Sônia L. Ramalho de Farias Kleyton Ricardo Wanderley Pereira Organizadores
Mímesis
e Ficção
Pipa Comunicação Recife, 2013
Copyright 2013 © Sônia L. Ramalho de Farias e Kleyton Ricardo Wanderley Pereira (Orgs.) Reservados todos os direitos desta edição. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa do autores e organizadores. IMAGEM DA CAPA H. Winthrop Peirce, from The day dream, by Alfred, Lord Tennyson, illustrated under the supervision of George T. Andrew. New york, circa 1885. Domínio Público. Disponível para acesso em: http://archive.org/details/daydream00tennuoft CAPA Karla Vidal e Augusto Noronha (Pipa Comunicação - www.pipacomunicacao.net) PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Karla Vidal e Augusto Noronha (Pipa Comunicação - www.pipacomunicacao.net) REVISÃO Os organizadores
Catalogação
na publicação (CIP) Ficha catalográfica produzida pelo editor executivo F224
Farias, Sônia Lúcia Ramalho de. Mímesis e Ficção / Sônia L. Ramalho de Farias, Kleyton Ricardo Wanderley Pereira [orgs.]. Recife: Pipa Comunicação, 2013. 400p. : Il.. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-66530-02-5 1. Literatura. 2. Retórica. 3. Mímesis. 4. Ficção. I. Título. 800 CDD 82.09 CDU c.pc:01/13ajns
Prefixo Editorial: 66530
COMISSÃO EDITORIAL Editores Executivos Augusto Noronha e Karla Vidal Conselho Editorial Angela Paiva Dionisio Antonio Carlos Xavier Carmi Ferraz Santos Cláudio Clécio Vidal Eufrausino Clecio dos Santos Bunzen Júnior Pedro Francisco Guedes do Nascimento Regina Lúcia Péret Dell’Isola Ubirajara de Lucena Pereira Wagner Rodrigues Silva
Sumário 09
PREFÁCIO MÍMESIS E FICÇÃO: UMA INDAGAÇÃO NECESSÁRIA Sônia L. Ramalho de Farias
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SOBRE O MUNDO DA FICÇÃO: FRONTEIRAS, DEFINIÇÕES E INCONSISTÊNCIAS Frederico José Machado da Silva
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TEORIAS DA FICÇÃO: SEMELHANÇAS E DIFERENÇAS ENTRE A TEORIA DO EFEITO EST�TICO, DE WOLFGANG ISER, E A TEORIA DA MÍMESIS, DE LUIZ COSTA LIMA Thiago da Câmara Figueredo
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FINGIDORES, INTERVENTORES, VERDADE, MENTIRA E FICÇÃO: DOIS CASOS DE INCOMPREENSÃO DA MÍMESIS Bianca Campello
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MÍMESIS, MEMÓRIA E FINGIMENTO: O FALSO MENTIROSO, DE SILVIANO SANTIAGO Sônia L. Ramalho de Farias
157
MÍMESIS E REESCRITURA EM FRADIQUE MENDES Kleyton Ricardo Wanderley Pereira
187
SÃO BERNARDO: UMA VEROSSIMILHANÇA DESVIANTE Diogo de Oliveira Reis
209
MÍMESIS E ALEGORIA EM A HORA DOS RUMINANTES DE JOS� J. VEIGA Lucas Antunes Oliveira
239
MÍMESIS E REPRESENTAÇÃO EM O VISCONDE PARTIDO AO MEIO Carla Araújo Lima da Silva
265
MÍMESIS E TRADUÇÃO, UMA PERSPECTIVA Sarah Catão de Lucena
287
A MÍMESIS EM MARCHA: PERSPECTIVAS PARA A LITERATURA ANGOLANA NO S�CULO XXI Joelma Gomes dos Santos
315
BORGES, O CONTO MODERNO E A ANTIPHYSIS Newton de Castro Pontes
349
CONEXÕES ENTRE PARADOXO NARRATIVO E MÍMESIS EM NARRATIVAS DE SUPER-HERÓI Cláudio Clécio Vidal Eufrausino
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OS AUTORES
Prefácio
Mímesis e Ficção: uma indagação necessária
O
leitor vai encontrar em Mímesis e ficção uma recorrência teórica que perpassa as reflexões e estudos literários contemplados nos diferentes ensaios que se debruçam sobre o tema proposto nesta coletânea. Trata-se, sobretudo, dos subsídios de Luiz Costa Lima e Wolfgang Iser dos quais os vários ensaístas lançam mão nesta trajetória conjunta de repensar o estatuto ficcional, na esteira do teórico da Estética do Efeito, articulado ao conceito de mímesis, revisto em sucessivas indagações pelo autor de Mímesis 9
Mímesis e Ficção
e modernidade. A recorrência se justifica pela proveniência dos trabalhos: são, na sua maioria, estudos acadêmicos decorrentes de duas disciplinas ministradas no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, em 2011 e 2012, cujo conteúdo programático recobria especificamente os aspectos aqui tratados e, em consequência, o arsenal teórico subsidiário ao seu questionamento. É natural, portanto, que no processamento de cada uma das escritas haja uma utilização de conceitos e referências bibliográficas comuns, apontando para uma inevitável redundância. Esta não se esteriliza, todavia, pela repetição ociosa. Ao contrário, as diferentes perspectivas através das quais se tecem as reflexões críticas, a articulação das balizas teóricas básicas com outros subsídios oriundas de quadros teóricos diversos, o diferenciado ângulo de abordagem dos ensaios tornam as retomadas ensaísticas multifacetárias. Isso sem contar com a diversificada gama de obras ficcionais de autores nacionais e internacionais contemplados como objetos de estudo em função das indagações suscitadas por suas respectivas escrituras acerca do fazer literário. Tal diversidade, juntamente com os motivos elencados, busca converter a repetição num diálogo produtivo. Pelo menos essa é a intenção que norteia o espírito do livro, ciente dos inevitáveis riscos e limites da empreitada. Não cabe aos propósitos desta apresentação, delinear o contorno de cada estudo, nem tampouco esmiuçar o teor das abordagens. Basta assinalar que introduzem o sumário 10
Sônia L. Ramalho de Farias e Kleyton Ricardo Wanderley Pereira
duas reflexões mais teóricas acerca do mundo ficcional. A primeira põe em confronto várias teorias sobre a questão, a segunda verticaliza o cotejo pelo exame conjunto da Teoria do Efeito Estético do pensador alemão com a Teoria da Mímesis do teórico brasileiro. A partir daí o perfil do livro se afunila pelo enfoque específico de autores e obras diversas. Em seu conjunto, a coletânea procura recortar aspectos correlatos ou tangenciais aos conceitos centrais enfocados. Estabelece, assim, a partir da leitura de cada corpus literário selecionado, ilações entre as noções de mímesis e ficção, mímesis e controle do imaginário, mímesis, memória e fingimento, mímesis e reescritura, mímesis e verossimilhança, mímesis e alegoria, mímesis e representação, mímesis e tradução, mímesis e antiphysis. O esforço interpretativo encerra um duplo desafio, cujo enfrentamento se faz cada vez mais premente nos cursos de Letras, ironicamente responsáveis pelo desgarre da especulação teórica. Não se trata, em primeiro lugar, de “aplicar” mecanicamente a teoria a um determinado texto ficcional, mas de mediar a reflexão teórica por um método específico de abordagem, suscitado pelas respectivas análises das obras. Não se trata, tampouco, inversamente, de ignorar o enfrentamento da discussão teórica, como se o texto literário fosse capaz de significar por si só. A recusa da “panaceia” teórica não equivale ao desprezo da teoria. Entre uma postura e outra, adota-se aqui uma via alternativa: a de pensar, com os teóricos que subsidiam nossas indagações, a 11
interação entre o texto literário e o leitor, tendo de permeio um quadro teórico capaz de indagar acerca da ficcionalidade daquele e do papel que a este cabe no preenchimento dos vazios do imaginário textual. Talvez assim, se possam evitar os dogmatismos que cerceiam entre nós a atividade crítica e a práxis analítica, mesmo aquelas que se pensam livres de posturas dogmáticas ao negar-se a enfrentar os ardis da teoria e a imprescindibilidade da interpretação. Sônia L. Ramalho de Farias
Artigos e ensaios
Frederico José Machado da Silva
Sobre o mundo da Ficção: fronteiras, definições e inconsistências Problemas epistemológicos
D
urante o século passado, não foram poucas as tentativas teóricas de definir as fronteiras que separam realidade e ficção, mito e logos. O objetivo desses intentos não são bem esclarecidos, mas é notável que a História enquanto disciplina tendeu a enaltecer seu caráter verídico e relegou à ficção o papel da fantasia, a despeito da ficção vez por outra ser citada como fonte histórica até mesmo pelos historiadores. 15
Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
As tentativas de separação radical além de restringir o campo de estudo não levam em consideração que os esquemas conceituais precisam incluir em seus sistemas o que também não é imediatamente palpável, uma vez que: [...] a realidade das coisas inclui também, além dos aspectos que podemos apreender, outros aspectos que só são apreensíveis por outros seres possíveis, embora tais seres não existam, é porque para nós, no interior do nosso esquema conceptual, realidade é apreensibilidade. (MONTEIRO, 2004, p. 84)
Nosso objetivo neste artigo é definir ficção e sua produção utilizando um esquema conceitual que inclui uma pequena parcela de linguística, conforme a visão de MerleauPonty (1975), as teorias sobre ficção de Pavel (1997), Iser (1997), Käte Hamburger (1986), Doležel (1997), utilizando como contraponto Aristóteles (1994) e Costa Lima (1980). Iremos tentar apresentar como a estrutura da ficção e sua produção foi encarada pelos teóricos citados. Com isso esperamos oferecer uma alternativa à separação radical que, desde os primeiros historiadores de que temos notícia, não produziu frutos perenes, mas apenas fez levantar mais questões, como aponta Costa Lima (2006, p. 32): [...] Heródoto e Tucídides [...] tornam-se os primeiros com os quais começa a questão que nos perturba: por 16
Frederico José Machado da Silva
que não os considerar pertencentes à mesma linhagem homérica? Bastaria saber que eles não queriam ser assim figurados, se a razão de sua recusa – falar ou não de acordo com a Musa, mas a partir das investigações que reuniram ou do que viram – veio a ser constantemente contestada?
Sobre a ficção: Inconsistências Antes de adentrarmos no quesito liminar de nosso estudo, apresentaremos algumas definições comuns sobre a ficção e sobre sua relação com a realidade. Não é incomum que encontremos conceitos sobre ficção que a aproxima da mentira, como podemos encontrar no dicionário da língua inglesa editado pelo Dr. Johnson (cf. JOHNSON apud ISER In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 43). Nessa definição apressada, a ficção não teria elementos que a diferenciasse da mentira. Tentemos compreender a razão dessa aproximação. Tal conceito, ao que nos parece, pode ser compreendido pelo fato de que tanto a ficção quanto a mentira são carentes (à primeira vista) de um referente que complete a noção do signo (na terminologia de Saussure). De certo modo, as palavras na ficção e na mentira são desligadas da realidade, ou seja, não nos é possível recuperar os referentes relatados nem na ficção nem na mentira, ausência que torna difícil o jogo entre significante e significado característico de nosso sistema linguístico, como aponta Merleau-Ponty: 17
Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
[...] [a] junção [...] do sentido linguístico da palavra e da significação por ela visada, não é, para nós, sujeitos falantes, uma operação segunda a que recorreríamos apenas para comunicar a outrem nossos pensamentos, mas é a tomada de posse das significações por nós, sua aquisição. Sem isto, elas permanecem presentes para nós apenas surdamente. Se a tematização do significado não precede a palavra, é por ser seu resultado. (1975, p. 324)
É a ausência de uma significação a que se ligue o significado que dificulta que se entenda ficção e mentira como diferentes. Assim como a mentira, a ficção não tem um respaldo verificável. Além disso, aproximam-se ainda mais as duas categorias quando discutimos sobre como se dão suas relações com a realidade. As duas instauram ou criam novos mundos. Exemplifiquemos com uma conversa qualquer na qual um dos indivíduos conta uma mentira sobre ter estado em um local específico. O interlocutor do mentiroso realiza um processo de ligação entre significante e significado que é ‘falso’ ou frouxo. Uma nova realidade, um mundo novo é criado. Na ficção não é diferente, também, ao se criar uma diegese qualquer, finge-se que aquilo existe realmente, mas há aí uma diferença crucial, na ficção há um fingimento que é realizado a partir da criação de um pacto ficcional entre os interlocutores, no qual os dois sabem da condição da ficção. Na mentira há a intenção de enganar por parte do emissor. 18
Frederico José Machado da Silva
A grande diferença entre a ficção e a mentira, portanto, é que enquanto o engano da mentira necessita inevitavelmente de uma máscara instransponível, a ficção usa uma máscara translúcida – fingida –, ou seja, ela ao mesmo tempo em que finge criar um novo mundo, revela os intentos de seu engenho, revela-se ficcional. Esta revelação faz parte do próprio jogo da literatura, como pontuou o teórico Iser (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 47) “[...] as ficções literárias contém toda uma série de sinais convencionalizados que indicam ao leitor que a língua utilizada não é discurso, mas discurso representado”. A característica de representação ficcional é percebida pelo leitor/ouvinte o tempo inteiro, o que não ocorre com a mentira, que quando ocorre revelação do engodo (ou a simples suspeita) se anula. Como arremata Vieira (In: LIMA, 2012, p. 63): Falar em ficção implica [...] em um pacto implícito de fingimento, de fingir fazer, entre quem construiu a ficção e quem a lê. O fingimento não está apenas na obra, mas também em quem a aprecia. A intencionalidade do autor da obra de fingir uma estória tal como ela deveria ter acontecido só se perfaz na disposição do leitor em aceitar tal intencionalidade.
Isso, como nos parece bastante claro, é bem diferente na relação entre o mentiroso e seu ouvinte.
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Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
Tomando como aceitas nossas colocações que separam ficção e mentira, resta-nos esclarecer como a ficção se relaciona com o mundo real, ou seja, como ela se inscreve, ou não, no mundo, tentando mostrar se é possível termos ficção se não temos referente. Iremos seguir, para tanto, os passos de Lubomir Doležel, que no seu artigo “Mímesis y mundo posibles” (In: DOMÍNGUEZ, 1997), parece ter chegado a algumas conclusões que podem nos ajudar a perceber que mundos são esses criados pela ficção e, principalmente, como enxergá-los; e Käte Hamburger (1986) que, no seu A lógica da criação literária (1986), revela alguns pontos cruciais para a percepção de como a ficção é diferente da realidade em sua forma e de como o receptor consegue operacionalizar esta distinção. Usaremos, para falar do referente e como ponto contrastivo, Aristóteles (1994). Käte Hamburger, ao iniciar sua discussão sobre a estrutura textual da ficção, afirma que o princípio que deve nortear a questão do épico deve partir da utilização, feita nos romances, do pretérito e do uso de verbos dos processos internos. Comecemos pelo primeiro ponto. Claro está, ao menos esperamos, que uma narrativa só pode partir de um ‘contar o passado’. Não narramos nunca o presente, mas algo que ocorre no passado. No entanto, consoante Humburger, a relação estabelecida entre o uso do pretérito num ‘ambiente’ romanesco é distinta do uso que se faz numa conversação coloquial ou mesmo num discurso histórico. 20
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A grande distinção, para a teórica alemã, é que ao usar o pretérito num discurso cotidiano, sempre é feita uma referência imediata entre quem emite o discurso e quem recebe. Por exemplo, quando um interlocutor qualquer fala para um ouvinte: O professor ensinava a todos os alunos do primeiro ano a regra de três, segundo Hamburger ao ter a possibilidade de perguntar o quando e obtermos uma resposta que nos satisfaça (sei quem é o professor, sei quem são os alunos do primeiro ano e quando isso ocorria) temos a existência não-ficcional. Enfim para a autora: A possibilidade de uma pergunta pelo ‘quando’ de uma ocorrência prova a sua realidade, a pergunta prova a existência de uma eu-origo, seja implícita ou explícita. O pretérito de um enunciado sobre a realidade significa que o relatado é passado, ou seja, que é conhecido por uma eu-origo como passado (1986, p.49)
Em outras palavras, é a certeza de um ‘eu da enunciação’ real, que emite a proposição relacionando-se com um ‘aquiagora’, apreensível que corresponda às conexões estabelecidas entre quem emite e o fato pretérito relatado. É, portanto, com o uso ‘correto’ do pretérito que tal fato passado é efetivamente posto no pretérito. Por outro lado, na ficção, segundo Hamburger, ocorre uma impossibilidade da pergunta. As conexões entre quem emite e o fato pretérito narrado não são
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Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
exatas. Os textos ficcionais, segundo Hamburger, tolhem a percepção exata do pretérito, mormente o imperfeito. Não é possível, portanto, que nós tenhamos uma resposta objetiva ao ‘quando’ de um trecho como este: Às 10 horas da noite do dia 03 de setembro, um gendarme despertou Verrières inteira, subindo a grande rua a galope; levava ele a notícia de que Sua Majestade, o rei de ***, chegaria no domingo seguinte, e já era terça-feira. O prefeito autorizava, quer dizer, solicitava a formação de uma guarda de honra [...] (STENDHAL, 1971, p. 105, grifos do autor).
Apenas pela forma das palavras, ou pelo que é dito, não nos é possível perceber que se trata de um texto ficcional, mas se formos adentrar no uso do pretérito perfeito, começamos a perceber que a relação de tempo entre o pretérito perfeito e a um eu-origo ficcional é nublada pelo uso de uma relação não ‘autêntica’ entre os interlocutores (na ficção). Ou seja, o emissor não compartilha com o receptor a mesma relação de presente, pretérito e futuro. (cf. HAMBURGER, 1986, p. 47). É um problema de existência que é revelado mesmo em obras nas quais existe uma marcação histórica do tipo ‘27 de agosto de 1989’. Não nos é dada a experiência do pretérito real. No trecho de O vermelho e o negro por nós citado é evidente que o pretérito imperfeito do indicativo significa presente do indicativo, ou seja, “o narrado não se 22
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refere a uma eu-origo real, mas sim a eu-origines fictícias, portanto é fictícia” (HAMBURGER, 1986, p. 52). Isto representa a mudança de sentido do pretérito, “levava, autorizava e solicitava” do trecho da obra de Stendhal significam de acordo com o exposto pela teórica, leva, autoriza e solicita, no momento que o enunciador fictício emite o narrado. Dessa forma, o pretérito imperfeito torna-se presente. Ou seja, no momento que a eu-origo ficcional emite o pretérito imperfeito sabemos que ele não está se dirigindo a um passado, mas sim a um presente da ficção. Não é preciso ser um crítico ferrenho de tal formalismo para perceber que o aporte teórico proposto por Hamburger tem algumas falhas que podem desmoronar o projeto. Propositadamente, assim como Hamburger, escolhemos apenas trechos da obra de Stendhal para referenciar o exposto com eficácia. Mas como é possível separar, como divisor de águas, apenas o uso do tempo verbal1 (lembrando que Die logik der dichtung vem a lume em 1957)? Se tomássemos como exemplo um narrador autodiegético, a teoria proposta por Hamburger não é suficiente. Ou seja, a teoria de Hamburger não pode ser aplicada a qualquer obra. Como exemplo podemos citar Nabokov (1981, p. 18): “Reservei para a conclusão da minha fase Annabel a descrição do nosso primeiro e ma-
1. Kate Hamburger ainda volta seus olhos para o que ela chama de ‘presente histórico’. Para nossos intentos críticos, basta-nos o exposto sobre o pretérito imperfeito.
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Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
logrado encontro a sós. Certa noite ela conseguiu burlar a falha vigilância de sua família”. O que mostra que o intento de separar os tempos verbais e seus usos como um dado relevante para a identificação de que um determinado texto é ficcional não é suficiente. Ainda com o uso do verbo, Hamburger aponta que há uma particularidade no uso dos verbos dos processos internos nas ficções. O narrador, ao evidenciar estados mentais das personagens, faz uso, na terceira pessoa, de verbos como pensar, refletir, sentir, o que, arremata a autora alemã, é distinto de toda a nossa experiência pessoal. Por exemplo, no trecho que abre o capítulo XXIX de O vermelho e o negro, a um enunciador real uma construção como esta: “Por fim, uma montanha distante, ele divisou muros negros; era a cidade de Besançon. – Que diferença para mim, pensou ele suspirando” (STENDHAL, 1971, p. 163, grifos do autor) seria completamente impossível. Segundo Hamburger, caso aventada ou imaginada por alguém seria ficção. No entanto, essa minúcia formal é capaz de erigir uma teoria contrastiva entre um enunciado real e um ficcional? Acreditamos que tal caminho possibilita uma reflexão para tal, mas não resolve na íntegra o problema, uma vez que obras com narrador heterodiegético que não se utilizam desse expediente de entrar na mente das personagens, ou mesmo uma obra com narrador autodiegético cuja focalização seja interna apenas
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em relação a si, estariam de fora do esquema conceitual proposto pela teórica alemã, ou seja, seriam inclassificáveis. O que podemos retirar então desse levantamento formal é que não é possível simplesmente pelo conhecimento estrutural de um texto delimitá-lo como ficcional. É preciso, portanto, avançar mais em nossas indagações, uma vez que, a nosso ver, o dado estrutural só é válido dentro das obras literárias, não nos sendo possível perceber, com a teoria citada, de chofre: - É ficcional! É preciso, então, tentarmos entender a ficção sob o viés de sua produção. Precisamos, então, levar em conta a imitação (mímesis) de ações que gera a obra literária. Aristóteles (1994, p. 103) postula num conhecido trecho de sua Poética que: A epopeia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém, umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos, ou porque imitam objectos diversos, ou porque imitam por modos diversos e não da mesma maneira.
Importa que, para Aristóteles, poesia é imitação. Tomando o gancho da imitação, alguns intérpretes de Aristóteles utilizaram a mímesis para demonstrar que a única possibilidade de análise de um texto literário se dá
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Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
em buscar a relação entre fato e ficção2. Iremos mostrar como isto ocorreu ao longo do século XX expondo algumas passagens do trabalho teórico de Doležel. Doležel argumenta que para entendermos a ficção sob um viés realmente teórico é necessário primeiramente que a teoria se desapegue da tradição platônica e aristotélica (mímesis), para quem, segundo o teórico tcheco, as obras de ficção inevitavelmente se relacionariam com o mundo real de maneira linear. Para esta tradição cabe ao investigador buscar as entidades reais que alimentaram os entes ficcionais. Em outras palavras, Doležel critica e tenciona combater a noção de que “as ficções [...] se derivam da realidade, são imitações/representações de entidades realmente existentes. (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 69)3. Para mostrar a insuficiência dos pontos de vista que relacionam literatura como derivativo da realidade, Doležel descreve três vertentes teóricas que se utilizaram de tal expediente. A primeira delas se dá quando ocorre a busca no mundo real das fontes dos particulares ficcionais. Esta busca pode ser representada pelos trabalhos teóricos que investigam a validade real de personagens de ficção, muitas vezes representadas por historiadores que usam de textos 2.������������������������������������������������������������������������������������� É a essa corrente que se inicia a revolta contra a mímesis propugnada pelo Romantismo. A culminância do projeto romântico se dará no Simbolismo, quando se apagam as referências. Voltaremos a discutir isso no último capítulo do nosso texto. 3. As traduções do espanhol são todas nossas.
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literários para construir seus textos ‘documentais’. É o caso do historiador norte-americano (de origem alemã) Peter Gay que, com o livro Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Mann, tenta buscar, como o próprio título já denuncia, o que há de real nas obras de três romancistas. A primeira crítica ao modelo historicista de enxergar a ficção é sua quase imediata nulidade, e neste ponto concordamos com Doležel. Ora, uma vez construído o texto literário, será que se faz importante (para o entendimento daquele mundo criado/representado) sabermos se a corte de Chancery foi o real alvo da crítica às cortes inglesas perpetrado por Dickens em Casa sombria (1852-1853)? O que ocorre, e nesse ponto endossamos o posicionamento de Doležel veementemente, é que boa parte dos estudos ditos literários buscam apenas comprovar sistematicamente que de tal situação histórica, deriva tal obra literária4, um posicionamento crítico que se esgota a partir do momento em que não inspira nenhuma explicação do texto diferente do que está posto na obra, tornando o final dessas investigações literárias um beco sem saída. A segunda vertente de utilização da proposição helênica é a que foi difundida ao longo do século XX pelo crí-
4. Este modelo pode ser resumido na fórmula (criada por Doležel): Particular ficcional P/f representa o particular real P/r
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tico Auerbach5, notoriamente no seu aclamado Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental (2004), que é usada largamente quando não é possível reconhecer nas entidades ficcionais particulares entidades reais. É bastante fácil encontrar entidades reais para personagens como Napoleão ou Rasputin, mas quem são Raskólnikov, Julien Sorel, Hamlet ou Bentinho? A saída, para Auerbach e seus seguidores, é definir tais indivíduos ficcionais como tipos e universalizá-los como reflexos de um padrão psicossocial previamente escolhido, utilizando para isso modelos hermenêuticos universalistas de cunho agostiniano ou hegeliano, como podemos ver no trecho de Mímesis (AUERBACH, 2004, p. 423, grifos do autor): Em toda a sua obra [...] Balzac sentiu os meios, por mais diferentes que fossem, como unidades orgânicas [...] ele não somente localizou os seres cujo destino contava seriamente, na sua moldura histórica e social perfeitamente determinada [...] conseguiu isto da maneira mais perfeita e legítima com referência aos círculos da burguesia média e pequena de Paris e da província [...].
5. Optamos, como esperamos que esteja evidente, por apontar apenas os problemas de cada uma das vertentes.
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No trecho acima, no qual é facilmente perceptível a utilização do tipo como exemplo do universal, soa um tanto forçada a insistência na perfeição balzaquiana, conclusões que são retiradas neste capítulo de Mímesis de apenas algumas citações à obra do francês. Segundo Doležel, o grande problema desse sistema é a alta abstração necessária para seu êxito e também a forte possibilidade de falácia interpretativa, pois a pessoa que escolhe a entidade ficcional é a mesma que busca as correspondências desses tipos, nas palavras do teórico: [...] um crítico auerbachiano realiza uma dupla operação. Primeiro, seleciona um sistema interpretativo (ideológico, psicológico, sociológico, etc.) e transcreve a realidade em suas categorias abstratas. Segundo, faz corresponder os particulares ficcionais com as categorias interpretativas postuladas. Dado que uma pessoa e só uma realiza tanto a categorização da realidade quanto a busca das correspondências com os indivíduos ficcionais não deveríamos nos surpreender com o alto grau de êxito das interpretações universalistas. (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 75, grifos do autor).
Claro está que a crítica auerbachiana levada a este ponto acaba por minar o particular ficcional, como afirma Doležel, uma vez que elimina a possibilidade de criação
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literária, submetendo a entidade ficcional a uma relação especular com a época em que foi escrita. Além disso, tal dissolução acaba por extirpar da crítica literária uma das suas principais causas: o estudo das personagens ficcionais e sua relação com a obra, pois se evidencia o papel da personagem enquanto reflexo do mundo, mas o seu papel enquanto personagem de uma obra literária é deixado em segundo plano. A terceira e última vertente surge como uma forma de corrigir o problema do desaparecimento da entidade ficcional. Ian Watt no seu A ascensão do romance tenta resgatar tal particularidade relacionando aquela entidade à figura do autor como uma fonte direta. Esta via, como explica Doležel, é uma espécie de pseudo-mimese6, pois dispensa a relação direta com o mundo, ao pôr em evidencia apenas o autor, enquanto gênio criador que só precisa colocar no papel o que sempre-já existe em sua mente. Este pressuposto para o teórico tcheco (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 76): [...] se baseia na pressuposição de que os domínios da ficção em geral e as mentes ficcionais em particular existem independentemente do ato de representação, à espera de ser descobertos e descritos. A pseudomimese impede a formulação e estudo da questão fundamental da semântica da ficção: como nascem os mundos ficcionais? 6. A fonte real F/r/ representa o particular ficcional P/f/.
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A grande crítica de Doležel, a qual recai principalmente sobre os dois últimos casos – a crítica universalista auerbachiana e a pseudo-mimese – é que, para ele, ou há um esvaziamento da função mimética (a pseudo-mimese) ou é alterado substancialmente (a universalista) o projeto de uma ideia de representação mimética. No seu ensaio, no entanto, o crítico tcheco deixa de levar em consideração a relação estabelecida pelo próprio Aristóteles na sua Poética, o que invalidaria a ‘tradição’ pós-aristotélica de interpretação da mímesis. Não há em Aristóteles intenção alguma em postular que a arte apenas imita a vida. Falta, para o crítico tcheco, a percepção do legado de Aristóteles, o que faz com que sua teoria caia por terra. Ao falar do nascimento da poesia, o filósofo de Estagira é incisivo (1994, p. 106-7, grifos do autor): 13. Ao que parece, duas causas, e ambas naturais, geraram a poesia. O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado. 14. Sinal disto é o que acontece na experiência: nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo, [as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres. Causa é que o aprender não só muito
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Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
apraz aos filósofos, mas também, igualmente, aos demais homens, se bem que menos participem dele. Efetivamente, tal é o motivo por que se deleitam perante as imagens: olhando-as, aprendem e discorrem sobre o que seja cada uma delas, [e dirão], por exemplo, “este é tal”. Porque, se suceder que alguém não tenha visto o original, nenhum prazer lhe advirá da imagem, como imitada, mas tão-somente da execução, da cor ou qualquer outra causa da mesma espécie.
Ao falar do prazer que temos ao ver o imitado, Aristóteles nos dá a chave para entendermos as ficção em dois vieses: a arte que imita o real, cujo referente está na realidade e também a arte que independe da referência, do real. Foram os interpretadores de Aristóteles que entenderam erroneamente o conceito de mímesis. Se for possível ter prazer sem (re)conhecer o original, é possível que a arte independa de um original. O problema é que, claro está, para o horizonte aristotélico não havia a possibilidade de um quadro de Mondrian ou de um poema de Mallarmé, autores que aboliram a referência e criaram novas realidades. Por isso, não é possível cobrarmos da “Poética” tais respostas, resta-nos atualizar seus conceitos e enfeixá-los no mundo em que vivemos. Se a mímesis, modo de produção da ficção, independe do real, resta-nos esclarecer como podemos continuar chamando de mímesis a origem da ficção. 32
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Elucubrações em contraponto: mundo ficcional e a mímesis de Costa Lima Como vimos, já há em Aristóteles uma centelha da possibilidade de desvincular a ficção do mundo real. Tentaremos nos aprofundar nesse caminho para tentarmos encontrar uma semântica da ficcionalidade. No texto Las fronteras de la ficción (In: DOMÍNGUEZ, 1997) Thomas Pavel defende que as fronteiras que separam o mundo da ficção e o real são porosas e mutáveis. A sociedade sempre fez uso das ficções confundindo-as com a realidade e vice-versa. Para Pavel, não é possível detectarmos nem na estrutura (HAMBURGER), nem mesmo no conteúdo (DOLEŽEL) dos personagens ficcionais elementos que sejam apenas do mundo da ficção. A despeito das inúmeras tentativas de fazer uma separação entre mito e logos, a intromissão de entidades ficcionais no mundo real sempre foi um procedimento comum das sociedades, como defende Pavel ao abordar a problemática do marco convencional, ponto-chave da ligação entre dois mundos: Este termo [marco convencional] está pensado para abarcar um conjunto de mecanismos, tanto estilísticos como semânticos, que projetam aos indivíduos e aos acontecimentos em certo tipo de perspectiva,
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colocam-nos numa distância cômoda, elevam-nos a um plano superior, de tal maneira que podem ser contemplados e entendidos com facilidade. Em resumo, dada a estruturação em dois níveis de nossa organização cultural, a estrutura convencional consiste em transladar a indivíduos e acontecimentos do nível real ao nível culturalmente mediado. (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 175)
Tanto os autores de literatura quanto a sociedade usam largamente o expediente do marco convencional, jogando sempre com seus limites frouxos. Sem esse marco, a própria abstração, ou evasão, própria das nossas atividades mentais não existiria e nem tampouco quaisquer de nossos dogmas, valores e instituições, uma vez que sempre estas categorias necessitam de imaginação, de evasão mental ou, como o caso dos dogmas, de mitos (como é o caso do cristianismo, do judaísmo ou islamismo). A literatura também fez (e faz) usos dessa frouxidão, ao alargar ou diminuir o tamanho da separação entre o mundo real e o ficcional. É o caso de A Busca do Santo Graal, no qual há uma tentativa de que o texto ficcional seja lido como real, ou ainda textos realistas que são construídos utilizando bases não-ficcionais e que se pretendem uma pintura dos costumes de uma dada sociedade. Esta relação também é percebida nos textos literários que apresentam intenções de
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influenciar o real, como os romances de tese, as parábolas ou os textos de ensinamentos. O que Pavel parece propor é que haja um direcionamento das energias criativas da crítica não para um embrutecimento da fronteira, mas para buscar perceber o entendimento das sociedades sobre as relações entre o mundo ficcional e o mundo real, como aponta o teórico: “[...] deveríamos tratar a ficção como fenômeno dinâmico e condicionado pela história e cultura, que contrasta com a realidade e o mito”. (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 178-9). As conclusões de Pavel, no entanto, não conseguem atingir o cerne da questão de como é possível existir ficção sem referente, e como é possível tal contraste com realidade, ou seja, não nos é possível aplicar tal conceito à problemática da mímesis que toma corpo no Simbolismo. Precisamos, então, diante disso, mostrar como é possível estabelecer uma conceituação satisfatória da ficção que não dependa de defini-la apenas em sua relação com o mundo real, tarefa que, como mostramos, é imprecisa. Doležel, no artigo já citado anteriormente, tenta criar uma teoria que ele chama de Mundo Ficcional, a qual, para o teórico tcheco, consegue se afastar da tradição helênica e, segundo o pensador tcheco, apagar a necessidade de mímesis (no sentido de representação). Dialogaremos com o teórico, tentando mostrar como funciona tal abordagem.
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Doležel apresenta três teses para sustentar sua teoria de Mundo Ficcional: 1. Os mundos ficcionais são conjuntos de estados de coisas possíveis. Esta tese estipula que há uma legitimação, neste modelo, dos possíveis nãorealizados: Mesmo que Hamlet não seja um homem real, é um indivíduo possível que habita o mundo ficcional da obra de Shakespeare [...] A semântica dos mundos possíveis é correta em insistir que os indivíduos ficcionais não podem ser identificados com indivíduos reais de mesmo nome (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 79).
Tais indivíduos que existem apenas no possível ficcional devem ser levados em consideração enquanto entidades de mundo ficcionais, que por sua vez são regidos mais por um princípio de ‘homogeneidade ontológica’, do que por um contrato com o mundo real, mesmo que esses indivíduos sejam homônimos de entidades reais. Ou seja, as ações de um Napoleão nas ficções diversas são guiadas pela verossimilhança interna da obra e podem fugir dos padrões estipulados pela narrativa histórica, em decorrência de necessidades do fluxo diegético. Quando não há homonímia se dá da mesma maneira, Hamlet não deve ser encarado
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como um tipo surgido apenas de uma sociedade, mas uma entidade ficcional que faz parte de um universo ficcional criado por Shakespeare. 2. O conjunto de mundos ficcionais é ilimitado e variado ao máximo. Para Doležel: A semântica dos mundos possíveis não exclui de seu âmbito os mundos ficcionais similares ou análogos ao mundo real; ao mesmo tempo, não tem problema em incluir os mundos mais fantásticos, mais afastados de/ou contraditórios com a ‘realidade’”. (In: DOMÍNGUEZ, 1997, p. 80).
