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de que este sufixo é utilizado, em sua maioria, em verbos formados pela adição do sufixos formadores de verbo que são mais tradicionais. Visto a recorrência do sufixo formador de verbos -izar nos tempos atuais, que forçam a escolha do -ção, a sufixação com o -mento se tornou menos recorrente como diz Basílio (2013, p. 42 e 43). Basílio diz, também, em seu livro “Formação e classes de palavras no português do Brasil”, que um dos fatos que leva à recorrência dos sufixos formadores de substantivos com bases verbais serem -ção/-são e -mento “é o fato de que esses sufixos são semanticamente vazios, enquanto sufixos como -da [-ada] e -agem apresentam especificações semânticas que restringem suas possibilidades de combinação com diferentes bases ou radicais” (2013, p. 42). Essa explicação contradiz Monteiro (1991), Bechara (2009) e todas as gramáticas analisadas. Esses autores, adicionam valor semântico a ambos sufixos. No geral, eles dizem que o sufixo -ção: “forma nomes abstratos de ação; indica coletividade” (MONTEIRO, 1991, p. 154). E -mento: “indica ação e/ou resultado. Como substantivo concreto refere-se a utensílios e pode revestir a forma feminina: ferramenta, vestimenta” (MONTEIRO, 1991, p. 159). A definição de Bechara para os sufixos -ção/-são e -mento é a mesma: “para formação de nomes de ação ou resultado de ação, estado, qualidade, semelhança, composição, instrumento, lugar” (2009, p. 358). Também notou-se uma grande utilização do processo de nominalização como elemento de coesão textual, assim como a mudança de classe, de verbo para substantivo, para adicionar-se uma qualidade. Esse processo, que não foi citado em nenhuma das gramáticas analisadas, mostrou-se muito produtivo dentro das notícias vistas. Em suma, dos sufixos mais recorrentes, os formadores de substantivos a partir de bases verbais são: -ção/-são, -mento, -agem; e a partir de base substantiva ou adjetiva são: -dade, -ada/-ado e -ista. Esses sufixos trazem consigo um valor semântico que complementa a raiz a que está atrelado e podem mudar sua classe de acordo com a intenção do interlocutor que os usa. Além de serem produtivos quanto ao uso do léxico real, também possuem uma contribuição para o léxico

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virtual, trazendo consigo a possibilidade de construções de neologismos úteis para a comunicação e recorrentes na fala e na escrita. Após alguns comentários gerais sobre o gráfico 1 e 2, será mostrado a seguir o terceiro gráfico com a comparação dos resultados gerais de ambos cadernos “POLÍTICA” e “VIVER” do jornal Diário de Pernambuco: Gráfico 3 - Gráfico geral de sufixos mais recorrentes na formação de substantivos

Conforme verificado no gráfico acima, o sufixo -ção/-são, formador de substantivos com bases verbais, apresenta uso mais frequente em relação aos demais processos, assim como -dade, como formador de substantivos com bases adjetivas e -mento, como formador de substantivos com bases verbais, foram as segundas mais recorrentes. Essa pesquisa confirma os dados expostos em Basílio (2013, p. 42, 43 e 49) segundo os quais esses três sufixos (dois com bases verbais e um com base adjetiva) são os mais recorrentes no processo de derivação sufixal da língua portuguesa. Partindo desses dados coletados, será feito, na próxima parte do tra343


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balho, uma comparação com gramáticas escolares para, com isso, identificar a problemática nas suas abordagens em relação ao ensino da morfologia dentro do processo de estrutura/formação das palavras.

COMPARAÇÃO DO RESULTADO COM GRAMÁTICAS ESCOLARES Grande parte das gramáticas escolares atuais possuem uma abordagem que pode ser considerada insuficiente para o desenvolvimento de determinados assuntos. Essa problemática se agrava quando o assunto abordado é o de estrutura e formação de palavras. Por abordarem de forma superficial, autores desses tipos de livros demonstram – de forma indireta – que o assunto é pouco importante ou pouco necessário para o processo de aquisição do léxico da língua. A insuficiência no material usado termina por causar uma falta de progresso nas aulas em geral, tanto com os professores – que esperam que o material dê o suporte necessário – quanto com os alunos – que utilizam o material para estudo. Por esse motivo foi feita uma comparação do resultado da análise das notícias jornalísticas com a abordagem de 03 (três) gramáticas escolares usadas em parte do ensino fundamental e todo o ensino médio das escolas brasileiras. As gramáticas escolhidas foram: Gramática: Texto: análise e construção de sentido, de Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara (2006); Gramática em textos, de Leila Lauar Sarmento (2005); e Gramática reflexiva, de Tereza Cochar Magalhães e Willian Roberto Cereja (2009). Essa comparação tem por objetivo identificar a forma de abordagem do tema “derivação sufixal” no processo de criação do material escolar, onde, em algumas vezes, são determinadas pela falta de pesquisa em um corpus de uso atual. Isso é provado quando é feita uma comparação dos resultados da análise das notícias jornalísticas com a abordagem teórica dessas gramáticas. As gramáticas, de um modo geral, ou são reducionistas a ponto de superficializar demais o assunto, ou são abrangentes demais a ponto de mostrar sufixos que já podem ser considerados arcaicos na língua. Dentre as três gramáticas escolhidas, duas se encaixam

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no princípio reducionista e outra num meio termo, que, delas, se sobressai por esmiuçar de forma menos superficial o assunto. Primeiramente será analisada a abordagem teórica e depois os exercícios contidos em cada gramática, separadamente.

Comparação do resultado com o livro “Gramática em textos”, de Leila Lauar Sarmento (2005) A abordagem do livro “Gramática em textos”, da autora Leila Lauar Sarmento, é extremamente minimalista, se encaixando no princípio reducionista citado acima. Dentro da parte teórica, o livro apresenta uma definição rápida e superficial quando diz que o processo de sufixação “Acrescenta-se um sufixo ao radical ou a uma palavra primitiva, que pode mudar de significado ou de classe gramatical” (SARMENTO, 2005, p. 96). Essa mesma definição repete-se quando a autora fala sobre afixos, na página 91. Apesar de citar que o processo de derivação sufixal pode mudar o significado ou a classe gramatical da raiz em que se atrela, a autora não cita palavras para apoiar sua definição. Com apenas seis exemplos de sufixos aparentemente aleatórios12, a autora não distingue se estes são formadores de substantivos, adjetivos, verbos ou advérbios, nem mostra o valor semântico que está intrínseco ao afixo e que este pode trazer a raiz, quando usado. Vale salientar que, apesar da parte teórica ser superficial, o livro traz um apêndice composto por 4 páginas, destinado à exposição de radicais e prefixos gregos e latinos e sufixos nominais, verbais e adverbiais. Porém, ainda assim, essas tabelas determinam os sufixos que são formadores de substantivos, sem designar se a base é verbal, adjetiva ou substantiva, além de trazer, também neste espaço, uma explicação superficial e não-completa do valor semântico de cada afixo. Também foi

12. as palavras utilizadas como exemplo na parte de derivação sufixal foram: furi-oso; pesca-dor; fecha-dura; rós-eo; febr-il; corrigí-vel. As palavras utilizadas como exemplo na parte de afixos foram: flor-ista; re-avalia-ção; e simplesmente 345


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notado que – apesar de existir o apêndice com a exposição de mais sufixos – dentro do capítulo que aborda o tema “estrutura e formação das palavras” não existe nenhuma citação da existência deste apêndice. Dentro do momento destinado aos exercícios, o livro traz uma série de questões produzidas pela própria autora e algumas outras questões de vestibulares referente ao tema. Em suma, a aplicação dos exercícios vem inicialmente introduzidas por um gênero textual (que varia entre poema, quadrinhos, notícias etc.) intentando levar o estudante a reflexão sobre o texto e depois sobre o uso do tema abordado no capítulo, dentro desse mesmo texto. Nesse espaço, destinado a reflexão, existem perguntas que não compreendem os sufixos citados nos exemplos, levando o estudante a pesquisar em seu apêndice que, como já foi dito, não é citada a sua existência. No geral, como já foi dito, a proposta de ensino exposta na “gramática em textos” é reducionista, superficializando a abordagem e, com isso, levando insuficiência à sala de aula. Apesar disso, o livro possui uma boa proposta de compreensão textual, trazendo questões de interpretação em todos os capítulos. Utiliza-lo como fonte principal de aula, causa insuficiência, porém, utiliza-lo como uma das ferramentas para a aprendizagem torna-a útil.

Comparação do resultado com o livro “Gramática Reflexiva – Texto, semântica e interação”, de William Cereja e Thereza Cochar (2009) Semelhante a anterior, a “Gramática Reflexiva” tem a mesma organização, mostrando primeiro a definição de afixos e depois a definição específica de derivação sufixal que, literalmente, é essa: “derivação sufixal: ocorre quando há acréscimo de um sufixo a um radical”, com apenas um exemplo “arvo + -edo” (CEREJA; COCHAR, 2009, p. 103). Como na gramática de Sarmento, os autores superficializam a conceituação a ponto de não sinalizar a importância dos sufixos na mudança de classe gramatical, por exemplo. Na parte destinada ao tabelamento dos sufixos, a

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O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

gramática também deixa de aprofundar a abordagem e exemplificação, mostrando apenas o valor semântico dos sufixos, também de forma superficial e rápida, deixando de citar processos semânticos de ressignificação sufixal no ato de uso, como o de pejoratividade em alguns sufixos diminutivos, como por exemplo: “poetinha” que pode designar uma ironia, caso o poeta seja bom, ou insulto, caso o poeta seja ruim, dependendo do contexto em que a palavra está inserida. Nesta gramática também não existe menção na parte teórica de que há uma tabela com mais sufixos e seus significados. No momento destinado a exercícios, a gramática de Cereja e Cochar divide-os em três partes “Exercícios”, “Os elementos mórficos na construção do texto” e “Semântica e discurso”. Na primeira parte, as questões destinam-se ao tema abordado no capítulo apenas considerando a teoria exposta. A segunda parte é destinada a exercitar os elementos mórficos dentro do texto. E a última parte abrange o assunto com adição do contexto de uso em que o enunciado está sendo produzido, assim como seu valor semântico em consideração com outros elementos do enunciado. Apesar de estarem bem divididos, os exercícios também pedem que o estudante tenha um bom domínio sobre o assunto que a parte teórica não dispõe, causando uma insegurança na noção do processo de sufixação. Esta gramática também pode ser classificada como reducionista, pois aborda de forma precária e superficial na parte teórica, na tabela de sufixos e também nos exercícios, mesmo trazendo consigo uma boa categorização de questões que contextualiza o fenômeno de derivação sufixal na teoria, na escrita e na fala. Ainda que não possua uma abordagem completa referente a esse tema em questão, o livro possui uma boa proposta de análise, compreensão e interpretação textual, levando em consideração contextos de uso e significação. Utilizá-lo como material único em sala de aula termina por causar a negligência do assunto, porém, usá-lo como um dos instrumentos para ensino e aprendizagem, torna-a proveitosa.

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Comparação do resultado com o livro “Gramática: Texto: análise e construção de sentido”, de Maria Luiza M. Abaurre e Marcela Pontara (2006) Diferentemente do que aconteceu com as outras duas gramáticas já analisadas, a “Gramática: Texto: análise e construção de sentido” possui uma abordagem ampla, mas sem abranger sufixos que já podem ser considerados menos usuais. De modo geral, esse livro conceitua de forma concisa e objetiva o processo de derivação sufixal e exemplifica introdutoriamente, durante a conceituação, como funciona o processo de mudança de classe e como a adição do afixo pode complementar ou alterar o sentido de sua raiz. Abaurre e Pontara dizem que “o acréscimo de um sufixo sempre produz alguma alteração no sentido do radical” e complementa “podemos formar substantivos, adjetivos, verbos e advérbios a partir do acréscimo de diferentes sufixos aos radicais nominais. As autoras classificam esse processo de mudança de classe a principal característica da derivação sufixal trazendo, ainda dentro da parte teórica, uma tabela que complementa a explicação e exemplifica bem esse processo (ABAURRE; PONTARA, 2006, p. 145). Essa tabela aparentemente foi feita com escolhas de sufixos de preferência das autoras, sem uma análise atual da língua em uso o que terminou por selecionar alguns sufixos que não são considerados muito recorrentes nem produtivos, como, por exemplo -ama, -io e -ico e alguns outros sufixos que foram identificados como recorrentes na análise das notícias jornalistas, como, por exemplo: -agem e -ista O livro traz também um material em anexo, com tabelas de sufixos nominais (formadores de substantivos e adjetivos), aumentativos, diminutivos e verbais, totalizando onze tabelas que mostram, com exceção da tabela 5, o sufixo, sua função, seu sentido e exemplos, respectivamente. Sua descrição do sentido e função, assim como os exemplos e a quantidade de sufixos mostrados, estão bem satisfatórias e sucintas, mostrando que nem todas as gramaticas tendem a ter uma abordagem relativamente superficial do assunto em questão. É importante citar

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também que dentro da parte teórica possui menção da existência de anexos com “os principais sufixos utilizados na língua” (ABAURRE; PONTARA. 2006, p. 145). Em relação aos exercícios, o livro apresenta três momentos de discussão sobre o tema do capítulo: “Atividades”, “Uso da derivação” e “Prepare-se: vestibular e Enem”. No primeiro momento, as atividades são sempre introduzidas por um gênero textual (quadrinho, notícia e comercial) com questões específicas direcionadas ao assunto e algumas outras interpretativas. No segundo momento, é dado um texto para que se identifique os processos de sufixação, fazendo referência ao processo de criação de novas palavras por sufixação, os neologismos. E no último momento são selecionadas questões de vestibulares e Enem. Nos três momentos a parte dos exercícios possui uma ligação com a parte teórica e com os anexos, o que proporciona ao estudante uma boa base para o entendimento e desenvolvimento do assunto.

Discussão sobre resultados Inicialmente, é importante dizer que, dentro das gramáticas escolhidas, apenas a de Leila Lauar Sarmento (Gramática em textos) está com a edição anterior ao Acordo Ortográfico. As outras duas utilizadas neste artigo são edições novas, com a adequação ao novo acordo. Em suma, essa pesquisa mostra que as gramáticas escolares não possuem a rotulação de “superficiais” e “minimalistas” por acaso. Essas qualidades já podem ser consideradas intrínsecas às abordagens desses livros. Algumas fogem ao lugarcomum e apresentam uma abordagem concisa e centralizada, o que gera um bom desenvolvimento do assunto e do material que será usado em sala de aula, pelos professores e alunos. Com uma boa teorização, os livros escolares podem garantir um bom acesso ao conhecimento do assunto e ajudar a desenvolver e expandir o léxico individual e coletivo, gerando um bom conhecimento da língua materna e um bom desempenho de leitura, compreensão e interpretação.

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Apesar de algumas gramáticas terem uma boa abordagem, ainda mostra-se necessária uma pesquisa de campo em um corpus de uso atual para que determine a ordem de escolha de alguns sufixos que sejam recorrentes e, com isso, esmiúce-se de forma mais completa as palavras que sofrem derivação sufixal de acordo com suas recorrências no processo enunciativo, falado ou escrito. A abordagem feita neste trabalho analisou apenas notícias jornalísticas recentes, ou seja, uma parcela da mídia escrita. Mas isso não desconsidera o fato de que dentro de uma conversação também existam palavras que sofrem sufixação de modo convencional, já estando cristalizadas no vocabulário da língua, e/ou que são consideradas neologismos, de acordo com a necessidade de uso em que os interlocutores se encontram. O resultado da comparação feita das gramáticas escolares com os dados obtidos na análise dos gêneros jornalísticos estão representadas na tabela a seguir:

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COMPETÊNCIAS Abordagem Teórica

SARMENTO (2005)

CEREJA; COCHAR (2009)

ABAURRE; PONTARA (2006)

1. Reducionista e superficial 2. Pouco funcional 3. Não apoia a definição com palavras que sofrem o processo teorizado

1. Reducionista e superficial 2. Pouco funcional 3. Não sinaliza a importância dos sufixos na mudança de classe gramatical 4. Não apoia a definição com palavras que sofrem o processo teorizado

1. Conceitua de forma concisa e objetiva 2. Classificam a mudança de classe gramatical como a principal função da sufixação 3. Traz uma tabela que demonstra o processo de mudança de classe por sufixação

Exemplos

1. Poucos exemplos sem demonstrar os fenômenos citados na teorização

1. Apenas um exemplo, sem demonstrar o fenômeno citado na teorização

1. Apoia a definição teórica com exemplificações diversas

Apêndices, Tabelas e Anexos

1. Utilizando o apêndice que não vem completo nem bem distinto e sequer aparece citado na parte teórica

1. Utilizando uma tabela incompleta que não é citada sua existência na parte teórica

1. Utiliza 11 anexos (citados na parte teórica) com sufixos separados por sua função de mudança de classe

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Convergências com o resultado da análise do corpus atual

1. Os sufixos citados no apêndice aparecem como recorrentes na análise

1. Os sufixos citados na tabela aparecem como recorrentes na análise

1. Os sufixos citados nos anexos aparecem como recorrentes na análise

Divergências com o resultado da análise do corpus atual

1. Dentro da exemplificação, a autora não expôs os sufixos que são considerados recorrentes de acordo com a análise feita neste trabalho 2. Também não foi sinalizado dentro do apêndice os sufixos que podem ser considerados mais produtivos na língua português

1. Dentro da exemplificação, os autores não expuseram os sufixos que são considerados recorrentes de acordo com a análise feita neste trabalho 2. Também não foi sinalizado dentro da tabela os sufixos que podem ser considerados mais produtivos na língua portuguesa

1. As autoras aparentemente utilizam sufixos como exemplificação sem uma pesquisa de campo que determine suas recorrências de uso, selecionando, assim, sufixos que são menos usuais e não mostrando sufixos que foram considerados recorrentes nesta pesquisa, além de não sinalizar os mais recorrentes

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O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

Abordagem prática

1. Questões práticas que que solicitam que o estudante tenha um bom domínio sobre o assunto que a parte teórica não dispõe. 2. Aborda o tema com gêneros textuais, levando o estudante a compreender o texto antes de aplicar a teoria

1. Questões práticas que não compreendem os sufixos citados na parte teórica nem na tabela 2. Divide bem os exercícios, levando em consideração o contexto de uso

1. Possui uma ligação com a parte teórica com os anexos o que proporciona ao estudante uma boa base para o entendimento e desenvolvimento do assunto

CONSIDERAÇÕES FINAIS Como defende Basílio, o processo de formação de palavras possui um grande teor de regularidade o que mostra a importância deste tema para a aquisição, expansão e desenvolvimento da língua materna, além de ser uma ferramenta essencial para a produção, compreensão e interpretação de um texto (2013, p. 7). Tomando como motivação essa afirmativa, o seguinte trabalho analisou a recorrência de sufixos num corpus de uso atual e, através dos resultados, comparou-os com as abordagem das gramáticas usadas nas escolas e colégios do Brasil. Essa realização permitiu constatar que as gramáticas escolares de modo geral – mesmo tendo algumas exceções – negligenciam a abordagem relativa ao 353


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tema “estrutura e formação de palavras”. Como já foi dito, os livros normalmente são reducionistas ou até abrangentes demais, mostrando sufixos que podem ser considerados arcaicos, pois já caíram em desuso. Quando não se encaixa em um desses dois modelos, como também foi visto, a gramática escolar chega a sobressair-se, porém, ainda assim, alguns dos sufixos usados como exemplos não condizem com a realidade atual de uso, pelo menos em parte da mídia escrita, o que causa, também, um cotejo entre teoria e realidade, gerando dúvidas sobre a forma correta de uso. De modo geral, o negigenciamento continua a acontecer, o que gera uma problemática dentro dos pilares do ensino da língua materna, chegando a desenvolver outros problemas que abarcam várias outras áreas da linguística. Através dessas evidências, intentou-se conscientizar pesquisadores na área de morfologia, para desenvolver um material que condiga com a realidade, pois o processo de formação de palavras por meio da sufixação é muito produtivo na língua e, além disso, favorece seu usuário para um maior domínio desse recurso, contribuindo para o desenvolvimento linguístico tanto para construção de palavras – que fazem parte do léxico cristalizado da língua –, quanto para a ampliação do léxico da língua materna – que constroem o léxico real ou virtual, abarcando também neologismos –, ou até para a construção de sentidos em um texto – ajudando na compreensão e interpretação.

REFERÊNCIAS BASÍLIO, Margarida. Estruturas lexicais do português: uma abordagem gerativa. Rio de Janeiro: Editora Vozes Ltda. 1979. ______. Formação e classes de palavras no português do Brasil. 3. Ed. São Paulo : Editora Contexto, 2013. ______. Teoria Lexical. São Paulo: Ática, 2003. MONTEIRO, José Lemos. Morfologia portuguesa. 3. Ed. Campinas, SP: Pontes, 1991. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. Ed. Ver., amp. E atual conforme o novo Acordo Ortográfico. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2009.

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O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

ABAURRE, Maria Luiza M.; PONTARA, Marcela. Gramática : texto: análise e construção de sentido : volume único – Adequado ao novo acordo ortográfico. São Paulo: Editora Moderna. 2006. SARMENTO, Leila Lauar. Gramática em textos. 2. ed. rev. São Paulo: Editora Moderna Ltda. 2005. MAGALHÃES, Tereza Cochar; CEREJA, Willian Roberto. Gramática reflexiva : volume único. 3. Ed. Reform. – São Paulo : Atual, 2009.

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Resumo Apesar da sua crescente circulação social e popularização, o gênero videoclipe ainda não tem recebido a devida atenção das pesquisas linguísticas. Norteado pelo intuito de sanar essa omissão, este trabalho lança mão de pressupostos da sociorretórica e dos estudos da multimodalidade textual com o propósito de estabelecer uma categorização das configurações genéricas dos clipes. Para tanto, utiliza-se como critério a saliência dos atributos que se sobressaem na sua organização composicional, estilo, conteúdo temático e na sua dinâmica. Para o corpus analítico, foram selecionados os seguintes videoclipes da cantora norte-americana Madonna: Material girl (1985), Vogue – MTV’s 1990 Music Video Awards (1990), Bedtime story (1995) e Hollywood (2003). Como resultado da análise, é possível propor as seguintes configurações genéricas: a) videoclipes com saliência na performatividade; b) videoclipes com saliência na ficcionalidade; e c) videoclipes com saliência na artisticidade. Palavras-chaves: Videoclipe; Gênero textual; Multimodalidade; Configurações genéricas.


O GÊNERO MULTIMODALVIDEOCLIPE: propostas de classificação Leonardo Mozdzenski1*

REFLEXÕES INICIAIS SOBRE A MULTIMODALIDADE Nas últimas décadas, o mundo ocidental vem testemunhando uma significativa mudança nas formas de produzir e ler os textos que circulam socialmente. Até há pouco tempo, os modos de representação comunicacional dos textos verbais (fala e escrita) e não-verbais (imagens, sons, gestos, etc.) eram tratados de maneira isolada e estanque, segundo as suas especificidades. Essas fronteiras, no entanto, tornam-se cada vez mais tênues. Como salientamos em Mozdzenski (2008), ilustrações, fotos, gráficos e diagramas, aliados a recursos de composição e impressão, como tipo de papel, cor, diagramação da página, formato das letras, etc., vêm sendo sistematicamente conjugados aos gêneros discursivos escritos. De acordo com Joly (2004, p. 133), “as palavras e as imagens revezam-se, interagem, completam-se e esclarecem-se com uma energia revitalizante. Longe de se excluir, as palavras e as imagens nutrem-se e exaltam-se umas às outras” Já para Lemke (2002), as representações verbais e visuais coevoluíram histórica e culturalmente, para se complementarem mutuamente, coordenando-se entre si. Com isso, os textos passam a ser percebidos como construtos multimodais, dos quais a escrita é apenas um dos modos de representação das mensagens. Analoga-

Doutor em Letras/Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor de “Multimodalidade e Gênero Textual: analisando criticamente as cartilhas jurídicas” (Ed. UFPE, 2008). Integra a equipe de tradução e revisão técnica dos livros de Charles Bazerman, Carolyn R. Miller e Teun van Dijk publicados no Brasil pelas editoras Cortez, Contexto e Parábola. Atualmente, ministra cursos de produção de textos técnico-administrativos e de redação jurídica aos servidores de diversos órgãos públicos e secretarias estaduais através da Escola de Contas Prof. Barreto Guimarães, vinculada ao Tribunal de Contas de Pernambuco (TCE/PE), onde também exerce a função de auditor das contas públicas. E-mail: leo_moz@yahoo.com.br. 1.

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Anais Eletrônicos - XI EELL

mente, nos gêneros discursivos orais, a análise da fala não pode mais prescindir dos gestos, entonações, expressões faciais, etc., presentes em quaisquer trocas verbais (KRESS e VAN LEEUWEN, 1996, 2001; JEWITT e KRESS, 2003). A necessidade desse ‘novo olhar’ sobre o texto é premente, sobretudo se for observada a multígena produção textual veiculada pelos meios de comunicação de massa. Nos jornais impressos e revistas, por exemplo, é possível notar a constante interação entre a escrita e um número variado de modos semióticos, exercendo uma função retórica na construção de sentidos. Nesse verdadeiro “hibridismo semiótico” – conforme expressão cunhada pelo The New London Group (2000) – o processamento textual das informações só pode se dar com a leitura integrada do texto verbal e do material visual, isto é, fotografias, infográficos, desenhos, símbolos e ícones, além do emprego de diversas cores e da elevada informatividade visual do layout. Caso contrário, a leitura lacunosa poderá afetar significativamente a compreensão da unidade global do texto. Vale frisar, inclusive, que a elevação de status dos gêneros multimodais como objeto de análise da Linguística só ocorreu recentemente. Apesar de, em outras disciplinas, o estudo dos signos já ocorrer desde os anos 1950/60, somente nos últimos anos é que vem sendo realizada no campo da Linguística uma pesquisa mais sistemática e integralizada sobre o texto multimodal, abarcando conjuntamente todos os recursos semióticos que o compõem e considerando a sua inserção na chamada “sociedade da imagem” (JAMESON, 1994). Aliás, embora seja consensual a constatação de que a “cultura contemporânea é sobretudo visual” (PELLEGRINI, 2003, p. 15), a incorporação da imagem e de outros recursos semióticos às análises linguísticas ainda encontra resistência em certas abordagens mais tradicionais. Como ressaltam Kress, Leite-García e Van Leeuwen (2000), historicamente a análise do discurso se concentrou em textos linguisticamente realizados, valorizando-se a linguagem verbal nas modalidades oral e escrita, em detrimento de outros modos semióticos. Para esses autores, um texto multimodal deve ser lido em conjunção com todos os outros modos semióticos desse texto.

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O GÊNERO MULTIMODAL VIDEOCLIPE: PROPOSTAS DE CLASSIFICAÇÃO

Dentro dessa perspectiva, a análise linguística tradicional tem que ser repensada, pois, como afirmam Kress e Van Leeuwen (1996, p. 8), “descrever uma ‘língua’ é descrever o que as pessoas fazem com as palavras, as imagens ou a música”. Também no entendimento de Fairclough (2001, p. 23), “é muito apropriado estender a noção de discurso a outras formas simbólicas, tais como imagens visuais e textos que são combinações de palavras e imagens”. Ou seja, nos atuais estudos linguísticos, é imprescindível uma revisão (e ampliação) do conceito de ‘discurso’, para que não deixem de ser abarcados todos os elementos semióticos das práticas sociais. É com base nesses pressupostos que defendemos a necessidade de um olhar discursivo sobre as imagens e de um olhar multissemiótico sobre qualquer texto. Para tanto, propomos aqui discutir o videoclipe como um gênero textual flagrantemente multimodalizado. Por fim, sem ter a pretensão de aprofundar aqui esse complexo tema, reportamo-nos ao trabalho de Van Dijk (2008), para quem o discurso deve ser entendido como qualquer forma de uso da linguagem em textos falados ou escritos, em um sentido semiótico amplo. Para o autor, Isso inclui estruturas visuais, tais como layout, tipo de letra ou figuras, para textos escritos ou impressos; e gestos, expressões faciais e outros signos, para a interação falada. Esse conceito de discurso também inclui combinações de sons e imagens nos muitos discursos multimidiáticos híbridos, como no cinema, na televisão, nos telefones celulares, na internet e em outros canais e veículos de comunicação (VAN DIJK, 2008, p. 116).

O ESTUDO DOS VIDEOCLIPES: UMA BREVE INTRODUÇÃO Grande parte da dificuldade encontrada para investigar o videoclipe advém do preconceito subjacente por ser considerado um produto cultural não apenas inferior, já que a sua natureza é eminentemente mercadológica e não artística, mas também secundário, uma vez que o ‘produto principal’ seria a música ou o artista a ser divulgado e não o clipe em si. Se isso já é uma verdade no âmbito das Ciências da

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Anais Eletrônicos - XI EELL

Comunicação – locus privilegiado de estudo dos gêneros audiovisuais em geral –, no domínio da Linguística, então, os videoclipes são praticamente ignorados. A inexistência de estudos acadêmicos mais sistemáticos sobre o clipe numa perspectiva retórico-discursiva é ainda mais surpreendente se considerarmos os seguintes aspectos: a) com sua crescente popularização nos meios de comunicação de massa sobretudo a partir dos anos 1980, os videoclipes tornaramse um dos principais gêneros midiáticos de expressão cultural e estética da contemporaneidade, “marcando e modelando nossa cultura cotidiana: filme, arte, literatura, publicidade – todos claramente se acham sob o impacto dos clipes em sua estética, seus procedimentos técnicos, mundos visuais ou estratégias narrativas” (KEAZOR e WÜBBENA, 2010, p. 7); b) o clipe é um gênero audiovisual multifacetado que revela uma tendência atual de integração de um grande número de recursos e estratégias multissemióticos – ainda pouco explorados pela Linguística –, tendo por finalidade captar e manter a atenção do espectador (SEDEÑO VALDELLÓS, 2007); c) o videoclipe constitui um gênero bastante apropriado para observar a construção identitária de cantores e cantoras, uma vez que consiste no “resultado de um processo de midiatização da performance musical [...], uma tentativa de síntese, num produto audiovisual, de um senso de personalidade do artista musical” (SOARES, 2009, p. 60. Grifou-se). d) em qualquer investigação sobre gêneros midiáticos contemporâneos – e, em especial, sobre clipes –, as múltiplas possibilidades de produção de sentido demandam a convergência de vários aportes teóricos para dar conta de sua explicação (RYBACKI e RYBACKI, 1999), algo não satisfatoriamente contemplado pela literatura sobre o tema até o momento 360


O GÊNERO MULTIMODAL VIDEOCLIPE: PROPOSTAS DE CLASSIFICAÇÃO

Na realidade, grande parte da literatura atual sobre o videoclipe – com raras exceções, tais como Machado (1993, 1997, 2001), Soares (2004, 2009) e alguns outros poucos autores – parece estar circunscrita a apenas dois pontos de vista: as abordagens pós-modernas e os Estudos Culturais (BARRETO, 2005). A crítica pós-moderna (e.g., KAPLAN, 1993; JAMESON, 1994) restringe-se a enquadrar os videoclipes como um típico produto da pós-modernidade, ressaltando a sua instabilidade, superficialidade e fragmentação. Para Connor (1993, p. 130-131), esse tipo de perspectiva em nada contribui para a compreensão do gênero, pois define o videoclipe pós-moderno pelo que ele não é: “como (não) narrativa, como (não) centrado, oferecendo (nenhuma) posição ao espectador”. Por sua vez, os Estudos Culturais (e.g., GOODWIN, 1992; STRAW, 1993) tendem a se centrar demasiadamente na relação dos videoclipes e seus entornos sociais e econômicos, enfatizando questões ligadas ao racismo e diferenças étnicas, ao preconceito social, à discriminação sexual, ao consumo de produtos culturais, etc. Esse olhar mais ‘macro’ sobre os clipes finda por reduzir a importância do seu componente estético, essencial à compreensão do gênero: “Esteticamente, seus textos [dos clipes] constroem sentidos através de práticas, linguagens, sintaxes, iconografias e retóricas específicas” (GROSSBERG, 1993, p. 185-186). Nesse cenário, os vídeos musicais constituem um excelente material para investigar a multimodalidade textual. Isso ocorre uma vez que usualmente orquestram, em um mesmo discurso multimodal, os seguintes elementos: • textos verbais essenciais: letras das canções (canção = letra + melodia); • textos verbais acessórios: por exemplo, diálogos incidentais ou elementos textuais gráficos integrantes das imagens do próprio videoclipe; • componentes paratextuais: créditos e textos informativos que acompanham marginalmente os clipes, inseridos pelos canais televisivos, tais como nome do artista, título da canção e do álbum, gravadora, diretor do vídeo, logotipo do canal, etc.; 361


Anais Eletrônicos - XI EELL

• música: organização melódica, rítmica e harmônica das canções; • sons eventuais: ruídos e efeitos sonoros, como por exemplo, sons de motor de carro, trovões, pássaros cantando, etc.; • imagem: cor, iluminação, angulação e velocidade de câmera, montagem e edição, layout da tela, e uma série de outros modos semióticos imagéticos que lhe são característicos. Todos esses elementos podem vir combinados através de infinitas maneiras para compor o videoclipe. Mas como conceituar esse gênero?2 Pontes (2003, p. 48) apresenta a seguinte definição: O que é um videoclipe? Diremos que videoclipe é um pequeno filme, um curta-metragem, cuja duração está atrelada (mas não restrita) ao início e fim do som de uma única música. Para ser considerado um videoclipe, este curta-metragem não pode ser jornalístico, não é a simples filmagem da apresentação de um ou mais músicos. Ele é a ilustração, a versão filmada, de uma canção. Há intenções artísticas em sua realização, e, quase sempre, ausência de linha narrativa.

Apesar de discordar da afirmação de que nos clipes há “quase sempre, ausência de linha narrativa”, julgamos que essa definição sintetiza adequadamente o

2. Adotamos aqui a noção sociorretórica de gênero textual. Segundo essa perspectiva, os gêneros não são meros entes formais, mas “frames para a ação social” (Bazerman, 1997, p.19), ou ainda, “entidades sociodiscursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa” (Marcuschi, 2003, p.19). Os gêneros se definem sobretudo pelo seu propósito comunicativo, e não por suas propriedades estruturais. Afinal, conforme observa Bazerman (2005, p.31), restringir a noção de gênero a um conjunto de traços textuais é ignorar não só o papel dos indivíduos na construção dos sentidos, mas também as diferenças de compreensão entre os falantes, o uso criativo para atender a novas demandas comunicativas e a própria mudança na maneira como o gênero é percebido ao longo do tempo. Assim, apesar de os gêneros mais estabilizados serem reconhecidos por seus aspectos linguístico-textuais, não é a forma em si que cria e define o gênero. Antes, os gêneros consistem em modos sociais de agir e de dizer, em “tipos relativamente estáveis de enunciados” (BAKHTIN, 2004 [1929], p.279), constituídos e situados sócio-historicamente, e caracterizados pelo seu conteúdo temático, estilo e construção composicional. Desse modo, Miller (1994) defende que uma definição teoricamente consistente de gênero deve estar centrada não na substância ou na forma do discurso, mas na ação em que ele é usado para atuar. É essa a visão que assumimos ao tratar dos videoclipes neste artigo. 362


O GÊNERO MULTIMODAL VIDEOCLIPE: PROPOSTAS DE CLASSIFICAÇÃO

que vem a ser um videoclipe. É importante ressaltar, entretanto, que os videoclipes, enquanto gênero, possuem fins publicitários como propósito comunicativo fundamental. Apesar de cada vez mais os vídeos assumirem uma ‘feição artística’ e utilizarem um sofisticado aparato tecnológico fílmico em sua produção, eles são realizados basicamente para vender uma canção, bem como todos os demais produtos dela derivados: CDs, DVDs, ingressos para shows, memorabília, etc. Além dessa perspectiva estritamente comercial, no entanto, o videoclipe ainda possui uma outra finalidade tão ou mais importante do que vender uma canção: ele deve vender a imagem do/a artista. Esse é, inclusive, um dos aspectos que despertam maior interesse sob o ponto de vista retórico no estudo dos vídeos musicais (SOARES, 2009). Vistos, assim, os principais propósitos comunicativos dos clipes, cabe agora procurarmos uma definição mais precisa da natureza desse gênero textual a partir de um olhar sociorretórico. Para Machado (2001), o videoclipe encontra-se compreendido na constelação dos gêneros televisivos. Uma vez que atualmente os vídeos musicais circulam pelas mais diferentes mídias e suportes (além da TV, temos plataformas de compartilhamento de vídeos na internet, aparelhos eletrônicos tais como smartphones e tablets, etc.), adotaremos aqui uma perspectiva mais ampla. Os videoclipes são ora considerados como um gênero audiovisual do domínio do entretenimento, de natureza eminentemente publicitária, não raro assumindo uma compleição artística. Isto é, o clipe não apenas opera para a autopromoção mercadológica (da imagem) do/a artista e seus ‘produtos’, mas também promove, muitas vezes, a fruição estética de uma ‘obra de arte’ audiovisual – algo ainda mais usual nos vídeos contemporâneos. Mas em termos dos estudos retóricos e multimodais, como é possível compreendermos a configuração de um gênero tão multifacetado? É o que discutiremos a seguir.

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AS CONFIGURAÇÕES GENÉRICAS E MULTIMODAIS DO VIDEOCLIPE Muito se tem debatido acerca das configurações do videoclipe enquanto gênero. Contudo, diante da grande variedade de opiniões e propostas tipológicas, é possível concluir ser esta uma questão longe de ser resolvida de forma consensual entre os especialistas na área. Como vimos anteriormente, ao contrário de outros campos que se dedicam ao estudo de produtos culturais mais ‘sérios’ – tais como literatura e cinema, por exemplo –, apenas uma pequena parcela de pesquisas acadêmicas mais sistemáticas é produzida tendo como objeto o videoclipe. Aliada a esse preconceito acadêmico, a alegada natureza fluida e fragmentária dos clipes torna ainda mais difícil a construção de uma proposta harmônica e convergente de categorização desse gênero. Alguns outros pesquisadores clássicos sempre mencionados atualmente – por exemplo, Kaplan (1987), Goodwin (1987), Lynch (1984), Gow (1992), entre outros –apresentaram variadas tentativas de categorizar os videoclipes. Em comum, grosso modo, essas propostas nem sempre adotam critérios classificatórios coerentes, além de deixar de considerar uma série de elementos essenciais à compreensão de todo gênero textual: seus conteúdos, suas propriedades funcionais e sua composição característica. Longe de ter a pretensão de construir um modelo requintado e revolucionário de compreender os videoclipes enquanto gênero, partiremos da tripartição clássica de Firth (1988) em videoclipes de performance, narrativos e conceituais, propondo tomarmos aqui como o critério categorizador fundamental a saliência – no sentido empregado por Schmid (2007) – dos atributos que se sobressaem na sua organização composicional, estilo, conteúdo temático e na sua dinâmica. Além disso, cabe ressaltar que, de acordo com Firth (1988), um dos principais propósitos do clipe não é exatamente promover uma canção individual, mas sim o/a cantor/a ou a banda que a executa. Assim sendo, levando-se em conta esse fato e tendo em vista os nossos objetivos, o modelo sugerido abaixo também irá 364


O GÊNERO MULTIMODAL VIDEOCLIPE: PROPOSTAS DE CLASSIFICAÇÃO

contemplar que autoimagem do/a artista/banda está sendo privilegiadamente construída a partir dessas categorias. Até o momento, esse aspecto ainda não havia sido expressamente contemplado por nenhuma das propostas de categorização dos clipes. Ao final de cada item, apresento como exemplo um videoclipe da cantora norte-americana Madonna como “tipo ideal” (cf. DIEHL, 2004), a título de ilustração. A escolha pelos clipes da popstar se deu, em primeiro lugar, em função da sua vasta carreira videográfica, o que permite um leque mais amplo de opções e de possibilidades de comparação com base nas categorias examinadas. Além disso, como argumenta Kellner (2001), os vídeos de Madonna parecem ser produzidos sobretudo para criar e recriar uma ‘persona de estrela’ da cantora. Como o nosso escopo aqui também é observamos de que modo se dá essa construção da imagem feminina nos videoclipes, Madonna parece ser, pois, uma das candidatas mais ‘versáteis’ para cumprir esse papel. Isso posto, foi possível identificar três possíveis categorizações para os videoclipes com base na saliência da construção composicional, do estilo, do tema e da dinâmica desse gênero:

Saliência na performatividade Os videoclipes que utilizam esse tipo de configuração procuram evidenciar a capacidade técnica da artista, quer como uma musicista profissional (no caso de bandas cujas integrantes aparecem tocando ‘ao vivo’, por exemplo), quer como vocalista (sobretudo nos vídeos centrados na cantora dublando a canção), quer como dançarina (naqueles clipes em que a cantora aparece dançando). É possível conceber dois tipos básicos de videoclipes nessa configuração: os que possuem o efeito de autenticidade e os que não possuem. No primeiro caso, encontram-se aqueles clipes que consistem em registros ao vivo de uma apresentação da cantora ou da banda, podendo ser incluídas imagens adicionais do backstage. As artistas são retratadas em seu ‘ambiente natural’ sobre os palcos, dando ao espectador a sensação de estar assistindo a um show ao vivo

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e tendo acesso privilegiado aos bastidores, aos ensaios, às gravações em estúdio e ao dia a dia da cantora/banda ‘na estrada’. Para provocar ou acentuar esse efeito de autenticidade, é comum empregar recursos técnicos variados, tais como filmagem em preto e branco, imagens granuladas, uso de câmeras ‘tremidas’ imprimindo ‘espontaneidade’ ao registro, aparente desleixo na montagem final das imagens conferindo-lhes ‘naturalidade’, etc. Já no caso dos vídeos sem efeito de autenticidade, a performance da cantora ou da banda é explicitamente realizada para a produção do clipe. Sem qualquer pretensão de parecer um registro ‘natural’, a produção do videoclipe utiliza uma série de estratégias típicas dessa configuração: a artista olha diretamente para câmera, normalmente dublando a canção para as lentes/o espectador; a cantora se junta a dançarinos fazendo coreografias em sets (físicos ou virtuais) especialmente desenhados e construídos para o clipe ou em locações externas reservadas para o mesmo fim; o encadeamento sequencial das cenas (i.e., a montagem do vídeo) nem sempre segue uma ordem ‘lógica’, sendo mais importante mostrar a artista em diferentes cenários com diferentes looks; etc. A autoimagem construída nos videoclipes que salientam a performatividade da cantora tende a destacar a sua identidade como performer, isto é, como alguém com talento e habilidades artísticas especiais, como uma pessoa dotada de credibilidade profissional como música, cantora, dançarina, etc. E, portanto, como uma estrela com legitimidade para aparecer à frente de um clipe e entreter o espectador. Em geral, isso envolve também atributos mais ‘subjetivos’ da artista, tal como demonstrar uma certa ‘atitude’ através de suas performances videoclípticas, evidenciando certos valores e ideais incorporados à sua persona: ela é ‘rebelde’, ou ‘diva’, ou ‘excêntrica’, etc. Como exemplo de videoclipe centrado na performatividade com efeito de autenticidade, podemos citar o registro da apresentação ao vivo da canção “Vogue”, durante o MTV’s 1990 Music Video Awards, realizado em Los Angeles em

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06/09/1990.3 Na ocasião, Madonna surpreendeu seus fãs com uma proposta visual completamente distinta do vídeo original, o qual promovia um glamour nostálgico das divas hollywoodianas dos anos 1940/50. Já na premiação promovida pela MTV americana, a popstar retoma outro grande ícone: a última rainha francesa, Maria Antonieta. Com essa sua homenagem, a cantora promove a imagem de um glamour mais ‘épico’. Ao incorporar Maria Antonieta e sua corte, usando perucas imponentes e um opulento vestuário, Madonna evoca símbolos não apenas das extravagâncias da jovem monarca, mas também dos derradeiros suspiros de um modo de vida abastado e luxuoso, típico da nobreza europeia pré-Revolução Francesa. O sucesso da performance foi tanto que a apresentação acabou integrando a videografia oficial da artista no DVD The Immaculate Collection (1990). Por sua vez, um típico exemplo de videoclipe centrado na performatividade sem buscar o efeito de autenticidade é Hollywood (Madonna, 2003).4 Dessa vez, o glamour segue uma proposta fashion estilizada, com clara inspiração no fotógrafo de moda Guy Bourdin. Madonna reforça sua autoimagem de ‘camaleônica’ e de que está sempre se reinventado ao assumir os mais diversos looks/atitudes: morena pinup, ruiva exibicionista, diva platinada, loura vaidosa, entre tantas outras personas. A ‘capacidade técnica’ da popstar é medida aqui não apenas pela quantidade de visuais que ela consegue adotar, mas também por sua habilidade física – através de recorrentes cenas salientando a sua flexibilidade e a sua boa forma –, bem como sua ‘sensualidade’ manifesta por meio de uma infinidade de caras e bocas ao longo do vídeo. Madonna constrói a imagem de uma mulher que, no auge dos seus (então) 45 anos, pode ser sexy e glamorosa, além de demonstrar um excelente condicionamento físico.

3. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=lTaXtWWR16A> (acesso em: 28 fev. 2013). 4. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=_iT3ia_V68Q> (acesso em: 28 fev. 2013). 367


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Saliência na ficcionalidade Os videoclipes com configuração ficcionalizante são os que narram uma história. Essa narrativa visual, no entanto, nem sempre corresponde à ‘visualização literal’ da letra da canção; antes, pode ilustrá-la livremente, complementar ou ampliar seus sentidos ou ainda funcionar de modo totalmente independente. Dessa forma, também é possível que a narrativização visual de uma música passe a produzir sentidos tão novos a ponto de modificar significativamente a leitura de sua letra. É o caso, como veremos a seguir, do videoclipe Material girl (Madonna, 1985), cuja canção supostamente valorizaria o mundo materialista, mas, a partir do vídeo, pode-se perceber que se trata de uma grande ironia. Apesar de serem caracterizados por representar uma sucessão de acontecimentos mais ou menos encadeados, os clipes com essa configuração não seguem necessariamente uma ordem cronológica e diegética ‘canônica’. Assim, são frequentes os ‘saltos narrativos’, bem como a alternância rápida e a sobreposição de planos, sobretudo devido ao curto tempo disponível para contar aquela história, normalmente adstrita aos 4 ou 5 minutos de duração do videoclipe. Além disso, de maneira geral, os vídeos com essa configuração intercalam momentos entre a história narrada e a performance da cantora ou da banda, que pode ou não estar integrada à narrativa. O uso da narrativa no videoclipe é um recurso bastante empregado como estratégia de produzir a autoimagem da artista. Os diversos tipos de histórias contadas (românticas, cômicas, engajadas, sensuais, polêmicas, aventureiras, violentas, etc.) operam para legitimar não apenas as emoções de que tratam as canções, mas principalmente a identidade da cantora ou da banda na cena musical: é uma artista romântica, cômica, engajada e assim por diante. Nesse sentido, ainda contribuem para a construção dessa imagem os demais elementos integrantes da visualização da narrativa: as locações em que a história do clipe foi filmada (se foi numa ilha paradisíaca ou nas ruas de uma favela, por exemplo), as personagens que participam da trama (principalmente se a cantora 368


O GÊNERO MULTIMODAL VIDEOCLIPE: PROPOSTAS DE CLASSIFICAÇÃO

ou se as integrantes da banda também estiverem atuando no elenco), o estilo de filmagem (se o clipe simula um longa-metragem – por exemplo, com créditos de abertura – ou se ‘mimetiza’ o estilo de cineastas consagrados ou de gêneros cinematográficos clássicos), etc. Um exemplo de clipe que privilegia a ficcionalidade é Material girl (Madonna, 1985).5 Aqui, a cantora ‘interpreta’ uma estrela em ascensão. O vídeo intercala dois núcleos ficcionais-narrativos mais evidentes: como destaque principal, exibe a performance da cantora à Marilyn Monroe, quase reproduzindo a dance routine original do número musical “Diamonds are a girl’s best friend”. Paralelamente, mostra conta o backstage cenográfico da gravação dessa performance, contando o ‘drama’ vivo pela popstar, que recusa presentes suntuosos e mostra-se insatisfeita com seus pretendentes endinheirados, ficando ao final com um aparente pobretão.

Saliência na artisticidade Os videoclipes compreendidos nesta categoria são constituídos por aqueles produtos culturais que buscam despertar nos espectadores uma sensação estética de que estão assistindo a uma obra artística. A ideia aqui não é promover diretamente a cantora através da sua performance ou contando uma história. Procurase, ao contrário, representar a subjetividade da artista por meio da expressão de uma experiência estética, sensorial, emocional, etc. Apesar de apresentar certas semelhanças com a videoarte (YOSHIURA, 2007), é importante frisar que os videoclipes ‘artísticos’ se distinguem por seus propósitos sobretudo comerciais e mercadológicos (divulgar a performer e vender seus CDs, DVDs, memorabília e ingressos de shows). O efeito artístico desses videoclipes é produzido de forma bastante diversificada. Pode-se utilizar, por exemplo, uma sequência de imagens abstratas, obje-

5. Disponível em: <http://www.madonna.com> (acesso em: 28 fev. 2013). 369


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tivando a apreciação visual puramente estética, sem pretender a representação física de pessoas, objetos, paisagens, etc. e combinando luzes, cores, movimentos e sons. Também é possível usar técnicas do cinema experimental. O surrealismo é ainda outro movimento cuja proposta estética é sempre retomada nesses clipes, com a ênfase que é dada ao pensamento espontâneo e incoerente, ao sonho, ao inconsciente. Ao levarem o espectador à fruição do clipe como uma ‘obra de arte’, os videoclipes aqui tratados buscam mobilizar a identidade de ‘artista séria’ que produz um ‘trabalho sério’, de qualidade ‘artística’, e não meramente bem consumível e descartável como os demais vídeos. Cria-se, portanto, a autoimagem de uma cantora legitimada como alguém que entende e produz arte ‘de verdade’ e cujo trabalho videoclíptico atesta a sua ‘credibilidade artística’. Um típico exemplo dessa categoria é o clipe Bedtime story (Madonna, 1995).6 Como afirma uma biógrafa da cantora, “o videoclipe passou pelos portais da alta arte, e foi exibido em diversas galerias, entrando para a coleção permanente do London’s Museum of Moving Image” (O’BRIEN, 2008, p. 274). Ao custo de 5 milhões de dólares, o vídeo – até então o mais caro já rodado – acumulou vários prêmios e, mais recentemente, em 2005, também passou a integrar a coleção permanente do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York (LEVY, 2011). O videoclipe consiste, de fato, numa grande sucessão de imagens de franca inspiração surrealista, evocando, sem aparente coerência, um imaginário de sonho, de irrealidade, do inconsciente. Vários blogs de fãs e acaloradas discussões em redes sociais se dedicaram a ‘desvendar’ todas as referências imagéticas explícitas ou subliminares, propositais ou inconscientes, acaso existentes. É o caso da ‘releitura’ dos seguintes quadros: Reflejo lunar (1957), Nacer de nuevo (1960) e Los amantes (1963) da artista plástica espanhola Remedios Varo; The giantess (1950), da pintora britânica Leonora Carrington; The ends of the Earth (1949), L’Amitié

6. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=iDbMHpE-0hc> (acesso em: 28 fev. 2013). 370


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(1958) e Vision roja (1984) da pintora argentina Leonor Fini; bem como Diego y yo (1949), da artista plástica mexicana Frida Khalo. Assim, no videoclipe Bedtime story, ao dialogar com essas e inúmeras outras pinturas de artistas consagradas do movimento surrealista, Madonna constrói para si uma imagem de ‘artista autêntica’, séria, respeitável, culta, afastando-se, portanto, da mera aura de popstar efêmera, superficial e hipersexualizada que a acompanhava. Aparentemente, não só deu certo – como se comprova pela inclusão desse vídeo no acervo de museus internacionais de renome –, mas também gerou frutos.

As três configurações dos videoclipes Vistas essas três possibilidades de configuração do videoclipe (performativa, ficcional e artística), é importante ressaltar que, em muitos casos, essas categorias se misturam, tornando-se híbridas e nem sempre com fronteiras bem delimitadas. Levando-se esse aspecto em consideração, apresentamos o Diagrama 1 a seguir, como modo de visualizar esquematicamente de que maneira essas três configurações possíveis do videoclipe podem operar em situações concretas. Diagrama 1 - O gênero videoclipe e suas configurações

LEGENDA: (A) Videoclipes com saliência na performatividade (B) Videoclipes com saliência na ficcionalidade (C) Videoclipes com saliência na artisticidade

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Mediante essa representação gráfica, fica claro perceber e situar os casos em que uma das configurações (performativa, ficcional ou artística) ocorre em sua forma mais ‘pura’ (áreas nas cores amarelo, rosa e azul-claro, respectivamente) ou quando há uma interseção entre duas configurações (isto é, quando o clipe veicula elementos comuns a duas categorias, tal como representado pelas áreas nas cores vermelho, verde e azul-escuro) ou ainda se o vídeo apresenta uma hibridização de todas essas possibilidades (área central na cor preta).

CONSIDERAÇÕES FINAIS O pressuposto de que o objeto da Linguística não deve se restringir à análise do material verbal presente nos textos permeia, na verdade, todo este artigo. Apesar da resistência de algumas correntes mais tradicionais, é possível constatar que, aos poucos, os estudos linguísticos mais modernos estão passando a atentar para as mais variadas modalidades presentes em todas as trocas comunicativas. Trabalhar com um gênero tão multifacetado como o videoclipe e procurar estabelecer critérios para compreender suas configurações também podem constituir uma excelente atividade para a sala de aula. Esse é o pensamento de Duarte (2002), ao defender que o domínio dos códigos e signos que compõem a linguagem audiovisual constitui uma forma de poder nas sociedades que produzem e consomem artefatos culturais dessa natureza. Assim, para a pesquisadora, “é tarefa dos meios educacionais oferecer os recursos adequados para a aquisição desse domínio e para a ampliação da competência para ver, do mesmo modo como fazemos com a competência para ler e escrever” (DUARTE, 2002, p. 82). É necessário mudarmos essa perspectiva dicotômica ainda majoritária de que ‘texto é para ler’ x ‘imagem é para ver’. Esperamos, assim, que este artigo seja um convite aberto a pesquisadores não só de Linguística, como também dos mais variados campos do conhecimento a se aventurarem, em suas respectivas especialidades, pelo fascinante universo multimodal do videoclipe.�

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Resumo Este estudo tem como objetivo destacar a importância do professor no processo de letramentos múltiplos, como o grande estimulador do diálogo e da humanização do humano. Fundamenta-se, esta pesquisa, de caráter essencialmente bibliográfico, notadamente nos estudos de Gomes de Matos (1984; 2002; 2005b; 2013) referentes aos estudos da linguagem para fins pacíficos e à construção da cidadania e humanização, e aos trabalhos de Souza (2001), apoiados na perspectiva dialógica de Freire (1975), referentes à humanização; nos trabalhos de Travaglia (2001) sobre linguagem numa perspectiva discursiva e dialógica, e aos estudos de Kleiman (1995), referentes ao letramento e à cidadania e em alguns postulados dos Parâmetros Curriculares Nacionais referentes à linguagem e ao letramento. Todos esses estudos apontam para a função humanizadora da linguagem, notadamente em espaços de letramentos múltiplos, tendo o professor como o grande maestro desse processo. Palavras-chave: professor; linguagem; letramento; cidadania; humanização.


O PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA NA CONTEMPORANEIDADE E SUA FUNÇÃO HUMANIZADORA Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira1

INTRODUÇÃO Este estudo objetiva chamar a atenção dos educadores que trabalham na formação de professores, notadamente nos cursos de Pedagogia e Letras, para a importância da linguagem na humanização do ser humano e na construção de sua cidadania, bem como salientar a função primordial do professor nesse processo de humanização do ser humano. Este estudo fundamenta-se em alguns postulados dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997; 1998; 1999), bem como em estudos voltados para o aspecto humanizador da linguagem, descritos em Gomes de Matos (1984; 2002; 2005b; 2013). Referimo-nos, também, aos estudos de Souza (2001), referentes à humanização do humano, bem como aos estudos de Travaglia (2001) que abordam a necessidade de uma abordagem pragmática e interacionista quanto ao ensino da língua materna, bem como nos estudos de Kleiman (1995) e Rojo (2009), voltados para os letramentos múltiplos de nossos educandos.

LINGUAGEM E CIDADANIA: UM LETRAMENTO PLURAL Segundo Travaglia (2001), há diferentes concepções de linguagem, a saber: linguagem como expressão do pensamento, linguagem como instrumento de comunicação e linguagem como forma ou processo de interação. Na primeira concepção, considerada como tradicional, as pessoas não se expressam bem porque

1. Mestre em Letras/Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife-PE, e professora de linguística da Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE. ribeirodeoliveiraml@gmail.com 377


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não pensam bem do ponto de vista da Lógica, ou seja, presume-se que há regras a serem seguidas para a organização lógica do pensamento e, consequentemente, da linguagem. Na segunda, considerada como estrutural, a linguagem é vista como um código, ou seja, um conjunto de signos que se combinam segundo regras, e que é capaz de transmitir uma mensagem, informações de um emissor a um receptor. Já na terceira concepção, conhecida como pragmática ou discursiva, o que o indivíduo faz ao usar a língua não é tão somente traduzir ou exteriorizar um pensamento ou transmitir informações, mas sim realizar ações, agir, atuar sobre o interlocutor (ouvinte/leitor). A linguagem é, pois, um lugar de interação humana. Assim, o diálogo em sentido amplo é que caracteriza a linguagem, e é isso que faz toda a diferença, notadamente no espaço escolar que tem o professor como o grande agente desse processo de interação humana. Para o linguista Francisco Gomes de Matos (1984), cabe aos estudos da linguagem voltados para a Sociolinguística, contribuir para uma renovação atitudinal e conteudística ao ensino de português. Segundo o sociolinguista, todo professor deve tentar desenvolver três sensos: o de relativismo linguístico, o senso de autoconfiança ou de segurança linguística e o de identidade linguística. Ou seja, essa mudança atitudinal consiste em mostrar ao educando que tudo é relativo na linguagem, no sentido de levar em consideração a adequação da linguagem ao contexto da enunciação; todo educando deve tentar desenvolver uma confiança na sua competência linguística de falante nativo; e todo educando deve se orgulhar de sua história linguística e, ao mesmo tempo, procurar ampliar e atualizar seu acervo linguístico. E tudo isso só pode ter sentido através da mudança atitudinal de nossos professores. Atualmente temos também o respaldo dos Parâmetros Curriculares Nacionais (1997; 1998; 1999) no caso da necessidade de uma formação atitudinal dos professores, como podemos observar na afirmação a seguir, referente ao respeito às diferenças:

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O PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA NA CONTEMPORANEIDADE E SUA FUNÇÃO HUMANIZADORA

A Língua Portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais. Identificam-se geográfica e socialmente as pessoas pela forma como falam. Mas há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar; é muito comum se considerarem as variedades lingüísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas. O problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte do objetivo educacional mais amplo de educação para o respeito à diferença (BRASIL/ PCN, 1999, p. 46).

Dando continuidade ao estudo de alguns postulados dos Parâmetros Curriculares Nacionais referentes aos estudos linguísticos e à função e responsabilidade da escola, observamos que “é função e responsabilidade da escola garantir a todos os seus alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários para o exercício da cidadania, direito inalienável de todos.” (BRASIL/PCN, 1997, p. 21). No caso da Língua Portuguesa, vejamos a preocupação com o indivíduo como um ser social e completo, no fragmento, a seguir: O espaço da Língua Portuguesa na escola é garantir o uso ético e estético da linguagem verbal, fazer compreender que pela e na linguagem é possível transformar/reiterar o social, o cultural. O pessoal; aceitar a complexidade humana, o respeito pelas falas, como parte das vozes possíveis e necessárias para o desenvolvimento humano, mesmo que, no jogo comunicativo, haja avanços/retrocessos próprios dos usos da linguagem, enfim, fazer o aluno se compreender como um texto em diálogo constante com outros textos. (BRASIL/PCN, 1999, p. 46).

Também os PCN (1998, p. 58), para a área de Língua Portuguesa, focalizam “a necessidade de dar ao aluno condições de ampliar o domínio da língua e da linguagem, aprendizagem fundamental para o exercício da cidadania”. Ou seja, o papel do professor nesse processo de construção da cidadania através da linguagem, tendo em vista sua mudança atitudinal, leva a um aspecto altamente humanizador. 379


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Tais assertivas nos conduzem novamente aos PCN (1997, p. 70), ao afirmar que “desde o primeiro ciclo é preciso que os alunos leiam diferentes textos que circulam socialmente”; e que a escola deve ser vista como “um espaço de formação e informação que busca formar cidadãos capazes de interferir criticamente na realidade para transformá-la (ibid, p. 33-34). Ou seja, o professor e sua função transformadora. Os PCN (1997) também fazem referência ao letramento como um “produto da participação em práticas sociais que usam a escrita como sistema simbólico e tecnologia” (ibid). Mas o que vem a ser letramento? Vejamos alguns conceitos defendidos por Kleiman (1995) que poderão nos ajudar a entender melhor esse termo, bastante utilizado por educadores em geral, e que, muitas vezes, não é bem entendido em sua significação linguística. Segundo Kleiman, o letramento, hoje, pode ser definido como “um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico, enquanto tecnologia, em contextos específicos para objetivos específicos” (Cf. SCRIBNER ; COLE, 1981, apud Kleiman, 1995, p. 19). Na verdade, essa é também a concepção preconizada pelos PCN (1997) como vimos anteriormente. Segundo essa pesquisadora, a escola deve ser vista como a mais importante das agências de letramento que, segundo ela, [...] preocupa-se, não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de prática de letramento, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos, uma concepção bastante equivocada e reducionista de letramento, denominada modelo autônomo por Street (1984) que contrapõe a este o modelo ideológico que afirma que as práticas de letramento, no plural, são social e culturalmente determinadas. (KLEIMAN, 1995, p. 21).