No elenco de mundos possíveis existem histórias como a saga de Harry Potter, mas também as narrativas mais realísticas, como Agosto, de Rubem Fonseca. A única restrição para a existência de qualquer destes mundos, claro está, é a ausência de contradição, o que inviabilizaria a sua existência. Por isso, as narrativas mais fantásticas quando isentas de contradições são possíveis. Não nos perguntamos, por exemplo, como é possível que um fio de sangue derramado, na diegese de Cem anos de solidão (MARQUÉZ), possa atravessar a cidade, pois esta entidade ficcional, ao adentrar no texto se adequa à ordem geral de tal mundo, não o contradizendo. Tal acontecimento seria bastante estranho numa obra como O quinze, de Rachel de Queiroz. 37
Sobre o mundo da ficção fronteiras, definições e inconsistências
Por fim, a última tese afirma que os mundos ficcionais são acessíveis apenas a partir do mundo real: Para esse acesso é necessário atravessar as fronteiras de mundo, transitar do reino dos existentes reais ao dos possíveis ficcionais [...] O mundo real participa na formação dos mundos ficcionais proporcionando os modelos de sua estrutura (incluindo a experiência do autor), ancorando o relato ficcional em um acontecimento histórico. (DOLEŽEL In: DOMÍNGUEZ, p. 83, grifos do autor)
Analisemos as três teses sustentadas pelo teórico tcheco (e em especial a última). Doležel no início do texto que expusemos aqui afirma que com a teoria dos mundos ficcionais: “A semântica mimética será substituída pela semântica da ficcionalidade dos mundos possíveis” (In: DOMÍNGUEZ, p. 77) (itálicos no original). Mas, se colocarmos este objetivo em contraste com qualquer uma das teses perceberemos que, na verdade, Doležel não consegue se afastar de uma mímesis no sentido aristotélico, pois o filósofo de Estagira já aventava tal possibilidade quando comparava história e ficção mostrando que a última também tinha um papel de mostrar as coisas como deveriam ser. O que, a nosso ver, é um problema de interpretação da mímesis aristotélica. O mais importante no resumo que fizemos da teoria do Mundo Ficcional de Doležel, no entanto, foi preservado. 38
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Aparentemente, a genialidade de Aristóteles faz com que passados vários séculos sua voz ecoe em toda discussão sobre a relação entre realidade e ficção e que não possamos, principalmente falando sobre Mímesis, afastarmo-nos de suas elucubrações. É preciso, então, alargar o conceito de imitação para que possamos de maneira satisfatória encarar obras de arte das quais não conhecemos (ou não temos) referente. Quem avança no sentido de alargar o conceito de Mímesis7 é Costa Lima (1980). No capítulo “Mímesis da representação e mímesis da produção”, o teórico maranhense postula duas vertentes para a imitação. Primeiramente, Costa Lima inicia seus questionamentos apresentando como a imitação se relaciona com a realidade: “[...] se a “imitação” é, classicamente, o correlato das representações sociais e se estas mostram ao indivíduo o meio a que está ligado, então a mímesis supõe algo que não é a realidade, mas uma concepção de realidade”. (1980, p. 169). Em outras palavras, a mímesis sempre-já estabelece uma relação representativa, imitativa, intercolaborativa na qual o texto ficcional apresenta ‘parcelas’ das representações sociais, centelhas que são reconhecidas pelos leitores que, durante a leitura, percebem a que concepção de realidade o texto se refere. Até aí nada de novo. 7. Precisamos ressaltar que o texto de Costa Lima que utilizamos (um excerto de Mímesis e modernidade) é publicado em 1980, enquanto que o texto de Doležel vem a lume em 1988.
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No entanto, a grande virada conceitual de Costa Lima se dá ao se debruçar sobre os textos ficcionais produzidos durante o período simbolista e pós-simbolista, que não terão mais a imitação conforme definição clássica, quando justamente a parcela da representação social daquela concepção de realidade é posta de lado e os textos ficcionais se abrem a uma mímesis da produção de novos referentes. Nas palavras de Costa Lima (1980, p. 169): Quando em etapa posterior, com Mallarmé, a mímesis parte da destruição daquele substrato, radicaliza seu trabalho no sentido de despojar-se ao máximo dos valores sociais e da maneira que eles enfocam a realidade e, por fim, desta própria realidade, já não poderemos falar numa mesma mímesis da representação. E isto equivale a dizer que o ato mimético já não pode ser interpretado como o correlato a uma visão anteriormente estabelecida da realidade.
Este ponto é crucial para que possamos ter uma identificação com os textos simbolistas e, principalmente, com boa parte da produção contemporânea na arte. Como, por exemplo, é possível estabelecer um conceito funcional ou representacional para o simples jogo de cor e luz de telas contemporâneas (desde Mondrian)? Quando o referente é apagado, como dissemos linhas atrás com Aristóteles, nasce a busca pelo prazer de entender como se deu a produção de 40
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tal texto ou tela artística, daí o prazer em buscarmos estudar tais textos para enxergar sua tessitura, seu modo. A partir deste ponto, a mímesis aguça ainda mais o papel do leitor enquanto escritor do texto. É o leitor que irá fará com que o texto funcione, sem ele, a mímesis que produz nada é (cf. COSTA LIMA, 1980, p. 170). A mímesis de produção, portanto, é o contraponto da mímesis de representação, alargando o que Aristóteles (ao analisar as obras que lhe eram coevas) chamou de representação das “coisas como deveriam ser”, tornando a obra ficcional uma criadora de referentes. É o caso das pinturas neoplatiscistas de Mondrian que quando lançadas no início do século XX criam uma nova referência que é reinvestida no mundo de tal sorte que a pintura Composição com vermelho, amarelo e azul (1921) hoje pode ser encontrada impressa até em tênis e texturas de parede. Ou seja, a mímesis de produção cria para o mundo, em vez de tomá-lo como referência (exemplificando o uso do ficcional do qual fala Pavel). No entanto, resta-nos responder como nesse campo ficcional que funda novos elementos se dá a relação entre o texto e o leitor. Não é incomum vermos receptores de arte abstrata ou poesia hermética com um olhar embasbacado ou zombando da falta de ‘sentido’ de certos objetos artísticos. Ocorre que, para apreciar os objetos da mímesis da produção é necessária uma educação para tal, fazendo com que se entenda como aquele objeto se inscreve no campo artístico, 41
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processo descrito por Costa Lima da seguinte maneira “[...] não é que o prazer estético seja elidido; apenas sua fonte se torna mais estreita: é um prazer que agora nasce, não de um reconhecimento, mas do próprio conhecimento da produção” (1980, p. 180) (itálicos no original). Importa, então, para a ficção regida por uma mímesis da produção, a arte em si, o construto artístico. Passamos por várias tendências do estudo sobre ficção e voltamos a Aristóteles mostrando que para entender a ficção é preciso reinterpretar o que a alimenta, a mímesis. A simples negação disso resulta, como esperamos ter mostrado, numa discussão contraproducente e exaustiva. O mundo da ficção, portanto, é um ato de criação que pode ou não estar fiado no real, que segue seu próprio fluxo, muitas vezes com personagens e situações (um quarto na ficção realista, por exemplo, será sempre um quarto) roubadas diretamente do mundo, como diria Julio Cortázar, mas pode que acompanhar um fluxo interno sui generis, como demonstrado pela revitalização da mímesis operada por Costa Lima. Não se trata de descartar a possibilidade de uma mímesis de representação, mas entender o outro lado, o do hermetismo. A ficção é a arte imitativa por excelência, imita inclusive o dom de criar novas referências, que é próprio da humanidade.
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Teorias da Ficção: semelhanças e diferenças entre a Teoria do Efeito Estético, de Wolfgang Iser, e a Teoria da Mímesis, de Luiz Costa Lima
A
aproximação teórica entre ficção e espelho é a alegoria da natureza e da função do texto literário. Os resultados das interpretações que a correlação provoca chegam a ser opostos: a) a ficção é semelhante ao espelho, cópia objetiva do real externo; b) o espelho não duplica a imagem objetivamente, mas a condiciona a sua estrutura, oferecendo uma outra visão do objeto ou
Teorias da Ficção: semelhanças e diferenças entre a Teoria do Efeito Estético, de Wolfgang Iser, e a Teoria da Mímesis, de Luiz Costa Lima
um novo objeto, assim como a ficção. Enquanto a primeira constatação torna o literário dependente das referências extraverbais, a segunda anula-as ao destacar a esterilidade do espelho. Não é por isso que os argumentos deixam de apresentar um ponto de concórdia: ficção e espelho são equivalentes, embora tenham sua ontologia corrompida (imitativa em a, inaugural em b), de modo a se adequar às indagações teóricas. Questiona-se aqui se a ficção possui um modus operandi próprio, de maneira que a e b possam contribuir para uma síntese do comportamento do ficcional, isto é, evita-se a elaboração de uma definição substantiva do ficcional em privilégio de uma descrição de como a ficção se constitui. O material teórico escolhido diz respeito às produções teóricas de Wolfgang Iser (2002, 2001, 1999) e Luiz Costa Lima (2006, 2003, 2002, 2000, 1981, 1974, 1973). Busca-se, assim, entender como os intelectuais selecionados refletem sobre o comportamento da ficção e, mais importante, como suas perspectivas dialogam. Se a proximidade entre tais perspectivas é explícita, o mérito desta empreitada não corresponde à constatação de sua interação, mas à observação crítica de como ela se estrutura. O ponto de chegada se torna menos relevante que o desenvolvimento do processo. Perceberá o leitor que a investigação da mímesis de Costa Lima não apenas se apoia na Teoria do Efeito Estético de Iser, como também consegue responder a algumas das lacunas 46
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que esta abre. Promessas e premissas expostas, é tempo de destrinchar as teorias da ficção dos teóricos. O percurso inicial deste ensaio consiste na apresentação da Teoria do Efeito Estético de Iser e, a partir dela, na exposição das características correlatas da Teoria da Mímesis de Costa Lima. Através do destaque da semelhança entre tais teorias, buscar-se-á os pressupostos teóricos que lhes dão base para, uma vez constituída uma visão global de ambas, observar se apresentam divergências e se estas se comunicam. Os Atos de Fingir ou o que é Fictício no Texto Ficcional (ISER, 2002) oferece a base da reflexão iseriana sobre o texto ficcional. O teórico sistematiza tais atos em três, sendo a seleção o primeiro deles. Ela dá conta da escolha das referências que serão transformadas pelo texto. De natureza cultural ou literária, os referentes selecionados têm seus valores transgredidos de sua estrutura semiológica habitual. Há de se perceber que a transgressão do ato da seleção impossibilita que se atribua um deslocamento objetivo dos sistemas de referência do mundo extratextual para a atmosfera do texto. As representações que o texto abarca são transgredidas por ele próprio, que suprime, complementa e valoriza tipos determinados de acordo com sua intencionalidade. O ato transgressor seguinte é a combinação. Ela diz respeito, sobretudo, à organização interna dos elementos textuais, tanto no nível do enunciado quanto na organização 47
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da intriga, e interage com o ato da seleção para construir no corpo do texto o sistema de valores almejado por sua intencionalidade. Dessa forma, a combinação se caracteriza pela criação de relacionamentos intratextuais que não se esgotam dentro do texto. Ela deixa de funcionar como um único relacionamento para se constituir como representação de relacionamentos. O último ato de fingir é denominado desnudamento da ficcionalidade. Ele é responsável pela diferenciação entre a Literatura e a realidade; defende que os textos literários se apresentam historicamente como ficção a partir de um conjunto de convenções que autor e leitor compartilham. Pode-se dizer que o texto ficcional, ao produzir um mundo, não espera ser tomado como dado, empírico, mas como se fosse real. Isso é possível porque o mundo extratextual retorna como algo reconhecível ainda que o texto subtraia o valor pragmático do conjunto de ações de que se serve para ressignificá-lo e revelar um mundo outro, transgredido pelos atos, que, ao guardar uma relação com o real, finge-se autônomo. A autonomia do texto é só aparente, uma vez que seu sentido não pode ser alcançado pela análise exclusiva do eixo sintagmático. De outra forma, privilegiar-se-ia o princípio da combinação sobre os outros, quando, na verdade, os três atos de fingir interagem entre si. Em busca do sentido do texto, é preciso investigar que valores históricos são selecionados por ele e o que o texto faz com tais valores; além disso, não se 48
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deve deixar de atentar que esse tipo de investigação só pode ser feita pela observação especial da linguagem do texto, sua concretude, a matéria que transmite seu significado. Obterse-ia então o mundo do texto, mas não o seu significado. Se o texto se apresenta como o análogo de um mundo, como se fosse real, seu caráter de fingimento estabelece uma relação comparativa com o mundo do receptor que o acolhe, atuando neste encontro uma semelhança e uma diferença entre os sistemas de valores do texto e os sistemas do leitor histórico. Nas palavras de Iser (2002, p. 976-7): O mundo representado no texto é uma materialidade que, por seu caráter de como se, não traz em si mesmo nem sua determinação, nem sua verdade, que devem ser procuradas e encontradas apenas em relação com algo outro. Desta maneira, conserva-se formalmente no texto um elemento designativo. Este, entretanto, já não é puramente designativo, porquanto sua função aparece relacionada à função remissiva. Pois, se o como se assinala que o mundo representado deve ser visto como se fosse um mundo, então é necessário manter um certo grau de designação para que o mundo se possa transformar na condicionalidade intencionada.
Para Iser (2002), o texto não pode designar a si mesmo devido ao efeito do como se, mas apenas remeter aquilo que 49
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não é, uma vez que não é um mundo real, embora assim seja considerado. A remissão prepara o texto para a sua finalidade: tornar-se perceptível ao promover respostas afetivas nos leitores e assim orientar reações sobre o mundo do texto. Sendo o mundo do texto irrealizado, porém análogo – exemplo do mundo –, o texto provoca “uma relação de reação quanto ao mundo.” (ISER, 2002, p. 978). À semelhança de Iser, Luiz Costa Lima acredita na relação proximal indireta, ou seja, não objetiva, entre o mundo e o texto, mais especificamente, entre as representações vigentes no real histórico e as representações presentes no texto ficcional. Seu ponto de partida, entretanto, é outro: a investigação da mímesis. Costa Lima rejeita a concepção estandardizada que toma a mímesis como sinônimo de imitação. Dessa maneira, o teórico recusa qualquer possibilidade de transparência entre o signo e o referente, bem como nega que este seja de natureza exclusivamente linguística. Costa Lima (1981) reconhece que as formas de entendimento pressupõem uma abrangência que nem apenas os sentidos (esfera perceptiva) ou a consciência (esfera cognitiva) conseguem dar conta, uma vez que social (práxis), e recorre à Sociologia e à Antropologia para defender que todo o tipo de classificação (signo linguístico) corresponde a uma ordem hierárquica que uma sociedade utiliza para estabelecer e diferenciar valores, o que engendra os processos de identificação. Pode-se, assim, determinar que as identidades não 50
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equivalem à essência, mas à representações legitimadas por tal sociedade. O referente deixa de se confundir com o verdadeiro para dizer o representativo. Costa Lima (1981) ainda faz a ressalva de que não existe real prévio à representação, mas o contrário, as representações são o que concedem significado ao real. As representações são estruturalmente organizadas por “grilles” (redes de classificações) e “frames” (molduras de convenção) que funcionam como o cerimonial social e a vestimenta adequada, respectivamente. São tais estruturas que orientam a interação humana no sentido de torná-la efetiva. Se o comportamento delas é automatizado, entretanto, não se deve supor estanque, pois se a práxis interfere na fabricação dos signos, posteriormente, a língua passa a reatualizar a práxis. Concretamente, os “frames” operam por dois processos básicos de flexibilidade: a fabricação e a transposição. Enquanto o primeiro designa a mentira, a fraude, o segundo revela uma desestabilização da moldura básica, quando um indivíduo realiza uma ação que gera um significado diferente daquele que parecia indicar. Essa é a transposição comum ao jogo e a que Costa Lima (1981) relaciona à Literatura devido a sua capacidade de destituir o valor pragmático dos enunciados no texto literário, ressignificando-os.
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Referindo-nos pois ao que se passa tanto na prosa quanto na poesia, podemos dizer: a mímesis supõe em ação o distanciamento pragmático de si e a identificação com a alteridade captada nessa distância. Identificação e distância, identificação a partir da própria distância constituem pois os termos básicos e contraditórios do fenômeno da mímesis. Pensando-a pois em relação às representações sociais, diremos que ele é um caso particular seu, distinto das outras modalidades porque a mímesis opera a representação de representações. Na fórmula, reencontramos sua propriedade paradoxal. Representação de representações, a mímesis supõe entre estas e sua cena própria uma distância que torna aquelas passíveis de serem apreciadas, conhecidas e/ou questionadas. Essa distância, pois, ao mesmo tempo que impossibilita a atuação prática sobre o mundo, admite pensar-se sobre ele, experimentar-se a si próprio nele. (COSTA LIMA, 1981, p. 230).
Representação de representações, o referente de que se serve a mímesis literária não supõe a cópia de um objeto, cena ou ideia exteriores. O texto artístico deixa de ser uma imagem do mundo para se tornar uma reflexão sobre ele ao cobrar do receptor a alteridade que lhe é ponto de partida. É pelo fingimento que a mímesis faz com que o referente emanado pelo texto estabeleça uma relação com as referências históricas do receptor, assemelhando-se ou 52
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distanciando-se das representações vigentes na sociedade deste último. Através do desenvolvimento da atuação dos vetores de semelhança e de diferença em relação às representações sociais, Costa Lima (2003) chama a atenção para a tarefa do analista consciente da tensão da mímesis. Ao analista, cabe “desconstruir o significado que aparentemente esgota o produto” (2003, p. 71), considerando a combinação de semelhança e diferença na relação entre as duas partes do signo linguístico; em outras palavras, o que corresponde ou não ao significado do texto artístico em sua mutabilidade histórica. Para o teórico, limitar-se à observação da semelhança é enclausurar-se no ambiente realista, isto é, na fidelidade do texto ao que lhe é exterior; tratar a diferença com exclusividade significa reduzir a abordagem a um perfil unicamente formalista. A variação interpretativa dessa combinação se comporta de acordo com a posição histórica do receptor, que põe na obra seu estoque prévio de referências externas e internas à Literatura, estoque de um conjunto de símbolos que lhe permite acessar o real e do qual a linguagem é área de privilégio. O analista deve então aproximar o simbólico da sociedade que o representa, não para entendê-lo como reflexo dessa sociedade, porém para reconstruir os caracteres responsáveis ao conhecimento de sua estruturação, sem pretender encerrá-lo em um significado definitivo. Por esse motivo, Costa Lima (1974, p. 40) 53
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defende que o mais adequado, face ao literário, é proceder de uma análise sistêmica, isto é, “aquela que, pela desconstituição da dimensão visível, presente, sintagmática, procura estabelecer o sistema que a obra constitui e, ao mesmo tempo, dentro do qual se constitui”, ou seja, em sua dimensão paradigmática. Um dos objetivos de Costa Lima (2002) é diferenciar uma análise sociológica da literatura de uma análise sociológica do discurso literário, evitando o tratamento deste literário como documento, cópia de uma realidade factual. Só através do conhecimento preciso do estatuto do discurso literário, basicamente, da consideração da produção que a linguagem opera sobre o real empírico mediada pela práxis social, é que se permite ao analista reconhecer a relação entre as formas poéticas e as estruturas sociais e analisar a poesia como a mudança de direção individual da linguagem do plano social para o plano imaginário (FURTER apud COSTA LIMA, 2002, p. 667). Seu objetivo maior, todavia, consiste na redefinição do conceito de mímesis. Para o teórico, semelhança e diferença representam ação fundamental para que se considere a dinamicidade do literário. Assim, Costa Lima (2003, p. 181) classifica como “Ser” à maneira pela qual uma sociedade concebe a realidade e divide a mímesis em dois tipos: mímesis da representação, aquela em que o vetor semelhança prepondera; e mímesis da produção, aquela em que o vetor diferença é predominante: 54
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Em suma, toda obra que não tem nem uma relação direta, nem a possibilidade de um efeito direto sobre o real, só poderá ser recebida como de ordem mimética, seja por representar um Ser previamente configurado – mímesis da representação – seja por produzir uma dimensão do Ser – mímesis da produção. Convém ainda esclarecer: para que uma obra da segunda espécie possa ser acolhida pelo leitor é preciso que contenha indicadores do referente que desfaz. A categoria da negação é assim necessariamente ressaltada, muito embora o trabalho da produção vá além do negado. A negação importa como lastro orientador da recepção, a qual, se pretende conhecer o objeto, e não só entender seu comportamento, precisa ver o que se faz com o que se negou. (COSTA LIMA, 2003, p. 182).
É inquestionável reconhecer o alto grau de proximidade entre as teorias de Iser e Costa Lima. Ambos caracterizam o texto literário como não pragmático, isto é, não possuidor de uma função direta sobre o contexto, e destacam a impossibilidade de uma transmutação objetiva dos referentes do mundo para a estrutura do texto. Neste último ponto, a concórdia se verifica por razões distintas: para Iser (2002), o texto não é cognato do mundo por seu caráter transgressor; para Costa Lima (1981), pela inexistência de essencialidade dos referentes, que só conhecem a representação. Os teóricos concordam ainda quanto ao perfil sintético do texto literário,
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em outras palavras, na integração da forma e do conteúdo, seja pela relação entre os atos de seleção e combinação (ISER, 2002), seja pela necessidade de indagar o campo sintagmático para que se alcance o nível paradigmático e se descubra de que modo estes interagem (COSTA LIMA, 1974 & 2003). Interação que desemboca no fingimento do texto, sua condição de revelar-se como análogo do mundo para Iser (2001 & 2002) e sua procura por alteridade para Costa Lima (1981). É pelo fingimento que a Literatura irrealiza o real, isto é, torna perceptível algo que não existe no mundo exterior ao texto, mas, que por assumir a forma de acontecimento para o seu leitor (ISER, 2002), permite-lhe refletir sua atuação no mundo. O conceito de irrealização do real se comunica fortemente com o que Costa Lima (2006) declara ser um dos efeitos da poesia: a suspensão do juízo de falso ou de verdadeiro. O texto literário anula tal paradigma de maneira a levar o receptor a desconsiderar a constatação dos eventos da ficção em consideração a sua possibilidade de realização. É assim que o texto permite ao leitor a configuração de uma relação de reação quanto ao mundo (ISER, 2002) e o questionamento de si próprio pela reelaboração da alteridade de que o texto se vale (COSTA LIMA, 1981), ativando a dimensão afetiva para o estabelecimento de um significado. As posições de Iser e Costa Lima não apenas dialogam entre si, como, obviamente, respondem às questões comuns à Teoria da Literatura. O texto deixa de ser tomado como 56
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sintoma do social ou ainda da consciência criadora. A intencionalidade do texto se constrói linguística e historicamente pelo trabalho interno e pela reverberação dos valores do texto em relação às sociedades em que são produzidos e que o recepcionam. O princípio de despragmatização não se confunde com a desautomatização formalista, que visava apenas o prolongamento da percepção. Se o texto não surge pragmático, é pelo fingimento, pelo como se, que se torna, uma vez que possibilita a reflexão do sujeito em relação a si próprio e ao seu mundo. A representação de relacionamentos (ISER, 2002) não só eleva o texto à universalidade, como, sendo a mímesis representação de representações (COSTA LIMA, 1981), concede ao leitor a possibilidade de refletir as estruturas que motivam e controlam a organização social. Dessa maneira, o texto deixa de ser uma finalidade sem fim, para atribuir-se uma finalidade histórica. Além desses fatores, Costa Lima (1974) e Iser (2002) combatem a ênfase na conotação, pois, mesmo no nível mais rudimentar, na palavra, o sentido só é conhecido pela interação entre os campos denotativo e conotativo, que podem revelar a predominância da função remissiva ou da função designativa. Costa Lima e Iser chegam a tais posições pela recusa das concepções anteriores sobre a arte. Clássicos, formalistas e estruturalistas pensavam o texto literário como participante de uma relação dicotômica com a realidade. Enquanto os clássicos suprimiram a obra em detrimento da realidade, 57
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os teóricos do Formalismo e do Estruturalismo apagaram a realidade para se fechar no corpo do texto. Costa Lima e Iser rejeitaram tal oposição e, com base em Kant, trouxeram o conceito de imaginário como ponto intermédio entre o texto e o real. Kant (apud HAMMERMEISTER, 2002) desenvolveu a Crítica da Faculdade do Juízo para unir as duas críticas anteriores, uma vez que havia isolado nestas as estruturas da sensibilidade e do entendimento. Para o filósofo, o sujeito não tem acesso à coisa em si, mas à realidade fenomênica das coisas, ou seja, como os objetos aparecem para ele. Desse modo, a sensibilidade recorre à imaginação para que esta reproduza uma síntese das categorias dadas ao entendimento. A imaginação tem papel fundamental nesse processo, pois funciona como ponte entre o sensível e o cognoscível. Entretanto, a imaginação desconhece as leis do entendimento, porque trabalha com ideias (intuições, distante da realidade fenomenológica) e não conceitos (que dominam a fenomenalidade do objeto e o significa num juízo determinante) e, por isso, utiliza a ideia de fim, que aponta eternamente para a reflexão sem nunca abarcar um conhecimento determinado. Sobre a ideia de fim em Kant, declara Costa Lima (2000, p. 48-9): A ideia de fim, portanto, não cabe no juízo determinante, não declara propriedades do objeto; é um
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suplemento com que a razão contribui para que as coisas tenham sentido. […] … mais até do que uma suplementação de sentido, aponta para uma forma específica de relacionamento com o mundo. Ela não visa a seu domínio – pois o entendimento é também uma forma de domínio – senão que supõe uma experiência de consonância e desafio.
Experiência de consonância e desafio, a imaginação em Kant se comporta de forma dupla: pode ser subordinada ao entendimento, quando gera uma intuição a partir da representação que o objeto executa a respeito do estoque de representações deste objeto que o entendimento conhece, significando pela semelhança (conceito kantiano de representação); pode extrapolar os limites do juízo determinante e, face a um objeto de difícil compreensão, significar pela diferença, isto é, intuindo uma outra natureza (conceito kantiano de apresentação). O primeiro tipo de experiência, ainda que incapaz de totalizar o objeto pelo domínio de um conceito, consegue oferecer um significado em certo grau estável, porque consonante com as representações observáveis no mundo. Diferentemente, a apresentação motiva a atuação intensa do juízo reflexionante, que é indeterminado, posto que não visa a totalizar-se em um tipo de conhecimento. Por isso, para Kant (apud COSTA, 2010, p. 41), a ideia de fim desemboca na finalidade sem fim do texto, onde apenas o 59
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sentimento do sujeito (a fruição resultante do juízo de reflexão), e não o conhecimento do objeto, se apresenta como seu fundamento. Ambos Costa Lima e Iser recusam o princípio kantiano de finalidade sem fim pela atenção que concedem à recepção histórica do sujeito. Ainda assim, a finalidade sem fim kantiana se mantém nas teorias de Iser e Costa Lima pela impossibilidade de totalização do objeto artístico, cujo efeito pragmático só se realiza historicamente. O conceito kantiano de apresentação é equivalente ao que Costa Lima classifica como mímesis da produção e a caracterização transgressora que Iser dá ao literário pela transformação das referências do real executada pelo texto. A dimensão afetiva da mímesis literária, que conduz a reflexão do próprio sujeito e de seu real histórico é também uma herança de Kant. Mais importante que todas essas observações, entretanto, é reconhecer a relevância do conceito de imaginação nas teorias de Iser e Costa Lima. Iser (2002) justifica a presença do imaginário devido ao fato de o texto de ficção lançar uso de elementos do real sem se esgotar em sua referência ao real, de maneira que “o seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário” (ISER, 2002, p. 957). É impossível deduzir o fingir da realidade repetida, na verdade, o fingimento do texto se transforma em signo, ocasionando uma transgressão da determinação habitual daquela realidade 60
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que lhe serve de parâmetro. Por isso, pelo deslocamento da determinação habitual da realidade, é que Iser considera o ato de fingir uma transgressão de limites. Uma ressalva é feita pelo autor: o fingir e o imaginário não se equivalem. O fingir estabelece um objetivo, elabora um fim, que então mune o imaginário com as condições necessárias para que este desenvolva uma determinada configuração; noutras palavras, o fingir se realiza através da atuação do imaginário: No ato de fingir, o imaginário ganha uma determinação que não lhe é própria e adquire, deste modo, um predicado de realidade. É significativo que ambas as formas de transgressão de limites, realizadas pelo fingir no espaço da relação triádica, sejam de natureza distinta. Na conversão da realidade vivencial repetida em signo doutra coisa, a transgressão de limites manifesta-se como uma forma de irrealização; na conversão do imaginário, que perde seu caráter difuso em favor de uma determinação, sucede uma realização do imaginário. (ISER, 2002, p. 959).
A determinação adquirida pelo imaginário em Iser, a irrealização do real, comunica-se com o processo de flexibilização dos “frames” – especificamente, a transposição –, que investiga Costa Lima, quando os processos de significação utilizam uma moldura que, apesar de reconhecida como habitual, cria a expectativa da identificação de um sentido 61
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que nela não se pode aplicar devido a sua reestruturação. Costa Lima (1981) caracteriza esse tipo de flexibilização como “the play frame”, ou a moldura do jogo, e argumenta ser esta a arquitetura do texto literário, uma vez que pressupõe a interação de elementos primários (significações habituais) e secundários (significações produzidas). Bateson (apud COSTA LIMA, 1981, p. 224 – 225) declara: “no processo primário [por exemplo], mapa e território são igualados; no secundário, podem ser discriminados. No jogo, eles são tanto igualados, quanto discriminados”. Costa Lima utiliza a citação de Bateson para diferenciar o texto ficcional – entendido como jogo, isto é, por permitir uma aproximação e um distanciamento entre os processos primários e secundários – da fantasia, referindo-se principalmente aos sonhos, “frames” primários. Por isso, para Costa Lima (1981, p. 230): A transposição imposta pela mímesis tem como condição prévia que eu saiba que isso é um jogo particular, onde o prazer não se esgota no próprio objeto do jogo. Jogo particularizado, a mímesis distingue-se dos demais porque sua ludicidade é apenas um ponto de partida, que logo se transforma numa seriedade que lhe é reservada: a de pensar-se sobre o que se joga.
Se o texto literário é um jogo, é o imaginário que permite apreciá-lo. Iser (2001, p. 107) designa dupla tarefa para o leitor, a imaginação e a interpretação: 62
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Assim o texto é composto por um mundo que ainda há de ser identificado e que é esboçado de modo a incitar o leitor a imaginá-lo e, por fim, interpretá-lo. […] O que sucede dentro dele não tem as mesmas consequências inerentes ao real definido. Assim, ao se expor a si mesma, a ficcionalidade assinala que tudo é tão só de ser considerado como se fosse o que parece ser; noutras palavras, ser tomado como jogo.
A aproximação entre as duas últimas citações de Costa Lima e Iser expõem mais que a aproximação da caracterização do texto ficcional como um jogo peculiar. Elas ainda corroboram diversos pontos levantados por este ensaio: apontam para o comportamento não pragmático do texto literário, que só a posteriori se desenvolve, a partir da reflexão sobre o que se joga; destacam o aspecto reflexivo do texto através da alteridade que suscita; não permitem esquecer o contato entre a remissão e designação, ou a diferença e a semelhança, que o jogo do texto constrói em relação ao real histórico; sobretudo, revelam a importância da filosofia kantiana, concretamente, da inserção do conceito de imaginário para a consideração da especificidade do texto ficcional. É preciso reconhecer que as investigações de Iser se mostram essenciais para a reelaboração do conceito de mímesis por Costa Lima, como bem este revela através da referência explícita ao teórico na maior parte de suas obras. Entretanto, não se deve concluir que Costa Lima seja um mero tradutor 63
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ou adaptador da teoria iseriana. Ele vai além ao recorrer a uma análise interdisciplinar dos sistemas de representação social, bem como ao promover uma releitura sobre o fenômeno da mímesis da Antiguidade até a contemporaneidade. É tal releitura que permite a Costa Lima perceber como os vetores de semelhança e diferença, consequentemente, a mímesis da representação e a mímesis da produção predominam em determinados momentos históricos. Em Mímesis e Modernidade (2003), Costa Lima parte de uma análise da sociedade grega para avaliar como esta concebia o real. O teórico conclui, à semelhança do que chama Lukács (2003) de sistemas fechados, que a sociedade grega antiga tinha uma concepção harmoniosa da natureza (physis) e encontrava nas produções artísticas uma forma de identificação entre o sujeito e a sua comunidade. O teórico desenvolve ainda o conceito de controle do imaginário, que diz respeito ao controle ideológico que os grupos dominantes exercem sobre a sociedade. Na Grécia Antiga, defende Costa Lima (2003), as subjetividades estavam subordinadas aos valores comunitários, sobretudo, à virtude. Diferentemente, nas sociedades modernas, ou nos sistemas abertos – à moda de Lukács (2003), as condições sócio-históricas fazem o homem questionar a realidade como algo dado e bem construído, recusando a harmonia da physis. Contribuíram para tal modificação social o triunfo do capitalismo, a consciência da passagem do tempo, a queda da aristocracia e a ascensão 64
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burguesa, fatos que estabeleceram um sistema de paridade entre as classes, antes divididas em estamentos. O homem moderno veste a ideologia do “self-made man”, aquele que pode mover-se entre as camadas sociais e em torno do qual o real é moldado. Aliado ao questionamento do real como inerência está a emersão da subjetividade, ou seja, o juízo individualizado. A consequência de tal transformação social revela que se nas formas poéticas dos sistemas fechados o homem se dirigia à arte para encontrarse, ver-se semelhante a sua comunidade, nas formas dos sistemas abertos, o homem recorre ao texto em busca de si próprio, já que a estrutura social esfacelou os sistemas de representação. Pode-se concluir que enquanto a Literatura Antiga enfatiza a semelhança, a representação, a Literatura Moderna enaltece a diferença e, por isso, caracteriza-se pela negação, onde a forma própria do objeto representado é ponto de chegada e não de partida. A mímesis da modernidade abandona a representação de um objeto a serviço e reconhecimento da comunidade, seus valores e suas práticas, e cobra ao sujeito uma interação na recepção do objeto, o preenchimento de seus vazios, questionando e explicitando a aparência natural da práxis social. Iser (2001, p. 105-6) é completamente ciente dessa dinamicidade do literário de que fala Costa Lima. Prova disso é a seguinte passagem:
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Em sistemas fechados, todo o existente deveria ser traduzido em algo tangível. Num sistema aberto, o componente mimético da representação declina e o aspecto performativo assume o primeiro plano. […] Conversão de um vir aquém das aparências para captar um modo inteligível a um modo de criação de mundo.
E ainda que Iser (2002) reconheça que o aspecto performativo, ou produtivo para Costa Lima (2003), é característica do mundo moderno: “o pré-dado não é mais visto como um objeto de representação, mas sim como o material a partir do qual algo novo é modelado” (ISER, 2001, p. 105), o teórico parece ignorar que o texto ficcional não se constitui apenas por seu aspecto remissivo, mas pode se fazer significativo a partir do predomínio do caráter da designação. O resultado dessa reflexão demonstra que a Teoria do Efeito Estético de Iser releva a produção ficcional anterior à Modernidade; soma-se a tal perspectiva a necessidade destacada pelo teórico de ser o texto ficcional transgressor de limites. Mesmo que o teórico chame atenção para o caráter reflexivo do texto ficcional, a ênfase que Iser dá à transgressão acaba por prescrever um comportamento para o texto ficcional que transforma a transgressão na própria finalidade do texto literário. É proveitoso considerar que um texto pode ser representativo, ainda que inserido nas sociedades abertas. A escrita realista tradicional, por exemplo, mais reitera os
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valores da sociedade que os transgride, e tal comportamento se liga diretamente à noção de controle do imaginário. Precioso é perceber que, assemelhando-se ou divergindo das representações vigentes na sociedade, é pela atuação do imaginário, ou por seu controle, que o texto ficcional elabora sua mímesis, isto é, sua representação/apresentação própria. O motivo que leva Iser a desconsiderar o predomínio do vetor semelhança pode ser a ausência de uma reflexão acerca da mímesis ou uma concepção da mímesis clássica como imitação. Costa Lima (1973, p. 53-4) defende que nem em Aristóteles existe uma caracterização da mímesis como imitação, já que, diferente de Platão, Aristóteles suspendeu a constatação de verdade entre a cena do texto e uma cena anterior, pois a mímesis se circunscreve ao campo do possível e não do verdadeiro. Ao invés de reproduzir a realidade, é pela atuação da verossimilhança que a mímesis se liberta de sua dependência em relação ao factual e passa a produzir realidades possíveis: Por isso o poeta e o historiador se distinguem. Este narra fatos sucedidos, aquele, possíveis. O historiador verifica a atualização do possível, o poeta, o possível de atualização. Mas como se faz legítima a atualização do não acontecido, do apenas provável? Estão implícitos na argumentação dois conceitos: o da essência como alma (centro) das coisas e o de verossimilhança, que se poderia descrever como adequação do aparente com o 67
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essencial. O verossímil sensibiliza a essência; torna-a reconhecível entre atos e objetos. Com isso, a lógica aristotélica se amplia. O real legítimo para a narrativa não é o que apenas reproduz a realidade, mas sim o que pode haver. (COSTA LIMA, 1973, p. 54).
Depreende-se da passagem acima, da possibilidade de existência, as três formas de representação que Aristóteles percebe no fictício: o poeta representa as coisas “como elas eram ou são, como os outros dizem que são ou dizem que parecem ser, ou como deveriam ser” (cap. XVI, §2). Quando se supõe que Iser ignore o caráter representativo da mímesis clássica já em Aristóteles, não se acredita que o teórico desconheça a Poética. Se Costa Lima remete a ela em diversas de suas obras, a apreciação do tratado do Estagirita pode ser facilmente constatada pela leitura da Teoria do Efeito Estético. Que dizer dos conceitos de seleção e combinação de Iser, eixos paradigmático e sintagmático em Costa Lima respectivamente, senão que eles se comunicam de maneira estreita com o desdobramento da verossimilhança aristotélica em externa e interna? Considere-se as proposições de Aristóteles (cap. VI, §2 & §8): A tragédia é a imitação de uma ação importante e completa, de certa extensão; deve ser composta num estilo tornado agradável pelo emprego separado de cada uma de suas formas; na tragédia, a ação é apre68
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sentada, não com a ajuda de uma narrativa, mas por atores. Suscitando a compaixão e o terror, a tragédia tem por efeito obter a purgação dessas emoções. […] A imitação de uma ação é o mito (fábula); chamo fábula a combinação dos atos; chamo caráter (ou costumes) o que nos permite qualificar as personagens que agem; enfim, o pensamento é tudo o que nas palavras pronunciadas expõe o que quer que seja ou exprime uma sentença.
O mito aristotélico traz em si a integração da coisa representada (a ação selecionada do real) e da forma pela qual a coisa é apresentada (estilo agradável). A organização interna da representação se mostra tanto no nível das construções linguísticas do estilo (rima, ritmo, metro etc.) quanto na combinação dos atos da ação. O objetivo da representação diz respeito à expurgação das emoções que podem corromper o homem. Costa Lima (1973) observa que a finalidade da mímesis aristotélica, a catarse, consiste no encaminhamento do homem para o bem, pois, pela experimentação das emoções representadas no palco, aquele não precisa sentilas na vida. Se Iser e Costa Lima redimensionam a catarse aristotélica – visto que ela coloca o espectador numa posição passiva, como uma intervenção médica que objetiva a cura – e destacam o exercício reflexivo que o texto ficcional cobra do leitor ao fazê-lo se experimentar numa alteridade, tal 69
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reflexão não se efetua sem a presença da dimensão afetiva da mímesis. Aristóteles percebeu na mímesis a necessidade de envolvimento das emoções do espectador como condição para o alcance da catarse, mas também a possibilidade de conhecimento que a mímesis oferece: “a causa é que a aquisição de um conhecimento arrebata não só o filósofo, mas todos os seres humanos, mesmo que não saboreiem tal satisfação durante muito tempo” (cap. IV, §4). Elaborada a relação entre o texto aristotélico e as teorias de Iser e Costa Lima, resta ainda reconhecer que, apesar de ambos partirem das categorias desenvolvidas pelo Estagirita para a reflexão do ficcional, Iser abandona a investigação das representações clássicas e privilegia a performatividade do texto moderno. De outro modo, Costa Lima resgata o conceito antigo de mímesis, livrando-o da caracterização estandardizada de imitação para reconhecer a produtividade do conceito, ainda que como Iser, redimensione o efeito catártico da mímesis aristotélica pela reflexão ativa do receptor. O pomo de concórdia entre os teóricos é a filosofia de Kant, que traz o conceito do imaginário e oferece as condições necessárias para se pensar o texto ficcional a partir de seu perfil remissivo e designativo, ou semelhante e negativo. Iser chega inclusive a suplementar o argumento de Aristóteles (cap. IV, §2) de que “a tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. […] Pela imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, e nela todos experimenta70
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mos prazer”, pelo entendimento do fictício e do imaginário como uma estrutura transcendental humana, cuja investigação revela o quanto “os seres humanos parecem precisar de tal meio de fingimento” (ISER, 1999, p. 66). Porém, as teorias de Iser e Costa Lima não se devem supor inaugurais nem desconectadas da reflexão do ficcional da própria Teoria da Literatura. Na verdade, elas se desenvolvem, sobretudo, como oposição às práticas formalistas e estruturalistas, que tratavam o texto como um calabouço de elementos linguísticos; às abordagens psicologizantes e biografistas que buscavam totalizar a obra como se esta pudesse se limitar às estruturas psíquicas de seu criador, constituindo-se um análogo deste; e às leituras sociologizantes, que concebem a ficção como documento do real. A investigação aqui conduzida não pretendeu dar conta da Teoria do Efeito Estético de Iser nem da Teoria da Mímesis de Costa Lima. Antes, buscou-se discutir suas semelhanças e diferenças mais salientes. Se a sensação é de dever cumprido, ainda resta espaço para provocar o leitor com uma indagação: seria o caráter reflexivo do texto ficcional defendido por Iser e Costa Lima a especificidade do literário ou uma finalidade provisória, que encontra respaldo na posição histórica dos intelectuais que a elaboraram... Homens modernos, motivados pelo desejo de autonomia e pela ânsia de exercerem suas agências, porém condenados a buscar, sem sucesso, na superfície do espelho, a harmonia de suas representações? 71
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Bianca Campello
Fingidores, interventores, verdade, mentira e Ficção: dois casos de incompreensão da Mímesis
“P
ara que o produto mimético assuma valor é preciso que represente certo Weltbild. O que vale dizer: é valorizável se servir como ilustração de certo modo de ver o mundo” (COSTA LIMA, 1981, p. 217). Essas palavras de Luiz Costa Lima no ensaio “Representação social e mímesis”, de 1981, soam, em primeiro momento, anacrônicas, destinadas a discorrer 73
Fingidores, interventores, verdade, mentira e ficção: dois casos de incompreensão da mímesis
sobre o estatuto da arte em tempos há muito já passados. Afinal, o início do século XXI é um momento de profusa liberdade de pensamento e de expressão, assegurados, no mundo Ocidental, pelas leis que garantem os direitos individuais e pelas diversas ferramentas midiáticas que proporcionam rápido acesso a ideias e divulgação das mesmas. Essa impressão revela-se tão falsa à investigação mais atenta quanto soava falso o objeto artístico contrastado com a verdade essencial dos seres e das coisas no universo metafísico formulado por Platão. Em primeira análise, o engano emerge da confusão entre ‘liberdade de expressão e valorização social’. Se é verdade que, pelo menos no Ocidente, não há poder legal que impeça o indivíduo de manifestar suas posições políticas, religiosas, éticas, há também um poder legal que configura os limites desse direito ― o poder que assegura o direito de resposta, que dá direito à defesa da calúnia e da difamação. Aprofundando o raciocínio, observa-se também que a liberdade ideológica e a facilidade para a divulgação de qualquer tipo de produto da inventividade humana não asseguram a recepção positiva dessas obras. Se ‘quase’ tudo pode ser dito ― em linguagem verbal, gráfica, musical ou audiovisual ― nem tudo será socialmente legitimado. Talvez tanto quanto nos tempos evocados pelas palavras de Costa Lima, esta seja uma época de forte controle ideológico, que policia não apenas os discursos que proferimos no cotidiano como, e principalmente, a produção artística. 74
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Não foi preciso que transcorressem muitos dias da nova década para que exemplos manifestos desse controle fossem noticiados e debatidos. Em 06 de janeiro de 2011, a versão eletrônica do The New York Times discutia, em uma resenha e em seu editorial, a interferência de um professor universitário em dois livros de Mark Twain: As Aventuras de Huckleberry Finn e As aventuras de Tom Sawyer. De acordo com Michiko Kakutani, autora da resenha, a nova edição dos clássicos americanos sofrera uma “higienização” ― ou “sanitarização”, como preferiram mencionar os jornalistas brasileiros. Alan Gribben, professor de literatura da Universidade Auburn, Montgomery, estado do Alabama, substituiu todas as ocorrências da expressão nigger, de conotação pejorativa, por slave, alterando o léxico programado para os romances. Segundo a resenha do The New York Times, a motivação de Gribben para a troca das palavras decorreu de sua apreensão de o vocabulário das narrativas propagar sua retirada de listas de leitura de escolas e universidades. Para o interventor ― ou, no termo usado por Costa Lima no título de um de seus mais importantes estudos, para o censor ― a nova edição dos romances está apta a ser recebida por professores que desejem poupar o leitor “de uma calúnia racial que parece nunca perder sua acidez”1 (KAKUTANI, 2011).
1. No original, “from a racial slur that never seems to lose its vitriol”.
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Na mesma data em que foi divulgada nos Estados Unidos pelo The New York Times, a ação de Alan Gribben foi noticiada no Brasil. A versão eletrônica do jornal Folha de S. Paulo, o site Folha.com, acrescentou a informação de que Gribben teria justificado as alterações alegando a “diferença de contexto cultural” (VAZ & ALMEIDA, 2011). Assinalando o caráter polêmico do fato, o jornal eletrônico mencionou a posição do The New York Times demarcada tanto na resenha como no editorial e a legitimação do uso da expressão nigger por Twain feita pela diretora do Centro pela Liberdade Intelectual da Associação Americana de Bibliotecas. Posteriormente, em 08 de janeiro de 2011, a Folha.com voltou a se referir à questão, relacionando-a, dessa vez, a evento considerado semelhante ao caso americano: o “caso Lobato”, ou seja, a repercussão do Parecer nº 15/2010 do Conselho Nacional de Educação (CNE) que teve como objeto a obra Caçadas de Pedrinho, de Monteiro Lobato. O parecer, datado de setembro de 2010, foi apresentado pela mídia nacional2 como um “banimento” de Lobato das escolas públicas brasileiras (foi evocada a expressão “censura”). De acordo com vários meios eletrônicos, o parecer confirmaria a denúncia de que a obra contém preconceito racial, manifestado nas
2. Conferir Conselho de Educação quer banir livro de Monteiro Lobato das escolas, notícia divulgada pela versão eletrônica do jornal O Globo (in: http://oglobo.globo. com/educacao/mat/2010/10/29/conselho-de-educacao-quer-banir-livro-de-monteirolobato-das-escolas-922903415.asp).
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referências à personagem Tia Nastácia. Ante a compreensão de que o livro seria recolhido das escolas públicas e passaria ser proibido nesse meio escolar, pulularam os questionamentos sobre a existência ou não de racismo no livro e sobre a posição que deveria ser adotada pelo Estado diante de obras literárias que apresentassem tal caráter. Como nos apontam ambos os casos, permanece verdadeira a afirmação de Costa Lima de que o objeto artístico é socialmente “valorizável se servir como ilustração de certo modo de ver o mundo”. Faz-se necessário, por conseguinte, investigar por que a atitude diante do objeto artístico permanece, ainda, tão “amesquinhadora de suas produções” (COSTA LIMA, 1981, p. 216), ou seja, qual o entendimento da obra literária em face ao real possibilitou tanto o ensejo ao controle como também a rejeição manifestada contra este controle. O que vale dizer: investigar “uma compreensão da própria mímesis” (FERREIRA, 2010, p. 13). É preciso, também, para que essa investigação seja bem sucedida, observar que elementos permitiram as obras em questão ensejarem leituras aparentemente tão distintas da expectativa social a elas relacionada. Isso significa entender quais mecanismos permitiram que, a partir de uma mesma matéria textual, fossem erigidas construções de sentido imprevisíveis para outras comunidades de leitores. Que se iniciem as tarefas selecionadas para este ensaio pela análise dos posicionamentos de jornalistas e estudiosos 77
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da literatura os quais se manifestaram sobre os casos. No artigo de opinião sobre a intervenção nas obras de Mark Twain3, o jornalista brasileiro Ivan Finotti inicia sua crítica à ação do professor Gibben com a declaração: “O que é uma obra de arte, senão um retrato de seu tempo? Não mais, segundo atuais padrões do império norte-americano”. O editorial do The New York Times declara que a ação do professor pressupõe “que a compreensão da verdade do passado corrompe os leitores modernos”4. A resenha de Michiko Kakutani aponta ainda que a ação contra a obra Twain não é a primeira do tipo, e que o processo de higienização do texto é uma forma de negação, de “fechar a porta para duras realidades históricas — encobrindo seus erros ou fingindo que eles não existiram”5 (KAKUTANI, 2011). Ainda sobre a alteração das obras norteamericanas, Sandra Vasconcelos, professora de literatura na USP entrevistada pela Folha.com declarou que “A onda do politicamente correto pode levar ao apagamento do processo histórico” e “Como professora, não posso concordar com essa ‘limpeza’. O uso da palavra deve ser interpretado de acordo com o contexto” (VAZ & ALMEIDA, 2011). 3. Conferir “Sanitarização da obra de arte é monopólio da estupidez” (in: http://www1. folha.uol.com.br/ilustrada/856350-sanitarizacao-de-obra-de-arte-e-monopolio-daestupidez.shtml 4. No original: “that understanding the truth of the past corrupts modern readers” (The New York Times, 2011) 5. No original, “shutting the door on harsh historical realities — whitewashing them or pretending they do not exist.”
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Reserve-se a segunda declaração de Sandra Vasconcelos para considerações posteriores e destaquem-se as expressões “retrato”, “compreensão da verdade” e “apagamento do processo histórico” (e seu análogo, “fechar as portas para duras realidades históricas”): é evidente nelas um entendimento da obra literária como cópia do mundo empírico, uma ideia de que a literatura “é reflexo do mundo sócio-histórico fora da obra” e que “não parece haver nenhum tipo de mediação entre mundo ficcional e mundo extratextual” (FERREIRA, 2010, p. 12). Os comentaristas do “caso Twain” observam o fato a partir do princípio de que a alteração na obra configura uma alteração num registro histórico. Em decorrência disso, tratam a literatura como o fruto de uma construção verbal que toma o cuidado para não se distanciar do mundo real “de tal maneira que se tornasse naturalisticamente irreconhecível” (COSTA LIMA, 1981, p. 226). O racismo nas obras de Twain e Lobato ― se ele existe ― é justificado, posto que o conceito assumido de mímesis torna-a uma “correspondência ao molde do tempo em que o produto de arte tenha sido gerado” (COSTA LIMA apud BASTOS, 2010, p. 163): uma ideia de adequação histórico-temporal que remonta a Hegel. Em suma, para os analistas do “caso Twain” se a sociedade em que as obras foram produzidas era racista ou se essa sociedade legitimava a prática do racismo, inexoravelmente sua arte reproduzirá tal ideologia.
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A mesma ideia tradicional e equivocada sobre a relação entre a literatura e o contexto de sua produção embasa a análise do Parecer nº 15 do CNE o qual afirma que as críticas aos estereótipos raciais presentes no livro Caçadas de Pedrinho (...) não se referem a trechos isolados. Antes, fazem parte da análise do todo, do contexto histórico e social da obra e vivido pelo autor, da ideologia racial, das representações negativas sobre a cultura popular, o negro e o universo afro-brasileiro presentes não só no livro Caçadas de Pedrinho, mas, também, em outras publicações de Monteiro Lobato. (Conselho Nacional de Educação, 2010, p. 5).
Dessa ressalva, observa-se que, portanto, em jogo não foi posto o livro em sua constituição como objeto de significação, mas como um objeto de armazenamento de referências ideológicas do contexto histórico, as quais ele não poderia rejeitar, combater ou recalcar. Em outro momento, o parecer do CNE assinala que as possíveis situações em que o texto literário manifesta preconceito racial “São situações que estão presentes nos textos literários, pois estes fazem parte da vida real. A ficção não se constrói em um espaço social vazio.” (Conselho Nacional de Educação, 2010, p. 6-7). O texto também afirma serem “delicados laços que enlaçam literatura e sociedade, história e literatura, literatura e política e similares binômios que tentam dar conta do que, 80
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na página literária, fica entre seu aquém e seu além” (Conselho Nacional de Educação, 2010, p. 6). Nessas declarações estabelece-se que a literatura reproduz, ou seja, copia, emula os acontecimentos do mundo empírico, o qual fica preso na linguagem numa margem de significação estreita, já que nem aquém e nem além. O uso dessa expressão pelo CNE em seu parecer é particularmente curioso, visto que Costa Lima, em O fingidor e o censor, estabeleceu que a ficção não se nutre doutros eventos senão daqueles inscritos no próprio cotidiano e que não surge senão pela capacidade de alguém em destacar algum deles da cadeia geral que os neutralizava. O ficcional [...] não está além nem aquém do cotidiano; dele ressalta por efeito de uma estratégia discursiva. (COSTA LIMA, 1988, p. 70).
Se ambos os textos concordam em haver uma delimitação entre aquém e além daquilo que foi compreendido na linguagem, eles discordam profundamente em relação a qual elemento se encerrou na linguagem. Para o CNE, a realidade social, política e histórica, o cotidiano — ou seja, o real empírico — estão presos nas páginas do registro escrito; para Costa Lima, é a ficção que não está circunscrita ao aquém ou além do cotidiano. O Conselho Nacional de Educação, o The New York Times, a imprensa brasileira e a professora de literatura da USP concordaram que nas pá81
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ginas do livro está encerrado um real histórico — daí um campo estreito, entre aquém e além. O teórico brasileiro da mímesis, por sua vez, estabelece que sentido da ficção não está nem além nem aquém do cotidiano porque não se relaciona com a categoria do factual empírico. Em suas palavras: “o ficcional não afirma ou nega a verdade de algo senão que se põe à distância do que se tem por verdade” (COSTA LIMA, 1989, p. 110). Enquanto não é surpreendente comentaristas não especializados em literatura encararem a obra como uma reprodução do real, um engano comum pela desvirtuação da ideia de imitatio latina, causa desconforto que a voz da autoridade exercitadas por uma professora da USP e pelo Conselho Nacional de Educação sustentem tal equívoco. Se a discussão sobre a relação entre literatura e realidade remonta a Platão e Aristóteles, há pelo menos trinta anos a obra de Luiz Costa Lima em seu debate sobre a mímesis problematiza as inconsistências teóricas que cercaram a questão. Aparentemente essa obra fundamental para a compreensão do objeto literário permanece desconhecida por parcela relevante dos estudiosos brasileiros. Na revisão dos estudos sobre a mímesis, isto é, sobre as relações entre literatura, realidade empírica e imaginário, Costa Lima nos lembra que houve tempos nos quais o entendimento da produção artística como um discurso da verdade foi legitimado tanto por estruturas sociais em que 82
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não havia espaço para a ficção, como também por concepções metafísicas de mundo. Em seu Mímesis e modernidade (2003) o autor relembra um tempo em que a palavra era ‘uma’ e, por isso, não havia mímesis (ou, pelo menos, sua teorização não é possível). Esta palavra una era a palavra cantada pelo poeta cuja missão era ‘preservar os acontecimentos’ aos quais se referia: as histórias das lutas, dos guerreiros, dos chefes, dos deuses. O poeta era o conservador dos mitos, e os mitos eram as narrações que constituíam a própria realidade (COSTA LIMA, 2003, p. 32). Aquilo que era contado pelo poeta era a própria verdade do povo, sua memória, e, por isso, havia unidade e plenitude: uma verdade, um povo, um entendimento de mundo. Nesse tempo, sim, a narração do poeta é uma narração de registro histórico — como seu povo concebia sua história. Posteriormente, quando a era da compreensão mítica do mundo foi ocupada pela era da compreensão racional do mundo, a relação entre palavra e realidade foi preenchida por um ruído. Isso ocorreu quando as sociedades desenvolveram-se em classes ou castas e quando se instituiu a intervenção do Estado na regulação dos direitos e dos deveres dos cidadãos. Se antes o mundo era uno, agora passava a ser multifacetado ― e o mesmo ocorre com a linguagem. Costa Lima diz que nesse instante a palavra se “dobra”, isto é, duplica-se, torna-se ambígua, assume a capacidade de enganar, de receber mais de uma significação (COSTA LIMA, 2003, p. 43). Esse é o momento 83
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coincidente à tematização da arte pela filosofia grega, representada na figura de Platão e Aristóteles, os dois primeiros teóricos sobre a mímesis. Platão em sua busca por uma verdade “una”, a aletheia, a qual seu mundo não mais podia garantir, voltou-se a uma essência idealizada do real, residente no mundo das ideias. Falso o real empírico, mais falsa a realidade textual produzida com base nele. Note-se que Platão estabelece tanto uma relação da literatura com a verdade como uma relação da literatura com a realidade, mas que a verdade e a realidade não são entidades coincidentes. A verdade não está na realidade empírica e alcançar a aletheia é a meta pretendida pelo objeto artístico. Como, não obstante, para atingi-la através da forma, o artista evoca sua atualização nos seres existentes no mundo empírico, a arte está duplamente afastada da verdade. Por isso, a despeito do prazer que a obra mimética, o mimema, pode provocar, e mesmo em decorrência desse prazer, o cidadão da República deve se afastar da realização artística. A literatura, para Platão, deve ser banida pelo filósofo legislador, salvo se o poeta acatar suas orientações de modo que o prazer gerado pelo poético seja usado com finalidades pedagógicas para servir aos interesses sociais (COSTA LIMA, 1988, p. 288). Por esse motivo Costa Lima se refere a Platão como o primeiro controlador do imaginário, o primeiro interventor que se debruça sobre a arte com o objetivo de estabelecer os limites em que a arte se torna valorável de acordo com 84
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sua utilidade6. Primeiro e certamente não único, como nos lembram o “caso Twain” e o “caso Lobato”. Aristóteles, por sua vez, ao teorizar sobre a relação entre a arte e o real, desenvolveu seu raciocínio fora de uma visão metafísica compromissada com uma verdade “una”. Por isso, sua compreensão da mímesis esteve desvinculada de um compromisso com a verdade (COSTA LIMA, 1988, p. 288) e com o real empírico. No lugar da coerência com a aletheia, a teoria aristotélica da mímesis fundamentou-se num princípio de coerência interna, denominado, naquele momento, de verossimilhança. A verossimilhança aristotélica é um estatuto de parecer real dentro do jogo ilusório da obra artística. Entretanto, o conceito foi inadequadamente compreendida por muitos como uma semelhança com a verdade aletheia e a verdade do discurso do real culturalmente construído. Aqui faz-se oportuno destacar novamente a segunda parte do protesto da professora da USP, Sandra Vasconcelos, contra a alteração da obra de Mark Twain: “O uso da palavra deve ser interpretado de acordo com o contexto.” (VAZ & ALMEIDA, 2011). Considerando-se que essa declaração foi apresentada após um temor a respeito
6. Como bem desenvolve Costa Lima em O fingidor e o censor (1988), este caráter utilitário da arte estará presente, a partir de então, em todas as medidas de controle do imaginário tomadas ao longo da história da literatura. Na Idade Média, a utilidade será a servilidade a Deus e ao catolicismo; no Absolutismo a utilidade será separar o homem público do homem privado, a religiosidade da razão; no Iluminismo estará a serviço do bom senso, da razão e da lógica burguesa.
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do “apagamento do processo histórico”, entende-se que o contexto referido na declaração é o contexto sócio-histórico de produção das narrativas, o qual justificaria o uso do léxico por ser uma reprodução do vocabulário real empírico. Esta análise geral de Sandra Vasconcelos encontra-se reproduzida nos discursos dos demais defensores de Twain nigger, o qual aparece neste livro mais de 200 vezes, era um epíteto racial comum no Sul, usado por Twain como parte do discurso de seus personagens e como um reflexo das atitudes dos meados do século 19 ao longo do rio Mississipi.7 (KAKUTANI, 2011). Se Mark Twain escrevia crioulo para se referir a escravos em As Aventuras de Huckleberry Finn (1884), e não se usa mais essa alcunha no século 21, trata-se de prova incontestável de evolução social. Ao censurar a palavra, o professor e a editora desrespeitam 126 anos de luta por direitos humanos. (FINOTTI, 2011).
Desconsiderando-se as fragilidades argumentativas residentes no policiamento contra o emprego de nigger como uma “prova incontestável de evolução social”, observa-se que, para Finotti, o uso da palavra é um sintoma da época, portanto, uma condição da qual o escritor, na construção
7. No original “nigger, which appears in the book more than 200 times, was a common racial epithet in the antebellum South, used by Twain as part of his characters’ vernacular speech and as a reflection of mid-19th-century social attitudes along the Mississippi River”.
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de sua obra, não consegue se desvencilhar. Na defesa elaborada por Kakutani, até mesmo a palavra reflexo é usada para ilustrar a relação literatura – realidade. É importante também salientar que, enquanto os defensores justificam o uso da expressão por ser “sintoma” do preconceito racial no século XIX, os acusadores entendem que eles revelam o preconceito no momento presente, para o leitor atual: note-se que estão no presente os verbos do argumento da acusação de Lobato na denúncia efetuada contra ele e averiguada no Parecer nº 15 do CNE. A crítica realizada pelo requerente foca de maneira mais específica a personagem feminina e negra Tia Anastácia e as referências aos personagens animais tais como urubu, macaco e feras africanas. Estes fazem menção revestida de estereotipia ao negro e ao universo africano, que se repete em vários trechos do livro analisado. (Conselho Nacional de Educação, 2010, p. 2).
Num e noutro caso, no julgamento da obra literária como um reflexo do preconceito do passado ou do presente, ao invés de verossimilhança aristotélica há um entendimento de semelhança com o real. Esse real que estaria emulado na obra choca-se com um desejo, observado nos detratores de Twain e Lobato, por um verossímil controlado, análogo ao que constatado por Costa Lima no decorrer do absolutismo 87
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francês. Naquela época, o verossímil “era entendido quanto à representação idealizada das ações humanas” (COSTA LIMA, 1988, p. 41), sendo consideradas verdadeiras e, portanto, livres para constar no mimema as representações do mundo que se coadunassem com a verdade essencial (aletheia) do ser humano. A aletheia, distinta da verdade histórica, era obtida através da depuração, do abandono ou da correção do mundo empírico quando não fosse aceitável propagá-lo. Note-se que, embora essa constatação de Costa Lima do verossímil idealizado refira-se ao controle do imaginário exercido no absolutismo, seus princípios não diferem do projeto platônico de controle da atividade do poeta. Felizmente, uma das defesas em favor da liberdade da obra de seu controle teceu-se sobre terreno mais sólido na compreensão da mímesis e da verossimilhança. Revisando a análise de Michiko Kakutani, a resenhista do The New York Times, percebe-se que, paralelamente à análise do valor histórico do termo e à justificativa de seu uso por uma confusão entre mímesis e reflexo, outra consideração do emprego do vocábulo nigger foi desenvolvida. Essa consideração, que encabeçou a defesa do autor, destacou que nigger tem um valor funcional na obra, pois é parte “do discurso de seus personagens” e sua recorrência tem significado interno. Nessa parte da sua análise, Kakutani observa a obra ignorando o campo do discurso da verdade: seu foco é a obra em sua estruturação como elemento que se satisfaz por si. Constituiu-se, portanto, 88
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esse ponto da defesa de Twain uma investigação da obra em sua verossimilhança interna. Para retomar o conceito aristotélico de verossimilhança interna, é interessante analisar as palavras do estudo de Fabiana Ferreira da Costa, A mímesis, os Estudos Culturais e A balada da infância perdida: “o texto ficcional seleciona do contexto sócio-histórico fragmentos que retirados de sua totalidade empírica passam a ter outra natureza no contexto ficcional” (COSTA, 2010, p. 16). Por isso, nigger, ou macaco, ao serem usados para designar personagens numa obra literária, não devem ser tomados como se os termos fossem aplicados numa interação real, no mundo real. Nas palavras de Luiz Costa Lima “os enunciados, em um discurso ficcional, não podem ser a simples ressonância dos enunciados socializados, sejam eles politicamente corretos ou incorretos” (apud BASTOS, 2010, p. 113). No novo contexto, ainda que sua significação possa ser bem próxima à da realidade factual, ela fica aberta a outras construções de sentido que a articulação do todo orgânico da obra acaba por manipular. Daí que, para que o texto literário seja bem sucedido, cada escolha deve ser coerente com o todo da rede de significados o qual a obra propõe formar. Não é a ambientação do contexto de produção dos romances de Mark Twain no século XIX que dá a nigger uma carga pejorativa. Também não é o fato de o enredo de seus livros se situarem naquela época. Se o enredo fosse transposto para 89
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um mundo distópico futuro e os demais elementos da obra (caráter dos personagens, estruturas e relações sociais, as simbologias de suas travessias e buscas) fossem mantidos, nigger permaneceria construindo uma rede de significados pejorativa e reprovável — e sem se reduzir a um retrato do século XIX. Portanto, se Mark Twain escolhe para seu léxico a expressão nigger, com toda sua carga pejorativa, essa é uma escolha pensada em prol da formação da natureza da obra. O mesmo se dá com as escolhas de Lobato que mobilizaram a denúncia contra Caçadas de Pedrinho. Em ambos os casos, o julgamento do crítico da obra deve observar o sucesso da escolha na formação do conjunto ― ideia lançada por Aristóteles em sua Póetica, e repetida por alguns de seus admiradores mais argutos, como Corneille, que, durante o absolutismo, conclamou: “O que decisivamente importa é que, na cena, nada haja que não seja funcional” (COSTA LIMA, 1988, p. 44). Em seu estudo sobre o teatro, Corneille por um lado, considerava que nada de vicioso ou de criminoso deveria ser exposto ao público através do espetáculo artístico, se tais elementos não fossem necessários ao tratamento do tema. Revelando-se necessários, seu uso era considerado legítimo. Se encarado o fenômeno literário como algo que significa a si mesmo pela coerência e coesão de suas partes constitutivas, realiza-se uma das conceituações de Costa Lima: a obra de arte, por seu caráter mimético, é uma 90
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representação-efeito, isto é não “a imagem fiel, a reprodução interiorizada de algo, senão o resultado do efeito que algo produz no sujeito” (apud BASTOS, 2010, p. 129). Esse efeito é a ilusão de uma realidade8, ilusão na qual a mímesis “afirma-se como processo de assimilação suficientemente forte para converter o mundo em ficção” (COSTA LIMA apud BASTOS, 2010, p. 40). Instaurada a ficção, o pacto mútuo entre leitor e produtor faz com que se suspenda o mundo como ele é experimentado empiricamente e que se constitua um outro, possível e factível porque internamente organizado de maneira coerente. Em suma: encarar a obra literária como um elemento atrelado, sim, a um contexto de produção, mas não reprodutor dele, e empreender sua análise através do primado da coerência interna consegue “romper com a fundamentação da obra como imitatio. Mas isso à custa de converter a obra de arte em uma mônada (...) algo fechado em si, sem relação com o mundo” (COSTA LIMA apud BASTOS, 2010, p. 129-130). Parece difícil admitir que a obra artística esteja à parte do mundo, se, evidentemente, através da literatura, os seres humanos falam de si, da experiência humana sobre a terra. Afinal, como reconhece o próprio Costa Lima, o ato da mímesis, seja ele o efetuado na obra de arte, seja ele o efetuado em
8. Um mundo “igual ao mundo à medida que projeta um mundo concorrente”, nas palavras de Iser (1979, p. 105).
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outros jogos de “como se”, baseia-se, primordialmente, em uma busca não racionalizada pela identificação com o outro (COSTA LIMA apud BASTOS, 2010, p. 300-1). Entretanto, a mímesis do objeto artístico não se satisfaz no reconhecimento especular do indivíduo nesse outro: o que, mais uma vez, a distancia do entendimento da mímesis como imitação reflexiva. O que ocorre no mimema é um reconhecimento parcial de si, uma recepção daquilo que se espera junto com uma distorção que afeta o reconhecimento: “a tonalidade da diferença, da não-correspondência com o real” (COSTA LIMA apud BASTOS, 2010, p. 300-1). Ver o que é semelhante e, ao mesmo tempo, é diferente a si mesmo é a base do ato de mímesis, e, por isso, Costa Lima compreende que o seu funcionamento básico opera justamente através dos vetores semelhança e diferença pelos quais ao mesmo tempo em que há uma aproximação do real empírico, há seu afastamento. Essa “proximidade afastada” dá a liberdade para o mimema pôr a realidade em perspectiva, e habilita o leitor a, no jogo do ‘como se’, “indagar-se criticamente sobre o conteúdo de regras que podem ser seguidas por ele próprio” (COSTA LIMA, 1989, p. 110). Relacionando-se com aquilo que parece real, mas não é, por causa do parâmetro da diferença (daí Costa Lima afirmar ser decisivo o trabalho sobre a diferença no ato da mímesis), é que o leitor se debruça ativamente sobre o texto e formula sua rede de significações. Para o mimema ser como um objeto 92
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ficcional, para o jogo do “como se” efetivamente se estabelecer, é necessária uma participação ativa do leitor, de quem é cobrada, como requisito prévio, “a flexibilidade mental de reconhecer, sob a básica moldura analógica, diferenças significativas quanto ao esperado” (COSTA LIMA, 1988, p. 294). Agindo sobre essas diferenças, ou, nos termos de Iser, sobre a assimetria que o separa do texto, o leitor constitui o significado da obra literária, permitindo que ela se realize plenamente na alta voltagem de sua rede de significados. No “caso Twain” e no “caso Lobato”, as reações de defesa em favor dos autores e de seu legado fazem supor que as leituras as quais atribuíram aos textos desses escritores o status de racistas sejam incomuns, quiçá arbitrárias. Visto que, segundo Iser (1979, p. 106), a estrutura do texto literário é permeada por vazios e negações preenchidos pelo leitor a partir de seu horizonte de expectativas (o qual não só precede a leitura, mas é reformulado em seu decorrer), torna-se interessante investigar se há elementos em comum nos horizontes orientadores das leituras em questão. Tanto Alan Gribben, o interventor da obra de Twain, quanto Antônio Gomes da Costa Neto, o denunciador de Lobato, atuam na área de educação: o primeiro, como já informado, professor de literatura de uma universidade do Alabama; o segundo mestrando do Programa de Pós-
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Graduação em Educação da Universidade de Brasília9. A Universidade de Auburn, onde Gribben, leciona situa-se na cidade de Montgomery, local em que Martin Luther King liderou o movimento de luta pela igualdade de direitos civis dos negros americanos; o próprio estado do Alabama, sulista, tem um passado de violenta segregação racial10. A linha de pesquisa da pós-gradução de Antônio Gomes da Costa Neto concentra-se no campo de Educação das Relações Raciais. É razoável, portanto, a suposição de que ambos os interventores tenham em seu horizonte de expectativas um olhar particularmente sensibilizado para as referências alusivas a um tratamento negativo de personagens negros. Contextualizado, pelo menos superficialmente, parte do horizonte de expectativas dos interventores, é importante lembrar que esse horizonte não invalida, por si, as leituras construídas por eles. Costa Lima lembra que o efeito estético do texto literário se “atualiza através de interpretações necessariamente diversificadas” (apud BASTOS, 2010, p. 296). Essas atualizações, ainda que por interpretações chocantes ou desviantes, são parte do processo que mantém a obra viva, porque não deixa seu significado se congelar, reduzirse. Quando isso ocorre, a obra perde seu caráter estético; de 9. Dados disponibilizados no Parecer nº15/2010 do CNE. 10. Foi lema do governador George Wallace a máxima “segregação agora e segregação sempre” proferida meses antes de o governo federal americano iniciar políticas afirmativas de inclusão de jovens negros na Universidade do Alabama.
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certa forma, morre, pelo menos em determinado momento histórico. Não é absurdo observar no uso da expressão nigger um discurso racista, principalmente se considerado um elemento central do enredo: a viagem de Jim, o escravo fugitivo em busca de sua liberdade e as dificuldades de sua jornada. A presença de nigger é, no plano da performance linguística dos romances de Mark Twain, no plano da produção da mímesis dessas obras, um dos obstáculos que Jim precisa enfrentar: a reiterada referência a ele mesmo como um indivíduo menos valoroso, menos humano, até, em virtude de sua cor. Gribben não falha em ler essa insistência, muito menos em identificar a enorme energia dispendida nos romances para lembrar a dolorosa e exaustiva condição social de Jim. A falha de Alan Gribben ocorre quando ele deixa de ser leitor de Twain e, pela sua preocupação pedagógica, torna-se controlador de sua obra. Sua falha é alçar os romances à categoria do moralmente certo e errado, do discurso da verdade e do engano, engano e erro que ele acredita que devem ser corrigidos. Sua atitude, ironizada por Kakutani ao dizer “Nós, os censores, precisamos proteger você, ingênuo, delicado leitor”11 (2011), não afirma uma identidade racial positiva e recalca o preconceito, ao invés de colocá-lo em xeque. Seria esse o mesmo caso da leitura de Antônio Gomes da Costa Neto que levou o “caso Lobato” ao Conselho Na11. No original: “We, the censors, need to protect you, the naïve, delicate reader”.