Rojo (2009) também nos apresenta esse enfoque autônomo e ideológico do letramento preconizado inicialmente por Street(1984) em que o primeiro está relacionado com termos técnicos, não levando em consideração o contexto social; já o 380


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enfoque ideológico considera as práticas de letramento como ligadas às estruturas culturais e de poder da sociedade, reconhecendo a variedade de práticas culturais associadas à leitura e à escrita em diferentes contextos. Assim, o significado de letramento muda com o tempo e com as diferentes culturas e até em uma mesma cultura. A autora também apresenta duas grandes categorias de letramentos: os dominantes, aqueles que preveem agentes, notadamente agenciados pela escola, e os vernaculares, que estão livres de agentes. Voltando a Kleiman (1995), a estudiosa afirma que é função da escola centrar-se “na construção de contextos facilitadores da transformação dos alunos em sujeitos letrados” (ibid). Ou seja, mais uma vez fica evidenciada a função transformadora do professor como agente de letramentos dominantes em nosso contexto atual. Voltando aos postulados dos PCN (1997, p. 21), a escola deve “viabilizar o acesso do aluno ao universo de textos que circulam socialmente, ensinando a produzi-los e interpretá-los” Afirma, ainda, que “todas as disciplinas têm a responsabilidade de ensinar a utilizar os textos de que fazem uso, mas é a de língua portuguesa que deve tomar para si o papel de fazê-lo de modo mais sistemático” (ibid, p. 26). Tudo isso nos leva ao perfil transformador do professor da atualidade, notadamente professores de língua materna.

LINGUAGEM, CIDADANIA E HUMANIZAÇÃO DO HUMANO Gomes de Matos (2013), em suas recentes pesquisas centradas na Linguística da Paz, chama a atenção para o poder humanizador da linguagem. Na verdade, o linguista afirma que tal caracterização da linguagem poderia ser trabalhada de modo a cobrir tanto seu poder humanizador como desumanizador. Ele cita os linguistas Bolinger (1980) e Crystal and Crystal (2000) os quais salientam que a linguagem também pode ser usada como uma arma desumanizadora. Pois, como afirma Souza (2001, 2001, p. 197): ”Humanizar-se ou desumanizar-se são processos culturais construídos socialmente na história. Culturais, portanto, construções dos próprios seres humanos”. Ou seja, a linguagem pode servir tanto como elemento

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humanizador como desumanizador do humano em sua trajetória social, cultural e histórica. “Vamos nos tornando humanos ou nos desumanizamos no decorrer de nossas vidas” (ibid). Gomes de Matos (2005b) afirma que a Linguística da Paz pode ser definida como uma abordagem interdisciplinar que tem como objetivo ajudar os sistemas educacionais a criar condições de preparar os seres humanos como usuários pacíficos da linguagem. Segundo o linguista, todo cidadão deveria ter o direito de aprender a se comunicar pacificamente para o bem da humanidade, ou seja, numa perspectiva humanizadora. Dessa forma, a Linguística da Paz é uma abordagem emergente com foco em usos pacíficos/não violentos da linguagem e com ênfase em “atitudes que respeitam a dignidade de usuários de línguas e de comunidades” (CRYSTAL, 1999, p. 255). Tendo em vista essas considerações, perguntamos: estariam os professores, nos diferentes níveis escolares, conscientes de sua função humanizadora na vida de seus alunos? Segundo Gomes de Matos (2002, p. 38), “um dos maiores desafios atuais para educadores é o de ajudar os educandos a se prepararem para o exercício de seus direitos e o cumprimento das responsabilidades correspondentes”. Ele questiona o fato de esses direitos e deveres estarem ou não sendo identificados, discutidos e postos em prática em nossas escolas. A partir desses questionamentos iniciais, o linguista apresenta-nos uma lista para reflexão e ação, da qual extraímos alguns fragmentos para nossa reflexão e possíveis ações futuras em nossas salas de aula. Assim, para cada direito linguístico dos estudantes, o autor nos apresenta seu respectivo dever. Por exemplo: todo estudante tem o direito de fazer opções lexicais, isto é, escolher palavras, locuções e, ao mesmo tempo, tem o dever de usar vocabulário, levando em consideração o leitor/ouvinte, a situação e o assunto, utilizando o princípio sociolinguístico da adequação. Outro exemplo: todo estudante tem o direito de aprender a usar a polissemia das palavras, isto é, seus diversos sentidos e, ao mesmo tempo, tem o dever de evitar

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ambiguidades, duplos sentidos (exceto para criar-se “efeitos semânticos especiais”, como no caso da linguagem publicitária), esclarece o linguista. Vejamos, a seguir, outro exemplo bastante relevante nos dias atuais com a grande facilidade de acesso às informações pela internet. Segundo o autor, todo estudante tem o direito de parafrasear o pensamento de um (a) autor (a), fazendo substituições lexicais adequadas e, ao mesmo tempo, tem o dever de parafrasear responsavelmente o pensamento original. Outro exemplo relevante é aquele referente ao direito do estudante de usar gíria para criar efeitos semânticos especiais e, ao mesmo tempo, tem o dever de monitorar o uso de gíria obscena, palavrão, levando em consideração a adequação comunicativa e o efeito desse tipo de vocabulário nas pessoas. O autor fala, ainda, sobre o direito ao uso de dicionários. Segundo ele, todo estudante tem o direito de aprender a usar dicionários diversos, nos mais variados contextos e até mesmo em provas que envolvam o uso de língua escrita; ao mesmo tempo, ele afirma que a escola tem o dever de “valorizar dicionários, como fontes indispensáveis ao desenvolvimento de uma competência lexical individual.” (ibid, p. 40). Observamos, portanto, que Gomes de Matos (2002) levanta e coloca em prática uma questão crucial: a responsabilidade social da escola na construção da cidadania de nossos educandos, através da conscientização da importância do uso da linguagem, ou seja, uma postura totalmente pragmática e humanizadora em relação à linguagem e, consequentemente, em relação às nossas salas de aula, voltadas para um letramento humanizador de nossos alunos. Dando continuidade ao nosso estudo voltado para a função humanizadora da linguagem e do professor como o grande agente dessa humanização, gostaríamos de levantar algumas questões como forma de provocação, no sentido de suscitar pesquisas posteriores. Assim, parafraseando Gomes de Matos (2002), levantamos, a seguir, alguns questionamentos. Estariam nossos professores (educadores e pesquisadores) conscientes de sua função humanizadora através da linguagem? Estariam nossos

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professores preparados ou sendo preparados para essa função? O direito de nossos educandos de aprender a se comunicar pacificamente estaria sendo assegurado? Até que ponto essa responsabilidade social da escola estaria sendo conscientizada, discutida ou até mesmo implementada?

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do que foi apresentado, neste estudo, cujo foco é a função humanizadora da linguagem e do professor, como o grande agente desse processo, observamos que tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997; 1998; 1999) postulam uma mudança de atitude e uma prática voltada para a interação comprometida com a realidade social dos alunos, ou seja, uma prática centrada na responsabilidade social, como através da proposta de letramento apresentada por Kleiman (1995) e Rojo (2009), seja através de um ensino consciente dos direitos e deveres dos educandos, como apresentado por Gomes de Matos (2002) em sua proposta humanizadora de reflexão e ação. Assim, chamamos a atenção de todos que lidam com o ensino, especificamente de língua materna, desde os primeiros anos do ensino básico, passando por todo o fundamental e o médio, para a importância da linguagem como ferramenta humanizadora ou desumanizadora nesse processo de formação do ser humano: um instrumento de construção e exercício de uma cidadania apoiada numa proposta de letramentos múltiplos de nossos alunos e para a responsabilidade social de todos os envolvidos nesse processo, notadamente o professor. Em suma, todos esses estudos apontam para a função humanizadora da linguagem, notadamente em espaços escolares de múltiplos letramentos, tendo o professor como o grande responsável e mola propulsora desse processo.

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Resumo O presente trabalho analisa algumas narrativas presentes na obra Você me Deixe, Viu? Eu vou bater o meu tambor, de autoria de Cidinha da Silva. Nesses, observo como essas escritas podem se distinguir das escritas tradicionais e de que forma dialogam com as novas tendências das escritas literárias no cenário brasileiro. Sobretudo, observo como determinados grupos escamoteados na sociedade e as relações do cotidiano, que nos passam “despercebid@s”, são situadas social, cultural e institucionalmente, por meio da literatura. Palavras-chaves: literatura; sexualidade; gênero.


O SOM DO “TAMBOR” RESSOANDO NAS PALAVRAS Fabiana da Silva Campos dos Santos1

BREVE INTRODUÇÃO As tensas especulações sobre literatura, o que é, qual seu valor, sobretudo suas definições é, segundo alguns teóricos, a consideração destes não ter seu alicerce o que eles chamam de particularidades de “exceções”. É sabido, em qualquer campo de estudo as regras que definem seu clímax valorativo não deve nem poderia ser definido por idiossincrasia. O problema é, no jogo das caracterizações das literaturas, seu modo, seu conteúdo, sua forma, sua universalidade, lhes são apresentadas perfis e/ou características peculiares, mesmo que se queiram universais, são, em certa medida, particular a um determinado grupo. Estes com jeitos de pensar e de representar a literatura de forma exclusiva, única, embasado, ainda que não queira parecer, como “natural”. No entanto, vale continuar a reflexão parafraseando Angélica Soares (1993), e pensar que se “cada obra literária está filiada a uma classe ou espécie desde de um certo nascimento e uma certa origem, gera [grifo meu] nova modalidade literária. Então, por quais razões outras formas estéticas que pareçam dessemelhantes ao perfil canônico já instituído seria qualquer outra coisa que não arte, que não literatura? Isso, deve-se a um padrão que se quer único de fazer literatura, majoritariamente ocidental? Ou talvez, agregado a esse questionamento, estejam atrelados vários outros interesses ou quem sabe desinteresses pelas novas poéticas. Interesses esses incursos num pragmatismo ideológico de que a arte já instituída há anos não quer “ceder” espaço às novas convenções. Segundo Compagnon (2010, p. 229), observando o “embate” comparativo contra o valor literário Kantiano, por Genette, diz que: “o valor não tem, segundo seu

1. Mestranda pela Universidade Federal de Pernambuco- UFPE. e-mail: fabahiana@gmail.com 387


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ponto de vista, nenhuma pertinência teórica e não constitui, em absoluto, um critério aceitável nos estudos literários”. Essa e muitas outras são inquietações e questionamentos que movem esse ensaio que se pretende mais a uma exposição reflexiva e introdutória do que meras pretensões afirmativas.

Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! O Livro consta de 25 narrativas.O título sugere uma chamada que perpassa pela expressão baiana, mais propriamente do soteropolitano “Você me deixe, viu? Expressão que sugere a corruptela “olhe, você me deixe, viu?”. Expressão usada para indicar autônima de fala e posicionamento. No Tambor as temáticas principais – sexualidade e gênero – são as que mais se sobressaem. Podemos ter uma noção mais concreta de como Cidinha da Silva explicita estas temáticas na sua obra, ao analisar algumas narrativas contidas nela. Logo na primeira narrativa, “Alugam-se moços”, Cidinha aborda a sexualidade e a questão dos papéis de gênero construídos pela sociedade contemporânea. ELAS QUEREM dançar e alugam moços. São senhoras bem sucedidas e solitárias. Amantes infelizes. Não refizeram a vida amorosa e desejam fazê-lo [...] No fundo, acham que sexo é bom, sexo com afeto é ótimo e sexo com amor é divino. Inventam o amor para sobreviver. As amigas cansadas de emprestar os maridos e de ouvir as reclamações deles, encontram uma solução: alugam moços dançantes para as festas do grupo. Depois, uma variação de caminhos para enfrentar a solidão. Bebidas, choro, farinha, cannabis, sessões extras no psicanalista, aumento da dose de Tranquinal, Nervium, Ansienon [...] (Alugam-se moços p.15-17).

Nesta narrativa podemos observar que diante da urgência do modelo moderno, as mulheres estão investindo em relacionamentos mais fixos, após conquista pessoais de cunho profissional, com certa maturidade. Porém, ainda há cobrança geral por parte da sociedade – que exalta (muitas vezes de forma hipócrita) valores 388


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político-sociais ou religiosos de influência judaico-cristã – que a mulher precise casar-se e ter filhos. De imediato a narrativa parece subversão destes valores “normativos”. Entretanto, ela aponta uma das conseqüências do conflito entre os valores “modernos” e “tradicionais”. Podemos perceber que a solidão, entendida como resultado das “senhoras” serem “bem-sucedidas”, podem servir como símbolo da sociedade contemporânea, em decorrência de uma quebra paradigmática? A narrativa seguinte, dialoga com a anterior, Vejamos. TENHO TANTA pena de moça nova que estufa o peito pra dizer “meu marido”. Vão dizer que é despeito, mas não me importo. Se fosse o caso, daria ao homem que amasse e fizesse mais lindos os meus dias, outro nome, marido não. Me referiria a ele pelo nome próprio. Veja só que bonito: “ontem quando o Sebastião chegou em casa, me chamou de querida e reclamou do cansaço”. [...] Marido é lugar-comum de quem se acomoda no amor institucionalizado. [...] Há dois meses ele foi morar na casa dela, virou menino de recados. Vai ao sacolão de carrão, olha as menininhas pelo retrovisor e é apresentado às amigas dela como “Meu marido”. Marido dela, fique bem entendido [...] É covardia matar o amor e um homem ao chamá-lo de meu marido. É fugir do próprio desejo e chafurdar na mesmice [...] (Meu Marido p.27-28).

Esta narrativa pode sugerir que o leitor reflita sobre como as relações amorosas ainda estão baseadas em certos padrões, que carregam em seu léxico uma alegoria de representatividade social extremamente significativa. Observa-se a figura feminina carregando o peso inquietante e desagregador de ter o respeito e aprovação social do seu valor, a partir do ancoramento no sexo oposto, o masculino. De certa forma, convida o leitor a pensar no amor de uma forma livre, arquitetada no companheirismo e no respeito. Ao sugerir que a mulheres não chamem seus maridos de “meu marido”, percebe-se uma rede de significado e múltiplas reflexões acerca do sentido dado para o termo em si.

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Tomado juntas, estas duas narrativas – “Alugam-se moços” e “Meu marido” – pode configurar um convite ao equilíbrio nas relações ao tempo que critica certos exageros na configuração das relações afetivas. Ao mesmo tempo em que as narrativas vão de “contra” à permanência da institucionalização do amor, elas também resistem ao apagamento desta. Desta forma, entendo que a narradora procura manejar os dois extremos do amor: a independência demasiada da hipermodernidade em relação à dependência da “velha-guarda”. Não devemos concluir, porém, que a narradora é a favor ou contra o “amor institucionalizado”. Na próxima narrativa veremos outros desfechos complexos. ONTEM FECHEI todos os bares, mais uma vez. Bebi os conhaques todos que pude, perambulei pelas ruas como um gato a fuçar latas de lixo. Cogitei terminar a noite nas pernas de um michê, quem sabe nos braços de uma travesti. [...] Amanheci no computador. Abatido pela caça nas salas de bate-papo, vestido com apelidos banais [...] (p.29). (QUEM NÃO TEM CAO CAÇA COMO GATOp.29).

Há uma expressão no Brasil, “quem não tem cão caça com gato”, que sugere a idéia de que quando não se tem um determinado recurso, você pode utilizar-se de outro, ou seja, a existência de várias possibilidades para vida humana. Percebe-se que na narrativa, “Quem não tem cão caça como gato” (ênfase minha), Cidinha faz uma troca das palavras “com” por “como”. A substituição de uma preposição “com” pela conjunção “como” dá, de uma maneira bem sutil, outro sentido à narrativa. Portanto, não alude mais à instrumentação, ou seja, o uso de algo como recurso, mas sim, do agir do mesmo modo que. Na presente narrativa, entendo que a homoafetividade é a chave do seu desfecho. A autora retrata o cenário transgressor do social, uma vez que expõe a diferença mediante a heteroafetividade institucional, religiosa e socialmente aceita. Assim, entendo que mais uma vez a narradora opta pela quebra de dogmas da “heteronormatividade”. A autora patenteia a discussão das identidades e diferenças das relações amorosas, pois segundo Silva (2007, p.76) “a identidade e a diferença têm 390


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de ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social”. A narrativa em questão incita a trazer outra perspectiva importante à obra de Cidinha da Silva: um diálogo freqüente com a Teoria Queer. Embora a produção acadêmica referente à Teoria Queer não seja objetivo deste ensaio, considerei importante apontar outras perspectivas de abordagem da autora. Dizer que sua literatura dialoga também com a Teoria Queer é dizer que a Literatura Negra, assim define a autora sua literatura, “não restringe a abordar problemas que envolvem o sujeito negro e sua história”. Da mesma maneira, a Teoria Queer não engaja apenas questões da sexualidade, mas também com “um amplo quadro de dinâmicas sociais” (CALEGARI, 2007, p.118). A seguir, discutirei outras narrativas, “Umas e outras” e “Descompasso”. OBSERVAÇÃO DO MUNDO é um negocio que aumenta o balaio de conhecimento da pessoa. Encurta o caminho das dúvidas, amplia o horizonte de possibilidades. Acrescenta tijolos no barracão de sabedoria dos viventes. [...] Esse pessoal que conta peripécias amorosas cria constrangimento, mas ajuda na manutenção da saúde pública [...] Teve uma, outro dia, que numa roda de amigas, recém-conhecidas, contou um problema que viveu com uma companheira [...] Tem também aquele tipo recémconvertido ao mundo lésbico, que tem por hobby jogar flâmulas e estender tapetes vermelhos de conquista para as sabidamente heterossexuais [...] [c]omo um macho qualquer, perseguidor de virgens, ela quer desvirginar a homossexualidade latente das heteros [...] (UMA E OUTRAS p.73-74). ELAS PASSAM pela bunda da manequim e uma delas olha estupefata [...] “A que ponto chegamos, para vender um top a manequim da loja mostra a bunda”[...] Irritada, a outra, depois de um ano de relacionamento, íntimo, reclama: “Que coisa, parece homem, disfarça, pelo menos” [...] (DESCOMPASSO p.39).

Nas duas narrativas acima, sugere-se que a diferença é mais do que uma simples mudança de comportamentos, é algo transgressor. Não é mudança de 391


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desejos sexuais, mas de desconstrução de alguns valores e orientações, inclusive, sexuais. Ao tempo que as personagens são vítimas desta sociedade, elas, no compêndio da “psique”, têm ratificado qual é norma, quais são os costumes e valores que, ao final, são normatizados. E por algumas vezes descompassam em relação às diferenças. A própria Teoria Queer “rejeita as definições fixas de heteronomatividade compulsória” (CALEGARI, 2007 p.120). Isto indica uma sobreposição da relação heterossexual como ideal e entendida pela sociedade como natural. Mas como subverter estes valores morais, religiosos e culturais se os próprios sujeitos que sofrem a discriminação acabam por reproduzir alguns comportamentos? Vale lembrar a seguinte frase da narrativa: “como um macho qualquer”. O tema da homossexualidade é recorrente em O tambor. Os contos expõem uma parte desse universo que permeia o social e que é colocado à margem, em algumas situações, sob o signo da maldição. Isto, muitas vezes, torna-se explícito nos paradoxos construídos a partir de falsos moralismos, principalmente alicerçados por um machismo impregnado e cheio de falsos pudores. Vejamos como as relações de gênero, de poder, é recorrente nos contos. No século XXI o amor ousou dizer o nome e foi retirado do outdoor por força de liminar. Dois homens lindos e fortes se beijavam. Era tudo igual às outras propagandas de jeans. Nada de camisa. Calça semi-aberta, pêlos pubianos à mostra. Mas os detratores alegaram atentado violento ao pudor. Universitário de Vectra abusando da menina vendedora de balas no semáforo, não é atentado violento ao pudor. [...] Mas quem resistiria a um branco bonito daqueles? Ela que se desse por satisfeita. [...] Não configura atentado violento ao pudor o uso do rap para ambientar o clima dos exercícios de defesa e ataque no escuro, simulado por policiais daquela mesma instituição. Eu digo que dois homens adultos que se beijam é ato de outra magnitude. É amor. É fulgor. É paixão. E os arautos de pudor que se lasquem (p.43-44). (O OUTRO AMOR p.43-44).

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Nesta narrativa percebe-se questionamentos acerca da “liminar” que dita o possível constrangimento para esta sociedade, a fotografia de dois homens se beijando num trabalho publicitário, ao tempo em que não há uma mesma mobilização, no sentido de defender ser atentado ao pudor quando no semáforo, um universitário de Vectra abusa de menina vendedora de balas. “Afinal quem resistiria aos encantos de um branco bonito”? Segundo Saffioti (2002), “violência de gênero é o conceito mais amplo, abrangendo vítimas como mulheres, crianças e adolescente de ambos os sexos”. Há uma inquietação recorrente da sociedade com relação à infância; e principalmente quando o que está em jogo é a violência. Em sua maioria, os casos são tratados a partir de aspectos somente marxistas (leia-se desigualdades sociais), contribuindo para uma “anulação” de outras análises e estreitando as relações de gênero que estão imbricadas neste jogo. A passagem na narrativa, “Mas quem resistiria a um branco bonito daqueles? Ela que se desse por satisfeita”, traz para cena a questão étnica desta criança, ou seja, mais uma vez o sexismo e racismo imbricados conjuntamente. Deste modo, pensar as questões de gênero na sociedade é pensar uma das formas de fundação desta mesma sociedade, ou talvez a questão de gênero esteja em todas as situações sociais. Podendo ela parecer de forma forjada, implícita ou até mesmo explícita. É possível pensar por estes ângulos quando identificamos a sociedade como “androcentrada”, onde tudo foi e é medido a partir da concepção de dicotômica entre masculino e feminino em que aquela se sobrepões a esta. Cidinha da Silva, como a escritora antenada que é com a contemporaneidade, não deixou passar “em branco” outras possibilidades de dialogar com o leitor. Desde maio de 2007, ela opta por outra forma de divulgação da sua literatura: postagem em Blog. Outro reduto inesperado de circulação da produção das minorias vai ser o ambiente da internet, que abriga boa parte da poesia negra, a poesia específica das mulheres negras, […] Essas vozes, liberadas do compromisso com os critérios tradicionais de qualidade literária, in393


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teragem confortavelmente no ambiente virtual e democratizado da internet, colocando-se muitas vezes lado a lado com os movimento sociais. (HOLLANDA, 1998 p. 12)

A respeito do Blog, podemos partir das idéias de Marcuschi sobre noção de gênero textual: “gêneros textuais referem os textos materializados em situações comunicativas” (MARCUSCHI, 2008, p.155). Para tanto, o blog constitui uma nova modalidade textual oral e escrita. Heine, em sua dissertação de mestrado sobre o espaço pessoal do blog, tem a dizer: O blog é um dos gêneros digitais surgidos com o advento do hipertexto. Como tal, carrega características inerentes ao ambiente hipertextual e outras inerentes à sua constituição específica. O blog pessoal é, ao mesmo tempo, um espaço dedicado à exposição de aspectos da vida íntima de alguém, e um local que propicia a interação entre o seu escrevente e os leitores das mensagens contidas nele. Constitui-se, portanto, como um espaço discursivo situado na fronteira entre o público (caráter do hipertexto) e o privado (caráter do diário tradicional). (HEINE, 2007, p.11)

Assim como as obras aqui discutidas, o Blog é um campo discursivo onde podemos encontrar uma intergenericidade acentuada, constituindo práticas discursivas, pois a autora faz uma co-relação da realidade social do sujeito em analogia as atividades humanas deste. Segundo Mikhail Bakhtin (2003, p.267), “A linguagem literária é um sistema dinâmico e complexo de estilos e linguagem; o peso específico desses estilos e sua inter-relação no sistema da linguagem estão em mudança permanente”. Apresentação do “Blog da Cidinha” neste ensaio objetiva mostrar a motivação da autora de estar em contínuo diálogo com seus leitores, o que denota o compromisso da mesma de ampliar o espaço de literatura e da crítica com o fazer literário.

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ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Minhas leituras – baseada em teorias literárias e sócio-antropológicas, análise dos textos e comunicação com a autora – sugere que a literatura ora apresentada, de Cidinha da Silva, desafia o cânone da literatura geral brasileira por representar as vozes subalternizadas de vários grupos excluídos e de outros sujeitos colocados à margem. Finalizando, manifesto o desejo que as “novas” literaturas tenham seu “lugar ao sol”, assim como a narrativa, o romance, mesmo com todas as crises que lhe sucedeu em outrora, galgou seu espaço. Certa de que não é tarefa fácil, mas assim como o mundo foi se transformando e a literatura adquirindo novas configurações, o mundo continua se modificando e a literatura não pode, nem deverá, ficar lá atrás. Ora, isso não quer dizer que as literaturas já constituídas e vangloriadas desaparecerão. Isso nunca acontecerá, pois a arte não se destrói para construir novas. Mas ao contrário, será que não vale pensar se a ela não juntar-se-ão novas formas, novos modos e novos conteúdos, no manejar de se fazer arte, de fazer literatura?

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Resumo Este trabalho é decorrente do projeto de iniciação científica da UPE “O texto literário e o uso de imagens em livros didáticos de ensino médio: um estudo de caso”que estávinculado ao projeto macro “O Ensino deLiteratura e a Realidade Escolar”. A análise discorre a respeito do uso de imagens ao lado de textos literários, ressaltando se há uma relação entre texto literário (poesia) e imagem e se esse processo dialógico contribui para a construção de entendimento do aluno. Com base no Letramento Literário, desenvolvemos a pesquisa a partir de três perspectivas: se a imagem está apresentada de forma gratuita; se está auxiliando significativamente no entendimento do aluno; ou se estão colocadas em detrimento do texto. O problema surge, principalmente, quando essas imagens aparecem em detrimento do texto literário, de tal forma que não contribui para a receptividade desse leitor-adolescente. A imagem como obra de arte também tem a função de ensinar, há muito para interpretar através da estética – formas, estruturas, cores etc. Porém, acontece dos alunos não conseguirem diferenciar arte de imagens banais e construir seu entendimento sobre o período do Romantismo com esses dois elementos (arte e poesia). O projeto se desenvolve a partir de um corpus constituído por sete livros didáticos de Língua Portuguesa de ensino médio, mas que no presente trabalho foi delimitado para apenas cinco, analisando a disposição das imagens com o texto literário do período do Romantismo. Os resultados obtidos mostram que os livros dispõem mais de imagens (banais) que de imagens (arte) ao lado da poesia. Palavras-chaves: Romantismo. Poesia. Imagem. LivroDidático. Ensino Médio.


O TEXTO LITERÁRIO E O USO DE IMAGENS NA POESIA DO ROMANTISMO EM LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO: diferenciando os tipos de imagens que contribuem para a receptividade do aluno Kassiane Alexandra Bastos de Moura (UPE/Campus Mata Norte)1 Josivaldo Custódio da Silva (orientador)2

INTRODUÇÃO Atualmente há uma grande discussão sobre o ensino brasileiro, principalmente no tocante a língua portuguesa e a literatura brasileira no ensino médio. No caso do ensino de literatura, especificamente, as concepções de apresentação e de leituras do texto literário são questionadas e abordadas pelo viés dos pressupostos teóricos e críticos da estética da recepção, do letramento literário, da literatura e ensino e dos PCN. Porém, mesmo diante das inúmeras pesquisas que muitas vezes apontam para os muitos problemas e as possíveis “soluções” e/ou “sugestões” sobre o aprimoramento do ensino de literatura, ainda assim, os desafios são grandes e os problemas são repetitivos. Através dos estudos de Cosson (2007), Coenga (2010), Pinheiro (2009 e 2012), Cereja (2005), Bosi (2010) dentre outros, o presente artigo possui como objetivo analisar o uso de imagens ao lado de poesias do período literário do Romantismo nos livros didáticos do ensino médio. Como referencial de apoio crítico e metodo-

1. Graduanda do Curso de Letras e bolsista de Iniciação Científica,financiado pela UPE - Campus Mata Norte. Autora do Projeto de Pesquisa: “O texto literário e o uso de imagens em livros didáticos do ensino médio: um estudo de caso”, vinculado ao CELLUPE.E-mail: kassiabsts@gmail.com 2. Doutor em Literatura e Cultura pelo PPGL/UFPB e Pós-Doutor em Teoria da Literatura, com ênfase em Literatura Popular pelo PPGL/UFPE. Professor de Literatura Brasileira e Literatura Popular do Curso de Letras da UPE - Campus Mata Norte. E-mail: josivaldocsilva@yahoo.com.br 399


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lógico, nos servem de base os PCN Ensino Médio (1999), os PCNEM+ (2002) e as OCEM (2006) para identificarmos o que determinam para o ensino de literatura e para o livro didático de literatura do ensino médio.

A IMPORTÂNCIA DA ARTE O sentido denotativo de Arte remete a ideia de produto, está ligado a técnicas, habilidades, artesanato etc. “A arte é uma produção; logo, supõe trabalho” (BOSI, 2010, p. 13). Sabemos que a arte é uma das manifestações que mais geram discussões sobre qual seria de fato o seu significado. Muitos dizem que o conceito de arte é relativo, porque cada um interpreta à sua maneira. Alguns lembram o fato de ser um produto da sociedade e da cultura. Outros defendem a ideia de que “a arte está para o real, assim como o real está para a Ideia, que, na metafísica de Platão, é a instância absoluta. Arte: sombra de um reflexo” (BOSI, 2010, p. 29).Visto a todas essas concepções, podemos ressaltar o que Jorge Coli afirma na introdução do livroO que é arte: Dizer o que seja a arte é coisa difícil. Um sem-número de tratados de estética debruçou-se sobre o problema, procurando situá-lo, procurando definir o conceito. Mas, se buscamos uma resposta clara e definitiva, decepcionamo-nos: elas são divergentes, contraditórias, além de frequentemente se pretenderem exclusivas, propondo-se como solução única. Desse ponto de vista, a empresa é desencorajadora: o esteta francês Etienne Gilson, num livro notável, introdução às artes do belo, diz que “não se pode ler uma história das filosofias da arte sem se sentir um desejo irresistível de ir fazer outra coisa”, tantas e tão diferentes são as concepções sobre a natureza da arte (COLI, 2009, p. 7).

“É possível dizer, [...] que arte são certas manifestações da atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirativo, isto é: nossa cultura possui uma noção que denomina solidamente algumas de suas atividades e as privilegia.” (COLI,

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2009, p.08). E a sua multiplicidade de significadoscontribui para o entendimento antropológico, histórico, social e cultural da humanidade, através do olhar crítico de seu observador/leitor. Sendo assim, a sua interpretação está ligada ao espaço e o tempo em que seu admirador está inserido. Pode ser o que você entende do mundo, permitindo reflexões e indagações a respeito do que é dito e não dito, auxiliando para uma melhor compreensão do espaço onde vive. Antigamente, a arte era proibida, por justamente obter, muitas vezes, esse papel de clarear a mente das pessoas, e isso inquietava o governo, porque a massa saía de seu casulo e de sua inércia e eram estimulados a pensar, questionando sobre o que acontecia ao seu redor, mudando sua cosmovisão. Desta forma concordamos com a ideia de que arte é construção, conhecimento e expressão (BOSI, 2010). Suas atividades auxiliam na construção do “crítico” e, dessa forma, compreendemos e incentivamos o seu uso na educação. Mas, não apenas da forma que forme revolucionários, mas sim, cidadãos críticos com o seu tempo e sua condição humana. “Aprender a linguagem da arte implica desenvolver técnica, crítica e criação e, portanto, as dimensões sociais, culturais, criativas, psicológicas, antropológicas e históricas do homem” (FELDMAN apud BARBOSA, 2001, p. 43). Continuando com a ideia de arte ser expressão, ressaltamos que a mesma extrai emoções boas ou ruins, dependendo do momento e do ponto de vista; e isso nos dá certa intimidade com ela. Somos atraídos pelo seu mistério, sua “beleza” e sua excentricidade. A literatura comprova a influência da arte sobre o homem. O sujeito que conhece e faz uso da mesma, jogando e manipulando-a, percebe o poder que ela possui. Tanto escrita como oral, ela nos envolve e nos torna aptos para o mundo. Delimitando para a arte escrita, percebemos que “[...] tais surpresas da escrita abrem margem para a invenção e acordam a inteligência para significações novas ou ocultas.” (BOSI, 2010, p. 60). A poesia, por exemplo, nos passa sempre uma imagem, um sentido que está nas entrelinhas do texto poético, desviando-nos “do caminho reto do sentido”, pois de acordo com Perrone-Moisés (1990, p. 14) “O extremo desse desvio (ou sedução) se chama poesia”. Portanto, a poesia como arte nos dá a oportunidade de sairmos

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do lugar e até dependendo do poema conhecemos o contexto sobre a época em que foi escrita. Na antiga Grécia já era considerada um instrumento de saber. Ela descreve “prazerosamente” o quadro histórico, social e até econômico de uma sociedade. E como afirma o crítico Antonio Candido (1995) “A literatura desenvolve em nós a quota que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. Voltando para a imagem, uma das atividades mais antigas na história da civilização, quando lembramos a questão de registros em pedras, cavernas etc., temos aí o uso de “ícones”, importantes registros de uma determinada época da história da raça humana. Portanto, nos ajuda a compreender costumes e crenças de um povo.

ROMANTISMO E AS LINGUAGENS ARTÍSTICAS: POESIA E IMAGEM Para o crítico português Aguiar e Silva (2011, p. 551): O romantismo constitui um momento fundamental na evolução dos valores estéticos do Ocidente, podendo afirmar-se que instaura uma nova ordem estética cujas consequências ainda perduram. Relativamente à criação poética, o romantismo iniciou um modo novo de entender a actividade criadora e a sua influência, neste domínio, é fundamental na literatura dos séculos XIX e XX: o simbolismo e o surrealismo, sob diversos aspectos, são um desenvolvimento de princípios românticos.

Visto que o homem do Romantismo vem defender o uso da imaginação desconfundindo-a da memória e mostrando a capacidade do próprio ser em criar. Ressaltamos a importância que deveria ser dada a este período, que influenciou gerações com seus ideais de liberdade. Considerando a imaginação como uma das mais fortes aliadas para a construção estética, destacamos o quanto ela pode ser importante para um indivíduo em uma sociedade tão hipócrita e repressora: 402


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Ora, na estética romântica, a imaginação emancipa-se da memória, com a qual era frequentemente confundida, deixa de ser uma faculdade serva dos elementos fornecidos pelos sentidos e transforma-se em foça autenticamente criadora, capaz de libertar o homem dos limites do mundo sensível. (SILVA, 2011, p. 552).

Os ditos românticos deixaram-nos lições, através da arte que era utilizada nessa época, como espécie de “válvulas de escape” de um mundo um tanto caótico. Cortando as raízes classicistas e recusando o racionalismo e as ideias iluministas, os românticos desse período tinham como base o amor, a natureza, Deus, onde tudo era realizado através de uma visão de liberdade de criação, de uma forma subjetivista e egocêntrica. Através de diferentes artes como pinturas, esculturas, música, e, sobretudo, a literatura, os artistas do Romantismo mostravam suas inquietações subjetivas, tendo uma visão idealizada da realidade, porém, nos momentos finais desse estilo literário, encontramos elementos que nos mostram um veio crítico e realista. Portanto, de acordo com Silva: [...] a arte romântica manifesta com frequência o gosto pelo fantástico e o grotesco, por tudo o que éexcessivo ou anormal, deforma as proporções e as relações verificáveis na realidade; mas revela-se também, com frequência, como uma arte atenta ao real subjectivo e objectivo, procura pintar o homem e o mundo com autenticidade, demonstra muitas vezes uma forte capacidade descritiva da natureza física. Quer dizer, é uma arte visionária, mas também é uma arte realista. (2011, p. 558, grifo nosso).

DISPOSIÇÃO DA POESIA EM LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO: O “RECURSO” IMAGEM: discussões e resultados Os anos passaram, a educação conta com vários recursos tecnológicos como recursos auxiliadores de ensino, facilitando o árduo trabalho dos professores, como CDs, DVDs, datashow, laboratórios de informática etc. Entretanto, os livros didáti-

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cos ainda são um dos recursos que atravessaram o tempo e continuam a participar do ensino, porém, com algumas mudanças. Sendo assim, devido à modernização das editoras“Os livros didáticos, [...]mudaram sensivelmente sua apresentação. Estão maiores, bem mais coloridos, em papel de melhor qualidade. O número de imagens é, talvez, a grande diferença” (PINHEIRO, 2008, p. 108). Reconhecemos as imagens como meio de aprendizagem e como um reforço metodológico no qual pode auxiliar no processo de compreensão de um texto e interagir mais com o seu leitor, visto que as imagens já são uma forma de comunicação e sozinhas já transmitem mensagens. Então a ideia de diálogo entre um texto verbal e não verbal é um conceito louvável que beneficiaria o aluno. Porém, “[...] por outro lado, se o manual é de literatura, espera-se que a predominância seja de textos literários” (PINHEIRO, 2008, p.109) e que essas imagens sejam solicitadas ao diálogo pelo próprio livro didático, através das atividades e/ou estudo dirigido. Além de que existem inúmeros tipos de imagens, e, portanto, devemos analisar se todas elas podem e devem ser usadas no processo de aprendizagem. Pois, o uso inadequado desse tipo de comunicação pode até inibir ou dificultar a percepção crítica do aluno, limitando a sua imaginação. Trazendo um pouco da filosofia clássica, onde desde daquela época havia discussões sobre o papel da imagem, destacamos dois grandes filósofos: Platão e Aristóteles. O livro Introdução à análise da imagem, de Joly, faz uma reunião das ideias dos dois filósofos a respeito da imagem: [...] Platão e Aristóteles, em especial, combateram-na ou defenderam-na pelas mesmas razões. Imitadora, para um ela engana, para outro ela educa. Desvia da verdade ou, pelo contrário, conduz ao conhecimento. Para o primeiro, seduz as partes mais fracas da nossa alma, para o segundo, é eficaz pelo próprio prazer que nos proporciona. (JOLY, 2007, p.19).

Uma imagem pode trazer em sua estética (sentidos, formas, cores, rabiscos etc), um conhecimento que pode despertar o público para a vida, o jeito como consegue despertar emoções, como a alegria e a tristeza; provocar prazer, trazer 404


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a tona lembranças ou criar novas. Ela pode acionar nossos sentidos e criar um momento único com isso, além de possibilitar um conhecimento sobre a vida e o mundo, permitindo ao indivíduo que a observa uma leitura da sociedade de uma dada época. Todo homem está sujeito a questionamentos e a imagem trabalha como um instrumento filosófico. Pode ser uma representação do real, facilitando comunicação desse sujeito, como pode ser “fantasiosa” alimentando assim a imaginação desse leitor. Quando a imagem é disposta ao lado da poesia pode provocar tudo isso, envolvendo os alunos com os seus valores artísticos, informando e ensinando sobre o seu autor, seu tempo, dialogando com as questões sociais, culturais e econômicas existentes naquele período. Hoje, dialogando com o texto literário, o uso da imagem torna-se ainda mais importante, desempenhando o papel que defendia Aristóteles, a de conduzir para o conhecimento. Com isso, a intenção é formar “[...] leitores capazes de se colocar diante do texto, de estabelecer, mesmo de forma precária, um diálogo com o que ali está posto, a partir de suas percepções” (PINHEIRO, 2012, p. 86). Mas, se pensarmos em uma imagem “banal”, um signo que não remete a nada de valor estético, uma simples montagem – às vezes maior que o próprio texto –, ou até mesmo destacar imagens que possuam valor estético, mas que ao serem dispostas com os poemas afastam os leitores do foco literário, conduzindo-os a conclusões precipitadas sobre o texto poético, compreendemos que dessa forma o uso da imagem seria inadequado. Por isso, concordamos que: O papel da linguagem não é exteriorizar um conteúdo ideológico prévio, uno, já pronto, feito e perfeito. Não. A consciência poética constrói um objeto semântico, o poema, a partir de uma situação já interiorizada, sempre complexa, e dotada, em geral, de uma “atmosfera” (afetiva tonal); mas os seus perfis, os seus aspectos particulares, irão se diferenciando à medida que o artista sondar a própria memória e der contorno e relevo à sua intuição. (BOSI, 2010, p.60).

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A partir das colocações acima é que surgiu a preocupação com os tipos de imagens colocados ao lado de poemas nos livros didáticos de ensino médio e quais são suas influências para o leitor em processo de amadurecimento, motivos pelos quais surgiu essa pesquisa. Como este estudo é decorrente do projeto “O texto literário e o uso de imagens em livros didáticos de ensino médio: um estudo de caso”, o corpus é parte desse projeto principal que contem 7 (sete) livros didáticos de Língua Portuguesa de ensino médio publicados nos últimos 10 anos. Neste artigo, porém, foram selecionados apenas 5 (cinco) livros, nos quais temos a disposição de poesias e uso de imagens referentes ao período do Romantismo. Dos cinco livros pesquisados, a princípio, vimos o recorrente uso da fragmentação de poema, como nos didáticos de Faraco e Moura (2008, p. 194) com o poema “Cântico do Calvário”, de Fagundes Varela e de Maia (2001, p. 202; 217) com “Amor e medo” e “O baile”, ambos de Casimiro de Abreu. São poemas extensos em sua forma original, mas que, de forma fragmentada, estão dispostos para serem analisados e respondidos nos exercícios propostos pelo próprio livro. No entanto, as estrofes abordadas não tornaram os textos incoerentes por completo. Salientamos que somente no livro de Faraco e Moura (2008) alertou-se acerca da fragmentação do poema. A respeito disso, Pinheiro, comenta que: O poema é ainda o gênero mais prejudicado nas práticas leitoras tradicionais [...] Embora a maioria dos poemas líricos sejam curtos, muitos livros didáticos permanecem na mera transcrição de fragmentos, priorizando a ilustração de uma característica de um estilo de época e não a sua leitura mais livre e mais interativa. (2012, p.89).

Nesse caso, o grande problema é que este leitor, muitas vezes leigo com relação a conhecimentos de textos literários, está sujeito a entender que as poesias apresentadas nestes livros estão completas. “[...] Note-se que, para a imensa maioria dos alunos, [...] são esses textos os primeiros e até, às vezes, os únicos que vêm a conhecer”.(DIAS, 2008, p. 08). Nestes e em tantos outros casos, o professor deve 406


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tomar a frente da discussão desses textos, esclarecendo e podendo trazer o texto por completo, tornando-se o mediador deste diálogo, “[...] tanto pela sua maior experiência de leitura, quanto pela sua proximidade ao aluno.” (COENGA, 2010, p. 09). Essa forma de ensino se torna importante porque muitas vezes o aluno sai da educação básica sem o interesse pela literatura, e consequentemente sem saber analisar os textos literários nos seus diversos gêneros, pois como afirma Cereja (2005, p. 54): Depois de anos de estudo de literatura, os jovens brasileiros deixam o ensino médio sem terem desenvolvido suficientemente certas habilidades básicas de análise e interpretação de textos literários, tais como levantamento de hipóteses interpretativas; rastreamento de pistas ou marcas textuais; reconhecimento de recursos estilísticos e de sua função semântico-expressiva; relações entre a forma e o conteúdo do texto; relações os elementos internos e os elementos externos (do contexto sócio-histórico) do texto; relações entre o texto e outros textos, no âmbito da tradição; relação entre texto verbal e o texto não verbal, etc. (grifo nosso).

Em vista disso, sugerimos aos professores que reflitam sobre a questão, dentro da perspectiva de letramento literário, seguindo o modelo da sequência básica, estipulado por Cosson (2007, p. 51) como a motivação, introdução, leitura e interpretação do texto literário, inclusive dialogando com os textos não verbais, como nos informa Cereja (2005). De acordo com as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (BRASIL, 2006, p. 55) “[...] faz-se necessário e urgente o letramento literário: empreender esforços no sentido de dotar o educando da capacidade de se apropriar da literatura, tendo dela a experiência literária”. Dessa forma, o uso da sequência básica vem tentar moldar este aluno quanto à leitura literária. Ora, um dos grandes fracassos do ensino da literatura é a precária maneira como ela é apresentada e isso resulta na constante negação dos alunos. Pensemos no fato de que muitos não possuem acesso à literatura por completo (prosa, poemas, cantigas, sermões, textos dra407


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máticos etc), então seu universo fica limitado ao que conhece no livro didático. E quando a apresentação desses poemas se torna repetitiva, dificulta familiarizar esse aluno com a literatura, principalmente esses jovens que normalmente se distraem e se entediam facilmente. Notamos que mesmo os poemas pertencendo a contextos e estilos diferentes, a abordagem nos manuais continua sendo a mesma e isso aos poucos vai desinteressando o leitor/aluno. Então, porque não pensar em alternativas que possam mudar a concepção desses alunos que definem a literatura muitas vezes a partir do que encontram nos livros didáticos? O primeiro momento deste trabalho de interação do aluno com a literatura, Cosson chama de motivação. A forma com que você vai chamar a atenção deste leitor é importante, pois “Ao denominar motivação a esse primeiro passo da sequência básica do letramento literário, indicamos que seu núcleo consiste exatamente em preparar o aluno para entrar no texto.” (COSSON, 2007, p. 54). Após preparar este aluno para o texto através de alguma atividade que viesse a despertar o interesse do aluno em participar da aula, viria a introdução do texto, que começaria com a biografia do autor e características referentes à obra, mas sem entregar todo os elementos do texto a ser analisado. E desta forma, a incitação à leitura e a interpretação formaria um convite à percepção sensorial e crítica do aluno. Segundo Cosson(2007): [...] a interpretação parte do entretecimento dos enunciados, que constituem as inferências, para chegar à construção do sentido do texto, dentro de um diálogo que envolve autor, leitor e comunidade. No campo da literatura ou mesmo das ciências humanas, as questões sobre interpretação e seus limites envolvem práticas e postulados tão numerosos quanto aparentemente impossíveis de serem conciliados, até porque toda reflexão sobre a literatura traz implícita ou explicitamente uma concepção do que seja uma interpretação ou de como se deve proceder para interpretar os textos literários. (2007, p. 64).

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Quanto ao uso das imagens, 14 (quatorze) poemas do Romantismo estão dispostos com imagens. Deste total, verificamos que 13 (treze) estão dispostos gratuitamente, pois não foram dialogadas com o poema e nem nas atividades propostas se incitou uma leituradas imagens inseridas. Sendo assim, excetua-se apenas 1 (um), que na verdade, é um exercício que apresenta primeiro a imagem e apenas na segunda questão pede para rever o quadro, fazendo a seguinte pergunta: “Reveja o quadro de Fragonard. Imagine que a personagem masculina estivesse lendo para a mulher o soneto de Vinícius de Moraes (texto). Em seguida, escreva uma resposta que ela poderia ter dado a ele após ter ouvido o soneto.”(FARACO &MOURA, 2008, p. 175). Na imagem, tem um homem em pé e uma mulher sentada. Neste caso, uma pergunta que pede para o leitor se colocar no lugar de um personagem da obra, é interessante. Isso pode despertar a sua curiosidade, pois ele vai querer saber como o personagem lá sentado, pode se assemelhar a ele e tentará trazer isso para a sua realidade. Cada detalhe da pintura poderá ser observado por este aluno, e isso poderia incitá-lo a descobrir em que época a obra está inserida. Quando este diálogo chegar na parte da resposta, o aluno prestará bastante atenção no que o poema está dizendo, para poder construir uma resposta que se encaixe no significado do texto. Mas, a pergunta não esclarece o envolvimento das características do Romantismo nisso tudo, porém já estaria lançado o primeiro momento, a motivação; e partiria do professor continuar a sequência básica e apresentar os textos que já correspondessem ao Romantismo. Dessas 13 (treze) imagens “gratuitas”, 6 (seis) estão em detrimento do texto, ou seja, estão inseridas de tal forma que chamam mais atenção que o texto poético, por suas cores, formas ou tamanhos (maiores que o poema). Algumas imagens que apresentam valor estético poderiam ser retomadas nos livros, pois elas possibilitariam uma leitura construtiva e significativa, tal como a pintura O passeio, de Pierre-Auguste Renoir apresentada ao lado do poema Amor e medo, de Casimiro de Abreu de MAIA (2001, p. 202).

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[...] No plano do diálogo das artes, é interessante apontar, por exemplo, a proximidade temática ou de estilo entre um poema e um quadro e uma escultura, por exemplo. Imagens de filmes, de montagens teatrais nas quais estão em destaque uma expressão fisionômica, um cenário pode levar a leituras mais significativas de obras literárias. (PINHEIRO, 2008, p. 108-109).

Também como exemplo de disposição gratuita, e em detrimento do texto, temos o poema Barca Bela, de Almeida Garret, no livro de Cereja e Magalhães (2003, p. 180). É um poema curto, representante do Romantismo português. Verificamos que a imagem disposta ao lado do texto literário não provoca o leitor, ou seja, não o provoca a pensar e refletir sobre o poema, está tudo muito óbvio, além de ser uma imagem sem autoria ou fonte. No livro de Maia (2001) temos exemplos com Canção do Exílio e Como Eu Te Amo, de Gonçalves Dias, nas páginas 185 e 192, respectivamente. Ambos os poemas são representantes do Romantismo brasileiro, nos quais as imagens selecionadas também parecem questionar a capacidade do aluno. Em Como Eu Te Amo, a imagem está como plano de fundo com a cor azul (representando o céu) e o desenho da lua e das estrelas em tom branco da mesma cor do texto literário. Com isso, percebemos que além de desfocar o leitor, é totalmente banal e desnecessária, ou seja, não instiga o aluno a pensar, e ainda distrai esse aluno, o poema quase que fica apagado, em meio à cor tão forte. A apresentação do poema Canção do Exílio também parece questionar a ideia de poesia como construção de significados e sentimentos. Ora, se a imagem disposta ao lado do texto literário, já desenha todo o sentido do poema qual seria o papel do leitor nesse contexto? Ler o poema e já ter a resposta através da imagem? Considerando que o aluno de ensino médio, muitas vezes é um aluno apressado para a compreensão do poema, visto a correria de leituras obrigatórias para o vestibular, ele passa logo para a imagem e depois vai lendo o texto sem procurar refletir sobre ele, isso sem falar daqueles que nem pensam em fazer vestibular. No caso analisado, retratar palmeiras, água (o oceano), estrelas, sabiá traz no bojo da questão uma ironia e parece indiretamente questionar todo o processo de apren410


O TEXTO LITERÁRIO E O USO DE IMAGENS NA POESIA DO ROMANTISMO EM LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO: DIFERENCIANDO OS TIPOS DE IMAGENS QUE CONTRIBUEM PARA A RECEPTIVIDADE DO ALUNO

dizado do aluno. Como vimos, pois, os vocábulos utilizados neste poema, são de fácil compreensão e não precisaria do recurso da imagem principalmente uma imagem que interfere na interpretação do poema. Sendo, assim, isso inibi o aluno de proporcionar a leitura como “[...] um processo de construção de sentidos.” (MAGNANI apud COENGA, 2010, p. 18). Queremos aqui, deixar claro que não estamos criticando o uso de imagens nos livros didáticos como recursos teóricos e metodológicos na sala de aula, porém, alertamos o fato de que seu uso inadequado torna o ensino da literatura limitado, além de que “[...] o texto literário deveria [...] ocupar mais espaço” nos manuais didáticos (PINHEIRO, 2009, p. 109, grifo nosso). Entretanto, sugerimos que estes livros didáticos possibilitem um diálogo real e proveitoso, no sentido crítico, entre os textos literários e as imagens utilizadas. Portanto, cabe ao profissional de Letras estar munido de outros tipos de ferramentas, tanto teóricas/críticas, quanto metodológicas para poder tornar o ensino de literatura mais enriquecedor. Para isso, o professor não deve se limitar apenas no que o manual apresenta, pelo contrário, precisa fazer indagações junto ao aluno sobre como o texto foi disponibilizado para ele. A leitura, a releitura e a reflexão realizada pelo aluno acerca do poema a ser analisado, inclusive com o auxílio da imagem, deve ser feita com a atenção cuidadosa do professor, para que haja a possibilidade do aluno conhecer o diálogo intersemiótico entre as obras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Depois dos estudos e análises, chegamos à conclusão que muitos livros didáticos usam recorrentemente o uso de imagens ao lado das poesias e que dessas, muitas são imagens feitas sem o uso de nenhuma estética. A relevância dessa pesquisa ocorre pelo potencial de elaborar discussões acerca do ensino de literatura (poesia) e o uso de imagens nos livros didáticos do ensino médio, que muitas vezes se dá pelo exagero da imagem em detrimento do próprio texto literário. Percebemos ao longo do estudo que a maioria dessas dis-

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posições de imagens ao lado de poemas do período do Romantismo não contribui para a receptividade do aluno. As imagens são dispostas gratuitamente, ou seja, “jogadas” ao lado do texto sem nenhuma menção ou questionamentos sobre o seu uso naquele espaço. Elas estão dispostas de forma que distraem os alunos ou o influencia na interpretação, além de não haver, por parte do livro didático, uma contextualização da imagem com o texto poético. A partir da pesquisa e desses resultados, percebemos a necessidade do letramento literário e, portanto, neste sentido, retomo as palavras de DIAS (2008, p. 07) que “[...] em se tratando de ensino de literatura, nossa atenção deve ser redobrada sobre a informatividade superficial dos livros didáticos.”

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O TEXTO LITERÁRIO E O USO DE IMAGENS NA POESIA DO ROMANTISMO EM LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO: DIFERENCIANDO OS TIPOS DE IMAGENS QUE CONTRIBUEM PARA A RECEPTIVIDADE DO ALUNO

CHIAPPINI, Lígia. Invasão da catedral: literatura e ensino em debate. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. COENGA, Rosemar. Leitura e letramento literário: diálogos. Cuiabá: Carlini & Caniato, 2010. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2006. COLI, Jorge. O que é arte. 15. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. FARACO, Carlos Emílio e MOURA, Francisco Marto de. Português: projetos. São Paulo: Ática, 2008. DIAS, Plínio Rógenes de França. Leia Escola: Revista da Pós-Graduação em Linguagem e Ensino da UFCG. Vol. 8, nº1, Campina Grande: EDUFCG, 2008. JOLY, Martine. Introdução à analise da imagem. Trad. Marina Apenzelier. 11. ed. São Paulo: Papirus, 2007. LINS, Osman. Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros. São Paulo: Summus, 1977. MAIA, João Domingues. Português: série novo ensino médio. São Paulo: Ática, 2001. MALARD, Letícia. Ensino e literatura no 2º grau: problemas e perspectivas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Flores da escrivaninha: ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. PINHEIRO, Hélder. A abordagem do poema na prática de ensino: reflexões e propostas. In. MENDES, Soélis Teixeira do Prado e ROMANO, Patrícia Aparecida Beraldo(Orgs.). Prática de língua e literatura no ensino médio: olhares diversos, múltiplas propostas. Campina Grande: Bagagem, 2012, p. 85-116. ______. Reflexões sobre o livro didático de literatura. In. BUNZEN, Clécio e MENDONÇA, Márcia (Orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola, 2009, p. 103-116. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. Teoria da Literatura. 8. ed. Rio de Janeiro: Almedina, 2011. TERRA, Ernani e NICOLA, José de. Gramática, literatura e produção de texto para o ensino médio. 2. ed. reform. São Paulo: Scipione, 2002. ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São Paulo: Ática, 1989.

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Resumo Considerando o desenvolvimento da tecnologia e dos meios de comunicação, notase que há diversas formas de representar o indivíduo socialmente, por intermédio de recursos semióticos que constituem a multimodalidade. Dessa forma, o presente artigo tem como objetivo analisar os efeitos argumentativos estruturados em anúncios publicitários impressos, destinados ao público feminino, que se organizam em textos multimodais. Para tanto, foi feito um breve estudo sobre a Semiótica, a Semiótica Social e a Multimodalidade e seus elementos constituintes. A partir disso, foram selecionados dois anúncios publicitários para a análise que foi debruçada sobre a teoria da Gramática do Design Visual de Kress e van Leeuwen (2006). Notou-se que os elementos multimodais contribuem para a formação de opinião do leitor e assumem grande relevância na construção de sentido dos textos. Palavras-chave: Semiótica; Multimodalidade; Anúncio Publicitário.


OS EFEITOS MULTIMODAIS EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS FEMININOS Raquel da Rocha Conti1

INTRODUÇÃO Com o desenvolvimento da tecnologia, diversas áreas ligadas à comunicação estão sendo inovadas. Com isso, pode-se representar socialmente um indivíduo não apenas por meio de textos orais ou escritos, mas também com o acréscimo de elementos semióticos visuais inerentes à sua compreensão textual. Dessa forma, os gêneros textuais que são veiculados incorporam diversos modos de apresentação. Além dos estritamente linguísticos, temos também as imagens, o formato da letra, a cor, entre outros recursos fundamentais na construção de sentidos. Assim, é incontestável que os textos multimodais permeiam em nossa sociedade. Segundo Kress e van Leeuwen (cf. 2006, p. 177), textos multimodais são aqueles que utilizam mais de um código semiótico. Então, o que se observa é que tanto a linguagem verbal, quanto a não verbal estão presentes nestes textos e, especificamente nos anúncios publicitários, aos quais será dada atenção neste trabalho. De acordo com Dionisio (2011, p. 138): “Imagem e palavra mantêm uma relação cada vez mais próxima, cada vez mais integrada”. Portanto, o que se percebe é que a união destes dois códigos transmite efeitos discursivos diferentes, amplia o campo de informações e propõe maior interação entre os interlocutores. Entretanto, muitas pessoas sentem dificuldade em atribuir o significado inferencial presente em anúncios publicitários. Vale ressaltar que compreender informações implícitas exige do leitor elementos cognitivos, sociais e culturais.

1. Professora de Língua Portuguesa da Escola Nossa Senhora da Conceição – ENSC. Graduada em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). E-mail: raaquelconti@gmail.com 415


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Porém, o que se defende, neste trabalho, é que os recursos semióticos, recorrentes nos meios de comunicação de massa, têm função, estrutura e significados. Assim, este trabalho tem como objetivo geral analisar os efeitos argumentativos estruturados em anúncios publicitários impressos, destinados ao público feminino, que se organizam em textos multimodais. E como objetivos específicos: identificar os recursos semióticos para a construção de textos multimodais e analisar os efeitos discursivos promovidos pelos recursos semióticos no texto multimodal anúncio publicitário. O presente artigo está organizado da seguinte forma: primeiro, será apresentado um breve histórico sobre a semiótica e a influência dos estudiosos Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Peirce. Para isso, o embasamento teórico se dará a partir dos trabalhos de Barthes (1993), Saussure (2012), Peirce (1975), Eagleton (1997) e Santaella (2000) e Cortina e Marchezan (2011) para poder ser compreendido os conceitos iniciais de signo e semiótica e o seu progresso. Serão apontados os contrapontos de Saussure e Peirce e a contribuição de ambos. Em seguida, serão consultados autores que reconheçam que existe uma Semiótica Social, como Kress e Van Leeuwen (2006) e Pimenta (2001). Depois disso, Dionisio (2011) e Kress e van Leeuwen (2006) será bastante relevante ao tratar do conceito e da relevância da multimodalidade. Quanto aos elementos que a constituem, serão abordadas as teorias de Kress e van Leeuwen (2006). Em seguida foram selecionados dois anúncios publicitários destinados ao público feminino: a Cera corporal Veet e a lingerie Duloren. A escolha destes anúncios será fundamental para que se possa analisar algumas estruturas defendidas por Kress e van Leeuwen (2006) acerca dos anúncios publicitários. E, além disso, será analisada a forte presença de elementos semióticos que persuadem o público, tais como: as cores predominantes, o formato das letras, as imagens, as ideologias implícitas, a configuração das imagens e a representação social que um gênero como este é capaz de produzir em diferentes contextos. Dessa forma, este trabalho tende a otimizar a leitura crítica do leitor à medida que apresenta as diversas possibilidades que um texto multimodal oferece.

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Considera-se de grande relevância o desenvolvimento deste, uma vez que ainda há uma preocupação limitada em desenvolver este aspecto e uma linha de pesquisa dada de forma tímida. Portanto, este trabalho está contribuindo para futuras pesquisas, o que possibilitará a compreensão de recursos semióticos no dia a dia das pessoas, ao longo do tempo, e as manifestações de textos multimodais através dos anúncios publicitários.