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cional de Educação? Para responder a essa última questão é preciso observa dois elementos: 1) as passagens nas quais o preconceito racial foi observado e sua relevância na coerência interna do texto; 2) quais as possibilidades previstas pela legislação brasileira para a intervenção na obra. Segundo o Parecer nº15/2010, em Caçadas de Pedrinho foram as associações da figura de Tia Nastácia a animais “tais como urubu, macaco e feras africanas” (Conselho Nacional de Educação, 2010, p. 2) que construíram a estereotipia racial. Tais passagens, na obra em questão, são, na verdade, apenas uma: — Trepe no mastro! — gritou-lhe Cléu. Sim, era o único jeito — e Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima, com tal agilidade que parecia nunca ter feito outra coisa na vida senão trepar em mastros. Foi a continha. A onçada toda já estava no terreiro. (MONTEIRO LOBATO, 1986, p. 45).
As demais referências à personagem vão fazer uso dos substantivos preta e negra (muitas vezes precedidos pelo adjetivo boa, e, algumas vezes, em situação de infelicidade ou desconforto, por pobre — sendo esse adjetivo também empregado na caracterização de Dona Benta, referida subs-
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tantivamente sempre como velha) e uma vez por furrundu12 e outra por pretura13. No primeiro caso, a palavra surge em fala do “onço”, líder do ataque: “O nosso banquete vai começar pela sobremesa. O furrundu está dizendo que não aguenta mais e vai descer...” (MONTEIRO LOBATO, 1986, p. 46). A segunda ocorrência situa-se numa fala de Emília, quando ela pede presentes como paga pela ideia que salvou os habitantes do sítio do ataque das onças. A atitude é coerente com o espírito anárquico e contestador da personagem, que em palavras e atitudes é desrespeitosa até mesmo com Dona Benta, a autoridade máxima do sítio. E é Emília a única personagem que se refere a Tia Nastácia por características físicas relativas a sua etnia (cor da pele, formato dos lábios) — referências que, em Caçadas de Pedrinho, ocorrem apenas no uso mencionado. Constatado que apenas uma passagem realmente configura a associação mencionada na denúncia, convém analisála. A associação entre os povos de etnia negra com macacos foi, historicamente, usada para denegrir a imagem do negro, como forma de calúnia e humilhação. Entretanto, esse não parece ser o caso de Lobato. Se observados dois elementos anteriores à cena em que Tia Nastácia é relacionada a um macaco que escala uma árvore, constatar-se-á que a associação enfatiza a habilidade e a agilidade inesperadas da 12. Furrundu é o nome de um doce feito a partir do mamão e da rapadura. 13. “— E você, pretura?” (MONTEIRO LOBATO, 1986, p. 47)
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personagem naquela situação de perigo. Oito páginas antes, Pedrinho comenta que montará para os habitantes do sítio pernas-de-pau para que eles se mantenham em uma distância segura das onças. O menino assinala que não haverá meio de as onças conseguirem escalar as pernas-de-pau, pois “Cada uma corresponderá a um verdadeiro pau-de-sebo. Nem macaco será capaz de subir.” (MONTEIRO LOBATO, 1986, p. 33). A passagem comprova que no universo da narrativa, cheia de referências a animais da floresta, a palavra macaco foi usada para destacar a destreza no ato de escalar. Essa significação é reforçada quando se observa um comentário do narrador onisciente, que, referindo-se à desistência de Tia Nastácia em treinar o uso das pernas-de-pau por sua inabilidade para usá-las, afirma que “Na hora de em que onça aparece, até em pau-de-sebo um aleijado é capaz de subir. A pobre da Tia Nastácia ia ficar sabendo disso no dia seguinte...” (MONTEIRO LOBATO, 1986, p. 36). Observada a coerência interna do uso da expressão macaco para destacar habilidades motoras de escalada, as quais a personagem desenvolve repentinamente no momento em que está sob ameaça, a teoria de que, na obra, sua associação com a imagem do animal é de fundamento racista cai por terra. Mais ainda quando observado atentamente o desfecho da última aventura do livro: após Emília se livrar do dono do rinoceronte e os personagens do sítio estarem livres para voltar a brincar com ele, Dona Benta, que havia começado 98
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o seu primeiro passeio num carrinho puxado pelo futuro Quindim, encontra-se na seguinte situação: Dona Benta deu um suspiro de alívio e voltou ao terreiro. Queria continuar o seu passeio no carrinho. Mas não pôde. Tia Nastácia já estava escarrapachada dentro dele. — Tenha paciência — dizia a boa criatura. — Agora chegou a minha vez. Negro também é gente, sinhá... (MONTEIRO LOBATO, 1986, p. 85).
Se o vetor da semelhança na obra de Lobato reproduz no sítio uma situação de opressão à figura do negro, seria insustentável, em sua coerência interna, a liberdade tomada por Tia Nastácia, em ocupar o lugar de Dona Benta. Observando-se a questão para além do livro especificamente discutido aqui, reiteram-se em outras narrativas uma equiparação, embora não totalmente igualitária, do papel de Tia Nastácia e Dona Benta na organização do sítio. Em A reforma da natureza, ambas são convocadas para auxiliar os governantes europeus a reconstruírem seus países depois da guerra: os conselhos de Dona Benta e a sabedoria prática de Tia Nastácia, conjuntamente, são a chave para uma Europa melhor. Conclui-se, portanto, que a leitura de Caçadas de Pedrinho como uma obra na qual se fazem significar elementos de preconceito racial desconsidera a coerência interna da construção de personagens e de situações. Se é compreen99
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sível que o horizonte de expectativa de seu denunciador ao CNE o tornasse sensível para perceber este preconceito, é preciso também lembrar que o texto arma uma significação que só sendo alcançada pela suplementação do receptor, não se confunde com a interpretação correta. Isso não é sinônimo de vale tudo. Não. Por certo há interpretações absurdas e fantasistas, mas a interpretação aceitável não é nunca a derradeira ou a única. (COSTA LIMA apud BASTOS, 2010, p. 300).
Para encerrar as considerações desenvolvidas neste ensaio, resta ressaltar que a legislação brasileira, diferentemente do que foi divulgado pela mídia na época em que a polêmica do “caso Lobato” foi explorada, não prevê a censura a obras em virtude de seu conteúdo. O parecer do Conselho Nacional de Educação é claro em afirmar que caso algumas das obras selecionadas pelos especialistas, e que componham o acervo do PNBE, ainda apresentem preconceitos e estereótipos, tais como aqueles que foram denunciados (...) a Coordenação-Geral de Material Didático e a Secretaria de Educação Básica do MEC deverão exigir da editora responsável pela publicação a inserção no texto de apresentação de uma nota explicativa e de esclarecimentos ao leitor sobre os estudos atuais e críticos que discutam a presença 100
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de estereótipos raciais na literatura. Esta providência deverá ser solicitada em relação ao livro Caçadas de Pedrinho e deverá ser extensiva a todas as obras literárias que se encontrem em situação semelhante. (Conselho Nacional de Educação, 2010, p. 5).
Talvez em virtude do longo período de controle do imaginário através da traumatizante ação da censura durante o regime militar, o controle via censura não encontra, em primeiro momento, uma possibilidade legal no regime democrático brasileiro. Fossem outras as condições seria possível que aqui casos como os ocorridos com a obra de Mark Twain e de vários outros escritores — como Ray Bradbury, autor de Fahrenheit 451, obra cuja temática tão perfeitamente se encaixa às questões da incompreensão da mímesis e do controle do imaginário via censura. Se a literatura brasileira, no momento presente, não tem que lidar com os interventores e seus ameaçadores fósforos, prontos para eliminar a contradição e a inverdade do mundo, em contrapartida, temos a sorrateira espada de Dâmocles (COSTA LIMA apud BASTOS, 2010, p. 382) a ameaçar a autonomia da arte. E justamente para combater o perigo representado pelo fogo e pela espada, é preciso investir no esclarecimento da natureza do fundamento artístico: um discurso de puro jogo, puro exercício de busca do diferente, do assimétrico, do eu prismático. O ameaçador discurso da mímesis: aquilo que,
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não sendo mentira, nem verdade aponta para as nossas próprias verdades mentiras e expõe as nossas grandes mentiras. Referências BASTOS, D. Luiz Costa Lima: uma obra em questão. Rio de Janeiro: Garamond, 2010. BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Parecer nº 15/2010, 01 set. 2010. Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?Itemid=866&id=15 074&option=com_content&view=article >. Acesso em: 20 jan. 2011. COSTA, Fabiana Ferreira da. A mímesis, os estudos culturais e A balada da infância perdida: a literatura em questão. Recife: (mimeo). 2010. COSTA LIMA, Luiz. A aguarrás do tempo: estudos sobre a narrativa. Rio de Janeiro: Rocco, 1989. ______. Mímesis e modernidade: formas das sombras (2ª ed.). São Paulo: Paz e Terra, 2003. ______. O fingidor e o censor: no ancien régime, no iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1998. ______. Representação social e mímesis. In: Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria (pp. 216 - 236). Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. EXCLUSÃO da palavra “negro” de livro de Mark Twain cria polêmica nos EUA. FOLHA.com, 06 jan. 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol. com.br/ilustrada/855926-exclusao-da-palavra-negro-de-livro-de-marktwain-cria-polemica-nos-eua.shtml>. Acesso em: 10 jan. 2011. FINOTTI, I. Sanitarização de obra de arte é monopólio da estupidez. Folha.com, 08 jan. 2011. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ ilustrada/856350-sanitarizacao-de-obra-de-arte-e-monopolio-da-estupidez.shtml>. Acesso em: 10 jan. 2011. ISER, W. A interação do texto com o leitor. In: L. COSTA LIMA (org.), A literatura e o leitor: textos de estética da recepção (pp. 83 - 132). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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Mímesis, memória e fingimento: O Falso Mentiroso, de Silviano Santiago1 O jogo paradoxal das memórias fingidas
O
processo narrativo de O falso mentiroso: memórias, romance de Silviano Santiago, publicado em 2004, garante, a partir do paradoxo contido
1. O texto é o recorte de um ensaio apresentado à Banca Examinadora do concurso de professor titular em Teoria da Literatura em 2010, na UFPE.
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no título, a “movência do ficcional”2 entre verdade e mentira. Viabiliza, simultânea e ambiguamente, à voz enunciativa esconder-se e desvendar-se no fingimento literário, assumindo para si, nas palavras de Iser (In: COSTA LIMA, 2002, p.971), “o atributo patente do texto ficcional: o fingir que se dá a conhecer pelo desnudamento”. Problematiza, desta forma, o estatuto da mímesis artística e do gênero autobiográfico, a partir da reatualização, no âmbito ficcional, das seguintes reflexões conceituais formuladas pela voz do romancista/crítico: A ficção é antes de mais nada, enquanto configuração ou definição, uma mentira, uma invenção, uma fabulação. Uma mentira, uma fabulação que acompanhada da palavra “ficção” ou da palavra “literatura” adquire um valor de verdade sobre aquele tema que está sendo tratado.3
Embora o crítico aproxime a “verdade” ficcional da mentira, reatualizando aparentemente uma assertiva usual que confunde a fabulação fictícia com uma asserção mentiro2. O termo é utilizado por Costa Lima (1980) para designar o duplo movimento de aproximação/distanciamento, semelhança e diferença da mímesis em relação ao real ficcionalmente recortado. Através do paradoxo falso/verdadeiro, a retórica ficcional de O Falso mentiroso atualiza simultaneamente os semas da semelhança e da diferença que segundo o teórico (1980, p.230) todo ato mimético pressupõe. 3. Literatura é paradoxo. Entrevista concedida a Carlos Eduardo Ortolan Miranda. Trópico. Disponível em: <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2375>.
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sa, o desdobramento do enunciado suspende a equivalência entre os dois termos, apontando de forma subreptícia para o tipo específico de “engodo” posto em prática pela ficcionalidade inventiva. Este não se confunde com o mero embuste caracterizador do ato de mentir na comunicação pragmática, pois pressupõe simultaneamente a máscara do fingimento pelo pacto romanesco (LEJEUNE, 2008) que se estabelece entre texto e leitor. Pacto esse explicitado no âmbito literário paradoxalmente pelo “falso mentiroso” que intitula a obra. A conceituação do fazer ficcional pelo romancista e o autodesnudamento desse processo no âmbito da ficção podem ser lidos, pois, em articulação com os postulados do pensador alemão, acerca “dos atos de fingir” (seleção, combinação e autodesnudamento),4 compreendidos como atos de transgressão que se realizam através da partícula do “como se”, mediante a qual são suspensos os critérios de referencialidade asseguradores da noção de falso/verdadeiro). Para o teórico da Estética do Efeito, o fingimento ficcional pressupõe que a realidade selecionada e repetida no texto seja colocada entre parênteses pela ação transgressora do imaginário para que “se entenda que o mundo representado não é o mundo dado, mas que deve ser apenas entendido “como se o fosse” (ISER In: COSTA LIMA, 2002, p. 974). O fingir, assim, não sendo deduzível da realidade repetida na 4. Ver Iser (In: COSTA LIMA, 2002, p. 960-961).
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obra, aciona a ação do imaginário. Este, ao relacionar-se com a realidade retomada textualmente, perde seu caráter difuso, informe, de fantasmas, projeções, sonhos diurnos, ideações sem um fim, como costuma apresentar-se a nós, para adquirir uma determinada configuração que não lhe é própria, isto é, um predicado de realidade, “pois a determinação é uma definição mínima do real” (ISER, In: COSTA LIMA, 2002, p. 261). O fingimento ficcional é, dessa forma, definido por uma dupla transgressão de limites, que abole a relação opositiva – engendrada pelo “saber tácito” – entre ficção e realidade. Ao invés, portanto, da relação dicotômica ficção/realidade, tem-se a relação triádica ficção, realidade, imaginário, servindo este último como mediação entre aqueles dois termos: “Na conversão da realidade vivencial repetida em signo doutra coisa, a transgressão de limites manifesta-se como uma forma de irrealização; na conversão do imaginário, que perde seu caráter difuso em favor de uma determinação, sucede uma realização do imaginário” (ISER, In: COSTA LIMA, 2002, p.959). Em resumo, o ato de fingir, próprio da ficção, caracteriza-se, simultaneamente, pela “irrealização do real e pela “realização do imaginário”. A segunda operação transgressora, pela qual a determinação empresta ao imaginário um aparência de realidade, é, pois, simétrica inversa à primeira. Tomando-se aqui como elemento estruturante do romance de Silviano Santiago o paradoxo falso/verdadeiro é 108
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precisamente essa compreensão do ficcional que orientará subrepticiamente a leitura da narrativa, através da explicitação de sua tessitura pelo viés reflexivo do narrador-protagonista, Samuel Carneiro de Souza Aguiar. Este, nas suas reflexões metaficcionais, aciona uma concepção do ficcional, problematizando, em diálogo com o leitor, uma noção realista ou neo-naturalista de representação: “as coisas lá fora não significam o mundo capisce? Menos significam o mundo se representadas aqui dentro do quarto. De maneira realista” (SANTIAGO, 2004a). Tal compreensão do processo artístico de desrealização do real pressupõe o movimento correlato de realização do imaginário. Esse duplo movimento pode ser observado na passagem transcrita, em que, ao contrapor-se ao conceito de arte vigente no contexto da Segunda Guerra Mundial, o narrador busca metamorfosear o real via imaginário, acionando, assim, o duplo ato de transgressão teorizado por Iser. Vale a pena conferir a longa citação: Aqui na realidade, as coisas são o que podem ser. Lá na representação, as coisas são o que devem ser. Principal lição da pantomima [...]. Final da Segunda Grande Guerra. Não queria ver a realidade suja e brutal, que me cercava pelos quatro cantos da cidade e pelos quatro pontos cardeais do mundo. [...]. Roubar do real o que ele nos oferece de graça é tarefa vã. [...]. A noção de realismo estava tão na moda que, para não ser dada como ultrapassada, 109
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recebeu o prefixo de neo e se fez acompanhar de mil e um adjetivos pátrios. Neo-realismo soviético, neo-realismo italiano, norte-americano, francês, germânico, latino–americano. Cada nação uma sentença. Não gostava e não gosto de sair por aí escrevendo ou filmando documentário com os olhos. [...] Trazia para o ateliê quatro por quatro a imagem três por quatro do outro. Intacta na memória [..] Emprestava-lhe com a análise e a imaginação o toque mágico. Dava-lhe de presente a metamorfose que a reabilitava pela nobreza da maquiagem. (SANTIAGO, 2004a, p. 143-144 – grifo do autor).
O trecho citado suspende a função designativa da representação para afirmar sua função remissiva. Conformase, assim, ainda a teoria iseriana segundo a qual a noção de representação guarda em si mesma um caráter ambivalente ao provocar uma dupla referência (Verweisung): sua função pode ser designativa (Bezeichnen) ou remissiva (Verweisen). “Daí resulta que o mundo representado no texto não se refere a si mesmo e que, por seu caráter remissivo, representa algo diverso de si próprio. Mostra-se aqui de novo o modo característico do fictício, ser transgressão de limites” (ISER, In: COSTA LIMA, 2002, p. 975). Essa compreensão de representação que se atualiza pela função remissiva, fraturando a concepção neo-realista ou naturalista de arte, constitui o Leitmotiv estruturador de 110
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O falso mentiroso. Ela evidencia-se, como foi dito atrás, a partir mesmo da problematização da dicotomia falso/verdadeiro pelo título paradoxal do romance. Este reconfigura a questão do fingimento literário, reatualizando o mesmo paradoxo já formulada por Sartre (2005, p. 49) nas páginas de sua autobiografia: “O que acabei de escrever é falso. Verdadeiro. Nem verdadeiro nem falso, como tudo que se escreve sobre os loucos, sobre os homens”. As palavras de Sartre, desconstruindo o logocentrismo platônico, inaugurador do “controle do imaginário” na tradição ocidental, traduzem o questionamento do filósofo moderno acerca da linguagem como detentora da verdade. A aparente indecidibilidade (DERRIDA, 1972) do filósofo francês, contida no paradoxo, trai, no entanto, um desejo de autenticidade ou um compromisso com a exatidão do relato, que ele sabe, de antemão, impossível de alcançar num registro memorialista, semantizado como “delírio”: Relatei os fatos com a exatidão que minha memória permitia. Mas até que ponto creio no meu delírio? Esta é a questão fundamental e, no entanto, não sou eu quem decide sobre ela. Vi posteriormente que podemos conhecer tudo em nossas afeições exceto a sua força, isto é a sua sinceridade. (SARTRE, 2005, p. 49).
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Entre os fatos vividos e sua recuperação a posteriori medeia – e é disso que o filósofo está tratando – a traição da memória, ou seja, o recalque que na tecelagem do texto autobiográfico impossibilita passar a vida a limpo tal qual ela é. A reflexão sobre o processo mnemônico não elimina, todavia, a inquietação sartreana. Não elide de todo seu compromisso com a fidelidade ao narrado, ou melhor, sua vontade de inscrever seu discurso sob a égide da verdade, a despeito das reflexões paradoxais que abrem suas indagações. Diferentemente da autobiografia de Sartre o narrador protagonista de O falso mentiroso não tece o fio de suas memórias forjando um texto que trai o desejo de verdade. Ao contrário, no seu discurso “a semântica do termo ‘verdade’ já não se esgota na dicotomia que a separa do ‘falso’ eu mentiroso”, como diz Costa Lima (2006, p. 232), a propósito da contínua auto-invenção nas Metamorfoses de Ovídio, em que o “espaço-tempo” do ficcional, mediado pela narrativa en abîme, é reconstituído a cada leitura pelo imaginário do receptor, introduzindo-se, assim, “entre o verdadeiro e o falso”5. A autobiografia ficcional de Silviano abre-se igualmente ao campo do imaginário ao construir seu jogo textual a partir de um paradoxo que, inscrito no fingimento literário, leva 5. É justamente pelo distanciamento do conceito de verdade que o ensaísta define o ficcional em A aguarrás do tempo: “O discurso ficcional se caracteriza por sua posição particular quanto ao horizonte da verdade, quer ela seja definida de forma substancialista ou contratualista. O ficcional não afirma ou nega a verdade de algo, senão que se põe à distância do que se tem por verdade.” (COSTA LIMA, 1989, p. 110).
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às últimas consequências o paradoxo sartreano. A começar pela sua ratificação em uma dupla versão: uma que remonta à Antiguidade, outra moderna. A primeira, atribuída ao filósofo Euclides de Mileto (séc. IV a.C.), pode ser traduzida pela seguinte forma, inscrita na contracapa da autobiografia simulada: “Se alguém afirma ‘eu minto’, e o que diz é verdade, a afirmação é falsa; e se o que diz é falso, a afirmação é verdadeira e, por isso, novamente falsa etc)”. A segunda versão encontra-se num desenho de Jean Cocteau (um perfil de Orfeu), da série grega, datada de novembro de 1936 (sintomaticamente o ano de nascimento do próprio Silviano) e traz a seguinte frase: “Je suis um mensonge qui dit toujors la vérité”. (“Sou uma mentira que diz sempre a verdade”), conforme explicita o próprio autor em entrevista à revista Metamorfose (SANTIAGO, 2006a, p. 355)6. Reinscritas na letra da ficção, a dupla citação paradoxal fornece ao leitor pistas para que possa percorrer o intrincado labirinto que se delineia no jogo do fingimento mimético, sob a dupla rubrica de verdade e mentira, de autobiografia e de memórias fingidas, de escrita memorialista e de ficção, de histórias que reivindicam para si, ao mesmo tempo, o estatuto de falsas e verdadeiras, de bem e mal contadas. Como reafirma o autor, mais uma vez fora do texto ficcional, referindo-se agora
6. Essa versão encontra-se reproduzida num cartão postal enviado ao romancista, conforme esclarece na mencionada entrevista (ver SANTIAGO, 2006a, p. 355).
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à coletânea de contos Histórias mal contadas (2005). Vale acompanhar aqui o jogo intertextual que se estabelece entre essa coletânea de ensaios e o romance O falso mentiroso pela reatualização do paradoxo: As Histórias [...] são mal contadas porque o narrador, independentemente do seu desejo de se expressar dentro dos parâmetros da verdade, acaba por se surpreender a si mesmo pelo modo traiçoeiro como conta a sua história (ao trair a si, trai a letra da história que deveria estar contando). A verdade não está explícita numa narrativa ficcional, está sempre implícita, recoberta pela capa da mentira, da ficção. No entanto, é a mentira, ou a ficção, que narra ao leitor a verdade, como nas palavras do Orfeu de Jean Cocteau. [...] o bem contado é a forma superficial de toda grande narrativa ficcional que é, por definição e no seu abismo, mal contada. (SANTIAGO, 2005, p. 361 – grifos do autor).
Tais palavras são reinterpretadas pelo narrador no âmbito ficcional, mais especificamente no conto “O envelope azul” que abre metaficcionalmente a coletânea de Histórias mal contadas, numa das revisões literárias do paradoxo: “as que se autodenominam mal contadas são na maioria as que recebem melhor tratamento do autor” (SANTIAGO, 2005, p. 11).
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Ruptura com o pacto autobiográfíco e questionamento da noção de originalidade O jogo paradoxal que persegue obsessivamente a “verdade na ficção” ou a “vida na mentira” (SILVIANO, 2006, p. 355), denunciando a traição à intencionalidade autoral pelo processo da escritura, aponta também para uma outra “mentira” ficcional: as armadilhas escamoteadas nas definições canônicas de “gêneros” ditos autobiográficos (memória, autobiografia e suas produções correlatas: diário, correspondência), postuladas pela autobiografia clássica, conforme a define Philippe Lejeune (2008, p.14): “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade”. No caso do livro em pauta, vale citar o narradorprotagonista de O falso mentiroso desmontando no interior do romance o “pacto autobiográfico” (LEJEUNE, 2008), afirmado e simultaneamente negado na capa do livro: “O nome do autor é verdadeiro. A proposta de livro que o nome vende é falsa – a narrativa autobiográfica duma experiência de vida corriqueira e triunfal com o título de O falso mentiroso – é enganosa. Não encontrei melhor solução nem título” (SANTIAGO, 2004a, p. 174). A citação remete, ironicamente, para as considerações teóricas de Lejeune, segundo as quais o nome próprio, o nome do autor na capa 115
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do livro – a assinatura autoral – assegura, indubitavelmente, na autobiografia clássica a legitimidade da autoria, na medida em que aponta para a correspondência entre a instância enunciativa e seu modelo, para a postulação de identidade entre autor-narrador-protagonista, responsável pelo forjamento do “contrato social” entre autor e leitor: É no nome próprio que pessoa e discurso se articulam, antes de se articularem na primeira pessoa [...]. É, portanto, em relação ao nome próprio que devem ser situados os problemas da autobiografia. Nos textos impressos, a enunciação fica inteiramente a cargo de uma pessoa que costuma colocar seu nome na capa do livro e na folha de rosto, acima ou abaixo do título. É nesse nome que se resume toda a existência do que chamamos autor: única marca no texto de uma realidade extratextual indubitável, remetendo a uma pessoa real, que solicita, dessa forma, que lhe seja, em última instância, atribuída a responsabilidade da enunciação de todo o texto escrito. (LEJEUNE, 2008, p. 22-23 – grifos do autor).
Em O falso mentiroso, essa relação é não só fraturada a partir dos caracteres da capa, como o próprio texto se encarrega de explicitar essa fratura pelo desnudamento do fingimento ficcional. A voz do narrador, destacada atrás, assinala a não articulação entre pessoa e discurso, entre o nome do
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signatário exposto na capa, a proposta memorialista contida no subtítulo do livro (endossada pela foto do autor quando bebê, estampada na capa) e o discurso no interior da obra. Vale a pena conferir a capa do livro reproduzida a seguir:
Observando-se mais de perto os caracteres da capa, nota-se que, na verdade, a fratura do pacto autobiográfico articula-se a uma outra fratura, a fratura do pacto romanesco, explicitado da seguinte forma por Lejeune: Simetricamente ao pacto autobiográfico, poderíamos estabelecer o pacto romanesco que teria ele próprio
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dois aspectos: prática patente da não-identidade (o autor e o personagem não têm o mesmo nome), atestado de ficcionalidade (é, em geral, o subtítulo romance , na capa ou na folha de rosto,) que preenche, hoje, essa função. (LEJEUNE, 2008, p. 27 – grifos do autor).
Ora, se a não correspondência entre o nome do autor e o do personagem assegura a prática patente da não identidade, como já se viu a propósito da fratura do pacto autobiográfico, afirmando, assim, o pacto romanesco, o retrato do bebê inserido na capa e o subtítulo memórias, no lugar do subtítulo romance (tanto na capa quanto na folha de rosto), desmentem o atestado de ficcionalidade, um dos requisitos asseguradores do pacto romanesco, conforme definido na citação transcrita. E ainda, se os dados pretensamente autobiográficos (foto e subtítulo) são problematizados pelo paradoxo do título (falso mentiroso), o jogo de caracteres da capa embaralha as fronteiras discursivas, impossibilitando uma nítida distinção entre memória e ficção, entre gênero romanesco e registro autobiográfico. A metaficção narrativa, que reitera no interior da obra o desmonte do pacto autobiográfico, deslegitima como falsa – numa lição aprendida com Gide de Os moedeiros falsos7 – a moeda que deseja por 7. Silviano retoma aqui implicitamente a metáfora gideana, já explicitada, em contexto diverso, no posfácio de seu livro de poesia Cheiro forte (ver SANTIAGO 1995, p. 53-59). Tal metáfora é elemento recorrente ao discurso crítico e literário do autor. Talvez não seja demais frisar que sua tese de doutorado, defendida em 1968, na Université de
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em circulação, mas ao mesmo tempo reconhece-a como verdadeira (afinal, trata-se de um falso mentiroso, conforme afirma o título), num procedimento irônico e silogístico já apontado por Raul Antelo (In: SOUZA e MIRANDA, 1977, p. 64-65), a propósito das observações gideanas do autor no seu livro de poemas Cheiro forte (1995). Não é apenas no âmbito da ficção que a metalinguagem alude ao desmonte do pacto autobiográfico. Esse desmonte vem explicitado igualmente na ensaística do autor, mais especificamente, no ensaio A vida como literatura: o amanuense Belmiro, em que o ensaísta joga com o trocadilho entre seu nome e o de um personagem homônimo do romance de Cyro dos Anjos e estabelece a seguinte associação entre ambos: De tal modo investiu [Silviano, personagem de Cyro] na condição do nome falso, à semelhança dum ficcionista pós-moderno, que se torna incapaz de chamar os amigos pelo nome que lhes é o próprio. Em atitude semelhante à que ele toma em relação ao próprio nome próprio, traveste os nomes dos amigos por outros que lhes caem muito bem, como uma luva, mas falsos [...] Silviano multiplica os nomes das pessoas, as versões dos acontecimentos, e, pelo processo da multiplicação, se torna um exemplar raro de mentiroso e de misti-
Paris (Sorbonne), é sobre a gênese dos Moedeiros falsos.
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ficador. Dessa perspectiva, passa moedas falsas, para retomar a metáfora de Gide na década de vinte e a de Ricardo Piglia em tempos pós-modernos. (SANTIAGO, 2006a, p. 20-21 – grifos nosso).
Como não ler, então, o desmonte do pacto autobiográfico em O falso mentiroso como suplemento ficcional da metalinguagem do ensaísta Silviano, em cuja leitura da obra alheia o romancista se insinua também como personagem, explicitando não só sua técnica narrativa, como seus modelos literários?8 Através desse desmonte, o texto de Santiago reatualiza, talvez de forma mais complexa do que nas outras obras do autor, uma prática escritural que, embora reconhecível desde a prosa experimental de O olhar (1974), começa a ser exercitada mais assumidamente no livro Em liberdade, exercício de simulação da escrita memorialista de Graciliano Ramos ou, como quer David Jackson (In: SOUZA E MIRANDA, 1997, p. 90 – grifo nosso), “desescritura (empréstimo subentendido ou canibalização)” dessas memórias. Diário fictício do escritor alagoano, após a sua saída da prisão, Em liberdade é considerado o “romance fundador da literatura pós-moderna entre nós”, como sustenta Beatriz Rezende na orelha de Histórias mal contadas. Sua escrita pressupõe já o processo de construção 8. A noção derridiana de suplemento, pelo teor de diferença que instaura face ao texto suplementado, não deve ser confundido com a mera reduplicação da intencionalidade autoral.
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da memória não como discurso confessional, alimentado pela experiência do sujeito autoral, em conformidade com o discurso memorialista canônico. Caracteriza-se, ao contrário, como incorporação da escrita de um outro através do simulacro lingüístico, do pastiche, entendido não como cópia servil, mas como repetição criativa e diferenciada de uma obra e de uma ‘forma’ anteriores, segundo já acentuou Wander Miranda (1992, p. 41), no seu estudo pioneiro da obra. David Jackson (1997, p. 91), ao caracterizar a reapropriação da voz memorialista de Graciliano Ramos por Silviano como “ficção/confecção, num trocadilho com o título do ensaio de Antonio Candido, Ficção e confissão (1956), encaminha sua interpretação da obra em sentido análogo: “A memória de Silviano se constrói [...] não na tradição aparente da confissão, mas sim através da confecção pós-moderna, usando ingredientes do primitivismo9 e da simulação”. Tanto no romance Em liberdade, quanto em O falso mentiroso, a problematização da identidade autoral pelo pastiche tem como correlato o questionamento dos conceitos tradicionais de original e cópia, fundamentados respectivamente na ciosa noção burguesa de propriedade
9. O ensaísta explica esse novo primitivismo lançando mão das teorias da cultura pós-moderna de Arthur Kroker e Davi Cook: “O primitivismo está centrado no texto de Silviano numa regressão histórica ligada por Kroker e Cook a uma vontade de auto-destruição, ela mesma coerente com o pessimismo e ceticismo das memórias de Graciliano” (JACKSON In: SOUZA E MIRANDA 1997, p. 93).
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literária e no pejorativo conceito de plágio10. Noções essas desconstruídas criativamente pela incorporação da noção de tradução de Haroldo de Campos, “como jogo intertextual da diferença”, numa conceituação formulada a partir da leitura de Valery e Borges (MIRANDA,1992, p. 9). Tal problematização ocorre também pela observância do deslizamento do conceito de tradução no de transformação, em conformidade aos pressupostos gramatológicos de Derrida, como confessa o próprio Silviano.11 Pelo menos dois dos ensaios mais discutidos do autor de Uma literatura nos trópicos dedicam-se a esta questão: “O entre-lugar do discurso latino-americano” e “Eça, autor de Madame Bovary”. Neles, o crítico tematiza o processo de tradução/transformação empreendida pelo escritor latino-americano (Cortázar e Borges) ou por aquele situado no espaço literário europeu culturalmente depen-
10. O desmonte irônico da noção de plágio vem metaficcionalmente tematizado na seguinte citação de O falso mentiroso: “Quem inventa desenvolve um estilo próprio. Intransferível. Se apossado por outro, há curto-circuito. O outro é julgado plagiário. Tão criminoso quanto o cara que rouba o cartão de crédito do passante incauto e o usa no caixa eletrônico da esquina. O estilo é o homem – dizem correta e melancolicamente os historiadores da invenção. O cartão de crédito é a senha – dizem correta e legalmente os banqueiros e seus asseclas. Sem ele. Sem ela. Neca de pitibiriba (SANTIAGO, 2005, p. 183). 11. Em nota de rodapé ao ensaio “O entre-lugar do discurso latino-americano”, citando Derrida, Silviano reconhece seu débito para com o teórico francês: “Seguimos de perto os ensinamentos de Derrida com relação ao problema da tradução dentro dos pressupostos gramatológicos: ‘Dans les limites où elle est possible, où du moins elle PARAIT possible, la traduction pratique la différence entre signifié et signifiant. Mais si cette différence n’est jamais pure, la traduccion ne l’est pas davantage et, à la notion de traduction, il faudra substituer une notion de TRANSFORMATION: transformation réglée d’une langue par une autre, d’un texte par un outre’”. (DERRIDA, apud SANTIAGO, 1978, p. 25).
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dente (Eça em relação ao romance de Flaubert), divididos entre a assimilação ao modelo original da cultura hegemônica europeia e a necessidade de transgredi-lo. O conto borgeano “Pierre Menard, autor del Quijote” é tomado pelo ensaísta como “metáfora ideal” para refletir sobre esta posição de dependência periférica que situa o escritor num entre-lugar discursivo, ao mesmo tempo devedor e transgressor, que o coloca dramaticamente cindido “entre o amor e o respeito pelo já escrito, e a necessidade de produzir um novo texto que afronte o primeiro e muitas vezes o negue” (SANTIAGO, 1978, p. 25). Na reconstrução crítica desse entre-lugar, Silviano opera com as categorias de obra invisível e visível do conto de Borges para assinalar tanto o débito em relação ao texto matriz, quanto a marca diferencial introduzida pelo texto segundo face àquele de que se apropria em diferença. A obra invisível ressalta na cópia as marcas de dependência social, cultural e política do escritor periférico. Representa a situação paradoxal deste texto segundo que “desaparece completamente” no texto modelo, deixando transparecer apenas a sua significação mais exterior, a sua posição culturalmente devedora e parasita. Já a obra visível acentua os possíveis traços de originalidade do texto segundo, face à sua matriz textual. Destaca não a reduplicação acrítica, mas a assimilação antropofágica realizada pelo decalque em relação ao original.
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A dupla face de invisibilidade e visibilidade, o movimento pendular entre fidelidade e traição, tradição e tradução, de compromisso com o já escrito e irreverência transgressora, que assinala o projeto literário de Pierre Menard em relação ao de Cervantes, é dramatizado em O falso mentiroso por uma escrita também parricida. Embora de forma diversa, essa escrita mantém traços fundamentais de similaridade com a escrita de Em Liberdade, conforme já se frisou aqui por diversas vezes. O romance conserva o texto de Borges como metáfora – assim como ocorre com a repetição diferenciada de Graciliano por Silviano. E utiliza-se, igualmente, como ficou dito acima, dos recursos do paradoxo, do simulacro e do suplemento para fraturar a forma da escrita autobiográfica tradicional e reescrever nas suas memórias fingidas o texto memorialista da tradição literária brasileira, com a qual dialoga em diferença. A propósito dessa atividade recriadora, pode-se tomar de empréstimo as palavras de Eneida Maria de Souza (apud MIRANDA, 1992, p. 93), relativas ao intento literário parricida do personagem borgeano: “O pai da escrita desaparece e ressurge sob a forma de simulacros, reflexos das obras, autores parricidas e filhos das próprias obras, reengendrando textos e perseguindo a aventura do texto que se relê e se reescreve”. Suplementando os aludidos ensaios, a questão da cópia/ original recebe novos matizes nas páginas do O falso mentiroso através de vários, simultâneos e correlatos 124
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desdobramentos semânticos: a) a fragmentação identitária do narrador-protagonista, Samuel, que, em busca da sua origem, multiplica-se em vários eus falsos/verdadeiros, aos quais correspondem uma variedade de versões acerca de sua genealogia; b) a fragmentação autoral, assinalada num duplo registro: o da tematização da fratura do “pacto autobiográfico”, via memórias fingidas, conforme já foi especificado acima, e o questionamento da noção de originalidade no processo de criação artística. Exemplo desse último caso são as considerações acerca da apropriação da obra do xilógrafo Oswaldo Goeldi, tomado como “orientador e modelo”, como artista a ser copiado “traiçoeiramente” pelo pintor falsário Samuel. De maneira análoga a Pierre Menard face a Cervantes, Samuel busca sua originalidade, sua “obra verdadeira e subterrânea” (SANTIAGO, 2004a, p. 184) através da cópia: “Sou original na maneira como copio as xilogravuras de Goeldi na tela”. (SANTIAGO, 2004a, p. 185). Não deixa de ser lapidar a forma como traduz a sua atividade de “copista”: “A xilogravura corta pela raiz a presunção de querer fazer obra única e singular. Ela já anuncia na madeira a maneira como é talhada, trabalhada e reproduzida a existência da cópia” (SANTIAGO, 2004a, p. 191 – grifos do autor). O paradoxo falso/verdadeiro com que o narrador designa as variantes versões de sua autobiografia, a sua multiplicação em vários “eus” fingidos, desdobra-se, assim, na forma paradoxal de “impostor confesso”, cuja 125
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atividade no campo das artes plásticas objetiva “macular uma leitura da história da arte” (SANTIAGO, 2004a). As duas citações acima remetem às considerações do ensaísta acerca da problematização das noções de unidade e pureza, conforme podem ser lidas em “O entre-lugar do discurso latino-americano”: “A maior contribuição da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição semântica dos conceitos de unidade e pureza” (SANTIAGO, 1978, p. 18 – grifos do autor). Em O falso mentiroso, a noção de mácula, isto é, de impureza, associada à noção de cópia, recebe uma nova carga semântica. Aponta para a suplementação que o pintor Samuel introduz na obra matriz de Goeldi, possibilitando uma re-leitura desconstrutora da história do Brasil. Ao observar a incisão do traço branco no fundo negro da xilogravura , Samuel a vê como a incisão do chicote do senhor branco na pele negra do escravo: A figura, qualquer figura humana, é construída pela incisão do branco, que a contorna e acaba por configurá-la no espaço negro. Seres humanos, negros de alma branca. [...]. O mínimo traço branco fustiga o conjunto negro com chibata. Tempos antigos da escravidão negra. Castiga o preto e, amedrontado, acua para dentro da cor que lhe é própria. O branco é uma
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espécie de guarita da minoria rica dos latifundiários e industriais12. (SANTIAGO, 2004a, p. 186).
A tematização da escravidão desentranhada dos comentários interpretativos do narrador sobre a xilogravura de Goeldi (a incisão do traço branco no espaço negro) conduz o pintor ao desejo de suplementá-la, acentuando certos traços do original através do acréscimo de inusitada carga semântica. Por meio desse suplemento, ele surpreende na incisão artística da xilogravura de Goeldi o processo de dominação do negro pela minoria branca de “latifundiários e industriais”. Enxerga nessa incisão branca sobre a massa preta compacta da matriz xilográfica a “sua falta de graça frente ao poder ainda silencioso da maioria negra” (SANTIAGO, 2004a, p. 187 – grifos do autor). Em consequência, dispõe-se a recobrir “os urubus” de Goeldi de “cores estonteantes”. Imprime, assim, na obra matriz as marcas de sua diferença: A minha cópia, na tela e em cores, disputaria espaço com as disputadíssimas cópias em papel-arroz que tinham sido originadas da reprodução da matriz trabalhada por ele. Concorria com Goeldi. Criava um universo semelhante ao dele. Com as sete cores do
12. Ao processar o deslizamento semântico da reflexão sobre a arte para a reflexão sóciopolítica, o texto dialoga com o ensaio “Uma literatura anfíbia” (O cosmopolitismo do pobre, 2004b), no qual o ensaísta avalia esse movimento duplo de contaminação naquilo que considera o melhor de nossa produção literária em tempos de globalização.
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arco-íres e muitas outras nuances. Escapava pelas frestas da diferença. (SANTIAGO, 2004a, p. 191 – grifos do autor).
O revestimento cromático do branco da tela revela a intencionalidade social do texto13: “desautorizar a imponência do traço nítido e branco”, pela mistura. Através da ressemantização das noções de cópia/original, o romance recupera e atualiza, sob uma “forma literária anfíbia”14, as reflexões do ensaísta de “O entre-lugar do discurso latinoamericano” acerca do processo de descolonização no renascimento colonialista do Terceiro Mundo, via miscigenação: O renascimento colonialista engendra [...] uma nova sociedade, a dos mestiços, cuja principal característica é o fato de que a noção de unidade sofre reviravolta, é contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa entre o elemento europeu e o elemento autóctone – uma espécie de infiltração progressiva efetuada pelo pensamento selvagem, ou seja, abertura do único caminho possível que poderia levar à descolonização”. (SANTIAGO, 1978, p. 17 – grifos do autor).
13. Não confundir essa noção de intencionalidade textual, apoiada nos subsídios teóricos de Iser, com a intenção autoral . Para o teórico o texto é um campo de jogo entre autor e leitor, apresentando-se como o resultado de um ato intencional através do qual um autor se refere e intervém em um mundo existente, mas que visa a algo que ainda não é acessível à consciência (ISER“ O jogo do texto” In: COSTA LIMA, 2002). 14. Ver nota 12.
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A tessitura romancesca revela, assim, uma noção do ficcional que, longe de se confundir com um documento da realidade factual não descarta, por outro lado, a ancoragem da mímesis na sociedade. A própria concepção de mímesis no quadro da teoria literária contemporânea aponta para essa ancoragem, que refuta tanto uma compreensão especular do ficcional, quanto uma concepção oposta, imanentista: [...] se a mímesis é a categoria central da ficcionalidade, não tem, contudo dimensões fixas e intemporais, por estar sempre ligada à atmosfera envolvente das representações sociais, que, de sua parte, se relacionam com a base material da sociedade. (COSTA LIMA, 1980, p. 79).
Considerando-se o posicionamento teórico acima, pode-se dizer que O falso mentiroso aproxima a atividade ficcional “enquanto produção simbólica, da ação social simbolicamente investida” (COSTA LIMA, 1980, p. 74). A questão da miscigenação, da contaminação do “puro” pelo “impuro”, no texto de Silviano é exemplar neste sentido. Vale acrescentar que ela não é vista sob a perspectiva da cordialidade15 como em Gilberto Freyre, que termina por 15. Uma paródia à ideologia da cordialidade do brasileiro pode ser constatada na seguinte passagem do romance, que alude implicitamente a Gilberto Freyre e outros intérpretes do Brasil: “Não é a tolerância do brasileiro que as canções engajadas e os hinos patrióticos apregoam em Praça pública? Ou sob o toldo do circo? Tão brasileiro
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reafirmar o processo colonialista no Brasil. Ao contrário, pressupõe uma deshierarquização dos valores da tradição cristã ocidental e a desmistificação dos “mitos colonizadores”, reiterando, assim, a observação de Lyotard (apud George Yudice, 1981:48): “No mundo pós-moderno já não há mais lugar para as grandes narrativas legitimadoras”: Tinha ojeriza por tudo o que se apresentava ao público como original e autêntico. Puro. Imaculado. Queria macular nuvens, mares montanhas, rios, campos, animais e pessoas. Maculava a Virgem Imaculada, se me permitissem os deuses do Olimpo, a tradição judaico-cristã e os mitos colonizadores – e Donana”. (SANTIAGO, 2004a, p. 141-142).
O questionamento das noções de originalidade e autenticidade via contaminação da pureza original pela reprodutibilidade da cópia pode ser lida ainda como uma dupla transgressão: a) transgride a concepção idealista platônica acerca da mímesis artística concebida como falseamento da noção de verdade essencial, da qual a arte seria um simulacro em terceiro grau, um reflexo atualizado negativamente na cópia 16; b) apresenta-se, de forma quanto cordial. Não é o que dizem os inúmeros intérpretes do Brasil?”. (SANTIAGO, 2004a, p. 182 – grifos do autor). 16. Em Platão a indagação sobre mímesis passa pelo crivo do falso/verdadeiro. São por demais conhecidas as reflexões d’A República onde, pela voz de Sócrates, o filósofo
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também transgressora, como dessacralização do sagrado, em contraposição à noção de obra “aurática”, no sentido benjaminiano do termo, fundamentada teologicamente no ritual e no culto (BENJAMIN, 1986, p. 171). Em contrapartida a essa forma primitiva (mágica ou religiosa) de inserção da arte no contexto da tradição, o teórico germânico afirma que a eficácia da arte “contemporânea” (relacionandose o termo às condições produtivas do capitalismo no contexto em que o texto de Benjamin foi produzido, 1936) depende da sua orientação em função da reprodutibilidade e de seu distanciamento da obra original. Com a perda
expõe seu projeto logocêntrico e antropocêntrico, sua lógica metafísica. Esta aponta para a articulação entre arte, logos e ética, esconjurando a sedução mimética da arte. O paradigma a esconjurar é a epopéia Homérica, falseadora da verdade. O enlace entre ficção e mentira, responsável pelo decreto da expulsão do poeta, no livro X d’A República, é postulado já no livro III, em que a maiêutica socrática delineia os temas da poesia (logos) e os diferentes modos ou estilos (lexis) de representar esses temas. Em ambos os livros, “O critério do bem captura o critério do belo” (COSTA LIMA, 1973, p.16). A metafísica platônica pode, pois, ser tomada como o primeiro exemplo ocidental de “ controle do imaginário”, para retomar aqui a expressão de Costa Lima (1984). Na obra considerada, a regra relativa à poesia formula-se pela rejeição da poesia “imitativa”. Acresce, no entanto, à recusa a explicitação do conceito de mímesis. Este, não pode ser simplesmente tomado como imitatio, segundo foi interpretado ao longo da tradição ocidental, mas como uma “representação imagética”, que não se confunde com aquilo que é imitado. A concepção da mímesis platônica pressupõe uma teoria do conhecimento do objeto artístico (e por extensão da multiplicidade de objetos existentes no mundo sensível) pela correspondência (verossimilhança externa) com uma verdade (essência) que se situa fora dele, numa realidade anterior e exterior (mundo das idéias) e que deve ser reconhecido pela reminiscência. Afastado três vezes do Ser – o criador supremo e natural da ideia, a partir da qual toda a realidade sensível é mimeticamente recriada – o artista, leia-se o poeta e o pintor, é um “imitador” em terceiro grau, mero reduplicador de aparências, de simulacros. Considerando a cópia“platônica”, como “Reino do belo, do bem e do bom” (SANTIAGO, 2004a, p. 143), o narrador de O falso mentiroso transgride a metafísica platônica).
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da autenticidade, transforma-se a função social da arte, abrindo-se esta a possibilidades mais democráticas. Ela deixa de fundar-se no ritual para fundar-se na práxis política. A refuncionalização da arte na era de sua reprodutibilidade técnica possibilita, assim, que esta contribua para uma “politização da estética”, em contraposição à “estetização [fascista] da política” (BENJAMIN, 1986, p. 196). As reflexões do narrador-protagonista de O falso mentiroso acerca da transgressão do original pela cópia atualizam, portanto, na conjuntura do capitalismo tardio, as considerações benjaminianas no contexto do fascismo em que se insere o texto do pensador alemão17. Como clone de si mesmo (“eu original e eu cópia”), o narrador da pseudo autobiografia, sem reivindicar sua “aura” perdida, na condição de narrador pósmoderno, como definido em ensaio homônimo (SANTIAGO, 1989, p.38-52), assume sua fragmentação identitária e autoral, incorporando pela “cópia”, na escritura de suas memórias, “vários entretidos e divertidos estilos” (SANTIAGO, 2004a, p. 183). A metáfora utilizada no texto para assinalar a criação artística pela proliferação de cópias estabelece uma analogia 17. Também com o texto de Benjamin dialoga parodicamente o missivista do conto em forma epistolar, “Hello, Dolly!”, de Histórias mal contadas (SANTIAGO, 2005, p. 153156). Em sentido simétrico inverso ao do copista Samuel, o narrador do conto busca sua “aura”, sua identidade perdida (como quem perde o guarda-chuva), interpelando e responsabilizando, de forma irônica e bem humorada, o destinatário da carta, ou seja, o próprio Walter Benjamin, pela situação de clone em que ele se encontra – “antepassado e prole de [si] mesmo” – em plena era da “reprodutibilidade científica”, caracterizada pelos experimentos genéticos com o DNA e com a clonagem de seres.
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entre a subjetividade desdobrada do “eu” (“sou gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos”) e a imaginação ficcional: “Quem copia não corta cordões umbilicais. Pelo contrário. Coleciona cordões umbilicais ao ar livre da imaginação”. (SANTIAGO, 2004a, p. 184). O paradoxo do simulacro, como é representado na autobiografia do narrador, consiste justamente em converter o similar em diferença, a repetição recriada do modelo numa cópia mais “autêntica” do que o próprio original. E nisso encontra respaldo ainda no ensaio de Benjamin, para quem a reprodução pode atualizar certos aspectos que no original não se distinguiam. Assim (o ensaísta refere-se aqui especificamente à fotografia), a atividade reprodutora pode colocar a “cópia do original em situações impossíveis para o próprio original” (BENJAMIN, 1986, p. 168). A propósito de O falso mentiroso pode-se articular as considerações acerca das fraturas do original pela cópia ao processo narrativo descontínuo e fragmentário do narradorprotagonista, cuja função aponta para a “desterritorialização” das memórias, para o rompimento com a continuidade identitária, conforme se verá a seguir. A desterritorialização das memórias No ensaio Corpos escritos, Wander Melo Miranda (1992, p. 120) distingue duas possibilidades de operacionalização 133
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da faculdade mnemônica: a memória operadora do Mesmo e a memória operadora da diferença. No primeiro caso, o papel da memória – “eco, arquivo, duplo do eu” – limita-se à ratificação mítica da imagem que o sujeito, erigindo-se em seu próprio monumento, tem de si mesmo e, de acordo com a qual, gostaria de ver-se reconhecido. Assim, “a memória impõe ao sujeito que lembra a consciência (falsa) da sua plenitude e autonomia, condenando-o a refazer o tecido da sua história sempre com os mesmos fios de um único e imutável traçado o qual, por não conter os fios que o Outro tece, é irremediavelmente alienante”. No segundo caso, a memória, vista agora como “repetição em demanda da diferença”, caracteriza-se por um trabalho de produção, de criação, de reflexão que não apenas localiza, mas desconstrói, desterritorializa, no sentido deleuziano do termo, a lembrança, tecendo a experiência passada a partir das “imagens e ideias do presente”. A máquina da memória opera, então, como um processo de tecelagem através do qual, é preciso desenrolar fios de meadas diversas, desfiar o tecido dos acontecimentos e sentimentos pretéritos e transformá-los numa urdidura sempre renovada, refeita, recriada, que não se encerra na busca do eu perdido por uma subjetividade onipotente, nem resulta na preservação da couraça do hábito e da rotina (MIRANDA, 1992, p. 120 – grifo do autor).
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Trabalhando com a memória “operadora da diferença”, o relato autobiográfico de Samuel aciona na sua fabulação romanesca uma técnica labiríntica e circular. Condizente com a atividade de desterrititorialização da lembrança, com a lógica do suplemento e do paradoxo, o romance resgata, através de um processo de ressemantização, em novo contexto discursivo, recursos ficcionais já ensaiados na produção literária anterior do romancista. Tais recursos asseguram a fragmentação multifacetada dos relatos, a auto-correção narrativa, os desdobramentos do ”eu” na repetição “diferida” do vivido, a multiplicidade das versões narradas, a tortuosidade da prosa em ziguezague, a mistura de gêneros, os cortes na trama pela mediação de ekphrasis ou da narração en abîme, a dicção fingida via representação de alteridades distintas e superpostas, a incorporação literal ou não de citações sem registro autoral, o diálogo implícito ou explícito com modelos do cânone literário brasileiro ou da literatura ocidental. Tudo isso entremeado pelo tom jocoso e irônico, pelo diálogo provocativo com o leitor, pela mescla do grotesco e do elevado, do popular e do erudito, da cultura de massa e da “grande arte”. Em suma, por um jogo intertextual de significações plurifacetadas e em aberto, remetendo à “fricção [..] entre múltiplas possibilidades de criação” (RESENDE, 2008, p. 18). Como não poderia deixar de ser, tal procedimento narrativo é arrematado via metaficção reflexiva, por meio da qual o texto desnuda, sua ficcionalidade. Expõe, enfim, “a simbiose 135
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de criação e crítica no próprio âmbito da ficção”, para utilizar aqui as palavras atribuídas por Arrigucci Jr (1973, p. 167) às obras de Cortazar e Borges. A atualização desse processo mimético em O falso mentiroso ocorre pela prestidigitação de uma voz enunciativa, a do sessentão Samuel de Aguiar Carneiro da Cunha, cujo relato autobiográfico constrói-se através de uma representação en abîme, possibilitadora do “alargamento do real” via fingimento literário. Ao longo da narrativa, o protagonista assume diferentes papéis, alguns deles já enfatizados atrás: narrador, personagem, autor de uma pseudo autobiografia e de um diário, (matriz textual de sua autobiografia), aprendiz de mímico e pintor pretensamente falsário. Por meio desses vários mecanismos representacionais, Samuel finge o que não é, “se despotencializa num análogo, para que, por este, ganhe uma potencialidade de sua aparência real”, de acordo com as considerações de Iser (In: COSTA LIMA, 2002, p. 979), ao assinalar a dialética relação de irrealização/ realização do ator teatral com o personagem que representa. Aplicadas a O falso mentiroso as considerações do teórico valem não só para o personagem travestido de ator, mas igualmente para sua narrativa autobiográfica, já que essa, de forma equivalente ao sujeito que a tece, caracteriza-se pelo fingir. Isso é, presentifica-se igualmente pela partícula do como se. É, portanto, pela mediação da voz de um exímio ator, cuja ilusão é posta para ser simultaneamente negada, 136
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que o leitor pode acompanhar o movimento de abertura e fechamento do texto, através do travestimento do personagem nas suas múltiplas máscaras. Elas lhe possibilitam, como no teatro e no mundo grego, defrontar-se com diversas formas de alteridade. A narrativa se inicia e se encerra pelo registro de um duplo vazio, uma dupla falta genealógica a qual a fabulação diegética busca labirinticamente preencher, através da formulação de várias “hipóteses”: o vazio da origem, da raiz familiar, da ascendência genética, constatada pelo desconhecimento das figuras materna e paterna. E o vazio da descendência, da ausência de filhos, pela impossibilidade – reconhecida em última instância no desfecho dessa outra “história de família”18 – de perpetuar-se pela procriação. Na reiteração negativa do primeiro parágrafo, o narrador assume a máscara de filho bastardo ou enjeitado para colocar, desde já, a questão da identidade fratura: “Não tive mãe. Não me lembro da cara dela. Não conheci meu pai, também não me lembro da cara dele Não me mostraram foto dos dois. Não sei o nome de cada um. Ninguém quis me descrevê-los com palavras. Também não pedi a ninguém que me dissesse como eram” (SANTIAGO, 2004a, p. 9). Na reiteração negativa do desfecho, o narrador, na condição de pai e filho (falsos), ratifica a ruptura com a corrente de sangue, que alicerça 18. Alusão ao título do romance Uma história de família, publicado pelo autor em 1992.
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ideologicamente o modelo literário de nossa tradição naturalista (SUSSEKIND, 1984), suplementando, na explicitação de seu legado por subtração, o capítulo final “das negativas” machadianas: “Chega de mentiras. Não serei um falso pai falso, como o doutor Eucanãa. Não me casei com Esmeralda. Não tive filhos com ela [...]. Não poderia tê-los tido. Não os tive. Inventeio-os. [...] Lego ao mundo as minhas telas. À história, uma família a menos” (SANTIAGO, 2004a, p. 222). Se o romance de Silviano Santiago toma explicitamente as Memórias póstumas de Brás Cubas como mediação intertextual para fraturar, à semelhança do romance de Machado, a estética naturalista, o texto adota também a circularidade labiríntica como processo construtor de suas memórias ficcionais: “Retomo às primeiras linhas para chegar às últimas. Ao dia do meu nascimento. À última linha está na primeira. Fecha-se o círculo da esterilidade. Todo labirinto se apóia num círculo vicioso” (SANTIAGO, 2004a, p. 222). A exemplo da narrativa de Brás Cubas, cabe igualmente à narração de Samuel debruçar-se sobre si mesma, deslindar metaficcionalmente a tecelagem do texto, ao mesmo tempo em que também convida o leitor a acompanhá-lo nesse processo de desnudamento. De maneira análoga a Memórias póstumas, esterilidade e forma labiríntica circular conjugam-se para fraturar a homologia com a corrente de sangue; para romper com os valores do clã patriarcal, com a continuidade genética, que assegura, na prosa naturalista brasileira, em suas 138
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várias ressurgências estéticas19 – entre as quais se incluem “os ciclos romanescos memorialistas” de 1930 – a continuidade entre gerações, a retransmissibilidade da herança paterna, a perpetuação dos laços de família e dos “bens de raiz”, na expressão de Drummond. No caso do romance de Machado, vale lembrar que ele se inicia e finda com a remissão à morte do narrador-protagonista. Lê-se no primeiro capítulo: “Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método” (ASSIS, 1961, p. 11). No capítulo “Das negativas”, o “defunto autor” fecha o ciclo das memórias com o balanço de sua história de vida, retornando ciclicamente ao presente da enunciação, isto é, à sua morte: “Entre a morte do Quincas e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro” (ASSIS, 1961: 418). Seja remetendo ao nascimento (O falso mentiroso) ou à morte (Memórias póstumas), em ambos os romances, a mes19.��������������������������������������������������������������������������������� Em estudo onde aborda as repetições da estética naturalista ao longo do sistema literário brasileiro, Flora Sussekind detecta três momentos básicos através dos quais o naturalismo assume formas literárias diversificadas: “Se poderia dizer a respeito do Naturalismo que ele [...] se repete na história da literatura brasileira. E acrescentar: a primeira vez como estudos de temperamento, a segunda como ciclos romanescos memorialistas, a terceira como romances-reportagens. Ou ainda: a primeira vez nas últimas décadas do século passado, a segunda na década de Trinta, a terceira nos anos Setenta (SUSSEKIND, 1984, p. 40 – grifos do autor).Cada uma dessas formas assume respectivamente os seguintes modelos paradigmáticos: o das Ciências Sociais, o das Ciências Econômicas e o das Ciências da Comunicação jornalística.
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ma circularidade e o mesmo saldo devedor: “[...] não conheci o casamento [...] Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (ASSIS, 1961, p. 418). Tanto a narrativa que engata seu fim no começo, via circularidade labiríntica, quanto a trajetória autobiográfica interrompida pela esterilidade apontam, nos dois romancistas em pauta, para a quebra da ordem linear dos acontecimentos. No primeiro caso, rompe-se com a noção de um continuum, de um texto que avança linearmente numa progressão sucessiva de causas e efeitos até chegar-se ao desenlace final. Assume-se, assim, a descontinuidade das memórias ficcionais, que não se encerram no fim da narrativa, mas que estão sempre a recomeçar. No segundo caso, quebra-se o elo de uma cadeia genealógica, asseguradora da hereditariedade (material e genética), da perpetuação da espécie, assim como ocorre também com outros romances de Silviano, em que a tematização da fratura genealógica é um elemento recorrente20.
20. Como numa ciranda memorial a esterilidade cíclica pode ser constatada, no universo ficcional do autor, não apenas no personagem Samuel Carneiro de Souza Aguiar, de O falso mentiroso. Mas igualmente no protagonista do romance De cócoras (1999), Antônio de Albuquerque e Silva, passando por Uma história de família,(1992) cujo narradorprotagonista incide no mesmo problema, até chegar a Walter Ferreira Ramalho, narrador-protagonista do último romance do autor, Heranças (2008), que, por via da fratura hereditária, também dialoga com outro romance de nossa contemporaneidade literária, O leite derramado, de Chico Buarque de Holanda. Este último, fora do círculo autoral, mas não do círculo da esterilidade. De forma similar, em Machado, a esterilidade de Brás Cubas ecoa na de Rubião, de Quincas Borba (1981), que parece ecoar na de Bento Santiago, pelo menos se o leitor deixar-se persuadir pela hipótese do narrador de
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As fraturas identitárias do romance e a narrativa de exaustão Ao longo de O falso mentiroso, a negação dos laços de família pela bastardia ou pela esterilidade desdobra-se numa tripla fratura identitária, intrinsecamente correlata: a fratura familiar, que interrompe a continuidade da linhagem patriarcal oligárquica sustentada na retransmissibilidade sanguínea. A fratura literária das falsas memórias, que desconstrói a forma narrativa da tradição memorialista / autobiográfica, onde aquela identidade é postulada. E, finalmente, entrelaçada a estas, a fratura nacionalista, ou seja, a ruptura com o “instinto de nacionalidade” que permeia nossa tradição literária, e que assume em algumas etapas do processo literário brasileiro a forma de identificação e compromisso do escritor com um projeto de nação. Projeto denunciado nas páginas de O falso mentiroso pela desmitificação do nacionalismo do Estado Novo, motivando acirradas críticas ao processo de industrialização e modernização do
Dom Casmurro(1899), de que Esequiel seria filho de Escobar, não dele. Essa recorrência temática, em que a esterilidade parece estar sempre a recomeçar, interliga espaços romanescos e temporalidades distintas, apontando para uma ampla interdiscursividade, para “um campo fecundo de relações intertextuais” (MIRANDA, 1992, p. 125) a interligar a tessitura da memória no conjunto da prosa do autor mineiro, em diálogo com outras produções literárias que igualmente fraturam o modelo paradigmático da nossa ficção naturalista. Ou por contraste com outras produções literárias, que o reafirmam, caso exemplar dos romances memorialistas inseridos no ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego.
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país no governo Vargas21, um dos interlocutores contextuais do romance22. Dito de outro modo, no circuito labiríntico que conduz tortuosamente o leitor das primeiras às últimas linhas, o romance O falso mentiroso interrompe o ciclo de analogias através das quais a estética naturalista se sustenta ideologicamente sob as máximas “Tal pai, tal filho”; “Tal autor, tal obra”, “Tal Brasil, tal romance”,” Filho de peixe, peixinho é”, onde filiação, paternidade, autoria e nacionalidade se imbricam e complementam numa representação literária
21. Obliquamente o romance dialoga com o ensaio “O intelectual modernista revisitado”, onde o ensaísta tece reflexões críticas acerca do compromisso do intelectual modernista brasileiro com o processo de modernização do país no Estado Novo. 22. Se o romance Em liberdade descortina, mediante o dialogo com Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos, os bastidores da repressão da ditadura do Estado Novo, O falso mentiroso ilumina os seus bastidores econômico-políticos. Focaliza, ironicamente, o processo de industrialização e modernização do país na era Vargas, os caminhos escusos do desenvolvimentismo capitalista e do progresso nacional, representado metonimicamente pelo pai do narrdor, o doutor Eucanaã, cuja indústria de camisinhade-Vênus, situada em São Cristóvão, recebe o “patriótico” e pitoresco nome de “Cacique Indústrias Sanitárias Ltda”. Com a carantona do chefe indígena estampada na caixa, não se sabe se “inspirada em poema de Gonçalves Dias ou romance de José de Alencar” (SANTIAGO, 2004a, p. 118), como registra o narrador, numa ironia ao nacionalismo tupiniquim postiço do empresário. Tão falso quanto o “nacionalismo de fachada do Estado Novo”, traduzido pelo lema do Almirante Barroso: “O Brasil espera que cada um cumpra seu dever” (SANTIAGO, 2004a, p. 110). Tão calcado na ideologia do favor, no “toma lá da cá”, quanto no ufanismo do “em se plantando tudo dá” (SANTIAGO, 2004a, p. 110), numa reatualização irônica da Carta de Pero Vaz de Caminha. A fratura nacionalista do romance se evidencia, sobretudo, nas reflexões igualmente irônicas acerca da política interna e externa da era Vargas, incluindo a Aliança entre Estados Unidos e Brasil no contexto da Segunda Guerra Mundial, fato que favorece o comércio do produto made in Brasil , destinado aos expedicionários (“os recos, os cabos e os sargentos do Brasil. Famosos por suas proezas sexuais [...]” – SANTIAGO, 2004a, p. 116), com o apoio da classe médica e farmacêutica e das forças armadas nacionais.
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documental que atesta o jogo de relações especulares entre patriarcalismo, obra literária e imagem nacional, conforme especifica Flora Sussekind (1984, p. 32)23: Paternidade, autoria e nacionalidade parecem ser [...] coisa que não se discute. São princípios a que se obedece com um pedido de bênção, um elogio da ‘personalidade literária, e um texto documental e de onde estejam ausentes o humor, o fragmento e a ambigüidade. O patriarca costuma funcionar como princípio de identidade para a família, a figura do autor como fundamento e origem das significações de um texto, a nacionalidade, como justificativa e limite às inquietantes ambigüidades e rupturas da ficção.
Ao contrário dessa vertente literária, que busca assegurar a linhagem patriarcal da classe oligárquica, atestando sua legitimidade, em O falso mentiroso, a multiplicidade de versões sobre a possível origem do narrador-protagonista empenha-se em deslegitimar a sua ascendência familiar. Assim, as diferentes narrativas sobre as circunstâncias do seu nascimento e adoção correspondem aos desdobramentos de vários eus legítimos/ilegítimos, originais/cópias e à proliferação de várias figuras paternas e maternas, falsos/ verdadeiros, que o pincel do falsário narrador retratista,
23. Será por acaso que o romance é dedicado a Flora Sussekind?
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especializado em “dissimulação”, “travestimentos”, “fantasia” (SANTIAGO, 2004a, p. 160), esmera-se em retocar, sob diferentes ângulos e perspectivas, ao assumir “vários pais, vários embriões, vários partos, vários falsos mentirosos, várias vidas (SANTIAGO, 2005, p. 182). São pelo menos cinco os painéis/versões, retocados, superpostamente, pelo pintor, buscando retratar/narrar sua origem, sem que ele possa decidir-se por nenhuma delas. As representações pictórico-narrativas produzidas em forma caleidoscópica, mas também como charada/adivinhação, hipóteses, insistem na reiteração do paradoxo estruturador do romance. São, ao mesmo tempo, mentirosas e verdadeiras. Nas várias versões autobiográficas, orfandade, seqüestro, rejeição, adoção, bastardia, genealogias espúrias, ascendências duvidosas, certidões de nascimento forjadas, embustes e imposturas se embaralham a um registro pretensamente confessional e verdadeiro, em que a versão coincidente com os dados biográficos do autor é escamoteada pela fala fingidamente brincalhona do narrador, pela provocação instigante à curiosidade do leitor, em contraste com a revelação, significativamente sumária: Há uma quarta versão. Recuso-me a contar-lhes. É triste. Triste triste. Minha língua coça que coça. Não aguento. Resisto à tentação malsã? Não conto. Conto? Dou uma dica, uma dica só? Rapidinha.
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Na quarta versão, a mãe morre para salvar o filho. Eu, filho órfão, adotado por papai e mamãe, os falsos. (SANTIAGO, 2004a, p. 65).
A dicção irônica, que finge não levar a sério o teor da versão, desloca o tom melodramático e sentimental contido na revelação do segredo da orfandade, estancando, assim, a “dimensão afetiva” da mímesis, a empatia que se estabelece no “comércio amoroso” entre a criação ficcional e os seus personagens. Comércio amoroso que é também um dado necessário ao reconhecimento do produto mimético pelo receptor, na medida em que forja um lastro de correspondência, entre a obra e o seu referente: [...] entre o escritor e seus personagens se estabelece uma espécie de amoroso entendimento. É através deste que se cria o ambiente de paixão a frio. A criação ficcional “imita” o comércio amoroso, mesmo o da paixão, com a diferença de, sendo paixão entre um ente e um projeto de ser, permite-se uma frieza impossível entre os corpos, daí uma possibilidade de conhecimento inexistente na relação amorosa propriamente dita. (COSTA LIMA, 1980, p.240).
Ora, se o leitor identifica traços biográficos do autor justamente nessa última versão sobre a perda materna, diante da qual o texto busca estancar a dimensão afetiva da
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mímesis (como já o identificara nas páginas de O banquete), não se pode esquecer que essa autobiografia se inscreve numa prática de escrita imaginária, na qual a confissão se processa sob o registro da “confecção, para retomarmos o trocadilho de David Jackson, mencionada anteriormente neste ensaio. Aliás, “confecção-pós-moderna”, como acentua o ensaísta. Orientada, portanto, pela “simulação” e pela “desescritura” autobiográfica. Prática na qual o escritor “fadado a repetir experiências do outro, a viver a ficção como filtragem” (SOUZA, In: CUNHA, 2008, p. 45), só pode falar de si, inscrever-se no texto sob o disfarce alheio. Portanto, via ruptura com o pacto autobiográfico, pressupondo uma dissociação entre o eu da autobiografia e o eu ficcional. Inscritas sob o signo do fingimento literário, não há, assim, lugar, nas memórias de O falso mentiroso, como nos demais textos ficcionais do autor, para o discurso da subjetividade plena, para uma compreensão de mímesis como um processo que traduz a “expressão do eu, mas ao contrário a vivência de seu desdobramento” (COSTA LIMA, 1984, p. 69). Produto de um recalque, conforme as lições freudianas, a subjetividade atualiza-se, pois, no romance, por deslocamentos múltiplos, por uma “multiplicidade desconcertante e cambiantes de identidades possíveis” (HALL, 2002, p. 13), pela proliferação e desterritorialização fragmentária dos discursos autobiográficos, conforme depoimento do próprio romancista: 146
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A perda fragmenta e multiplica os fragmentos até a expansão de cada um deles numa minibiografia. A perda articula outras e muitas infâncias discursivas, que nada mais são do que discursos autobiográficos prudentes e sensatos , discursos mentirosos, ficcionais, que por sua vez tornam-se responsáveis por caminhos no vivido que acabam por ter o estatuto verossímil da experiência. (SANTIAGO, 2007, p. 269).
Ecoando no processo mnemônico de O falso mentiroso, tal estatuto verossímil da experiência da perda, possibilita detectar na quarta versão de Samuel o que Lejeune denomina de pacto fantasmático, aquele em que a voz do sujeito da enunciação – a voz autoral, escamoteada sob a fala do narrador-protagonista, – corta oblíqua e longitudinalmente a instância narrativa, numa interpenetração ambígua de vozes e de registros discursivos distintos. A escrita autobiográfica inscreve–se, assim, simultaneamente, no nível factual e no romanesco. Na autobiografia do narrador protagonista e na biografia do sujeito da instância enunciativa. É nesse sentido que pode ser lida ainda uma quinta versão, na qual o registro genealógico do personagem que narra, mais uma vez imiscuindo-se na genealogia do romancista, é descartado como inverossímil: Já que voltei a tocar nas circunstâncias de meu nascimento, adianto. Corre ainda uma quinta versão sobre 147
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elas.Teria nascido em Formiga, cidade do interior de Minas No dia 29 de setembro de 1936. Filho legítimo de Sebastião Santiago e de Noêmia Farnese Santiago. A versão é tão inverossímil, que nunca quis explorá–la. Consistente só a data de nascimento. Cola-se à que foi declarada em cartório pelo doutor Eucanaã e Donana. Diante de padrinhos e testemunhas. (SANTIAGO, 2004a, p. 180).