UM BREVE ESTUDO DA SEMIÓTICA Ao falar da Semiótica, é inevitável fazer uma breve volta histórica a respeito dos trabalhos de Ferdinand de Saussure e Charles Sanders Pierce. Estes estudiosos foram os pioneiros desta ciência e os estudiosos neste assunto, atualmente, devem a eles as grandes contribuições que lhes foram atribuídas. Saussure, em sua obra “Curso de Linguística Geral”, concebeu a língua como objeto de estudo para a Linguística. Admitiu que esta pudesse ser dissociada da fala, pois é social, sistemática e, portanto, comum a todos os indivíduos; enquanto esta última é individual e depende de uma massa para se estabelecer. Desse modo, ao especificar o objeto de estudo para a Linguística, indagou o porquê da Semiologia ainda não ser reconhecida como ciência. Depois disso, chegou à conclusão que [...] quando se percebe que o signo deve ser estudado socialmente, retêmse apenas os caracteres da língua que a vinculam às outras instituições, às que dependem mais ou menos de nossa vontade; desse modo, deixa-se de atingir a meta, negligenciando-se as características que pertencem somente aos sistemas semiológicos em geral e à língua em particular. (SAUSSURE, 2012, p. 48)

Assim, quando o filósofo reconheceu que o signo tem o caráter social e, portanto, para que exista depende de uma vontade individual, ele encontrou na Semiótica a problemática comum na Linguística. Pois acreditava que “[...] se se quiser descobrir a verdadeira natureza da língua, será mister considerá-la inicial417


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mente no que ela tem de comum com todos os outros sistemas da mesma ordem” (SAUSSURE, 2012, p. 49). Então, Saussure concebeu o signo em função do signo linguístico, defendendo veementemente a sua forma estruturalista e sistemática. Essas ideias comungam com as de Barthes ao afirmar que “objetos, imagens, comportamentos podem significar, claro está, e o fazem abundantemente, mas nunca de uma maneira autônoma; qualquer sistema semiológico repassa-se na linguagem” (1993, p. 12). Dessa forma, para que algo existisse era preciso o uso da língua e a linguagem comportava “o mundo dos significados” (BARTHES, 1993, p. 12). Dando continuidade aos seus estudos, Saussure estabeleceu os componentes do signo: o significante e o significado; além disso, concebeu algumas dicotomias, tais como a língua/fala, arbitrariedade/motivação, relações sintagmáticas/associativas, entre outras. Desse modo, recebeu diversas críticas, entre elas, a do crítico literário Eagleton (1997), afirmando que: Era impossível continuar a ver a realidade simplesmente como algo “exterior”, uma ordem fixa de coisas que a língua apenas refletia. [...] Essa visão racionalista ou empirista da linguagem sofreu severamente às mãos do estruturalismo, pois, se como argumenta Saussure, a relação entre signo e referente era arbitrária, como poderia existir uma teoria da “correspondência” do conhecimento? (EAGLETON, 1997, p. 147-148)

Devido a este pensamento dicotômico, em separar o signo do seu referente, isto resultou em isolar a forma do conteúdo. Além disso, Eagleton contesta a visão racionalista de Saussure ao ver a língua fora da realidade, sem considerar o outro e as suas cargas ideológicas. Entretanto, não podem ser eliminadas as contribuições de Saussure, pois estas serviram como ponto de partida para o amadurecimento da ciência geral dos signos. Sob outro ponto de vista, os escritos do filósofo Peirce fazem refletir sob um conceito de signo inovador. Ele afirmava que: “um signo é [...] algo que representa algo para alguém, sob algum prisma” (PEIRCE, 1975, p. 26). Nessa perspectiva, pode418


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se compreender que o fato de Peirce considerar o entendimento do outro, demonstra que o conceito de signo era bem amplo, pois cada indivíduo tem maneiras diversas de agir e pensar. Logo, para que o sujeito alcance o entendimento – semiose – de um signo ou de uma combinação de signos em determinados contextos, é necessário que ele recorra aos seus conhecimentos extralinguísticos, daí inclui-se aspectos políticos, culturais e sociais. Peirce ainda foi mais além ao admitir que existiam diversos signos na sociedade, tendo também diversos modos de representação. Foi possível, então, definir a classificação básica dos signos em Ícones, Indicadores e Símbolos. Peirce explica que Um ícone é um signo possuidor de caráter que o torna significativo, ainda que seu objeto não existisse; [...] Um indicador é um signo que perderia, de imediato, o caráter que faz dele um signo caso seu objeto fosse eliminado, mas que não perderia aquele caráter, caso não houvesse interpretante. [...] Um símbolo é um signo que perderia o caráter que o torna signo se não houvesse interpretante. (PEIRCE, 1975, p. 131)

Com esta assertiva, percebe-se que além de Peirce admitir que existiam vários signos, ele também reconhece a importância de ter um objeto e um interpretante. Tanto é que o signo indicador está associado a um objeto de que é indicação, como por exemplo, a fumaça com o fogo. O símbolo, por sua vez, precisa do interpretante, pois para que algo possa ser simbolizado depende de algumas convenções que são feitas na sociedade. Um exemplo disso pode ser a balança simbolizando a justiça. Enfim, tem-se o signo icônico que se assemelha ao que representa, “tal como um risco de lápis representando uma linha geométrica” (PEIRCE, 1975, p. 131). Dentro desta perspectiva, retorna-se para o interesse inicial desta pesquisa, a saber, uma ciência que compreende a relação dos signos com o mundo. Por este motivo, é que foram traçadas as principais abordagens da história da Semiótica para verificar o quão relevante foram as contribuições de Saussure e de Peirce para o desenvolvimento deste trabalho. Assim, basta o indivíduo olhar ao seu redor para

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encontrar uma gama de signos, símbolos, de imagens, de linguagens e saber que todos estão presentes por algum motivo, de caráter intencional. A Semiótica, portanto, preocupa-se com o sentido das coisas. O que o signo representa para alguém e as diversas possibilidades de compreensão serão tidas como o fator crucial para partirmos antes de qualquer análise. Logo, nas palavras de Cortina e Marchezan (2011) pode-se conhecer e compreender o objeto de estudo da Semiótica: Seu objeto é a significação, entendida não como a priori já constituído que se dê integralmente e de uma vez por todas, mas, antes, como o resultado de articulações do sentido. É essa constituição do sentido que a semiótica busca expressar, opondo-se, portanto, ao posicionamento de que sobre o sentido nada se pode ou se deve dizer, por ser evidente ou intraduzível, recusando também a paráfrase, pessoal, impressionista, a interpretação intuitiva (CORTINA; MARCHEZAN, 2011, p. 394).

Dessa maneira, pode-se compreender que o objeto de estudo da Semiótica é a significação, logo, é inevitável a presença de um interpretante. No entanto, os autores fazem uma observação bastante interessante no final da citação que nos leva a refletir sobre os mecanismos que fazem um indivíduo construir sentidos a respeito de um determinado signo. Assim, volta-se ao objetivo deste trabalho que é analisar os diversos modos semióticos presentes em textos multimodais, no caso, anúncios publicitários, e os efeitos de sentido que são provocados no leitor. Com Santaella, tem-se a afirmação dessas ideias: [...] Tudo é relativo, porque tudo depende dos signos de modo absoluto. No limite, signo é sinônimo de vida. Onde houver vida, haverá signos. A ação do signo, que é a ação de ser interpretado, apresenta com perfeição o movimento autogerativo, pois ser interpretado é gerar um outro signo que gerará outro e assim infinitamente, num movimento similar ao das coisas vivas (SANTAELLA, 2000, p. 04). 420


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Pode-se compreender, assim, a relevância da Semiótica em diversos aspectos, mas especificamente nos processos comunicativos. Pois, a todo o momento, a sociedade está rodeada de signos e é necessária a compreensão e interpretação destes para que as pessoas possam interagir da melhor forma possível. Com tantas informações nos meios de comunicação de massa, nota-se que o signo linguístico, concebido por Saussure, é apenas mais um no meio de tantos outros. Então, é preciso um novo olhar para os textos multimodais, entre eles, os anúncios publicitários, pois a construção de sentido é feita com a análise de um todo integrado. Portanto, para que um indivíduo alcance a semiose, ele faz uso de cargas ideológicas e semânticas que carrega consigo e transpassa para as diversas formas de representação. Consequentemente, a interpretação de um signo gerará outros signos e isto se assemelha ao processo autogerativo, como a autora explicou. Daí a complexidade desse assunto. No entanto, à medida que é complexo torna-se prazeroso. Justamente por ser algo contemporâneo e que não se pode negar a sua existência na sociedade. Portanto, a afirmação de que “signo é sinônimo de vida” é coerente, pois, como pode ser compreendido que representar é significar, então é incontestável que o ser humano adquira formas de representação em sua vida para construir suas ideias, conviver com outras pessoas e entender a si próprio.

Semiótica Social Segundo Pimenta (cf. 2001, p. 186), a Semiótica Social é a ciência que estuda os signos na sociedade e tem a função principal de analisar as trocas de mensagens. Dessa forma, os participantes interactantes fazem a escolha de signos que sejam mais adequadas para a compreensão de seu discurso. Ainda nessa perspectiva, tem-se a abordagem de Kress e Van Leeuwen (2006): Comunicação exige que os participantes façam suas mensagens maximamente compreensíveis em um contexto particular. Eles, portanto, escolhem formas de expressão que eles acreditam ser maximamente 421


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transparentes para os outros participantes. Por outro lado, a comunicação ocorre em estruturas sociais que são inevitavelmente marcadas por diferenças de poder, e isso afeta o modo como cada participante compreende a noção de ‘compreensão máxima’. Os participantes em posições de poder podem forçar outros participantes a um maior esforço de interpretação [...](KRESS E VAN LEEWEN, 2006, p. 13) (Tradução nossa).2

Pode-se perceber que a comunicação entre os participantes mudará de acordo com o contexto em que estão inseridos. Kress e van Leeuwen (2006) também citam “estruturas sociais” que estão relacionadas à representação social de cada indivíduo. Assim, as diferenças de poder entre emissor e receptor podem dificultar a comunicação. Portanto, é preciso que haja a seleção de signos adequados ao contexto e ao receptor da mensagem para que possam ser interpretados. Nessa perspectiva, a organização da linguagem publicitária irá de acordo com o público alvo. Dessa forma, quanto mais próximo do anúncio o indivíduo se sentir, maior a possibilidade de adquiri-lo. Por isso, é bastante relevante que os signos verbais e não verbais sejam plausíveis e do interesse do receptor. Assim, a Semiótica Social também levará em conta os aspectos culturais, sociais e históricos. A noção de discurso, então se amplia e se estende a outras possibilidades de construção. Além de textos verbais, os usos de signos simbólicos estruturam o enunciado, aumentam as possibilidades de leitura e facilitam o propósito comunicativo do gênero textual anúncio publicitário. Cortina e Marchezan (2011) lembram que [...] a semiótica reconhece a existência de duas classes de modalidades: a do ser e a do fazer. [...] A relação entre os sujeitos e os objetos pressupõe

2. Communication requires that participants make their messages maximally understandable in a particular context. They therefore choose forms of expression which they believe to be maximally transparent to other participants. On the other hand, communication takes place in social structures which are inevitably marked by Power differences, and this affects how each participant understands the notion of ‘maximal understanding’. Participants in positions of Power can force other participants into greater efforts of interpretation [...]. (Todas as traduções serão nossas). 422


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ainda as categorias do Destinador e do Destinatário. Assim, entram em jogo ainda quatro modalidades que se associam ao ser e ao fazer. São elas: o querer, o dever, o poder e o saber. Um destinador-manipulador, por exemplo, pode levar um destinatário-manipulado a querer ou dever fazer ou ser algo e esse destinatário cumpre o percurso de realização na medida em que pode ou sabe fazer ou ser esse algo (CORTINA; MARCHEZAN, 2011, p. 421).

É bastante relevante conhecer as modalidades que compõem a Semiótica: a do ser e a do fazer, pois se pode perceber que os recursos interativos usados por meio desta pretendem causar reações. Relacionando o exemplo do destinatáriomanipulador e destinatário-manipulado com o propósito comunicativo do anúncio publicitário, pode-se perceber isto. Muitas vezes, o indivíduo manipulado assume reações diversas da sua realidade por querer ser aquilo que o anúncio propõe. Um exemplo disso são os anúncios de definição de abdômen que transpassam um nível de vida saudável, uma boa aparência e muita sensualidade. Ou também pode ser encontrada esta manipulação em anúncios de celular, em que este produto tem múltiplas vantagens além de ligar e a ideia que passa é que o indivíduo que adquire este produto é moderno e conectado. Estes foram apenas alguns dos diversos anúncios que têm esta mesma função e, muitas vezes, passam despercebidos pelas pessoas. Dessa forma, o sujeito leva o produto por desejar ter determinado estilo de vida e não por necessidade. Com isso, pretende-se mostrar que a escolha de signos em gêneros discursivos, entre eles, os anúncios publicitários, é socialmente motivada para diversas formas de representação. Nas entrelinhas estão contidas ideologias e relações de poder e dominação de certas instituições sociais que utilizam diversos modos semióticos que, por sua vez, são textos multimodais, para persuadir o leitor.

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CONCEITO DE MULTIMODALIDADE Ao falar da Semiótica Social, foram abordados os modos semióticos não apenas como representação, mas também como interação. Estes modos semióticos constituem os textos multimodais. Segundo Kress e van Leeuwen (cf. 2006, p. 177), textos multimodais são aqueles que utilizam mais de um modo semiótico. Desse modo, a articulação e compreensão de diversos recursos semióticos dentro de um contexto social abrange o campo de informatividade e contribui para a construção de sentido destes textos. Assim, com o advento da tecnologia e os diversos meios de comunicação de massa, entre eles, os anúncios publicitários, tem-se uma organização textual diferente para a construção de sentidos. Percebe-se que, para o indivíduo alcançar a semiose de um anúncio, por exemplo, ele utilizará não apenas elementos linguísticos, mas também imagens e valores que são inerentes à sua cultura. Por isso, cada vez mais se torna necessário produzir e compreender outras fontes de linguagem para garantir maior interação entre o produtor e o receptor do texto. Daí, surgem diversos modos semióticos, tais como: cor, formato da letra, imagens, textos verbais e não verbais, entre outros que são fundamentais para a comunicação e bastante relevante na construção de sentidos e formação de opinião do leitor. De acordo com Dionísio (2011, p. 138): “Imagem e palavra mantêm uma relação cada vez mais próxima, cada vez mais integrada. [...] Cada vez mais se observa a combinação visual com a escrita; vivemos, sem dúvida, numa sociedade cada vez mais visual.” Dessa maneira, a união destes dois códigos, a imagem e a palavra, é fundamental para a interação social do indivíduo. O mesmo ocorre nos gêneros textuais, entre eles, o anúncio publicitário, que apresenta a relação entre a linguagem verbal e não verbal e produz diversos significados, a depender de quem lê, do seu conhecimento social, cultural, político e histórico. Vale ressaltar que esses dois códigos semióticos complementam o sentido um do outro. Devem estar relacionados de tal forma que o leitor possa ver (texto não verbal) e ler (o texto verbal) e compreender os significados implícitos que ambos possuem. 424


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Nessa perspectiva, Kress e van Leeuwen afirmam (2006): [...] Como as estruturas linguísticas, as estruturas visuais apontam para interpretações particulares de experiência e formas de interação social. Até certo ponto estas também podem ser expressas linguisticamente. Significados pertencem à cultura, ao invés de modos semióticos específicos. E a maneira como os significados são mapeados em diferentes modos semióticos, a maneira como algumas coisas podem, por exemplo, ser “ditas” visualmente ou verbalmente, outros apenas visualmente, mais uma vez os outros só verbalmente, também é cultural e historicamente específica. (KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p. 02)3

Os autores Kress e van Leeuwen (2006) chamam atenção para os conhecimentos culturais e históricos do indivíduo/receptor destes textos multimodais. Por isso, pode-se falar em múltiplas possibilidades de sentido, pois a forma de representação dos modos semióticos será entendida de acordo com a experiência de mundo e a cultura do leitor interpretante. Assim, um anúncio publicitário de cerveja com a figura de uma mulher seminua em países árabes terá uma representação bem diferente da cultura ocidental, pois são culturas e valores diferentes. Provavelmente, a mulher será vista como uma profissional do sexo ao invés de bonita e sensual. É relevante salientar que a multimodalidade não está ligada apenas a uma imagem. Existem textos da modalidade escrita que possuem elementos estruturais que determinam o gênero destes. Kress (1995) afirma que texto é: Um “tecer” junto, um objeto fabricado que é formado por fios “tecidos juntos” – fios constituídos de modos semióticos. Esses modos podem ser

3. […] Like linguistic structures, visual structures point to particular interpretations of experience and forms of social interaction. To some degree these can also be expressed linguistically. Meanings belong to culture, rather than to specific semiotic modes. And the way meanings are mapped across different semiotic modes, the way some things can, for instance, be ‘said’ either visually or verbally, others only visually, again others only verbally, is also culturally and historically specific. 425


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entendidos como formas sistemáticas e convencionais de comunicação. Um texto pode ser formado um ou vários modos semióticos (palavras e imagens por exemplo) e portanto, podemos chegar à noção de multimodalidade. (KRESS, 1995 apud PIMENTA; SANTOS, 2010, p. 2).

Assim, pode-se concluir que todos os gêneros textuais são multimodais, pois possuem estruturas definidas, com mais de um código semiótico e este não precisa ter necessariamente imagem para ser multimodal. Um texto escrito, por exemplo, contém um título centralizado, parágrafos, vírgulas, pontos finais, letras maiúsculas e minúsculas. Entretanto, não possui uma imagem. Apesar disso, ele é multimodal, pois os elementos estruturais que foram citados são modos semióticos paralinguísticos e possuem significados fundamentais para a compreensão de determinado gênero. Não pode ser descartada a importância do parágrafo, por exemplo, pois este elemento significa que o produtor do texto terminou a ideia anterior e vai começar outra, podendo fazer algumas retomadas. Portanto, é de extrema relevância atentar para estes elementos e para os diversos modos de representações. Em textos orais também se encontra diversos modos semióticos relevantes para a comunicação entre os participantes interactantes. Estes utilizam gestos, estão a certa distância, cada um possui expressão facial, se movimentam, escolhem a posição mais adequada para conversar e todos estes aspectos constroem sentidos fundamentais na conversação. Apenas pela expressão facial, pode-se compreender o estado em que o outro se encontra. Ele pode querer iniciar uma conversa ou simplesmente permanecer calado. Portanto, a escrita ou a oralidade é apenas uma modalidade da língua. No entanto, para que esta modalidade seja construída, alguns recursos semióticos são inseridos no texto que é produzido pelos indivíduos. Logo, estes textos são multimodais por utilizarem mais de um código semiótico em sua construção e isto é bastante relevante para compreender o propósito comunicativo de algum gênero textual específico.

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Elementos constituintes da multimodalidade Segundo Kress e van Leeuwen (2006) para que se possa desenvolver uma análise de textos multimodais, são necessários alguns requisitos de representação e comunicação. Nessa perspectiva, os autores voltaram o estudo para a Gramática do Design Visual, que consiste em abordar elementos articuladores de diversos modos semióticos. Assim, esta gramática estabelece três metafunções: ideacional, interpessoal e textual. A metafunção ideacional pode ser definida “[...] como a capacidade dos sistemas semióticos para representar objetos e suas relações em um mundo fora do sistema de representação ou nos sistemas semióticos de uma cultura” (KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p. 47)4. Essa metafunção é de grande relevância, pois os usuários da língua têm várias opções para representar o mundo a sua volta através de diversos modos semióticos. A metafunção interpessoal, por sua vez, é quando “[...] qualquer modo [semiótico] tem que ser capaz de representar uma relação social particular entre o produtor, o espectador e o objeto representado” (KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p. 42)5. Desse modo, esta metafunção não pode ser descartada da análise de textos multimodais, como os anúncios publicitários, pois permite ao leitor/ espectador maior ou menor proximidade com o produtor da mensagem, sendo este um dos primeiros itens de intimidade para garantir a venda do produto. E, por último, a metafunção textual consiste na capacidade de qualquer modo semiótico em formar textos que estejam relacionados com os contextos para os quais foram produzidos. Dentro desta há diversos arranjos de composi-

4. [...] as the ability of semiotic systems to represent objects and their relations in a world outside the representacional system or in the semiotic systems of a culture. 5. [...] any mode has to be able to represent a particular social relation between the producer, the viewer and the object represented. 427


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ção que permitem a realização de diferentes significados textuais, o que amplia a capacidade crítica do leitor para as representações visuais (cf. KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p. 43). Podem ser definidas, assim, as três metafunções citadas, respectivamente, como significados representacionais, interacionais e composicionais. Os significados representacionais, relacionados à metafunção ideacional, são divididos em dois padrões: o narrativo e o conceitual. Conforme Kress e van Leeuwen (cf. 2006, p. 59), no padrão narrativo, os participantes estão ligados por um vetor e servem para apresentar ações e eventos, processos de mudanças. Já no padrão conceitual, o participante é representado em termos de classe, estrutura e significado. Em seguida, representando a metafunção interpessoal, têm-se os significados interacionais. Estes são relevantes à medida que relacionam as pessoas, os lugares e as imagens, de modo geral, no contexto em que são representadas. Como um dos principais articuladores da interação Kress e van Leeuwen (cf. 2006, p. 114) designam Participantes Representados (PRs) e Participantes Interactantes (PIs), em que o primeiro são as pessoas, os lugares e as coisas ilustradas em imagens, enquanto o segundo representa as pessoas/espectadores que visualizam as imagens e participam do ato de comunicação. É relevante que o PR estabeleça relações de envolvimento com o PI para que possa gerar possíveis ações deste último, como por exemplo: comprar um produto, no caso de um anúncio publicitário, ou tomar cuidados para evitar doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), no caso de ser uma propaganda que persuadiu o leitor. No entanto, para que haja esse envolvimento são necessários alguns aspectos interacionais: O olhar, que pode ser caracterizado como sendo oferta (offer) ou demanda (demand). Pode-se dizer que o olhar do PR é de oferta quando este olha de forma indireta para o PI e o olhar de demanda, por sua vez, está voltado diretamente para o leitor, olhando-o de forma fixa, o que gera credibilidade no que ele está representando. Este aspecto é um dos primeiros contatos que o PR estabelece como PI, mas há diversos outros, como o gesto da mão e o sorriso, elementos que também mantêm afinidade entre os participantes; a distância social e o tamanho

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da moldura, que são realizados para garantir maior ou menor proximidade entre o PR e o PI. Para isso, os autores Kress e van Leeuwen (cf. 2006, p. 124) explicam que a distância social pode sugerir diferentes relações entre os participantes e o tamanho da moldura é definido em relação ao corpo da PR. Dessa forma, temse o plano fechado (close shot ou close-up) que apresenta a PR até a cabeça e os ombros, o plano médio (medium shot) retrata o sujeito, aproximadamente, até os joelhos e, por fim, o plano aberto (long shot) consiste em mostrar o PR completo, o corpo inteiro. Outro aspecto interacional é a perspectiva, que está relacionada ao ângulo de visão do PR, que pode ser frontal, estabelece relações de igualdade com o PI e a imagem é objetiva, e oblíqua que, por sua vez, estabelece relação de poder e a imagem é subjetiva. Isto demonstra um envolvimento particular com o leitor. Quanto aos significados composicionais, existem três sistemas relacionados: Os Valores Informacionais, a Saliência e a Moldura ou Estrutura (cf. KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p. 177). Os Valores Informacionais possuem as estruturas Dado/ Novo, Ideal/Real e Centro/Margem. Segundo Kress e van Leeuwen (cf. 2006, p. 181), o Dado é quando é apresentada ao espectador/PI alguma coisa já conhecida, familiar, enquanto o Novo é apresentado algo que não é conhecido e que exige atenção especial do leitor. O Ideal é a informação contida no plano superior e o Real está no plano inferior. E, de forma geral, o que está no Centro é dado como as promessas, a apresentação do objeto representado e o que está à Margem são os elementos que servem como suporte para a imagem central. (cf. KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p. 186). A Saliência se refere aos elementos que são feitos para atrair a atenção do leitor, tais como: o tamanho, as cores, os contrastes de tons. E a Moldura ou Estrutura, por sua vez, desconecta ou conecta os elementos da imagem (cf. KRESS E VAN LEEUWEN, 2006, p. 177). A partir dessas aplicações, será feita a análise dos anúncios publicitários que foram selecionados. Ressalta-se que estes elementos que constituem textos multimodais ajudam a entender as possibilidades de significações implícitas nestes.

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ANÁLISE DO CORPUS Depois de compreender os conceitos e as funções da Semiótica, Semiótica Social, Multimodalidade e seus elementos constituintes, este tópico constitui a parte de análise de dois anúncios publicitários: o primeiro sobre Cera corporal – Veet e o segundo sobre a lingerie Duloren. Será analisado como os elementos constituintes da multimodalidade, que são, por sua vez, recursos semióticos, contêm ideologias implícitas e formam determinado estilo de vida, principalmente para as mulheres, que representam um grande público consumidor. Além disso, estes recursos semióticos são elementos fundamentais para influenciar o comportamento do leitor e fazê-lo comprar o produto que está sendo representado.

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Anúncio 16

O primeiro anúncio publicitário analisado é sobre a cera corporal que pertence à marca Veet. Este anúncio contém diversos recursos semióticos que são responsáveis na construção de sentido dos leitores e influenciam na compra do produto.

6. Anúncio da Cera corporal Veet, publicado na Revista Boa Forma, em outubro de 2012. 431


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Como pode ser observado, o anúncio é composto por uma participante representada (PR) localizada no centro e ao seu redor há calças sendo jogadas que se refere aos benefícios que o produto traz. No plano inferior, está presente o produto e suas promessas, fazendo coerência entre a imagem e o texto. Quanto aos significados representacionais, nota-se que a imagem apresenta uma estrutura narrativa, pois há apenas uma participante que está fazendo a ação de mostrar as pernas depiladas, representando o produto Veet. Isto requer a atenção do consumidor para o seu corpo, já que a PR está no plano aberto, usando um vestido que faz contraste com as calças no ar e o texto no plano inferior: “Chega de deixar seus pelos decidirem o que você vai usar”. Os significados interacionais deste anúncio são fatores relevantes para a persuasão dos leitores. Percebe-se que a PR tem um olhar de demanda, olhando diretamente para o PI. Isso demonstra credibilidade no produto que está sendo representado por ela. Além disso, o sorriso, assim como o olhar, mantém uma relação de afinidade com o leitor. Outro fator observado são as palavras “seus” e “você”, o que faz o PI se sentir único, pois está se referindo diretamente ao destinatário da mensagem. Nota-se que a atribuição de significados é dada por meio de uma atmosfera ou “paisagem semiótica”, segundo Kress e van Leeuwen (cf. 2006, p. 16), que é composta de cores, letras, iluminação e imagens de segundo plano. Dessa forma, a PR transpassa a ideia de ser uma mulher confiante, moderna e livre para poder escolher o que quiser usar. Assim, este anúncio atinge o público feminino, mantendo uma relação de igualdade do PR com o PI e produzindo um efeito de poder e liberdade da mulher moderna. Isto influencia o público-alvo a comprar o produto com a ilusão de adquirir essa qualidade. No que se refere aos aspectos composicionais, tem-se, no plano superior, calças sendo descartadas e no centro a PR representando a promessa do produto exibindo “pernas lindas e lisinhas”, como diz o texto no plano inferior ao lado esquerdo. A questão do “dado” e do “novo” não está propriamente dita, entretanto o leitor consegue perceber facilmente através da imagem das calças sendo relacionadas com a PR usando o vestido. Além disso, a expressão do texto abaixo “Chega de deixar”

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refere-se a uma suposta ação da PR, que antes ficava limitada às calças e, agora, depois que passou a utilizar o produto Veet, pode exibir as pernas e se sentir mais segura e bonita. Ao lado direito, tem-se o produto Veet e outras versões e ao lado esquerdo nota-se outra promessa do produto: “Veet Cera Fria remove pelos ainda curtos”. Esta informação passa mais credibilidade para o produto, pois o público feminino “não precisa mais esperar o pelo crescer”. Ainda relacionado aos significados composicionais do anúncio, percebe-se que há harmonia entre as cores. O vestido da PR apresenta uma cor vibrante, que dá destaque ao seu corpo e há cores mais claras e iluminadas fazendo contraste com a PR, as imagens de segundo plano e o produto Veet. Este anúncio, de modo geral, pretende persuadir o leitor fazendo uso de todos esses modos semióticos, mostrando ao público feminino a necessidade de estar sempre bonita, moderna e segura. Anúncio 27

7. Anúncio da lingerie Duloren, publicado em dezembro de 2012, disponível em: http://www.duloren.com.br/#!/campanhas/ 433


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Este anúncio é composto por dois participantes representados (PRs) em que a mulher veste a lingerie que pertence à marca Duloren e ao seu redor há elementos semióticos que serão explicitados a seguir. No que se refere aos significados representacionais, nota-se que o anúncio tem duas estruturas: narrativa, pois apresenta uma participante representada (PR) que faz uso da lingerie Duloren e está numa posição que evidencia bem o seu corpo, com as pernas abertas e faz a ação de dá um “pé no traseiro” de um homem que está despido. E quanto à outra estrutura, a conceitual, têm-se elementos que demonstram alguns atributos dessa mulher, que está sendo representada como dominadora da situação: a pele, o corpo escultural, a própria cor vermelha e a sandália de salto alto trazem à tona a vida da mulher do século XXI, que se preocupa com a sua beleza e é superior à figura masculina, desfazendo o estereótipo de que apenas o homem tem a liberdade de seduzir e conquistar. Quanto aos significados interacionais, tem-se, primeiramente, uma PR que demonstra ser moderna, independente, sensual e interage com o PI à medida que encena uma suposta relação com um homem e depois o dispensa. Este elemento não verbal é complementado pelo texto ao lado esquerdo: “Já curti e agora vou compartilhar”. Os verbos curtir e compartilhar são utilizados em uma rede social, facebook, e que nesse contexto adquirem outro significado: o de usar (curtir) e descartar (compartilhar) o homem, como se fosse um objeto. Além disso, a expressão facial, a boca entreaberta, a posição em que a PR está sentada na poltrona e o corpo despido do homem remete ao PI uma atmosférica erótica. Todos estes recursos semióticos são de grande relevância para a interação com o público feminino, pois pretende mostrar o efeito do produto em relação ao homem. Isto também pode ser observado na frase: “Você não imagina do que uma Duloren é capaz”, estabelecendo uma relação de poder com o público alvo e induzindo a consumidora a valorizar suas fantasias. Os significados composicionais usam o valor de informação do “centro e margem” (cf. Kress e van Leeuwen, 2006, p. 186). Isso significa que o ‘centro’, a figura da mulher representando a marca Duloren, é o mais importante e, nesse

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caso, o mais saliente e o que está à ‘margem’, por sua vez, serve como suporte para a imagem central, são elementos subordinados, como a figura do homem ao lado direito. Outros aspectos de composição são notados pela Saliência, que atraem a atenção das leitoras: a cor da lingerie e da sandália, vermelha, que simboliza a paixão e a sedução; a iluminação do lugar em que os PRs se encontram, tornando-se um lugar neutro e calmo; o tamanho em que a PR é configurada, em plano aberto, trazendo maior proximidade com o público. Com isso, nota-se que por intermédio dos recursos semióticos mencionados, o anúncio tenta representar a mulher contemporânea através de apelos sexuais. Dessa forma, não só o homem é representado como objeto, por ser dominado pela mulher, mas ela também, pois expõe seu corpo escultural usando a lingerie Duloren.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Considerando as contribuições teóricas mencionadas neste trabalho, verifica-se que há uma pluralidade de representações multimodais que permeiam a sociedade. Com isso, é notável que a construção de sentidos de gêneros textuais, entre eles, os anúncios publicitários, está relacionada à articulação de modos semióticos, tendo como enfoque a figura da mulher em meio às suas práticas sociais. Diante das análises dos dois anúncios publicitários, é possível perceber o uso de modos semióticos que apresentam significados representacionais, interacionais e composicionais para vender o produto e persuadir o leitor. Observa-se que o gênero discursivo anúncio publicitário pretende transpassar a ideia para o público feminino de que aquele produto vai trazer determinado estilo de vida que torna a mulher mais poderosa, sensual, segura, moderna e diversas outras qualidades ilusórias. Para isso, no primeiro anúncio foi utilizado o recurso de persuasão, para trazer mais credibilidade no produto e o segundo anúncio, por sua vez, utilizou explicitamente a sedução para causar prazer na leitora. Nota-se que a paisagem semiótica dos anúncios é coerentemente associada aos códigos verbais e não

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verbais, havendo organização nos aspectos significativos. Há também, de forma intencional, a exploração do uso de cores, imagens, contrastes de tons, tamanho de moldura, perspectiva que enriquecem a informação visual, estabelece conexão com o texto que apresenta o produto e proporciona maior interação entre o Participante Representado (PR) e o Participante Interactante (PI). Dessa forma, este trabalho analisou os significados que os elementos multimodais produzem nos anúncios publicitários e foi observado que, cada vez mais, se faz necessário ter uma atenção maior para os diversos modos de representação destes textos. Além disso, os textos multimodais são produzidos dentro de um contexto social, considerando o indivíduo, juntamente com suas cargas ideológicas, cultura e valores, a quem pretender atingir/persuadir. Portanto, destaca-se a relevância de analisar textos multimodais em um todo integrado, ao invés de considerar apenas o signo linguístico, pois este é apenas mais um entre tantos outros. Desse modo, este trabalho está contribuindo para ampliar o campo de pesquisas nessa área, que ainda é tida de forma tímida e pouco comentada, ressaltando que a leitura crítica destes recursos semióticos, que constroem diversos sentidos em anúncios publicitários, e em textos multimodais em geral, auxilia na compreensão de significados inferenciais.

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PIMENTA, S. M. A semiótica social e a semiótica do discurso de Kress. In: MAGALHÃES, C. M. (org.). Reflexões sobre a análise crítica do discurso. Série Estudos Linguísticos, v. 2 – Belo Horizonte: FALE: UFMG, 2001. PIMENTA, Sônia Maria Oliveira; SANTOS, Zaíra Bomfante dos. A paisagem semiótica de textos midiáticos. Recorte, Três Corações, ano 7, n. 2, 2010, p. 1-12. Disponível na internet: <http://revistas.unincor.br/index.php/recorte/article/view/143/pdf>. Acesso em: 15 de maio de 2013. REVISTA BOA FORMA. São Paulo: Editora Abril, v. 310, n. 10, outubro, 2012, 140 p. Mensal. ISSN: 0104-1533. SANTAELLA, L. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2000. SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. – 34 ed. – São Paulo: Cultrix, 2012. SITE DA DULOREN. Disponível em: <http://www.duloren.com.br/#!/campanhas/>. Acesso em: 12 de novembro de 2013.

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Resumo Este trabalho objetiva fazer uma reflexão acerca do ensino da língua materna na contemporaneidade, observando se as aulas de Língua Portuguesa estão em consonância com os princípios dos Parâmetros Curriculares Nacionais (daqui pra frente PCN) no que diz respeito ao trabalho com a leitura, escrita, gramática e oralidade; uma vez que os PCN argumentam que o texto é a unidade básica do ensino, considerado uma prática sociocomunicativa. No segundo momento, discutimos a respeito da metodologia dos professores para o ensino/aprendizagem da língua materna, a partir dos paradigmas da Linguística Textual, juntamente com os PCN e o Guia de Livros Didáticos (PNLD, 2011). Este trabalho fundamenta-se nas ideias de Antunes (2003), Bentes (2011), Marcuschi (2001), dentre outros autores. Sendo assim, esta pesquisa visa contribuir para que os atuais e futuros professores de Língua Portuguesa reflitam sobre a realidade das nossas salas de aula, como também busquem alternativas para um ensino mais centrado nos aspectos funcionais e interacionais da língua. Palavras-chave: Parâmetros Curriculares Nacionais; Linguística Textual; Guia de Livros Didáticos; ensino de língua materna.


OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Mirella Barbosa1 Poliana Freire2 Regina Donato3

INTRODUÇÃO Atualmente, diversos estudiosos da língua têm se dedicado a refletir acerca dos objetivos e como tem ocorrido o ensino de língua materna no nosso país, basicamente, os pesquisadores afirmam que a Linguística Textual e os Parâmetros Curriculares Nacionais estabelecem uma íntima ligação no tocante do ensino/ aprendizagem de Língua Portuguesa nas escolas. Por isso, este trabalho propõe, primeiramente, tratar dos princípios básicos dos PCN (1998), pois a proposta primordial desse documento oficial de educação é que o texto – oral e escrito – seja a unidade básica do ensino de língua materna. Diante dessa nova perspectiva, muitos professores de Língua Portuguesa habituados com as velhas práticas pedagógicas, dando primazia apenas a uma gramática descontextualizada e amorfa da língua, sentem-se inseguros diante de tantas propostas inovadoras de ensino. Vê-se, então que os docentes ficam numa situação desconfortável com respeito a “o que ensinar” e “como ensinar”.

1. Professora de Língua Portuguesa (PROLINFO – UPE) e Corretora de Redação no Colégio Atual. Graduanda em Letras pela Faculdade Frassinetti do Recife. Pesquisadora do NUPIC-FAFIRE, sob a orientação da professora Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira. Correio eletrônico: mirellabarbosa20@hotmail.com 2. Professora na Academia Markenze. Graduanda em Letras pela Faculdade Frassinetti do Recife. Pesquisadora do NUPICFAFIRE, sob orientação da professora Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira. Correio eletrônico: poly92freire@hotmail.com 3. Revisora na Consultexto Consultoria Editorial. Especialista em Direito do trabalho. Graduanda em Letras pela Faculdade Frassinetti do Recife. Pesquisadora do NUPIC-FAFIRE, sob orientação da professora Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira. Correio eletrônico: regidonato@hotmail.com 439


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Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é fazer uma análise e reflexão a respeito da metodologia dos professores nas salas de aulas, procurando observar o que os PCN dizem referente aos quatro eixos de ensino: leitura, produção de texto, conhecimento linguístico e oralidade. É importante salientar que o ensino de língua materna precisa ser numa perspectiva de uso-reflexão-uso, ou seja, o ensino deve ser norteado a partir dos usos da língua oral e escrita e o da reflexão sobre a língua e linguagem. Portanto, pode-se concluir que o professor precisa assumir um novo papel, deixando de lado as atividades puramente mecânicas e repetitivas, fortalecendo, junto aos alunos, o espírito crítico e o trabalho de produção integrada de conhecimento.

Os objetivos dos PCN para o ensino de língua materna O objetivo deste estudo é apresentar as ideias da Linguística Textual, como também dos PCN, em relação ao ensino de Língua Portuguesa, principalmente quando se mencionam os trabalhos com relação aos textos, porque, para os PCN, no estudo de Língua Portuguesa, deve-se priorizar o texto materializado em gêneros como objeto primordial nas aulas de Português.

O texto como objeto central no ensino de Língua Portuguesa O objeto de estudo da Linguística Textual é o próprio texto, ele é considerado uma prática sociocomunicativa para onde convergem as ações linguísticas, sociais e cognitivas dos indivíduos. Por isso, o texto é muito mais que uma simples soma de frases, pois a diferença entre frase e texto, não se estabelece pela ordem quantitativa, mas, sim, pela ordem qualitativa. Conclui-se, então, que para a Linguística Textual uma língua não funciona a partir de unidades isoladas, mas de unidades de sentidos que consideramos textos, sejam eles na linguagem oral ou escrita. Segundo Antunes (2005, p.40), “ninguém interage verbalmente a não ser por meio de texto.”

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Isso acontece devido à interação entre o produtor e o leitor/ouvinte, manuseando especificidades linguísticas. Para a Linguística Textual, atualmente, ao considerar-se o que realmente seja o texto, deve-se levar em conta a preservação e a organização linear em que são abordados os aspectos da coesão e da organização não linear, que diz respeito aos níveis de sentido e intenções, ou seja, os aspectos da coerência implantados dentro da semântica e da pragmática. Diante dessa perspectiva, em relação ao texto, observamos que ele é um objeto de interação e de sujeitos sociais e por isso deve nortear as aulas de Língua Portuguesa. Portanto, para que o ensino de língua materna funcione através da perspectiva de que o aluno venha a analisar, interpretar e refletir sobre as atividades discursivas da língua, os PCN (1998) sugerem que o objeto central nas aulas de Língua Portuguesa seja o texto, pois ele é uma unidade significativa que fará o educando compreender e aperfeiçoar os conhecimentos na leitura e na escrita. Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua competência discursiva (PCN, 1998. p.27).

Sendo assim, os PCN traçam diretrizes gerais para o trabalho com o texto nas atividades de leitura, escrita, gramática e oralidade, e essas diretrizes precisam ser colocadas em pratica, pois só assim o professor poderá aperfeiçoar suas aulas, tornando-as mais atrativas e reflexivas sobre o uso da língua.

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O ensino de língua materna na contemporaneidade O objetivo deste estudo é apresentar os quatro eixos de ensino abordados pelos PCN (leitura, produção de texto, conhecimentos linguísticos e oralidade), analisando como eles estão inseridos nas salas de aulas e observando o que os PCN propõem para o ensino de língua materna. Esta pesquisa, além de se basear nos documentos oficiais de educação, também se fundamenta nos estudos de alguns teóricos, tais como: Antunes, Bentes, Fávero, Marcuschi e Neves. Os PCN abrangem uma série de documentos que compõem a grade curricular de uma instituição educacional, que, em conjunto, servirão como ponto de partida para o trabalho em sala de aula, incluindo suas atividades com os alunos. Sendo assim, os PCN servem como orientação para que suas práticas pedagógicas sejam de melhor qualidade.

Os procedimentos metodológicos no ensino de Língua Portuguesa e os quatro eixos de ensino articulados nas salas de aula Ao examinar de maneira um pouco mais cuidadosa como se dá, desde o Ensino Fundamental, o ensino da Língua Portuguesa, irá se constatar que ainda se mantém a perspectiva reducionista do estudo da palavra e da frase descontextualizadas. Desta forma, ficam reduzidos, naturalmente, os objetivos que uma compreensão mais relevante da linguagem poderia suscitar — linguagem que só funciona para que as pessoas possam interagir socialmente. Segundo Marcuschi (2001), a fala e a escrita apresentam os mesmos traços, dentre os quais pode ser destacada a função interacional. A comunicação interpessoal é entendida como uma relação dialógica em que ambos os interlocutores adaptam continuamente o diálogo às necessidades do outro. Assim, a interação caracteriza-se por situar-se em

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um contexto em cujo âmbito se estabelece um campo de ação comum, no qual os sujeitos envolvidos (locutor/enunciador – interlocutor/leitor) podem entrar em contato. Torna-se, portanto, fundamental a capacidade de ação de cada indivíduo, que deve estar apto a influir no desenvolvimento sucessivo da interação, determinando-o com sua atuação; cada ação de um sujeito deve constituir premissa das ações realizadas posteriormente pelos demais (FÁVERO, 2011, p. 14).

As instituições governamentais têm empreendido uma série de ações em favor de uma escola mais formadora e eficiente. Basta referir o trabalho que resultou na elaboração e divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), com todos os seus posteriores desdobramentos Em relação aos PCN, não se pode deixar de reconhecer que as concepções teóricas subjacentes ao documento já privilegiam a dimensão interacional e discursiva da língua e definem o domínio dessa língua como uma das condições para a plena participação do indivíduo em seu meio social. Além disso, estabelecem que os conteúdos de língua portuguesa devem se articular em tordo de dois grandes eixos: o de uso da língua oral e escrita e o da reflexão acerca desses usos. Nenhuma atenção é concedida aos conteúdos gramaticais, na forma e na sequência tradicional das classes de palavras, tal como aparecia nos programas de ensino de antes (ANTUNES, 2003, p. 21-22).

Parece, portanto, não faltar ao professor o respaldo das instâncias superiores, que assumiram o discurso de novas concepções teóricas, de onde podem emergir novos programas e novas práticas. À escola cabe desvendar os modos de funcionamento da língua ― é falando, escrevendo, lendo e ouvindo que vamos incorporando e sedimentando os padrões da língua ― para que as pessoas possam ver suas regularidades e estratégias de uso. A pretensão da escola só será atingida à medida que essa explicitação tiver como parâmetro as ocorrências textuais e o caráter interativo dessas ocorrências. 443


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Já que não interagimos pelo uso de frase soltas, somente o sentido conferido pela funcionalidade das atuações discursivas pode emprestar relevância e aplicabilidade à atividade metalinguística de explicitação de regras e de padrões gramaticais. As frases têm sentido enquanto fragmentos dessas atuações e, aí, não estão soltas; interdependem-se (ANTUNES, 2009, p. 175).

Antunes (2009, p.175) exemplifica de maneira bem prática como deveriam ser estudados os pronomes pessoais: [...] apresentar os pronomes pessoais, na sua múltipla classificação, é insuficiente e adianta muito pouco. Adiantaria ver, em diferentes gêneros orais e escritos, formais e informais, de que maneira os pronomes aparecem na sequência do texto; onde costumam aparecer; onde e por que convém que não apareçam; que efeitos seu emprego traz para a continuidade e coerência; que diferenças podem apresentar nesse ou naquele gênero de texto; quando, em lugar de pronome, poderíamos recorrer a uma elipse; que consequências traria o mau emprego do pronome, o que seria ‘um mau emprego do pronome’ etc. O estudo centrado em pares de frases ― reduzido à substituição de substantivos por pronomes ― não é capaz de dar respostas a essas e a outras perguntas. Tampouco, é capaz o estudo apressadindo, em duas ou três aulas ― apenas para cumprir o programa ― sem o suporte de textos, de muitos textos, de diferentes gêneros, para serem minuciosamente analisados.

É fundamental ressaltar o que está em questão não é retirar a gramática da programação de ensino. O que está em questão, na proposta de um ensino mais relevante, é a perspectiva a partir da qual se veja o funcionamento interativo da língua. Vale a pena questionar o que pretende assegurar um tipo de ensino que prioriza as nomenclaturas e classificações metalinguísticas das palavras e frases. Seria, por acaso, a exclusão de um grande número de pessoas do processo de construção da cidadania, no qual intervém também a adequada e relevante atuação verbal?

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Parece útil apresentar algumas constatações menos positivas acerca de como acontece a atividade pedagógica de ensino do Português, tendo como enfoque os quatro campos: oralidade, escrita, leitura e gramática. No que se refere às atividades em torno da oralidade, podemos constatar que há uma equivocada visão da fala, como se ela fosse um lugar privilegiado para a violação das regras gramaticais. De acordo com essa visão, tudo que é “erro” na língua acontece na fala. Não se distinguem, portanto, as situações sociais mais formais de interação que vão, inevitavelmente, condicionar outros padrões de oralidade que não o coloquial. As atividades em sala acabam se concentrando em torno dos gêneros da oralidade informal: a conversa com o colega vizinho, a troca de ideias, etc. O trabalho se restringe à reprodução de gêneros informais, sem uma análise profunda de como uma conversação acontece. Para esclarecer melhor sobre a importância da oralidade na sala de aula, de acordo com Neves (2004), a escola é um lugar privilegiado da língua materna; a falada e a escrita, resultado na convivência do uso da língua, seja falar, ler e escrever. Diante disso os PCN afirmam que, [...] o desenvolvimento da capacidade de expressão oral do aluno depende consideravelmente de a escola constituir-se num ambiente que respeite e acolha a vez e a voz, a diferença e a diversidade. Mas, sobretudo, depende de a escola ensinar-lhe os usos da língua adequados a diferentes situações comunicativas (PCN, 1998, p.38).

Com isso, além da leitura, da produção textual e do ensino da gramática, os alunos saberão utilizar a língua como ferramenta para se comunicar em situações diferentes de acordo com o momento vivenciado. Para que a oralidade seja trabalhada de modo correto em sala e seja aproveitado o máximo de seu valor os PCN apresentam diversos projetos, como:

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[...] atividades em grupo que envolvam o planejamento e realização de pesquisas e requeiram a definição de temas, a tomada de decisões sobre encaminhamentos, a divisão de tarefas, a apresentação de resultados; atividades de resolução de problemas que exijam estimativa de resultados possíveis, verbalização, comparação e confronto de procedimentos empregados; atividades de produção oral de planejamento de um texto, de elaboração propriamente e de análise de sua qualidade; atividades dos mais variados tipos, mas que tenham sempre sentido de comunicação de fato: exposição oral, sobre temas estudados apenas por quem expõe; descrição do funcionamento de aparelhos e equipamentos em situações onde isso se faça necessário; narração de acontecimentos e fatos conhecidos apenas por quem narra, etc. Esse tipo de tarefa requer preparação prévia, considerando o nível de conhecimento do interlocutor e, se feita em grupo, a coordenação da fala própria com a dos colegas — dois procedimentos complexos que raramente se aprendem sem ajuda (PCN,1998, p.39).

Nesse contexto, a escola deve perceber que o trabalho com a oralidade é uma necessidade pedagógica, pois os usos da língua representam uma necessidade social devido à construção de conhecimento e interação entre os indivíduos Em relação à escrita, essa prática ocorre de maneira destituída de qualquer valor interacional, sem autoria e sem recepção, apenas para exercitar, de forma mecânica e periférica, não estabelecendo a relação pretendida entre a linguagem e o mundo. A prática de uma escrita artificial e inexpressiva, realizada em “exercícios” de criar listas de palavras soltas ou, ainda, de formar frases. Tais palavras e frases isoladas, desvinculadas de qualquer contexto comunicativo, são vazias do sentido e das interações com que as pessoas dizem as coisas que têm a dizer. Além do mais, esses exercícios de formar frases soltas afastam os alunos daquilo que eles fazem, naturalmente, quando interagem com os outros, que é “construir peças inteiras”, ou seja, textos com unidade, com começo, meio e fim, para expressar sentidos e limitações. Parece incrível, mas é na escola que as pessoas “exercitam” a linguagem ao contrário, ou

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seja, a linguagem que não diz nada. Nessa linguagem vazia, os princípios básicos da textualidade são violados, porque o que se diz é reduzido a uma sequência de frases desligadas umas das outras, sem qualquer perspectiva de ordem ou de progressão e sem responder a qualquer tipo particular de contexto social (ANTUNES, 2003, p. 26).

O que se vê nas escolas é a prática de uma escrita improvisada, sem planejamento e sem revisão, na qual o que conta é, prioritariamente, realizá-la não importando “como de diga” e “como se faz”. Enquanto isso, o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD, 2011) aponta algumas competências necessárias para o professor explorar coerentemente a escrita na sala de aula. Considerar a escrita como uma prática socialmente situada, propondo ao aluno, portanto, condições plausíveis de produção do texto; abordar a escrita como processo, de forma a ensinar explicitamente os procedimentos envolvidos no planejamento, na produção e na revisão e reescrita dos textos; explorar a produção de gêneros ao mesmo tempo diversos e pertinentes para a consecução dos objetivos estabelecidos pelo nível de ensino visado; desenvolver as estratégias de produção relacionadas tanto ao gênero proposto quanto ao grau de proficiência que se pretende levar o aluno a atingir (PNLD, 2011, p. 22).

Sendo assim, a prática da produção de textos busca formar escritores competentes e eficientes, que sejam capazes de produzir textos bem elaborados. E, para isso, é necessário que haja discussões e leituras sobre diversos gêneros de textos para que o aluno possa entender e formular as suas próprias opiniões. É importante destacar que cabe ao professor auxiliar o aluno no processo de revisão, releitura e refacção do texto, por que a escrita é uma persistência e um trabalho contínuo, e, muitas vezes, a primeira versão do texto sempre pode ser melhorada para que se obtenha mais clareza e precisão nas palavras. Como afirma o documento dos PCN, “a refacção faz parte do processo de escrita: durante a ela-

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boração de um texto, se releem trechos para prosseguir a redação, se reformulam passagens” (PCN, 1998, p. 77). O trabalho com a leitura, assim como o da escrita, acaba tornando-se desinteressante, posto que é realizado de maneira mecânica, desvinculado dos diferentes usos sociais. Essa atividade acaba convertendo-se em um momento de treino, de avaliação, a famosa “leitura em voz alta”, realizada, quase sempre, com interesses avaliativos. Uma atividade de leitura cuja interpretação se limita a recuperar os elementos literais e explícitos presentes na superfície do texto. Quase sempre esses elementos privilegiam aspectos apenas pontuais do texto (alguma informação localizada num ponto qualquer), deixando de lado os elementos de fato relevantes para sua compreensão global (como seriam todos aqueles relativos à ideia central, ao argumento principal defendido, à finalidade global do texto, ao reconhecimento do conflito que provocou o enredo da narrativa, entre outros) (ANTUNES, 2003, p. 28).

O que se vê, muitas vezes, é uma escola sem tempo para leitura, incapaz de suscitar no aluno a compreensão das múltiplas funções sociais da leitura. Essas práticas denunciam inúmeras falhas nas aulas de Língua Portuguesa e revelam a visão equivocada de muitos professores em relação ao ensino de língua/linguagem/gramática. Entretanto, formar leitores eficientes é um dos objetivos buscados pelos PCN. A leitura é o processo no qual o leitor realiza um trabalho ativo de compreensão e interpretação do texto, a partir de seus objetivos, de seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a linguagem, etc. Não se trata de extrair informação, decodificando letra por letra, palavra por palavra. Trata-se de uma atividade que implica estratégias de seleção, antecipação, inferência e verificação, sem as quais não é possível proficiência. É o uso desses procedimentos que possibi-

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lita controlar o que vai sendo lido, permitindo tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, avançar na busca de esclarecimentos, validar no texto suposições feitas (PCN, 1998, p. 69-70).

Trata-se de tornar a leitura uma atividade permanente, interativa, motivadora, diversificada e, principalmente, crítica. [...] a leitura se torna plena quando o leitor chega à interpretação dos aspectos ideológicos do texto, das concepções que, às vezes, sutilmente, estão embutidas nas entrelinhas. O ideal é que o aluno consiga perceber que nenhum texto é neutro, que por trás das palavras mais simples, das afirmações mais triviais, existe uma visão do mundo de ver as coisas, uma crença (ANTUNES, 2003, p. 81-82).

Além disso, as atividades de leitura devem levar em consideração o contexto extralinguístico, ou seja, a compreensão do texto se encontra interligada ao contexto em que o leitor está inserido, assim como o conhecimento de mundo que ele possui. Logo, se faz necessário que o professor saiba trabalhar com os mais diversos gêneros, os quais facilitam o ensino/aprendizagem dos alunos, contribuindo, desta forma, para a formação de leitores proficientes; por isso, a atividade de leitura é um exercício de suma relevância e é obrigação da escola promovê-la. “O professor deve planejar atividades regulares de leitura, assegurando que tenham a mesma importância dada às demais” (PCN, 1998, p.71). A eficiência da leitura no contexto escolar favorece o acesso a novas informações, a análises e reflexões, que promovem uma interação entre aluno/professor. Daí a leitura contemplar objetivos interativos e propósitos diversificados, dentre eles o de ajudar no sucesso da escrita. Por fim, em relação ao ensino da gramática, o que se depreende é que ela aparece, quase sempre, descontextualizada, amorfa, desvinculada dos usos reais da língua escrita e falada. A gramática que se ensina na escola geralmente dá primazia a questões sem importância para a competência comunicativa dos falantes. É uma gramática frag449


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mentada, de frases e palavras isoladas, sem contexto e sem sujeitos interlocutores, com frases prontas para serem decoradas e servirem de lição, para virarem exercício. O ensino da gramática acaba, assim, voltando-se basicamente para a nomenclatura e a classificação das unidades, das classes e subclasses dessas unidades, abandonando, por conseguinte, as suas regras e os seus usos. É como se o processo de mudança das línguas fosse apenas um fato do passado, que já aconteceu e não acontece mais. A esse respeito, Antunes (2003, p. 32) afirma: Pelos limites estreitos dessa gramática, o que se pode desenvolver nos alunos é apenas a capacidade de “reconhecer” as unidades e de nomeá-las corretamente. Vale a pena lembrar que de tudo o que diz respeito à língua, a nomenclatura é a parte menos móvel, menos flexível, mais estanque e mais distante das intervenções dos falantes. Talvez, por isso mesmo, seja a parte “mais fácil” de virar objeto das aulas de língua. Vale a pena lembrar também que a gramática de uma língua é muito mais, muito mais mesmo, do que o conjunto de sua nomenclatura, por mais bem elaborada e consistente que seja.

Diante disso, os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998) sugerem que o trabalho a respeito dos conhecimentos linguísticos deve ser para melhorar a capacidade de compreensão e expressão dos alunos, tanto nas situações de comunicação oral quanto nas de escrita. Sendo assim, o ensino da gramática nas salas de aula deve ser relevante, contextualizado, funcional e que desperte algum tipo de interesse nos alunos; o estudo do texto materializado em gêneros deve fazer parte desse contexto. Os conhecimentos linguísticos precisam levar o aluno a entender a estrutura da língua, pois estudar gramática é estudar a gramática da sua língua. Por isso, por que as escolas privilegiam tanto o ensino normativo? Ao mesmo tempo, os PCN alertam para a importância de “usar os conhecimentos adquiridos por meio da prática da análise linguística para expandir sua capacidade de monitoração das possibilidades de uso da linguagem, ampliando a capacidade de análise crítica” (PCN, 1998, p.33). Vê-se, então que uma das propostas dos PCN é 450


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trabalhar a análise linguística, isto é, preconizam o ensino de Língua Portuguesa centrado no uso e na reflexão da língua e linguagem, e não no ensino nas bases normativas e tradicionais. [...] não se deve sobrecarregar os alunos com um palavreado sem função, justificado exclusivamente pela tradição de ensiná-lo. O critério do que deve ser ou não ensinado é muito mais simples: apenas os termos que tenham utilidade para abordar os conteúdos e facilitar a comunicação nas atividades de reflexão sobre a língua excluindo-se tudo o que for desnecessário e costuma apenas confundir os alunos (PCN, 1998, p.60).

O ensino da análise linguística capacita o aluno a compreender os usos dos recursos linguísticos e a utilizá-los nos diversos gêneros textuais, pois ela é uma ferramenta que facilita o processamento textual, como também possibilita uma nova abordagem para o ensino de gramática, já que se tem o texto como objeto central do estudo, em que o professor poderá levar o aluno a compreender os aspectos sistemáticos da linguagem oral e escrita. As propostas de ensino/aprendizagem sobre os conhecimentos linguísticos no PNLD estão em consonância com as da Linguística Textual, como também dos PCN, no que diz respeito ao estudo dos conhecimentos linguísticos. Abordar os diferentes tipos de conhecimentos linguísticos em situações de uso, articulando-os com a leitura, a produção de textos e o exercício da linguagem oral; considerar e respeitar as variedades regionais e sociais da língua, promovendo o estudo das normas urbanas de prestígio nesse contexto sociolinguístico; estimular a reflexão e propiciar a construção dos conceitos abordados (PNLD, 2011, p.23).

Em relação aos objetivos do ensino da língua materna, Bentes (2011, p. 47) defende que:

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Um dos mais importantes objetivos do ensino da língua materna é fazer com que os alunos sejam produtores de textos, ou seja, de artefatos textuais que apresentam um sentido global. Um outro objetivo é desenvolver uma atitude reflexiva sobre as práticas de linguagem. Na tradição dos estudos linguísticos sobre as relações entre processos e práticas educativas e produção de linguagem, afirma-se fortemente que as produções textuais precisam ser significativas, ou seja, precisam fazer sentido para quem produz como para quem escuta/lê aquela produção textual. Afirma-se também que o engajamento em uma atitude mais sistematicamente reflexiva e crítica sobre a própria linguagem e a linguagem do outro é fortemente influenciado pela imersão dos sujeitos em práticas de linguagem que sejam significativas para eles.

A reorientação do quadro até aqui apresentado requer, antes de tudo, determinação, vontade e empenho de querer mudar. Já existem iniciativas concretas no âmbito escolar no sentido de tentar quebrar esse paradigma. Mas essas iniciativas são exceções e não têm conseguido se transformar em práticas consistentes e generalizadas, mais de acordo com os esforços que vêm sendo empreendidos pelas diversas forças sociais que configuram as políticas públicas de educação e que podem ser exemplificadas pela implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais. É preciso uma ação ampla, fundamentada, planejada, sistemática e participada das políticas públicas (federal, estadual e municipal), dos professores como classe e de cada professor em particular para que se possa chegar a uma escola que cumpra, de fato, seu papel social de capacitação das pessoas para o exercício cada vez mais pleno da cidadania. Já não há mais espaço para o professor meramente repetidor, que fica à espera que lhe digam “o que” e “como fazer” o seu trabalho. O novo perfil do professor é aquele do pesquisador, que, com seus alunos produz conhecimento. É, portanto, um ato de cidadania aceitar o desafio de rever e reorientar a atual prática de ensino da língua.

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Por um ensino de língua materna funcional A ênfase dada, hoje, ao trabalho com os textos nas escolas e a busca por ampliar a competência comunicativa dos nossos alunos trazem algumas implicações para o ensino de língua materna, porque através de uma perspectiva de ensino funcional as aulas irão girar em torno das funções sociais da língua, privilegiando, assim, o uso. Desse modo, é necessário não esquecer que na escola somos professores de Língua Portuguesa. De língua, portanto. Não de gramática somente. Sendo assim, os quatro eixos de ensino precisam estar articulados nas salas de aula. Por isso, é necessário que a escola assuma o papel de ensinar as práticas da linguagem mais comuns na sociedade. Diante disso, o funcionalismo se preocupa em estudar a gramática em diferentes contextos em que elas são usadas. Sabe-se que as regras gramaticais não conseguem dominar o uso da língua, pois ela só se preocupa com a linguagem escrita. Assim, o funcionalismo tem a linguagem como instrumento da interação social, mantendo uma relação entre a linguagem e a interação. No que se refere a essa relação, Neves (2001), afirma que: Por gramática funcional entende-se, em geral, uma teoria da organização gramatical das línguas naturais que procura integrar-se em uma teoria global da interação social. Trata-se de uma teoria que assenta que as relações entre as unidades e as funções das unidades têm prioridade sobre seus limites e sua posição, e que entende a gramática como acessível a pressões do uso (NEVES, 2001, p.15).