Tanto na quarta como na quinta versões, essa contaminação discursiva desloca as marcas da experiência vivida para a escrita da vida. Aponta para um processo de “despersonalização do sujeito autobiográfico” que, conferindo um alto grau de ficcionalização ao texto, “neutraliza por completo o tom confessional da escrita artística”, para lermos O falso mentiroso à luz das reflexões tecidas pelo próprio Santiago (2006b, p. 17), a propósito de Água viva, de Clarice Lispector. Reflexões estendidas pelo ensaísta ao processo de composição de outras memórias imaginárias, O amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos, no qual detecta o deslocamento do “eixo da vida do plano do real para o plano da realidade simbolicamente estruturada, dos signos da existência para uma grafia-de-vida”, tal como ocorre no romance de Santiago, ora em estudo. Assim, nas várias hipóteses sobre a genealogia de Samuel, cogita-se não do resgate de uma verdade original, seja ela a do narrador-protagonista ou a da instância da 148
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enunciação biográfica, mas a “verdade da escritura”. Pois, como diz Barthes (1988, p. 69), referindo-se à impossibilidade de se atingir a origem, “o escritor só pode imitar um gesto sempre anterior, jamais original: seu único poder está em mesclar as escrituras , em fazê–las contrariar-se umas pelas outras , de modo a nunca se apoiar em apenas uma delas”. Essa mescla de escrituras, desdobrável numa multiplicidade de “eus” fingidos, termina não por apontar para “a morte do autor”, como defendia o próprio Barthes e os teóricos desconstrutivistas. Termina, sim, por remeter a uma concepção de “sujeito fraturado” que, segundo Costa Lima (2000, p. 84-99) nega, desde Kant, a concepção cartesiana de “sujeito solar” uno e indivizível, Ao contrário desse “sujeito do iluminismo”, controlador de suas representações, “o sujeito fraturado e multiplamente fendido não comanda as representações que acolhe e tampouco os efeitos que nele se processam”. (COSTA LIMA, 2000, p. 324) Atualiza-se, portanto, numa prática escritural que escapa a seu controle. E, por isso mesmo, pode ser contraposta àquelas identificadas por Jameson (2006, p. 25) como “práticas estilísticas do modernismo clássico”, nutridas pela “experiência e ideologia do ‘eu singular’”, solapando aquilo que Stuart Hall (2002, p. 13) denomina de uma “confortadora ‘narrativa do eu”. O solapamento da singularidade do sujeito da enunciação é correlato à transgressão dos contextos históricos, recortados ficcionalmente. Na máquina memorialista do 149
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romance, o nosso passado histórico não é, conforme foi visto ao longo deste ensaio, passivamente resgatado. É produzido ficcionalmente, para que, por meio dessa produção, se possa refletir também acerca dos desmandos, das injustiças e contradições sociais do país, no presente contextual, sem incorrer num registro documental da realidade. Ao contrário, a seleção dos elementos contextuais incorporados à obra são transgredidos pela nova configuração semântica que adquirem no âmbito ficcional, resultando daí, “um espaço de jogo entre os campos de referência e suas distorções no texto” (ISER In: ROCHA,1999, p. 70). Nessa configuração de jogo em aberto, a busca identitária e artística do narrador-protagonista não termina no final do romance24. Está sempre a recomeçar, desdobrando-se infinitamente pelos sucessivos suplementos da leitura que a acompanham em seu duplo labirinto: o labirinto da escrita autobiográfica e o da arte narrativa. Um labirinto que conduz à imagem da biblioteca borgeana, a famosa Biblioteca de Babel. Uma “infinita, “interminável e especular biblioteca, semantizada pela metáfora do ‘universo’ e pela imagem do ‘livro cíclico’” (BORGES, 1976, p. 62). Portanto, uma biblio24. Vale frisar que ao antecipar (e não pospor) a palavra “fim” ao que seria o desfecho da narrativa, ao tornar a narração inconclusa pelos segmentos frasais que prolongam a história para além do índice gráfico de seu término, o texto de Silviano também transgride - a exemplo do que afirma o ensaísta a propósito de O amanuense Belmiro - a teoria benjaminiana e o convite que a arte romanesca transmite ao leitor :o de dar por terminado “o sentido de uma vida” (BENJAMIN, 1986).
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teca labiríntica, que guarda todos os livros num só, Toda a memória do mundo, para utilizar aqui o título do documentário de Alain Resnais (1956) sobre a Biblioteca Nacional, em Paris25. Através da imagética da biblioteca/labirinto, o Leitor de Borges é convidado a compartilhar com o narrador do conto da angustiante constatação: “A certeza de que tudo está escrito nos anula ou fantasmagoriza” (BORGES, 1976, p. 69). Considerando-se a ideia de fantasmagoria borgeana, chega-se, finalmente, a uma outra imagética caracterizadora da tessitura romanesca de O falso mentiroso: a da narrativa de exaustão em contraposição à narrativa naif26.
25. O filme constitui, na verdade, uma releitura da concepção borgeana acerca do esgotamento da escrita, da impossibilidade de narrar na contemporaneidade, do círculo tautológico da linguagem, visto que “a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos [...], ou seja, tudo que é dado expressar em todos os idiomas” (BORGES, 1976, p. 65). 26. Numa releitura de Borges e Resnais, mediada pelas reflexões teóricas de Jonh Barth sobre a exaustão da produção ficcional dos anos 1960, o ensaísta Silviano Santiago (1992, p.34), em texto significativamente intitulado “Toda a memória do mundo”, reafirma: “não há nada de ‘novo’ para ser contado pela novel em nossos dias. Todas as histórias já foram incessantemente narradas”. À indagação do romancista norte-americano sobre como enfrentar o impasse da escrita num contexto em que não se pode mais ignorar a Biblioteca de Babel, o ensaísta responde contrapondo duas modalidades de narrativa: a narativa naïve e a narrativa de exaustão, termo, como ficou claro, tomado de empréstimo a Barth: “A narrativa naïve é aquela que se deixa recobrir pelas aventuras de um “mínimo eu” (Cristopher Lasch) no espaço social e político do cotidiano. O narrador parte da crença de que os materiais de sua própria vida são originais em si e é por isso que os fatos por ele vivenciados merecem o estatuto de uma narrativa; merecem a escrita, o livro e a atenção entusiasmada e emotiva dos leitores. Ao exigir como excepcional a leitura da experiência única de uma vida, essa narrativa abre crédito para o otimismo rebelde do narrador/personagem individualizando os percalços da ação social e política nos nossos dias. É por causa desse otimismo fundamental que o narrador/personagem pode encarar a arte de narrar como ainda possível em nossos dias” (SANTIAGO, 1992, p. 35).
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Em contraste a essa última modalidade, a primeira opta por uma atitude de enfrentamento da fantasmagoria, descartando-se tanto da postura ingênua e inflada de ensimesmamento, quanto do registro otimista, linear e documental dos acontecimentos político-históricos a que o narrador naif, acriticamente, cola-se. Para evitar anular-se, o narrador/leitor da literatura de exaustão envereda pelas trilhas da aventura da leitura e da imaginação: “A biblioteca passa a ser o lugar por excelência da fantasmagoria” (SANTIAGO, 1992, p. 36), a fim de que possa romper o silêncio da tautologia, narrar a sua história, afirmando, paradoxalmente, a “originalidade do [seu] estilo em nada original” (SANTIAGO, 2004a, p. 183). Em resumo, esse “narrador esgotado”27 reitera fantasmagoricamente a noção de que nada mais resta a ser inventado, exceto reproduzir pelo simulacro parricida as marcas discursivas dos vários pais falantes, elidindo as fronteiras de idiomas e nacionalidades, do original e da cópia, do falso e do verdadeiro, numa infinidade de referências intertextuais que cortam longitudinalmente a tecelagem das memórias do narrador-protagonista. E que têm a função de explicitar um dos mecanismos mais férteis da literatura de exaustão: o desvelamento da “mentira romântica “pela “verdade romanesca” (GIRARD, 2009). Nada mais adequado à perspectiva desse
27. Expressão utilizada por Raul Antelo (In Cunha, 2008, p. 80), a partir da leitura do ensaio de Santiago, “Toda a memória do mundo”, que se está aqui comentando.
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Kleyton Ricardo Wanderley Pereira
Mímesis e reescritura em Fradique Mendes Mímesis antiga – entre o céu e a terra
H
á uma pintura do artista da Renascença italiana Rafael Sanzio no Palácio Apostólico, no Vaticano, a Escola de Atenas, que não só representa, como diz o próprio nome, a academia de Platão, mas é a perfeita encarnação do espírito renascentista e simboliza alegoricamente os mais refinados pensamentos que a antiguidade nos legou: estudiosos antigos amigavelmente refletindo e discutindo as formas de pensar a filosofia em si. Quem observar atentamente o 157
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quadro, nem é preciso tanto esforço, verá que, ao centro, estão as figuras mais importantes do pensamento ocidental: Platão e Aristóteles. Do lado esquerdo, o primeiro, idealista, carrega consigo o Timeo, tratado teórico na forma de diálogo onde o autor tece suas especulações sobre a natureza do mundo físico, e aponta com o dedo para o céu das ideias e as inspirações divinas. Ao seu lado estão os chamados filósofos da intuição e da emoção. À direita de seu mestre, por sua vez, o segundo, estende a mão como se indicasse a necessidade de voltar-se para a terra, como se as ideias se encontrassem aqui sob o véu das aparências. Tendo em suas mãos o livro Ética a Nicômaco, está cercado por aqueles que representam nas artes liberais os conhecimentos artísticos e científicos, respectivamente, do trivium, lógica, gramática e retórica, e do quadrivium, aritimética, música, geometria e astronomia. Assim, reunindo as principais figuras do pensamento grego, todas juntas e imortalizadas sob o arco de um pórtico pagão, a Escola de Atenas representa os ideais do espírito renascentista, associando perfeitamente os pensamentos fundadores da civilização ocidental com a fé cristã. Considerando o quadro de Rafael, de maneira alegórica, podemos iniciar nossa discussão sobre a questão da mímesis entre os antigos. Opostos entre si, mestre e discípulo nos mostram, respectivamente o mundo das ideias e das inspirações divinas, de um lado, e o das coisas da terra, do outro, enquanto organicidade do pensamento ocidental. 158
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Pensando a problemática estética a partir do que Costa Lima chama de triângulo da excelência, Platão desenvolveu seu pensamento através da interdependência entre os elementos considerados antropologicamente fundamentais, a saber: a arte, a virtude e a indagação sobre o logos – que correspondem, respectivamente, à estética, a ética e a metafísica. Contribuindo para o pensar filosófico da poesia que subordinou seu entendimento ao preceitos da ética, nessa relação tríade, observamos que tanto arte quanto virtude estão subordinadas ao logos, a Razão, porque só através dela seria possível aproximar-se do mundo das ideias, ou o Hiperurânio. Dessa forma, segundo Costa Lima, o conceito de mímesis em Platão procura excluir toda e qualquer possibilidade do lastro da diferença, uma vez que ela procura imitar a realidade, isto é, ela seria a imitação de uma imitação e, por isso, estaria mais afastada do Ideal. Esse conceito de que a mímesis deveria se dar exclusivamente pela semelhança tem início com os gregos e acompanha o pensamento ocidental até o Renascimento quando foi confundida com imitatio, ou seja, a obra deveria representar a semelhança orgânica do cosmos. Assim nos diz o autor sobre a estética platônica: O pintor é inferior ao carpinteiro porque o pintor pinta a cama que não saberia fazer e o carpinteiro é superior apenas ao pintor porque age em imitação da Ideia.
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Perecível, o mundo é a contrafação das Ideias eternas, fonte perene do que se faz em conformidade, nunca igualada a elas. A relação entre os planos, desde o supremo das Ideias até o inferior do trabalho do artista, se cumpre por meio de semelhanças progressivamente empobrecedoras. O sistema depende da hierarquia criada pela diferença. A diferença é invisível no sistema platônico porque desempenha uma função puramente negativa. Está presente por sua conseqüência: a própria hierarquia. É a mola que dispara, sem que deva ser vista. (COSTA LIMA, 2000, p.301).
Assim, ao interrogar-se sobre a arte e o papel do poeta, Platão procura caracterizar o belo a partir do efeito que a beleza causa. Em Hípias maior, por exemplo, diálogo em que o autor se preocupa com a questão do belo, apesar de definir a Arte como a expressão do belo, uma indefinição não responde ao problema da sua causalidade. Isto apenas será resolvido em outro diálogo, Górgias, em que a causalidade da arte será definida a partir de dois tipos: o das atividades organizadoras que levam ao prazer e ignoram o melhor e o pior; e outras que conhecem o que é bom e o que é mau. Para o filósofo, a arte, por ser enganosa, proporciona um prazer que não contribui para distinguir entre o que é bom e o que é mau, isto é, não contribui para a melhoria do ouvinte. Assim, no dizer de Costa Lima (1973, p.24), “já não se convoca a virtude para, constatando-se a sua proxi160
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midade, justificar a arte, mas sim para, constatando a sua distância, justificar-se a inferioridade da arte”. Permanecem, dessa maneira, os critérios de utilidade e prazer que legaram a Homero, por se afastar da verdade, o apodo de “imitador de imitações”. Isso porque, para Platão, Homero não responderia a nenhum dos requisitos dos quais tão bem falara em suas obras: falara tão bem da guerra, do exército, da administração de estados, mas nunca realmente fizera tais coisas. Em conclusão, os poetas deveriam ser banidos da República. O belo (arte/estética) estaria subordinado ao bem (virtude/ética), norteado pelo logocentrismo, na busca de uma essência. Nesse sentido, para Platão, uma obra de arte tanto seria melhor quanto mais contribuíssem para a melhoria do ouvinte, isto é, para a melhoria de suas virtudes. Para Platão, no entanto, através da sedução, os produtos da imitação artística poderiam levar o espectador a preferi-los aos objetos que podem levar ao conhecimento (Cf. PAPPAS, 1995, p.219), afastando-os da educação ideal, isto é, da Paideia. Sua reflexão sobre a obra de arte não está no interesse pela arte, mas sim no que ela poderia proporcionar ao homem através da linguagem e, sendo assim, de dócil manipulação. No dizer de Costa Lima (1973, p.16), estaria subordinada ao bem comum da comunidade através da Ética, ponto de partida de qualquer obra imitativa, ou seja, no esteio do pensamento platônico, a arte, “a quem os filósofos se esforçavam por 161
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ensinar a utilizá-la”, só interessava na medida em que era útil para o desenvolvimento da virtude e da Ética, ambas definidas pelo poder repressor do logos. Ainda sobre a imitação artística, em sua República, livro X, Platão argumenta que a poesia não só imita a aparência, como também apela às partes piores da alma, devendo, portanto, ser banida da cidade perfeita. Vimos no Livro III que a poesia apresenta as suas características por meio da mímesis, ou seja imitação ou representação (392d). O Livro X acrescentará que a imitação artística é uma imitação da aparência. As coisas imitadas e as más espécies de imitação permanecem as mesmas em ambas as discussões: a poesia, tal como agora existe, imita os seres humanos (393b, c; 395c-396d; 605a,c) mas, na cidade ideal, apenas imitará os melhores deles (396c-397b, 604e, 607a). (PAPPAS, 1995, p.210-1).
Platão afirma que por imitar, o poeta, carecendo de conhecimento e crença justificada, é ignorante quanto ao entendimento de algo, nivelado abaixo do usuário de uma coisa e seu fazedor, isto porque aquele possui o conhecimento empírico e este, por sua vez, a “correta opinião”. Não é a arte per se que desagrada Platão, mas sim sua insubordinação, sua rebeldia, ao não essencial. Dessa maneira, no logocentrismo antropo-etnocêntrico platônico, “só o intelecto, piloto da 162
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alma, pode contemplar a realidade, que, em si, é intangível e à qual se refere o saber autêntico” (COSTA LIMA, 1973, p.26). Aristóteles, por sua vez, vai na contramão de seu mentor e põe em suspensão o juízo entre falso e verdadeiro à respeito da arte. Enquanto Platão subordinou a poesia à Ética e ambas ao desejo de, pelo logos, a possibilidade de acesso ao divino, seu mais famoso discípulo, apontando para o chão, interrompe o trânsito entre o humano e o divino. Em seu Ética para Nicômaco ele já diferencia, ao contrário de Platão, os campos da virtude e da estética: “[...] as obras de arte têm em si mesmas seu mérito intrínseco. Mas no caso das virtudes não basta para que elas existam que o homem opere de maneira justa e sóbria, é preciso que o que opera saiba como opera” (apud COSTA LIMA, 1973, p.51). Para Aristóteles, a arte era epistemologicamente autônoma, não quanto aos interesses da comunidade em face ao que é virtude, ao que é Ética. Em outro livro, complementar ao seu tratado de Ética, A Poética, Aristóteles identifica as artes como miméticas, diferenciando-se entre si apenas pelos meios, objetos de imitação e formas. Assim, o autor chega à conclusão de que não só (a) o ato de imitar é inerente ao homem, como também (b) a imitação causa prazer. Prazer este que tem um caráter terapêutico e protetor, uma vez que estabelece uma distância frente ao real, de modo que mesmo “coisas cuja visão é penosa temos prazer em contemplar a imagem 163
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quanto mais perfeita; por exemplo, as formas dos bichos mais desprezíveis e dos cadáveres” (ARISTÓTELES, 1997, p.22). Outra diferença fundamental entre mestre e discípulo é o afastamento da epistemologia realista e o juízo da verdade. Já vimos que em Aristóteles a arte não se subordina à virtude, muito menos ao logocentrismo platônico; além disso, ele introduz o conceito de verossimilhança e, assim, a mimese adquire sua autonomia frente à realidade exterior. Segundo Lígia Militz da Costa (1992, p.6), Aristóteles enalteceu “o valor da arte justamente pela autonomia do processo mimético face à verdade preestabelecida” e, assim, “transformou a obra numa produção subjetiva e carente de empenho existencial e alterou, com isso, a relação que ela apresentava com a sacralidade original”, isto é, com a ideia platônica de divino. Para a autora, com Aristóteles a arte passa a ter uma concepção propriamente estética, não significando imitação da physis, mas fornecendo possíveis interpretações do real através de ações, pensamente e palavras, ou seja, a mímesis é aquilo que “poderia ser”. Isso porque, como nos diz Costa Lima (1973, p.53), “entre a realidade e a mimese se interpõe a seleção daquela. Daí, imediatamente, passa ao enlace entre possibilidade, verossimilhança e necessidade. [...] Por isso o poeta e a historiador se distinguem”. Em Aristóteles, a verossimilhança se estabelecerá em dois parâmetros distintos: externo e interno. O primeiro, considerado de ordem inferior, utiliza um elemento já co164
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nhecido pelo receptor, o que de alguma maneira facilitará sua aceitação. Daí o exemplo que o autor dá das referências às famílias ilustres pelos trágicos. O segundo, ao contrário, se apóia tão só na necessidade de certo comportamento dentro do encaminhamento da fábula. No entanto, apesar das diferenças, elas não se excluem; tanto uma quanto a outra se apóiam no reconhecimento por parte dos destinatários. Na externa, de maneira mais cômoda; na interna, de acordo com o grau de novidade dos recursos sobre os quais a verossimilhança é estruturada. Assim, a verossimilhança, portanto, sempre resulta de um cálculo sobre a possibilidade de real contida pelo texto e sua afirmação depende menos da obra que do juízo exercido pelo destinatário. A obra por si não se descobre verossímil ou não. Este caráter lhe é concedido de acordo com o grau de redundância que contém. (COSTA LIMA, 1973, p.56).
O certo é que é possível vermos uma radical mudança e avanço em Aristóteles quanto ao pensamento sobre a mímesis da arte. Isso porque ele desloca a finalidade da arte da subordinação aos preceitos da virtude para o prazer estético através da catarse. Para Aristóteles, ao contrário de Platão, a ética é o ponto de chegada, não de partida. Além disso, ela é a imitação de uma ação que se distingue entre si conforme os meios, os objetos e as maneiras, caracterizando uma primeira 165
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teoria dos gêneros literários. Assim, tanto tragédia, quanto epopeia e ditirambo são imitações; mas que se distinguem entre si de acordo com as formas com que imitam. Apesar disso, Aristóteles provoca um retrocesso quanto a Platão ao hierarquizar as formas do gênero dramático. Para ele, apenas a tragédia, superior à comédia por imitar as ações dos únicos personagens dignos de serem representados, conferia efeito catártico à plateia. Reconsiderando a mímesis: representação e produção A mímesis antiga fundava-se no lastro de semelhança e diferença com a physis com o predomínio do primeiro vetor sobre o segundo. Ao retomar seus conceitos desde a antiguidade, passando por filósofos como Hegel e Kant, e filólogos como Auerbach, até chegar nos dias atuais, Costa Lima considera que ela supõe algo antes de si a que se amolda, ou seja, um análogo, uma concepção de realidade; algo que também sobrevive mesmo quando o produto mimético valoriza o oposto do que seria destacável segundo os valores dominantes. Assim, toda mímesis está pautada na realidade, seja para confirmar as insígnias das representações sociais, ou para negá-las. Ao repensar a mímesis, Costa Lima procura abordá-la não apenas pelo lastro da diferença, mas também pela seme-
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lhança, isto é, uma correspondência, não necessariamente com a physis, mas com a maneira como a sociedade concebe simbolicamente a natureza (Cf. COSTA LIMA, 2000). Assim, a mímesis “ancora o texto ficcional nos parâmetros culturais de uma sociedade” (COSTA, 2010, p.47). A partir desses pressupostos de aproximação e afastamento, norteado pela Crítica da Faculdade de Juízo kantiana e pelas noções moderna de sujeito fraturado e de representação-efeito, Costa Lima propõe uma distinção entre duas formas de mímema: a mímesis de representação e a mímesis de produção. Sobre esta, o autor destaca que ela provoca o alargamento do real, a partir mesmo de seu déficit anterior, um produto rebelde às representações, o “real das formas possíveis”, no dizer de Gaston Bachelard. Através de uma espécie de estranhamento1, transgride o horizonte de expectativas do destinatário. A mímesis deixa de corresponder a uma representação-efeito, previsível pela própria tradição poética [...] o diferencial da mímesis da produção está na transformação das referências com que a obra é recebida em referências que nela mesma se constituem, transformação portanto efetuada pela própria linguagem, ajudada pela memória do leitor que a atualiza. (COSTA LIMA, 2000, p.321). 1. Não confundir, entretanto, com o conceito de estranhamento proposto pelos formalistas russos que se esgotava apenas no príon, isto é, no processo ou procedimento.
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Quanto à outra, a de representação, mais usual, corresponde à transposição para o meio poético de seu correlato “real”, prévia representação do que é tomado como realidade. Em outras palavras, o horizonte de expectativas do leitor é que orienta a decodificação da obra. Ao fazer tais movimentos, no entanto, a mímesis, inseparável do mundo, não desvela a verdade, mas produz verdades, afastando-se do conceito clássico dos gregos, bem como do imitatio renascentista. Pelo recorte que faz, ela tira do mundo das representações para, logo após, dar-lhe algo que ele não tinha. Esse vazio, no entanto, precisará ser preenchido pelos receptores da obra de arte, isto é, preenchidos pela ‘imaginação’ do leitor. Aproximações entre Mímesis e Ficção Expandindo o conceito de fictício além do quadro das obras literárias, em sua teoria, Wolfgang Iser substitui a dicotomia entre realidade e ficção pela tríade real-fictícioimaginário, esvaziando-se, assim, a questão do realismo. Em seu mais famoso texto teórico, “Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional”, o teórico argumenta que a ficção literária incorpora parcelas da realidade sem definir em que grau e, por isso, o ato de fingir, do “como se” ou do aristotélico “que poderia ter sido”, repete uma parcela da realidade, sem que sua finalidade seja esgotar-se em sua apresentação, 168
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pois dela se apropria para transgredir o princípio da realidade. Isso porque o próprio ato de fingir implica uma dupla transgressão, ou seja, “irrealização do real e o tornar-se real do imaginário” (ISER apud LIMA, 2006, p.283). Reformulação do mundo através de sua pragmática própria, pois exige do leitor romper com os automatismos das ações cotidianas e, não se vestindo de um exuberante ruído, se faça verossímil – a verossimilhança “se estabelece aos poucos com a progressiva familiaridade com o que antes nos parecia estranho, esdrúxulo, sem sentido” (2006, p.285). Para Iser, os atos de fingir são estruturados em três operações: seleção, combinação e desnudamento da ficção. A primeira está imediatamente relacionada à transgressão da realidade, “afeta os ‘campos de referência’ do mundo sociocultural, deles retirando suas ‘funções reguladoras’ e, desautomatizando-os, os converte em ‘objeto da percepção’” (Idem). Aqui os conceitos de Imaginário e Vazio serão fundamentais uma vez naquele “a desautomatização que provoca o realce perceptivo é presidida pelo agenciamento do imaginário, tanto mais forte porque sujeito à transgressão de seu modo usual de operar” (Idem); e “para que o vazio tenha potência que lhe reconhecemos, será necessário que o receptor leve a cabo e atualize a transgressão do caráter informe do imaginário” (2006, p.286). A segunda, por sua vez, é responsável pela combinação dos elementos textuais, ou seja, o significado lexical, mundo 169
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introduzido no texto, esquemas de organização das personagens e suas ações. Para Costa Lima (2006, p.288), essa transgressão se dá também pela “manipulação lexical e pelos esquemas que presidem a escolha de tipos de personagens e as ações que cumprem. Em suma, o texto é algo que se origina de um mundo irrealizado, i.e., não reduplicado, que, entretanto, pela transgressão do caráter difuso do imaginário, assume a aparência de realidade”. Por fim, o desnudamento da ficção a expõe como uma representação da realidade. Sinal este estabelecido no “contrato” entre autor e leitor e que comprova o discurso encenado e que é oriundo de “convenções determinadas, historicamente variadas, de que o autor e o público compartilham” (ISER, 2002, p.970). É por causa do desnudamento que o texto ficcional posiciona o leitor em suspensão entre o mundo real e o mundo representado, criando entre eles o contraste, induzindo ao “como se”. No entanto, Iser e Costa Lima se opõem entre si com relação ao conceito de mímesis. Para o teórico alemão, a mímesis tira proveito do sema da semelhança e seria sinônimo de imitatio, isto é, cópia do imitado. Por sua vez, Costa Lima (2006, p.291), reconduz o pensamento sobre a mímesis para a tensão entre semelhança e diferença com a predominância, na arte, do segundo vetor. Isto porque a semelhança necessária da mímesis não é reduplicadora, mas sim orienta a recepção da obra para um lastro mínimo de contato com o mundo. 170
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[...] em vez de imitatio, a mímesis supõe [...] a seleção de aspectos da realidade, que desorganiza a representação de mundo, seja porque não é sua repetição, seja porque não obedece a seus campos de referência. Seu mecanismo constitutivo é, portanto, semelhante ao da ficção. Sua diferença está em que a mímesis se cumpre em face de um certo outro, i.e., uma certa sociedade, ao passo que a descrição do mecanismo da ficção não necessita chamar a atenção para a sociedade, de que tematiza apenas determinadas parcelas, dandolhe outra configuração. A mímesis fixa a ancoragem do ato ficcional no interior de um quadro de usos e valores e, portanto, de referências vigentes em uma certa sociedade. Seu estudo, por conseguinte, ganha em concreção quando contrastamos os elementos que seleciona com a função que eles têm na sociedade de que a obra ficcional os tomou. Desse modo, sua inter-relação com o conhecimento do ficcional é vantajosa para ambas as partes: da parte da mímesis, sua articulação com o ficcional estorva a manutenção da prenoção do imitativo; da parte da ficção, sai abordagem impede que se encerre no próprio objeto sobre o qual reflete, ou que seu praticante seja forçado a entender a realidade como pura construção, a que o ficcional ofereceria uma (inconsequente) alternativa.
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O Cenáculo, Fradique Mendes e o alter-ego queirosiano Do período marcado por inúmeras transformações e instabilidades sócio-político-econômicas ligadas ao préindustrialismo, na segunda metade do século XIX, em Portugal, nascerá a inquieta geração de 70. No entanto, o cenário sociocultural do país é descrito por Álvaro Cardoso: O tédio invadia a capital e contaminava novos e velhos. O baixo nível cultural era mascarado por uma imitação grotesca da vida nos grandes centros mundanos europeus – imitação, antes de mais, de Paris, de que o Chiado é uma ridícula amostra. [...] O pretenso progresso, portanto, em nada servia nem a cultura nem, de uma maneira geral, o desenvolvimento social e a vitalidade política do país. O progresso, aliás, foi uma das coisas mais paradoxalmente atacadas por essa Geração de 70, que contra este ambiente de modorra e de degradação se revolta em nome de uma dinâmica da história à qual o progresso, com os seus lados positivos e os seus lados negativos, está inevitavelmente ligado. (MACHADO, 1986, p.20).
Da agitação ideológica de inspiração socialista e utópica, no último suspiro do Romantismo português, nascerá a inquieta Geração de 70 – ideologia esta que aos poucos
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dará lugar à “aristocracia iluminada” dos Vencidos da Vida, renunciando a ação política e ideológica do início do grupo. O Cenáculo foi o nome dado a um grupo de jovens intelectuais da boêmia coimbrã, a princípio, ao qual, posteriormente, se reuniram estudantes da Universidade de Coimbra para discutir assuntos de sua época e que envolviam política, artes, ciência, sociedade. O grupo teve dois momentos: um mais boêmio-anárquico, mais preocupado em insultar as instituições do período da regeneração portuguesa2, altura em que foi criado o personagem Fradique Mendes, poeta satânico, próximo ao estilo baudelairiano, excêntrico, culto e de espírito aventureiro que sempre estava a par das novidades da ciência de sua época; outro, marcado pelo ingresso dos jovens acadêmicos de Coimbra, dentre eles Antero de Quental, fase marcada pelo projeto de realização das Conferências Democráticas do Cassino Lisbonense. Após o desfecho do grupo, Eça de Queiroz decide tomar as rédeas de sua criação e procura conferir-lhe uma nova alma através do postumamente
2. O período conhecido como Regeneração em Portugal é iniciado no ano de 1851pela insurreição militar liderada pelo Marechal Saldanha contra o então ministro Costa Cabral. Com essa mudança, Portugal passaria a acompanhar o desenvolvimento dos outros países da Europa do ponto de vista, econômico, social e ideológico, recuperando o atraso acumulado. A aspiração regeneradora impulsionaria, mais tarde, movimentos como Vida Nova (1885), Republicanismo (1910) e Estado Novo (1933). No entanto, esse processo entraria em declínio ao acumular dívidas externas e medidas fiscais que o impopularizaram, determinando a ascensão dos reformistas ao poder, em 1868, pela revolta da Janeirinha.
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publicado Correspondências do Fradique Mendes. A obra é composta de duas partes onde na primeira, chamada de ‘Memórias e Notas’ constrói, à sua maneira, uma identidade transferencial para o Fradique, uma especial de alter-ego; e, finalmente, uma segunda, destinada às correspondências pessoais de Fradique com diversas pessoas de seu círculo de amizade. Ao revelar ao amigo Oliveira Martins seu Fradique Mendes, Eça escreve: “Este novo Fradique que eu revelo é diferente — verdadeiro grande homem, pensador original, temperamento inclinado às ações fortes, alma requintada e sensível... Enfim, o diabo!”. O romance epistolar inicia-se com uma longa biografia, mais longa até do que as cartas, escrita em primeira pessoa. A educação de Fradique aponta para uma formação ao mesmo tempo revolucionária, culta e erudita, a fim de formar um caráter robusto do espírito humano da segunda metade do século XIX, além de apontar sua ascendência aristocrática e o espírito aventureiro que o acompanhará por D. Angelina Fradique, velha estouvada, erudita e exótica que colecionava aves empalhadas, traduzia Klopstock e perpetuamente sofria dos ‘dardos de Amor’. A sua primeira educação fora singularmente emaranhada: o capelão de D. Angelina, antigo frade beneditino, ensinou-lhe o latim, a doutrina, o horror à Maçonaria e outros princípios sólidos; depois, um coronel francês, duro jacobino que se batera em 1830 174
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na barricada de St Merry, veio abalar estes alicerces espirituais, fazendo traduzir ao rapaz a Pucelle de Voltaire e a Declaração dos Direitos do Homem; e finalmente um alemão, que ajudara D. Angelina a enfardelar Klopstock na vernaculidade de Filinto Elísio, e se dizia parente de Emanuel Kant, completou a confusão, iniciando Carlos, ainda antes de lhe nascer o buço, na Crítica da razão pura e na heterodoxia metafísica dos professores de Tubinga. Felizmente Calos já então gastava longos dias a cavalo pelos campos, com a sua matilha de galgos; e da anemia que lhe teriam causado as abstrações do raciocínio, salvou-o o sopro fresco dos montados e a natural pureza dos regatos em que bebia. (QUEIROZ, 1900, p.10-11).
É certo que este dândi representa a personificação simbólica de uma elite intelectual descontente com a vulgaridade de uma nação em declínio, evidente nas sátiras e críticas que o próprio Fradique, descontente com a decadência de Portugal, faz nas suas cartas: o apego à religiosidade, a vacuidade do espírito político de alguns parlamentares, bem como certos tipos capitalistas, todos vinculados e dependentes do estado. Para além de um grande desbravador das culturas e símbolo universal da simpatia e erudição europeias, Fradique era um grande poeta notadamente moderno, ao gosto dos poetas malditos da França do início do século XX. Eça, em
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seus comentários com o amigo, parece-me bastante maravilhado com a imagem que ele cria do Fradique — transferindo para o amigo as características nas quais o próprio Eça acreditava estar o verdadeiro espírito do humanismo europeu. Apesar disso, Oliveira Martins e Carlos Mayer comungavam da ideia de que Fradique não utilizava bem seus talentos, isto é, que apesar de ser o homem mais interessante do século XIX, coragem, amor do mistério, paixão das viagens, mistura de instintos romanescos e razão exata, “falta-lhe na vida um fim sério e supremo, que estas qualidades, em si excelentes, concorressem a realizar”, um gênio com escritos (apud MÓNICA, 2001, p.379). Outra crítica também bastante contundente está em Os Gatos, de Fialho de Almeida. Aqui o escritor criou um narrador e vários personagens que dialogam entre si. Num desses diálogos, alguém pergunta quem terá sido o personagem Fradique Medes, e a resposta vem da seguinte maneira: A condensação, num tipo de caixeiro, das ideias, das apreciações literárias e das pedanterias juvenis dos homens do Cenáculo, que, envelhecendo, e chegando a cargos oficiais, deram a filarmônica dos vencidos da vida. Fradique é uma espécie de Ramalho ortigão, que, tendo lido todos os livros, visto todos os homens, descamba a dizer asneiras sobre as coisas que viu e percorreu. (apud MÓNICA, 2001, p.388-9).
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Salvo os comentários mordazes de Fialho, as cartas do Fradique Mendes mostram passagens interessantes, com tipos caricaturais que ficariam para a posteridade na literatura portuguesa: Pacheco, político que alcançou a Presidência do Conselho sem nunca ter tido uma ideia original; o padre Salgueiro, típico padre lisboeta que, diferentemente do Padre Amaro, fora moldado no contato com os políticos e ignorante em Teologia. Em outro momento do romance, ainda em suas memórias e notas, ao perguntar ao Fradique sobre suas experiências na África, este responde: Todas estas coisas me prendiam irresistivelmente, sobretudo pelos traços de vida e de natureza africana, com que vinham iluminadas e sorrindo, seduzido: — Fradique! por que não escreve você toda essa sua viagem à África? Era a vez primeira que eu sugeria ao meu amigo a ideia de compor um livro. Ele ergueu a face para mim com tanto espanto, como se eu lhe propusesse marchar descalço através da noite tormentosa, até aos bosques de Marly. Depois, atirando a cigarette para o lume, murmurou com lentidão e melancolia: — Para quê?... Não vi nada na África, que os outros não tivessem já visto. E como eu lhe observasse que vira talvez dum modo diferente e superior; que nem todos os dias um homem
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educado pela filosofia, e saturado de erudição, faz a travessia da África; e que em ciência uma só verdade necessita mil experimentadores — Fradique quase se impacientou: — Não! Não tenho sobre a África, nem sobre coisa alguma neste Mundo, conclusões que, por alterarem o curso do pensar contemporâneo, valesse a pena registrar... Só podia apresentar uma série de impressões, de paisagens. E então pior! Porque o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intelectual, ou reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever! (QUEIROZ, 1900, p.113-5).