Com isso, pode-se perceber que o funcionalismo analisa a estrutura da gramática, levando em consideração a capacidade de cada individuo. A gramaticalização é bastante relevante para o ensino de língua materna, pois, o funcionamento da linguagem visa desempenhar a competência comunicativa oral. No ensino, a gramática precisa estar relacionada ao uso da língua, incentivando os alunos a desenvolver suas capacidades linguísticas. 453


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Sendo assim, para uma gramática eficiente é preciso que o uso da língua esteja relacionado ao estudo sistematizado da gramática; de modo que incentive os alunos para as suas habilidades linguísticas, tendo de modo adequado um estudo desde o léxico até o texto.

Considerações finais No presente trabalho procuramos fazer algumas considerações sobre os PCN e de que forma esse documento influencia o ensino da língua materna. Ao se ensinar a Língua Portuguesa, o que se deve buscar é a formação de pessoas capazes de produzir textos coerentes e com sentido ― formação de verdadeiros cidadãos ― e com potencial para refletir sobre a língua, suas variações e seus usos. O que os PCN preconizam é exatamente a importância do trabalho com textos em sala de aula. Esse documento sugere que o texto seja o objeto primordial das aulas de Língua Portuguesa e que os professores realizem o seu trabalho com a maior variedade de gêneros possível. Neste trabalho também discutimos sobre como os quatro eixos de ensino (leitura, oralidade, conhecimentos linguísticos e produção textual) encontramse inseridos na sala de aula. Dessa forma, pudemos concluir que o incentivo à produção e prática textual vai além de aspectos didáticos, influenciando, assim, em questões de cunho social, como a formação de cidadãos capazes de interagir e refletir sobre o seu idioma.

Referências ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. ________, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. ________, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BENTES, Anna C. Oralidade, política e direitos humanos. In: ELIAS, Vanda M (org). Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo: Contexto, 2011. 454


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BRASIL. Guia de Livros Didáticos: PNLD 2011: Língua Portuguesa. – Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. _______. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: Língua Portuguesa – Secretária de Educação Fundamental. Brasília: Ministério da Educação, 1998. FÁVERO, Leonor L. Reflexões sobre a oralidade e escrita no ensino de língua portuguesa. In: ELIAS, Vanda M (org). Ensino de Língua Portuguesa: oralidade, escrita e leitura. São Paulo: Contexto, 2011. NEVES, Maria Helena de Moura. Que Gramática Estudar na Escola?: norma e uso na língua portuguesa. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004. ______, Maria Helena Moura. A gramática funcional. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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Resumo O trabalho se propõe a explorar o conceito e as características da literatura menor. No mercado editorial atual, é comum se atribuir importância a estratégias de marketing pessoal para alavancar as vendas de obras. Autores participam de eventos, protagonizam intervenções performáticas, administram perfis de internet, no esforço de promoverem a autoimagem. Entretanto, é possível encontrar escritores cujas trajetórias seguem na contramão desse processo, desenvolvendo o que se pode denominar literatura menor. Para fundamentar o estudo, serão abordados autores como Lipovetsky e Blanchot. A fim de se trabalhar a noção de literatura menor, serão adotados, como referências, Deleuze e Guattari. Já o corpus literário que será analisado, para possibilitar o esboço de um esclarecimento, consiste no romance Eu vos abraço, milhões (2010), representativo do deserto no qual ancorou sua obra o escritor gaúcho Moacyr Scliar. Palavras-chave: Literatura menor; autoimagem; mercado editorial.


PROFISSÃO DE FÉ: SER MENOR Mônica dos Santos Melo1*

INTRODUÇÃO Talvez seja essa a lição que aprendemos, entre Kafka e Foucault: há sempre uma saída, seja ela qual for. Mas temos que produzi-la, construí-la, lapidá-la. Fazê-la a nossa saída, única, pela qual talvez apenas nós mesmos possamos passar. Kafka e Foucault nos chamam de volta à vida. De volta à ação. Entre Kafka e Foucault, o horizonte está aberto para nós. Entre Kafka e Foucault: literatura menor e filosofia menor, Silvio Gallo

O momento era de expectativa. Dentro de poucos minutos, Eva Schloss participaria da mesa de abertura da festa literária, instalada em Olinda, propondo-se a discutir a literatura judaica. A recôndita senhora falaria dos momentos de sua irmã Anne Frank em campo de concentração durante a Segunda Guerra Mundial. O responsável por conduzir a palestra encontrava-se, discreto, na plateia, a conversar sobre seu livro de lançamento, intitulado Eu vos abraço, milhões, com o argentino Alberto Manguel. Com as mais recentes publicações de ambos em mãos, uma jovem jornalista, sentada atrás, potencializava a audição para alcançar o mote daquela conversa, tecida por dois dos melhores autores latinoamericanos, conforme acreditava. Não, ela não se atreveu a intrometer-se naquele espaço, ao mesmo tempo, tão alcançável e inatingível, a fim de colher depoimentos em primeira mão ou, somente, para colher dedicatórias nas obras em punho.

1. Jornalista do IFPE e mestranda em Teoria da Literatura no Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (PPGL – UFPE); monicasantosmelo@gmail.com 457


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No desenrolar do evento, ao longo da semana, ela conseguiria entrevistar, para capa da editoria de cultura do jornal para o qual trabalhava, o autor argentino. Mas aquele que era seu maior foco, o nome responsável pela conquista de inúmeros prêmios literários, ela não conseguiria alcançar. “No dia seguinte à palestra de abertura, eu o entrevisto”, pensou. Deixou assim escapar, com relação àquele que sentara a sua frente, um momento único, como profissional ou leitora comum. A aura do escritor pesara naquele momento? “Não, não me aproximarei. Prefiro deixá-lo no pedestal que o imagino...”, poderia ter refletido como leitora. Ou “Não vou até ele. Amanhã, o autor vai estar por aqui, circulando no evento e eu o intercepto”, poderia ter predominado a suposição enquanto jornalista. O fato é que, no dia seguinte à participação do autor na mesa de abertura com Eva Schloss, a jornalista ficou sabendo que ele partira de avião. No ano seguinte, partiria para outro plano metafísico. A entrevista ou tão somente o encontro para conquista de um autógrafo do escritor Moacyr Scliar, que poderia ter sido e não foi, persiste na memória da jovem profissional, autora deste artigo. É na tentativa de refletir sobre o que ficou subjacente a sua hesitação em buscá-lo, em interceptá-lo que este artigo toma corpo. Por certo, ela imaginava que ele não deveria ser dado a esse tipo de consagração; talvez, por isso, inconscientemente, admirasse-o. Scliar tinha um diferencial e ela somente veio a compreender melhor esse fato quando, em meio aos estudos, emergiu o conceito de literatura menor. Respaldando-se nas reflexões sugeridas por Deleuze e Guattari em torno desta questão, realiza-se, neste trabalho, um levantamento das características que eles esboçam como comuns a autores que se dedicam a um fazer literário diferenciado, seja por não se renderem às ofensivas lucrativas do mercado editorial, seja por fazerem da literatura um instrumento de arregimentação e mudança social.

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Labor autocrítico em face das tendências de narcisismo coletivo Antes de adentrar na seara que, verdadeiramente, interessa a este estudo, torna-se oportuna a construção de um breve panorama do mercado editorial contemporâneo, afeito a políticas que privilegiam a autoimagem do autor, alçado, muitas vezes, à categoria de popstar ou de um personagem narcísico na internet. A fim de divulgar o seu livro Gonzos e Parafusos, a escritora Paula Parisot lançou mão de uma estratégia inusitada: ficou confinada por uma semana em uma caixa de acrílico, instalada numa livraria, em alusão ao universo da psicanalista em crise, que toma as páginas de sua obra. A performance resulta bastante sintomática quanto à reconfiguração, na contemporaneidade, das relações envolvendo autor e leitor. Algo amplificado quando se toma também como referência a apropriação de plataformas digitais pelos escritores na tentativa de protagonizar elaborações estéticas diferenciadas e, por consequência, esboçar uma “aproximação” com o público. Daí a pertinência de se ater a como a figura do autor ganha hoje contornos e às implicações de se produzir literatura em uma época que privilegia a (auto)imagem. Interessante é que, no esforço de encontrar formas de escoar sua produção e, por tabela, promover sua imagem, os escritores terminam por criar personagens para si mesmos, como em determinadas apresentações em público ou por meio de perfis em redes sociais. Um exemplo é o autor gaúcho Fabricio Carpinejar, responsável pela postagem de aforismos e frases de efeito no Twitter. Quando o assunto é a apropriação das novas mídias a serviço da prática literária, fica em destaque o Twitter como plataforma privilegiada por parte de escritores obcecados pelo exercício da concisão. Carpinejar criou sua própria caricatura, como um zombador e/ou cronista das relações amorosas. Para divulgar sua obra, angariar adeptos dela ou divulgar sua concepção de arte, escritores também participam de eventos literários, entrevistas, intervenções, performances, happenings. Dentro dessa política de marketing pessoal, inter459


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rompem o verdadeiro ofício, que consiste em escrever, para dar conta de ações de relações públicas. Nessa armadilha do mercado editorial brasileiro, pode-se citar o autor Cristovão Tezza, que, após a publicação aclamada do livro O filho eterno, teve de conviver com a obra como filho, incansavelmente, para cumprir agenda lotada de eventos de divulgação. Para se desatrelar da mesma armadilha, Laurentino Gomes foi obrigado a se isolar, após o marketing de guerrilha envolvendo o best-seller 1808, na tentativa de construir o sucessor, qual seja, a obra 1822. À glória, sucede o renome. O renome é recebido de modo mais restrito, no nome. O poder de nomear, a força daquilo que nomeia, a perigosa garantia do nome (há perigo no fato de ser nomeado) tomam-se o privilégio do homem capaz de nomear e de fazer ouvir aquilo que nomeia. A escuta está submetida à repercussão. A fala que se eterniza no escrito promete alguma imortalidade. O escritor está associado àquilo que triunfa da morte; ele ignora o provisório; é o amigo da alma, o homem do espírito, o fiador do eterno. Muitos críticos, ainda hoje, parecem acreditar sinceramente que a arte e a literatura têm, por vocação, eternizar o homem (BLANCHOT, 2005, p.360-361).

Todos esses exemplos e a respectiva reflexão acima são elucidativos quando se tem em mente que estamos vivendo, conforme Lipovetsky (1988, p.49), a era do vazio, a fase hedonista e permissiva do capitalismo, quando o sujeito se encontra desatrelado a valores morais e sociais; quando “viver sem ideal e sem fim transcendente tornou-se possível” (p.50). Nada resta a não ser uma indiferença histórica, um desinteresse pelo passado, pela tradição e pelo futuro. um clima de pessimismo e de catástrofe iminente que explicam o desenvolvimento das estratégias narcísicas de ‘sobrevivência’, que prometem a saúde física e psicológica. Quando o futuro se mostra ameaçador e incerto, resta a retracção sobre o presente, que não para de ser protegido, arranjado e reciclado numa juventude sem fim. Ao mesmo tempo 460


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que põe o futuro entre parêntesis, o sistema procede à ‘desvalorização do passado’, impaciente por cortar as amarras das tradições e territorialidades arcaicas e por instituir uma sociedade sem base de ancoragem nem opacidade; justamente com esta indiferença pelo tempo histórico, instaura-se o ‘narcisismo coletivo’, sintoma social da crise generalizada das sociedades burguesas, incapazes de enfrentarem o futuro sem desespero (LIPOVETSKY, 1988, p. 50).

Diante desse narcisismo coletivo, que acomete, no caso em estudo, os protagonistas do mercado editorial – escritores -, revela-se oportuno apontar, justamente, aqueles que andam na contramão desse fenômeno, responsáveis por encontrar alternativas para não compactuar com o sistema ou de conviver com o tal sistema, assegurando-se o direito a um “sorriso de canto de boca”. A essa disposição de fazer a diferença, de remar contra a maré, dentro de circunstâncias que, a priori, conduziriam para a tomada inconsciente da mesma atitude coletiva, da mesma sedução pelo quantitativo ($) editorial, no caso, podese denominar literatura menor. Constituindo-se em iniciativa de resistência a algo que predomine e corrompa, de conscientização política, de arregimento coletivo em favor de algo que supere a instância individual e privilegie o bem-comum, a pergunta subjacente à questão consiste em: é possível a todas as áreas do conhecimento deixar predominar seu aspecto menor? Ciente da complexidade da temática, exploram-se, neste trabalho, especificamente, as implicações desse conceito no seio da literatura. Uma literatura menor não é a de uma língua menor, mas antes a que uma minoria faz em uma língua maior. No entanto, a primeira característica é, de qualquer modo, que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p.25).

Menor, portanto, não deve ser compreendido e assimilado como um adjetivo pejorativo, a designar uma prática literária puramente marginal, de qualidade

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contestável ou de reduzida expressividade. Realizar um uso menor de uma língua maior consiste, antes, em dela se apropriar a ponto de empreender uma experiência inovadora, revolucionária, descomprometida com poderes e interesses predominantes. Desprendido de raízes, sendo um outsider dentro do próprio território, é possível se estabelecerem novas conexões, enxergar demandas outras que não as explícitas, ou seja, justamente as das minorias, as de uma coletividade sem voz, sem púlpito e até sem representação. Por isso, os mesmos estudiosos elencam o caráter político como outra particularidade da literatura menor. Ademais, ela apresenta agenciamentos coletivos de enunciação, no sentido de que encerra uma mobilização pelo discurso, o ato de arregimentar, de criar identificações, não direcionadas a um indivíduo, mas a uma comunidade potencial. Mesmo aquele que tem a infelicidade de nascer no país de uma grande literatura, deve escrever em sua língua, como um judeu tcheco escreve em alemão, ou como um usbeque escreve em russo. Escrever como um cão que faz seu buraco, um rato que faz sua toca. E, para isso, encontrar seu próprio ponto de subdesenvolvimento, seu próprio patoá, seu próprio terceiro mundo, seu próprio deserto (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p.28-29).

Nesse sentido, torna-se difícil compreender, em um primeiro momento, como um escritor, colecionador de vários prêmios na área, inserido na programação de um evento literário, no caso, a Fliporto, que já está incluído no roteiro do turismo cultural do País, poderia ser considerado um autor responsável pela construção de uma literatura menor. O corpus literário que será aqui analisado, para possibilitar o esboço de um esclarecimento, consiste no romance Eu vos abraço, milhões (2010), representativo do deserto no qual ancorou sua obra o escritor gaúcho Moacyr Scliar. Revela-se um tanto sintomático que o autor sob análise preserve certa reserva, de um modo geral e ao participar de encontros na área, limitando-se a 462


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interagir na parte da programação na qual ele, de fato, acredita; não se rendendo aos holofotes, entre outros espaços, de sessões de autógrafos. Além de que sua contribuição na área não se restringiu ao exercício literário, uma vez que é detentor de obras teóricas envolvendo a literatura. No romance Eu vos abraço, milhões, Scliar dá vazão à utopia por meio de um sujeito convencido do potencial transformador de ideais progressistas e revolucionários. O jovem gaúcho Valdo, filho de um capataz de uma estância missioneira, muda-se para o Rio de Janeiro em 1929, em busca do líder comunista Astrojildo Pereira. Enquanto aguarda o encontro, Valdo, para quem a religião representa o ópio do povo, vê-se obrigado a trabalhar, ironicamente, na construção do Cristo Redentor. Além de passagens revestidas de humor, como as experiências sexuais inusitadas do protagonista, Scliar delineia os desdobramentos da crise da bolsa de Nova York e os bastidores da Revolução de 1930. Partindo para a análise detida do sacerdócio, a seu modo, à literatura menor, destaca-se na obra de Scliar que ele procura trazer, enquanto escritor de ascendência judaica, o componente judaico para sua escrita. É o caso do elemento do humor melancólico. Para isso, o autor não levanta a bandeira explícita de uma minoria. No caso, os judeus. Dessa forma, é possível afirmar que empreende um uso singular e menor de uma língua maior. Ele deixa suspensas suas raízes brasileiras para ser possível explorar o veio judaico de sua origem, promovendo, no seu país, uma alternativa autêntica a um tipo de literatura que poderia explorar, gratuitamente, o rótulo de literatura judaica. O humor é elemento de destaque no trecho que se segue do texto, no qual o narrador-protagonista, já velho, dedica-se a relatar sua vida para o neto, ressaltando a relação mantida com sua próstata: Poderia ser mais feliz, se não tivesse essas dores pelo corpo, se escutasse melhor, se enxergasse melhor... se urinasse melhor já seria uma coisa muito boa. Eu queria, meu neto, que minha urina fluísse impetuosa e alegre (...). Mas a próstata, meu caro, a próstata de um idoso é qualquer coisa 463


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de inimaginável em termos de obstáculo e de transtorno. (...) Que agora nem sequer tem a ver com reprodução (‘Chega de fornecer o substrato para teus malditos espermatozóides, velho de merda, espermatozóides que aliás nem mais existem, tua semente de há muito se extinguiu’), e menos ainda com sexo; tem a ver com vida, sim, mas na sua expressão mais primitiva e brutal. No fundo, é uma ressentida, a próstata. Acha que lhe foi atribuído um papel secundário na vida sexual: a mão acaricia, a boca beija, o pênis penetra; a próstata trabalha em silêncio; ademais, é invisível. Mulher alguma dirá para o amado: ‘Que bela próstata tu tens, querido, nunca vi próstata tão bela’. Isso não justificaria, claro, os rancores glandulares. O anonimato só é problema em caso de hipertrofia do ego, não de hipertrofia prostática. A próstata deveria saber que o prazer do orgasmo, aquele clímax da paixão, resulta, em boa parte, da passagem pela uretra da onda espermática, em grande parte nela, próstata, gerada. Alguns dos decibéis do Aaah que então emitimos (emitíamos, no caso da minha categoria geriátrica) certamente são atribuíveis a isso. É o que tento explicar, nos diálogos que com a próstata frequentemente mantenho. Apelo à sua compreensão e solidariedade, lembro que afinal formamos uma entidade, e que, revoltando-se contra mim, ela só tem a perder (...) (SCLIAR, 2010, p.10-11).

Entre as particularidades que dão forma à literatura menor, ressalta-se o fato de ela apresentar dimensão política. No livro analisado, essa inclinação é percebida, tendo em vista o questionamento empreendido por Scliar com relação à falta de sonhos da atual geração de jovens e à sua incapacidade de correr atrás e fazer valer seus ideais, ainda que de forma modesta. Ele transmite essa mensagem ao flagrar um jovem de uma geração anterior à dele, vivenciando a plenitude dos ideais. Trata-se [o livro] de uma homenagem a milhares de jovens que, de uma maneira ou de outra, acreditaram no sonho de um Brasil melhor, de um mundo melhor. É claro que, no caso do comunismo, este sonho naufragou com a queda do muro de Berlim. Mas, e esta é a pergunta do 464


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livro, será que um sonho, para ser válido, precisa necessariamente se traduzir em um novo regime, em um novo governo? Acho que o importante é acreditar em nossos ideais e buscar maneiras de transformá-los em realidade, ainda que de forma modesta. Particularmente, encontrei na literatura e na saúde pública, minha especialidade na medicina, um caminho para ajudar, ou tentar ajudar as pessoas. A alternativa para isso é o ceticismo, o cinismo, a visão pessimista da realidade, que só se traduz em frustração e infelicidade2**.

Com relação à terceira característica que estudamos como sendo igualmente responsável por formatar a literatura considerada menor, qual seja, o fato de nela tudo ser revestido de um valor coletivo, Scliar, por meio desse livro, tenta se voltar para os jovens, considerados motor propulsor de mudanças de uma nação. Isso porque, conforme o autor gaúcho, eles, atualmente, mostram-se apáticos, concentrados em interesses individuais, em detrimento de ideais coletivos. O próprio título da obra sugere arregimentação. Milhões sugerindo, no enredo propriamente dito, os milhões de proletários ou os brasileiros sob os braços do Cristo Redentor e, mesmo, a juventude atual, desprovida de causas para abraçar e pelas quais ter participação ativa na sociedade. Para Deleuze e Guattari (2002, p.27): é a literatura que produz uma solidariedade ativa, apesar do ceticismo; e se o escritor está à margem ou afastado de sua frágil comunidade, essa situação o coloca ainda mais em condição de exprimir uma outra comunidade potencial, de forjar os meios de uma outra consciência e de uma outra sensibilidade.

Scliar mostra-se consciente quanto à necessidade de se apresentarem ideais, de se terem valores e de não sucumbir ao sistema. Aí se revelam duas instâncias: nem

2. Scliar afirmou essa posição em entrevista à Folha de Pernambuco, publicada no dia 8 de novembro de 2010 465


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ele compactua com o rótulo de literatura judaica, nem aceita qualquer proposta por parte do mercado editorial. Somente aquelas sugestões que o entusiasmam. Sobre seu processo criativo afirma: Costumo partir de qualquer coisa: uma pessoa que conheci, uma história que me contaram, um episódio histórico (ou bíblico), uma notícia de jornal. A partir daí, vai brotando a história. Para escrevê-la, não sigo qualquer ritual: não tenho horário fixo, não tenho um método definido; vou escrevendo sem saber se vai dar certo (muitas vezes, não dá, e aí o jeito é usar aquela tecla que é a grande amiga da literatura, a tecla de deletar). Mas isso não me causa angústia, ao contrário: escrever é um prazer, e eu não escreveria se não tivesse esse prazer, que é absolutamente fundamental. Se o escritor não sente prazer quando escreve, o leitor também não sentirá prazer. Às vezes, recebo propostas editoriais, e aí depende: se me entusiasmam, vou em frente; caso contrário, prefiro não aceitar. Devo dizer que só sinto tristeza quando termino um livro. Aí fica a pergunta: quando começarei o novo?3***

Scliar sempre se mostrou bastante consciente, entusiasmado e comprometido com o fazer literário e suas implicações, para além do êxito de mercado. Para ele, literatura, conscientização, política, minoria, coletividade, autenticidade, valores integram o mesmo arranjo semântico. Prática singular, magistralmente, conduzida pelo gaúcho, e, neste estudo, categorizada sob a nomenclatura menor.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O exercício literário, por si só, revela-se um desafio. O que dizer, então, com relação à missão de se fazer desta prática uma experiência singular, quando se estão em jogo questões como comprometimento social, arregimentação coletiva,

3. Scliar afirmou essa posição em entrevista à Folha de Pernambuco, publicada no dia 8 de novembro de 2010 466


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resistência contra práticas editoriais de fins eminentemente lucrativos? Pronunciar-se no mundo, incitando mudanças, por meio do labor literário, de maneira descomprometida com poderes e interesses de classes dominantes, consiste na profissão de fé de autores que, a semelhança do escritor Moacyr Scliar, enfocado neste trabalho, praticam a literatura menor. Trata-se de um conceito explorado pelos teóricos Deleuze e Guattari. Uma abordagem interessante para futuras investigações pode emergir, a partir desta breve análise, no sentido de se construir uma interface entre diferentes manifestações intelectuais que tenham como maior característica o fazer-se menor, com toda lucidez e complexidade que o conceito encerra.

REFERÊNCIAS BLANCHOT, Maurice. O Poder e A Glória. In: O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Kafka: por uma literatura menor. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo. Trad.: Miguel Serras Pereira e Ana Luísa Faria. Relógio d’Água, 1988. SCLIAR, Moacyr. Eu vos abraço, milhões. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. _____________. “Trago para a literatura de nosso País o componente judaico”. Folha de Pernambuco, Recife, Programa, p. 1, 8 novembro 2010. Entrevista concedida a Mônica Melo.

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Resumo Este artigo visa analisar propostas de produção textual no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). Para tanto, foram selecionadas duas provas de Redação deste exame, as quais foram analisadas à luz da Linguística Textual. Tal pesquisa se justifica porque é imprescindível que esse instrumento de avaliação seja adequado, pois, muitas vezes, escolas e professores consideram o que é solicitado nesse exame para escolher o que será trabalhado na sala de aula do Ensino Médio. Todavia, a realização dessa pesquisa mostra que as propostas de produção de texto no ENEM ainda apresentam sérias lacunas. Palavras-chave: produção de texto, Ensino Médio, ENEM.


PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL NO ENEM Marcela Regina Vasconcelos da Silva1 Maria de Fátima Almeida (Orientadora)

Introdução O objetivo deste trabalho é analisar duas provas de produção de texto realizadas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), averiguando a pertinência dessas propostas no que diz respeito aos pressupostos da concepção teórica de caráter sócio-interacionista. Para tanto, foram adotados os seguintes critérios metodológicos: (1) realização de uma revisão dos estudos teóricos de Beaugrande; Dressler (1981), Bunzen (2006), Koch; Travaglia (2001), Koch (2002, 2006), Pavani; Köche (2006), entre outros. (2) Seleção de duas provas de produção textual do ENEM realizadas entre 2004 e 2008. (3) Análise, à luz desses estudos teóricos, das propostas de produção de texto. Tal pesquisa se justifica porque é fundamental que instrumentos de avaliação em rede destinados a estudantes de Ensino Médio, como o ENEM, contemplem a produção de gêneros do discurso conforme a situação comunicativa, os interlocutores, o suporte, o propósito comunicativo, entre outros aspectos relevantes, pois esses instrumentos de avaliação, frequentemente, norteiam as escolhas pedagógicas realizadas pelos docentes do Ensino Médio.

Velhas práticas de ensino de produção textual Até meados do século XX, o ensino de Língua Portuguesa privilegiava a gramática e a decodificação de textos literários, os quais deveriam ser memorizados e recitados pelos educandos. A produção de textos não era ensinada, havia apenas um ensino de “composição”, que levava os alunos a escrever textos com base nos mode-

1. Programa de Pós-Graduação em Linguística – Universidade Federal da Paraíba (UFPB) 469


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los apresentados pelos docentes. Esse ensino caracterizava-se por estar imbuído de traços da retórica, da estilística e da poética tradicional, constituindo-se no âmbito de uma perspectiva prescritiva. Na sala de aula, não eram contemplados diversos gêneros do discurso, visto que todas as atenções estavam voltadas para gêneros literários, que deveriam ser considerados modelos para “escrever bem”. Aos alunos, cabia a tarefa de copiar esses textos, realizando suas produções por meio de gêneros com aspirações literárias, conforme os critérios de qualidades e defeitos defendidos pelos professores. Segundo Bunzen (2006, p. 142), os alunos deveriam imitar os mais belos trechos das obras-primas nacionais que lhes eram apresentados como modelos. Acreditava-se, consequentemente, no aprendizado pela exposição à boa linguagem e na existência de uma língua homogênea, a-histórica e, consequentemente, não-problemática. Por essa razão, enfatizava-se muito mais o produto final, sendo o texto entendido como tradução do pensamento lógico. (grifos do autor).

Consequentemente, a concepção científica que permeava esse tipo de prática está relacionada àquela segundo a qual a língua se caracteriza como uma representação do pensamento, constituindo-se o texto como um produto lógico do pensamento do autor, tido como sujeito individual, dono de suas ações, único responsável pelos sentidos, que seriam depositados no texto. De acordo com Koch (2006, p. 9-10), nessa concepção de língua como representação do pensamento e de sujeito como senhor absoluto de suas ações e de seu dizer, o texto é visto como um produto – lógico – do pensamento (representação mental) do autor, nada mais cabendo ao leitor senão “captar” essa representação mental, juntamente com as intenções (psicológicas) do produtor, exercendo, pois, um papel passivo. (grifos da autora).

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Essa forma equivocada de conceber a língua, o texto e os sujeitos influenciou bastante as práticas pedagógicas e resquícios dela ainda se encontram atualmente. Assim, compreende-se por que, embora as disciplinas de retórica e poética tenham sido retiradas do currículo escolar há aproximadamente 130 anos, essa concepção de ensino de “produção de textos” com base na imitação de textos realizados por meio de gêneros literários ainda se faz presente em certos contextos didáticos dos dias atuais. Assim, percebe-se uma ênfase no ensino de composição de textos de acordo com modelos concebidos conforme os textos consagrados por grandes nomes da Literatura, uma vez que só se considerava importante o produto final. Logo, observa-se que, durante muito tempo, não existia um ensino de produção textual, uma vez que, apesar de haver, em sala de aula, muitos momentos dedicados à escrita, ainda predominava o treinamento para a imitação. Não havia um ensino formal e sistemático das competências da escrita. A ênfase em disciplinas clássicas, tais como retórica e estilística, formava imitadores e não produtores de textos. A LDB nº 5692/71 contribuiu, já nas décadas finais do século XX, para que esse quadro começasse a ser revertido. Essa lei, ao tratar do ensino de língua, mudou o foco da metalinguagem para os códigos comunicacionais, o que se reflete na mudança de nomenclatura na denominação da disciplina, que passou a se chamar Comunicação e expressão. Conforme explica Bunzen (2006, p. 144), o ensino, nesse período, visava à transformação do aluno em um emissor e receptor de textos, considerando as redações produzidas como atos de comunicação e expressão. Dessa vez, a concepção científica em que se assentam as práticas pedagógicas diz respeito à noção de língua como código, um sistema a serviço da comunicação. Nesse quadro, o texto se caracteriza como o produto de uma codificação do emissor a ser decodificado pelo(s) receptor(es). Os sujeitos, assim, teriam um papel meramente passivo. Segundo Koch (2006, p. 10), nessa concepção de língua como código – portanto, como mero instrumento de comunicação – e de sujeito como (pre)determinado pelo sistema, o texto é visto como simples produto da codificação de um emissor a ser 471


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decodificado pelo leitor/ouvinte, bastando a este, para tanto, o conhecimento do código a ser utilizado. (grifos da autora).

Essa concepção de língua como código norteou as práticas de ensino de uma disciplina emergente no final da década de 70 do século passado: técnicas de redação, a qual surgiu em virtude de uma determinação superior, o Decreto Federal nº 68.908, de 13 de julho de 1971, que tornou obrigatória a prova de redação nos vestibulares nacionais e sofreu alterações no Decreto Federal nº 79.298, de 24 de fevereiro de 1977. As alterações, que, entre outras determinações, instituíam o vestibular classificatório, que não dependia da nota mínima do candidato, não revogaram a obrigatoriedade da redação no exame vestibular. Diante dessa obrigatoriedade, as instituições escolares introduziram a disciplina supracitada no currículo do Ensino Médio. Apesar disso, não houve melhoras substanciais no ensino de produção textual, já que as práticas pedagógicas, em geral, limitavam-se à apresentação de regras e técnicas para redigir redações dissertativas, as quais não levavam o aluno a um bom desempenho nas práticas de produção escrita. Mostra-se, portanto, inócuo esse ensino de “produção textual” baseado na memorização de regras e técnicas, em que não há preocupação com as implicações discursivas. Esse ensino que tenta aplicar “fórmulas” à redação de um texto é completamente deficiente e em nada contribui para a ampliação da competência comunicativa dos alunos. Segundo Pavani e Köche (2006, p. 110), no ensino tradicional, geralmente, o professor de Língua Portuguesa repassa aos alunos uma estrutura formal de redação, objetivando atender às supostas exigências do Concurso Vestibular. Assim, muitas vezes, não se vale de uma metodologia voltada para a discursividade na construção de diferentes gêneros textuais, usados em diferentes situações de comunicação. Disso, decorre um tipo de ensino em que não se formam alunos capazes de comunicar-se de forma adequada e eficiente. Sem a capacidade de comunicação desenvolvida, esses estudantes apresentam dificuldades de construir textos, inclusive no vestibular. 472


PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL NO ENEM

Consequentemente, percebe-se que há problemas nas condições de aprendizagem da escrita em contexto escolar, quando essas condições estão submetidas a um ensino que privilegia a assimilação de técnicas e padrões, desconsiderando o conjunto de variáveis sócio-cognitivas e culturais implicadas nos usos da linguagem em função da interação social.

Ensino de produção de textos: novos rumos Os mais recentes estudos linguísticos têm apontado a necessidade de se adotar uma concepção de língua como lugar de interação, compatível com a noção de sujeitos ativos, atores/construtores sociais, que participam ativamente da construção de sentidos na atividade de comunicação em que se encontram engajados. Dessa forma, o texto passa a ser visto como o próprio lugar da interação, construído dialogicamente, de caráter não linear e não transparente, uma vez que, nele, há sentidos implícitos que só poderão ser construídos mediante o contexto sóciocognitivo dos sujeitos. Diante disso, Koch (2002, p. 17) conclui que o sentido de um texto é, portanto, construído na interação texto-sujeitos (ou texto co-enunciadores) e não algo que preexista a essa interação. Também a coerência deixa de ser vista como mera propriedade ou qualidade do texto, passando a dizer respeito ao modo como os elementos presentes na superfície textual, aliados a todos os elementos do contexto sociocognitivo mobilizados na interlocução, vêm a construir, em virtude de uma construção dos interlocutores, uma configuração veiculadora de sentidos.

Assim, percebe-se a necessidade de conceber a língua numa perspectiva sócio-interacionista cuja função é possibilitar a interação entre os sujeitos. Logo, não faz sentido um ensino de língua voltado quase exclusivamente para aspectos gramaticais.

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Apesar disso, é possível constatar a existência de práticas de ensino demasiadamente preocupadas com aspectos linguísticos, em detrimento dos aspectos textuais, fazendo com que não haja um foco no desenvolvimento da interação verbal, verdadeira função da língua. Muitos professores, ao ensinarem “produção textual”, enfatizam os aspectos linguísticos (os erros gramaticais) e normativos (as tais regras de boa formação do texto), o que se constitui como um grande equívoco, visto que não considera a dimensão dialógica e interativa da língua e, por essa razão, não contribui para a formação de bons produtores de texto. Para que a escola, de fato, possa ampliar a competência comunicativa dos discentes, é necessário dar novos rumos ao ensino da produção textual, desenvolvendo um trabalho que leve em consideração as condições de produção dos textos que circulam socialmente. Mais do que ensinar redação, a escola precisa ensinar produção textual. Não se trata apenas da mudança de nomenclatura na denominação da disciplina, mas de uma transformação nas práticas pedagógicas, que devem estar fundamentadas em concepções de ensino-aprendizagem favoráveis à produção de textos socialmente relevantes e compatíveis com os fatores de textualidade. É inconcebível um ensino de “produção de textos” voltado exclusivamente para a produção da redação escolar, que, não raras vezes, se constitui como um não texto, uma vez que não atende aos padrões de textualidade, os quais, segundo Beaugrande e Dressler (1981), são os seguintes: coesão, coerência, intencionalidade, aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e intertextualidade. Normalmente, nas aulas de redação, os docentes dão uma atenção precária apenas a alguns fatores de textualidade (coesão, coerência e informatividade), ignorando a importância da intertextualidade, situacionalidade, intencionalidade e aceitabilidade, visto que esses fatores são, muitas vezes, incompatíveis com a natureza da redação escolar que é ensinada. A intertextualidade diz respeito ao fato de que o processamento cognitivo dos textos (na produção e na leitura) exige a ativação do conhecimento prévio acerca de outros textos. Na verdade, todo texto é um intertexto, pois está permeado de

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outros discursos, do que se sabe a respeito do assunto a partir de outros textos, o que pode ocorrer de maneira explícita (com a citação da fonte) ou implícita (sem que a fonte seja citada). A redação escolar tem negado a intertextualidade constituinte de todo texto, ao tentar proibir a manifestação de outras vozes na produção dos alunos. Ao tratar desse equívoco, Bunzen (2006, p. 147) adverte para o fato de que, na produção de textos escritos, os alunos exercitariam uma forma escrita que raramente dialoga com outros textos e com vários leitores. Tornou-se até proibido fazer citações ou usar aspas nas redações, para mencionar apenas alguns exemplos dessa tentativa de silenciar o dialogismo constitutivo da língua.

A situacionalidade se refere à necessidade de analisar a interferência dos aspectos relevantes do contexto imediato de interlocução (a situação de produção propriamente dita) e do contexto sócio-político-cultural (a situação de produção mais ampla) no texto que será produzido. Conforme salientam Koch e Travaglia (2001, p. 70), sabe-se que a situação comunicativa tem interferência direta na maneira como o texto é construído, sendo responsável, portanto, pelas variações linguísticas. É preciso, ao construir um texto, verificar o que é adequado àquela situação específica: grau de formalidade, variedade dialetal, tratamento a ser dado ao tema, etc.

A redação escolar tem ignorado a importância da situacionalidade, visto que as produções solicitadas desprezam aspectos da situação comunicativa, como se o texto não estivesse inserido em uma situação de interação social. A produção da redação escolar, geralmente, não leva em consideração o lugar e o momento em que o texto é produzido; os papéis dos interlocutores (até porque trabalha com a noção de um leitor universal, que só existe no âmbito dessa prática escolar); os objetivos da comunicação; entre outros. 475


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Em relação à intencionalidade e à aceitabilidade, é necessário enfatizar que esses conceitos estão intrinsecamente relacionados. A primeira diz respeito ao fato de que todo texto é produzido com um propósito e a segunda está relacionada à aceitação do texto como coerente e funcional pelos interlocutores. Contrariando os processos normalmente ativados no processo de produção textual, a redação escolar, não raras vezes, ignora a intencionalidade e a aceitabilidade, ao solicitar ao aluno que redija um texto sem objetivos definidos, apenas por que tem que escrever. O discente não tem em vista o propósito com que produz o texto e, assim, sente-se perdido para escolher as pistas textuais adequadas à obtenção dos efeitos desejados (já que não sabe quais são esses efeitos). Dessa forma, é comum que produza textos sem muita aceitabilidade para seus interlocutores. Portanto, comprova-se que a prática da redação escolar é insuficiente para a formação de produtores de textos que possam ser considerados pertinentes e socialmente relevantes, uma vez que o texto a ser produzido se constitui como um produto válido apenas no contexto escolar, em que assume o propósito de servir como instrumento de avaliação (geralmente, avaliando apenas conhecimentos gramaticais e as técnicas de redação), e não como um objeto de estudo para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos. De acordo com Bunzen (2006, p. 149), os alunos não deveriam produzir “redações”, meros produtos escolares, mas textos diversos que se aproximassem dos usos extra-escolares, com função específica e situada dentro de uma prática social escolar. Se assumirmos tal posicionamento, apostaremos em um ensino muito mais procedimental e reflexivo (e menos transmissivo), que leva em consideração o próprio processo de produção de textos e que vê a sala de aula, assim como as esferas da comunicação humana, como um lugar de interação verbal.

Por esse motivo, urge redimensionar o ensino de produção textual, que precisa adotar novos rumos, para que seja realmente relevante para a formação dos alunos como produtores de textos. Para tanto, é imprescindível realizar um trabalho 476


PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL NO ENEM

com uma diversidade textual crescente, levando em consideração as condições de produção de cada texto. Dessa forma, as práticas de ensino de produção textual devem incluir o trabalho com diversos gêneros discursivos, os quais devem ser solicitados conforme condições de produção claras, que explicitem o papel social do aluno, ao produzir o texto; quem são seus interlocutores; com que finalidade o texto deve ser produzido; qual será o suporte (físico ou virtual) em que o texto poderá ser fixado; por meio de qual canal o texto poderá circular socialmente. A apreciação sobre essas questões criará as condições para que sejam escolhidas as estratégias adequadas à produção do texto, que deve ser uma atividade reflexiva, e não regida pela aplicação de técnicas, as quais, usadas indistintamente, podem comprometer ou até mesmo invalidar o texto produzido. Bunzen (2006, p. 151) enfatiza que: o esquema mecânico e autônomo priorizado nas escolas em relação às práticas de leitura e produção de texto não faz com que os alunos se insiram nesse jogo complexo de produção de construção dos sentidos. Se defendemos que as práticas sociais e as atividades de linguagem são múltiplas e heterogêneas, resta-nos (re)pensar nossa prática de letramento escolar, que normalmente enfatiza o UNO e o homogêneo.

Todavia, sabe-se que a expectativa de pais (cuja formação escolar, geralmente, ocorreu no período em que se acreditava que a imitação e o treinamento eram profícuos) e de alunos (desejosos de fórmulas-prontas para passar no vestibular) é a de que o professor transmita regras e dicas não reflexivas. Apesar disso, o profissional comprometido com a educação não pode se deixar pressionar, assumindo uma concepção reducionista que em nada contribuirá na formação de produtores de texto. É imprescindível que os docentes realizem um trabalho com textos, considerando o fato de que estes se materializam em gêneros do discurso, formas relativamente estáveis que se atualizam em cada produção oral ou escrita. 477


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Segundo Bakhtin (2000 [1979]), a utilização da língua se efetua por meio dos gêneros discursivos, enunciados concretos e únicos, que podem ser tanto orais quanto escritos. Bakhtin (op. cit.) defende que todas as atividades humanas, de algum modo, estão relacionadas à linguagem e, uma vez que essas atividades são extremamente diversificadas, também são diversos o caráter e o modo de utilização da língua. Isso, em parte, explica por que há tantos gêneros discursivos diversos circulando socialmente, pois cada esfera de atividade humana necessita da produção de enunciados específicos. Portanto, o ensino-aprendizagem de línguas, o que inclui o ensino-aprendizagem de produção textual, não pode ignorar os gêneros do discurso. De acordo com Rodrigues (2005, p. 153), em função da crítica às práticas escolarizadas da produção textual e da leitura, ganhou força a concepção de que o ensino/aprendizagem dessas práticas como interação verbal social tenha os gêneros do discurso como objeto de ensino.

Esse redirecionamento das práticas pedagógicas, no entanto, não deve ocorrer de maneira reducionista. A simples solicitação de um gênero do discurso não torna a proposta de produção textual adequada. É necessário que os gêneros sejam considerados como “tipos de enunciados relativamente estáveis de uso concreto na sociedade” (REINALDO, 2001, p. 89-90), o que implica que sejam definidos os parâmetros da situação comunicativa, já que, de acordo com essa concepção, “o texto é entendido como produto empírico de uma ação verbal”(REINALDO, 2001, p. 90).

As propostas de produção de texto no ENEM Cada vez mais, torna-se necessário que os gêneros que funcionam nas diversas práticas desenvolvidas pela nossa sociedade sejam objetos de estudo em sala de aula, abandonando, assim, a ênfase que era dada à produção da redação escolar. 478


PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL NO ENEM

Essa necessidade se deve ao fato de que o estudo da língua materna deve levar o aluno ao desenvolvimento das competências necessárias para a comunicação, compreendida como o processo de construção de significados no curso da interação social. Desse modo, não faz sentido estudar a língua desvinculando-a do emaranhado das relações humanas. A língua é essencialmente dialógica e a escola, se de fato quiser contribuir para a formação dos discentes, não pode ignorar isso. Essa natureza dialógica da língua se realiza por meio de textos, já que são os textos que marcam o diálogo entre os interlocutores. Portanto, a escola deve formar alunos leitores e produtores de textos, considerando o fato de que os textos existem em sociedade, constituindo-se como produtos de uma história cultural e social. Em relação ao ensino de Produção Textual, a escola só estará cumprindo com a sua função se ensinar os alunos a produzirem “textos que comunicam”, ou seja, é necessário que os educandos aprendam a produzir textos socialmente relevantes, considerando os papéis dos interlocutores, adequando-se ao suporte e ao canal, analisando a situação de uso e realizando o gênero pertinente aos seus propósitos comunicativos. O texto a ser produzido, ainda que em contexto escolar, deve ter em vista a linguagem em funcionamento, no âmbito das práticas sociais. Consequentemente, não se pode ensinar Produção de Textos sem considerar todos os elementos implicados no ato comunicativo, desde a escolha do gênero à produção propriamente dita. A partir do momento em que se admite que o uso da língua é social, não se pode ignorar o papel dos interlocutores, os propósitos comunicativos, os tipos relativamente estáveis de enunciados por meio dos quais serão realizados os textos, o suporte, a situação comunicativa, enfim, as implicações do uso de gêneros discursivos. Logo, a produção de textos socialmente relevantes implica o domínio de gêneros discursivos diversos, cuja produção precisa obedecer a “contratos” textuais implicitamente formulados, os quais determinam o que e como algo pode ser dito em determinado contexto comunicativo.

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No entanto, esse tipo de orientação, com base nos gêneros do discurso, ainda não se faz presente nas propostas de produção de texto solicitadas nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio. Nesta pesquisa, foram analisadas duas provas do ENEM, realizadas nos anos de 2004 e 2008. A proposta de produção textual da prova de 2004 apresenta cinco textos de apoio, entre os quais se encontram um cartum, um fragmento do livro Sobre ética e imprensa, dois excertos de textos veiculados pela internet e dois incisos do Artigo 5 da Constituição Federal de 1988. Em seguida, é apresentada a seguinte proposta: Com base nas ideias presentes nos textos acima, redija uma dissertação em prosa sobre o tema: Como garantir a liberdade de informação e evitar abusos no meio de comunicação? ENEM, 2004

A seguir são apresentadas estas orientações: Ao desenvolver o tema proposto, procure utilizar os conhecimentos adquiridos e as reflexões feitas ao longo de sua formação. Selecione, organize e relacione argumentos, fatos e opiniões para defender seu ponto de vista e suas propostas. ENEM, 2004

Essa proposta, ao solicitar a produção de “uma dissertação em prosa”, toma como referência a tipologia de base clássica da narração, descrição e dissertação, desconsiderando o fato de que esses tipos textuais, bem como a injunção e a exposição, configuram-se apenas como sequências textuais que podem estar presentes nos diversos gêneros discursivos. Mas, ao contrário de adotar o trabalho com os gêneros do discurso como referência central para o ensino de Produção de Texto, a prova analisada apresenta uma das sequências textuais como se fosse um gênero específico. Assim, constata-se que, em vez de adotar como referência os gêneros do discurso, cuja natureza é mais ampla que a dos tipos textuais, o ENEM focaliza sua proposta 480


PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL NO ENEM

de produção textual nas sequências tipológicas, as quais se constituem apenas como componentes dos gêneros, que podem englobar uma ou mais dessas sequências. A proposta apresentada solicita a produção de um texto desvinculado de uma situação de uso. O aluno terá que produzir um texto sem uma função comunicativa situada no contexto de práticas sociais de uso da linguagem. Nesse contexto, não há papéis definidos para os interlocutores. Aliás, o interlocutor do aluno sequer é mencionado. Ao contrário do que ocorre nos usos reais da escrita, o educando escreve “para ninguém” e, portanto, não tem como adequar o seu texto ao seu papel social como sujeito que diz, tampouco pode adequar-se ao sujeito a que se dirige, afinal, ele não se dirige a ninguém, precisa trabalhar com a ideia de um leitor universal que só existe no âmbito dessa escrita escolar, que não promove uma continuidade entre o que é interno e o que é externo à escola. Pede-se ao discente que “selecione, organize e relacione argumentos, fatos e opiniões para defender seu ponto de vista e suas propostas”, mas não se informa ao aluno por que e em que situação ele precisa defender seu ponto de vista, nem para quem ele deve dirigir suas propostas. Logo, não há uma situação social que gere a necessidade de produzir um dado texto. O discente é convocado a redigir um texto sem um propósito comunicativo, já que não tem em vista o horizonte da interação verbal. Ele sabe que deve produzir um texto dissertativo em prosa sobre um tema proposto apenas para ser avaliado pelos examinadores, mas nem por isso estes são seus interlocutores. O produtor do texto solicitado não irá agir socialmente por meio dessa produção, não há um lugar e um momento para produzir esse texto, não há uma instituição na qual ocorra uma interação, não há papéis sociais para os interlocutores e, como resultado dessas condições, não há objetivos comunicativos. Diante disso, não causa maiores surpresas o fato de que não é solicitado um gênero discursivo. A solicitação de um gênero nessas condições seria inócua, uma vez que a proposta de produção de um texto que se realiza por meio de um dado gênero visando meramente a um formato textual é insuficiente, haja vista que os gêneros não se resumem a formas linguísticas e estruturais, são formas de agir dis-

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cursivamente, as quais se caracterizam predominantemente por suas peculiaridades comunicativas e funcionais. É necessário avaliar se, numa situação de comunicação específica, assumindo um determinado papel social, ao se dirigir a um interlocutor específico, tendo em vista um propósito comunicativo claro, o aluno sabe escolher e produzir o gênero discursivo adequado para se inserir nessa prática comunicativa. Todavia, na prova analisada, o Exame Nacional do Ensino Médio não investiga a competência comunicativa dos estudantes, pois trata a produção de textos como um procedimento único e global, válido para qualquer “dissertação em prosa”. Os tais textos “dissertativos” são, na verdade, textos que apresentam predominantemente sequências tipológicas de cunho expositivo e/ou argumentativo, as quais podem figurar em diversos gêneros do discurso e cada um deles exige aprendizagens específicas. Esses mesmos equívocos podem ser encontrados na prova do ENEM realizada em 2008. Mesmo com a passagem de quatro anos, não houve mudanças significativas na proposta, visto que continua sendo solicitado apenas “um texto dissertativo”. Na proposta da prova de 2008, é apresentado um texto que trata da “máquina de chuva da Amazônia”, o qual foi publicado pela Folha de S. Paulo, em 2007. Em seguida, encontra-se esta proposta: O texto acima, que focaliza a relevância da região amazônica para o meio ambiente e para a economia brasileira, menciona a “máquina de chuva da Amazônia”. Suponha que, para manter essa “máquina de chuva” funcionando, tenham sido sugeridas as ações a seguir: 1. suspender completa e imediatamente o desmatamento na Amazônia, que permaneceria proibido até que fossem identificadas áreas onde se poderia explorar, de maneira sustentável, madeira de florestas nativas; 2. efetuar pagamentos a proprietários de terras para que deixem de desmatar a floresta, utilizando-se recursos financeiros internacionais; 3. aumentar a fiscalização e aplicar pesadas multas àqueles que promoverem desmatamentos não-autorizados.

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Escolha uma dessas ações e, a seguir, redija um texto dissertativo, ressaltando as possibilidades e as limitações da ação escolhida. ENEM, 2008.

À proposta seguem-se orientações bastante semelhantes àquelas encontradas na prova de 2004:

Ao desenvolver seu texto, procure utilizar os conhecimentos adquiridos e as reflexões feitas ao longo de sua formação. Selecione, organize e relacione argumentos, fatos e opiniões para defender seu ponto de vista, sem ferir os direitos humanos. Observações: • Seu texto deve ser escrito na modalidade padrão da língua portuguesa. • O texto não deve ser escrito em forma de poema (versos) ou narração. • O texto com até 7 (sete) linhas escritas será considerado texto em branco. • O rascunho pode ser feito na última página deste Caderno. • A redação deve ser passada a limpo na folha própria e escrita a tinta. ENEM, 2008

A análise dessa proposta permite a constatação de que, embora haja um esforço para inserir a produção do aluno no contexto de uma situação comunicativa, ainda não há uma orientação adequada. A proposta de produção textual da prova de 2008 tenta levar o aluno a se imaginar numa prática social, ao pedir que suponha que, para manter funcionando a “máquina de chuva” de que trata o texto, tenham sido sugeridas três ações que são, em seguida, apresentadas na proposta. Contudo, essa orientação é ineficaz, por ser bastante vaga, visto que não se sabe quem propôs essas ações, qual é o papel social

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de quem propôs, em que contexto o fez, em que instituição poderá ocorrer a interação etc. Novamente, faltam os parâmetros básicos que determinam a análise da situação de produção. Consequentemente, mais uma vez o aluno é solicitado a produzir um texto sem um interlocutor definido, sem saber de onde fala, que papel social assume no curso dessa “interação”, que papel social tem o seu interlocutor (ou, melhor dizendo, sem ter um interlocutor, escrevendo para “ninguém”, o tal “leitor universal”, que pode ser toda e qualquer pessoa, mas, na realidade, não é ninguém), sem ter um propósito comunicativo (afinal, não sabe por que precisa discutir três ações propostas por alguém que ele não sabe quem é, nem que legitimidade social possui para fazer tais propostas e tampouco sabe em que esfera essas sugestões foram feitas). Além disso, verifica-se que os gêneros discursivos continuam ausentes da proposta, que solicita “um texto dissertativo”, desconsiderando a relevância da produção de textos vinculados às práticas sociais, em situações comunicativas específicas.

Considerações finais A análise empreendida permitiu a constatação de que, embora seja possível observar algumas pequenas mudanças nas propostas de produção de texto do ENEM, as provas precisam passar por um redirecionamento, a fim de que possam de fato avaliar (e contribuir para) o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos. A mera solicitação de textos dissertativos é insuficiente, pois o que o aluno precisa demonstrar é que construiu o domínio de gêneros discursivos diversos e socialmente relevantes, visto que sua atuação verbal nas mais diversas práticas sociais ocorrerá por meio desses tipos relativamente estáveis de enunciados que funcionam na sociedade. Como o Exame Nacional do Ensino Médio desempenha um importante papel na avaliação do Ensino Médio brasileiro, não raras vezes, aquilo que se exige no exame determina o próprio currículo escolar. Como se torna cada vez mais imprescindível

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que a escola abandone a ênfase na tipologia clássica, sobretudo na redação escolar, e promova o ensino de gêneros discursivos, é primordial que o ENEM apresente uma proposta de produção textual pertinente com essa necessidade de redirecionamento do ensino.

REFERÊNCIAS BEAUGRANDE, R.; DRESSLER, W. U. Introduction to text linguistics. Londres, New York: Longman, 1981. BRASIL. Decreto n. 68.908, de 13 jul. 1971. Dispõe sobre concurso vestibular para admissão aos cursos superiores de graduação. Diário Oficial da União, col. 2, p. 5.413, 14 jul.1971. ______. Decreto n. 79.298, de 24 fev. 1977. Altera o Decreto n. 68.908, de 13 jul. 1971, e dá outra providência. Diário Oficial da União, col. 3, p.2.228, 25 fev.1977. ______. Lei de diretrizes e bases da educação nacional, Lei nº 5692/71, de 11 de agosto de 1971. BUNZEN, C. Da era da composição à era dos gêneros: o ensino de produção de texto no ensino médio. In: BUNZEN, C.; MENDONÇA, M. (orgs.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. KOCH, I. G. V.; TRAVAGLIA, L. C. A coerência textual. 12. ed. São Paulo: Contexto, 2001. KOCH, I. G. V. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez, 2002. ______; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. PAVANI, C. F.; KÖCHE, V. S. Redação de vestibular: um gênero discursivo heterogêneo. Caderno Seminal Digital. Rio de Janeiro, v. 5, n. 5, p. 110-130, jan./jun. 2006. Semestral. ISSN 1806-9142. Disponível em: http://www.dialogarts.uerj.br/arquivos/seminaldigital2006.1.pdf#page=110 Acesso em: 12/12/2009. REINALDO, M. A. G. de M. A orientação para produção de texto. In: DIONÍSIO, Â. P.; BEZERRA, M. A. (ogs.). O livro didático de Português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna, 2001. RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a abordagem de Bakhtin. In: MEURER, J. L.; BONINI, A.; MOTTA-ROTH, D. (orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates. São Paulo: Parábola Editorial, 2005.

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Resumo O trabalho realizado com a literatura possibilita diversas abordagens metodológicas que podem contribuir com a utilização de textos literários em sala de aula. Tendo em vista tal perspectiva, este trabalho visa desenvolver uma reflexão e discursão acerca da literatura adeliana, principalmente no que se refere aos textos que retratam a condição da mulher. O objetivo concentra-se em apresentar aos alunos a imagem da mulher e a posição da mesma dentro da sociedade patriarcal, tendo como base a leitura de dois poemas de Adélia Prado que retratam essa temática. Pretende-se também criar um blog para que se possam divulgar as atividades realizadas pelos alunos, expondo os trabalhos que serão construídos através das discursões promovidas na sala de aula. A fundamentação teórica será proveniente das reflexões trazidas por Hohlfeldt (2000) que discorre sobre aspectos referentes à condição da mulher; Muszkat(1985) que destaca a identidade feminina; e Barros e Buarque (2012) que abordam a desestabilização da leitura de poesia. Palavras-chave: Literatura; mulher; leitura.


Reflexão acerca da literatura adeliana: representação da mulher e utilização das mídias digitais Laysa Cavalcante Costa1 José Hélder Pinheiro Alves (Orientador)

INTRODUÇÃO O foco central do trabalho concentra-se na reflexão desenvolvida a partir de dois poemas de Adélia Prado: Grande desejo e Gênero, nos quais se observa uma forte representação do feminino. A autora oferece uma perspectiva abrangente acerca da condição e posição da mulher na sociedade patriarcal, permitindo que os leitores se projetem para novas possibilidades de interpretação que possa conduzir a análise a uma observação quanto à recepção dos alunos após as leituras. O objetivo desse trabalho é desenvolver um posicionamento crítico nos alunos, para que esses tenham a sensibilidade de discutir temas tão presentes na sociedade, após a leitura dos poemas os alunos poderão se colocar em determinadas situações e terão a oportunidade de expor suas opiniões acerca dos poemas adelianos, apontando para aspectos não apenas temáticos, mas linguísticos e estilísticos. Por muitos anos a literatura feminina não foi reconhecida como deveria. Zolin (2003) observa que foi preciso romper barreiras para que a mulher se inserisse no universo da literatura, para tanto teve que vencer as ideologias já estabelecidas e os preconceitos já enraizados na sociedade. Adélia Prado foi uma dessas autoras que buscou mostrar o seu trabalho e sua contribuição para a literatura brasileira. Seus textos são carregados de contradições e emoções que acabam por serem vivenciadas no dia a dia, é dessa maneira que a autora demonstra uma procura da mulher por um “lugar no mundo”, um lugar ocupado apenas por ela.

1. Mestranda da Universidade Federal de Campina Grande. 487


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Tendo em vista essas reflexões acerca da mulher, o presente trabalho também se prontifica em refletir sobre a condição da mulher dentro da sociedade, destacando a importância de discutir com os alunos acerca dessa temática. Também é de fundamental importância discorrer sobre teorias que abordem o trabalho com poesia, tendo em vista que através desses conhecimentos teremos subsídios para prolongar as discussões e refletir acerca do papel que a poesia acaba tendo dentro do universo escolar. Enfim, após desenvolver diferentes atividades com os alunos e reconhecer que estes adquiriram certo conhecimento sobre a poesia adeliana e sobre a importância da mesma para se discutir assuntos constantes na realidade dos indivíduos, a última etapa desse processo será a criação de um blog, que tenha a finalidade de expor não apenas as atividades que serão desenvolvidas em sala de aula como também a opinião dos alunos acerca da temática abordada, eles terão liberdade para expor o que pensam e o que vivem, espera-se que possam ter um “Momento Adélia”.