Ao ser proposto pelo próprio Eça, segundo o mesmo comenta em suas “memórias e notas”, a escrever sobre suas experiências no continente africano, suas viagens e impressões que conseguiu, com toda sua fina notação e ‘saturada erudição’, Fradique escolhe nada acrescentar ao que já havia sido escrito não apenas sobre a África, mas sobre qualquer coisa no Mundo, por, segundo ele, nada haver que possa alterar o “curso do pensamento contemporâneo”. Os únicos acréscimos que poderia apresentar seriam uma “série de impressões, de paisagens”. Sendo assim, suas impressões sobre a África ficam tão obscuras quanto o título que o continente herdou da Europa, isto é, o continente negro, em especial as impressões sobre o elemento humano que passam ao
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largo aos olhos do Fradique que, como todos os viajantes e desbravadores europeus, exotizavam o desconhecido com uma autoridade discursiva única e inquestionável. O outro Fradique: do eurocentrismo queirosiano ao relativismo identitário Tanto homenageando — segundo o próprio autor — quanto se contrapondo aos Fradiques anteriores, José Eduardo Agualusa publica, em 1997, Nação Crioula: as correspondências secretas do Fradique Mendes, revelando-nos aquilo que ficou oculto nas experiências do mesmo-outro Fradique na obra de Eça, o não-dito, a saber, as experiências do ‘último português do século’, ‘da velha cepa de Cabral, Camões e Fernão Mendes Pinto’, em terras africanas e brasileiras. José Eduardo Agualusa se inscreve no grupo de escritores africanos descendentes de portugueses que surgiram durante o pós-colonialismo. Sua obra é marcada pela metaficção historiográfica, por ser auto-reflexiva e se apropriar de maneira crítica dos acontecimentos que marcaram a história da independência africana frente ao colonialismo europeu. Nação Crioula: A correspondência secreta do Fradique Mendes, seu terceiro romance, foi publicado em 1997. Assim como em Eça de Queiroz, o livro do angolano também está dividida em dois relatos: primeiro, as cartas do Fradique Mendes aos familiares e amigos, dentre eles o próprio Eça 179
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e a Madame de Jouarre, personagem presente no primeiro Fradique; segundo, a carta de Ana Olímpia, africana esposa do Fradique — espécie de união/conciliação entre o pensamento dos continentes Africano e Europeu — ao amigo Eça. As cartas datam de 1868, data em que Fradique aporta em África pela primeira vez, mais especificamente em Luanda, Angola, ao ano de sua morte, segundo a biografia queirosiana, em 1888. O que observamos nesse romance epistolar é que, ao contrário do primeiro, a personalidade do “último português do século” vai ao poucos mudando sua visão etnocêntrica. Na medida em que vai adentrando e, por assim dizer, melhor conhecendo outras culturas, Fradique vai também transformando-se de cosmopolita para, em princípio, uma espécie de “relativista cultural”: E qual a diferença, afinal, entre um manipanso cravejado de duros pregos e a estatueta de um homem pregado na cruz? Antes de forçar um Africano a trocar as peles de leopardo por uma casaca de Poole, ou calçar uma botinas do Malmstrom, seria melhor procurar compreender o mundo em que ele vive e sua filosofia. (1997, p.17).
Assim, o lugar de (re)encontro e reconciliação de Fradique Mendes torna-se a pessoa de Ana Olímpia, a qual me parece ser a síntese-sempre-por-fazer das culturas africana 180
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e europeia. Além de estudar toda a tradição clássica da intelectualidade europeia, Ana Olímpia “(...) estuda com idêntico interesse o passado de seu próprio povo, recolhe lendas e provérbios de várias nações do Angola, e prepara mesmo um dicionário de português-quimbundu (...) e os sobas e seus macotas aconselham-se com ela” (1997, p.39). Apesar de “ferver em fogo lento” e, mesmo assim, continuar sendo “exteriormente o mesmo cavalheiro sério”, Fradique é levado a vivencializar, no exílio, o sofrimento e as dores daqueles que perdem suas raízes, suas origens fixas, e, através do desenraizamento violento, um rapto do filho de sua mãe-terra. O Nação Crioula, nome do último barco negreiro que segue rumo ao Brasil, torna-se, nesse sentido, não apenas a única possibilidade de sobrevivência de Fradique e Ana Olímpia, mas também um projeto de identidade crioula nascida das misturas na entre-passagem África-Brasil, mediada pela presença portuguesa (n)entre elas. É na travessia que Fradique aprende, nas palavras de um velho soba chamado Cornélio, que a volta para casa, para a terra santa e prometida, jamais será “à procura dos outros”, mas sim uma procura de si mesmo. Essa procura transcende a noção de fronteiras e de geografias e configurase tanto num lugar mítico do desejo, um não-lugar; quanto numa experiência vivida de uma localidade (Cf. BRAH, 1996, p.178-210), rompendo com a visão etnocêntrica do seu personagem homônimo. 181
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Aderindo às lutas antiescravistas, Fradique casa-se com Ana Olímpia e no resultado dessa união, Sophia, criança esta que é seu futuro e também razão de seu passado, como o próprio personagem relata em carta a Madame de Jouarre (Cf. AGUALUSA, 1997, p.131). Durante um encontro com Eça de Queiroz, relatado em carta a Ana Olímpia, Fradique descreve as mudanças que observara, junto ao amigo, em Portugal, apontando para uma perspectiva distinta do primeiro Fradique: Não encontrou sinais da heróica pátria de Camões nem do Rossio nem do Chiado, e então, quase descrente, lembrou-me da Mouraria e da taverna. Fomos os dois, e ali encontramos realmente Portugal, sentado entre vadios e varinas, cantando o fado, cheirando brutalmente a alho e a suor. Veio o bacalhau, o esplêndido, com o grão-de-bico, os pimentos, a salsa fresca, e nós calamo-nos para celebrar tão grande momento. Saímos já passava da meia-noite, exaustos mas refeitos, arrotando a Pátria, e um pouco tontos porque o tinto era ótpimo. (1997, p.111-2).
Aquele velho espírito de restauração do nacionalismo português que inspirou os jovens da geração de 70 dá lugar à desilusão e à ironia, uma vez que o verdadeiro Portugal encontrava-se “sentado entre vadios e varinas”. Aqui ficam evidentes os motivos pelos quais, na última carta de Fradique
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Mendes, datada de Outubro de 1888, endereçada a Eça de Queiroz, ele se recusa a escrever para a revista do amigo um artigo intitulado “A Situação Actual de Portugal em África” e, explicitando seus motivos, levanta críticas quanto ao imperialismo português em África. Nós, Portugueses, estamos em África por esquecimento: esquecimento do nosso governo e esquecimento dos governos das grandes potências. [...] O meu silêncio, portanto, é patriótico. Se permanecermos quietos e calados pode ser que o mundo, ignorando que não estamos no Congo, na Zambézia ou na Guiné, nos deixe continuar a não estar lá. (1997, p.131).
Deslocada de sua posição hegemônica, o grande império português agora se esconde das grandes potências e assume sua decadência, bem como sua pobreza econômica, identificando-se com suas ex-colônias, às quais sempre esteve ligado sócio-histórico e culturalmente. Assim nos diz o próprio Fradique: Para construir uma África portuguesa seria necessário que Portugal se fizesse africano. [...] Estamos em África, na América e no Oriente pelo mesmo motivo porque os fungos se alastram e os coelhos copulam — porque no íntimo sabemos (o nosso sangue sabe-o) que colonizar é sobreviver! [...] Todo ser vivo é imperialista. Viver é colonizar. (1997, p.133). 183
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Conclusão Com este trabalho, procuramos, a partir da articulação entre a teoria da mímesis de Costa Lima e os atos de fingir de Wolfgang Iser, analisar a maneira como o escritor angolano José Eduardo Agualusa, em seu romance Nação Crioula, não só tece uma crítica à sociedade escravocrata do século XIX, como retoma o personagem queirosiano Fradique Mendes a fim de transgredir com o cosmopolitismo eurocêntrico inscrito no mundo imperial da segunda metade do século XIX para reposicioná-lo no mundo pós-colonial, extra-europeu, dos séculos XX e XXI. Admirador de Eça de Queiroz, um dos maiores romancistas da Língua Portuguesa, Agualusa estabelece um jogo entre a ficção e a história, apontando-nos as possibilidades de leitura através da reinvenção ficcional. Tanto história quanto ficção se confundem a todo momento no romance. Mas ambas acabam por deixar lacunas que só podem ser preenchidas a partir do “imaginário” do leitor. Assim, procurando ocupar os vazios cronológicos e geográficos deixados na biografia de Fradique Mendes criada por Eça, Agualusa procura explorar os silêncios discursivos da ficção quieirosiana. Na errância de suas aventuras entre “águas lusas”, o novo Fradique Mendes escreve para si uma outra história: o não-dito calado pelo humanismo hegemônico de Eça, visão eurocêntrica. Agualusa procura, ao 184
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apropriar-se do mito literário criado por Eça, não só ocupar os vazios cronológicos e espaciais deixados na biografia de Fradique, mas também, transgredindo edipianamente o autor e o contexto lusófono do século XIX, explorar as diferenças que compõem o cosmopolitismo não mais de um ethos universal, como queria Eça, mas de um ethos localizado espaçotemporalmente e ligado à crioulização do mundo lusófono. Referências AGUALUSA, José Eduardo. Nação crioula: a correspondência secreta do Fradique Mendes. 2.ed. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. ARISTÓTELES; HORÁCIO; LONGINO. A poética clássica. São Paulo: Cultrix, 1997. BRAH, Avtar. Cartographies of diaspora: contesting identities. London: Routledge, 1996. COSTA, Lígia Militz da. A poética de Aristóteles: mimese e verossimilhança. São Paulo: Ática, 1992. COSTA LIMA, Luiz. A problemática estética. In.: Estruturalismo e teoria da literatura. Petrópolis: Vozes, 1973. p.13-34. ______. A estética aristotélica da suspensão do juízo. In.: Estruturalismo e teoria da literatura. Petrópolis: Vozes, 1973. p.50-59. ______. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. ______. Mímesis e modernidade: formas das sombras. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. ______. Um instante com Wolfgang Iser. In.: História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.278-291. HUA, Anh. “Diaspora and cultural memory”. In.: ADNEW, Vijay (Org.). Diaspora, memory and identity: a search for home. Toronto: University of Toronto Press, 2005. pp. 191-208.
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O
romance São Bernardo é construído por um narrador autodiegético que demonstra ter uma personalidade cindida. Paulo Honório, um fazendeiro extremamente pragmático, deseja cumprir uma tarefa que não corresponde ao que até então havia caracterizado a sua personalidade. O seu intento é o de escrever a própria história e, para cumpri-lo, ele passa a dividir o trabalho entre os seus auxiliares. O padre ficaria com as citações latinas, o advogado se encarregaria da pontuação e da sintaxe, ao 187
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jornalista caberia a parte literária, e o protagonista traçaria o plano, colocaria alguns rudimentos de agricultura na história, responsabilizar-se-ia pelas finanças, e teria o direito de colocar o seu nome na capa. Finda a empreitada, bastava comprar alguns elogios no jornal, e se venderia um milheiro de livros. Criar uma obra literária, a julgar pelas atitudes do narrador, seria similar à criação de gado ou ao plantio de algodão. Não por acaso, o plano inicial de composição do livro não dá certo. De todos os que ajudariam na primeira empreitada, restava apenas o redator do jornal O cruzeiro, Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, que segundo o narrador era um “periodista de boa índole e que escreve o que lhe mandam” (RAMOS, 2001, p. 6). Gondim seria, praticamente, o ghost writer da biografia de Paulo Honório, fato que faria com que a narrativa se construísse de forma absolutamente ajustada com a expectativa geral criada pela obra. É nesse momento que a verossimilhança do romance torna-se desviante e percebemos um narrador que, apesar do seu utilitarismo, não deseja simplesmente vender livros e alimentar a própria vaidade através de uma autobiografia qualquer. Paulo Honório, ao ver os primeiros resultados do trabalho de Gondim, reclama da linguagem utilizada, acha ela pernóstica, pouco coloquial, cheia de besteiras. Mas por que ele pensaria assim? O que faria com que um homem utilitário ao extremo se distanciasse
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tão fortemente do caminho inicial que a sua personalidade indicava ser a alternativa mais lógica a seguir? Nas perguntas que esboçamos está a problemática central do romance: a de um personagem que só pode pensar sobre a própria vida desde que consiga se distanciar de si mesmo. O Paulo Honório autor de um livro de memórias se constrói apenas na medida em que se opõe ao fazendeiro rude e opressor que a narrativa revela para nós leitores. O homem que subjugava os camponeses e funcionários em nome da modernização do latifúndio, ao se constituir como escritor da própria vida, percebe-se como monstruoso. A reflexão o leva a ter um contato angustiante e cindido consigo mesmo e com o próprio passado. Se a partir das peripécias do protagonista, o que se verifica é a configuração de uma identidade narrativa ajustada às representações hegemônicas do final da década de 1920, em que a permanência do mandonismo local coexistia com novas formas de violência simbólica advindas do capitalismo, a necessidade de narrar-se instaura em Paulo Honório a diferença. Por ter que lidar com vicissitudes que não podiam se acrescentar a uma vida que se queria uniforme (o suicídio da mulher e a falência da empresa agrícola) , o protagonista procura no ato de narrar uma forma de reconfigurar a própria vida. Essa tentativa, porém, só se cumpre na medida em que revela um narrador que se divide entre a “identidade
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imutável do idem, do mesmo, e a identidade móvel do ipse, do si” (Ricoeur, 2004, p. 116). Trata-se de um narrador que se encontra numa situação de empasse entre um passado que só pode continuar a se cumprir como memória, e um futuro que existe apenas como promessa. Não é gratuitamente que a figura de um narrador dividido surja logo na primeira frase da narrativa e se estenda pelos seus dois primeiros capítulos. Diz Paulo Honório: “Antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho” (RAMOS, 2001, p.5). O proprietário de terras, agindo assim, demonstra que para ele não haveria nenhuma diferença entre a realidade externa da fazenda e o mundo subjetivo que a significava. Não existiria nada que o levasse a acreditar que tivesse algo a comunicar que os outros também não pudessem fazê-lo. O Padre Silvestre e o jornalista Gondim poderiam falar da sua vida tanto como ele, já que não existia uma autonomia que o particularizava. O protagonista não seria mais do que o dono de São Bernardo. Existe, porém, algo em Paulo Honório que impede a coincidência total entre o mundo subjetivo e o objetivo. O mundo objetivo se rompeu com a morte de Madalena: a falta da mulher – o grande absurdo que é a sua morte, inexplicável como qualquer perda – invade todo o romance. Utilizando a terminologia de Bourdieu (2001, p. 144), podemos dizer que as estruturas objetivas do mundo já não coincidem com aquelas que foram incorporadas pelo personagem. O nar190
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rador do livro de memórias São Bernardo é alguém que não vive mais sob o signo do estereótipo e é capaz de conceber a indeterminação da própria vida e dos outros moradores da fazenda. Paulo Honório precisa ter passado por mudanças significativas para, ao narrar aquilo que foi a sua vida, nos fazer perceber a humanidade dos outros personagens e a sua desumanidade, Ao permitir o discurso do outro, sem dele querer se apossar, o personagem revela que não é mais o mesmo. É o percurso de um sujeito solar que vê sua objetividade romper-se com a morte da esposa que o narrador parece querer nos contar. O livro surge da fratura de uma situação de total heteronomia em que os indivíduos eram definidos apenas pelo lugar que lhes cabia no espaço social. Se, na auto-descoberta possibilitada pela escritura de si mesmo, o vaqueiro Marciano deixa de ser um Molambo, e Madalena, na sua indeterminação, não é uma traidora comunista ou uma normalista sedutora, é porque o mundo que Paulo Honório nos narra no pretérito não é o mesmo daquele do presente da enunciação. Aquele que escreve demonstra estar lutando contra os seus fantasmas, e só pode assim agir porque deixou de ser dominado por eles. Paulo Honório, não rompendo totalmente com o habitus de toda uma vida, vivencia um momento de grandes quebras e impasses. As frases que emergem no presente da enunciação, e a forma de enquadrar a violência cometida, indicam uma rup191
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tura dolorosa com o passado. No momento em que descreve a brutalidade que cometeu contra Padilha, ao endividá-lo e depois apossar-se das suas terras, o narrador não deixa de levar em consideração os sofrimentos do outro: “Luis Padilha abriu a boca e arregalou os olhos miúdos. S. Bernardo era para ele uma coisa inútil, mas de estimação: ali escondia a amargura e a quebradeira, matava passarinhos, tomava banho no riacho e dormia” (RAMOS, 2001, p. 22). Com relação à mãe Margarida, a vendedora de doces que amparou Paulo Honório na infância, tornando-se um referencial feminino para ele, a postura do narrador indica muito bem aquilo de que estamos falando. Enquanto o Paulo Honório que se encontra no pretérito dos enunciados coisifica a personagem, transformando-a num embrulho que deve ser remetido para a fazenda, o narrador que a descreve, posteriormente, denúncia a reificação a que ela foi submetida. Diz o proprietário da fazenda São Bernardo: Ó Godim, já que tomou a empreitada, peça ao vigário que escreva ao padre Soares sobre a remessa da negra. [...] É conveniente que a mulher seja remetida com cuidado, para não se estragar na viagem. E quando ela chegar, pode encomendar as miçangas, Gondim. (RAMOS, 2001, p. 48).
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Diz o narrador do livro de memórias São Bernardo, referindo-se ao tacho velho com que a pobre Margarida fabricava seus doces para vender: Lembrei-me do tacho velho, que era o centro da pequenina casa onde vivíamos. Mexi-me em redor dele vários anos, lavei-o, tirei-lhe com areia e cinza as manchas de azinhavre – e dele recebi sustento. Margarida utilizou-o durante quase toda a vida. Ou foi ele que a utilizou. Agora, decrépita, não podia ser doceira, e aquele traste se tornava inteiramente desnecessário. (RAMOS, 2001, p. 57 – grifo nosso).
A sensibilidade para perceber que, no capitalismo, o instrumento de trabalho se humaniza, na mesma proporção em que os homens são desumanizados, não cabia no personagem embrutecido que governava a fazenda. A forma com que é feita a descrição de mãe Margarida só pode ser verossímil se o romance for capaz de construir, ficcionalmente, a ruptura entre Paulo Honório-narrador e Paulo Honóriopersonagem, escritor e fazendeiro, presente e passado. É isto que faz o texto de Graciliano Ramos ao constituir-se como uma verossimilhança desviante. Não é fácil conceber que um personagem antes totalmente reificado possa ter adquirido autonomia a ponto de escrever a própria história e nela conceber a alteridade do outro. Mas é justamente essa dificuldade que torna o romance complexo e problematiza193
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dor. Definido em poucos traços que variam no tempo, Paulo Honório não é um personagem simples. Sobre ele podemos afirmar aquilo que diz Antonio Candido sobre os personagens de ficção no romance moderno: “O romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais esse sentimento de dificuldade do ser fictício [...] o trabalho de seleção e posterior combinação permite uma decisiva margem de experiência, de maneira a criar o máximo de complexidade, de variedade, com o mínimo de traços psíquicos, de atos e de ideias” (CANDIDO, 2007, p. 59). Aquilo que diz o sociólogo nos remete ao que afirma Iser (2002, p. 948) quando fala que o ficcional, através da seleção e combinação de elementos extratextuais, utiliza-se do difuso do imaginário para instaurar no texto um vazio que exige do leitor uma interpretação. No caso do romance de Ramos, para que a indeterminação do imaginário seja coerente com a estrutura narrativa, é preciso que a constituição de uma verossimilhança desviante esteja vinculada à configuração de um narrador problemático. Paulo Honório, tendo se objetivado no mundo como proprietário de terras, precisa fazer o caminho inverso para compor o texto literário que, no plano ficcional, é o seu livro de memórias. Apenas a desmistificação do espaço sagrado da fazenda, possibilitada pela fratura do sujeito solar, torna possível o processo de escritura do texto. A fratura do sujeito, substituindo a sua rigidez anterior, não deve ser vista como algo negativo. 194
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Como diz Luiz Costa Lima: “Em vez de implicar a fragilidade do sujeito, sua fratura o dota de uma imensa plasticidade, indispensável para responder a tamanha variedade de experiências no mundo” (COSTA LIMA, 2000, p. 171). O protagonista, para compreender Madalena, necessita perder o enrijecimento do Eu que o caracterizou no passado, e fazê-lo adquirir uma certa movência e plasticidade. Esse processo não é feito sem riscos. Na narrativa, ele é vivido de maneira angustiada, e é muitas vezes negado como algo passageiro: “É certo que tenho experimentado mudanças nesses dois últimos anos, mas isso passa” (RAMOS, 2001, p. 104). Paulo Honório vivencia um impasse, dialoga com seus fantasmas, mas isso não significa que tenha mudado completamente. O passado está inscrito no seu corpo, faz parte das suas atitudes cotidianas, do habitus a partir do qual a sua personalidade se definiu. A diferença instaurada está no fato de que o mundo incorporado já não mais se afirma como certeza, e sua reprodução, deixando de ser apenas inconsciente, é agora sentida pelo personagem. Se, como sujeito heterônomo, Paulo Honório apenas reproduzia a fala dos outros, deixando-se moldar pelas expectativas externas; agora, que ele não tinha mais uma identidade fixa, a alteridade surgia como parte de um mundo instável e contraditório. Difícil era ter que lidar com esse mundo que não se fechava mais numa imagem uniforme.
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Muito da atualidade de Paulo Honório encontra-se na sua dificuldade de vivenciar o impasse de uma realidade que se cindiu para sempre. A partir do drama do personagem, podemos nos perguntar: como lidar com a multiplicidade de vozes que invadem as nossas vidas, e nela permanecem, sem antes termos sido preparados para isso? O que fazer com a ausência que é se saber parte de um mundo nunca definitivo, e que tende a se manifestar sempre através das suas faltas? Como lidar com a precariedade de um presente que já não pretende ancorar-se na certeza de um passado substancializado ou nos anseios de um futuro que foi reservado para nós? São essas algumas das perguntas que a modernidade nos legou. A fratura de Paulo Honório é de certa forma a da nossa época, e sobre ela é condizente aquilo que afirma Luiz Costa Lima ao falar da fragmentação do sujeito moderno: Nossa dificuldade não está no múltiplo interno que trazemos, senão em saber como lidar com ele. Desde que a individualidade deixou de ser estabelecida por uma fronteira externa (a família, o clã, a comunidade, a nação), não temos uma educação que nos prepare para o paradoxal e contraditório que somos. Carecemos dessa educação e a tememos. (COSTA LIMA, 2006, p. 139).
A angústia do protagonista é não saber como lidar com a sua nova situação e ter que encarar as próprias misérias, 196
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o passado, a alteridade da mulher e de todos aqueles que eram oprimidos por ele. Paulo Honório não tem mais uma identidade definitiva, carece dela, e procura compreender um passado que não é possível mais reverter. O mundo encontra-se na névoa da memória, difícil relembrá-lo: Procuro recordar o que dizíamos. Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes, deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na escuridão. (RAMOS, 2001, p. 101).
O narrador demonstra estar num estado de grande prostração. A fazenda perdeu o sentido, São Bernardo não é mais tão estimável como era antes. Madalena desapareceu e deixou no seu lugar um mundo incerto. Ficaram as dúvidas existências, as perguntas sem respostas, a perda das razões anteriores. A importância de Madalena cresce, as palavras por ela proferidas ganham vulto, mas há a sensação de que já é tarde demais. O passado perdeu o sentido que possuía antes, mas não deixou de permanecer inscrito no corpo e nos comportamentos do protagonista. A vida tem uma gravidade que o proprietário de terras não consegue romper:
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Está visto que, cessando esta crise, a propriedade se poderia reconstituir e voltar a ser o que era. [...] Mas para quê? Para quê? não me dirão? Nesse movimento e nesse rumor haveria muito choro e haveria muita praga. As criancinhas, nos casebres úmidos e frios, inchariam roídas pela verminose. E Madalena não estaria aqui para mandar-lhes remédio e leite. Os homens e as mulheres seriam animais tristes. (RAMOS, 2001, p. 185).
Mesmo após tomar consciência de um mundo incorporado que antes não era capaz de enxergar, Paulo Honório ainda não consegue dele libertar-se. De tal maneira as práticas anteriores haviam sido inculcadas que, como nos diz Bourdieu (2001, p. 214), não bastava um simples despertar do pensamento para que o personagem pudesse romper com disposições corporais e sociais profundamente interiorizadas. O proprietário de São Bernardo é um personagem que vacila, não conseguindo negar completamente os próprios hábitos e nem se firmar neles. O mundo, anteriormente, objetivado deixou suas marcas, e continua a deixá-las, mesmo após a fratura do sujeito: Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos, aconteceria o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige. (RAMOS, 2001, p. 188).
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Apesar da prostração de Paulo Honório, e da sua incapacidade de converter o impasse vivido numa práxis diferenciada junto aos trabalhadores da fazenda, existe uma mudança fundamental que se concretiza na própria narrativa. O romance analisado, ao incorporar, no próprio texto, as tensões que levaram à sua construção, revela-se como aquilo que Luis Costa Lima (2000) chama de Mímesis de Produção. Segundo o estudioso, ao desfazer-se de uma visão substancialista de mundo, o ficcional cria a possibilidade de se estabelecerem novas articulações com o espaço social. O conceito de Mímesis, nesse sentido, não é afetado pela impossibilidade de ver o literário como uma reduplicação do real, já que a mediação entre o ficcional e a sociedade continua sendo possível por outro viés: A prenoção da verdade como substância, como reconhecimento de algo naturalmente inscrito na ordem das coisas, sofre um abalo catastrófico. Mas esse abalo, que afeta drasticamente o filósofo substancialista, não afeta a mímesis que já não se pensa como modelada pela organicidade do mundo. Mesmo porque não mais amarrada à prenoção do mundo como cosmo harmonioso, a mímesis tanto contém ecos do mundo das coisas – a representação efeito – como a ela se acrescenta. Ela não desvela a verdade, de maneira a servir ao ontológico, mas apresenta (produz) “verdades”. (...) Em vez da idealização do homem, antes dele
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exige algo diverso: o reconhecimento de sua obscura diferença. (COSTA LIMA, 2000, p.326).
Como diz o teórico, a mímesis de produção exige o reconhecimento da obscura diferença do homem. A arte produtiva relaciona-se com o que existe de mais indeterminado e criador no humano. O que Luiz Costa Lima chama de obscura diferença não difere muito daquilo que Iser denomina como caráter difuso ou indeterminado do imaginário. É sempre o vazio que nos constitui que está na base da obra de arte. Para confirmarmos o que estamos dizendo, basta lembrar parte da citação de Iser que colocamos no início do nosso trabalho: “O difuso do imaginário (...) é a condição para que seja capaz de assumir configurações diversas, o que é sempre exigido se se trata de tornar o imaginário apto para o uso” (ISER, 2002, p. 948). Seguindo essa mesma linha de pensamento, um filósofo como Castoriadis (1992, p. 123), referindo-se às criações humanas, resolve falar de imaginário radical. Este, contrapondo-se ao imaginário instituído – o do espaço social criado e incorporado pelas psiques individuais –, é capaz de atravessar a couraça social que recobre os sujeitos e penetrar num ponto-limite, insondável, que está na base de toda criação. Se a sociedade, através da psique, faz os indivíduos, estes podem, num movimento de retroação, voltarem-se para o que existe de insondável na própria estrutura mental, 200
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e buscarem refazer a sociedade. O imaginário instituído, uma vez visto como imaginário e não como realidade evidente, permite uma contínua recriação do mundo. É o que diz Castoriadis: “A partir da psique, a sociedade instituída faz a cada vez indivíduos – que, como tais, não podem fazer mais nada a não ser a sociedade que os faz” (CASTORIADIS, 1992, p. 123). A sociedade que nos faz é também feita por nós a cada momento, e para isso temos que penetrar o que esta tem de insondável, de difuso, de obscuro. Dizer que a arte descobre o mundo é ainda muito pouco. Ela é capaz de fazer mais do que isso, ela instaura a diferença no já sabido, impedindonos de apenas reconhecer, no ato criador materializado em objeto de apreciação, o mundo que nos envolve. A representação, no caso do objeto artístico, torna-se também efeito. O texto literário não apenas nos apresenta o mundo, mas sobretudo cria um mundo para nós, ao modificar o olhar que temos sobre o real instituído. Para dizer de outra forma, podemos repetir as palavras de Castoriadis: “O essencial da criação não é ‘descoberta’, mas constituição do novo; a arte não descobre, mas constitui; e a relação do que ela constitui com o ‘real’, relação seguramente muito complexa, não é uma relação de verificação (CASTORIADIS, 2007, p. 162). O texto ficcional, quando se constitui como mímesis de produção, não visa manter uma relação de redundância com o “real”, mas dizer o que este ainda não é capaz. É através 201
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das faltas presentes no mundo instituído, e que este tende a não querer revelar, que a mímesis em questão se constrói. Dessa forma, ela só existe sob duas condições prévias: Sua condição prévia estaria em (a) partir-se do sujeito enquanto fraturado, porque ele implica que cada um não se confunde com a maneira como se pensa a si mesmo; (b) reconhecer-se que a incompreensão não é um estado passageiro, que passageiramente nos desune de nós próprios e daqueles que estimamos. (COSTA LIMA, 2007, p. 327).
Essas duas condições não só estão presentes no romance São Bernardo como também foram incorporadas pela narrativa. O Paulo Honório que acreditava compreender-se a si mesmo e desejava saber quem era Madalena percebe ser impossível aquilo que intentava. Depois da morte da mulher, ele descobre que é incapaz de defini-la ou compreendê-la: Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. (...) Com efeito, se me escapa o retrato moral da minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever. (RAMOS, 2001, p. 100).
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O personagem, a seu modo, expõe aquilo que procuramos explicar teoricamente. É a partir de um nada que se escreve. É a partir de um vazio que se devolve ao mundo a indeterminação que está na origem das nossas instituições sociais. Trata-se de um nada que não é qualquer nada, mas que é o próprio inconsciente humano. É isso que Castoriadis procura explicitar, ao inverter a máxima de Freud (onde era o Id será o Ego) e mostrar a viabilidade do seu reverso: “Onde é o Ego o Id deverá surgir” (CASTORIADIS, 2007, p. 126). A sentença indica que, por mais que desejemos uma racionalidade autônoma, esta tem que esbarrar num irracional irredutível, num fundo de incompreensão, na impossibilidade humana de se fazer de uma vez por todas. Estamos sempre tendo que retornar ao discurso do outro, ao que nos é alheio, para que a partir dele possamos continuar a constituir uma identidade sempre inacabada. A autonomia, nesse sentido, não é a eliminação do discurso do outro através da formação de uma subjetividade que se deseja total, mas a capacidade de participar de um mundo que nos antecede e ultrapassa. Diz Castoriadis: “A verdade própria do sujeito é sempre participação a uma verdade que o ultrapassa, que se enraíza finalmente na sociedade e na história, mesmo quando o sujeito realiza a sua autonomia (CASTORIADIS, 2007, p. 129). Retomando a narrativa, podemos dizer que a autonomia de Paulo Honório é a de qualquer pessoa que faz da escrita 203
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uma busca de si mesmo. O narrador está em constante diálogo com o discurso do outro, travando uma luta impossível com seus fantasmas, e sabendo-se incapaz de compreender de forma definitiva a si mesmo e o mundo que o envolve. É justamente por ter perdido o desejo de se apossar das coisas que Paulo Honório é capaz de perceber a violência cometida contra os trabalhadores rurais ao buscar modernizar a fazenda em detrimento das suas condições de trabalho. É com uma autocrítica brutal que o protagonista passa a definir-se: “Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boa enorme, dedos enormes” (RAMOS, 2001, p. 190). Uma couraça social recobre Paulo Honório, e só sendo capaz de atravessá-la, numa movência de quem tenta negar a própria rigidez, é que ele pode escrever seu livro de memórias. É evidente que o ultrapasse, a penetração na diferença obscura que é o humano, não significa a ausência do mundo social instituído. Este permanece, mesmo deixando de ter o fechamento que possuía antes. O protagonista, mesmo esforçando-se, não consegue perder o embrutecimento de toda uma vida: O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem
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objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada (RAMOS, 2001, p. 184).
Apesar das palavras proferidas pelo personagem, podemos dizer que o romance revela a concretização daquilo que ele diz não conseguir fazer. Sem destruir a casca espessa de toda uma vida, um arranhão a penetra, perfura as suas certezas, e desvela toda a fragilidade que a constitui. Ser proprietário de terras já não é mais um sinal de distinção, mas o resultado de uma disposição social que contribuiu para a tragédia familiar e culminou no suicídio da esposa. Paulo Honório é agora um homem de poucas vaidades. Ele sabe como é vão querer se firmar em aparências e desejar ser superior aos demais: Coloquei-me acima da minha classe, creio que me elevei bastante. Como lhe disse, fui guia de cego, vendedor de doce e trabalhador alugado. Estou convencido de que nenhum desses ofícios me daria os recursos intelectuais necessários para engendrar esta narrativa. [...] Considerando, porém, que os enfeites do meu espírito se reduzem a farrapos de conhecimento apanhados sem escolha e mal cosidos, devo confessar que a superioridade que me envaidece é bem mesquinha. (RAMOS, 2001, p. 186).
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No final do romance, Paulo Honório não é mais um sujeito solar. É de noite que ele escreve e a forma de significar a escuridão diz bastante sobre o seu estado de espírito. Agora que os outros não existem ou estão dormindo é a solidão que traz consigo as suas presenças. Madalena continua viva na memória, como um assombro tardio: “Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-a. Sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa” (RAMOS, 2001, p. 188). A esposa está mais presente agora do que estava em vida. Impossível fugir da alteridade que antes foi negada. Agora que anoiteceu, e o mundo não tem mais a claridade que possuía antes, Paulo Honório é capaz de assumir suas incompreensões. A noite traz consigo uma dimensão do vivido que o narrador não consegue mais ignorar. Nas suas últimas palavras, não é mais possível desconhecer a falta que fazem as outras pessoas. A tentativa de firmar-se como superior aos demais fracassou completamente. É noite e de nada adianta chamar de patifes os trabalhadores da fazenda. A escuridão invadiu a existências de uma vez por todas e é impossível revertê-la: Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão. [...] É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo. [...] Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer
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tenho amizade a meu filho. Que miséria! [...] Casimiro Lopes está dormindo. Marciano está dormindo. Patifes! (...) E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos (RAMOS, 2001, p. 191).
É noite, e estas últimas palavras parecem se espalhar com suas sombras por toda a narrativa, indeterminando o relato. Não é bem esse o papel do imaginário: o de irrealizar o real, dificultando o seu reconhecimento no texto, e exigindo do leitor a capacidade de interpretar seus vazios? O romance São Bernardo constitui um narrador que, partindo de um drama existencial, só retoma a objetividade do próprio passado com a condição de desnudá-la e revelar para nós os conflitos que tornaram possível a sua fratura. A violência simbólica exercida durante a República Velha, num período de transição em que formas de reificação típicas da escravidão se associam àquelas do capitalismo, revela-se para nós leitores sem subterfúgios. O texto ficcional nos diz bastante das injustiças de uma época, mas não o faz a ponto de poder ser exaurido por qualquer interpretação particular. O silêncio instaurado pela obra permanece, restando-nos dizer do seu narrador o mesmo que ele diz ao referir-se à personagem Madalena: ele se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente.
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ão é nada difícil fazer uma leitura alegórica do romance A hora dos ruminantes (1974), de José J. Veiga: o insólito da narrativa do autor goiano, imersa numa atmosfera de incertezas e na qual homens, cachorros e bois surgem e somem do nada, sem grandes explicações, apenas para oprimir a população de uma pequena vila interiorana que se submete aos invasores sem saber muito bem por que, parece apontar para algo além do que é propriamente narrado, como se dissesse ao leitor que aquilo que ele lê não é exatamente 209
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(ou somente) aquilo que ele está lendo. Sendo exatamente essa a definição de alegoria dada por João Adolfo Hansen – algo que “diz b para significar a” (2006, p.7) –, resta saber em que consiste esse “outro” (esse a) que se descobre na alegoria proposta pelo romance de Veiga. Para grande parte da fortuna crítica da obra, a resposta é clara: A hora dos ruminantes fala, veladamente, sobre a opressão da ditadura militar brasileira. Por exemplo, Gregório Dantas, em seu artigo “José J. Veiga e o romance brasileiro pós-64” (2004), elenca uma boa quantidade de críticos para os quais a alegoria política é a chave mestra de sua interpretação, não só de A hora dos ruminantes, mas de grande parte da obra de Veiga publicada a partir da década de 1960. Não se pode, contudo, condenar de todo o trabalho desses críticos. De fato, A hora dos ruminantes, publicado em 1966, um tempo em que os artistas mascaravam suas obras para que pudessem passar pelo crivo da censura, e narrando uma experiência de opressão, parecia oferecer de bandeja a leitura de uma alegoria da ditadura militar para qualquer crítico que procurasse relacionar minimamente a obra com seu contexto de produção. O ponto crucial aqui seria questionar se a obra se restringe a isso. Segundo seu autor, a resposta para essa pergunta é negativa: É claro que Sombras, Os pecados, Vasabarros foram contaminados pelo clima político contemporâneo
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deles, e a coincidência entre o clima interno desses livros e o clima externo, facilitou a leitura política. Mas meu projeto de escrevê-los não era ficar na mera denúncia de um regime de opressão: se fosse, os livros ficariam datados quando o regime se exaurisse, como se exauriu (aliás, demorou mais do que eu calculava). O meu projeto era mostrar situações mais profundas do que aquelas impostas por um governinho de generaizinhos cujos nomes a nação depressa esquecerá. (VEIGA apud SOUSA, 1990, p.154).