Fundamentação Teórica É de fundamental importância se pensar no valor que o trabalho com poesia acaba adquirindo em sala de aula. Quando o professor se propõe a desenvolver uma atividade que tenha como objetivo refletir e estudar o texto poético a riqueza que esse trabalho pode suscitar é indiscutivelmente engrandecedor. E é nessa perspectiva que devemos observar como a poesia é retratada, qual a sua importância e relevância para os indivíduos. Bosi (2000) coloca que “o trabalho poético é ás vezes acusado de ignorar ou suspender a práxis”, após essa afirmação o mesmo reconhece: Na verdade, é uma suspensão momentânea e, bem pesadas as coisas, uma suspensão aparente. Projetando na consciência do leitor imagens do mundo e do homem muito mais vivas e reais do que as forjadas pelas ideologias, o poema acende o desejo de uma outra existência, mais livre e mais bela. (p.227)

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O autor é enfático ao expor a capacidade que a poesia tem de fazer com que o leitor transcenda barreiras ideológicas e ideias padronizadas para que deste modo encontre-se suspenso em outro espaço que não é aquele estabelecido por um sistema de regras. É o sujeito se aproximando de si mesmo e dos outros através da poesia. É a partir dessa reflexão que se pode perceber que a poesia está sim inserida na realidade dos indivíduos, pois é através dessa realidade que a poesia se faz viva. Mukarovsky (1988) afirma que “a denominação poética não é determinada prioritariamente pela sua relação com a realidade que a menciona, mas sim pela forma como se insere no contexto.” Portanto, a linguagem poética passa a adquirir diversas funções, não apenas uma voltada para o valor estético. Barros e Buarque (2013) expressam uma opinião contundente acerca de estudo com o poema, afirmam que: Um poema, para bem ou para mal, é sempre um poema, passem quantos séculos passarem. Isso, de imediato põe em cena que ele não é um objeto útil. Notícias de jornal, por exemplo, passado um tempo, tornam-se documentos, coisa que os poemas também se tornam, mas sem deixar de ser poemas. (p.80)

Desse modo percebe-se o quão é necessário encararmos o poema como objeto vivo, que apesar da resistência dos indivíduos para com sua compreensão é fundamental encontrarmos funções tão importantes quanto aquelas observadas em outros gêneros, contudo o poema tem suas peculiaridades e uma delas está na maneira como se construí e se expressa. Ainda nessa perspectiva sobre a relevância da poesia. Tem-se as contribuições de Valéry (1991) que aponta para o fato da poesia conseguir imortalizar a palavra quando cita” a palavra dita se transforma em impulsos, ganha vida”, imagina-se que a poesia manifesta-se através da linguagem e por isso está pulsante. O autor agrega alguns elementos para compor essa poesia, reflete dizendo: [...] entre todas as artes , a nossa é talvez a que coordena o máximo de partes ou de fatores independentes: o som, o sentido, o real e o imaginário, a 489


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lógica, a sintaxe e a dupla invenção do conteúdo e da forma...e tudo isso por intermédio desse meio essencialmente prático, perpetuamente alterado, profanado, desempenhando todos os ofícios, a linguagem comum, da qual devemos tirar uma Voz pura, ideal, capaz de comunicar sem fraquezas, sem aparente esforço, uma ideia de algum eu maravilhosamente superior a Mim. (p.218)

Proposta de intervenção Quanto à execução desse trabalho, a proposta se desenvolverá partindo da ampliação do conhecimento dos alunos acerca do gênero textual poema; leitura dos poemas adelianos; discussão e reflexão acerca da temática presente nos poemas e por fim a criação de um blog, com o intuito de provocar debates sobre os textos lidos em sala de aula e a partir disso expor as atividades dos alunos referentes a temática abordada. A internet nesse contexto tem grande importância, pois vai ser a partir desse instrumento que os alunos poderão expressar opiniões que muitas vezes ficam esquecidas no contexto da sala de aula, isso porque os alunos nem sempre se sentem a vontade para se colocarem diante da turma ou do professor. Marcushi (2005) afirma que: (...) parte do sucesso da nova tecnologia deve-se ao fato de reunir num só meio várias formas de expressão, tais como texto, com e imagem, o que lhe dá maleabilidade para incorporação simultânea de múltiplas semioses, interferindo na natureza dos recursos linguísticos utilizados. (p.13)

Percebe-se a diversidade de funções que o espaço cibernético acaba proporcionando, dando a oportunidade do aluno usar a criatividade através dos elementos presentes nesse contexto. Farias (2012, p.88) também reforça a função da internet expondo que “a internet é um ambiente predominantemente interativo. As práticas sociais aí desenvolvidas ocorrem através de gêneros que surgiram a partir de gêneros pré-existentes no ambiente não virtual.” Segundo a autora o meio irá determinar outras formas de 490


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interação que mudarão dependendo das necessidades comunicativas dos indivíduos. Portanto a internet possibilita essa gama de atividades comunicativas sem que se perca o mais importante e essencial do trabalho realizado com os textos. Após percebermos a relevância da internet para construção das atividades pretendidas, é importante destacar a análise que deve ser realizada dos contos escolhidos, o primeiro é o poema “Grande Desejo” no qual podemos atentar para alguns aspectos linguísticos, estilísticos e temáticos. Observemos o poema: Grande desejo Adélia Prado Não sou matrona, mãe dos Gracos, Cornélia, sou mulher do povo, mãe de filhos, Adélia. Faço comida e como. Aos domingos bato o osso no prato pra chamar cachorro e atiro os restos. Quando dói, grito ai. quando é bom, fico bruta, as sensibilidades sem governo. Mas tenho meus prantos, claridades atrás do meu estômago humilde e fortíssima voz pra cânticos de festa. Quando escrever o livro com o meu nome e o nome que eu vou pôr nele, vou com ele a uma igreja, a uma lápide, a um descampado, para chorar, chorar, e chorar, requintada e esquisita como uma dama.

Pode-se observar a presença de verbos em primeira pessoa observados em praticamente todos os versos, significando a presentificação determinante do eulírico. Tem-se também a presença das antíteses presentes nos dois primeiros versos e no último. A constância da conjunção aditiva em alguns versos, dando a ideia de continuidade das ações. Percebe-se o verbo “ser” sendo enfatizado pela a repetição

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do mesmo demonstrando uma autoafirmação de ser mulher. Alguns elementos que indicam tempo como “Quando” e “Aos domingos”. A presença de gradações como “ ...vou como ele a uma igreja, a uma lápide, a um descampado.” Todos os elementos linguísticos e rítmicos unem-se para construção da poesia adeliana, tais elementos estão estrategicamente dispersos. O eu-lírico assume uma postura de mulher comum, dona de casa, mas que não nega o plano da condição humana. Exposição de momentos corriqueiros que tornam-se momentos poéticos devido a naturalidade e espontaneidade com que a mulher expressa seus sentimentos e suas vivencias. As palavras e expressões parecem muitas vezes estarem desconectadas como se as situações fossem perpassando e o eu lírico fosse expondo-as de maneira pouco organizada. O jogo de imagens tem a função de construir e produzir o poema. A união de pedações de pensamentos, descrições, conversas, observações do cotidiano convergem para uma perfeita deserarquisação dos elementos do poema. Hohlfeldt (2000, p.114) esclarece que o discurso adeliano constitui-se inédito, pois “o prazer da revelação não se circunscreve à personagem, mas é plenamente repartido com seus leitores”, deste modo ele abre espaço para o leitor se identificar com seus textos e com a veracidade que eles apresentam. Soares (1999, p.142)) aborda que os textos adelianos, retratam que a escrita “é isenta de radicalizações, seus textos acenam com um caminho de integração possível entre homem e mulher, o da consumação do erotismo que, sendo sempre sagrado, permite uma nova relação com o corpo e com o prazer.” Percebe-se essa presença frequente do erotismo, porém visto com um olhar desnudo de parâmetros já estabelecidos. O segundo poema analisado é “Gênero”, observemos o poema: Gênero Adélia Prado Desde um tempo antigo até hoje, quando um homem segura minha mão, saltam suas lembranças guarnecendo a secreta alegria do meu sangue: 492


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a bacia da mulher é mais larga que a do homem, em função da maternidade. O Osvaldo Bonitão está pulando o muro de dona Gleides. A primeira, eu tirei de um livro de anatomia, a segunda, de um cochicho de Maria Vilma. Oh! Por tão pouco incentiva-me? Eu sou feia de palha, mulher que os gregos desprezariam? Eu sou de barro e oca. Eu sou barroca.

Constata-se que os aspectos estilísticos são iguais àqueles apresentados no primeiro poema, como dispersão dos acontecimentos, a deserarquisação dos elementos do poema que irão constituir o significado do mesmo. Observa-se no texto a forte representação do corpo nos primeiros versos, em que um simples gesto é capaz de fomentar lembranças profundas e intensas. Fica evidente a diferença entre os “gêneros”, pois a impressão que se apresenta é de uma mulher sensível, porém biologicamente forte e um homem galanteador com outros atributos que não estes tidos pelas mulheres, mais uma vez a mulher tenta se autoafirmar apontado para o que ela é “Eu sou feia de palha” “Eu sou de barro e oca”, “Eu sou barroca”, a presentificação evidenciada através do verbo ser. Segundo Muszkat (1985) a poesia adeliana repensa a ideia da identidade da mulher, não como uma cópia às avessas do processo do homem, mas como uma experiência especifica e própria à condição de ser mulher. Soares (1999, p. 141) ainda ressalva essa ideia do erotismo adeliano afirmando que “a linguagem adeliana libera a sexualidade feminina dos preconceitos e dos falsos pudores, reunidos a inocência (que afasta o sexo da ideia de pecado e punição) e a oferta (que o afasta da vergonha e dos recalques, componentes dos valores condicionantes).” Há, portanto uma mulher confiante e bem resolvida quanto a sua atuação erótica, essas imagens se dão através das contradições e analogias que permeiam o poema. 493


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As análises dos poemas serão realizadas em sala de aula em uma turma do 3º ano do Ensino Médio, tempo estimado para a realização dessas atividades é oito aulas, em que discutiremos os textos, os alunos a partir das discussões poderão escrever suas opiniões no blog, e as atualizações serão realizadas pelos próprios alunos através dos comentários e novos posicionamentos que serão agregados. Serão utilizados os textos impressos e também os textos vistos na internet. O trabalho poderá ter grande relevância a partir da presença dos alunos das discussões que serão realizadas em sala de aula e depois intensificadas a através dos textos elaborados por eles no blog.

Considerações finais O propósito deste trabalho foi desenvolver uma proposta de aula interativa com os alunos do Ensino Médio, para que esses tenham a oportunidade de observar o texto literário com outros olhos. É viável buscar outras maneiras de chamar atenção desses indivíduos, promovendo a interação entre os alunos e o professor através de um veiculo que possibilita uma liberdade de expressão talvez maior do que aquela já estabelecida em sala de aula. Observou-se nesse artigo a contribuição de alguns autores quanto à importância de trabalhar com o texto poético, tendo vista que o poema agrega aspectos linguísticos, estilísticos e temáticos que convergem em riqueza literária. A partir desses pressupostos detectou-se que seria viável uma intervenção que buscasse aliar os textos literários as mídias digitais. O que se deseja a partir dessa ligação é enriquecer o trabalho em sala de aula, apontando para uma aula dinâmica que promova a construção de conhecimentos diversos. A proposta não se volta apenas por uma análise dos poemas e consequentemente a elaboração de atividades, mas também para obtenção de um senso critico que seja capaz de indagar sobre temas presentes na realidade dos indivíduos. A temática sugerida através dessas leituras volta-se para a condição da mulher dentro da sociedade. Uma sociedade que mesmo passando por diversas transformações

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ainda é regida por um modelo patriarcal. Busca-se provocar discussões que coloquem em pauta as divergências entre homens e mulheres e as possíveis implicações que trazem essas relações. Os textos adelianos expõem situações corriqueiras e acontecimentos convencionais que fazem parte da vida de qualquer pessoa, é nesse ponto que o trabalho adquiri força, pois imagina-se que os alunos terão a oportunidade de expressar e descrever aspectos de suas vidas que para eles pusessem ser vistos como banais, mas que através das leituras e discussões acontecimentos convencionais podem se tornar incríveis acontecimentos ou porque não se transformarem em pura poesia.

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Resumo Analisaremos o conto “A Linha Invisível” extraído do livro Onde a Noite se Acaba (1946) do escritor português José Rodrigues Miguéis, história que narra as tensões de Aurélio, um homem que vive um grande conflito interno numa época de grandes conflitos em seu país. A análise do tipo “sociológica” que empreenderemos não se limitará aos reducionismos usuais que, por vezes, os analistas se deixam levar, mas procuraremos perceber como os elementos extraliterários, provenientes da realidade empírica (ou do que dela temos acesso), se reconfiguram internamente na obra literária. Ou ainda como certos valores disseminados na sociedade da época atuam na forma discursiva do texto. Para tanto, iremos nos apoiar na contribuição teórica de Auerbach (1997; 2009), pensando particularmente em seu método de interpretação figural e em seu conceito de mímesis; assim como, de forma subsidiária, na contribuição teória de White (2005), Lima (2007), Said (2007) e Figueiredo (2012). Palavras-chave: Representação Social; Mímesis; Narrativa de Ficção.


Representação Social, Mímesis e Interpretação Figural: perspectivas para uma análise em “A Linha Invisível” Hugo Lopes e Silva1

Discussão preliminar: perspectiva para uma análise sociológica do discurso literário Pode parecer óbvio o tipo de abordagem que será empreendida quando se fala em análise sociológica da literatura, já que se costuma supor que tal enfoque analítico diz respeito à problemática relativa ao estudo da literatura e sua relação com a realidade empírica, pensando-se no objeto literário como um resultado da sociedade que o gerou. O texto literário é então visto como um documento que carrega um significado natural, como se a literatura fosse um epifenômeno de sua conjuntura histórica. Contudo, como aponta Lima (1983, p.105), este tipo de postura recai num reducionismo sociologizante, onde o analista acaba por não possuir uma noção específica de seu objeto, condicionando a sua análise aos aspectos sociais que por ventura lhe sejam mais aprazíveis. Não queremos dizer, deste modo, que na relação sociedade e literatura, a primeira não interfira na segunda, porém tal ligação não se estabelece por uma uniformidade entre as partes, como diz Zérrafa (apud LIMA, 1983, p. 108): “O paradoxo do romance é o de toda obra de arte: ela é irredutível a uma realidade que entretanto traduz”. Outro teórico que também reflete sobre essa relação entre o contexto social e a realização textual é Candido (2010) que, no primeiro capítulo de seu livro

1. Licenciado em Letras pela Universidade de Pernambuco (UPE), é Mestrando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) sendo bolsista pelo CNPq. É membro do Grupo de Investigações em Filologia Ibérica. E-mail: hugolopess@gmail.com. 497


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Literatura e Sociedade, observa a existência de duas tendências valorativas adotadas pela crítica literária: a que julgavam a obra por ela conseguir ou não exprimir determinada feição da realidade; ou a que a avaliavam pela peculiaridade de suas operações formais, engendrando, assim, em um reducionismo formalizante. Ambas as posturas pecam ao não se considerarem mutuamente, isto é, ao não atuarem em conjunto numa análise crítica, condição que Candido ressalta ser indispensável para integridade da obra, pois os elementos do contexto social passam a ser vistos formalmente na organização interna do texto: Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não no ilustrativo. [ ] Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história sociologicamente orientada para chegar a uma interpretação estética que assimilou a dimensão social como fator de arte. (CANDIDO, 2010, p. 16-17).

Daí podemos inferir a distinção feita por Lima (1983, p. 110) entre sociologia da literatura e análise sociológica do discurso literário, cabendo então à primeira – como função mais propriamente do historiador e do sociólogo – tomar o texto literário como documento, como ilustração do que se passou numa determinada época; já à segunda – como função do crítico – cabe perceber como os aspectos sociais se instalam na tessitura textual, sendo a apreciação sociológica deixada em um outro plano, pois o que importa, sobretudo, não é entender até que ponto a realidade faz parte do texto mas, como natural da ficcionalidade, perceber até que ponto o texto reelabora a realidade. Quem melhor discorre sobre os aspectos procedimentais de construção do texto ficcional e sua relação com a realidade é Iser (2002), que em seu ensaio “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”, fruto de uma comunicação 498


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apresentada em Munique em 1979, põe em discussão a noção que distinguiria os textos literários dos textos não literários, sendo os primeiros identificados usualmente por serem de natureza ficcional. O autor, em sua exposição, deixa claro que tal distinção, baseada na relação opositiva entre ficção e realidade, não se sustenta, usando como exemplo para justificar a sua proposta a dúvida que perturbava a teoria do conhecimento no início da idade moderna: “como pode existir algo que, embora existente, não possui o caráter de realidade?” (ISER in LIMA, 2002, p. 958). Iser releva que a ficção não é isenta de realidade, não possuindo uma finalidade fechada em si mesma, mas atuando em função de um imaginário. Assim, a relação dupla (realidade-ficção) é substituída por uma relação triádica, na qual o vínculo entre o real, o fictício e o imaginário passa a particularizar os “atos de fingir”. Estes são caracterizados, pelo autor, como transgressões de limites, pois ultrapassam a realidade extraliterária atribuindo ao real (social) – inserido no ficcional – finalidades não correspondentes à realidade da qual foi retirado, isto é, o real assume outra feição na construção textual. Iser ressalta ainda, que “como produto de um autor, cada texto literário é uma forma de tematização do mundo” (ISER in LIMA, 2002, p. 960). E então, de forma detalhada enumera e explica os atos de fingir que decorrem da configuração do texto literário. A “seleção” – primeiro ato – funciona como o procedimento que elencaria do real os campos de referência para a composição da obra, os elementos selecionados acabam por se confundir com a própria realidade, sendo a parir das realidades e sistemas inclusos no texto que poderíamos apreender a intencionalidade textual, pois como observa o autor, a intencionalidade autoral é intangível: A seleção é um ato de fingir, na medida em que por ela se assinalam os campos de referência do texto, com a finalidade de serem transgredidos. Origina-se assim a intencionalidade do texto, cuja característica consiste em nem ser uma qualidade dos sistemas referência em que interveio, nem tampouco em materializar o imaginário como tal, porquanto possui uma determinação que não resulta dos sistemas a que se refere. [ ] 499


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Como ato de fingir, a seleção encontra sua correspondência intratextual na combinação. (ISER in LIMA, 2002, p. 963)

A combinação – segundo ato de fingir– também se caracterizaria por ser uma transgressão de limites, é ela a responsável pela reorganização intratextual dos elementos selecionados, procedimento que, quando executado, apaga o vínculo destes com a referencialidade de onde foram extraídos, por esta razão que os campos de referência inclusos no texto ficcional perdem o seu significado exterior e adquirem um novo instaurado pelo próprio texto. O terceiro e último ato é o autodesnudamento da ficcionalidade, por ele, o texto literário ficcional se revela como tal, isto é, o texto em si não quer ser tomado pela ideia de “verdadeiro” ou “falso”, nem tampouco tem a intenção de que sua substância seja lida como um discurso que trate da realidade/verdade, mas quer ser visto somente como realmente é: ficcional. O texto literário trata de um mundo representado como se fosse o real, apresentando não um caráter designativo, mas sim um caráter remissivo diante do objeto que representa, é a dimensão do “como se” que suspende a realidade. Assim, a execução dos atos de fingir propicia a conhecida desrealização do real e a realização do imaginário, isto é, a realidade é neutralizada para que o imaginário se efetue (Cf. Iser in Lima, 2002). Todas as considerações deliberadas até agora são de fundamental importância para a análise que se pretende realizar, pois tendo como norte o que diz Candido (2010, p.10), no prefácio à terceira edição de seu livro: “[...] me convenço cada vez mais que só através do estudo formal é possível apreender convenientemente os aspectos sociais”, analisaremos o conto “A Linha Invisível” extraído do livro Onde a Noite se Acaba (1946) do escritor português José Rodrigues Miguéis, história que narra as tensões de Aurélio, um homem que vive um grande conflito interno numa época de grandes conflitos em seu país. A análise do tipo “sociológica” que empreenderemos não se limitará aos reducionismos usuais que, por vezes, os analistas se deixam levar, mas procuraremos perceber como os elementos extraliterários, provenientes da realidade empírica (ou do que dela

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temos acesso), se reconfiguram internamente na obra literária. Ou ainda como certos valores disseminados na sociedade da época atuam na forma discursiva do texto, pois a literatura nada mais é que uma resposta a uma pergunta feita pela sociedade, resposta que pode ser transgressora, ou pode simplesmente duplicar a ideologia da qual faz parte. Para tanto, iremos nos apoiar na contribuição teórica de Auerbach (1997; 2009), pensando particularmente em seu método de interpretação figural e em seu conceito de mímesis; assim como, de forma subsidiária, na contribuição teória de White (2005), Lima (2007), Said (2007) e Figueiredo (2012). Por esta razão, antes de nos aprofundarmos na análise do conto deste escritor ibérico, se fará necessária uma discussão mais ampla destes conceitos que permearão a metodologia empregada.

Mímesis e Interpretação Figural: Caminhos Metodológicos O método de análise utilizado por Auerbach em seu livro Mimesis serviu de base para as pesquisas que se desenvolveram posteriormente à publicação deste seu estudo; todos os capítulos que compõe o livro preservam o estilo ensaístico de crítica e sempre começam com uma citação da obra a ser estudada seguida de uma tradução a partir das quais se desdobram uma detalhada explicação do texto, que procura interpretar relações entre a obra e mundo a que pertencem. Contudo, para entendermos o processo empreendido por Auerbach precisaremos voltar um pouco. Em seu livro Figura (1997), ele desenvolve um estudo que remonta a mais antiga ocorrência do termo que dá título a sua obra. Não nos cabe resgatar, por certo, toda a evolução significativa de “figura” exposta pelo autor. No entanto, cumpre dizer que, em linhas gerais, passando de Terêncio a Quintiliano e chegando à profecia fenomenal dos padres da igreja, Auerbach observa que em Tertuliano “figura” indica a representação concreta de algo que vai se realizar no futuro, esta concepção se torna fundamental para uma compreensão mais

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ampla do seu estudo desenvolvido em Mímesis (2009), como veremos adiante. Deste modo, “figura” se configuraria como algo real e histórico que anunciaria outra coisa também real e histórica, sendo esta a hermenêutica que instituiria a relação entre duas realidades. Para fins ilustrativos, teríamos nos moldes dessa interpretação Moisés como figura de Jesus, Esaú e Jacó como figuras dos povos judeus e cristãos, os acontecimentos do Velho Testamento como prefigurações do Novo Testamento. “Figura” seria uma mimese da verdade, um meio termo entre historia ou littera e veritas: “[...] figura é o próprio significado literal ou acontecimento referido ao preenchimento nele oculto, e este preenchimento é veritas de modo que figura torna-se o termo do meio entre littera-historia e veritas” (AUERBACH, 1997, p. 41). Uma vez que este não fora o único termo latino usado como prefiguração histórica – Tertuliano usa allegoria quase como sinônimo de figura –, cabe ressaltar a distinção entre estes dois conceitos. O primeiro está inserido num plano intangível onde não há a possibilidade de se fazer uma inserção histórica; o segundo é uma realização inscrita historicamente, preenchida também historicamente, estabelecendo entre os dois eventos sempre uma relação de promessa e cumprimento, de modo que não é possível se pensar em Adão, por exemplo, como alegoria de Cristo, pois assim a relação não seria historicizada. Não é sem razão que White (2005) procura investigar o conceito de história literária elaborado no trabalho de Auerbach. Segundo o historiador norte-americano, Mímesis apresenta a história da literatura ocidental como um processo figural: “A história da literatura ocidental mostra uma consciência cada vez mais plena do projeto único da literatura ocidental, que não é outro que a ‘consumação’ de sua única ‘promessa’ de representar a realidade realisticamente” (WHITE, 2005, p. 303). Logo, a literatura ocidental seria o cumprimento dessa promessa de representar a realidade realisticamente, representação esta que se dá não enquanto modo de produção composicional, mas que se adéqua a formulação teórica de Vico (apud SAID, 2007, p. 117) de “coerência histórica”, na qual uma realidade se constrói como se consistisse numa natureza humana modulada historicamente em que cada período específico partilha certas características que lhes eram co-

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muns e apropriadas para o seu surgimento, ou seja, cada momento histórico vai fornecer uma forma realista particular em coadunação com o mundo no qual foi criado. Auerbach colheu de Vico, como aponta Lima (2007, p. 732) em seu ensaio “Auerbach: História e Meta-História”, certa fundamentação epistemológica que fixava “o tratamento da forma como signo de um tempo a ser reconstituído, face a seu próprio tempo; fundamentação que ainda incluía uma dimensão ética”. [assim resgatando a noção de realidade desenvolvida por Monteiro associada concepção da mímesis enquanto representação social: Desse modo, no conto “A Linha Invisível”, poderemos perceber, nos embasando também no discurso historiográfico, a reconstituição de um tempo resignificado pelas operações artísticas formais. E é exatamente isto que podemos perceber no exame que Auerbach faz em Mímesis (2009). Em seu primeiro capítulo, “A cicatriz de Ulisses” – em que compara a passagem da cicatriz de Ulisses, presente no canto XIX da Odisseia com o relato do sacrifício de Isaac no Velho testamento – já se nota o tom que vai perpassar toda a obra, pois a ideia defendia pelo autor – que funciona como ponto de partida para todos os outros dezenove ensaios que compõe o livro – é a de que os dois textos apresentam modos distintos de representação, sempre respaldados na concepção do real elegidos por cada mundo em particular. Auerbach observa que o poema homérico apresenta uma estrutura sensorial, linguística e sintática mais elaborada. À medida que acompanhamos o desenrolar-se dessa passagem do poema não nos questionamos a respeito de sua verdade histórica, pois o discurso é envolvente e cria um mundo que existe por si mesmo, não havendo nenhum conteúdo senão ele próprio, sendo o leitor ou ouvinte introduzido nesse mundo, sem sentidos ocultos, o que nos permite, em certo sentido, analisar Homero, mas não interpretá-lo (Cf. AUERBACH, 2009). Já o relato bíblico é mais exigente, pois não apenas requer interpretação, como também requer que suplantemos a nossa realidade, inserindo-nos naquele mundo, participando de sua estrutura histórico-universal, que se pretende verdade absoluta. Assim, seguindo as considerações de Figueiredo (2012, p. 48), no que

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concerne à construção de ambas as narrativas: na Bíblia a intenção é prover uma história de cunho universal, uma vez que começa com o princípio dos tempos e quer acabar com o fim dos tempos, sendo, por esta razão, a representação do homem no relato bíblico apresentado de forma problemática; diferentemente, no texto homérico, por mais que não se rejeite a realidade, seu discurso permanece cativo ao mítico e ao lendário. Outro ponto observado por Auerbach em sua analise, diz respeito à indistinção, no relato bíblico, da representação séria e trágica a todos os homens, independente da classe social que ocupem. Nas epopeias homéricas somente os heróis (indivíduos elevados) são representados dessa forma. Por esta razão o romanista berlinense classifica a representação do texto grego como de primeiro plano devido ao fato dos personagens da narrativa homérica agirem unicamente em função de seu caráter: É como se, na Odisseia, os eventos estivessem aprisionados no presente, enquanto, no relato bíblico, uma tensão contínua em direção a um destino prometido, mas desconhecido, problematizasse o entrelaçamento entre passado, presente e futuro. Essa relação de adequação entre o caráter do personagem e o seu destino é o que Lima (1986, p. 415) identifica como mímesis em Auerbach. Fora do mundo cristão antigo e medieval, a adequação do caráter ao destino é, sem dúvida, o que o filólogo trata por mímesis. Contudo, argumenta-se que ela parece mais derivação da noção de ‘figura’ do que o contrário. (FIGUEREDO, 2012, p. 48)

Por esta razão que Auerbach considera o Realismo do século dezenove como o ápice da representação da realidade, pois com o “realismo moderno sério” de Stendhal e o “realismo atmosférico” de Balzac se concretizam em grau mais elevado a adequação do destino ao caráter do personagem, uma vez que as personagens, de certo modo, se adéquam à conjuntura da qual fazem parte. E este processo representacional em maior ou menor grau acaba sendo constatado em toda a literatura ocidental, ou pelo menos nas obras elencadas por Auerbach para a composição de seu livro. Assim, White (2005, p. 308) sugere que Mimesis não 504


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é só uma história de um tipo específico de representação literária, mas também uma história concebida como uma sequência de figuras e consumações, uma cadeia de representações interligadas de promessas e cumprimentos, onde o texto se apresenta como preenchimento do contexto. Seguindo então o método de análise auerbachiano, assim como o seu conceito de mímesis, que se respalda na identificação da semelhança e na ideia que o teórico desenvolve de figura, e pensando mais particularmente nos expedientes usados em um texto literário para a representação de uma realidade; [o realismo de que trata este estudo não é o realismo ingênuo que Hamburguer se refere logo nas primerias linhas de seu A lógica da criação literária...] a leitura que propomos – guiada por um percurso teórico que não despreza o fator social, mas que também não o exalta como elemento determinante de uma obra – sela uma das noções de representação mimética que se apoiam na identificação, pelo receptor, das representações sociais que alimentam a mímesis, pois “o receptor nela descobre uma semelhança (com suas representações), que não pertence imanentemente a obra” (LIMA, 1981, p. 232).

Conflitos Internos e Externos na Revolução Republicana: “A Linha Invisível” O livro Onde a Noite se Acaba, do qual foi extraído o conto de nossa análise, veio a lume quando estava, o seu autor, num exílio norte-americano, devido ao momento político vivido em seu país. Sobre os contos e as novelas enfeixadas no volume, confessa o autor em sua carta-prefácio: “Algumas destas histórias têm, por certo, um mórbido sabor, flutuam num mundo de íncubos e sombras. Mas era mórbida, já o disse, doentia e sem esperança, a atmosfera desses anos portugueses. Respirava-se ilusão gorada, sonho putrefato. (MIGUÉIS, 1946, p. 14-15). Observa-se daí que os contos que compõem essa obra vinculam-se a situações contundentes da história de Portugal, fato este que pode ser constatado em algumas das obras do autor em questão.

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Como já mencionado, a história relata os conflitos internos vividos pelo jovem Aurélio, conflitos que se ligam, como poderemos perceber, às tensões resultantes da Revolução Republicana de 1910 (também retratada ficcionalmente num marcante romance do autor, intitulado A Escola do Paraíso; MIGUÉIS, 1982). Quando pequeno a mãe de Aurélio costumava colocá-lo de castigo amarrado por uma linha de coser branca à perna de uma mesa, esta linha por sua vez passa a ser a metáfora de sua vida. Então, nos utilizando da classificação auerbachiana, podemos dizer, desde já, que o conto “A Linha Invisível” configura-se no que teórico chama de “realismo moderno sério”, sobretudo pela possibilidade da detecção das relações entre as personagens representadas e as circunstâncias da época, como, p. ex., no momento em que Aurélio chama a velha Joana para lhe prestar alguma assistência diante de sua angústia. O tratamento impositivo que a ela se dirige – considerando-se, particularmente, que a humilde mulher auxiliara na criação de Aurélio desde que este era pequeno – seria chocante se o feitio histórico não estivesse implícito. “Cala essa boca! Sabes lá o que estás a dizer.” e “Sabes tu quanta riqueza representa uma vida?” (MIGUÉIS, 1946, p. 120) são as palavras do tenso jovem. Seguindo a mesma linha circunstancial, quando Aurélio revela sentimentos por uma empregada da casa: Na sua indolência, pusera-se a sonhar em segredo com Albertina, a criadinha, a quem a velha Joana fazia guarda. Mais de uma vez, à mesa, a surpreendera a olhá-lo intensamente, uns lindos olhos pardos, redondos. Mas quê, nem fitá-la ousava diante da família. Uma criada! (MIGUÉIS, 1946, p. 109.)

Auerbach (2007, p. 407) usa essa classificação – “realismo moderno sério” – ao analisar a obra O Vermelho e o Negro de Stendhal, destacando uma conversa do herói do romance com o abade: Julien Sorel revela para o abade o seu profundo enfado ao ter que sentar à mesa todos os dias com os seus senhores, chegando a afirmar que no seminário se aborrecia menos. O teórico alemão observa que o enfado não 506


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é oriundo da estupidez ou falta de instrução das pessoas que se encontram à mesa, já que algumas delas eram até bastante espirituosas e interessantes. O enfado à mesa dos salões provém, na verdade, das circunstâncias políticas e sócio-históricas da Época da Restauração (momento que é tratado no livro). Seguindo esta mesma linha interpretativa e, tendo como suporte o discurso historiográfico de Marques (2000), será possível perceber como o momento histórico é reelaborado na estrutura interna do conto. Portugal, no final do século XIX e início do século XX, vivia uma situação de grande insatisfação diante do regime monárquico, e uma série de fatores (atraso industrial, dívida externa, baixas condições de vida, repressão à liberdade, etc.) fez insurgir no país o desejo de mudança, mudança que ganhou voz com fundação do Partido Republicano. Citaremos uma breve passagem do diz Marques sobre o período em questão: O Partido Republicano desenvolver-se-ia na razão direta do desalento público e da propaganda do moderno saber, trazido na fecunda corrente europeia. [...] Monarquia e monárquicos relegavam-se, pois, para o campo do obscurantismo, do passado pré-científico, do quase absolutismo, do não-europeu, do antinacional. Não se tratava de uma opção pluralista, mas de uma dicotomia entre progressismo e reacionarismo. (MARQUES, 2000, p. 289).

Cabe-nos entender desse processo de formação e mudança no cenário português a variedade, instabilidade e desajuste que caracterizaram as estruturas políticas e ideológicas que, basicamente, dividiam-se, por um lado, à tendência que presume o curso da história, no sentido de melhoria política e social (progressismo republicano); e por outro às condutas de retorno a situações políticas ultrapassadas (reacionarismo monárquico). Em coadunação com essa estrutura social e política, a história de Aurélio se desenvolve, não como reflexo, mas como processo remissivo. O personagem nos é apresentado como dividido em dois: “[...] o Aurélio que ansiava libertar-se e correr como o garraio, no ar puro da campina, e estoutro Aurélio escrupuloso, pálido filho-de-Maria, flácido como um balão 507


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vazio, amarrado por uma linha invisível a uma existência sorumbática e repressiva” (MIGUÉIS, 1946, p. 108). Seriam estes dois “Aurélio” uma resignificação das disputas político-ideológicas vividas pelo país ibérico? A tensão que existiu entre as duas ideologias, no período histórico em questão, parece ser reconfigurada na tessitura textual pela dicotomia do personagem principal, dando origem muitas vezes a ações contraditórias executadas pelo mesmo. Aurélio não se mobiliza diante das situações que lhe desagradam, em decorrência da linha metafórica que não ousa romper. A sua dualidade é mencionada, o seu conflito interno é apontado, mas é possível perceber tal conjuntura de maneira mais clara quando são expostos seus sentimentos. Num momento, a Revolução seria motivo para permanecer inerte, confortável e sem remorsos em sua vida habitual: “Aquilo ao menos era um acidente; um pretexto, uma razão de força-maior para estar ali, prêso, inactivo, sem remorsos”; noutro, quase que de imediato, a Revolução passa a ser um motivo que o conduziria à mudança: “Por isso desejaria que insurreição durasse, que a guerra-civil se desencadeasse com o seu cortejo de horrores [...] e o impelisse para a ação, para a aventura [...].” (MIGUÉIS, 1946, p.116). Podemos dizer, desse modo, que o conto de Miguéis reverbera, pelo seu personagem, os valores de uma época, e uma vez que arranjo social gerava incertezas e medos, o caráter do personagem, responde em harmonia ao seu ambiente social. Diz Rosenfeld (1987) a respeito da personagem de ficção: a [...] obra-de-arte literária (ficcional) é o lugar em que nos defrontamos com sêres humanos de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes, vivendo situações exemplares de um modo exemplar (exemplar tambem no sentido negativo). Como sêres humanos encontram-se integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-social e tomam determinadas atitudes em face dêsses valores. Muitas vêzes debatem-se com a necessidade de decidir-se em face da colisão de valores, passam por terríveis conflitos e enfrentam situações-limite em que se revelam aspectos essenciais da vida humana: aspectos trágicos, sublimes, demoníacos, grotescos ou

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luminosos. Estes aspectos profundos, muitas vêzes de ordem metafísica, incomunicáveis em tôda a sua plenitude através do conceito, revelam-se, como num momento de iluminação, na plena concreção do ser humano individual. (ROSENFELD, 1987, p. 46).

A confusão de sentimentos na qual Aurélio se encontra tem a sua origem no quadro por que se configura a cidade de Lisboa: “Que tragédias horríveis se desenrolavam talvez naquele silêncio de catacumba!” (MIGUÉIS, 1946, p. 114). A falta de notícias, o silêncio, o punha em grau tão elevado de reflexão sobre si mesmo que “sentia que lhe tremiam as pernas, que um suor frio lhe humedecia o cabelo, e uma vaga dor, um espasmo, lhe percorria as entranhas” (MIGUÉIS, 1946, p. 116). Sensações estas que parecem ser uma resignificação do processo causado pela mudança forçada de regime, movido à custa de uma revolução. O cenário com o qual Aurélio interage, por seu turno, insinua uma discordância entre a personagem e o espaço físico que a rodeia, acentuando, assim, o caráter de desajuste no qual ele está submerso, situação, que pode ser detectada na passagem em que o narrador expõe qual lhe parecer ser o ambiente ideal, em diferenciação ao espaço de que, efetivamente, dispõe: Um bom e vasto gabinete, com um divã para as leituras profundas e esquecidas, para os sonos pesados, que seguem às rudes batalhas do pensamento. Duas fundas poltronas (talvez uma bastasse), uma larga e nua mesa de trabalho, estantes sóbrias e baixas, tons velados, cores discretas, luz suavemente esparsa, ou concentrada num recanto: ambiente moderno para um trabalho moderno! [...] Mas assim era-lhe impossível trabalhar. A casa não só não inspirava: constrangia, regelava o pensamento. (MIGUÉIS, 1946, p. 107.)

Essa conjuntura não se limita apenas ao espaço interno da casa, mas que se amplia para a vizinhança em que ela se situa:

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Bairros inóspitos, pedantes, ensimesmados entregues a porteiras intratáveis. Antes um bairro com gatos e lixo, roupa suja, garotos, fados, cenas de mulherio, e uma facadinha de vez em quando para animar. Ao menos teria carácter, sinceridade. Mas há também uma coragem do pitoresco! Não ousava, aí está. Havia a linha de coser. (MIGUÉIS, 1946, p. 110.)

A esta altura, vale ressaltar as aproximações que Marques (1994, p. 13) faz diretamente entre a novela Páscoa Feliz e o conto “A Linha Invisível” ao dizer que este “retoma o imaginário espacial” daquela, pois as suas personagens centrais compartilham o mesmo sentimento de inadequação em relação ao espaço que habitam gerando em ambos a necessidade de fuga, sendo o lugar imaginário o “sonho antagônico do espaço real experienciado”. À medida que mudanças vão ocorrendo no cenário de combate entre revolucionários e governo monárquico, Aurélio vai tomando consciência de si mesmo. A culminância desse momento autorreflexivo surge quando a velha Joana volta em segurança da casa dos vizinhos e informa que a Revolução encontrara termo, que só os populares resistiam. Aurélio pensa em sua vida e na dos homens que insistiam na batalha – “Que contrastes aqueles, insuportáveis!” (MIGUÉIS, 1946, p. 136) – e passa admirá-los, pois não tinham medo de lutar pelo direito de viver. Pela personagem, conclui o narrador: “[...] é talvez isso que torna aparentemente tão simples afrontar a morte, aos santos, aos mártires e heróis. A certeza da vida, eis decerto o que torna risível a morte! E essa certeza, êles tinham-na.” (MIGUÉIS, 1946, p. 135). O rapaz começa simpatizar com revolucionários porque a obstinação deles desperta a sua consciência, que [...] andara anos perdida, cega, nos labirintos e becos sem saídas das Instituições: como lhe fora odiosa, obscura e risível essa palavra, o Direito! Iluminava-se ela agora bruscamente dum sentido humano, enchia-se de carne, de substância, de significação, e ardia-lhe no fundo da consciência. (MIGUÉIS, 1946, p. 136-137.)

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A prova maior de sua mudança se dá quando ao anoitecer dois homens da força de resistência, um civil e um marinheiro, adentram o seu gabinete pela janela na tentativa de se esconder das forças do governo. Aurélio percebe que o primeiro era o irmão sumido de Albertina e, por isso, sente-se “feliz, feliz de poder ajudá-lo a se livrar da cadeia, talvez até da morte – e ao mesmo tempo de sentir que assim se libertava ele mesmo” (MIGUÉIS, 1946, p. 142). Então se percebe, a partir deste ponto (no ocaso da narrativa), que a coragem dos homens que lutavam pela vida nas ruas de Lisboa conduz Aurélio a tomar coragem e no dia seguinte sair de casa e acompanhar os dois homens que ele dera abrigo: “O táxi rolou. A linha invisível, quebrada...” (MIGUÉIS, 1946, p. 144.) Todas essas operações relativas à história contada são realizadas pelo narrador, que, num dado evento, aproxima-se ou distancia-se das ações de modo a estabelecer um melhor alcance na reelaboração ficcional da realidade circundante: Um narrador pode se mostrar mais – ou menos – consciente de que está narrando algo. Da mesma maneira, ele é mais confiável, ou não, em um contínuo de confiabilidade. Sua distância (temporal, física, intelectual, moral ou emocional) em relação aos fatos narrados também é variável. (PRINCE, [19__], p. 12.)

Essa oscilação pode ser observada em “A Linha Invisível” na mudança de discurso proposta pelo narrador, que, dependendo da situação, opta pelos discursos direto, indireto ou indireto livre; ou seja, o seu posicionamento adquire diferentes funções no decorrer da história. Na narrativa de Miguéis, evidencia-se uma particularidade no uso do discurso direto que vai além da reprodução da fala. A exceção dos diálogos com outras personagens, as manifestações de Aurélio em seu universo solitário se dão por meio do discurso indireto livre, i. é, seus pensamentos aparecem misturados com a voz do narrador. Há, contudo, um evento em que Aurélio perde o autocontrole, quando suspeita que a velha Joana, ao sair de casa para lhe comprar

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cigarros, pudesse ter morrido em decorrência da guerrilha instalada nas ruas. Nessa passagem, o uso do discurso direto não representa pura e simplesmente a fala de Aurélio, que até então, em seu isolamento no acanhado gabinete, só havia se expressado pela voz do narrador, mas representa também, e principalmente, o seu descontrole em nível elevado: – Calem-se, assassinos! Basta, miseráveis, fratricidas, inimigos da vida humana, da paz e do trabalho! Deixe-nos fazer alguma coisa! Oh, a vida neste país é medonha, insuportável! Quem me dera fugir, exilar-me, refugiar-me entre gente humana, ou entre feras, numa ilha deserta! Em qualquer parte! Longe disto, cambada! (MIGUÉIS, 1946, p. 126-127)

Essa mudança de voz tem intuito de intensificar as tensões de Aurélio, representando, deste modo, o reflexo do seu desespero. Processo este que se dá de forma consciente, visto que ao passar o momento de crise, o narrador retoma a narração utilizando o discurso indireto, demonstrando não somente o retorno do comando de Aurélio sobre si mesmo, mas também o controle do “eu que conta” sobre a história “Sentiu que readquiria gradualmente o domínio de si mesmo, flutuava numa espécie de agradável lassidão, e com ela veio-lhe a necessidade urgente e saudável de comer.” (MIGUÉIS, 1946, p. 127). No uso do discurso indireto, além do que já foi dito, cabe mencionar as passagens de ordem descritiva sobre a conjuntura do conflito armado que se desencadeara pelas ruas “O tiroteio cessara de todo naquele sítio, e as ruas estavam quietas. O diafragma da tarde fechava-se lentamente.” (MIGUÉIS, 1946, p. 132) e, também, para narrar as ações de outras personagens, pois o narrador só opta ter onisciência sobre os pensamentos e sentimentos de Aurélio “A Joana abriu a janela do escritório, e curvou-se para fora a escutar.” (MIGUÉIS, 1946, p. 122). Como já observado, a voz do narrador e a de Aurélio estão associadas durante a maior parte da narrativa pelo uso do discurso indireto livre, mas há ocorrências em que o narrador sinaliza esta associação na tentativa fazer uma distinção entre a voz ou o pensamento da personagem e a sua função como elemento que conta 512


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uma história da qual não participa – “Haverá por porventura prisão pior que a de dentro nos impomos – perguntava-se o pobre” (MIGUÉIS, 1946, p. 106) –, deixando claro que o pensamento não é seu mas sim de Aurélio, mesmo as vozes estando mescladas. Outra saída também encontrada é a utilização de exclamativas e interrogativas na intenção de pontuar determinadas sequências enunciadas como vindas de dentro da personagem “Puxava dum cigarro para afinar aquela quadrinha que havia seis meses pensava em escrever, entrava a Mamã e começava a bradar, que se morria empestado naquela casa, que o ar se cortava à faca, que fôsse fumar para o quintal!” (MIGUÉIS, 1946, p. 108), “Seria certo o que diziam do governo? Se êle era de ladrões, então quem eram os revoltosos?” (MIGUÉIS, 1946, p. 112), dúvidas que se revelam do personagem e não do narrador. Logo, ao fazer uso de três variedades do discurso (direto, indireto e indireto livre), o narrador de “A Linha Invisível” parece ter um alto grau de consciência quando delimita bem a participação de sua voz na associação e dissociação da voz das personagens produzindo deste modo, um efeito diferente para cada momento particular da narrativa, e assim, representar a significação de uma realidade transplantada da história de Portugal diluída na história de uma personagem, pois “a realidade [no texto] não é aquilo que vem depois ou o que está fora do texto, mas o que o texto instaura nos limites do seu espaço de construção” (BARBOSA, 1973, p. 12). Assim, tentamos perceber como o fator social é reconfigurado no desenvolvimento do discurso literário. O conto “A Linha Invisível” – pensando na interpretação figural auerbachiana – se apresenta como um preenchimento do contexto do qual faz parte, suas operações de resignificação podem ser observadas não porque o conto reproduza um momento histórico específico vivido pela sociedade portuguesa, mas, sim, pelo conto produzir textualmente o próprio processo histórico e a mentalidade epocal que estabeleceram o devir da vida ibérica no início do século XX.

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REPRESENTAÇÃO SOCIAL, MÍMESIS E INTERPRETAÇÃO FIGURAL: PERSPECTIVAS PARA UMA ANÁLISE EM “A LINHA INVISÍVEL”

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Resumo Segundo Ricoeur, a única forma possível de se humanizar o tempo é, justamente, através da experiência narrativa. Partindo deste ponto, o presente trabalho anela compreender a jornada que a narrativa, como prática de escritura, percorreu dentro da historiografia - partindo da antiguidade até a modernidade tardia, com a finalidade de identificar onde tal conceito, o da narrativa, dentro da história se aproxima e se distância de sua prática da literatura. Durante a segunda metade do século XX, muito por causa da decepção causada pela derrocada das grandes utopias políticas da época, algumas correntes da prática histórica condenaram, por diversos motivos que investigaremos no presente trabalho, o uso da narrativa no engenho historiográfico. Contudo, hoje podemos presenciar o ressurgir da narrativa dentro da história e, por causa desse movimento, é possível se enxergar as mudanças que tal forma sofreu para que viesse, mais uma vez, satisfazer as necessidades humanas de produção de autoconhecimento. Este trabalho, então, tentará inquirir o entrelaçar de termos tão cruciais para a intelectualidade, tais como história, narrativa, ficção, realidade e literatura. Palavras-chave: História, Narrativa, Ficção, Literatura.


SOBRE A HUMANIZAÇÃO DO TEMPO E CICATRIZES DE GUERRA: A CRISE DA NARRATIVA NA ESCRITA DA HISTÓRIA Rafaela Rogério Cruz1

No porão de um casarão em Buenos Aires, um personagem de Borges se aventura para vislumbrar “o lugar onde estão, sem se confundirem, todos os lugares do orbe vistos de todos os ângulos”, este ponto no espaço que contém todos os pontos tem como nome O Aleph. O personagem, quando finalmente confrontado pela complexidade da empreitada assumida, a de relatar a experiência do encontro com o ponto uno que reúne a infinitude da multiplicidade, avisa ao leitor: “O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é.” O escritor argentino denuncia, assim, uma diferença ontológica irreconciliável entre a literatura e a realidade, quanto a natureza da relação que cada uma delas vai estabelecer com o tempo das ações. Embora nos esteja claro o que Borges quis dizer com a simultaneidade do que nossos olhos percebem da realidade, nos parece importante lembrar que grande parte dessa simultaneidade que apreendemos do mundo nada mais é que uma funcional e constante Ilusão. Tal ilusão, isto é, a ideia de que nossas reações sensoriais são instantâneas e simultâneas aos estímulos que as geram ficou conhecida sob a alcunha de “presente especioso” – termo originalmente cunhado por E. R. Clay ( JAMES, 1890). Apesar de ter sido Clay quem viria a nomear tal conceito, o presente especioso foi de sensível importância e notoriedade no sistema de pensamento do psicólogo William James:

1. Aluna Mestranda em Teoria Literária no programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco. Assistente de Edição da Intersemiose – Revista Digital do NELI (Núcleo de Literatura e Intersemiose) da UFPE. Tutora da Universidade Aberta do Brasil. Bolsista da FACEPE (Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco. 517


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In short, the practically cognized present is no knife- edge, but a saddleback, with a certain breadth of its own on which we sit perched, and from which we look in two directions into time. The unit of composition of our perception of time is a duration, with a bow and a stern, as it were a rearward- and a forward-looking end. (JAMES, 1890, p. 609)

Ora, ainda no ensino médio aprendemos que os sons que ouvimos são ondas e, assim sendo, se movimentam a uma determinada velocidade a qual será influenciada por diferentes fatores, como materiais de propagação e temperatura, caso as ondas se propaguem no ar. Ensinam-nos, também, através de equações de movimento uniforme que o tempo de chegada de um corpo (ou uma onda) partindo de um ponto “a” até um ponto “b” depende da velocidade de tal corpo (ou onda) e a distância entre os pontos a e b; e muito embora tenhamos, de fato, aprendido a (nem sempre) doce física escolar, vivemos sob a impressão de que ouvimos (e decodificamos) um som no instante exato em que ele foi produzido, sob a reconfortante sombra do presente especioso. Gostaríamos, então, de revisitar O Aleph de Borges antes mesmo que sua primeira sentença seja lida. O conto é aberto pela seguinte epigrafe do Hamlet de Shakespeare: O God, I could be bounded in a nutshell and count myself a king of infinite space. Poderíamos, então, pensar a casca de noz em Hamlet numa relação simétrica com O Aleph, o ponto extremamente pessoal através do qual vemos todas as coisas do cosmos, o lugar peculiar da subjetividade na construção e na percepção das coisas do universo. A noção da subjetividade na percepção das coisas e, em especial para nós, do tempo é bastante cara aos pilares da física moderna, visto que a casca de noz Shakespeariana também inspirou o título do livro O universo numa casca de noz do astrofísico Stephen Hawking, provavelmente o nome mais lembrado da física contemporânea. Na obra, Hawking procura apresentar a um público leigo – grupo onde nos incluímos, por alienígenas2 que somos- as diversas questões epistemológicas a cerca

2. “A escrita da história do ponto de vista de um alienígena” é o titulo do primeiro tópico do primeiro capitulo do livro História Ficção Literatura, de Costa Lima. 518


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do caráter do universo que preocuparam os físicos, os matemáticos e a humanidade de maneira geral. Já no primeiro capítulo Hawking irá oferecer, de maneira simplificada, a questão que nos é interessante: como a teoria da relatividade de Einstein derrubou a então vigente ideia de que existiria um tempo absoluto e real que todos os relógios o mediriam da mesma maneira. O postulado de Einstein de que as leis da natureza deveriam ter o mesmo aspecto para todos os observadores que se movessem livremente constituiu a base da teoria da relatividade, chamada assim porque supunha que só importava o movimento relativo. (HAWKING, 2001, p. 5)

Ou seja, se um observador compreende dois eventos como simultâneos, um segundo observador, que esteja em movimento retilíneo em relação ao primeiro, pode não enxergar os dois eventos como simultâneos. Suas afirmações quanto à ordem dos eventos serão, então, contraditórias, porém igualmente válidas e congruentes. Da teoria da relatividade gostaríamos de destacar dois pontos. O primeiro deles é que a noção de tempo está intimamente ligada com a de movimento e, por conseqüência, de espaço. O segundo ponto é que por serem as leis da natureza imutáveis, à revelia da percepção humana, constituem objeto de estudo das ciências naturais. De maneira tal que, apesar de fazer uso de unidades de tempo em suas fórmulas e equações, a física, no caráter de ciência, funcionaria sob o regime de leis não históricas. Enquanto que para a física o tempo figurará como variante de uma equação que ilustra uma lei em si inalterável, como pode o homem comum alheio a tais equações, a quem “qualquer mudança é um símbolo detestável da passagem do tempo” (BORGES, 2008), acessar tal tempo, fazê-lo objeto de sua reflexão? Ricoeur nos oferecerá uma resposta um tanto polêmica: apenas através da narrativa que o tempo se humaniza. Se a preocupação da história, diferentemente da física, for com esse tempo humanizado através da narrativa, a experiência do homem no tempo – algo já passado- constituiria ela uma ciência, visto que não funciona com leis gerais passíveis de testes? Através dessa breve provocação já podemos vislumbrar a problemática do uso da narrativa no discurso histórico. De um lado temos os 519


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defensores da tradição narrativa. Do outro, historiadores buscando um modo que lhes garantisse certa validação científica, um objeto que fosse, como nas ciências naturais, regido por leis mais fixas, algo além da relatividade da experiência pessoal. O uso da narrativa no discurso histórico, tema e preocupação de nosso trabalho, alcança um tempo onde a história, o que entendemos dela como disciplina, ainda não existia. Os textos homéricos, que caracterizam dois grandes documentos legados da cultura helênica, apresentavam enquanto intencionalidade uma preocupação, se não histórica, já que tal conceito não existia em Homero como existe para nós, de manutenção e preservação da tradição e da história (parece-nos quase impossível escapar do termo) do povo grego. Em seu livro História Ficção Literatura (LIMA, 2006), Costa Lima nos diz que a Ilíada figuraria como o ápice da tradição épica, enquanto a Odisseia seria o declínio justamente no que divergiam tematicamente enquanto recipientes documentais da cultura Grega. A Ilíada, que narrava os acontecimentos da guerra de Tróia seria, ao povo grego, mais importante que a Odisseia já que a narrativa desta tinha como preocupação a jornada de Odisseu de volta pra casa. Quando, então, surgem os trabalhos historiográficos de Heródoto e Tucídides uma preocupação se torna evidente: a de se afastar do discurso épico. Perece-nos claro que tal preocupação aponta para a inexistência da consciência ficcional na época. O homem grego que ouvia e repassava oralmente os versos homéricos tomava-os como relatos de eventos factuais. Contudo, apesar de assumir o compromisso com o factual em detrimento do uso do fabuloso como em Homero, tendo como meta a construção de um documento útil a ser deixado para a humanidade, a narrativa histórica de Tucídides não podia se despir do uso da imaginação: Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades quando estavam prestes a desencadear a guerra ou quando já estavam engajadas nela, foi difícil recordar com precisão rigorosa os que eu mesmo ouvi ou me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respectivos assuntos e os 520


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sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados, embora ao mesmo tempo eu tenha aderido tão estritamente quanto possível ao sentido geral do que havia sido dito. (TUCÍDIDES apud COSTA LIMA, 2006 p. 79)

A narrativa histórica que nos legou Tucídides é esta de caráter político, a descrição de eventos bélicos tomando em consideração ações relevantes de grandes indivíduos com a finalidade de construir uma “ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer” (TUCÍDIDES apud COSTA LIMA, 2006 p.78). É bastante curioso a ideia da constância das reações humanas presente no historiador, como algo que está mais firmemente sedimentado que as ações particulares narradas. A eleição desta ou de outra palavra utilizada em seu discurso visava capturar o essencial dos relatos que terminassem por apontar para uma essência das reações humanas. Se levarmos tal pensamento um pouco mais adiante chegaremos a proposta de que a escolha de dar voz a uma personagem em detrimento de outra faria diferença apenas no referente ao discurso que melhor ilustrasse tal constância humana. Assim, a objetividade pretendida em Tucídides, de chegar o mais perto possível de algo essencial, está indissociável de sua subjetividade, de sua eleição, que por ser individual não pode se despir de todo das paixões. Apesar de ser um exemplo bastante pontual na tradição da escrita da história, principalmente por sua inscrição temporal e todos os séculos de produção historiográfica que o seguiram, a questão de Tucídides ilustra bem diversas características do uso do modo narrativo na história que foram fortemente atacadas pelos opositores de tal prática. Sendo algumas delas: a proximidade com o discurso ficcional pelo uso da imaginação da reconstrução de enunciados, a manutenção de um regime de poder através da eleição de uns eventos e omissão de outros, a falta da preocupação analista e a iminência da ideia que uma mera sucessão cronológica fosse suficiente para justificar os eventos. Ricoeur, quando escreveu o seu tratado, em três volumes, sobre o tempo e a narrativa, se preocupou em chamar atenção para o que ele julgou ser um descaso dos historiadores da escola dos Annales, um dos principais opositores da narrativa 521


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como metodologia e filosofia histórica, segundo Ricoeur muito embora as críticas dos annalistes contra a narrativa na história fossem bastante contundentes, eles não haviam tido o rigor ou a preocupação necessários com a questão da narrativa em si, o essencial do seu caráter e forma. Devido à restrição de tempo que o presente trabalho nos impõe, gostaríamos de, antes de prosseguir o raciocínio, assumir o conceito de narrativa simplificado por Stone: Narrative is taken to mean the organization of material in a chronologically sequential order and the focusing of the content into a single coherent story, albeit with sub-plots. (STONE, 1979,p. 3) The kind of narrative which I have in mind is not that of the simple antiquarian reporter or annalist. It is narrative directed by some “pregnant principle”, and which possesses a theme and an argument.(STONE, 1979, p.4)

Muito embora o uso da narrativa na história tenha sido contestado pelo menos há um século e meio antes da explosão das correntes cientificas da primeira metade do século XX, a título de exemplo “o teórico escocês John Millar, que escreveu sobre a superfície dos acontecimentos que prende a atenção do historiador comum” (BURKE, 1992, p. 327), nos deteremos nos ataques mais recentes sofridos pela narrativa. O século XX nasceu em meio a tensões e antes que se passassem as duas primeiras décadas foi abalado pela primeira grande guerra mundial. A instabilidade do período causou em alguns grupos de historiadores a necessidade de se firmarem como cientistas, já que parecia absurdo ter como objeto de estudo ações isoladas e voluntariosamente efêmeras. Como explicar um fenômeno bélico de proporções mundiais baseado em particulares decisões humanas? A exemplo das emergentes ciências sociais nasceu algo que se pretendia História Científica. Em tal história científica podemos notar três diferentes tendências, que se estenderam da década de 30 até os anos 70. A primeira delas, a Marxista - que seguiu a mudança ontológica da burguesia de classe revolucionária para detentora do poder, reacionária e opressora - observa que o exercício da história que era feito 522


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até então, através da eleição de eventos pontuais como movedores da humanidade servia, apenas, para a manutenção do poder tirânico, o que culminava num modelo histórico apegado a dados demográficos, relatos econômicos de uma relação dialética das lutas de classe a alternância do controle sobre os meios de produção, o que terminava numa visão simplista das relações. A segunda tendência, de origem norte-americana, conhecida como cliométricos que buscava aplicar econometria e outras fórmulas econômicas e matemáticas no fazer histórico. Tais fórmulas eram tão intensamente matemáticas com intricadas operações computadorizadas que se tornou praticamente impossível, para qualquer um que não estivesse intimamente ligado a tal prática, sequer acessar a abismal quantidade de dados utilizados. Tal abordagem da história culminou, como bem pontuou Lawrence Stone, num sem fim de dados estatísticos e matemáticos que um bom leitor, não especializado com tal tipo de documentação, perdesse interesse pela história. O desejou de ser afirmar ciência, nos moldes das ciências da natureza, provocou nos estudos históricos a geração de um extenso material ininteligível, que por não ser entendido por aqueles que tinham interesse na história acabavam por ser grandes fracassos tanto qualitativos quanto quantitativos. In any case the data are often expressed in so mathematically recondite a form that they are unintelligible to the majority of the historical profession. The only reassurance to the bemused laity is that the members of this priestly order disagree fiercely and publicly about the validity of each other’s findings.(STONE, 1979, p. 6)

A terceira tendência, e aqui detalharemos com um pouco mais rigor visto a extensão da sua influência, é francesa. A Nova História, como é conhecida, proveniente das incursões e produções teóricas da escola dos Annales, tem no livro de Braudel, O mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na era de Philipe II, um de seus principais documentos manifestos. A negação do uso da narrativa por julgá-la insuficiente para lidar com o que era realmente essencial a história: as estruturas, culminava numa busca de abraçar um tempo lento, abraçar o longo prazo. Braudel 523


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ao intencionar sua grandiosa contribuição para a história do mar mediterrâneo, o fez em contraponto a outras obras que se pretendiam ter o Mar Mediterrâneo como objeto, mas para Braudel tais obras – produto de uma historiografia narrativa – não passavam de tentativas datadas. A preocupação deles não é com o mar, em toda sua complexidade, mas apenas uma peça de minuto no mosaico, não o grande movimento da vida Mediterrânea, mas as ações de uns poucos príncipes e homens ricos, a trivialidade do passado, que mantêm pouca relação com a lenta, mas poderosa, marcha da história que é o nosso objeto. (BRAUDEL, 1995, prefácio da primeira edição)

Para que o seu trabalho pudesse ser desenvolvido, o annaliste propôs uma divisão em três partes, três histórias diferentes. A primeira delas, a qual o autor curiosamente classifica como uma história quase atemporal cuja passagem é praticamente imperceptível, a história do homem em relação ao meio ambiente. Ele logo adverte que não fará uso desse caráter geográfico como geralmente acontecia nos tratados de história que ilustravam apenas no começo dados quantitativos sobre a vegetação, os animais ou sobre o movimento das marés sem contudo observar que tais dados constituíam longos e repetitivos ciclos, ou seja, parte da estrutura profunda do funcionamento da terra. A segunda parte do livro seria dedicada a uma história de ritmos lentos porém perceptíveis, a história dos grupos,a história social em seu caráter mais duradouros: a observação e o estudo dos sistemas econômicos, de estado, das sociedades e das civilizações e, ao mesmo tempo, articular a maneira com que tais fatores influenciavam na complexa arena bélica do mediterrâneo, entendendo que não as guerras específicas seriam de interesse da história, mas o caráter bélico da humanidade que, por ser sempre-presente, está intimamente engendrado na super estrutura do movimento histórico. Finalmente, na terceira parte, Braudel irá tratar – como que dando uma chance a um modelo que acredita estar vencido – da história dos acontecimentos:

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What Paul Lacombe and Fracois Simiand Called ‘l’histoire événementielle’, that is, the history of events: surface disturbances, crests of foam that the tides of history carry on their strong backs. A history of bried, rapid, nervous fluctuations, by definition ultra-sensitive; the least tremor sets all its antennae quivering. .(BRAUDEL, 1995, prefácio da primeira edição)

O historiador francês se diz ciente que tal história événementielle – que é a história que está não na escala do homem, mas de homens individuais – é a mais interessante ao gosto humano, a mais sedutora, e por consequência é a mais perigosa visto ser esta dotada de paixões ardentes, pois teria sido experimentada, descrita e vivida por contemporâneos cujas habilidades de enxergar as conjecturas eram tão curtas quanto o seu tempo de vida nesta terra. Apenas a adoção das estruturas de longa duração, ao contrário do uso dos eventos que são essencialmente superficiais e efêmeros, poderia dar conta de uma verdadeira história da humanidade e de suas sociedades, um corte temporal tão longo que as únicas marcas observadas seriam aquelas de certa duração e profundidade, assim consistentes e verdadeiras. Para Braudel os eventos superficiais são simples manifestações dos grandes movimentos do tempo e só podem ser entendidos em função destes. Membro fundador da escola da qual fez parte Braudel, Marc Bloch legou a humanidade uma obra não terminada que traz como título Apologia da História ou O Ofício do Historiador. O autor vai, em tal texto, apontar para um dos principais perigos do caráter eventual na história: a obsessão com as origens, pois estas são comumente confundidas por causas, assim o historiador estaria constantemente suscetível a imprimir significado e relações de causa e efeito simplesmente ao alocar os eventos numa determinada ordem cronológica. Como se uma adoção simplista da distributividade do continuum fosse o suficiente para explicar o decorrer dos acontecimentos futuros; ora, se um estudo das origens fosse o suficiente para explicar tudo que lhe é cronologicamente posterior, decerto que estaríamos aptos a prever e controlar o futuro que, apesar de todos os avanços tecnológicos, ainda nos parece extremamente escuro. Bloch vai nos dizer que “uma experiência única

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é sempre impotente para discriminar seus próprios fatores: por conseguinte, para fornecer sua própria interpretação”. Muito embora a Nova História dos analistas tenha gozado de certa hegemonia durante as décadas que se seguiram, juntamente com as tendências neo-marxistas, contudo novas formas de poder e controle começaram a se espalhar no mundo e os métodos quantitativos e demográficos pareciam estar igualmente desamparados para dar conta de uma mudança que era, ultimamente, uma mudança de mentalidade. Uma nova tendência surgia dentre os historiadores através da reformulação do questionamento histórico e da mudança de eixo entre a ciência social modelo, dos dados econômicos e sociológicos para os domínios da antropologia, desejava-se saber o que as pessoas pensavam e – como Stone vai pontuar – essa reconstrução vai exigir o fazer narrativo. O objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os mecanismos que regulam, fora de qual­quer controle subjetivo, as relações sociais, e sim as racio­nalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades: as parentelas, as famílias e os indivíduos. [...] o olhar se desviou das regras impostas para as suas aplicações inventivas, das condutas forçadas para as ações permitidas pelos recursos próprios de cada um: seu po­der social, seu poder econômico, seu acesso à informação (CHARTIER, 1994, p.98).

A História Científica que almeja a objetividade das ciências da Natureza vai sempre esbarrar na impossibilidade de atingir tal objetividade por duas razões principais. A primeira por seus objetos serem de naturezas extremamente distintas. A segunda por ser a objetividade, mesmo nas ciências naturais, um tanto ilusória. Já que seus objetos de estudo, ainda que presentes no cosmos indiferentes à vontade humana, só existem como objeto de estudos, i.e preocupação humana, a partir do momento que os percebemos, nomeamos e tentamos abstrair. Ao travarmos este contato com a questão da narrativa na história e compartilhando da crítica de Ricoeur aos da escola dos Annales quanto a sua aparente indi526


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ferença com a natureza da narrativa em si, parece impossível ignorar que a narrativa viveu sua crise mesmo dentro da própria literatura. Não apenas na história, muito por desejar uma objetividade que a legitimasse como verdadeira ciência, mas em virtude do caos que a queda das grandes ideologias, o amadurecimento feroz do capitalismo e o vertiginoso fluxo de informações trouxeram para a sociedade contemporânea, a narrativa em geral parecia não poder mais dar conta das necessidades de produção e transmissão de conhecimento. Uma das maiores vozes da teoria do século XX, Walter Benjamin que assinou, em seu tratado, a morte do narrador, por julgar que a modernidade não abria espaço para uma troca de experiência empática, a narrativa seria produto de uma tradição oral compartilhada onde a autoria não era importante, mas sim a transmissão da sabedoria (BENJAMIN, 1993). E que esta, a narrativa, se diferia romance exatamente neste quesito coletivo, pois o romance seria, diferentemente da narrativa, originado do sujeito solitário e isolado, que não ouve conselhos e nem sabe dá-los. O texto Benjaminiano se preocupa em apontar para a crise da experiência na modernidade, experiência que era indispensável ao modo narrativo em sua original essencialidade. Isto é dizer que a modernidade precisou descobrir um novo modo de “narrar”, não mais a tradição passada através das gerações, mas a crise da impossibilidade de fazê-lo. Assim como Benjamin vai apontar para uma violenta mudança de eixos na tradição do “contar estórias”, o escritor francês Robbe-Grillet em seu tratado por um Novo Romance vai atacar algumas noções que se consideram inerentes ao escrever um romance por considerá-las obsoletas. Um de seus alvos será, como termo usado no livro, a história e a sua adoção no julgamento qualitativo de um romance: O julgamento que incidirá sobre o livro consistirá sobretudo numa apreciação de sua coerência, de seu desenrolar, de seu equilíbrio, das expectativas ou das surpresas que apronta para o leitor arquejante. Um buraco na narrativa, um episódio mal concluído, uma quebra no interesse, uma demora no desenrolar da ação, serão defeitos maiores do livro; a vivacidade e a espontaneidade, suas mais altas qualidades. (ROBBE-GRILLET, 1969, p.23)

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Ora, não é o objeto da crítica de Grillet o mesma que o de Braudel? Um ataque frontal ao apego ao acontecimento? A obrigatoriedade de um texto que tenha como ponto principal ações que se desenrolem com certa desenvoltura, que dê ao leitor os fatos causais dos outros e que ainda que decida omitir algo o faça por uma questão de estilo e não por falta de controle. Todos os elementos técnicos da narrativa – [...] – tudo objetivava impor a imagem de um universo estável, coerente, continuo, unívoco, inteiramente decifrável. Como a inteligibilidade do mundo não estava nem mesmo em questão, contar não apresentava problema algum. O estilo podia ser inocente. (ROBBE-GRILLET, 1969, p.25)

Contudo, como o autor fará notar, todo o sistema da intriga clássica, que imprimia a narrativa um falso poder de apaziguar o caótico do mundo através de uma série de relações de causa e efeito, começa a ruir a partir de Flaubert, e depois dele Proust, e depois dele Faulkner, e depois dele Beckett. E, assim, a obrigação com a anedota vai ficando cada vez menos opressora para os romancistas que não desejem abraçá-la. Ao constatar esta nova impossibilidade do contar, o autor faz uma importante ressalva afirmando que seria um erro considerar que nos romances modernos não há nada acontecendo, “em suma, o que falta não é a anedota, é apenas seu caráter de certeza, sua tranqüilidade , sua inocência.”( ROBBE-GRILLET, 1969,p.26) Assim como o mito como modo de articulação do mundo se viu ameaçado com a cisão do mundo helênico, assim como o poema épico, em sua essencialidade, não é mais possível num mundo pós-helênico (LUKÁCS, 2000), a idéia da narrativa clássica que organiza acontecimentos numa ordem cronológica de causa e efeito também parece ter falhado de maneira colossal. Contudo, da mesma maneira que o mito sobrevive através das práticas sociais diárias que buscam, de novas maneiras e em novos lugares, uma transcendentalidade espiritual para suprir racionalmente uma necessidade que a razão não consegue alcançar; da mesma maneira que o épico enquanto espírito estético achou morada nas possibilidades de novas tecnologias 528


SOBRE A HUMANIZAÇÃO DO TEMPO E CICATRIZES DE GUERRA: A CRISE DA NARRATIVA NA ESCRITA DA HISTÓRIA

advindas da indústria cinematográfica, igualmente se reorganizou o exercício narrativo para acomodar-se às necessidades humanas em transição; mudarão, mas não morrerão. Pois não são o mito, o épico e, muito menos a narrativa, pequenos abalos superficiais, ao contrário, estão ali, firmemente sentados nas estruturas do tempo das mudanças lentas e dos fluxos imperceptíveis, no recorte do longo prazo – esta mísera centelha que é o tempo humano dentro da história do universo.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, W. (1993) Magia e Técnica, Arte e Política: Ensaios sobre Literatura e História da Cultura. Obras Escolhidas. Volume I. 5. Ed. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. BORGES, Jorge Luis. O Aleph. São Paulo: Companhia das letras, 2008 BRAUDEL, F. The Mediterranean and the Mediterranean World in the Age of Philip II. University of California Press, 1995. BURKE, Peter. A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa. In: BURKE, Peter (Org.) A escrita da história: Novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP, 1992. CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios e propostas. Estudos Históricos. HAKING, Stephen. O universo numa casca de noz. São Paulo: Editora ARX, 2002. JAMES, William. The Principles of Psychology, Vol 1. New York: Cosimo, 2007. LIMA, Luiz Costa. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LUKÁCS, Georg. A Teoria do Romance. Rio de Janeiro: editora 34, 2000. REIS, José Carlos. História e verdade In: História e Teoria. Rio de Janeiro, n.13, v.7, p.97-113, 1994. RICOUER, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994 ( tomo I , II e III). ROBBE-GRILLET, Alain. Por um Novo Romance. São Paulo: editora Documentos, 1969. STONE, Lawrence. The revival of narrative: reflections on a new old history in: Past and Present (1979) 85(1): 3-24 doi:10.1093/past/85.1.3 BALDO, Marcos; CRAVO, André M; HADDAD, Hamilton. Máscaras do tempo: Mecanismos pelos quais o cérebro percebe a passagem do tempo evocam princípios da física enunciados na teoria da relatividade e na mecânica quântica. Disponível em <http://www2.uol. com.br/sciam/reportagens/mascaras_do_tempo_imprimir.html> 529


Resumo O presente estudo tem por objetivo examinar, com base nos modelos atuais da semiótica greimasiana, narrativas tradicionais de valentia, buscando extrair os valores sociais e históricos capazes de reverberar, explicitamente ou não, uma memória cultural ainda em efervescência no imaginário nordestino. Debruçamo-nos, para tanto, sobre quatro versões do romance O Boi Espácio – verdadeiras fábulas alegóricas – cuja arqueologia revela a íntima relação entre homem e natureza. O percurso analítico considerou uma investigação da semântica fundamental, com vistas à (re)interpretação da axiologia subjacente ao discurso. Nas peças examinadas, a figura do boi aparece sob os signos da realidade e da imaginação popular, exercendo, imponentemente, o papel de protagonista. É um herói autêntico, detentor de uma indumentária conceptual forjada por elementos arquetípicos de autoafirmação e de autorreconhecimento, ou seja, o fazer-ser do animal representa, no deslocamento significante, o ethos de um povo, de uma região Palavras-chave: Semiótica – Cultura – Romanceiro Popular.


SUJEITOS E LUGARES SEMIÓTICOS: O ESPETÁCULO PERFORMÁTICO DA CULTURA Hermano de França Rorigues1

PRELIMINARES O romance oral O Boi Espácio, exemplar ímpar das gestas de boi, surgido por volta de 1880, narra a existência de um boi indomável, dotado de força física e bravura extraordinárias, que instiga admiração e medo entre a população sertaneja de Quixelô. Sua superioridade, advinda principalmente da força descomunal que possui, afugenta até os renomados vaqueiros que, mesmo unidos, não conseguem dominá-lo. Apenas ao seu dono reserva obediência. A natureza sobrenatural que reveste o Boi Espácio o torna ainda mais supremo. Ele nasce de manhã e, inexplicavelmente, ao meio dia, torna-se adulto. Apenas um urro seu é capaz de fazer estremecer, fortemente, a terra. Tais virtudes lhe conferem um grande valor monetário, além do reconhecido prestígio a seu possuidor, o qual se recusa a vendê-lo. Todavia, o valioso e insólito animal é morto e das partes de seu corpo são feitas importantes obras, tais como grandiosas edificações, além de outros objetos de variados tipos e dimensões. Como se percebe, a narrativa constrói-se numa simbiose entre a genuína expressão social e a efervescente criatividade do imaginário popular, convergindo para uma analogia orgânica da ligação do homem com a natureza. Em termos semióticos, essa união faz com que o romance apresente uma organização discursiva peculiar, elaborada ao gosto popular, capaz de conciliar e revelar os valores, as crenças e as intenções daquele que o produziu.

1. Doutor em Letras, pela Universidade Federal da Paraíba. Professor de Literaturas de Língua Portuguesa da mesma Universidade. E-mail: hermanorg@gmail.com 531


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ESTRUTURAS FUNDAMENTAIS Os valores axiológicos que permeiam o romance O Boi Espácio se estabelecem por meio de relações conflitivas que podem ser dialeticamente hierarquizadas no octógono semiótico. Este modelo lógico-conceptual permite uma apreensão mais profunda das ideologias que subjazem à narrativa. Ocorre uma tensão dialética entre fidelidade e traição que define as relações de poder entre os atores dono, boi e rei. O somatório desses dois termos dá origem ao metatermo posse. A fidelidade implica não-traição, fazendo emergir uma relação que se assenta na afetividade. É o que ocorre, inicialmente, entre o dono e o ilustre animal. A posse que os une revela o apego que o nordestino interiorano tem para como os animais que, cotidianamente, estão ao seu lado (o boi, o cavalo, o jumento etc). Esses animais fazem parte da alimentação, da locomoção, do labor, representando, pois, sua própria sobrevivência. A traição sem fidelidade, instiga a busca pelo prestígio que está diretamente condicionado à posse do boi valente. O dono, assumindo a caracterização de fazendeiro, sente a necessidade de mostrar-se aos outros, de se expor como o possuidor legítimo do temido animal. Tal fato recupera a informação de que os fazendeiros, principalmente nos dias atuais, expõem os seus animais como prêmios, como troféus que lhe conferem reconhecimento e prestígio. Assim, a posse que caminha para a não-fidelidade caracteriza a relação de exploração que se assenta sobre o agir do rei/doutor imperador. A presença desse valor revela um Nordeste ainda oligárquico, onde o status é o grande ordenador social. O dono priva-se de um bem valioso (o boi) para satisfazer o rei/doutor. Estes se valem do animal (bem provindo do povo) para usufruto próprio. Sendo assim, a tensão fidelidade-traição acarreta a existência de três percursos que reverberam à dinâmica narrativa:

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boi↔dono posse → (eufórica)

fidelidade (eufórica)

afetividade (eufórica)

boi↔dono posse → (eufórica)

traição (disfórica)

não-fidelidade (disfórica)

rei/doutor posse ← (eufórica)

traição (eufórica)

prestigio (eufórico)

O octógono seguinte abarca com mais propriedade as percursos acima delineados:

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Outro conflito que se instaura na narrativa se processa entre dominante e dominado, cuja junção caracteriza o agir do dono. Este mantém uma relação de poder para com o boi e os vaqueiros, mas se deixa governar pelo respeito que nutre pela autoridade legítima. Esse conflito traz à tona as relações sociais que dominaram o nordeste nas primeiras décadas do século XX e que continuam a vigorar, veladamente, nos dias atuais. O coronel, expoente maior da oligarquia rural, impõe repressão ao povo e, no entanto, comporta-se como um “animal fiel” diante de pessoas com mais prestígio do que ele, como o presidente, o governador etc. O dominante que faz uso da autoridade para sobrepor-se aos mais fracos caracteriza o rei e o doutor. Eles não necessitam de poder físico para se imporem ou sobreviverem. Retiram do povo os bens necessários à sua vida de luxo e ociosidade. No romance, a figura do rei e a do doutor não representam tipos masculinos apreciáveis, embora gozem de prestígio. O respeito a eles dirigido é um valor cultural intrínseco às pessoas simples que admiram as autoridades, reservando-lhes, muitas vezes, obediência incondicional. Um bom exemplo é o político corrupto. Ele ludibria e explora o povo mas, em período de eleição, é venerado. O dominado sem autoridade define os vaqueiros que estão sob o jugo de um patrão, de um fazendeiro. Eles tentam se sobressair através da força. Todavia, não conseguem uma vez que sucumbem ao poder da autoridade (o boi). O fato remete às relações trabalhistas de sociedades que se respaldam por princípios escravocratas e exploratórios. A massa tenta uma mobilidade social através do trabalho, do esforço físico, do suor mas é barrada pelas ações daqueles que não querem perder a mão de obra barata. Focalizando as relações tímicas que se estabelecem entre a tensão dominante-dominado, foi possível depreender quatro caminhos pelos quais o discurso caminha:

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rei/doutor↔dono: autoridade → (eufórico)

dominante → (eufórico)

não-dominado (eufórico)

vaqueiro/boivdono: obediência → (disfórica)

dominado → (disfórico)

não-dominante (disfórico)

dono↔rei/doutor: obediência → (disfórica)

dominado → (disfórico)

não-dominante (disfórico)

dono↔vaqueiro/boi: autoridade (eufórica)

dominante (eufórico)

não-dominado (eufórico)

O octógono seguinte oferece uma sistematização mais nítida da tensão que se opera entre dominante-dominado:

Os atores femininos encontram-se em tensão dialética entre as funções de mãe (mulher com obrigações para com a família) e comprador (mulher sem atributos matriarcais), que se opõem evidenciando o conflito social da mulher. Mãe e comprador são papéis convencionalmente estipulados pela sociedade e que ganham feições distintas a depender da cultura onde se situam. No romance, a mãe do dono

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se mostra responsável pela paz familiar, estando disponível, no lar, para ouvir o filho. É um estereótipo bastante recorrente no imaginário popular que atribui à figura materna, além do cuidado para com os filhos, as tarefas de zelar pelo chefe da casa e os ofícios divinos de uma boa esposa, como costurar, cozinhar, lavar e passar. A mãe do boi, pelas características que traz, constrói uma imagem feminina que complementa àquela que recai sobre a mãe do dono. Revela não a paz que se efetiva no seio familiar, mas aquela que é inerente à mulher, ou seja, a fragilidade, a docilidade, a polidez. É um estado de debilidade que justifica, socialmente, a necessidade de se ter um homem, símbolo de força e valentia, dirigindo os seus passos. Cumpre lembrar que as mulheres, em algumas regiões interioranas, ainda são criadas para o casamento. Elas mesmas enfatizam sua inferioridade e se sentem realizadas quando conseguem um homem que lhes dê suporte. À mulher autônoma, que caminha por um lugar tradicionalmente ocupado pelo homem, reserva-se normalmente acepções negativas visto que infringe preceitos culturais que pregam a proeminência masculina. O “tino” pelos negócios é um atributo que, desde os primórdios da história, agrega-se ao homem. Quando envereda por esse caminho, a mulher não possui credibilidade de fala, ou seja, seu discurso ressoa desprovido de confiança e verdade. É o que acontece no romance. O dono não se deixa convencer pelas propostas da compradora. Os conceitos de paz e tentação imbricados consubstanciam-se nos dogmas religiosos. Deve-se à igreja católica, extremamente influente entre as classes populares, a solidificação desses atributos femininos. Conforme apregoa, desde a Idade Média, Deus abençoa o lar em que a mulher se doa aos filhos e ao marido. Ela está encarregada pela agregação da família. Já a mulher independente, sem um homem para orientá-la, simboliza a própria Eva. Nela, o diabo age diretamente fazendo-a desviar da sua condição de futura “zeladora do lar”. Encontra-se fora da igreja, afastada do lar e presente no mundo. O comprador-mulher, em O Boi Epácio, aproxima-se, então, do coisa-ruim, ao persuadir o dono a vender a alma do sertanejo, o boi. A recusa representa a superioridade do homem que, ao contrário da mulher, resiste às investidas do agente disseminador do mal. 536


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O investimento tímico que caracteriza essa tensão permite distinguir dois percursos: mãe/vaca

dependência (eufórica)

mulher-comprador autonomia → (disfórica)

não-autonomia → (eufórica)

paz (eufórica)

tentação (disfórica)

não-dependência (disfórica)

O conflito feminino da narrativa aparece hierarquizado no octógono abaixo:

A fartura e a seca, elementos tradutores do sertão, aparecem no romance em tensão dialética. Revestida por preceitos católicos, a religiosidade sertaneja caracteriza-se intrinsecamente pela crença providencial, segundo a qual Deus conserva

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e governa o mundo, dirigindo todos os seres ao fim que se propôs. Assim, a seca que castiga o corpo é considerada, por mais estranho que possa parecer, positiva. É um sofrimento que Deus enviou para comprovar as virtudes e o merecimento do homem. Em muitos povoados nordestinos, o longo período de estiagem é tido como um castigo pelo mal que se abateu sobre a humanidade: filho batendo nos pais, mulheres casando de branco sem serem virgens e traindo os maridos etc. Diante desse infortúnio climático que faz padecer o corpo, a única solução é recorrer a Deus. Só ele, através da fecundidade religiosa do nordestino, pode acalentar a alma. Justificam-se, dessa forma, as constantes novenas, missas e procissões realizadas pelos sertanejos que têm nessas manifestações a certeza de que Deus providenciará o alento de que tanto necessitam. O Senhor dos homens castiga o corpo para salvar as almas. Ergue-se, portanto, um Deus ao mesmo tempo bondoso e vingativo, próprio do imaginário popular. A seca não é eterna. Um dia, certamente, acaba. O retorno das chuvas marca a absolvição do povo que volta mais uma vez a ser enxergado, com bons olhos, pelo criador. No romance, a transformação do boi em uma igreja e um açude representa a intervenção de Deus em prol do povo. O templo religioso constitui o apaziguamento da alma e o açude, ao saciar a sede, simboliza o término do padecimento do corpo. O fato dessas obras surgirem do corpo do boi acentua seu vínculo com o divino, com Jesus. A morte do filho de Deus representa para a humanidade a regeneração do corpo e, consequentemente, a salvação da alma. A narrativa, nesse sentido, apresenta quatro direções, cujo revestimento tímico deixa vir à tona o conceber do enunciador sobre cada termo que gera o conflito: sertão (eufórico)

→ sertão (eufórico)

seca → (eufórica) fartura (eufórica)

sofrimento (eufórico)

felicidade (eufórico)

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sofrimento (disfórico)

não-fartura → (disfórica)

não-seca → (eufórica)

felicidade (eufórica)

A tensão entre fartura e seca pode ser melhor visualizada através do seguinte octógono semiótico:

O boi, herói da narrativa, ocupa o centro de uma tensão dialética que se efetiva entre luta e submissão, cujo produto culmina no metatermo revolução. O boi, enquanto representação do povo, não se submete àqueles que tentam oprimi-lo. Ele se insurge, bravamente, contra os vaqueiros que, pela glória, desejam domálo. Nesse âmbito, o romance reporta-se, explicitamente, às oligarquias rurais do nordeste brasileiro. Os coronéis, expressão maior do poder nessa região, consolida o seu poder através de jagunços, assassinos cruéis, que levam o temor entre o povo. Esses profissionais “sujam as mãos” por seu patrão. E quando cumprem satisfatoriamente as ordens passam a ter fama.

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A liberdade, fruto da junção entre a luta e a não-submissão, simboliza a bravura do sertanejo masculino que não se curva aos poderosos. Os cangaceiros representam bem esse estigma de homem forte e valente que tem a liberdade como um bem maior e pela qual, corajosamente, luta. Eles se opõem a uma ordem social que procura estabelecer um sistema opressor sob os alicerces da submissão e do conformismo. São considerados pelos coronéis como bandidos, foras-da-lei, transgressores visto que impediam os propósitos da oligarquia. O povo, no entanto, os tratava como heróis, seja porque os considerava justiceiros e vingadores, seja pelo fato de que eles roubavam dos ricos. O fato é que eles promovem uma ordem social própria, fundamentada nos valores de luta e não-submissão, da qual obtêm a liberdade almejada. Assim é o boi na narrativa. O imponente animal, buscando a liberdade, desencadeia uma revolução ao confrontar-se com os opressores. O percurso corresponde a uma ordem que tem a não-submisssão e a luta como fatores indispensáveis para se chegar à liberdade. O conflito, em sua totalidade, apresenta três caminhos nos quais os termos axiológicos recebem revestimento tímico condizente com universo contextual da narrativa: revolução → (eufórica)

luta → (eufórica)

liberdade → (eufórica)

não-submissão (eufórica)

→ revolução (eufórica)

submissão → (disfórica)

opressão → (disfórica)

não-luta (disfórica)

revolução (eufórica)

submissão

(disfórica)

luta (eufórica)

liberdade (eufórica)

O octógono abaixo sintetiza melhor as reflexões acima:

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CONSIDERAÇÕES FINAIS As narrativas do ciclo do boi ocupam um patamar privilegiado na literatura popular. São histórias – verdadeiras fábulas alegóricas – nas quais se presentificam o imaginário, o saber, a visão de mundo daqueles que se encontram amalgamados à natureza que os rodeia. Organicamente ligadas ao Nordeste brasileiro, elas traduzem o vínculo, a interação, o confronto do sertanejo com um animal símbolo da região, do qual ele extrai a sua subsistência e conquista a sua glória. Em termos discursivos, embora detenham uma textualização curta (fator que contribui para sua memorização), apresentam um esquema narrativo rico e complexo que inclui elementos da tradição rural e da tradição cultural popular, religiosa e fantástica. No romance analisado, o boi aparece sob os aspectos da realidade e da imaginação popular, exercendo, imponentemente, o papel de protagonista. É um herói autêntico cuja caracterização reverbera, inconscientemente ou não, uma formação

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ideológica da qual emergem elementos culturais de autoafirmação e de autorreconhecimento, ou seja, o fazer-ser do animal representa, substancialmente, o ser, o ethos de um povo, de uma região. Seus dons físicos, suas façanhas extraordinárias, além de lhe garantir superioridade, contribuem, consideravelmente, para a construção de uma imagem que, ao concentrar valores de merecimento e grandiosidade, passa a servir de referência sócio-histórica para a sociedade que a concebe. Penetrando nas subjacências do romance O Boi Espácio, recuperam-se marcas ideológicas que fazem emergir uma organização social pautada ainda em dogmas patriarcais. É uma narrativa que se constrói sobre e a partir do olhar masculino. O boi e o seu dono fundem-se num paradigma de masculinidade extremamente desejável e apreciável pelo imaginário popular. Eles sintetizam o sertanejo viril, valente, imponente que não se curva diante dos opressores, nem das tentações monetárias. São princípios ordenadores de uma norma cultural que tem o homem como representação da boa índole, do bem. Sendo assim, sua imagem, prestígio e honra devem ser preservados. Pretende-se com esta pesquisa instigar o interesse pelo estudo realmente científico do texto popular. Não aquele que se detém em abstrair seus valores estilísticos e terminológicos, mas aquele que o concebe como um instrumento de representação social, através do qual o povo, os “iletrados”, a massa se expressa. Dessa forma, espera-se que este trabalho possa contribuir, de alguma forma, para a compreensão e resgate da cultura popular e brasileira como um todo, em suas origens e alicerces sócio-ideológicos. Espera-se, outrossim, que esta pesquisa possa despertar o interesse para outras análises mais profundas, numa correlação multidisciplinar com a Psicologia, a Sociologia, a Antropologia, ou mesmo, com outras linhas da Linguística Atual.

REFERÊNCIAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Editora Ática, 1990. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do Discurso. Fundamentos Semióticos. São Paulo: Atual, 1988. 542


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Resumo Diversas são as teorias que abordam a questão dos gêneros textuais/ discursivos, em relação ou não ao ensino de línguas. Nossa proposta, nesta comunicação, é realizar um cotejo das principais teorias a respeito desse tema, analisando suas implicações para o ensino da leitura em Francês Língua Estrangeira (FLE). Para tal análise, valer-nosemos dos postulados de Bakhtin (1992), Bazerman (2011), Marcuschi (2005, 2009, 2011) e Dolz e Scheneuwly (1994, 1998), que, mesmo traduzindo diferentes visões acerca dos gêneros, trazem pontos convergentes em suas teorias. A partir da caracterização que eles fazem do gênero textual/ discursivo, abordaremos as questões relativas à leitura, em específico no contexto de ensino de línguas estrangeiras (em nosso caso, o francês). A presente pesquisa, de cunho bibliográfico, objetiva também trazer contribuições para a prática do professor de FLE, integrando trabalhos de leitura e produção textual, análise linguística e vocabulário, além dos aspectos culturais do idioma. Palavras-chave: gêneros textuais; leitura; ensino de francês.


TEORIAS DOS GÊNEROS E O ENSINO DA LEITURA EM FLE Herbertt Neves1

INTRODUÇÃO O estudo dos gêneros textuais (doravante GT) é de reconhecida importância social em variadas áreas de estudo. Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005, p. 8) apontam alguns dos profissionais que se interessam por este tema: críticos literários, retóricos, sociólogos, cientistas cognitivistas, especialistas em tradução automática, linguistas computacionais, analistas do discurso, especialistas em inglês para fins específicos, professores de língua (materna e estrangeira), publicitários, jornalistas, especialistas em comunicação empresarial, pedagogos, etc. Esse interesse de especialistas diversificados pelos GT mostra as múltiplas possibilidades de aplicação do assunto em distintos campos de pesquisa e atuação. Atribuímos tal interesse pelo caráter essencial para a comunicação que o gênero estabelece na sociedade. Estudar, então, as diversas formas com as quais o ser humano interage socialmente deve, quase que obrigatoriamente, levar em conta quais gêneros são empregados em tais atividades interativas. Inúmeros são os trabalhos e os estudos sobre GT existentes atualmente. Em tais estudos, há, aparentemente, uma linha de pensamento em comum no que tange ao reconhecimento de um gênero. É como se, independentemente da abordagem adotada, pudéssemos reconhecer, por exemplo, que uma carta pessoal sempre será uma carta pessoal, e não um ingresso de cinema. Outro ponto em comum nesses estudos está relacionado ao fato de eles reconhecerem a importância do social e do contextual para a compreensão e definição dos gêneros. Em ambas as abordagens, os gêneros são definidos como algo construído socialmente,

1. Professor Substituto de Língua Portuguesa – UFPE. Mestrando em Linguística – UFPE. 545


Anais Eletrônicos - XI EELL

embora o componente linguístico seja, muitas das vezes, essencial para que se chegue ao reconhecimento de um gênero. Assim, o que vai diferenciar as diversas abordagens sobre a Teoria dos Gêneros são o modo como a definição de GT será feita e os conceitos que serão evocados para se chegar a tal definição. De acordo com Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005, p. 8), podemos, a partir de um panorama geral das diversas teorias dos gêneros, ter “uma constatação imediata: as abordagens teóricas tanto se aproximam – ao lançar um olhar social e discursivo sobre a linguagem – quanto se distanciam – ao pôr em cena conceitos-chave bastante distintos”. É nesse sentido que o presente trabalho visa a ser um apanhado dessas teorias, mostrando, ao mesmo tempo, a riqueza de possibilidades para o trabalho com os GT e as aplicabilidades que as diferentes teorias têm para o ensino da leitura em FLE. Ainda segundo esses autores, dois pontos podem ser observados nos estudos dos gêneros: 1) O ponto de partida para a maioria dos estudos em GT são os postulados do linguista russo Mikhail Bakhtin, especialmente os da sua obra Estética da criação verbal (1953), no capítulo “Gêneros do discurso”; tal autor é amplamente citado por todos os outros. 2) A importância do social para a definição dos gêneros; observam eles que “todos [os] trabalhos, em alguma medida, [atêm-se] mais ao caráter social da linguagem que ao estrutural. Todas as abordagens, por exemplo, contemplam a noção de gênero como ação social” (MEURER, BONINI E MOTTA-ROTH, 2005, p. 9). Neste trabalho, escolhemos alguns dos teóricos considerados por nós os mais relevantes para o estudo aqui empreendido. Vamos tratar, aqui, de: 1) Charles Bazerman e Carolyn Miller, por serem eles amplamente estudados no âmbito da UFPE; 2) Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz, pela abordagem pedagógica que fazem dos gêneros; 3) Luiz Antônio Marcuschi, por sua importância em trazer para a UFPE os estudos dos GT; e 4) Mikhail Bakhtin, pelo pioneirismo do seu trabalho no estudo dos gêneros e pela influência que ele exerce nas outras teorias. É sobre tais autores e a relação de sua teoria com o ensino da leitura em FLE que vamos discorrer a partir de agora.

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TEORIAS DOS GÊNEROS E O ENSINO DA LEITURA EM FLE

Para tal, também traremos, no decorrer desta revisão bibliográfica, citações de nomes expressivos para o estudo linguístico do ensino de gêneros no Brasil, com Rojo (2005) e Antunes (2002, 2009), que trazem importantes reflexões para o ensino de línguas (materna e estrangeira). Muitas dessas reflexões são baseadas no que trazem as teorias dos já citados autores basilares. Valer-se das contribuições de autoras como essas se faz necessário para mostrar que a aplicabilidade das teorias no estudo de gêneros no Brasil, em especial para o ensino, já vem sendo feita há um tempo. Discussões como esta já são antigas (datando do início da década de 1990, principalmente) no contexto brasileiro e estão também em constante renovação metodológica, daí ser importante a frequente revisitação das teorias.

BAZERMAN E MILLER A escola de estudos de gêneros norte-americana tem como suas figuras principais os nomes de Carolyn R. Miller (2009) e Charles Bazerman (2011). A teoria desenvolvida por eles pode ser resumida por tratar o GT como “ação social”; é esse o conceito central que norteia as pesquisas desse grupo. Carvalho (2005) aponta duas correntes teóricas tidas como as principais norteadoras desses trabalhos: a nova retórica (movimento oriundo da retórica clássica, que tem preocupações pedagógicas relativas ao ensino da composição argumentativa), que trouxe à tona as noções de “propósito” e “contexto”, e a teoria do linguista russo Mikhail Bakhtin. Miller (2009, p. 33), ao discorrer sobre a definição de gêneros baseada em “ações sociais”, cita Herbert Blumer (1979), o qual observou que “a porção preponderante da ação social numa sociedade humana, particularmente numa sociedade estável, existe na forma de padrões recorrentes de ações conjuntas”. Esses padrões recorrentes constituiriam, então, os GT, formas utilizadas socialmente pelas pessoas para agir por meio da linguagem. O gênero é, por isso, entendido como ação social, que se constrói na experiência de seus usuários nas situações de uso da língua(gem), por intermédio da ação que se desenvolve nesse uso, adquirindo forma e substância (conteúdo).

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Bazerman (2011) também desenvolve uma teoria do gênero encarando-o como ação social, destacando o caráter recorrencial dessas ações para definir o status de GT. A diferença de seus trabalhos é a atenção especialmente dada às intenções sociais dos usuários da língua ao produzirem um GT. Segundo ele, podemos chegar a uma compreensão mais profunda de gêneros se os compreendermos como fenômenos de reconhecimento psicossocial que são parte de processos de atividades socialmente organizadas. Gêneros são tão somente os tipos que as pessoas reconhecem como sendo usados por elas próprias e pelos outros. Gêneros são o que nós acreditamos que eles sejam. Isto é, são fatos sociais sobre os tipos de atos de fala que as pessoas podem realizar e sobre os modos como elas os realizam. Gêneros emergem nos processos sociais em que as pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhar significados com vistas a seus propósitos práticos. (BAZERMAN, 2011, p. 32)

Para desenvolver essa noção de gêneros, Bazerman (op. cit.) traz também uma série de conceitos que são a ela relacionados. Tais conceitos também são úteis quando queremos discutir implicações pedagógicas da Teoria dos Gêneros. Mais uma vez é oportuno citá-lo para explicar tais conceitos, que são interrelacionados, e têm, muitas das vezes, relação direta com sua aplicabilidade no ensino de línguas. Cada texto bem sucedido cria para os leitores um fato social. Os fatos sociais consistem em ações sociais significativas realizadas pela linguagem, ou os atos de fala. Esses atos são realizados através de formas textuais padronizadas, típicas e, portanto, inteligíveis, ou gêneros, que estão relacionados a outros textos e gêneros que ocorrem em circunstâncias relacionadas. Juntos, os vários tipos de textos se acomodam em conjuntos de gêneros dentro de sistemas de gêneros, os quais fazem parte dos sistemas de atividades humanas. (BAZERMAN, 2011, p. 22)

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Todos esses conceitos são úteis para situar o aluno no entendimento de um GT. Com o entendimento prévio do processo com que se configura um GT, a aprendizagem deste gênero é mais rápida e bem sucedida. A preocupação com a prática pedagógica é, aliás, um ponto forte na obra de Bazerman (op. cit.). Ele sugere que os professores devem criar uma prática de sala de aula capaz de proporcionar, nas ações significativas de comunicação escolar, o entendimento dos gêneros que os alunos irão produzir. O ponto de partida para essa prática de escrita é justamente a já citada experiência prévia dos alunos com os gêneros em situações sociais significativas com as quais eles entrarão em contato a partir de suas leituras no mundo. Outra forma que ele destaca para o trabalho com os gêneros é a exploração do desejo dos alunos em se envolverem em situações discursivas novas e particulares. No que concerne ao ensino de LE, a teoria desses autores pode ser aplicada a partir da noção do gênero como ação social. A estratégia mais usual é fazer os alunos compreenderem as ações sociais que eles podem realizar em uma LE, a partir das situações comunicativas em que estiverem inseridos. Realizando tais ações, eles já estarão imersos nas práticas de leitura, entendendo, assim, de uma forma mais clara as características e as estratégias discursivas empregadas no uso da língua.

SCHNEUWLY E DOLZ O trabalho de Bernard Schneuwly e Joaquim Dolz (1998, 2004) é de suma importância quando se quer tratar dos GT sob a perspectiva do ensino. Os pesquisadores da Escola de Genebra voltaram-se fortemente para o ensino de língua materna; aqui nós traremos considerações de sua obra que podem também ser aplicadas ao ensino de LE. Sua proposta de ensino-aprendizagem de língua é organizada por meio de sequências didáticas que vislumbram situações de uso da língua em que serão trabalhados os GT. É essa abordagem, de acordo com eles, que permite ao professor as reais observação e avaliação das capacidades

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de linguagem dos alunos, durante todo o processo pedagógico, apresentando orientações mais precisas para sua intervenção didática. Nessa proposta de trabalho pedagógico dos gêneros, Dolz e Schneuwly (1998) defendem a noção de gênero como “instrumento de comunicação”, comunicação esta que é realizada empiricamente por meio de textos. Schneuwly (1994) chega a definir os gêneros como “megainstrumentos”. Segundo eles, o GT é um instrumento semiótico constituído de signos organizados de maneira regular; este instrumento é complexo e compreende níveis diferentes; é por isso que o chamamos por vezes de “megainstrumento”, para dizer que se trata de um conjunto articulado de instrumentos à moda de uma usina; mas, fundamentalmente, trata-se de um instrumento que permite realizar uma ação numa situação particular. E aprender a falar é apropriarse de instrumentos para falar em situações discursivas diversas, isto é, apropriar-se de instrumentos para falar em situações discursivas diversas, isto é, apropriar-se de gêneros. (DOLZ & SCHNEUWLY, 1998, p. 65)

Mesmo com essa noção de gêneros como instrumentos, os autores mostram uma preocupação em não postular uma noção instrumental de língua, reconhecendo sua dimensão discursivo-interacional. Os GT seriam, então, um aspecto instrumental para que se realizasse a interação na língua. Tal constatação combina com a preocupação didática abordada pelos autores: pedagogicamente, os gêneros são ponto de partida, uma referência concreta de língua para os alunos, que passam a perceber no GT aspectos formais e pragmáticos da linguagem. Partindo disso, fica mais fácil para o aluno reconhecer em textos estratégias de leitura, análise e produção textual. É por isso que os autores postulam que os gêneros devem ser “as unidades concretas nas quais deve dar-se o ensino” (MARCUSCHI, 2009, p. 213), pois o aluno reconhece nesses instrumentos as formas de interação que eles utilizam na sociedade. Nesse sentido, a aplicabilidade para as aulas de FLE vai aparecer na forma de instrumentos para comunicação em LE, ou seja, o ensino dos GT vai instrumentalizar as situações comunicativas que deverão ser desenvolvidas

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pelos alunos. Na prática do ensino do FLE, essas situações são apresentadas aos alunos pela leitura de textos escritos e também orais (prática da escuta). A respeito da relação gênero-ensino defendida por Dolz e Schneuwly, especialmente no que concerne ao ensino da oralidade, também é oportuno destacar explicação encontrada em Marcuschi (2009, p. 212): Como os gêneros se acham sempre ancorados em alguma situação concreta, particularmente os orais, os autores julgam plausível partir de situações claras para trabalhar a oralidade. Assim, sendo o texto um evento singular e situado em algum contexto de produção, seja ele oral ou escrito, no ensino, é conveniente partir de uma situação e identificar alguma atividade a ser desenvolvida para que se inicie uma comunicação.

Assim, os autores argumentaram a favor de um modelo didático que indique o que pode vir a ser objeto de ensino-aprendizagem em situações específicas de comunicação. Para tal, lançam mão do conceito de sequências didáticas, conjunto de atividades escolares sistematicamente organizadas em torno de um gênero textual. A elaboração de tais sequências deve contemplar o conhecimento linguístico já elaborado pelo aluno a respeito do gênero eleito para o trabalho pedagógico; deve levar em conta também as capacidades de linguagem que já existem nos alunos. Na aula de FLE, as estruturas ativadas para o ensino do “compte rendu”, por exemplo, devem ser aquelas que os alunos já adquiriram no contato com outros gêneros. A partir daí, será posta a situação de comunicação a que eles serão submetidos e, por meio de um novo gênero (no caso, o “compte rendu”), novos aspectos linguísticos serão ativados. Para o desenvolvimento dessas capacidades, por meio de uma sequência didática, os temas escolhidos para o trabalho pedagógico com os GT devem considerar principalmente a motivação e a afetividade dos alunos, o grau de complexidade do tema e a real importância social desse tema para o alunado. A partir daí, os estudantes devem ser expostos à situação de uso de um determinado gênero, conhecer o projeto de produção deste exemplar e prosseguir com uma série de 551


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produções monitoradas pelo professor. Nessas sequências, há duas possibilidades para o ponto de partida: uma produção inicial ou a leitura.

MARCUSCHI O conceito de GT desenvolvido por Luiz Antonio Marcuschi (2005, 2009, 2011) tem claras relações com a teoria bakhtiniana. A distinção básica feita por Marcuschi é entre as noções de gênero textual (ou gênero discursivo), tipo textual (ou sequência textual) e esfera discursiva (ou domínio discursivo). É a essa diferenciação que vamos nos deter agora. Para Marcuschi (2009, p. 155), gênero textual refere os textos materializados em situações comunicativas recorrentes. Os gêneros textuais são os textos que encontramos em nossa vida diária e que apresentam padrões sociocomunicativos característicos definidos por composições funcionais, objetivos enunciativos e estilos concretamente realizados na integração de forças históricas, sociais, institucionais e técnicas. Em contraposição aos tipos, os gêneros são entidades empíricas em situações comunicativas e se expressam em designações diversas, constituindo em princípio listagens abertas.

Diferente dos GT, os tipos textuais são sequências textuais, definidas apenas linguisticamente. Tais tipos são limitados, segundo Marcuschi (2005, 2009), a cinco: narração, argumentação, exposição, descrição e injunção. Dentro de um mesmo texto, podemos encontrar várias sequências textuais de tipos diferentes, havendo ou não uma predominante. Com o GT, a situação é diferente: dificilmente encontraremos textos que pertençam a dois ou mais GT. O que pode acontecer é haver traços de um gênero presentes em outro gênero (o que é definido por Marcuschi como intergenericidade), como no caso de um poema que seja construído em forma de receita; mesmo nesse caso, ele continuará a ser um poema. Outro conceito importante nos postulados de Marcuschi é o de domínio

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discursivo. Tal conceito diz respeito a esferas de comunicação humana, nas quais há ações discursivas (ele retoma conceitos bakhtinianos nessas definições) marcadas por intenções em comum. É assim que podemos falar no discurso próprio do domínio jornalístico, do religioso, do acadêmico, do escolar, etc. A cada uma dessas esferas corresponde um agir específico da linguagem, que vai lançar mão, para isso, de inúmeros gêneros textuais. Encontramos, por exemplo, no discurso jurídico, os gêneros “contrato”, “lei”, “regimento”, “estatuto”, “certidão”, “edital”, “decreto”, entre diversos outros. Retomando a definição de GT proposta por Marcuschi (2005), é oportuno destacar que o autor também reconhece tal categoria como maleável. Ele caracteriza gêneros como “eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos”. Não há, então, rigidez na definição de um GT. Isso quer dizer que, além das configurações próprias da cada gênero, outros elementos como a individualidade e criatividade podem concorrer para a concretização de um gênero, o que pode resultar em exemplares diversos e singulares de um mesmo GT. Destaca o autor (2011, p. 31) que “o estatuto genérico de um texto não é algo imanente [...], mas relativo a seu funcionamento na relação com os atores envolvidos e as condições de enunciação”, o que caracteriza a dinamicidade dos GT. Nas atividades de leitura em LE, a identificação do GT, das sequências tipológicas e das esferas discursivas deve ser ponto de partida para o trabalho com o texto. A análise das características do gênero e do contexto discursivo é essencial para a compreensão global das ideias do texto, o entendimento das intenções pretendidas pelo autor, a leitura de inferências, a percepção da linguagem empregada, entre outros aspectos. A partir da observação das sequências tipológicas, as atividades de análise linguística podem ser também desenvolvidas.

BAKHTIN É central na teoria dos gêneros empreendida pelo pensador russo Mikhail Bakhtin (1992) a noção de gêneros do discurso como “tipos relativamente estáveis

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de enunciado”. Tal noção foge a um pensamento do gênero puramente linguístico, pois, uma vez que trata de forma relativa a estabilidade dos enunciados, reconhece os gêneros como uma categoria discursiva (gêneros seriam, pelo que ele postula, formas de enunciação, e não formas de texto) que está sujeita às intervenções do contexto. Para ele, os gêneros do discurso2 são fenômenos socioculturais, e por isso são passíveis de constantes inovações, provenientes das situações de uso em que eles estejam inseridos. Antes de entrar propriamente na discussão bakhtiniana a respeito dos gêneros, devemos observar o que vem a ser, em sua teoria, um enunciado, uma vez que ele caracteriza os gêneros como sendo tipos de enunciado. Para o autor (1992, p. 279), a utilização da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, que emanam dos integrantes duma ou doutra esfera da atividade humana. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada dos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional.

Em outras palavras, o enunciado (noção que se confunde, em alguns pontos de sua obra, com a de gênero) refletiria, em seu conteúdo temático, seu estilo verbal e em sua construção composicional, condições específicas das esferas de atividade humana. Esses enunciados são sempre “proferidos” pelos integrantes de esferas da atividade humana. Eles são, então, o material linguístico-discursivo inicial para as atividades de compreensão de textos em línguas. Para Bakhtin (1992), um enunciado nunca se repete, é um evento único na comunicação humana. Mesmo que ele seja retomado ou citado, já o será em ou-

2. Bakhtin utiliza as expressões “gêneros do discurso” ou “gêneros discursivos” no lugar de “gêneros de texto” ou “gêneros textuais”. 554


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tras condições sociais de comunicação, o que já o torna um novo evento. É por isso que não pode ser levado em conta para a definição de um enunciado apenas o componente linguístico. Grosso modo, podemos definir “enunciado” como sendo um texto envolto numa situação social de interação. Além disso, o autor também destaca o enunciado como “unidade real de comunicação discursiva”, pois é apenas através dele que o discurso passa a existir, tomar forma. Partindo dessa noção, Rodrigues (2005) destaca, de acordo com Bakhtin, os gêneros como “formas relativamente estáveis e normativas de enunciado”. Dentro dos estudos do Círculo de Bakhtin, os gêneros do discurso também são caracterizados como “formas de discurso social”, “formas de um todo”, “tipos de interação verbal”. Tais observações mostram os gêneros como uma pluralidade de categorias das ações desenvolvidas discursivamente, sendo uma “tipificação social” de enunciados apresentando determinadas regularidades que os identificam como de uma mesma natureza, pertencente a um mesmo grupo. Na própria definição bakhtiniana de gênero (“tipos relativamente estáveis de enunciado”), podemos perceber tanto seu caráter de tipificação social quanto seu caráter não estático. Este último traço, o não estatismo dos gêneros, é consequência de sua permanente construção histórica nas atividades humanas. Ao mesmo tempo em que o gênero é concreto (podemos reconhecê-lo em diferentes exemplares, os textos), ele também é situado historicamente, sendo um processo contínuo de comunicação humana, podendo, por ser processo, estar sujeito a mudanças. Para explicar essas características dos gêneros, é válido destacar o que Rodrigues (2005, p. 166) aponta: O Círculo [de Bakhtin] enfatiza a relativa estabilização dos gêneros, o seu caráter de processo ligado à atividade [comunicativa] humana (e não de produto apenas), pois, ao mesmo tempo em que se constituem como forças “reguladoras” para a construção, o acabamento e a interpretação dos enunciados, também se renovam a cada situação social de interação, pois cada enunciado individual contribui para a existência e continuidade dos gêneros.

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Outro ponto discutido na teoria bakhtiniana dos gêneros é que eles são sempre relacionados a uma das diversas esferas da atividade e comunicação humanas. São situações de interação que só existem dentro de determinada esfera social. Além disso, mesmo dentro de uma mesma esfera comunicativa, a cada nova situação de interação verbal corresponderá um gênero. Assim, é apenas nesses contextos discursivos e em situações de interação que se consegue apreender, por meio das já citadas ações sociais de comunicação, a constituição e o funcionamento dos gêneros. Nesse sentido, o “compte rendu”, mais uma vez citado como exemplo, é um gênero propício para o aprendizado do FLE, uma vez que seu contexto discursivo é deveras reconhecível nos meios de comunicação, e sua função social é bastante difundida na esfera jornalística, de aplicabilidade inegável. A partir dessa constatação, uma observação pertinente ao ensino se faz cabível: a aprendizagem dos gêneros (em destaque, no eixo da leitura) e, consequentemente, da língua só é útil se feita por meio dos contextos de uso em que eles estão inseridos, o que facilita a compreensão do aluno a respeito do processo que configura um gênero. Entendendo melhor o contexto comunicativo do gênero, fica mais fácil o entendimento de suas finalidade e estrutura. Por meio de todas essas considerações a respeito dos gêneros, podemos entender mais claramente o papel central que essa categoria assume, na teoria de Bakhtin, no processo de interação verbal. A esse respeito e a respeito da diferenciação entre forma linguística e gênero discursivo, Rodrigues aponta que, para além do domínio das formas de determinada língua (léxico, gramática), é necessário, para a interação, o domínio dos gêneros. As formas da língua e os gêneros do discurso são necessários para a interação, embora os gêneros, em comparação com as unidades da língua, sejam diferentes no que se refere a sua estabilidade e normatividade. As formas dos gêneros são bem mais flexíveis e combináveis, plásticas, mais sensíveis e ágeis às mudanças sociais do que as formas da língua. (RODRIGUES, 2005, p. 167)

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Feitas todas essas considerações a respeito dos gêneros, um ponto vai nos interessar em particular: os critérios utilizados por Bakhtin para definir quando um enunciado poderá ter estatuto de gênero, afora o fato de ele ter uma tipificação social. São estes os critérios, já citados aqui: conteúdo temático, construção composicional e estilo. O conteúdo temático, ou simplesmente tema, são “conteúdos ideologicamente conformados que se tornam comunicáveis (dizíveis) através do gênero” (ROJO, 2005, p. 196). É o componente do enunciado que comporta sentidos e faz referência a objetos do discurso. Num gênero do discurso, o conteúdo temático é identificado no objeto discursivo nele tratado, na finalidade discursiva (ou comunicativa) e na orientação de sentidos voltada para o interlocutor. A construção composicional de um enunciado é percebida na organização, na disposição e no acabamento do discurso como um todo e em sua relação com os participantes do processo comunicativo. Nas palavras de Rojo (ibidem), a forma composicional de um gênero é composta pelos “elementos das estruturas comunicativas e semióticas compartilhadas pelos textos pertencentes ao gênero”. Essa composição é diversa, o que vai definir os diferentes gêneros. Até mesmo dentro de um mesmo gênero, podemos encontrar uma heterogeneidade de composições, o que mostra mais uma vez seu caráter de relativo estatismo. O estilo verbal de um enunciado é a seleção dos recursos da língua a serem utilizados. Segundo Rojo (ibidem), as marcas linguísticas de um gênero (seu estilo) são “as configurações específicas das unidades de linguagem, traços da posição enunciativa do locutor e da forma composicional do gênero”. Em outras palavras, é o uso típico dos recursos da língua presente em cada gênero, que pode, ainda, aparecer no estilo individual do autor, o que nos permite atribuir um caráter de autonomia na proposição que deve ser feita aos alunos de FLE. Bakhtin (1992) destaca que, quanto mais o estilo individual do autor puder sobressair e ser definidor do estilo do próprio gênero, mais esse gênero será produtivo no discurso; é o caso dos gêneros da literatura, por exemplo.

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Um último ponto a ser discorrido sobre a teoria bakhtiniana dos gêneros é a diferenciação feita pelo teórico entre gêneros primários (espontâneos, mais simples) e secundários (mais complexos), sendo estes provenientes daqueles. A diferença entre essas duas categorias de gêneros do discurso não é funcional, uma vez que ambos se prestarão à interação verbal com iguais condições. Tal diferença aparece sobretudo historicamente, uma vez que os gêneros primários são utilizados em situações do cotidiano e os secundários são instituídos de acordo com novas necessidades comunicativas, geralmente mais estabilizadas e formalizadas. A respeito dessa distinção, também podemos buscar mais esclarecimentos em Rodrigues: Os gêneros primários (conversa de salão, conversa sobre temas cotidianos ou estéticos, carta, diário íntimo, bilhete, relato cotidiano, etc.) se constituem na comunicação discursiva imediata, no âmbito da ideologia do cotidiano (as ideologias não formalizadas e sistematizadas). Os gêneros secundários (romance, editorial, tese, palestra, anúncio, livro didático, encíclica, etc.) surgem nas condições de comunicação cultural mais “complexa”, no âmbito das ideologias formalizadas e especializadas, que, uma vez constituídas, “medeiam” as interações sociais: na esfera artística, científica, religiosa, jornalística, escolar, etc. Embora o autor [Bakhtin] afirme que os gêneros secundários surgem nas condições da comunicação cultural mais complexa, organizada e principalmente escrita, não é a escrita o princípio de diferenciação, pois há gêneros primários escritos, como o diário íntimo, e gêneros secundários orais, como a palestra. (RODRIGUES, 2005, p. 169)

Feitas todas essas considerações a respeito dessas quatro “teorias”, pudemos constatar que, mesmo todas elas tendo um ponto de partida em Bakhtin, há várias diferenças em cada uma. Novos aspectos são desdobrados ao se congregar essa teoria “inicial” a novos aportes teóricos, resultando numa pluralidade de visões. O mais importante disso tudo é a riqueza metodológica com que podemos trabalhar os GT, aplicando-os ao ensino de línguas, em especial ao de FLE. Cada traço novo 558


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desenvolvido pelos teóricos traz uma nova possibilidade de abordagem pedagógica. A seguir, iremos nos direcionar mais detalhadamente para as implicações pedagógicas das teorias abordadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Na prática escolar, o resultado dessas reflexões teóricas tem sido positivo. Atualmente, como já foi aqui exposto, o ensino de línguas já apresenta ótimas propostas para o trabalho centrado nos gêneros. E esse trabalho deve ir além da mera descrição formal. Marcuschi (2011, p. 31) destaca que “o ensino com base nos gêneros deveria orientar-se mais para aspectos da realidade do aluno do que para os gêneros mais poderosos, pelo menos como ponto de partida”. O autor traz essa observação porque, em um primeiro momento, o trabalho escolar dos gêneros se baseou apenas na imitação de modelos de textos mais formais, institucionalizados. Analisando novas práticas escolares com os GT em muitas escolas e manuais, já podemos perceber que tal trabalho, em alguns casos, já não é mais restrito e centrado em aspectos de forma e conteúdo. No entanto, ainda há muito a se fazer por esse ensino (ANTUNES, 2009). Devemos caminhar para uma prática pedagógica que sempre nos permita, por meio da análise de gêneros, discutir variados usos da língua, averiguando suas relações com cognição, cultura e ação social. Antunes (2002) mostra relações entre teorias linguísticas de estudo dos GT e o contexto escolar, destacando a relevância dos gêneros como ponto orientador do ensino em sala de aula. A autora propõe um ensino em que os alunos apreendam “fatos linguístico-comunicativos”, contextualizados e com aplicabilidade no cotidiano, e não apenas “fatos gramaticais”, deslocados dos reais usos da língua. Com isso, a competência de leitura e produção de textos será realmente desenvolvida nos discentes, de forma adequada e relevante; por meio de um bom trabalho com os gêneros, a aluno/ estudante perceberá, por exemplo, a relação entre as operações de textualização e os aspectos pragmáticos da situação em que se realiza a atividade humana da comunicação verbal.

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Assim, o aprendizado da língua por meio dos gêneros se faz importante, pois, com ele, os alunos são possibilitados de ter contato com diversas ações sociais de comunicação, apreendendo tanto conhecimentos acerca do uso linguístico quanto sistemas de valores da sociedade. Isso ocorre porque, de acordo com Marcuschi (2005, p. 35), o ensino pautado nos gêneros deve “levar os alunos a produzirem ou analisarem eventos linguísticos os mais diversos” (grifo nosso). Passa-se, então, de uma análise mais formal da língua per si para uma análise do evento linguístico como um todo, com seus variados fatos linguísticos e sociais. Analisando especificamente o ensino de LE, essa situação não se faz diferente. Lousada (2005, p. 75) destaca que, no ensino-aprendizagem de uma LE, é necessário que os alunos aprendam a compreender e produzir gêneros mais ou menos conhecidos/ mais ou menos parecidos com suas realizações em língua materna, dado que as sociedades contemporâneas do mundo ocidental apresentam características semelhantes.

Aprender uma nova língua por meio de situações de uso (e, por consequência, dos GT) já é ponto comum em concepções de ensino mais modernas, como a Abordagem Comunicativa e a Abordagem Interacional, em que é presente a proposta da Pedagogia de projetos (PUREN, 1988, 2004; MARTINEZ, 2009). Foi na esteira dessas novas concepções de ensino de LE que o Ministério da Educação do Governo Federal do Brasil organizou os PCN (Parâmetros Curriculares Nacionais) de língua estrangeira, no fim dos anos 1990. A clara influência de uma Pedagogia de Projetos já é vista logo no início do documento do ensino fundamental II (do 6º ao 9º ano), no organograma explicativo de seus objetivos (BRASIL, 1998). As áreas (disciplinas do currículo) estão didaticamente organizadas em blocos temáticos, que contemplam todas elas de forma interdisciplinar. A orientação dada para a disposição de temas e conteúdos no currículo é que ela seja feita de forma progressiva, levando em conta aspectos sociointeracionais envolvidos no processo de ensino/aprendizagem. Segundo Pinto (1999), foi essa visão sociointeracional da linguagem e de seu processo de 560


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ensino que orientou a elaboração dos parâmetros. Ainda segundo a autora (p. 121-122), para que o processo de construção do significado sociointeracional seja possível via língua estrangeira, o aprendiz utiliza conhecimentos sistêmicos, de mundo e sobre a organização textual, além de ter de aprender como usá-los na construção social do significado via língua estrangeira. A consciência desses tipos de conhecimento e a de seus usos são essenciais na aprendizagem, [visto] que focalizam aspectos metacognitivos e desenvolvem a consciência crítica do aprendiz no que se refere a como a linguagem é usada no mundo social, como reflexo de crenças, valores e projetos políticos.

É a formação dessa consciência linguístico-cognitiva que podemos relacionar como aquisição do componente pragmático da linguagem, enquanto LE. Tal componente deve ser central nesse processo de ensino, pois se reflete, em matéria de currículo, na identificação de aspectos sociais e interativos presentes na leitura, na compreensão, na análise e na produção de textos pertencentes a gêneros orais e escritos. Terminadas tais considerações, poderemos partir, no próximo capítulo, para sua aplicabilidade na descrição e no ensino do gênero francês “compte rendu”. Utilizaremos das teorias aqui mostradas, especialmente dos postulados de Bakhtin (1992), para tentar traçar, em linhas gerais, algumas das características de tal gênero e suas implicações pedagógicas. É esse, talvez, o maior contributo dessa revisão bibliográfica: trazer para o ensino de FLE as considerações teóricas a respeito dos GT.

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TEORIAS DOS GÊNEROS E O ENSINO DA LEITURA EM FLE

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Resumo O romance Três casas e um rio, do escritor Dalcídio Jurandir, estrutura-se como palimpsesto e como Romance rio. Os fios de textos anteriores são reaproveitados na tecelagem do novo texto. Diante de tal configuração, o presente trabalho efetua o levantamento e classificação das variadas estórias que se encontram intricadas na referida obra. Através deste procedimento e à luz do referencial teórico que trata das relações transtextuais, espera-se compreender a função dessas micronarrativas e o sentido de tal forma romanesca. Ao final da investigação, constata-se que os mitos, lendas e contos atuam como espelhos que refletem o enredo principal. Portanto, mais que mero registro do folclore popular, a intertextualidade faz parte da estratégia de construção da diegese dalcidiana. Palavras-chave: Intertextualidade. Micronarrativas. Reflexividade.


TRÊS CASAS, UM RIO E SEUS ESPELHOS NA DIEGESE DALCIDIANA Joanita Baú de Oliveira1 Ricardo Postal (orientador)2

INTRODUÇÃO Intertextualidade, mestiçagem, hibridismo, metalinguagem, paródia e mise en abyme são fenômenos característicos da arte moderna. É certo que alguns destes artifícios não são novos, ao menos dentro do âmbito da literatura. A paródia, por exemplo, remonta as comédias gregas. A intertextualidade, por sua vez, é componente estrutural de qualquer texto, de sorte que é inerente a todos eles em maior ou menor grau. O que se constitui então como novidade é o propósito com que estes elementos são empregados. Dentro do âmbito revisionista que marcou o surgimento das vanguardas europeias, eles problematizam questões consensuais sobre a obra e o artista. Como técnicas de criar a partir do já existente, despontam como solução possível para a saturação dos padrões estéticos. Como epistemologia que desvela o ato criador, instauram um novo modo de pensar o objeto artístico. Muitos desses procedimentos foram empregados por Dalcídio Jurandir na criação do ciclo romanesco denominado Extremo Norte. Através da forma do Romance rio, o escritor paraense escreveu um conjunto de dez livros com narrativas entrecruzadas. Excetuando-se Marajó (1947), todos os demais têm como fio condutor a história da formação do protagonista Alfredo. As obras são constituídas por narrativas que engendram outras narrativas e permanecem abertas

1. Mestranda em Teoria da Literatura pela universidade Federal de Pernambuco. Bolsista do CNPq. Joanita.bau@ hotmail.com. 2. Doutor em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor adjunto do Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Coordenador do Curso de Bacharelado em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Ricardopostal@gmail.com. 565


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à possibilidade de mais narrativas. O incessante ir e vir de estórias é propiciado pela aparição, desaparição e reaparição de personagens; pelo fluir da memória e pela contação ou referência a mitos, contos e lendas, que permeiam o imaginário amazônico e universal. Ao investigar este último ponto, em trabalho anterior (OLIVEIRA, 2013), descobrimos que as estórias orais aludidas no primeiro e terceiro romances do ciclo, respectivamente Chove nos campos de Cachoeira (1942) e Três casas e um rio (1958), desempenham importante papel na semantização desses romances. Os contos, lendas e mitos, contribuem na caracterização dos personagens e condensam e/ou ampliam a significação do enredo principal à medida que se desdobram sobre ele. Através do referido trabalho, percebemos também que alguns dos relatos secundários seguiam a mesma sequência da trama basilar. Assim, eles pareciam funcionar como micro espelhos a iluminar o desenrolar da diegese. Nesse sentido, surgiu a necessidade de investigar o fenômeno da reflexão interna nas obras Dalcidianas. É este, pois, o objetivo do presente artigo. A fim de efetuar uma pesquisa mais acurada, limitamos nosso corpus ao romance Três casas e um rio. A escolha se justifica por nos parecer que esta obra contém um conto que espelha o conjunto do ciclo. Com intuito de esboçar melhor o caminho traçado e os resultados alcançados, dividimos o trabalho em três partes. Na primeira, abordamos a obra e seu enredo, com vistas a destacar as múltiplas histórias que se entrelaçam ao longo da narrativa. Na segunda, levantamos o aporte teórico que trata das relações transtextuais. Na terceira, à luz do anteriormente exposto, procuramos classificar e compreender as funções das micronarrativas no livro eleito. Finalmente, nas considerações finais, tentamos compreender as razões que engendram essa forma romanesca.

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REFLEXIVIDADE INTERNA: A OBRA ENCARA O ESPELHO Os vários fios de um mesmo tecido O romance Três casas e um rio, como continuação do Romance rio de Dalcídio Jurandir, constitui-se de um emaranhado de narrativas que mesclam as histórias iniciadas em Chove nos campos de Cachoeira com as histórias de novos personagens. Além disso, a obra é repleta de intertextualidades. São constantes as alusões aos clássicos da literatura, às mitologias greco-latinas e bíblica e aos mitos e lendas do imaginário ribeirinho amazônico. Diante dessa configuração, se torna difícil resumir o enredo de forma a contemplar todas as pontas dessa rede. Por este motivo, registraremos aqui apenas a trama principal e as microestórias que tem relação direta com ela. Devido a esta restrição, é certo que não abarcaremos todos os casos de reflexividade interna do romance. Contudo, os casos selecionados certamente são suficientes para demonstrar a presença desse fenômeno na obra de Dalcídio Jurandir. Crendo que o tema central da obra é a partida do herói, o que chamamos de trama principal é o desenrolar das ações que confluem para a viagem do personagem Alfredo de Cachoeira para Belém. Consequentemente, as narrativas secundárias selecionadas são aquelas que contam sobre algum deslocamento. Alfredo é um menino, morador do município de Cachoeira do Arari, ilha de Marajó, que sonha estudar em Belém, capital do estado do Pará. O pai, Alberto, branco e letrado, é secretário da Intendência municipal e redator do único jornal a circular na cidade. A mãe, Amélia, negra e semianalfabeta, reside no chalé da família na condição de empregada e amásia. A situação não oficializada entre o casal desperta a inveja e a maledicência da sociedade local, preconceituosa e pseudomoralista. Mais crescido que no primeiro romance, Alfredo pode agora compreender melhor o lugar social designado para a mãe e para si. O fato de ser mestiço o incomoda, levando-o a sentir-se filho ilegítimo. A situação financeira da família e 567


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a resignação do pai o impede de seguir os estudos. Como não havia possibilidade de manter o menino em Belém por meios próprios, a ida de Alfredo para capital depende da influência política do Major. Este, porém, não têm coragem de cobrar os favores que lhe deve o Intendente municipal: Pela primeira vez, em Alfredo, se fazia mais ou menos clara a presença de uma luta surda, muitas vezes disfarçada mas irreparável, entre as pessoas ricas, tão poucas e as pessoas pobres que eram sem conta. Até então se julgava do lado das pessoas ricas, inclinado a ser uma delas ou pelo menos protegido, porque seu pai, embora pobre, tinha instrução, era Secretário, servia ao Intendente. Sua mãe mostrava-lhe uma realidade inesperada, acima das suas soluções de menino, da magia de seu faz-de-conta e o lançava entre os moleques, quase seus semelhantes agora. Ficaria entre os pobres, ao lado dos tios negros ou ao lado dos ricos, recebendo do dr. Bezerra promessas e promessas até o fim? (JURANDIR, 1979, p. 165)

Essa tomada de consciência aumenta ainda mais o desejo de Alfredo de seguir seus estudos. Diante da impossibilidade de ir para Belém de forma adequada e dos conflitos familiares que se agravam, o menino empreende duas tentativas de fuga. A primeira ocorre após mais uma discussão entre os pais, a qual fora motivada pelo alcoolismo de D. Amélia. Ao ouvir a briga do casal e encontrar a mãe em um estado de embriaguez lastimável, o menino sente-se ameaçado. Na sua inocência de criança, ele julga que o pai os expulsará de casa e se antecipa, saindo no meio da noite sem rumo certo. Assim, o garoto chega à fazenda de Marinatambalo. Felizmente, Lucíola, moça que nutre um amor maternal e doentio por Alfredo, o segue. Dias depois o garoto é restituído ao lar. A segunda fuga é motiva pela descoberta de que todo o dinheiro que ajudaria a custear sua partida fora surrupiado pela irmã do pai. Alfredo decide então não esperar mais e se esconde dentro de uma lancha que seguirá para Belém. Denunciado pela amiga Andreza, com quem compartilhara o segredo, o menino é novamente entregue aos pais.

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Após essas tentativas frustradas, Alfredo embarca, sob as bênçãos do pai, com D. Amélia para Belém. Durante a viagem, o barco enfrenta uma tempestade. Apavorado, o menino encontra o abrigo necessário nos braços da mãe. Voz rápida, sumária, inapelável. D. Amélia com aquele grito parecia comandar o barco, decidida pelo filho, a esmagar em suas mãos a trovoada. Alfredo recuando, sentiu-lhe o braço úmido e quente que o deteve. Minutos depois, a lembrança da oração. Jordão era aquele mar retinto de carvão e cólera. Ali, na baía de Marajó, Cristo não aparecia. Vinham, lentas, as palavras da oração: ‘...para me desterrar de todos os inimigos. De todos os malefícios, de morrer... ‘DE MORRER AGOGADO’ ‘Na barca de Noé, eu me tranco’. (JURANDIR, 1979, p.378)

Após a tempestade, o dia amanhece calmo e o romance termina com mãe e filho, no barco, aproximando-se de Belém. Esse último capítulo remete ao primeiro. A tempestade enfrentada durante a viagem lembra o faz-de-conta infantil ocorrido no início do romance. Alfredo e a irmã, Mariinha, fazem um passeio de canoa com Danilo, garoto pouco mais velho que eles. Durante o percurso, as três crianças fingem serem marinheiros a enfrentar uma violenta tempestade que ameaça levar o navio a pique, lembrando as narrativas de aventura. - Vamos, Alfredo, vira a vela. Prende a bijarruna, Mariinha. Ia contando os incidentes da ‘viagem’. Agora desviava a embarcação de uma ‘onda alta’, adiante era uma refega traiçoeira do vento. Mas ali tinha piloto. E o farol? Onde o farol? Alfredo apontava longe, era a janelinha iluminada de nhá Porcina. A montaria, esmagando os morurés, fazia bigode na proa, num choá saboroso. ‘Oi tempo!’ – gritava Danilo, empunhando a vara como se fosse a cana do leme. Por fim, anunciou que o temporal havia passado. Podiam os senhores passageiros sair para o convés. (JURANDIR, 1979, p.378) 569


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A menção a arca de Noé também se faz presente desde o início da obra. Durante o inverno, a água do rio subia a ponto de isolar o chalé da família de Alfredo. Com a casa cercada de água por todos os lados, Alfredo “fazia de conta que era o velho Noé, da Arca, tão falado pelo pai, mijando sobre o dilúvio” (JURANDIR, 1979, p. 18). Descobrindo aos poucos o alcoolismo da mãe, Alfredo se inquieta ao ouvir as seguintes palavras do pai: “- Aqui na Arca não é o Noé que esvazia as pipas. É a Noela”. Por este motivo, o garoto sai em busca da história do patriarca bíblico. As nove e meia da noite sozinho, sobre a mesa, encontrou isto: ‘E começou Noé a ser lavrador da terra e plantou uma vinha: e bebeu do vinho, e embebedou-se, e descobriu-se no meio de sua tenda. E viu Cão (sic), o pai de Canaan, a nudez de seu pai, e fê-lo saber a ambos seus irmãos fora. Então tomaram Sem e Japhet uma capa, e puseram-na sobre ambos os seus ombros, e indo virado para trás cobriram a nudez do seu pai, e os seus rostos eram virados, de maneira que não viram a nudez do seu pai. E despertou Noé do seu vinho, e soube o que seu filho menor lhe fizera. E disse: Maldito seja Canaan – servo dos servos seja a seus irmãos’. (JURANDIR, 1979, p. 135-6).

A passagem bíblica tem semelhança com o momento que Alfredo constata que, de fato, a mãe se embriagava. Desajeitadamente, procurou levantá-la, abraçando-lhe a cintura. Era uma nudez pesada e úmida que lhe queimava as mãos, tentou cobri-la com a toalha. Temeu, que ela se afoga-se na tina ao lado. Conseguiu erguer-lhe o busto e, contra seu hábito, beijou-a muito, como se quisesse convencê-la de que devia vestir-se, deslizando a cabeça pelos seios da mãe por onde suas lágrimas escorriam. Por fim ela soltou um gemido, arrastou-se e estendeu-se entre a bacia e a tina, de olhos cerrados, a boca crispada. Parecia adormecida. Ele a cobriu, então, com a toalha e com o seu pranto. E sentou, guardando o mistério, à porta do banheiro fechado. (JURANDIR, 1979, p. 136)

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A história da maldição de Can também remete ao medo de Alfredo de ser expulso de casa junto com a mãe. O menino sente-se filho bastardo, assim como o filho amaldiçoado por Noé. Essa perspectiva é reforçada pelo desvio dos bens que serviria para custear os estudos do garoto. A tia de Alfredo pede que as poucas reses da família sejam vendidas para que possa levar Marialba, filha de um casamento anterior do Major, a um médico que poderá curar a moça da cegueira. Entretanto, o tratamento de Marialba não passa de desculpa da tia, que pretendia obter dinheiro para fazer a festa de formatura do filho. Como já vimos, é a embriaguez da mãe e a falta de recursos que levam Alfredo a empreender as duas fugas de casa. As tentativas frustradas e a partida definitiva lembram o conto da Folha do lilás. D. Amélia começa a contar essa estória em Três casas e um rio, mas só a concluirá em romance posterior. A narrativa trata da partida de três irmãos em busca da cura para cegueira do pai. A cada vez que um sai de casa, os pais perguntam se ele deseja muito dinheiro e pouca benção ou muita benção e pouco dinheiro. O filho mais velho e o do meio preferem a primeira alternativa e, por sua ganância, não atingem o fim almejado. Somente o terceiro, ainda um garoto, prefere a segunda. Ao que tudo indica, ele conseguirá cumprir a tarefa e retornar para a casa. Entretanto, antes que o objetivo seja alcançado, a contação é interrompida. Ao longo do romance, há também um mito que trata sobre viagens e despedidas. Esse é narrado por D. Amélia, durante um festejo junino. Era a queixa de um rio a cobra, sua mãe, que o abandonava. O rio se lamentava soturnamente no meio do mato. Cobra Grande não me abandone. A terra crescia na água. O rio secava. Os estirões, largos outrora, se estreitavam, se estreitavam, e as margens se fundiram, balançando na rede dos cipoais. Cobra Grande não me abandone. A cobra dormia no fundo do rio e de repente acordou, era meia noite e deu um urro: vou me embora pras águas grandes. Então os peixes, todos os bichos, os caruanas, as almas dos afogados, os restos de trapiches, as montarias também seguiam pras águas grandes. Os restos de cemitério que tombavam nas

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beiradas, também partiam pras águas grandes. Adeus, ó limo da cobra grande, adeus ó peixes, adeus, marés, tudo vai embora pras águas grandes. Até a lama há de partir, os aninguais, as velhas guaribas, tudo seguindo pras águas grandes. O rio se queixava, se queixava, secando sempre: Não me abandones, mea mãe cobra, me amamenta nos teus peitos, vomita em meu peito o teu vômito, enche os meus poços, alaga as margens, quero viver, quero as marés, mãe cobra grande. Ninguém ouvia o agonizante rio. (JURANDIR, 1979, p. 131-2).

Até aqui, podemos perceber que o enredo de Três casas e um rio é tecido através de fios resgatados de narrativas anteriores de origens diversas. Também fica evidente que essas narrativas não se entrelaçam por acaso. Todas elas mantém certa relação de semelhança com a trama do romance. Mas afinal, como se classificam e qual a função dessas estórias na diegese Dalcidiana? Por que o escritor opta por essa forma romanesca?

Do palimpsesto à mise en abyme A transtextualidade de um texto é definida por Gerád Genette (2010, p. 13) como “tudo que o coloca em relação manifesta ou secreta com outros textos”. Essas interações ocorrem em todos eles. Seja escrita ou oral, uma produção textual sempre surge como resposta a uma anterior e permanece aberta a possibilidade de desencadear outras mais. A transformação de uma obra em outra, muitas vezes, deixa perceptível as marcas da anterior. Por este motivo, Genette (2010) utiliza como metáfora dessas modificações o palimpsesto. Este consiste no pergaminho cuja escrita fora raspada para dar lugar a uma nova. Entretanto, as marcas do primeiro registro não desapareciam de todo e, se postas contra a luz, o antigo poderia ser lido sob o novo. Do mesmo modo, Genette (2010, p.7) postula que “um texto pode sempre ler um outro, e assim por diante, até o final dos textos”. É seguindo essa premissa que pretendemos ler o romance Três casas e um rio a partir dos textos anteriores 572


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que o engendraram, bem como os textos que ele dá sequência no ciclo ao qual está integrado. Entre os cinco tipos de transtextualidades apontadas por Genette (2010), aqui nos interessa a intertextualidade, definida por ele como “relação de co-presença entre dois ou vários textos, isto é, essencialmente, e o mais frequentemente como presença efetiva de um texto em outro” (GENETT, 2010, p. 14), podendo ocorrer através de citação, plágio ou alusão. Esse termo foi empregado pela primeira vez por Julia Kristeva que, a partir dos estudos empreendidos por Bakhtin sobre polifonia e dialogismo3, compreende que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de outro texto”. (KRISTEVA, 1974, 64). Através dessas duas concepções, podemos inferir que a intertextualidade é um mecanismo autogerador de textos. Enquanto alguns criadores procuram camuflá-la, outros fazem questão de expô-la. Independente disto, é a partir dela que todo texto é tecido. A prática da intertextualidade, não se confunde com a da autotextualidade. Lucien Dällenbach (1979) esclarece que, enquanto o primeiro se refere às relações externas, o segundo trata das relações internas. Assim, a intertextualidade advém da referência de um texto a outro, a autotextualidade ocorre quando um texto faz referência a si mesmo. A autotextualidade é, portanto, o fenômeno denominado mise en abyme. Esta é definida por Dällenbach (1991, p. 49) como “todo espelho interno em que se reflete o conjunto do relato por reduplicação simples, repetida ou ilusória” (tradução nossa).

3. No prefácio à obra Problemas da poética de Dostoiévski, de Mikhail Bakhtin (5ª edição, 2010), Paulo Bezerra alerta para a deturpação que Kristeva faz de alguns conceitos chaves da teoria do estudioso russo. Segundo Paulo Bezerra, Kristeva substitui o termo palavra por texto e instaura a noção de intertextualidade no lugar de dialogismo. Embora percebamos, como Paulo Bezerra, certa diferença entre o dialogismo de Bakhtin e a intertextualidade de Kristeva, preferimos empregar esse segundo termo justamente porque ele nos parece mais de acordo com a abordagem que aqui fazemos das relações transtextuais. 573


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Esses três tipos podem ser assim esclarecidos: A reduplicação simples refere-se ao “fragmento que tem relação de similitude com a obra que o inclui”. A reduplicação até o infinito ocorre quando “fragmento tem relação de similitude com a obra que o inclui, e que por sua vez inclui um fragmento que tem relação de similitude... e assim sucessivamente”. A reduplicação apriorística decorre de um “fragmento em que se supõem que esteja incluído a obra que o inclui” (DÄLLENBACH, 1991, p. 48) (tradução nossa). Assim, embora diferentes, os três tipos têm em comum é o fato de refletirem, seja no nível do enunciado, da enunciação ou do código, a obra que os contêm. Esses níveis permitem a Dällenbach (1991) distinguir, então, três novas categorias. A Mise em abyme do Enunciado consiste no enunciado que condensa aquele que o contém. Nesse sentido, ele reforça e esclarece o conteúdo que pode estar obscurecido ao longo da diegese. Conforme a ordem de aparição na narrativa, a mise en abyme do enunciado pode ser de três tipos. Prospectiva, se aparece no início. Retrospectiva, quando se localiza ao final. Retroprospectiva, quando se encontra ao meio. A Mise en abyme da Enunciação procura revelar o modo de produção da obra, tornando o invisível visível. Assim, versará sobre o contexto de produção do objeto artístico e, normalmente, seu protagonista será um escritor ou um leitor. Já a Mise en abyme do Código se voltará para a técnica artística, a estrutura e o funcionamento da narrativa. Ela tenta captar os elementos em jogo e as relações estabelecidas entre eles. Ao final do estudo das tipologias, Dällenbach (1991) conclui que estas categorias não são estanques, de modo que uma mesma mise en abyme pode refletir mais de um nível. Outro estudo de grande relevância sobre o fenômeno de reflexividade interna é desenvolvido por Mieke Bal (1994). Esta articula as premissas de Dällenbach à semiologia. Assim, o conceito de mise en abyme é reformulado. Portanto, para Mieke Bal (1994, p. 52) a “mise en abyme é todo signo que tem por significado um aspecto relevante e contínuo do texto, da história, ou da fábula, o qual significa através de uma semelhança, uma ou várias vezes” (tradução nossa). 574


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Bal (1994) aponta que toda mise en abyme têm em comum com o signo o fato de significar por semelhança. Mas se toda mise en abyme é um signo, nem todo signo é uma mise en abyme. A diferença é que o signo assemelhar-se-á apenas a uma parte do enredo, enquanto a mise em abyme deverá refleti-lo como um todo. Por fim, gostaríamos de assinalar a função geral desempenhada pela mise en abyme, posto que as funções específicas de cada tipo já foram apontadas acima. O fenômeno da reflexividade interna, ainda de acordo com Dällenbach (1979, p. 54), tem “a aptidão para dotar a obra de uma estrutura forte, de assegurar melhor a significância, de a fazer dialogar consigo mesma e de a prover de um aparelho de auto-interpretação.” A autotextualidade também põe abaixo a ilusão referencial. Ela tem o poder de afirmar “Sou literatura, eu e a narrativa que me engasta.” (DÄLLENBACH 1979, p. 56) (grifo do autor). Todas as considerações levantadas até aqui podem ser resumidas pelas palavras de Todorov (2011, p. 114) ao tratar das narrativas encaixantes e encaixadas. Estamos diante de um discurso que não procura dissimular seu processo de enunciação, mas explicitá-lo. Ao mesmo tempo, essa explicitação revela rapidamente seus limites. Tratar do processo de enunciação no interior do enunciado é produzir um enunciado cujo processo de enunciação fica sempre por descrever. A narrativa que trata de sua própria criação nunca pode interromper-se, salvo arbitrariamente, pois resta sempre uma narrativa por fazer, resta sempre contar como essa narrativa que se está lendo e escrevendo pôde surgir. A literatura é infinita, no sentido de que trata sempre de sua criação.

Mise en abyme em Três casas e um rio A percepção do carácter intertextual dos romances Dalcidianos não constitui novidade. Vicente Salles (2006) possui um brilhante estudo sobre a presença do folclore amazônico nessas obras. Do mesmo modo, a referência à mitologia bíblica

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e greco-latina já foi abordada por alguns estudos sobre o ciclo do Extremo Norte. Assim, a contribuição que pretendemos trazer com esse trabalho é a de investigar como o folclore e a mitologia espelham o enredo principal da obra aqui analisada. O que levantamos até agora demonstra que todas as narrativas encaixadas têm relação de similitude com a obra encaixante, atendendo o principal requisito para serem consideradas mise en abyme. Resta agora, pois, analisar os demais aspectos. Para que uma obra tenha reflexividade interna Dällenbach (1991) considera necessário que haja indícios dessa intensão. Entre as pistas dispersas ao longo do romance, uma parece ser prova cabal do uso da mise en abyme por Dalcídio Jurandir. Se trata da identificação que Andreza faz de Alfredo com o personagem mais novo do conto A folha do lilás. - O filho mais novo... - Agora é o Alfredinho que entra na história, interrompeu Andreza. - O filho mais novo ainda era um menino... - Eu não disse que era um menino, que era Alfredo? (JURANDIR, 1970, p. 186)

A autotextualidade, ainda conforme Dällenbach (1991) e Mieke Bal (1994) acarreta a interrupção da diegese. Com exceção do faz-de-conta imaginado pelas crianças durante o passeio de canoa, todas as demais narrativas aqui selecionadas parecem atender a essa prerrogativa. Outro ponto de extrema importância é que a narrativa encaixada reflita a narrativa encaixante como um todo. Novamente, o faz-de-conta é excluído. Essa passagem se limita a refletir apenas ao momento de perigo enfrentado por Alfredo e D. Amélia no final do romance. Por este motivo, ela se enquadra melhor nas características que Mieke Bal (1994) destina ao signo, isto é, a semelhança com apenas uma parte do enredo. O mito do rio abandonado pela cobra grande também parece estar restrito apenas a um aspecto, se considerarmos que alude à separação entre mãe e filho. 576


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Mas a angústia do rio lembra também a de D. Amélia. Este sentimento perpassa todo o romance. Embora deseje muito realizar o sonho de Alfredo, a mãe sabe que sofrerá com a ausência do menino. Além disso, assim como o destino do rio é secar e morrer após a partida da cobra, os problemas de alcoolismo de Amélia se agravarão após a viagem do protagonista, conforme se registra nos romances posteriores. A história do patriarca Bíblico se fará presente em vários pontos da obra. Primeiro reflete a situação de isolamento da casa de Alfredo durante o inverno. Em segundo, a embriaguez de Noé se reflete na de D. Amélia. E em terceiro, a maldição de Can retrata as exclusões sócias sofridas por mãe e filho. Vale lembrar que esta passagem bíblica justificou a escravização do povo africano. Libertos da escravidão, os afrodescendentes ainda têm que conviver com o racismo. Essa situação preconceituosa é uma das denúncias sociais empreendidas por Dalcídio ao longo de sua obra. Mas o conto A folha do lilás é, por certo, a mise en abyme que mais abrange o desenrolar do enredo principal. Traçando um paralelo entre este conto e a trama de Três casas e um rio, encontramos semelhança entre as tentativas de viagem frustradas de Alfredo e a saída de casa dos dois primeiros irmãos. Não por acaso, quando estava prestes a fugir, o menino “lembrou-se da história da folha do lilás. Ia agora sem dinheiro e sem benção.” (JURANDIR, 1979, p. 280). A viagem do terceiro filho remete, portanto, a partida definitiva de Alfredo sob as bênçãos do pai e os cuidados da mãe. As mise en abymes em Dalcídio Jurandir também se diferenciaram quanto à localização na sequência do enredo. O mito da cobra grande seria claramente prospectivo, posto que precede a separação entre mãe e filho. Mas, como consideramos que ele reflete também a angústia gerada por esta separação, pode-se dizer que é retroprospectiva. A história de Noé também constitui um caso especial. As referências a essa passagem bíblica estão dispersa por toda obra. Por este motivo, ela não se encaixa plenamente em nenhuma das situações descritas por Dällenbach (1991). O

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ponto crucial, entretanto, está no momento em que Alfredo localiza na Bíblia o trecho da maldição de Can. Isso ocorre antes do menino encontrar a mãe nua e embriagada no banheiro, logo, ao menos nesse momento, temos uma mise en abyme prospectiva. Mas, ao contrário do que se possa esperar, a passagem não é de todo cumprida. De acordo com Dällenbach (1991), o desvio da sequência tem por objetivo provocar a surpresa do leitor. Esse não parece ser, entretanto, a principal função da antecipação dessa passagem ao desenrolar dos fatos. Na verdade, o falso indício desempenha o papel de desencadear a sequência diegetica. É possivelmente por imaginar que o pai, assim fez Noé com Can, pode expulsar a ele e a mãe do Chalé, que Alfredo resolve fugir. Assim, a prospecção age mais diretamente na imaginação do personagem que na do leitor. O conto da folha do lilás poderia ser completamente prospectivo, não fosse o fato de ser interrompida antes de sua conclusão. O adiamento do desfecho da narrativa o torna retroprospectivo e é correlato à forma do Romance rio. Nesta forma romanesca, o fim da obra não coincide com o fim da trama. Essa será retomada no romance imediatamente seguinte ou em posteriores. Assim, as histórias parecem se prolongar ao infinito. Nesse sentido, se até então as mise en abyme em Dalcídio se limitavam a refletir o enunciado, vimos agora que esta última parece aludir também ao código. A escolha do conto A folha do lilás para espelhar a história de Alfredo certamente não se deu ao acaso. De acordo com Mielietinski (1987), o conto maravilhoso normalmente narra a história individual de um herói que passará por várias provas para cumprir sua jornada, a qual se tornará símbolo de seu heroísmo. Do mesmo modo, a interrupção do conto logo após a partida do irmão mais novo não se dá ao acaso. Três casas e um rio também termina sem que possamos saber se Alfredo alcançou seu objetivo. Nesse sentido, o romance pode ser lido como o início da jornada do herói. Nas obras que se seguem, Alfredo passará por vários desafios em busca de formação. No último, ele finalmente retorna a Marajó. Como o pai, ele ocupará o cargo de secretário da intendência municipal. Enquanto desempenha essa função, aproveita para recolher as histórias e estórias do cotidiano e

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do folclore local, com os quais pretende criar um romance. O ciclo, portanto, se fecha com a mise en abyme da enunciação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os romances de Dalcídio Jurandir são frutos da pesquisa quase etnográfica que o escritor desempenhou durante os anos que viveu na Amazônia. Durante esse período, ele coletou os falares da população ribeirinha, observou a dura realidade dos trabalhadores locais e registrou o folclore popular. Quando mudou-se para o Rio de Janeiro, enviava cartas ao irmão pedindo informações sobre fatos ocorridos na região do Marajó. Foi o resultado dessas consultas que vemos registrada ao longo de todo o ciclo do Extremo Norte. A preocupação com a exposição da realidade Amazônica é, portanto, característica inegável na obra desse escritor. Como compreender, então, que ele se utilize de um recurso como a mise en abyme? Por que motivo ele empregue justamente do elemento que assiná-la que a obra de arte é ficção? A resposta a essas perguntas fogem a abrangência desse trabalho, posto que nosso objetivo limitava-se a constatar ou descartar a autotextualidade na obra Dalcidiana. Mas, como todo texto surge e gera novos textos, estas interrogações acendem a possibilidade do prosseguimento da discussão. Por enquanto, só podemos deduzir que, no caso de Dalcídio Jurandir, a preocupação com as causas igualitárias não significou o descuido com o fator estético. A utilização da mise en abyme demonstra que o escritor tinha consciência que o que fazia era ficção. A denúncia social consistia na sua visão de mundo. O manejo hábil dos recursos da linguagem foi o procedimento que propiciou transformar essaa visão em arte. A utilização do Romance rio permitiu a Dalcídio utilizar o material coletado durante as pesquisas. A essas fontes, ele mesclou imaginação e técnicas artísticas. Assim também, misturou os mitos greco-latinos e bíblicos aos amazônicos. Dessa forma, ele criou uma obra tão mestiça quanto seu protagonista.

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Ao aliar a forma do Romance rio ao mise en abyme, Dalcídio construiu uma obra prenhe de significação. Há uma passagem em Três casas e um rio reveladora dessa confluência. O menino espiava: o rio, com efeito, chegara até o soalho, crescendo e em sua escuridão poderia, de súbito e silenciosamente desaparecer o chalé. Também o rio, pela mesma fenda, espiava o telhado sem foro, a corda de roupa rente da janela fechada que dava para a despensa, aquele alguidar cheio dágua (sic) para apanhar as caturras à luz do candeeiro na mesa de jantar. (JURANDIR, 1970, p. 15)

Sem nos determos na simbologia da água, queremos apenas lembra as palavras de Bachelard (1997, p. 33) “tudo o que faz ver vê”. A água foi o primeiro espelho a refletir a face humana. O mito e a literatura foram, provavelmente, o segundo. O mito de Narciso espelha a literatura que se refere a ela mesma. Frente a frente, texto e imagem se reconhecem. Do início ao fim, as narrativas do Extremo Norte se desdobram uma sobre as outras, intertextualizando-se entre si e com tantas outras extraídas de fontes diversas. A trajetória de Alfredo flui e se reflete nas águas que se cruzam por toda a série. Ao final, o protagonista assume a posição de escritor. O ciclo aquático se renova. Assim, intertextualizando com a frase de Dalcídio, que separamos para epígrafe deste trabalho, podemos afirmar que rio e menino continuam se espiando.

REFERÊNCIAS BACHELARD. Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BAL. Mieke. Reflections on Reflection: the Mise em Abyme. In: On Meaning-Making: Essays in Semiotics. Sonoma, CA: Polebridge Press, 1994. DÄLLENBACH, Lucien. El relato especular. Madrid: Visor distribuciones, 1991. ______. Intertexto e autotexto. In: ______et. al. Intertextualidades. Coimbra: Alfredina, 1979. GENETTE, GERÁD. Palimpsesto. A literatura de segunda mão. Belo Horizonte: viva voz, 2010. 580


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JURANDIR, Dalcídio. Três casas e um rio: romance. 2.ed. rev. Rio de Janeiro: Cátedra; Brasília: INL, 1979. KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974. MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito. Tradução Paulo Bezerra Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1987. OLIVEIRA, Joanita Baú de. Mitos regionais, lendas universais na Amazônia de Dalcídio Jurandir. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DA ABRALIC: Internacionalização do Regional, 13., 2013, Campina Grande, PB. Anais eletrônicos... Campina Grande, PB: ABRALIC, 2013. Disponível em <http://editorarealize.com.br/revistas/abralicinternacional/trabalhos/Completo_Comunicacao_oral_idinscrito_676_fe5bd759012a4f334bd4cff3df534c8d.pdf >. Acesso em 24 nov. 2013. SALLES, Vicente. Dalcídio Jurandir, contador de estórias. In: NUNES, Benedito; PEREIRA, Ruy; PEREIRA, Sorais Reolon. Dalcídio Jurandir: romancista da Amazônia. Belém: SECULT; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Ruy Barbosa/Instituto Dalcídio Jurandir, 2006. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Tradução Layla Perrone-Moisés. São Paulo: Perspectiva, 2011.

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Resumo No presente trabalho pretendemos analisar a primeira parte da obra Tu não te moves de Ti, de Hilda Hilst (1980), que marca o desenvolvimento da autora como criadora de uma prosa poética única. O livro é composto de três partes/capítulos, sendo que, como dito acima, nos limitaremos, neste momento, ao estudo da primeira parte intitulada “Tadeu (da razão)”. A escolha dessa obra como corpus para o presente trabalho devese ao fato de o romance completo de Hilda Hilst ter sido objeto de análise em minha dissertação. Para realização desta análise crítica, elegemos como aporte teórico as considerações de Adorno em sua “Teoria Estética” (1982) e em “Notas de Literatura I” (2003) especificamente o ensaio “Posição do narrador no romance contemporâneo”. Por fim, no intuito de desenvolver uma investigação dos aspectos relacionados à linguagem e à representação, realizamos uma análise aprofundada do capítulo em estudo evidenciando em que medida a teoria adorniana pode dar lume à obra literária em questão. Palavras-chave: Hilda Hilst; Romance brasileiro; Adorno; Linguagem; Estética.


Tu não te moves de Ti: Tadeu (da razão) à luz de Adorno Amanda Barros de Melo1

Conforme destaca Adorno, todas as obras de arte, e a arte em geral, são enigmas; isso desde sempre irritou a teoria da arte. O fato de as obras de arte dizerem alguma coisa e no mesmo instante a ocultarem coloca o caráter enigmático sob o aspecto da linguagem (ADORNO, 1982, p.140). Neste sentido, estaremos analisando as formas de mimese, de representação da linguagem empregada pelo narrador e pela personagem “Tadeu” ao longo deste primeiro capítulo do romance à luz desta problematização. Além disso, consideramos pertinente a escolha da teoria “adorniana” já que esta trata de questões essenciais e intrínsecas da constituição de uma obra literária do século XX, período em que nosso objeto de análise se insere. Tal afirmação se confirmará na análise que desenvolveremos ao longo deste trabalho. Segundo Adorno, a linguagem é afetada por fatores externos – daí a impossibilidade das obras do século XX, de permanecerem orgânicas e harmonizadas no plano construtivo e expressivo. A fragmentação das palavras reflete a fragmentação e descontinuidade do mundo exterior; logo, o estudo da arte literária, e, por consequência, da palavra, deve envolver questões políticas e sociais, não podendo separá-las. Os artistas encontram essa necessidade de desintegração na feitura das próprias obras. É inegável o fato de que um vínculo indissolúvel está presente entre o caos social e o “caos” das narrativas do século XX. Como nos aponta Adorno (1982, p.60), bem envolvido pelo espírito da época, “o belo deixou de existir”. Para Adorno (1982, p. 68), “a arte é o refúgio do comportamento mimético”, sendo que “a sobrevivência da mimese [...] define a arte como uma forma de conhecimento e sob este aspecto, como também racional” (1982, p.69). Logo,

1. Doutoranda em teoria da literatura do programa de pós-graduação em letras (PPGL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: amandabarrospe@gmail.com. Recife/Brasil. 583


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podemos depreender que, para Adorno, a arte é “calculada”, é racionalmente criada, despojada de qualquer isolamento em relação ao mundo ou de autonomia da linguagem. Afinal, “a arte é racionalidade que critica esta sem se lhe subtrair” (ADORNO, 1982, p. 69). Para Adorno, “as obras de arte que se apresentam sem resíduo à reflexão e ao pensamento não são obras de arte” (1982, p. 142), justamente pelo fato citado anteriormente – a inevitável ligação da arte literária com os acontecimentos sociais brutais e aparentemente ilógicos do capitalismo tardio. Logo, para melhor compreender Adorno é primordial verificar sua vinculação com o contexto em que vive, principalmente pelo fato de ser contemporâneo das atrocidades nazistas e todo o clima criado com os conflitos mundiais da primeira metade do século XX. Podemos então confirmar o comportamento mimético da arte a partir da seguinte afirmação: “a sua expressão é o contrário da expressão de alguma coisa” (ADORNO, 1982, p. 132). Segundo Adorno “as obras de arte não devem ser compreendidas pela estética como objetos hermenêuticos; na situação atual, haveria que apreender a sua ininteligibilidade” (ADORNO, 1982, p. 138). Partiremos, assim, deste princípio em nossa análise – buscar detectar o que levaria o narrador a “optar” pelo ininteligível, pelo descontínuo e pela invenção de uma linguagem quase incompreensível. De fato, segundo Adorno, percebemos alguma coisa de arte, mas, não compreendemos arte. “Quem se contenta com compreender algo na arte transforma-a em evidência, o que ela de modo algum é” (ADORNO, 1982, p. 142). Portanto, a arte é oposta ao imediato, ou seja, oposta à comunicação, à interpretação imediata e estável . Daí o nosso enfoque centrar-se não exatamente no que é dito, mas, como é dito. A forma e o conteúdo por vezes indecifrável podem dizer mais aos leitores do que resultaria de uma simples tentativa de descodificar o que está sendo criado pelo artista ou escritor. Afinal, “não há enigma a resolver, trata-se apenas de decifrar a sua estrutura, e tal é a tarefa da filosofia da arte” (ADORNO, 1982, p.142). Ou seja, o enigmático das obras de arte é racionalmente trabalhado, podendo ser acessado através de suas estruturas, não havendo transcendência ou mistério envolvidos no processo. Contudo, vale destacar que, nesse sentido, a arte

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necessita de um suporte material, já que “a racionalidade é, na obra de arte, o momento criador de unidade e organizador [...] mas não copia sua ordem categorial” (ADORNO, 1982, p. 70). Podemos depreender, então, que a arte faz parte da realidade, mas que seu impulso mimético não se reduz a ela, não copia sua ordem categorial. Daí as possibilidades de rupturas vistas e concretizadas em obras do século XX, também claramente identificáveis em nosso objeto de estudo. Com base em Adorno (1982, p. 147), “as obras de arte são os objetos cuja verdade só pode ser representada como a verdade da sua interioridade. A imitação é o caminho que conduz a tal interioridade”. Percebe-se aqui um elogio à imitação, claro que nem sempre resultando em imitação fiel, adjetivo que nem acha lugar neste campo de significados. Um outro ponto interessante a ser observado na teoria adorniana é o destaque que esta apresenta da negatividade das obras de arte: As obras de arte são negativas a priori em virtude da lei da sua obectivação: causam a morte do que objectivizam ao arrancá-lo à imediatidade da sua vida. A sua própria vida alimenta-se da morte. Isso define o limiar qualitativo para a modernidade. As obras modernas abandonam-se mimeticamente à reificação, ao seu princípio de morte. [...] Se, após o começo da modernidade, a arte absorveu objetos estranhos à arte que se integram na sua lei formal não inteiramente modificados, a mimese da arte abandona-se, até a montagem, ao seu contrário. A arte é forçada a isso pela realidade social. (ADORNO, 1982, p. 154)

Portanto, como já mencionado, a arte, que é parte da realidade, ao “negá-la”, estabelece sua ligação com a mesma. A arte é, assim, forçada a alimentar-se de morte do que representa; ou seja, esta não pode isentar-se de seu contexto. Para Adorno, “a aporia da arte, entre a regressão à magia literal ou a transferência do impulso mimético para a racionalidade coisificante, prescreve-lhe a sua lei de movimento, tal aporia não pode remover-se” (ADORNO, 1982, p. 69). Afinal, “o paradoxo de toda arte moderna é adquirir ao mesmo tempo o que rejeita” (ADOR585


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NO, 1982, p. 157). Diríamos que o que aparentemente tem de morrer para que a arte seja possível, ou seja, a realidade em seu caráter mais concreto e direto, é exatamente o elemento propulsor da criação de algo mais vivo do que o próprio “real”, que consegue transcender várias limitações que a realidade sequer nos permitiria conceber. Conforme Adorno (2003, p. 55), a posição do narrador atualmente se caracteriza por um paradoxo: não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija narração. O processo de desintegração das identidades, de descontinuidade da vida tem impossibilitado o desenvolvimento de uma forma de narrar onde a lógica e a harmonia prevaleçam como ocorria nos textos clássicos. A realidade em que se insere o narrador contemporâneo não lhe oferece possibilidades de fugir de seu contexto e empregar uma linguagem ou contar uma história que esteja desprovida do caráter caótico das esferas político-sociais contemporâneas. Para Adorno “contar algo significa ter algo especial a dizer, e justamente isso é impedido pelo mundo administrado, pela estandardização e pela mesmice” (2003, p.56). O processo de reificação que domina as relações entre os indivíduos exclui a possibilidade de uma real diferença entre esses, culminando na reprodução de comportamentos e vontades, ou seja, na mesmice. Segundo Adorno, quanto mais densa e cerradamente se fecha a superfície do processo social da vida, tanto mais hermeticamente esta encobre a essência como um véu. Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que, na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo (2003, p. 57).

Pode-se considerar que, se o Realismo foi um período em que todos (leitores, escritores, narradores) iludiram-se no que se refere à representação fiel, real, as narrativas contemporâneas não podem evitar frustrar tais expectativas. Como vimos na Teoria Estética “é possível prever a perspectiva de uma recusa da arte em 586


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nome da arte [...] é melhor não haver arte alguma do que o realismo socialista” (ADORNO, 1982, p.68). Por fim, Adorno aponta que a distância estética vem diminuindo cada vez mais nos romances modernos, não sendo mais possível ao leitor uma atitude contemplativa diante das obras; o leitor é forçado a mergulhar no universo ficcional de forma inevitável, fazendo parte da mesma e sendo inquietado por sua simples existência. Além disso, para Adorno, A atitude contemplativa tornou-se um sarcasmo sangrento, porque a permanente ameaça da catástrofe não permite mais a observação imparcial, e nem mesmo a imitação estética dessa situação. [...] A abolição da distância é um mandamento da própria forma (2003, p. 61).

Portanto, leitores, personagens, fundamentais elementos que permitem a existência do texto literário são abalados pela recriação e pelas reconsiderações que a impõe. Tu não te moves de Ti, foi publicado em 1980 e é constituído de três partes/ capítulos: Tadeu (da razão), Matamoros (da fantasia) e Axelrod (da proporção). Os capítulos são aparentemente desconexos, mas revelam, numa leitura mais atenta, uma relação de crescente complexidade entre os mesmos, marcando o desenvolvimento de uma prosa poética inconfundível por parte da autora. Como dito no início deste trabalho, nos limitaremos neste momento à primeira parte – Tadeu (da razão). A narrativa “Tadeu (da razão)” nos apresenta um indivíduo, Tadeu, que se descobre infeliz com a própria vida: o emprego, o casamento, a casa, tudo se torna estranho e, de súbito, distante. O personagem se descobre só, ainda que rodeado de pessoas; ninguém o ouve, e sua esposa Rute não entende seus questionamentos e seu desejo de largar tudo e ser poeta. Durante a narrativa Tadeu se declara “demasiadamente possuído por alguma coisa inominável” (HILST, 2004, p. 23). Daí o embate que estabelece com a linguagem, afinal, como diria Adorno, “a arte nova esforça-se pela transformação da 587


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linguagem comunicativa numa linguagem mimética” (1982, p. 132). O que encontramos nessa obra é uma aproximação da linguagem com o pensamento caótico ou descontínuo, já que a expressão é, desde o início, problematizada, não sendo nada útil no campo da comunicação ou representação compreensível. Prosseguindo, seguem discussões com a esposa, desabafos, desilusões e incertezas que circundam todos envolvidos. Tadeu resolve buscar sua alma de mim, tadeu-homin na “casa dos velhos”. Rute o julga louco, sendo que ele afirma: “louco sim, cerrado para o teu mundo e para o mundo dos outros” (HILST, 2004, p. 32). Durante a narrativa Rute repete uma pergunta inicial “devo dispensar o motorista?”, como se não desse atenção à fala de Tadeu. Na verdade, é dessa forma que a lacuna, o abismo entre os dois se estabelece – enquanto ele investiga questões cruciais e inquietantes, Rute apenas se preocupa com as organizações referentes ao motorista. Assim, Tadeu resolve ir à “casa dos velhos”, lá encontrando algumas personagens que aparecerão nos capítulos subseqüentes: Heredera, Exumado, Áima, Pasion, todos com nomes bastante significativos. Não se sabe bem se a casa é “real” ou se é apenas um delírio de Tadeu ou até mesmo seu passado revisto; naquela casa os assuntos são a morte, a vida, os sonhos. Confusamente Tadeu volta a falar sobre Rute, dos livros de Jorge de Lima e de Drummond, que ela guardava em lugares difíceis de chegar. A fala de Tadeu é livre de limites cronológicos e topográficos. Suas referências são também livres da preocupação com linearidade e lógica, a razão sendo exatamente o que ele parece dispensar. Enquanto que ele não obedece a cronologias e quaisquer outras tentativas de regularizações, a esposa o puxa para o concreto, para o (des) necessário: “Então, Tadeu, dispenso o motorista?”. Considerando-se, como dito anteriormente, a aproximação da linguagem com o pensamento caótico, podemos perceber neste romance de Hilst uma proposital confusão verbal que impede uma delimitação lógica das vozes da narrativa. Por vezes, as vozes se confundem a ponto de não sabermos se quem fala é Tadeupersonagem ou Tadeu-narrador. Adorno, de certa forma, explica esse fenômeno atestando que “parte do significado que as obras de arte possuem consiste em camuflá-lo” (1982, p. 139).

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Podemos confirmar o dito anterior através do exemplo a seguir, em que temos um longo discurso de fluxo de consciência em que surge um outro sujeito discursivo: Tadeu falando de si próprio na voz de uma terceira pessoa. É um outro Tadeu de si mesmo, um Tadeu da razão: Impulsiono o balanço de repente, Tadeu nos ares, flutua, [...] corpo aquecido e livre pensando o seu estar no mundo [..] que coisa tinha Tadeu a ver com os outros?[...] PODER quer dizer Tadeu sentado na mesa, os sócios cinco rescendendo a lavanda inglesa os papéis as cifras, a lisura do branco e os algarismos santos, estilete de luz pousando no Ativo e no Passivo, Balanço-Gólgota do Sistema, Otimização Satisfatório Satisfaciente, verdura-rúcula-de prata na bandeja de nós dois, Tadeu e Rute, turquesas sobre a mesa, homem-sério Tadeu, olhar nunca para o céu, não, isso nunca, apenas em alguma madrugada lívido hei de olhar para esse fundo. (HILST, 2004, p.23)

Tadeu aos cinquenta anos tem um desejo profundo de entender a existência, sendo que as pessoas mais próximas a ele não o ouvem ou compreendem. Um médico seu amigo dá a seguinte ordem: “pare de olhar a vida com esse jeito assombrado, o que é que andas vendo que o pessoal não vê?” (HILST, 2004, p. 19). Que coisa tinha Tadeu a ver com os outros? Aqui temos a clara confirmação da incapacidade do sujeito de mover-se ou de se comunicar no real sentido da palavra; ele está preso a um poder maior que ele e que o oprime de forma implacável. “Tudo se pulveriza” (HILST, 2004, p. 19). Como diria Gouveia (2004, p. 26), à luz de Adorno, No campo da literatura, a drástica redução da ação não é apenas uma ruptura experimental com os enredos clássicos e realistas, mas a mimese da retração do sujeito no século XX. Os indivíduos se sentem insignificantes diante de uma máquina gigantesca de poder; além disso, não desenvolvem uma ação coletiva capaz de superar o obscurantismo individualista.

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No decorrer da narrativa, encontramos longos espaços vazios numa frase ou noutra, entre uma palavra e outra, que forçam pausas para o início do discurso de outrem, ou que simplesmente quebram a lógica habitual de sequência para expelir e expressar palavras soltas. Tentamos expor o seguinte trecho com a maior fidelidade espacial possível: Minha alma escurecida Quê? Minha alma escurecida Quê? Nada. que horas são? Dez. agora já é tarde para pedires a escada. (HILST, 2004, p.27)

Essa disposição textual força o leitor explicitamente a realizar os preenchimentos cabíveis, ou, pelo menos, tentar fazê-lo, num momento de reflexão. Como diria Adorno, é um mandamento da própria forma a abolição da distância, é o encolhimento da distância estética a que o leitor não pode fugir. “Quanto mais profunda e totalmente as obras são formadas, tanto mais rebeldes se tornam contra a aparência organizada e esta inflexibilidade é o fenômeno negativo de sua verdade” (ADORNO, 1982, p. 150). Ou seja, ao negar a racionalidade, a narrativa estabelece sua ligação com ela. Outro aspecto interessante é que, através do discurso de Tadeu, constatamos a tentativa de criar uma “nova” língua, culminando no possível desejo de recriar o mundo ao seu redor ou dar-lhe nova vida e significação: Pedias um filho, Rute, e o tom de voz era azul-pastoso-aguado, idêntico a todos os tons de teus pedidos, banco de convento armário de vinhático, caixas de prata lavrada biombos de marfim e laca, ah, Tadeu que não te possuía no teu azul-fecundo-pastoso momento. [...] Tapa-me os ouvidos, que eu não ouça mais a voz untada oleoso-amêndoa oblíqua sobre o meu pescoço. (HILST, 2004, p.28 e 29)

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Seria a criação da “segunda linguagem” a que Adorno se refere “uma linguagem de coisa, deterioradamente associativa” (2003, p. 62). Além disso, esta junção de palavras, por meio de hifens, é extremamente apelativa do ponto de vista sensorial. “Azul-pastoso-aguado” apela para três sentidos, respectivamente: visão, tato e paladar. Este apelo sinestésico perpassa toda a obra, conferindo-lhe um caráter poético evidente. Continuando nossa análise, podemos contemplar mais uma vez experimentações vocabulares para enfatizar os sentimentos da personagem Tadeu, seu deslocamento em relação ao mundo, e sua interminável busca existencial, que será o grande tema de todo o capítulo: Que horas são? Estou mesmo aqui? Pergunto a cada instante só para camuflar o meu projeto de querer estar noutro lugar, só para que eu tenha um minuto a mais de suposta segurança, mas não me encontro aqui e a hora não é essa que me dizes [...] Estou zero-hora, Rute, amigos estou zero-mundo. (HILST, 2004, p.32).

Como diria Adorno (1982, p.142) “a própria compreensão é uma categoria problemática”. Não podemos olhar esta obra como um objeto a ser compreendido, afinal, o impulso mimético aqui se dá pela resistência e negação do real e do racional. Pois, “a arte constitui um momento no processo de ‘desencantamento do mundo’ implicado na racionalização” (ADORNO, 1982, p. 68). No entanto, não podemos esquecer que “arte é racionalidade que critica esta sem se lhe subtrair” (1982, p. 69). Prosseguindo na análise, as indagações de Tadeu vão ainda mais longe ao pensar sobre a arbitrariedade do signo linguístico: Chamam de carne isso que nos recobre, mas posso pensar como seria o nome da minha carne se eu efetivamente quisesse nomeá-la, pensar a carne longe das referências, pensar a carne como se quiséssemos mergulhá-la na pia batismal, ANANHAC de mim, te chamas ANANHAC, carne nova de Tadeu imaculada (HILST, 2004, p.32)

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Aqui temos o enfraquecimento do referente, característica essencial de romances modernos em que há uma problematização da relação entre a realidade e a linguagem, ou seja, uma problematização do próprio processo mimético. Tratase de uma estrutura que coloca em evidência os conflitos e onde se percebe que os nomes não mais representam as coisas como elas eram até então. A história da personagem Tadeu representa, nisso concordamos plenamente com Adorno, “uma reação à má irracionalidade do mundo racional enquanto administrado” (1982, p. 68). Tadeu representa a tentativa frustrada de romper com as imposições do mundo externo, mundo esse que hostiliza o homem a ponto de imobilizá-lo. Afinal, “a expressão da arte comporta-se mimeticamente, da mesma maneira que a expressão dos vivos é a da dor” (ADORNO, 1982, p. 130). Para Adorno (1982, p.142), não atender ao abismo oferece uma medíocre proteção. [...] perante o ‘para quê isso?’ as obras de arte emudecem irremediavelmente. Afinal, “as grandes obras de arte não podem mentir” (ADORNO, 19982, p. 150). Em um mundo em que a perspectiva de mudança, de uma nova condição, encontrase completamente impossível, “o espaço do enredo é exaustivamente trabalhado por outros elementos, que mimetizam, conforme Adorno, o negativo do mundo administrado em seu caráter mesquinho e inútil” (GOUVEIA, 2004, p. 62). Tadeu fala de sua esposa Rute e dos livros de Jorge de Lima e de Drummond, que ela guardava em lugares difíceis de chegar: Tu não os guardava, Rute, proibia-os de mim porque eu os amava, porque se a poesia se fizesse o meu sangue, a alma de Tadeu solar rejeitaria teus algarismos santos, porque se o poeta em mim amanhecesse no traço ou no verso, Tadeu veria Rute esvaziada, e vazia igualmente a Empresa, a Causa. [...] Dispenso o motorista perguntavas de repente porque talvez adivinhasses a tensão que me provocava a frase, era preciso optar a cada manhã, eu repetiria o trajeto até a Empresa ou enfim diria adeus? E à noite era preciso escolher entre o jazigo ao teu lado, tuas tolas caretas, tuas professorais advertências ou enfim o berro da alma de Tadeu, gritando por solidão ou por um mundo onde não estivesses ao meu lado, onde eu

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pudesse calar como neste instante, que sim, que estou calado, e tão vivo, tão possuído de mim verdadeiro [...] (HILST, 2004, p.45-46)

Aqui temos um trecho exemplar da narrativa hilstiana, representando o desejo de Tadeu de possuir a si mesmo, de livrar-se dos grilhões externos que o aprisionam a tudo que não lhe diz nada, buscando encontrar-se, através da poesia; cabe aqui trazer à tona mais uma vez a pertinência e genialidade de Adorno: “a arte é o refúgio do comportamento mimético”. Além disso, é através dos livros mais adorados que Tadeu pode enxergar e sentir o vazio e inutilidade da presença da esposa. A partir daqui, temos um momento curioso de metadiscursividade, em que o ofício do poeta é alternadamente criticado e defendido na narrativa, obviamente defendido por Tadeu e criticado por Rute: Como é possível ir até o fim da própria vida sem se perguntar ao menos: por que é que estou vivo? Por que é que estamos vivos, hein Rute?[...] São uns loucos esses caras que escrevem [...] Porque é a vida que vêem onde não vemos nada, mesura excessiva porque em tudo, também no desprazido existir de seres ínfimos, no que nos rodeia e que não vedes, vêem além. (HILST, 2004, p. 48)

Por fim, a narrativa se desdobra da seguinte forma: Eu contemplando sou uma única e solitária visão, no entanto soma-se a mim o indescritível e único ser do outro, um contorno poderoso, uma outra vastidão de corpos, frescor e sofrimento, mergulho no hálito de tudo que contemplo, sou eu-teu-corpo ali, lançando às estrelas, sou no infinito, sou em tudo porque meu coração-pensamento existe em tumulto, espanto, piedade, te sabe, te contempla. Eu, homem rico Tadeu agora tento o veio, o nódulo primeiro, estou em algum lugar onde me pretendo, sagrada ubiqüidade, braçadas neste pleno do espaço, nascido de uma carne nado veloz à esplêndida matriz. Então, Tadeu, dispenso o motorista? (HILST, 2004, p.54)

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Podemos concluir que nessa narrativa não há um acontecimento especial a ser narrado e isso confirma o caráter mimético de uma obra do século XX, em que o sujeito se encontra desprovido de suas potencialidades diante de uma realidade social cruel e devastadora. O sujeito então se encontra impotente, mas através da arte encontra um local de resistência, mesmo que por vezes, insuficiente, como é o caso da personagem Tadeu. Tadeu “termina” sua busca por si mesmo, mostrando a ilogicidade e a insuficiência discursiva, quando já não há mais nenhuma certeza, nenhuma forma de controle pessoal sobre a existência. Evidencia, dessa forma, sua rejeição ao mundo como um todo, de forma que o leitor não tem como escapar ileso de seus questionamentos e descobertas. É como se certa náusea contagiante afetasse todos em contato com a narrativa, que traz à tona a náusea do mundo externo e dito real. Contudo, esta é uma náusea produtiva, que faz enxergar e discriminar melhor. Podemos, por fim, acenar que continuamos sem nos movermos de nós mesmos, sem nos movermos de nossa agonia pela lógica e pela busca pelo sentido maior, ainda que cada vez crer nisso ou em qualquer coisa seja mais e mais difícil. Nesta narrativa todos os caminhos levam a um só: a perda de sentido ou a falta deles, que talvez permita uma compreensão outra e maior. Por fim, reconhecemos que estamos diante de uma obra desafiadora e que esse estudo apenas se inicia com o presente trabalho, com a consciência de precisaríamos de muito mais tempo de pesquisa para aprofundarmos algumas das questões levantadas aqui. Concluímos, então, à maneira de Hilda Hilst, e ao leitor atento de Adorno: Tu não te moves de ti – na verdade, um convite aberto à movência.

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Tu não te moves de Ti: Tadeu (da razão) à luz de Adorno

REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. Teoria estética. Lisboa: Edições 70, 1982. ______. Posição do narrador no romance contemporâneo. In: Notas de literatura I. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2003. GOUVEIA, Arturo. A epopéia negativa do século XX (a filosofia da não-identidade em Adorno). In: Dois ensaios frankfurtianos. João Pessoa: Idéia, 2004. HILST, Hilda. Tu não te moves de ti. São Paulo: Cultura, 1980.

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Resumo O presente artigo tem por objetivo apresentar uma amostra das variações lexicais encontradas no Atlas Linguístico de Buíque (ALiBui). A pesquisa contempla as respostas ao Questionário Semântico-Lexical Específico sobre o Parque Nacional do Catimbau – eleito em 2007 uma das sete maravilhas do Estado de Pernambuco. O estudo se baseou nos pressupostos metodológicos da Dialetologia e nos preceitos da Geolinguística. A escolha dos pontos e a caracterização dos informantes seguiram as orientações do projeto Atlas Linguístico do Brasil (ALiB). A pesquisa é pioneira em Buíque, sendo essa a primeira localidade a ter um atlas linguístico municipal no Estado de Pernambuco. Por isso, espera-se que, a partir dele, muitos outros atlas municipais e regionais venham a ser realizados. Além disso, os resultados encontrados poderão ser usados futuramente na comparação com outras pesquisas de caráter semelhante. Palavras-chave: Variação Lexical; Dialetologia; Atlas Linguístico; Buíque.


VARIAÇÕES LEXICAIS SOBRE O CATIMBAU NO ATLAS LINGUÍSTICO DE BUÍQUE (PE) Joseane Cavalcanti Ferreira1

INTRODUÇÃO Sociedade e língua estão intimamente ligadas. Elas coexistem. Além disso, os processos de mudança e variação linguística são essencialmente heterogêneos e socioculturais. É impossível separar a história das línguas da história da cultura das comunidades que as detêm. A língua é uma entidade dinâmica, é a marca significativa da identidade de um povo. É o principal instrumento de transmissão e a principal herança deixada ao longo das gerações. É uma herança espontânea. O Brasil é um país que, incontestavelmente, possui uma língua que apresenta um alto nível de variabilidade e diversidade. Isso se deve, em grande parte, à sua extensão territorial. Convém entender, assim, que o espaço geográfico demonstra que, em cada região, há uma particularidade e uma variedade que a língua adquire de um lugar para outro, como forma de ratificar a diversidade e a riqueza cultural, a base linguística preexistente e a influência de outras línguas que possam ter interferido no falar dos indivíduos de determinada região. É à Dialetologia que cabe o estudo de tal fenômeno. A presente pesquisa desenvolveu-se por meio da metodologia geolinguística, seguindo os preceitos da Dialetologia Pluridimensional, incutindo as dimensões das variações verticais e horizontais.

1. Supervisora de Cultura do SESC/PE (Serviço Social do Comércio). Especialista em Programação em Ensino de Língua Portuguesa pela Universidade de Pernambuco - UPE, dedicando-se a pesquisas de variação linguística desde a licenciatura. Endereço eletrônico: jcavalcanti13@gmail.com 597


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Buscando proporcionar um maior conhecimento na área semântico-lexical, enfatizando as variações diatópicas e diastráticas, este artigo oferece para pesquisadores da língua um importante material para o conhecimento sobre a variedade do Português falado em Pernambuco.

A DIALETOLOGIA NO BRASIL As línguas variam de acordo com o lugar. Essa variação pode ocorrer dentro de um mesmo país, ocorrendo nas diversas regiões nele existentes, ou mesmo em outros países e em diferentes continentes. Nós, falantes, adquirimos as variedades linguísticas próprias da região em que estamos situados. A variação diatópica está relacionada às variações e características linguísticas observáveis entre falantes em ambientes geográficos diferentes. É a Dialetologia, através do seu método chamado de Geolinguística, que estuda e discorre sobre essas variações. Diante disso, é imprescindível abordarmos tanto sobre a Dialetologia como sobre a Geolinguística. A Dialetologia está inserida no campo da Linguística e tem a tarefa de estudar os diversos dialetos, além de “identificar, descrever e situar os diferentes usos em que uma língua se diversifica, conforme a sua distribuição espacial, sociocultural e cronológica” (CARDOSO, 2010, p. 15). A Geografia Linguística ou Geolinguística estuda as variações do uso da língua por falantes ou grupos sociais geograficamente distintos. Além disso, a Geolinguística estuda também a cartografia dos dados, pois segundo Lordan (1962, p. 273), “a geografia linguística significa a representação cartográfica do material linguístico com o objetivo de determinar a repetição topográfica dos fenômenos”. A partir disso, é possível observar a relação entre o espaço geográfico e a distribuição espacial dos elementos linguísticos, verificando assim a norma diatópica da localidade e

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considerando que a ideia de norma está definitivamente caracterizada pela presença da alta frequência e pela distribuição regular das variações em uma comunidade linguística, e que cabe à Geolinguística a descrição das variações diatópicas, poderemos especificar, por meio das respostas obtidas de entrevistas aplicadas a sujeitos de um certo grupo numa dada localização, a norma característica do local, além de precisar a repetição topográfica dos fenômenos observados em cartogramas. (CRISTIANINI, 2007, p. 50)

Os cartogramas linguísticos, resultantes da recolha de dados, reunidos, constituem os atlas linguísticos. A utilização de atlas para demonstração dos resultados significa um importante avanço se comparado aos usos dos glossários, pois é a partir do emprego de atlas que é possível visualizar de maneira mais substancial as variedades linguísticas em certa localidade. De acordo com Aragão (2005): A Dialetologia no Brasil, apesar das dificuldades que sempre passou, especialmente com a pouca quantidade de pessoal qualificado, da falta de interesse das instituições e da consequente falta de recursos, continua a se expandir, não só quantitativamente, mas qualitativamente, incluindo em seus estudos os aspectos diastráticos e diafásicos.

A elaboração de um Atlas Nacional não é algo simples e rápido, principalmente quando se trata do nosso país pela sua extensão territorial. Em se tratando disso, Nascentes (1958, p. 7) sugere que, embora seja muito vantajoso um atlas feito ao mesmo tempo no país inteiro, pois o fim não muito distanciado do início, os Estados Unidos, país vasto com belas trilhas, preferiram a elaboração de atlas regionais, para uni-los depois no atlas geral. Igualmente nós deveríamos fazer isto em nosso país que também é vasto.

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Nascentes, publicou em 2 volumes (1958 – 1961) com as Bases para a elaboração do Atlas Linguístico do Brasil e evidencia as dificuldades quanto à extensão do país, sugerindo ser mais apropriado a realização de atlas regionais. Temos no Brasil, até agora a elaboração dos seguintes Atlas Linguísticos: • • • • • • • • • • • • •

Atlas Prévio dos Falares Baianos – APFB, em 1963; Esboço do Atlas Linguístico de Minas Gerais – EALMG, em 1977; Atlas Linguístico da Paraíba - ALPB, em 1984; Atlas Linguístico do Sergipe – ALS I, em 1987; Atlas Linguístico do Paraná - ALPR, em 1994; Atlas Linguístico do Sergipe II – ALS II, em 2002; Atlas Linguístico-Etnográfico da Região Sul do Brasil - ALERS, em 2002; Atlas Linguístico Sonoro do Pará - ALISPA, em 2004; Atlas Linguístico do Amazonas, em 2004; Atlas Semântico-Lexical da Região do Grande ABC, em 2007; Atlas Linguístico do Mato Grosso do Sul - ALMS, em 2008; Atlas Linguístico do Estado do Ceará - ALECE, em 2010 Atlas Linguístico de Goiás, em 2012;

• Atlas dos falares do Rio Negro, 2013.

Em fase de elaboração, há os seguintes atlas: • • • • • • • • • •

Atlas Linguístico do Brasil – Projeto ALiB; Atlas Linguístico de Pernambuco; Atlas Etnográfico do Acre; Atlas Linguístico do Maranhão; Atlas Linguístico do Mato Grosso; Atlas Geolinguístico do Pará; Atlas Linguístico do Rio Grande do Norte; Atlas Etnolinguístico dos pescadores do Estado do Rio de Janeiro; Atlas Linguístico do Estado de São Paulo; Atlas Linguístico do Pará;

• Atlas Linguístico de Alagoas. 600


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É notória a importante da realização de trabalhos desta natureza, que além de boa base teórica sobre Dialetologia e Geolinguística, requer determinação, é preciso antes de tudo, ter “consciência da seriedade de ‘mapear’ a língua” (SÁ, 2010). Não há como separar língua e variação. E nem língua de sociedade. Já que a variação provém das mudanças nos aspectos sociais da língua e consequentemente, influencia e/ou determina o léxico de uma comunidade. Entender a complexa relação entre língua e sociedade e língua associada ao espaço geográfico dos falantes, é o que tem instigado dialetólogos e pesquisadores dessa área.

Dialetologia em Pernambuco Além dos atlas citados no item anterior, outros estudos geolinguísticos vêm sendo realizados, fazendo com que a Geolinguística no Brasil venha crescendo de forma significativa, sobretudo, na produção de dissertações e teses, que impulsionam a realização de Atlas regionais que têm permitido, cada vez mais, um real conhecimento da língua falada no país. É o caso do Atlas Linguístico da Mata Sul de Pernambuco, o ALMASPE, do Atlas Linguístico de Buíque, o ALIBUI e do Atlas Linguístico de Pernambuco, o ALIPE – em fase avançada de pesquisas. O ALMASPE foi concluído no ano de 2009 e apresentado à Universidade Federal da Paraíba como dissertação de mestrado. A responsável pelo projeto foi a professora e pesquisadora Edlene Maria Oliveira de Almeida, sob a orientação da professora Dra. Maria do Socorro Silva Aragão. O Atlas teve como objetivo a descrição da realidade linguística da língua portuguesa na Mata Sul Pernambucana no aspecto semântico-lexical, além de mostrar “as características de diferenciações linguísticas na região, oferecendo não só aos professores, lexicógrafos, gramáticos e autores de livros didáticos, dados importantes para o conhecimento da língua, sua produção e seu ensino” (ALMEIDA, 2009). O ALIBUI foi concluído em 2011 e teve como principal objetivo descrever a realidade linguística da cidade de Buíque, também no aspecto semântico-lexical, oferecendo subsídios importantes para a pesquisa Geolinguística no Brasil e para

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os estudos da língua portuguesa falada. A responsável pelo projeto foi Joseane Cavalcanti Ferreira, na época aluna da especialização em Programação ao Ensino de Língua Portuguesa da Universidade de Pernambuco – UPE. A pesquisa de campo baseou-se nos pressupostos da Dialetologia e nos princípios teórico-metodológicos da Geolinguística. A escolha dos pontos e a caracterização dos informantes basearam-se nas orientações do Projeto ALIB (Atlas Linguístico do Brasil). As cartas do Atlas Linguístico de Buíque mostram as variações diatópicas, constituindo-se, assim, de um volume compreendendo o histórico do município, a fundamentação teórica, a metodologia e 41 cartas lexicais. O ALIPE será o primeiro Atlas Linguístico do Estado. O projeto já está em fase avançada de pesquisas, sendo realizado como Tese de Doutorado para Universidade Federal da Paraíba, cujo responsável é o professor M. Edmilson José de Sá. A pesquisa deve percorrer vinte e um municípios do estado de Pernambuco, considerando os quatro pontos cardeais, ou seja, de Afrânio a Recife e de São José do Egito a Tacaratu. A escolha dos pontos de inquérito foi feita de acordo com alguns princípios teóricos, segundo os quais é preciso levar em consideração a realidade socioeconômica, os aspectos históricos e a importância do município para o estado. Em cada localidade, quatro informantes foram entrevistados entre 18 a 30 e 50 a 65 anos, contemplando os gêneros masculino e feminino, e a escolaridade até o quinto ano (antiga 4ª série do ensino fundamental), à exceção da capital, Recife, que, conforme a metodologia preexistente, também requer a diagnose com pessoas de nível superior completo. Para cada informante foram feitas questões de âmbito fonético-fonológico, semântico-lexical, morfossintático, pragmático e prosódico. Além dessas, também foram realizadas perguntas do questionário semântico-lexical específico que contempla o frevo, o maracatu, a renascença e o barro, num total de quatrocentos e vinte e uma questões.

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BUÍQUE: O MUNICÍPIO E O VALE DO CATIMBAU O município de Buíque está situado na Mesorregião do Agreste Pernambucano e na microrregião do Vale do Ipanema, com uma população estimada em 51.990 habitantes de acordo com o último senso realizado pelo IBGE em 2010. No que diz respeito à etimologia, a palavra Buíque, significa “sal da terra”, conforme Aciole & Assis (2004); assim sendo: uby, ubú, bú-yiqui. No entanto, essa versão entra em contradição com a de origem Tupi, que quer dizer “lugar de cobras”, ou seja, boy=cobra, que=aqui. Há ainda outra versão que foi assinalada por Sebastião Galvão (1921). Esta afirma que a expressão seria de origem do osso do fêmur humano que os índios utilizavam como um instrumento para emitir sons e se assemelhava a um eco que produzia um som parecido com buíque, buíque etc. Buíque possui riquezas naturais que o diferencia. No município fica localizado o Parque Nacional do Catimbau, que, conforme ISSA (2006) é considerado o segundo maior sítio arqueológico do país, tanto pela quantidade de pinturas e inscrições quanto pelo valor histórico. O parque começou a ser protegido somente em dezembro de 2002, data da criação do Parque Nacional do Catimbau. O parque possui uma área de 62.300 hectares e abrange outros dois municípios além de Buíque: Ibimirim e Tupanatinga. A região possui um pequeno povoado, próximo ao parque e é nesse lugar onde se encontram os guias turísticos credenciados para conduzir os turistas pelas trilhas. O parque possui algumas versões quanto ao nome. As duas mais conhecidas são: cachimbo velho e homem ridículo que remetem à prática de feitiçaria. Há outra versão que mais “aceitável” que seria morro que perdeu a ponta. (ISSA, 2006), pelo fato da erosão das serras com o passar do tempo. O maior diferencial nas formações areníticas do Catimbau é a estrutura frágil das formações rochosas que são esculpidas pela ação do vento e da chuva. Há a região do Alcobaça que fica a 32 km do vale. No Alcobaça há um paredão enorme de inscrições rupestres, que encantam por tamanha beleza e riqueza histórica e cultura. 603


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O parque possui muitas trilhas como a trilha das Torres, trilha da pedra da Concha e a trilha do Cânion. Há formações rochosas que dão para visualizar, dependendo do ponto, a alguns quilômetros de distância. A região possui muitas outras serras que impressionam por tamanha beleza e por muitos outros atrativos naturais e únicos como se observa na Pedra da Concha, chamada pelos antigos moradores como Pedra Pintada, onde estão as primeiras inscrições encontradas na região. O único lugar do vale onde as tradições Agreste e Nordeste podem ser observadas num mesmo painel. O parque ainda reserva surpresas aos visitantes, cemitérios indígenas, fontes de água cristalina, cânions e ainda tem como vizinhos os índios da etnia Kapinawá. (ISSA, 2006)

Devido à sua extensão há muito coisa para se conhecer no Parque Nacional do Catimbau, para percorrer todas as trilhas seriam necessários cerca de três meses de caminhadas. A vegetação do Catimbau apresenta características diferenciadas por ser uma área de transição entre a Caatinga e o Agreste. É perceptível essa diferenciação no Morro dos Breus, onde a paisagem é maior em caatinga. O Parque tem favorecido de forma relevante os seguimentos de turismo sustentável como o Ecoturismo, Turismo Pedagógico, Cultural, Científico de Aventuras. Com isso, tem ganhado força no Município e atraindo parcerias importantes em nível governamental e não governamental, como o Ministério da Educação, o Ministério do Desenvolvimento e Reforma Agrária, do IBAMA, da FUNASA, do SENAC, do SEBRAE, do Comitê Nacional Pró-cajú, entre outros.

QUESTÕES METODOLÓGICAS A pesquisa é fundamentada segundo os preceitos da Geolinguística, seguindo o método da Dialetologia. Toda pesquisa de caráter dialetal é baseada em três parâmetros básicos: a rede de pontos, aplicação de questionários e os informan604


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tes - que devem compartilhar peculiaridades e traços linguísticos. Pois, conforme Coseriu, a Geolinguística: Pressupõe o registro em mapas especiais de um número relativamente elevado de formas linguísticas (fônicas, lexicais ou gramaticais) comprovadas mediante pesquisa direta e unitária numa rede de pontos de um terminado território, ou que, pelo menos, tem em conta a distribuição das formas no espaço geográfico correspondente à língua, às línguas, aos dialetos ou aos falares estudados. (Coseriu, 1950 apud ALMEIDA 1982, p.79)

Nesse sentido, levando-se em conta o espaço geográfico, é possível situar como lócus da pesquisa uma única localidade, uma região, um estado, um país ou mesmo um continente, como elucidam os “trabalhos como o linguajar carioca de Antenor Nascentes, O Atlas linguístico de Sergipe, o Atlas linguístico-etnográfico da região Sul do Brasil, o Atlas linguistique de La France e o Atlas Linguarum Europae”. (CARDOSO, 2010, p. 89). O projeto ALiBui adotou a mesma metodologia do projeto Atlas Linguístico do Brasil - ALiB. No entanto, o fato de o município estar situado na região do Parque Nacional do Catimbau, considerado uma das sete maravilhas do Estado de Pernambuco e o segundo maior sítio arqueológico do país, conforme ISSA (2006), foram acrescidas ao Questionário Semântico-lexical proposto pelo ALiB, oito perguntas específicas sobre o lugar, devido ao seu valor histórico e com o intuito de despertar maior interesse à cultura local. Desse modo, o total de questões chegou à quantia de duzentas e dez. O corpus do Atlas Linguístico de Buíque foi constituído a partir dos resultados do material angariado por meio de entrevistas com 20 informantes, distribuídos nos pontos de inquérito elencados para a pesquisa no município. Como é comum em trabalhos que seguem a Geolinguística, a pesquisa em tela desenvolveu-se a partir da combinação de alguns processos metodológicos. A pesquisa propriamente dita para esse projeto encetou a partir do estudo sobre 605


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a história e a cultura local. É a partir da realização dessa primeira etapa que será possível compreender os dados obtidos na pesquisa de campo a posteriori. Buíque trata-se de uma cidade que tem uma realidade linguística variável, por possuir aspectos geográficos e turísticos que contribuem para a variação da língua. Levando-se em consideração essas características, a pesquisa abrangeu apenas o meio urbano. A escolha dos pontos de inquérito para a aplicação do questionário se deu basicamente por um motivo: localização. A localização refere-se à rede de pontos e o objetivo principal foi mapear toda a sede, formando assim uma malha que cobre tanto a parte central da cidade como as periferias, quais sejam: Vila do Posto, Bairro Frei Damião, Centro, Bairro Cruz de São Benedito e Bairro São José. Os resultados encontrados e analisados à luz da Dialetologia poderão ser usados, futuramente, na comparação com outras pesquisas de caráter semelhante.

APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS Os estudos da Dialetologia têm demonstrado que a perspectiva diatópica caminha lado a lado com os aspectos sociais no que se refere à constituição de uma metodologia a ser utilizada na Geolinguística. A forma que o método é focado vai depender do lugar (região) e dos objetivos a serem alcançados na pesquisa. Então, fatores sociais – idade, gênero, escolaridade, profissão – têm-se constituído em aspectos da variação que, de forma diferenciada e com graus distintos de focalização, vêm ocupando lugar nos estudos dialetais, especificamente naqueles que se desenvolvem sob a metodologia geolinguística.(CARDOSO, 2010, p. 49-50).

Em cada localidade, a seleção dos inquiridos foi feita baseando-se nos critérios estabelecidos pelo ALiB, que também levam em consideração os preceitos da Geolinguística pluridimensional – mudanças horizontais e mudanças verticais, conforme Mota (2004). 606


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A diversidade lexical encontrada nas cartas de Buíque sobre o Catimbau pode ser comprovada numa amostra das cartas dispostas as seguir. Nesse campo específico, foi feita uma pergunta sobre como se chamam aqueles buracos grandes que as pessoas costumam visitar no Catimbau e são feitos de rocha. As respostas da carta abaixo revelam também uma variedade de lexias. Figura 1 - Carta 37 com as realizações para cavernas.

Como pode ser visto, apenas as lexias toca e oca foram mencionadas uma vez, enquanto as demais ultrapassaram essa quantidade. A resposta gruta foi a mais proferida. Segundo Houaiss (2009), o termo designa uma cavidade de forma e profundidade variáveis, encontrada frequentemente em rochas calcárias ou em arenitos de cimento calcário. Sua etimologia advém de criptae, do latim e significa galeria escura.

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Figura 2 - Carta 39 com as realizações para Serra do Cachorro, Serra do Elefante.

Na pergunta sobre qual é o nome da serra que parece o formato de um animal, o termo Serra do Cachorro teve maior relevância. Contudo, convém explicar que a pergunta poderia gerar mais de uma resposta, já que pelo menos duas das serras do Parque têm formações rochosas que lembram figuras de animais como a Serra do Cachorro e a Serra do Elefante. É notória a grande quantidade de realizações para “Não sabe”. Nesse caso fica claro perceber que há ainda uma falta de interesse da população local sobre essa riqueza natural que é o Parque Nacional do Catimbau.

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Figura 3 - Carta 40 com as realizações para mandacaru.

Ao perguntar sobre qual o tipo de vegetação que é comum encontrar no Catimbau, houve várias realizações, incluindo a realização “Não sabe”, dita por pessoas que, provavelmente, se sentiram intimidadas diante da presença do inquiridor, porém a lexia cajueiro se sobressaiu diante das outras. Isso pode ser explicado pelo fato de que há uma grande plantação de caju localizada dentro do Parque, beneficiando inúmeras famílias da região. A organização não governamental Amigos do Bem é a responsável pelo cultivo, colheita, fabricação e exportação dos produtos extraídos do caju, dentro da Vila Agrícola da ONG.

CONCLUSÃO Este artigo teve como intuito divulgar o Atlas Linguístico de Buíque (ALIBUI), tendo como objetivo primordial dar ênfase às variações lexicais encontradas no Atlas sobre o Catimbau.

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A estrutura do atlas seguiu os pressupostos teórico-metodológicos do ALIB, usando, para esse fim, os questionários semântico-lexicais, acrescidos de perguntas de cunho específico, para as quais foi sugerido o campo semântico Catimbau, já que esse faz parte da cultura do local e por abranger uma das maravilhas do estado de Pernambuco. Tendo em vista o seu pioneirismo em Buíque, esperamos que, a partir dele, muitos outros atlas municipais e regionais, venham a ser realizados. Os resultados encontrados e analisados à luz da Dialetologia poderão ser usados futuramente na comparação com outras pesquisas de caráter semelhante, e assim, contribuir com a construção do Atlas Linguístico de Pernambuco, em fase avançada de pesquisas.

REFERÊNCIAS ACIOLE, Vera Lúcia Costa; ASSIS, Virgínia Maria Almoêdo de Assis. Buíque: uma história preservada. Edição comemorativa do sesquicentenário da emancipação política de Buíque. Recife: Poligraf, 2004. ALMEIDA, Edlene Maria Oliveira. Atlas Linguístico da Mata Sul de Pernambuco – ALMASPE. Universidade Federal da Paraíba. 2007. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. Os estudos geolinguísticos no Brasil: dos atlas regionais ao ALiB. 2009. ATLAS LINGUÍSTICO DO BRASIL. Disponível em < http://www.alib.ufba.br/andamento.asp/ > Acesso em: 15 de janeiro de 2011. CARDOSO, Suzana Alice. Geolinguística: tradição e modernidade. São Paulo: Parábola, 2010. COSERIU, Eugenio. La geografia linguística. Cuadernos del Instituto Linguístico Latinoamericano, Montevideo, n. 11, 1965. CRISTIANINI, Adriana Cristina. Atlas Semântico-lexical da Região do Grande ABC. Disponível em http://www.fflch.usp.br/dlcv/lport/pdf/slp22/02.pdf Acesso em 08 de dezembro de 2010. CRISTIANINI, Adriana Cristina; ENCARNAÇÃO, Márcia Regina Teixeira da. De Antenor Nascentes ao Projeto Atlas Linguístico do Brasil – AliB: conquistas da Geolinguística no Brasil. Revista Letra Magna, 2006.

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VARIAÇÕES LEXICAIS SOBRE O CATIMBAU NO ATLAS LINGUÍSTICO DE BUÍQUE (PE)

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Resumo Neste trabalho investigamos a variação linguística surgida entre tribos de jovens.Foi realizada uma pesquisa do tipo revisão de literatura da questão teórica de autores como : Sírio Possenti (2001) ; Celso Pedro Luft (1998); Elie Bajard (2005) ; Marcos Bagno (1999); e Dino Preti (1994), que mostram estudos direcionado ao assunto sobre a sociolinguística e seus aspectos da oralidade e escrita. Analisar os fatores socioculturais que agem sobre a língua oral, a influência da norma culta e os problemas de transcrição da fala entre a interação dos jovens ; A tecnologia e a mídia que podem exercer um valor significativo na sua linguagem. Destacar a estrutura linguística das interações entre jovens decorrente da variação , e, considerando a quebra do preconceito linguístico dentro do campo escolar. Palavras-chave: Variação linguística ; Escrita ; Oralidade.


VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E FAIXA ETÁRIA: INTERAÇÃO ENTRE JOVENS Bruna Maria Paz de Lira1

INTRODUÇÃO A descrição linguística da oralidade e da escrita ao longo da história tem dado lugar a uma grande contradição: por uma parte considerar a língua falada, no modo coloquial, como algo natural e primitiva e a escrita como uma modalidade derivada da oral – e a prática de escrever como sua mera transcrição –; e atribuir, por outra parte, à língua falada as características de errada, incompleta, não normativa. Apoiada na oposição entre o oral e o escrito, esta descrição implica na desvalorização do indivíduo e da sua linguagem. O que realmente existe é uma comunidade linguística formada por um corpo social que tem a sua marca dentro de um código da língua, e, dentro desta língua, possui um mosaico de normas, um leque de possibilidades de auto-realização, e entre essas possibilidades há uma realização, falada ou escrita, que se aproxima mais do que prescreve a gramática normativa. Entretanto, há divergências entre grupos sobre esta “variação” , dando uma contra oposição, pois já se sabe que a língua é viva de movimento, e nesta ação se constrói numa variante da língua. Neste trabalho, é analisada esta perfomace da linguagem num grupo de jovens, designando-se apenas esta faixa etária, pois ali se encontra uma gama rica de variação linguística através do comportamento social e da influencia sociolinguístico e dos seus adereços, como: a mídia e a tecnologia. Esta oposição questiona-se este tipo de grupo da juventade a sua forma de se comunicar advindo da modalidade da escrita e oral. É bastante comum en-

1. Mestranda em Ciências da Linguagem da Universidade Católica de Pernambuco ( UNICAP). 613


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contrar uma pressão contra a sociolinguística no campo escolar, porque nesta instituição se predomina a norma culta da língua, tanto falada quanto escrita (principalmente a escrita). É através desta situação que os jovens alunos sofrem preconceito por parte do corpo docente de Língua Portuguesa, decorrente da variação, que acaba gerando uma titulação nos alunos, que são chamados de negligentes e incapazes de dominar a sua própria língua. De acordo com leituras especializadas sobre a língua e suas variações, afirmam evidências que apesar da defesa da apropriação e autenticidade interativa dos jovens, isso não irá impedir sua aquisição/aprendizagem da sua língua materna.

A ORALIDADE E ESCRITA DO SÉCULO XXI: A influencia midiática e tecnológica na comunicação O mundo neste início do século XXI está cada vez mais conectado e usando a internet para oferecer agilidade e facilidade na vida cotidiana. Essa situação não está longe de se tornar realidade para os ambientes educacionais. Com a tecnologia cada vez mais presente nas nossas vidas, as formas que usamos para aprender e estudar também estão sofrendo profunda metamorfose. O problema desse tipo de mudança é que, na maioria dos casos, as pessoas acabam resistindo, pois não estavam acostumadas a usar a tecnologia para esse propósito. Na nossa sociedade, os meios virtuais são muito lembrados pelas suas capacidades relacionadas ao entretenimento. São poucas as pessoas que procuram recursos eletrônicos para o aprendizado. Esses meios eletrônicos não envolvem apenas saber usar a internet, mas estar preparado para se integrar com as tecnologias baseadas em dispositivos móveis, como os smartphones e os tablets. Então a oralidade e a escrita evoluíram através destes aparelhos e aplicativos da comunicação. Surgindo diversos formatos no ato de escrever para um blog, facebook, twitter, etc.

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VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E FAIXA ETÁRIA: INTERAÇÃO ENTRE JOVENS

Os jovens alunos estão aderindo a novas modalidades da oralidade, e da sua própria leitura, pois os livros de papel estão perdendo espaço para os leitores portáteis. Essa tecnologia ainda é nova e cara para a maioria dos estudantes, mas deve se integrar ao nosso ambiente de estudo em pouco tempo. Estes novos canais de comunicação, se transformaram em uma ferramenta de facilidade e rapidez para os jovens, ganhando novas formações de grupos, e enriquecendo a língua com neologismos, atribuindo-se em palavras novas, mas não provenientes de uma gramática tradicional normativa, e sim, uma marca de uma língua que está na moda para um tal grupo de jovens. Com base nesse conhecimento e nos fatos sobre as mudanças provocadas pela tecnologia na maneira com que estudamos e aprendemos, podemos compreender que algumas ações dos jovens se adequam em progressos a modificações devido a esta tecnologia, ganhando conhecimento e novo horizonte de comunicação. Esta nova ferramenta é uns dos motivos para a variação linguística, pois os jovens são usuários da essa nova escrita e oralidade, e uma a plataforma tecnológica da nova geração – a internet. Conforme explica Halliday Em determinada dimensão, a variedade de uma língua que um indivíduo usa é determinada pelo que ele é. Todo falante aprendeu, com sua língua materna, uma particular variedade da língua de sua comunidade linguistica e essa pode ser diferente em algum, ou em todos os níveis de outra variedades da mesma língua apreendidas por outros falantes comosua língua materna. (HALLIDAY, 1974, P.105).

A Comunicação vislumbra uma melhoria nas relações de competitividade e de desburocratização ao utilizar as ferramentas de TIC. Outras importantes melhorias acontecem no que diz respeito à desburocratização e à economia de tempo e de espaço promovidas pelos sistemas de informação que auxiliam os processos da comunicação escrita, à redução das palavras em bate papos, ou de uma construção de mensagens de formato direto através de e-mails. Nossos jovens alunos vivem numa Aldeia global ou Sociedade do Conhecimento. A nomencla615


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tura é o que menos importa. Vivemos imersos numa avalanche de informações midiáticas, que influenciam o comportamento dos jovens, exercido ao consumo de produtos e modo de vida, e que também afeta a sua oralidade. O entrelaçamento entre mídia e tecnologia é vivenciado por grupos de jovens. Além disso, estes grupos ganham um ponto negativo devido sobrecarga de informações. A utilização de redes sociais e de ambientes outros de interação digital serve até como referência para estimular as relações interpessoais e profissionais, e a juventude vive diariamente para “acompanhar a evolução” ou “manter-se atualizado”, isso são evidências fatoriais para as mudanças da escrita e fala. E como isso afeta ou não o seu desempenho na comunidade escolar.

JOVENS NUMA ESCOLA “SEM PRECONCEITOS LINGUÍSTICOS” No contexto escolar , decorrente a submissão e padronização de único guia do “ADEQUADO” , a gramática normativa , ela interfere na sociolinguística desta comunidade de jovens. Os jovens alunos, apenas são pressionados, quando o seu professor aponta possíveis falhas das suas falas e formas de escrever, decorrentes a respostas de exercícios. Isso é ergue uma barreira comunicativa, causada pelo poder e da força da norma culta que domina nas salas de aulas de Língua Portuguesa, portanto estabelece uma opressão entre os individuos que se interagem de forma desviada a este sistema. De acordo com Marcos Bagno: Ou seja, a gramática normativa é decorrencia da língua, é subordinada a ela, dependente dela. Como a gramática, porém, passou a ser um instrumento de poder e de controle, surgiu essa concepção de que os falantes e escritores da língua é que precisam da gramática, como se ela fosse uma éspecie de fonte mística invisível da qual emana a língua “bonita”, “correta” e “pura”. (BAGNO, 1999, P.64).

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Este grupo de jovens estudantes , que tem sua marca própria de falar e de escrever, que são oriundos da sociolinguística, que vem de uma língua compartilhada socialmente, às vezes de grupos extensos ou de um grupo limitado. Esta sociolinguística é acompanhada por uma língua liberta de preceitos, e isso traz um estranhamento e preconceitos aos que são regrados à norma culta. Nas aulas de Língua Portuguesa, o docente vê este tipo de grupo, como difamadores da “ordem escrita e oral”, o choque do DIFERENTE , causa horror e más interpretações intelectuais em relação aos jovens alunos que aderem à autenticidade interativa. Consequentemente, os alunos veem o professor de Língua Portuguesa como um carrasco da língua, e eles sentem inferioridade ou incapacidade de ter o dominío da sua própria língua materna. A prova maior desta batalha será que é movida pelo limite da língua? Este limite deveria querer fazer a unificação da língua, sendo que ela sofre de variações contínuas e evolutivas, portanto algo impossível de ser feito. A proposta não é condenar a gramática, pois Celso Luft , diz que: Ninguém pode ser “contra” a verdadeira gramática: ela é imanente ás línguas. Uma Língua é um duplo sistema: sistema de sinais (vocábulos, expressões, etc.) e sistema de regras da combinação desses sinais. Ao segundo desses sistemas é que chamamos de gramática. Não há língua sem gramática. Amar uma língua é amar sua gramática. (LUFT, 1998, P.11).

O que precisa ser estabelicido é a relação pacífica entre a sociolinguística e da gramática normativa, e não fazer um pré-julgamento da comunidade linguística que utilizam formas reducionistas, abreviadas, gírias, neologismos e pregação de estrangeirismos na sua fala e da sua forma de escrever, mas tendo o respeito desta modalidade da língua. O docente deve saber onde intervir e onde não intervir na comunicação dos seus alunos. Quebrar o paradigma que existe na escola, equilibrando e dando a igualdade da língua e dos seus usuários. Para completar, Sírio Possenti diz que:

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De que o domínio efetivo e ativo de uma língua dispensa o domínio de uma metalinguagem técnica. Em outras palavras, se ficar claro que conhecer uma língua é uma coisa e conhecer sua gramática é outra. Que saber uma língua é uma coisa e saber analisá-la é outra. Que saber usar suas regras é uma coisa e saber explicitamente quais são as regras é outra. Que se pode falar e escrever numa língua sem saber nada “sobre ela, por um lado, e que, por outro lado, é perfeitamente possível saber muito “sobre” uma língua sem saber dizer uma frase nessa língua em situações reais. (POSSENTI, 2001, P.54).

CONSIDERAÇÕES FINAIS Finalmente podemos compreender que variações linguísticas predominam na fala dos jovens alunos. Estes frequentam diariamente a escola e são confrontados pelos professores os quais adotam como autoridade a gramática normativa para cortar a sua forma de se expressar linguísticamente. A solução é combater o sistema autoritário, e estabelecer a união da língua, mas não de extinguir a variante, e sim de tornar um conjunto pacífico na área da oralidade e escrita. As influências da tecnologia não deveriam ser uma barreira negligenciadora do saber, e sim uma ferramenta de aprimoramento da língua. Pois, através dela os jovens alunos aprendem a adequar e transformar palavras/mensagens numa forma mais rápida de compreensão. Os alunos estão criando novas modalidades de se relacionar com seu grupo ou de outros. Afirmando a sua marca da língua, e mais importante, acumulando experiências linguísticas. Compreendendo também a relação de respeito com o sistema já integrado da norma culta, mas que são excluídos da sociedade intitulada intelectual, por não seguirem fielmente o CULTO. E ao docente caberá a quebra deste paradigma, e não frear a habilidade linguística dos seus alunos. Enfim, a língua é a liberdade de qualquer faixa do seu usuário , tanto oral quanto escrita.

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REFERÊNCIAS BAJARD, Elie .Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito .São Paulo: Cortez, 2005. BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: O que é, como se faz . São Paulo: Loyola, 1999. LUFT,Celso Pedro. Língua e Liberdade – Por Uma Nova Concepção da Língua Materna. São Paulo: Ática, 1998 PRETI, Dino . Sociolingüística - Os Níveis da Fala. São Paulo:EDUSP,1994. POSSENTI, Sírio. Por que ( Não) ensinar gramática na escola. São Paulo: Mercado de Letras, 2001.

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Resumo Roman Jakobson, no ensaio “Do Realismo Artístico” (1971), dentre as acepções que dá do termo “realismo”, faz menção a uma corrente artística que se propõe como objetivo reproduzir a realidade o mais fielmente possível, aspirando ao máximo de verossimilhança. Sem que se deixe cair no formalismo literário, mas reconhecendo o estudo do teórico russo, parece válido observar, ainda, que a obra é realista dependendo de quem a olhe – quando o autor a julga ou por quem a julga verossímil. É à luz desses pensamentos, portanto, que o presente estudo busca, tendo como objeto de análise um conto português do século 20, “A História de Venâncio, Segundo Oficial”, do autor Joaquim Paço d’Arcos, uma reflexão sobre as dimensões do modo realista de composição ficcional e suas configurações. Palavras-chave: Realismo; Narrativa; Paço d’Arcos; Conjuntura Histórica.


Voz narrativa e realismo literário em “A História de Venâncio, Segundo Oficial” Wanessa Virgínia Rossiter Cavalcanti1

Nota Introdutória Não perece novidade que cada vez mais o indivíduo percebe o seu meio cultural como habitual. Ora, o indivíduo encontra-se tão inserido em uma camada social ou meio profissional que acaba por se perder em meio a esta inserção, sem ao menos saber o que isso significa. Conforme Costa Lima (1980), em sua obra Mímesis e Modernidade – Formas das sombras, “a cultura, a classe, a camada, o meio profissional parecem-se então as roupas muito leves, tão leves que a pele não sente que as transporta.” (1980, p. 85). De fato, o homem é um animal simbólico e seu comportamento depende de regras simbólicas, permitindo, de certa forma, tanto uma compreensão quanto uma interpretação da realidade. Dessa forma, sem se deixar cair no formalismo literário, mas reconhecendo o estudo do teórico russo, Roman Jakobson, parece válido resgatar que o realismo é uma corrente artística que se propõe como objetivo reproduzir a realidade o mais fielmente possível e que aspira ao máximo de verossimilhança. Propõe, ainda, duas significações, sendo uma, a obra considerada como realista quando o autor a julga verossímil; ou, obra realista aquela julgada como verossímil por quem a percebe como tal. Ora, se o texto literário e, mais precisamente, o estudo em foco, insere-se como produto de vários conflitos, sua análise não poderia deixar de lado conceitos rela-

1. Licenciada em Letras pela UPE, Campus Nazaré da Mata (2010), mestranda pela UFPE e bolsista pelo CNPq. É membro do Grupo de Investigação em Filologia Ibérica. wanrossiter@yahoo.com.br 621


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cionados à realidade, à ficção e ao recorte histórico em que a obra se situa. Parece claro como uma obra carrega uma série de elementos pertencentes à determinada conjuntura histórica. Sendo assim, é nessa senda, portanto, que entra em cena a dicotomia entre os fatores internos (de composição do texto) e externos (a esfera do social), conforme advoga Candido (2006), isto é, tem-se um assunto da obra repousando sobre condições sociais, sobre um nível explicativo não apenas ilustrativo, surgindo, assim, o fator social não como causa, mas como elemento da obra. Para o teórico, há uma necessidade de se fundir texto e contexto, de forma que os fatores sociais externos não se tornem significativos numa maneira causal, mas como elementos, com papéis específicos, para a construção do interno. Em outras palavras, “o elemento social se torna um dos muitos que interferem na economia do livro, ao lado dos psicológicos, religiosos, linguísticos e outros” (CANDIDO, 2006, p. 16). Portanto, se “o narrar significa tratar o homem no interior dos seus conflitos sociais” (LIMA, 1974, p. 29), e dentro de uma determinada conjuntura histórica, não há como fechar os olhos para as relações entre literatura e sociedade. É por tais nortes, portanto, que o presente estudo visa uma reflexão sobre as dimensões do modo realista de composição ficcional e suas configurações e, consequentemente, uma análise da produção ficcional do autor português, aqui em foco, Joaquim Paço D’arcos, tendo como objeto de análise um conto português do século 20, «A História de Venâncio, Segundo Oficial».

Construção ficcional: um mundo à parte Ora, parece claro que muito do discurso histórico é encontrado no discurso ficcional, i.é, a obra carrega uma série de elementos pertencentes a uma época, pertencentes ao social, elementos que se apresentam de suma importância para a interpretação – ou interpretações – do texto e de sua conjuntura histórica. Conforme Mesquita,

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Assim como a realidade não prescinde da ficção, pois cada sociedade produz a ficção de que necessita, [...] a ficção não pode existir sem a motivação da realidade vivida, transformando-a. A arte em geral, e portanto, a literatura, cria realidades possíveis, gera significações possíveis e se torna, muitas vezes, profética. (MESQUITA, 1994, p. 15)

É plausível e coerente afirmar que a dicotomia realidade e ficção são justamente alcançadas dentro de um recorte histórico. Aos olhos de Lúkacs, “a captura da realidade se dá na participação do humano nos conflitos sociais; sendo a arte maior como aquela que captura artisticamente a realidade”, (apud LIMA, 1974, p. 29). O ponto levantado pelo estudioso húngaro se insere, com precisão, no plano de discussão aqui proposta – a problematização da construção do ficcional ou o modo de composição ficcional. Para tanto, com o intuito de se aprofundar por tal estudo, faz-se importante, como forma de auxiliar na compreensão da obra, um resgate, primeiramente, aos estudos da filologia (PICHIO, 1977), deixando clara a importância de tal matéria para a compreensão da caracterização do discurso ficcional. É por meio da filologia que o filólogo adquire um comportamento crítico e exerce uma atividade “com uma constante fixável no contínuo processo de adequação (com uma rigorosa verificação de todos os dados, ou de tudo o que presume dado) a uma determinada situação histórica que se pretende construir” (PICHIO, 1979, p. 213). Tomando o texto como um documento, um depósito de experiência humana, o filólogo, independentemente dos recursos, e a partir da Teoria da Informação, se lança a um propósito, no qual o que importa é chegar e não como irá chegar, conforme flagrou Pichio: Para o filólogo conta o fim e não os meios. Ele encara todas as técnicas hermenêuticas num mesmo plano, reservando-se de utilizar uma outra (ou uma e outra), só depois de uma escolha contingente em vista do alvo imediato a alcançar, os olhos postos sempre naquele fim último que é o entendimento de um fato histórico (incluindo aí um acto de criação) dentro de um contexto determinado. (PICHIO, 1979, p. 216)

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O filólogo tem, portanto, como meta derradeira entender o que um outro homem – mesmo que distante temporalmente ou espacialmente – confiou aos signos; assim, filologia é a ciência da palavra, que vê no texto um depósito de experiência humana. Ainda que o texto seja esse depósito, não se pode seguir o caminho de que a obra escrita acaba por se transformar em um pretexto para se discutir os problemas do mundo e do homem, menos àqueles referentes aos literários. A obra de arte é um depósito de experiências humanas que se relacionam com o literário; a literatura vai beber daquele meio e reproduzi-lo. Nesse plano, a partir de todos os instrumentais que a filologia oferece, já que, conforme Picchio (1979) salienta, “o filólogo estudioso de textos literários [...] não é preconceituosamente indiferente ou hostil às propostas que lhe chegam de toda a parte do alinhamento crítico” (p.216), seu estudo só tem a colaborar para a análise metódica do texto. A partir do que Picchio (1979) chamou de Teoria da Informação, em seu “caráter de evidenciar, racionalizar, alguns de nossos conhecimentos intuitivos” (p.221), a análise de uma obra vai se render aos diversos discursos – literário e histórico, nesse caso –, possibilitando, assim, que o filólogo enxergue e reconstrua o mundo alheio em uma época específica; rejeitando-se, assim, conforme Spina (1977), a obra como um fim nela mesma. É por esse caminho que se torna possível uma maior aproximação para com o texto e, assim, dele, compreender a estrutura e a inserção histórica. Sendo essa uma passagem pela qual não se pode desviar. Os partidários da mimesis, apoiando-se na Poética de Aristóteles, afirmavam que a literatura imitava o mundo. De certa forma, Recouer (apud, Compagnon, p. 126), afirma a existência de uma aliança da mimesis com o mundo, mas, em contrapartida, a insere no tempo, ponto que Aristóteles deixou de lado. A mimesis, assim, insere-se como arte criadora, cujo aprendizado está relacionado ao procedimento que é construído na obra e experimentado pelo leitor. Em outros termos, [mimesis] é uma representação de ações; ela deixa de ser um decalque do mundo real e passa a ser imitação criadora. Também por isso, ela não é uma duplicação da realidade, é uma incisão que permite expor a ficção; instaurando a literariedade da obra. Afinal, como afirma

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Recouer: “o artesão das palavras não produz coisas, apenas quase coisas, inventa o ‘como-se’” (Recouer, in Compagnon,2010, p. 127), ou conforme Iser, “pelo reconhecimento do fingir, todo o mundo organizado no texto literário se transforma em um como se” (2002, p.973). A ele não cabe trazer o real, mas usá-lo como parâmetro para arquitetar mundos fictícios. A realidade que surge no texto ficcional, nele não se repete por efeito de si mesma. No dia-a-dia, um cumprimento, por exemplo, que se é feito designa que há um conhecimento, talvez, entre as pessoas. Ora, quando esse cumprimento aparece na ficção – é repetido - ele ultrapassa o ritual do cotidiano, possuindo, então, uma outra função; esse cumprimento deixa de ser automático e passa a ser suscetível de questionamento – o que poderia significar tal cumprimento, por exemplo. O enunciado proferido é o mesmo, - discurso primário -, no entanto, ao se transpor para um gênero complexo, um horizonte de possibilidades é aberto para seu entendimento e extingue o automatismo existente no cotidiano. É assim, portanto, que o autor se vale do real: Se [...] o texto ficcional se relaciona com a realidade sem se esgotar em sua descrição, então a repetição é um ato de fingir, pelo qual aparecem finalidades que não pertencem à realidade repetida. Se o fingir não é deduzível da realidade repetida, então por ele se impõe um imaginário, que se relaciona com a realidade que volta com o texto. (ISER, in LIMA, 2006, p.282)

Mais uma vez o que ocorre é justamente o que Candido defende em sua obra, Literatura e Sociedade, o externo fazendo parte do interno da obra. Em contra mão, a literatura, mesmo bebendo do ‘real’, não tem como principal função interferir diametralmente no mundo, e o mesmo o é (se enquadra) para a ficção. À literatura não cabe a função de explicar o mundo, mas alargar o mundo, criar um outro na esfera do acontecível. Nesse cenário cria-se uma verdade textual; uma verdade existente dentro do texto. Isso não impede, todavia, que um não se relacione com o outro, causando reações nos receptores enquanto no mundo real. Sendo, portanto, nesse reconhecimento do fingir que o mundo organizado no texto 625


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literário se transforma no ‘como se’ de Iser; um mundo, ainda que se relacionando com o momento histórico - e com percurso autoral- é posto entre parênteses. Entrementes, embora a esfera textual não seja um mundo real, ainda assim, deve ser considerado como tal. É um mundo que não representa a si mesmo, mas a outro, e, no entanto, é por meio daquele mundo que constitui a possibilidade de fazer o ‘mundo real’ tornar-se percebível, e, assim, tornar, de certa forma, o sujeito capaz tanto de ‘irrealizar o real e torná-lo real do imaginário’ como de “provocar impressões afetivas, que de sua parte, causam atividades de orientação e, desta forma, reações sobre o mundo do texto” (Iser, in Lima, p. 283). Assim caracterizada, parece que a mimesis concede à ficção o papel de reformulação do mundo. Não obstante, deve-se lembrar de que a ficção tem uma pragmática própria e, por isso, ecoando Lima, faz exigências ao seu receptor quanto à capacidade de “romper com os automatismos que presidem as interações cotidianas e, simultaneamente, o fluxo difuso da fantasia” (LIMA, 2006, p. 284). Para que tal pragmática se aproxime com a pragmática que conduz nossa relação com a realidade é preciso que a obra se faça verossímil. De forma a ilustrar tal afirmação, é válido lembrar o fragmento de Friedrich Schlegel: Conforme o uso corrompido da linguagem, verossímil significa tanto quanto quase verdadeiro ou um pouco verdadeiro ou o que ainda pode se tornar verdadeiro. Mas, de acordo, com sua formação, a palavra não pode designar tudo isso. O que parece verdadeiro não precisa, por isso, e em grau algum, ser verdadeiro, mas deve positivamente parecê-lo. (SCHLEGLE, in LIMA, 2006, p.284)

Também, por isso, mesmo que personagens históricos sejam ficcionalizados dentro de um romance histórico, tais personagens só ganharão o status de verossímil se a diegese for estabelecida de modo a passar essa sensação para o leitor. Ora, de forma diversa, o mero recobramento de elementos da vida real não tornará a obra verossímil.

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No que tange ao conceito de Realismo, sem se deixar cair na tendência classificatória de escola literária, reporta-se à ideia de realidade de uma dada conjuntura histórica; onde tudo parte da realidade de um mundo. Nesse contexto, a História não se torna apenas um pano de fundo, ela interage profundamente com as personagens sem se restringir num historicismo e derivando, assim, o estudo do modo de composição ficcional. Nessa senda, faz-se necessário pensar quanto ao papel do historiador em contrapartida com o papel do autor inserido no modo realista de composição ficcional. O historiador, por seu turno, busca ocorrências capazes de fazer sentido para si e para o público, isto é, pretende relatar aquilo que de fato ocorreu, e não como poderia ter acontecido (Aristóteles, 1995, p. 28), conforme apontou Aristóteles, em sua obra Poética. Não obstante, da mesma forma que o historiador visa à criação do efeito do real no leitor, assim também o faz o romancista. Ora, mas para que tal técnica seja bem sucedida o autor acaba por fazer uso da escrita da História. É a partir daí que se observa a Literatura recuperando vestígios para compor sua referência. É nessa senda que escritores se apropriam de eventos marcantes – digam-se históricos -, tempos, lugares para fazer-lhe parte da diegese da obra e se servir do objeto para a elaboração da narrativa de ficção. “Nesse sentido, a ficção se inspira tanto na História quanto a História na ficção.” (Recoeur, 1994, p.125). Isso, não obstante, não quer dizer que o acontecimento abordado dentro da obra literária realmente aconteceu. Deve-se tomar como ponto basilar a pretensão à subjetividade no texto literário; tornando o fator histórico algo simbólico ao universo ficcional. Portanto, por mais que um texto retome algo do ‘mundo real’ o escritor acaba por inserir sua marca pessoal e cria um acontecimento ao nível da diegese. Disso, tem-se que a compreensão da conjuntura histórica dentro da dimensão do quadro ficcional permite um arcabouço para a compreensão da base social e também da estrutura da obra. É nesse contexto, por exemplo, que se observam personagens, como Venâncio, - do conto aqui em análise, «A História de Venâncio, Segundo oficial» - que se encontram estreitamente ligada às circunstâncias da época, mesmo lutando por uma chance de ascender profissionalmente, ela só é compreendida dentro dessa conjuntura

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social que adensa a construção ficcional, i.é, levando em consideração as características sociais da época e como ela está inserida em cada indivíduo. Outro exemplo bastante pertinente encontra-se no romance português, «Herói Derradeiro», do autor Paço D’Arcos, e não há outro caminho senão aquele que perpasse pela História de Portugal, tendo em vista que episódios da vida colonial na África portuguesa são narrados. A obra oferece uma perspectiva do Portugal colonial na época da Primeira República e, como forma de integrar no contexto social e político, é válido reproduzir a dedicatória do autor à 2ª edição de 1934: “Ao Comandante Corrêa da Silva (Paço d’Arcos), meu pai, cujos altos exemplos de honra e patriotismo, em época de apagada e vil tristeza, me deram, com o orgulho de ser seu filho, a ideia de escrever este livro”. Ou seja, os personagens relacionam-se e atuam com as circunstâncias da época. De certa forma, a questão social e política estão inseridas na ação. Busca-se, portanto, conforme Auerbach fez em sua obra Mimesis, por tais caminhos, uma leitura da estrutura do texto e sua inserção à luz da História; um diálogo de tempo. Entrementes, faz-se válido, ainda, resgatar o pensamento de Jauss (1994), em sua obra A história da literatura como provocação à teoria literária, em que “[...] a vida histórica da obra literária não pode ser concebida sem a participação ativa de seu destinatário”. A estética da recepção tem meios de resolver o problema deixado porque seu pressuposto é o de que a vida histórica da obra literária não pode ser concebida sem a participação ativa de seu destinatário. Sendo assim, entra a questão da literatura na dimensão da recepção e do efeito considerando a figura do leitor, indispensável tanto para o conhecimento estético – estabelecido pela avaliação feita a partir da leitura, bem como mediante comparações com outras obras já lidas – quanto para o histórico - em que numa cadeia de recepções, a compreensão dos leitores tem continuidade e podem se enriquecer com as seguintes gerações decidindo, assim, o significado histórico de uma obra. Ora, sendo assim, não se pode negar o importante papel que o leitor possui em libertar o texto da matéria das palavras e aferir-lhe existência atual, conforme pontuou Jauss (1994). Essa relação de atualização é influenciada pelas experiências literárias, ou até

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mesmo pessoais, anteriormente vividas pelo leitor. Tais experiências literárias são internalizadas, gerando expectativas em relação a novos textos. A esse conjunto de experiências de leituras prévias e expectativas geradas sobre um texto Jauss chama de horizonte de expectativas. Para o teórico alemão, é justamente quando uma obra provoca uma ruptura deste horizonte que uma mudança é efetuada na história da literatura. Sendo assim, a literatura deve ser posta ao lado da história geral, permitindo, portanto, verificar a formação de entendimento do mundo a partir da experiência literária do leitor. Na perspectiva jaussiana, no desfecho do texto, “conclui-se que se deve buscar a contribuição específica da literatura para a vida social precisamente onde a literatura não se esgota na função de uma arte da representação” (1994, p. 52). Assim, também à luz do que foi apresentado, propõe-se o estudo do conto.

A burocracia no «Estado Novo» em: «A História de Venâncio, Segundo Oficial» Se não se deve tomar como lei aquilo que uma instância criadora diz de sua própria obra – ou mesmo do processo composicional –, noutro sentido, considerálo, sob o prisma do analista, pode enriquecer o inquérito ao texto literário. Por isso, observar o que, numa conferência intitulada O Romance e o Romancista, Joaquim Paço d’Arcos afirmou acerca dos procedimentos do escritor, que: [...] cria, de fato, um mundo à parte, extraído, se quiserem, do verdadeiro, do que o rodeia, mas transformado pela sua sensibilidade e pela sua imaginação. Do mundo real leva, para o seu, reminiscência das figuras que viu, dos seres que conheceu, das coisas com que lidou. Mas não as aproveita integralmente. Esmaga essas figuras, dilui esses seres, destrói essas coisas. (PAÇO D’ARCOS, 1943, p. 37.).

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Essa concepção, que tem a realidade na conta de base à produção ficcional, não parece, efetivamente, alheia ao conto «A História de Venâncio, Segundo Oficial», que Joaquim Paço d’Arcos incluiu no volume Carnaval: e outros contos (1958). Ora, ao selecionar uma específica conjuntura portuguesa, a narrativa em pauta ecoa a qualidade do trabalho burocrático à época do «Estado Novo» (19331974), o regime capitaneado com mão de ferro pelo ditador António de Oliveira Salazar e por seu sucessor, Marcelo Caetano. A personagem Venâncio representa o servidor público que busca o tão almejado reconhecimento no emprego, sobretudo pelos longos anos de dedicação; anelo que, vale dizer, não se concretiza. Sem ser recompensado pelos esclarecimentos acerca dos ratos destruidores de documentos – já que para subir de cargo é preciso ter influência –, a personagem acaba deixando os ratos agirem livremente, deixando-os roer os documentos do Ministério em que trabalha. Julgado por atentar contra o Estado, Venâncio acaba por ser exonerado de suas funções. Não se configurando exatamente como o que Auerbach chamou de «realismo moderno sério», o conto tende fortemente para o cômico, no sentido aristotélico do termo. O que se observa, em efetivo, é um discurso permeado pela ironia, que caracteriza, assim, um realismo não sério. Essa marca vem à baila já no início do conto, quando se tem uma voz narrativa descrevendo a presença dos roedores que, em «ruído discreto mas perfeitamente audível», todas as noites devoravam o interior do edifício do Ministério (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 37). Durante o dia, pouco se ouvia o barulho dos ratos, devido à poderosa voz dos funcionários públicos, que tudo abafava dentro do prédio: O próprio público que se dirigia aos guichets, à busca de informações, ou tentava introduzir-se nas salas para tratar dos assuntos [...], fazia-o com respeito, com timidez, [...] para não dar motivo à fácil irritação dos funcionários [...]. Durante as breves horas catalogadas como «horas de trabalho», reinava ali essa entidade soberana [...]. (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 37.)

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Voz narrativa e realismo literário em “A História de Venâncio, Segundo Oficial”

De fato, para se ter um mais abalizado alcance da passagem, é necessário, antes, compreender a realidade ficcionalizada pelo escritor; nominalmente, o mundo de antidemocracia em que consiste o «Estado Novo». Durante o horário de expediente, o poder de voz pertencia unicamente ao funcionalismo, ou seja, ao governo, cabendo à arraia miúda que frequentava o prédio não se posicionar. Ao fazer uso da ironia, o autor recorre à linguagem como estratégia; ora, de acordo com as palavras de Brait, na ironia, «a linguagem participa da constituição do discurso como fato histórico e social; mobiliza diferentes vozes, instaura a polifonia [...].» (BRAIT, 1996, p. 16.). É por meio dessa linguagem multívoca que o discurso irônico permite a manifestação de aspectos culturais ou sociais que, muitas vezes, podem ser ocultados pelos discursos mais sérios. No desenvolvimento do conto, o narrador toma posse, de certa forma, da voz e dos sentimentos da personagem Venâncio. Mas o relato também cobre a ação dos ratos, em seu processo de destruição; a relação entre o público e o funcionalismo; até, por fim, a formação da Comissão, de que, para fazer parte, era preciso prestígio. É com a aludida configuração que a voz narrativa apresenta a tentativa do Segundo Oficial para integrar a Comissão: «Ao constar-lhe que iria constituir-se uma Comissão para enfrentar o problema cuja ponta do véu ele levantara, Venâncio acalentou a legítima ambição de fazer parte de tão destacado grupo de trabalho. Formulou, a medo, ao Chefe da Seção, o pedido humilde.» (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 40.) No diálogo entre Venâncio e o Chefe da Seção, é perceptível a condição do funcionário como desafiador da hierarquia vigente; e, não contrariando as leis que regem uma boa convivência, Venâncio é sempre tratado como um candidato a ser reconhecido. – Não vejo inconveniente – replicou [ao pedido], com benevolência, o superior hierárquico. Mas só depois de bastante rogado condescendeu em falar do caso ao Chefe da Repartição. Este já não tinha quaisquer motivos para distinguir Venâncio, pois que do esforço silencioso do segundo oficial era o Chefe de Seção quem recolhia o lustre: – Que diabo de ideia 631


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lhe havia de dar! Mas está bem, se Você tem muito empenho nisso, eu posso recomendar o caso ao nosso Diretor-Geral. (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 40-41.)

Na sequência, o narrador toma posse das palavras de Venâncio e reproduz o conteúdo da carta que este destina ao Chefe da Repartição. Ressalta todos os anos de dedicação prestados ao serviço público, as horas extras de trabalho, até o funcionário, finalmente, refere o desejo de ser incluído na prestigiosa Comissão, visto que fora ele quem denunciara os ratos. Ora, na descrição das qualidades necessárias para que um Segundo Oficial possa fazer parte da Comissão (sem deixar de lado, ainda, a ironia), afirma-se lícito o enquadramento de Venâncio como um dos candidatos: «Era necessário juntar ao prestígio de certos nomes as reais qualidades de outros, o dinamismo de alguns.» (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 38.) No entanto, se, por um lado, este possuía as «reais qualidades», por outro, não possuía importância. Assim, diz o Chefe da Repartição ao Diretor-Geral: «– Recebi uma carta do Venâncio, aquele pobre-diabo da 2.ª Seção... Calcule V. Ex.ª: quer por força que o metam na Comissão.» A resposta que obtém é a seguinte: «– Mas que ideia disparatada! A que título, a que propósito? Uma Comissão de que só fazem parte personalidades escolhidas...» (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 42.) Que se assinale, ainda, a quebra dessa associação, i. é, a diferenciação entre a voz narrativa e as vozes das personagens. Essa cesura entre as palavras do narrador e a posição dos caracteres se patenteia, sobretudo, pela ironia presente no primeiro, o que não o impede de, na condição de heterodiegético, configurar um posicionamento interventivo quanto ao íntimo da personagem Venâncio. Como ex., refira-se a caracterização do descontentamento do funcionário com a não participação da Comissão:

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Mas o azedume apossara-se definitivamente de seu espírito. Sentia-se, todavia, ligado à pesada responsabilidade perante o Estado. [...] E, por dever cívico, puro dever de funcionário consciencioso, continuava, único em todo o edifício, a prolongar pela tarde, pela noite afora, a lida metódica e silenciosa. (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 44.)

Sem poder, de forma concreta, expressar o que sentia e que o revoltava, Venâncio desiste de esperar recompensa, visto que tudo não passava de promessas: «– Homem, Você é um mouro de trabalho! Ainda lhe hão-de fazer justiça...» (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 44.) É, portanto, com recurso a essa caracterização – conformismo, revolta e meio – que se entendem melhor os recursos para reconstrução ficcional da realidade. Ponto outro que se deve evocar está relacionado aos eventos que guiam a narrativa até uma cadeia capital – a não inclusão da personagem Venâncio na Comissão e sua demissão. O relato ficcional elucida aquilo que é repetição – a história de Venâncio, ou, amplamente, a situação daquele que a elite toma como peremptoriamente estranho a determinado meio social. Assumindo, assim, uma função de discurso explicativo e justificativo, permite ao narrador a produção de um discurso realista. Dessa forma, é por remissão às palavras de Genette que se pode verificar o papel do narrador: Pode parecer estranho, à primeira vista, atribuir a um narrador, qualquer que seja ele, um outro papel além da narração propriamente dita, i. é, o facto de contar a história, mas nós sabemos muito bem que o discurso do narrador, romanesco ou outro, pode assumir outras funções. (GENETTE, 1995, p. 253.)

Deve-se, assim, apontar o rompimento entre a voz narrativa, quanto ao posicionamento da personagem, e a própria voz da personagem. Num primeiro momento, em busca de um processo por interesse da sogra, o Diretor-Geral explode quando se lhe apresenta um « um amontoado de repugnante aspecto»:

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«Mas isto foi obra dos ratos? Que faz a Comissão, que medidas propôs, que providências tomou?» (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 46.) Entrementes, em seguida, a voz do narrador apresenta uma personagem que pouco atinara para a competência da comissão: «O Diretor-Geral não ousou investir contra a Comissão, em que o escol do país estava tão amplamente representado. Mas mandou, muito acertadamente, proceder a rigoroso inquérito.» (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 46-47.) E o dedo acusatório indicará Venâncio, que, desgostoso pela preterição, passou a deixar restos de comida para os roedores. Por ser o único funcionário a fazer serões, não restou senão o Segundo Oficial como culpado. Por fim, observa o narrador: «É com a consagração do seu exemplo que se imprime eternidade à História.», sendo, o peixe pequeno, devorado pelo peixe grande (PAÇO D’ARCOS, 1958, p. 48). Salienta-se a injustiça ao pobre-diabo sem que, em nenhum momento, tal se faça à superfície do texto. Assim, de forma irônica, o relato ficcional elucida aquilo que é repetição – o comportamento do humano diante de situações delicadas da vida; situações que se voltam para aqueles que a desprezam ou dão pouca importância. Assumindo assim, uma função de discurso explicativo e justificativo, permite ao narrador a produção de um discurso realista. Salientam-se, assim, aspectos, ou episódios, da vida lisboeta em sua mais desnuda forma; trazendo à tona uma reconstrução da existência humana.

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GENETTE, G. Discurso da Narrativa. 3. ed. Lisboa: Veja, 1995. Janeiro: Eldorado, 1974. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo: Ática, 1994 LIMA, L. Costa. O Questionamento das sombras: Mímesis na Modernidade. In: Mímesis e Modernidade: Formas das formas. Ed. Graal., 1980 LIMA, Luiz Costa. A Metamorfose do Silêncio: análise do discurso literário. Rio de Janeiro: Eldorado. 1974. ______. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006 PAÇO D’ARCOS, J. Carnaval: e outros contos. Lisboa: Guimarães, 1958. ______. Herói Derradeiro. 2. ed. Lisboa; Bercelos, 1934. ______. O Romance e o Romancista. Lisboa: Parceria A. M. Pereira, 1943. PICCHIO, Luciana Stegagno. A Lição do Texto: Filologia e Literatura. Ed. Edições. 1979. RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Campinas: Papirus, 1994.

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