Dantas (2004, p.126) ainda oferece mais dois argumentos a favor de uma relativização das leituras da obra de Veiga que a consideram derivada do pós-64: em primeiro lugar, o conto “A usina atrás do morro”, publicado no livro de estréia do autor goiano Cavalinhos de Platiplanto, de 1959, já continha o argumento de A hora dos ruminantes, com algumas variações; e em segundo lugar, segundo o próprio Veiga, A hora dos ruminantes, que levou sete anos para ser escrito, já estava sendo trabalhado durante a publicação do seu livro de contos, tendo sido concebido, portanto, anteriormente ao golpe. Sem querer assumir a palavra do autor como guia de leitura para sua obra, mas sim tomando-a como um dos vários discursos válidos sobre esta, e levando em consideração a evidência cronológica que impediria o autor de tratar ficcionalmente de um fato histórico ainda não ocorrido, não 211
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nos parece de má fé concluir que o contexto histórico-social que poderia ter influenciado José J. Veiga na composição de seus textos (tanto o conto “A usina atrás do morro” quanto os romances A hora dos ruminantes e Sombras de Reis Barbudos, unidos pelo mesmo argumento básico1) é mais amplo do que o instituído durante a ditadura militar. A partir daí novas perguntas são formuladas: se, então, A hora dos ruminantes não remete exatamente para o contexto da ditadura militar, para o que ela remete? E por que foi tantas vezes pensada como alegoria do referido contexto? As respostas para esses questionamentos exigem não só uma reflexão de ordem crítica, que se debruce sobre a obra, mas também de ordem teórica, capaz de entender as operações dos elementos formais do texto que levaram a tal leitura. A reflexão teórica sobre a alegoria é, obviamente, imprescindível para nossos propósitos neste trabalho. Porém, não pretendemos desenvolvê-la sozinha, mas sim articulada com a teoria da mímesis. O fato de a mímesis ser o elemento que constitui o artístico poderia bastar para que essa articulação fosse proveitosa, já que refletir sobre a mímesis, seria, a rigor, refletir também sobre qualquer processo artístico. Nossa escolha por essa articulação, porém, vai além; sendo a alegoria um discurso que remete a outro discurso, ela é, de 1. Tal argumento pode ser resumido da seguinte maneira: uma pequena comunidade interiorana é invadida por um grupo alienígena que modifica radicalmente a vida dos habitantes por meio da instauração de um sistema opressivo.
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certa maneira, também a representação de algo. Sendo a mímesis também uma representação ou mais especificamente uma representação de representações (COSTA LIMA, 1981), acreditamos que refletir sobre a mímesis nos ajudará a compreender melhor o funcionamento da alegoria, ainda mais quando esta se constitui como parte do discurso literário, sendo assim, portanto, também parte integrante da mímesis. Hansen (2006) esclarece que, a rigor, não se pode simplesmente falar em “a alegoria”, já que historicamente existem duas: uma que é construção e expressão, chamada na antiguidade greco-latina e cristã de “alegoria dos poetas”; e outra que é hermenêutica, desenvolvida na Idade Média como método de interpretação das escrituras sagradas e conhecida por “alegoria dos teólogos”. É sobre a alegoria como forma de expressão que a reflexão de Walter Benjamin, vai se desenvolver, especialmente em sua obra Origem do Drama Trágico Alemão (2004). Para Benjamin, a alegoria barroca é, em certo sentido, devedora da concepção antiga de linguagem como transparência entre a palavra e a coisa; como coloca o filósofo, a “alegoria medieval é cristã e didáctica; o Barroco regressa à Antiguidade, num sentido místico e histórico-natural” (BENJAMIN, 2004, p.185). O autor levanta a tese de que a alegoria barroca floresceu devido ao impulso dos humanistas em decifrar os hieróglifos egípcios. Estes, assim como a linguagem na antiguidade, eram entendidos a partir de sua relação direta entre aquilo 213
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que designava e o que era designado; porém, no caso dos hieróglifos, essa relação poderia ser tanto de ordem histórico-natural (a relação entre a imagem e seu “conceito” seria tão natural e imediata que resistiria mesmo às mudanças históricas, ao contrário do que acontecia com a linguagem alfabética que, por ser meramente convencional, caía em determinado momento no esquecimento), quanto místicoreligiosa. Tratando das reflexões de um desses eruditos humanistas, Benjamin destaca que No seu comentário às Enéades de Plotino, Marsílio Ficino nota a propósito da arte dos hieroglifos que através dela os sacerdotes egípcios ‘teriam pretendido criar algo que se pudesse comparar ao pensamento divino, uma vez que a divindade não possui o conhecimento de todas as coisas como uma representação mutável, mas por assim dizer como a forma simples e imutável da coisa. Os hieroglifos, portanto, como imagem das ideias divinas! Como exemplo aduz o hieroglifo, usado para o conceito do tempo, da serpente alada que morde a própria cauda: a imagem específica e fixa da serpente fechada em círculo conteria toda uma série de ideias associadas à multiplicidade e mobilidade da concepção humana do tempo que une começo e fim num rápido ciclo, que ensina a prudência, que traz e leva consigo as coisas. (BENJAMIN, 2004, p.184).
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A decifração dos hieróglifos pelos eruditos humanistas, contudo, teve alguns problemas. Em primeiro lugar, não existia nenhuma “retórica” aplicável aos hieróglifos que pudesse superar a verdadeira, embora negada, convencionalidade de seus significados; sua interpretação só poderia ser feita através da investigação do signo em si. Além disso, o corpus utilizado nas pesquisas dos humanistas era retirado de uma obra chamada Hieroglyphica, escrita por Horapólon, possivelmente nos séculos II ou IV d.C., e que se ocupava “dos hieroglifos simbólicos ou enigmáticos (...), meros pictogramas, distintos dos signos fonéticos, que eram apresentados aos hierogramatas no âmbito do ensino religioso como último degrau de uma filosofia mística da natureza” (BENJAMIN, 2004, p.183). Assim, os signos estudados estavam muito mais próximos do hermetismo, o que tanto dificultava sua interpretação quanto fomentava a multiplicidade de decifrações. O hermetismo dos signos hieroglíficos, contudo, não minou o ânimo dos sábios humanistas; ao contrário, cada vez mais crescia a convicção de que este tipo de enigma, acessível apenas aos mais eruditos, era a melhor forma de guardar os princípios capitais da autêntica sabedoria da vida. A popularidade da expressão hermética cresceu tanto que o termo “emblemática” passou a designar as mais diversas linguagens figuradas, como a egípcia, a grega e a cristã. A fixação pela ideia de que certos tipos de imagens 215
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encerravam em si as grandes verdades do mundo contaminou todos os domínios da atividade intelectual nos meados do século XVII, chegando ao ponto de se considerar que qualquer coisa poderia ser representada por imagens. Benjamin cita alguns trechos da Ars heráldica de Blöcker para demonstrar até onde esse caminho levou, dentre os quais escolhemos um: “Os cavalos brancos significam a vitória da paz depois da guerra, e ao mesmo tempo a velocidade” (BLÖCKER apud BENJAMIN, 2004, p.189). A dupla significação para o signo heráldico do cavalo demonstra a multiplicidade interpretativa que as imagens estavam submetidas; à significação puramente individual somava-se a força da pressão exercida pelas significações herdadas da tradição antiga, o que fazia com que uma mesma imagem pudesse traduzir conceitos antagônicos, e, potencialmente, qualquer coisa. A pluralidade da significação imagética humanista influenciou enormemente na construção da forma da alegoria barroca, que, ao contrário da antiga, regulada em suas interpretações pela Retórica, abre-se à multiplicidade de significações legada pela “emblemática”. Entretanto, nosso entendimento do fenômeno alegórico no barroco se fortalece se nos atermos ao contraponto, feito pelo próprio Benjamin, da alegoria com o símbolo. O filósofo alemão se apoia nas ideias de Creuzer para diferenciar as representações simbólica e alegórica: “esta significa apenas um 216
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conceito geral, ou uma ideia, diferentes dela mesma, enquanto aquele é a própria ideia tornada sensível, corpórea. No caso da alegoria há uma substituição..., no do símbolo, o próprio conceito desce e integra-se ao mundo corpóreo, e a imagem dá-o em si mesmo e de forma não mediatizada” (CREUZER apud BENJAMIN, 2004, p.179). Para Benjamin, a categoria do tempo é, portanto, essencial na diferenciação entre a alegoria e o símbolo: neste, o conceito e a imagem estão completamente integrados, e o universal manifestase no particular imediatamente, assim como ocorre na experiência do instante místico; sua decifração seria, portanto, instantânea. Já na alegoria, o conceito é representado na imagem, porém se mantém diferenciado desta. A não integração entre os dois polos alimenta a mútua alusividade de um para com o outro, o que significa dizer que a alegoria é essencialmente dialética. Assim, o instantâneo da integração simbólica torna-se impossível para a alegoria, que, em seu movimento dialético, revela-se como uma progressão de momentos, o que exige uma lenta decifração de seus significados. Ou, como coloca Maria João Cantinho, lendo a obra de Benjamin: Ao passo que no símbolo se apresenta directamente uma unidade instantânea em que, a cada instante, se mostra a ideia “encarnada, tornada sensível”, entidade à qual preside um princípio intensificador da tensão
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interna entre as partes avulsas, e que garante a atracção mútua entre elas (contribuindo para a unidade da obra), na alegoria há uma “progressão ou sequência de instantes” Portanto, o critério temporal que rege o funcionamento da alegoria é totalmente diferente do simbólico, exigindo, por conseguinte, a analiticidade do objecto e a sua decomposição, isto é, a decifração lenta, indirecta e progressiva das convenções ou conceitos, que se inscrevem nas imagens alegóricas. (CANTINHO, 2002, p.62).
Opondo-se ao todo orgânico do símbolo, “as leis que presidem à construção alegórica são as da dispersão, a da separação, leis que destroem e fragmentam a unidade” (CANTINHO, 2002, p.64). É justamente por sua fragmentação e pela tensão dialética que estabelece entre o seu significante e seu significado que “a alusividade da alegoria é pluralista e não monista [como seria a do símbolo] (...) Sua maneira de reportar-se ao todo consiste em aludir sem cessar ao outro” (MERQUIOR apud COSTA LIMA, 1981, p.75). Assim, pelo que foi dito, podemos concluir que a alegoria não pode ser vista apenas como um discurso que remete a um significado outro e único, recurso artificial e opositor à organicidade do símbolo, mas sim como uma forma de expressão que cria, a partir do próprio processo de leitura do texto primeiro, várias significações. Colocando nos termos de Hansen (2006, p.41), há no texto alegórico um sentido 218
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figurado, ordenado como uma metaforização contínua, que produz a partir de sua leitura um sentido próprio que se constitui como atualização de suas virtualidades. Isso significa dizer que o sentido próprio do texto alegórico não deve ser arbitrário, i.é., construído sem estar em relação com o sentido figurado. Dessa maneira, como bem coloca Costa Lima (1981, p.76), “o tratamento alegórico facilita a entrada em cena do leitor, que, com seus valores e expectativas socialmente condicionadas, empresta ao texto uma pluralidade de significações, com base na própria estratégia de composição do texto”. Contudo, a participação do leitor na construção do significado não é exclusividade da obra alegórica. De fato, de acordo com a teoria do efeito estético elaborada por Wolfgang Iser, o leitor possui participação ativa na construção do sentido de todo texto ficcional. Para Iser (1999), o texto ficcional é constituído por vazios que devem ser preenchidos pelo leitor durante o ato da leitura, instaurando assim uma interação entre o texto e o leitor que resulta na significação do texto. Além disso, o que não está expresso no texto também influencia na atividade de construção do sentido, porém de maneira subordinada ao expresso, que por sua vez é construído também quando o leitor produz o sentido indicado. Ou seja, para Iser, existe “um padrão fundamental de interação a ser discernido no próprio texto” (1999, p.28). Percebemos, portanto, que, assim como a alegoria, o texto 219
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literário de maneira geral não possui um sentido fixo, mas sim variável, que, contudo, deve ser construído a partir das coordenadas indicadas pelo próprio texto. A partir da relação da teoria da alegoria com a teoria do efeito estético de Iser podemos começar a pensar a relação da alegoria com a mímesis, como esta é entendida por Luiz Costa Lima. Grande parte do esforço intelectual do teórico brasileiro foi dispensado no intuito de resgatar o conceito de mímesis do ostracismo em que foi lançado devido a sua confusão com o conceito de imitatio. Para o autor, a correlação da mímesis com a imitação é errônea, pois aquela não se confunde com a matéria que a alimenta. Esta, por sua vez, não equivale à realidade empírica, mas sim às representações sociais através das quais temos acesso à realidade – ou através das quais fabricamos a realidade, nos termos do semioticista IzidoroBlikstein2 (2006). Assim, a mímesis seria uma representação das representações sociais (COSTA LIMA, 1981), uma representação suis generis, porque só indiretamente estabelece uma relação com o real (COSTA LIMA, 2003). O leitor, por sua vez, reconhece nas 2. Blikstein argumenta que, através da língua, nós não temos acesso à realidade propriamente dita, mas a uma realidade “fabricada”. Um dos elementos centrais nessa fabricação seria a práxis (entendida no sentido marxista do termo, ou seja, como o conjunto de atividades de um grupo social que determina, de maneira geral, suas condições de existência), na medida em que ela determinaria os traços distinguidores da realidade empírica. Contudo, pelo fato de ser a principal organizadora do processo cognitivo humano, a linguagem agiria sobre a práxis interpretando-a e efetivando-a, levando a um ciclo no processo de fabricação da realidade.
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representações presentes na obra uma semelhança com suas próprias representações. Nesse ponto, percebe-se a retomada da teoria do efeito estético de Iser por Costa Lima na medida em que este último apreende, através de sua reflexão sobre a mímesis, a necessária interação entre o texto e o leitor para que seja construído o significado da obra: A obra mimética, portanto, é necessariamente um discurso com vazios (Iser), o discurso de um significante errante, em busca dos significados que o leitor lhe trará. Os significados então alocados serão sempre transitórios, cuja mutabilidade está em correspondência com o tempo histórico do receptor. Por esta intervenção necessária do outro, o receptor, o produto mimético é sempre um esquema, algo inacabado, que sobrevive enquanto admite a alocação de um interesse diverso do que o produziu. (COSTA LIMA, 1981, p.232).
A partir daqui torna-se mais clara a articulação da teoria da mímesis com a alegoria. A plurissignificação desta apontada por Benjamin poderia ser também percebida através da própria reflexão sobre a mímesis elaborada por Costa Lima; uma vez que a alegoria faz parte da obra mimética, seu significado só poderia ser “obtido” através do reconhecimento por parte do leitor da semelhança de suas representações sociais com aquelas inseridas na obra e do consequente preenchimento dos vazios deixados pelo tex221
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to. Mas por que, então, a alusividade pluralista da alegoria, como notada por Benjamin, só ocorre a partir do barroco? A resposta para essa pergunta surge a partir de uma perspectiva histórico-social. Como aponta Costa Lima a própria pluralidade da mímesis (a “dobra da palavra3”) era restrita na sociedade grega antiga: embora potencialmente infinita, a dobra da palavra era limitada pelo fato da mímesis possuir uma função social muito bem demarcada, a saber, a de ser uma forma de reconhecimento dos pares sociais com a comunidade a qual pertencem; “noutros termos, a capacidade infinita de dobra da palavra, i.é., de iluminar e, ao mesmo tempo, sombrear o iluminado, é de fato, limitada pelo papel a que se presta: o de ser um meio de captura da identidade social” (COSTA LIMA, 2003, p.43). De maneira semelhante, como já foi mencionado anteriormente, na sociedade latina em que a alegoria dos poetas foi praticada e teorizada, tanto o conjunto de convenções vinculadas à retórica quanto uma concepção de linguagem que supunha total transparência entre esta e a coisa referida, limitavam a interpretação do texto alegórico. Contudo, como notou Benjamin, no barroco essa situação será revertida graças à uma nova concepção de história desenvolvida no século XVII, que se caracteriza como
3. Ou como coloca o próprio autor: “desde que a palavra encontrou uma situação social em que pôde desenvolver a ambigüidade sob forma de atualização do contraditório, deixou de aparecer como palavra una e se mostrou biface, palavra em dobra” (LIMA, 2003, p.43, grifo meu).
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um “produto da queda humana” (CANTINHO, 2002, p.42). A história é secularizada e vista como natureza, o que evidencia tanto a brevidade e miséria da vida humana, quanto a impossibilidade de qualquer redenção final. Essa visão de história se afasta da valorização Iluminista da crença no progresso, bem como da representação simbólica, detentora do significado último, e privilegiada pela estética clássica; em seu lugar, o barroco elegerá a alegoria “potencializada” como principal forma de expressão, já que sua estética do fragmentário, cujos significantes remetem sempre a novos significantes, condirá melhor com a visão da história como ruína: Enquanto no símbolo, com a transfiguração da decadência, o rosto transfigurado da natureza se revela fugazmente na luz da redenção, na alegoria o observador tem diante de si a facieshippocratica da história como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que desde o início tem em si de extemporâneo, de sofrimento e de malogro, ganha expressão na imagem de um rosto – melhor, de uma caveira. E se é verdade que a esta falta toda a liberdade “simbólica” da expressão, toda a harmonia clássica, tudo o que é humano – apesar disso, nessa figura extrema da dependência da natureza exprimi-se de forma significativa, e sob a forma do enigma, não apenas a natureza da existência humana em geral, mas também a historicidade biográfica do indivíduo. Está
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aqui o cerne da contemplação de tipo alegórico, da exposição barroca e mundana da história como via crucis do mundo: significativa, ela é-o apenas nas estações da sua decadência. (BENJAMIN, 2004, p.180).
Responde-se então a primeira pergunta que fizemos anteriormente: como obra alegórica e mimética, aquilo a que A hora dos ruminantes remete atualiza-se na leitura feita por seu receptor. Após essa primeira parte reflexiva, de cunho predominantemente teórico, poderemos passar a uma leitura mais voltada para a obra que pretendemos analisar, A hora dos ruminantes. Vimos que, apesar de ter sido elaborada em um período anterior ao da ditadura militar, a obra de José Veiga foi muitas vezes lida como alegoria desse período. A pergunta que fizemos foi por que isso acontece. Antes de procurar respondê-la, seria interessante nos determos sobre alguma análise da obra que tenha feito essa leitura, e assim detectar o que levou o crítico a fazê-la. Para servir de exemplo, tomamos o artigo de Vera Lucia Paganini, “O fantástico alegórico e a realidade sociopolítica em A hora dos ruminantes – José Jacinto Veiga” (2007). A partir do título já se torna óbvio o caminho seguido pela analista: considerar os acontecimentos insólitos ocorridos na narrativa da obra de Veiga como uma séria de metáforas que, juntas, constituem a alegoria de um momento sociopolítico, no caso a ditadura
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brasileira. Assim, a chegada misteriosa dos homens “vestidos de roupas, que, de conformidade com a descrição do narrador, sugerem roupas de militares” (PAGANINI, 2007, p.126) que exercem sobre a pequena vila de Manarairema um poder injustificável, bem como a posterior invasão espantosa de inúmeros cachorros e bois, são vistas como alegorias da opressão do regime militar: “Ora, não é difícil interpretar, se fazemos o jogo alegórico, estas invasões (cachorros e bois) como alusão às tropas militares ao invadirem ruas, praças e estabelecimentos comerciais, e domésticos impondo à força, o domínio do terror” (PAGANINI, 2007, p.128). A autora tem razão em dizer que “não é difícil interpretar”; pois, na interação que ela estabeleceu com o texto em sua leitura, os vazios deste foram preenchidos com as representações sociais que a autora possui acerca da ditadura. Sem importar tanto se ela chegou a viver mesmo o momento do regime militar, ou se ela só teve acesso a tal momento através do conhecimento vicário (inclusive através de leituras de textos críticos sobre a obra, que já tenham relacionado o romance de Veiga com a ditadura), o que interessa é notar que as suas representações sociais sobre a ditadura, ou seja, sua visão de mundo, são entendidas como semelhantes às colocadas na obra pelo autor, o que leva a analista a ver na alegoria a representação de um período específico. Responde-se assim a pergunta que fizemos sobre o porquê de a obra de Veiga ter sido tantas vezes lida como a alegoria da 225
Mímesis e alegoria em A hora dos ruminantes de José J. Veiga
ditadura, mesmo que seu autor tenha negado ser essa a sua intenção. Pois, como bem coloca Fabiana Ferreira da Costa (2010, p.49): “o produto mimético faz com que o receptor articule e dialogue seus parâmetros culturais com os da obra, nesse processo, a cena segunda passa a ter um significado diverso do que o produtor da obra lhe emprestou”. Não queremos tachar de errada a análise de Paganini (bem como, a priori, todas as análises semelhantes realizadas por outros analistas), mesmo porque, segundo a estética da recepção, não existe leitura “errada” do texto literário, mas somente leituras arbitrárias, e a argumentação da analista nega a arbitrariedade de sua leitura. Contudo, consideramos sua leitura redutora, justamente porque focalizada demais na semelhança do processo mimético da obra. Para fortalecer a nossa argumentação, voltemos mais uma vez a Costa Lima. Para o teórico, a mímesis não estabelece somente uma relação de semelhança com as representações do leitor; já que seu produto não é cópia de um referente externo, sua criação e sua recepção são realizadas em função de um estoque prévio de conhecimentos que, por variarem de acordo com o local histórico ocupado pelo receptor (ou seja, de acordo com a visão de realidade elaborada por sua cultura, sua posição de classe, etc.), pode gerar uma discrepância entre o que ele coloca na obra, e o que nela fora colocado anteriormente pelo seu autor. “Em poucas palavras: na realidade efetiva do produto mimético, i.é., em sua circulação, 226
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realiza-se a combinação de uma semelhança, que funciona como o precipitador do significado que nele se aloca, e de uma diferença, o que não ‘cabe’ naquele significado e, então, permite a variação interpretativa” (COSTA LIMA, 2003, p.71, nosso grifo). Assim, na mímesis co-existem dois elementos mínimos, dois semas, de cuja junção resulta sua significação: o sema da semelhança e o sema da diferença. Quando o sema da semelhança predomina na obra, ou seja, quando as representações colocadas estão mais próximas das representações que o leitor possui, ocorre a mímesis da representação. Por outro lado, quando o que predomina é o sema da diferença, o leitor não consegue encontrar na obra uma visão da realidade pré-concebida, ocorre a mímesis da produção. Esta recebe tal nome porque para que o leitor consiga gerar alguma significação da obra mimética na qual o sema da diferença predomina é preciso que ele apreenda seu significado através da análise de sua produção, tendo assim uma visão da realidade não como algo prévio, mas como seu ponto de chegada. Fabiana Ferreira da Costa (2010) esclarece ainda dois pontos importantes sobre as mímesis da representação e da produção. O primeiro deles é que as duas não podem ser entendidas como elementos díspares, mas sim como duas instâncias do mesmo fenômeno que se articulam e dialogam. O que acontece é que às vezes um dos semas é mais destacado que o outro, gerando uma representação 227
Mímesis e alegoria em A hora dos ruminantes de José J. Veiga
que se afasta mais ou menos da visão de realidade do receptor. O segundo ponto é que a mímesis da produção não se confunde com o novo mundo criado na obra, o que seria na verdade confundir a mímesis com a própria obra; mais do que criar uma “nova versão do mundo”, a mímesis da produção contribui para um novo olhar sobre o mundo, ou melhor dizendo, possibilita experimentarmos um novo estado de ser no mundo. Costa ainda percebe a relação entre as mímesis da representação e da produção com a categoria de negação de Iser: A negação tem um caráter operacional: no momento em que os elementos da realidade extratextual são negados, o sentido primeiro de tais elementos não apenas são lembrados como igualmente assinalam a “motivação não verbalizada” implícita ao ato de negar. Em outros termos, naquilo que não encontramos correspondência, incita-nos a construir e entender outro mundo virtual que, por sua vez, oferece uma nova perspectiva de olharmos o mundo real. Podemos identificar aqui a mímesis da representação e mímesis da produção. (COSTA, 2010, p.58).
Ou seja, aquilo que não é formulado pelo texto e que não corresponde à realidade extratextual torna-se presente na obra ficcional justamente por sua ausência, por aquilo que nega. Essa dimensão não-formulada pelo texto, que é
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uma espécie de duplicação sua, é chamada por Iser de negatividade. É, segundo o autor, por meio desta que o texto literário traz sua contribuição para o mundo: “como os elementos estranhos não podem manifestar-se sob as condições vigentes no caso da manifestação de concepções familiares ou já existentes, o que a literatura traz para o mundo só pode revelar-se como negatividade” (ISER, 1999, p. 32). Percebese, portanto, que o conceito de mímesis da produção de Costa Lima se assemelha bastante ao conceito iseriano de negatividade, na medida em que é através de ambos que o texto ficcional possibilita ao leitor elaborar novos sentidos e experimentar um outro estado de ser no mundo. Voltemos agora ao texto de Veiga. Vimos que a leitura de Vera Lucia Paganini reconheceu nos elementos fantásticos de A hora dos ruminantes uma alegoria do regime militar. Isso acontece porque, ao valorizar o sema mimético da semelhança, a analista acaba encontrando uma correspondência entre as representações da obra com suas próprias representações sobre a ditadura. Obviamente, os acontecimentos insólitos ocorridos no texto de Veiga não correspondem à realidade extratextual; porém a “solução” de Paganini é justamente a leitura alegórica do texto: embora o autor diga b, o que ele quis dizer foi a, e esse a corresponde sim ao mundo extratextual (o termo “realidade sociopolítica” do título de seu artigo não é por acaso) – ou pelo menos a uma visão pré-concebida desse mundo. Nesse sentido pode229
Mímesis e alegoria em A hora dos ruminantes de José J. Veiga
ríamos dizer que Paganini encara o romance apenas como mímesis de representação, o que acaba enfraquecendo o texto por vinculá-lo necessariamente a um contexto específico, cujo esquecimento trataria de pôr fim à obra por torná-la datada. O comentário de Costa Lima, embora vindo de outro contexto, resume bem o problema da leitura de Paganini: o alegórico contém uma dificuldade específica: se ele permitir a pura transcrição tipo “isso significa aquilo”, o isso, ou seja a narrativa, se torna inútil, casca de fruta que se joga fora. Para assumir significação, o fantástico necessita criar uma curva que o reconecte com o mundo. Se, entretanto, essa curva tornar-se única, persistirá a significação com o apagamento de sua fonte. Para se manter, a alegoria precisa ser plural. (COSTA LIMA, 1982, p.207).
Acreditamos, portanto, que uma leitura de A hora dos ruminantes que pretenda escapar do perigo de transformar a obra em “casca de fruta que se joga fora” deveria levar em maior conta o sema da diferença da mímesis. Procuraremos agora oferecer uma leitura alegórica da obra de Veiga que a veja como mais do que a tentativa de uma representação de um momento sociopolítico demarcado. A hora dos ruminantes começa com a chegada de um grupo de forasteiros à região da pequena vila de Manarairema, instalando-se em uma tapera separada da cidadezinha por um 230
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rio. Logo de início cria-se uma oposição entre o lado de cá (a cidade de Manarairema) e o lado de lá (a tapera), reforçada pelo ponto de vista do narrador, que se concentra apenas no que se passa dentro dos limites da pequena cidade. Dessa forma, tanto os personagens da obra quanto o próprio leitor ficam alheios ao que acontece no território da tapera, e, consequentemente, às intenções dos forasteiros que a ocupam. Dessa forma, os forasteiros acabam por ser envoltos por uma aura de mistério que se revela um importante elemento estrutural da obra, justamente porque preencherá de dúvida e estranhamento os acontecimentos decorrentes da atuação dos homens da tapera sobre Manarairema. O primeiro desses episódios é a subjugação de duas figuras importantes da pequena vila: o carroceiro Geminiano e o vendeiro Amâncio. O primeiro deles, um trabalhador autônomo orgulhoso de sua condição, no início se recusa a travar relações comerciais com os homens da tapera, mas pouco tempo depois se encontra sob os serviços destes, carregando terra de um lado para o outro num trabalho aparentemente interminável e sem sentido, e que o impede de atender às demandas dos outros manarairenses. Já o segundo, o típico valentão das pequenas comunidades rurais, após dirigir-se à tapera sem convite para tirar satisfações de seus ocupantes, acaba por se tornar uma espécie de porta-voz destes, anunciando a seus conterrâneos um desenvolvimento trazido pela atividade dos estrangeiros que, no entanto, jamais chega. 231
Mímesis e alegoria em A hora dos ruminantes de José J. Veiga
Como o leitor não possui acesso ao que acontece na tapera, é impossível saber o que levou Geminiano e Amâncio a se renderem às ordens dos estrangeiros; a única coisa que se percebe é a falsidade do discurso do vendeiro, cuja promessa de progresso só pode ser visualizada no trabalho inútil do carroceiro. Instaura-se, assim, uma espécie de “burocratização” dos trabalhos de Geminiano e Amâncio, uma vez que eles não apresentam efetivamente nenhuma finalidade social, burocratização esta que acaba por abarcar os próprios personagens, uma vez que eles são evidenciados justamente por sua posição de destaque na comunidade manarairense. Como destaca Souza, o absurdo da burocratização sofrida pelos personagens de Veiga acaba causando um estranhamento no leitor, que é reforçado pela impossibilidade de obter qualquer explicação concreta para os acontecimentos narrados: “O efeito do estranhamento torna-se, então, fruto de sistemas burocratizados mais amplos que os escritórios de empresa. A burocracia invade todas as formas de poder e entra em conflito com as personagens que a contestam” (SOUZA, 1990, p.38). Assim, se entendermos a burocracia como um elemento da estrutura social moderna, podemos pensar em Geminiano e Amâncio como metáforas da opressão de um sistema modernizado (e/ou modernizante) que age através da burocratização do trabalho e das relações sociais, resultando na atomização dos indivíduos. Consequentemente, passamos 232
Lucas Antunes Oliveira
a enxergar nos forasteiros uma imagem da ação invasiva da modernidade sobre uma pequena comunidade rural. Dois pontos ajudam a corroborar tal visão. O primeiro deles se encontra no já citado discurso de Amâncio, que associa os propósitos dos forasteiros ao progresso, termo este inúmeras vezes associado à ação da modernidade, sobretudo quando esta recai sobre conjunturas consideradas “atrasadas” (ou seja, pré-modernas). O segundo se trata do equivalente aos homens da tapera nos textos que possuem o mesmo enredo básico de A hora dos ruminantes, a saber, o conto “A usina atrás do morro”(1995) e o romance Sombras de reis barbudos (1998): nesses dois textos a invasão dos forasteiros é representada conjuntamente com a instalação de uma espécie de fábrica em um terreno afastado das pequenas cidades. As fábricas recebem o nome de “Companhia” no caso do conto e “Companhia de Melhoramentos” no romance. Percebe-se, portanto, que a relação dos invasores com o avanço da modernidade é muito mais claro nesses textos citados do que em A hora dos ruminantes. Por outro lado, o hermetismo da imagem dos homens da tapera torna-a menos literal, fortalecendo assim a construção alegórica do texto. Os próximos episódios responsáveis por causar um estranhamento no leitor devido à sua aparência insólita são os ataques dos cachorros e dos bois a Manarairema. Saídos como que do nada, esses bichos invadem a pequena vila em quantidades absurdas, trazendo o desespero para os habitantes 233
Mímesis e alegoria em A hora dos ruminantes de José J. Veiga
da cidade. Na primeira invasão, a dos cachorros, ocorre uma inversão de papeis: os homens, antes domesticadores, passam a servir os animais, que tomam Manarairema como se esta pertencesse a eles (ou aos seus prováveis donos, os homens da tapera). Já na segunda invasão, a dos bois, a situação se agrava, uma vez que estes, amontoados uns aos outros até onde a vista alcança, impedem que os manarairenses saiam de casa, o que vai, pouco a pouco, causando a morte da cidade. Contudo, nas duas ocasiões, os animais, assim como chegaram, subitamente desaparecem, e junto com eles se vão os homens da tapera, sem que nada seja explicado. Novas imagens surgem a partir dessas invasões. A primeira delas, sugerida pela invasão dos cachorros, é a do ser humano animalizado por se sujeitar a um sistema modernizante opressivo, e que só é capaz de encontrar a própria humanidade através do rebaixamento dos outros seres humanos a quem ataca e explora (os manarairenses, por acreditarem que os cães pertencem aos homens da tapera, passam a servi-los com o que possuem de melhor em suas casas). Já a invasão dos bois alude à bestialização das pessoas sujeitas ao mesmo sistema modernizante através de uma burocratização totalitária, que atinge todas as esferas da vida social impedindo a vida da comunidade (os ruminantes se amontoam por toda Manarairema, tornando seus habitantes prisioneiros em suas próprias casas e matando-os por inanição). 234
Lucas Antunes Oliveira
Por fim, juntamente com os bois, se vão os estrangeiros, encerrando A hora dos ruminantes. Podemos, então, a partir das imagens metafóricas construídas no decorrer da obra, oferecer a alegoria que ela instaura: a crítica ao avanço da modernidade sobre pequenas comunidades rurais. Contudo, não devemos pensar nessa crítica como uma condenação da modernidade de maneira geral: o que se percebe é que depois de explorar ao máximo a comunidade e perceber que a continuidade das ações naquele lugar não poderia mais trazer nenhum benefício, os forasteiros abandonam sua empreitada, revelando de uma vez por todas que o discurso de progresso e melhoria anteriormente propagado era completamente vazio. A modernização, assim, não poderia ser considerada algo negativo em si, uma vez que ela efetivamente nunca chegou a acontecer na pequena vila, apenas a exploração em seu nome. Ou seja, a crítica oferecida pela obra é contra esse falso avanço da modernidade, que se revela apenas uma nova forma de opressão. Finalizamos assim a nossa leitura de A hora dos ruminantes. Procuramos com ela tratar o texto como uma alegoria, sem, no entanto, encontrar nela uma correspondência direta com o contexto sociopolítico no qual a obra foi lançada, ou seja, o da ditadura militar brasileira. É importante destacar que, para realizar tal leitura, procuramos dar ênfase aos elementos da obra que causam um estranhamento no leitor, justamente por se afastar das representações sociais 235
Mímesis e alegoria em A hora dos ruminantes de José J. Veiga
vigentes, ou seja, daquilo que o leitor entende como realidade. O que vale dizer que privilegiamos o sema da diferença da mímesis, encarando-a, portanto como mímesis da produção, e por isso mesmo nos possibilitando alcançar uma visão crítica do mundo ao qual, a partir da obra, retornamos. Chegamos ao final de nosso percurso. Acreditamos que através dele foi possível mostrar que uma leitura da obra A hora dos ruminantes que privilegie o sema da diferença do processo mimético é capaz de criar significados mais ricos do que se for privilegiado o sema da semelhança. Dessa forma evita-se que a obra caia num possível ostracismo devido a leituras que a tornem datada, transformando a potencialidade de sua dimensão alegórica numa mera transferência de significados: isso quer dizer aquilo. De fato, ao se concentrar no que há de diferente entre a obra e o mundo extratextual, ou seja, aquilo que é negado pelo texto, o leitor é capaz de produzir uma nova visão (ou uma visão mais ampla) da realidade, e experimentar um outro estado de ser no mundo. Essa conclusão foi possível a partir da retomada de conceitos da teoria da alegoria, da mímesis e da estética da recepção, relacionados entre si e com o texto analisado. Claro que essa articulação não supôs uma mera “aplicação” dos conceitos, vistos como algo estático e inalterável, ao objeto – fazer isso seria, como diria o próprio Costa Lima, “acreditar no milagre do método”. Pelo contrário, nosso pensamento pressupôs o tempo todo uma maleabilidade dos conceitos (mas não 236
Lucas Antunes Oliveira
uma distorção) que pudesse nos levar a um entendimento mais claro e profundo de nosso objeto, dando assim a nossa contribuição para a reflexão sobre a alegoria em A hora dos ruminantes de José J. Veiga. Referências BENJAMIN, Walter. Origem do drama trágico alemão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. BLIKSTEIN, Izidoro. KasparHauser: ou a fabricação da realidade. 7. ed. São Paulo: Cultrix, 2001. CANTINHO, Maria João. O anjo melancólico: Ensaio sobre o conceito de Alegoria na Obra de Walter Benjamin. Coimbra: AngelusNovus, 2002. Disponível em: <http://br.monografias.com/trabalhos-pdf902/o-anjomelancolico/o-anjo-melancolico.pdf>. Acesso em:15 dez. 2010. COSTA, Fabiana Ferreira da. A mímesis, os estudos culturais e A balada da infância perdida: a literatura em questão. Recife: Programa de PósGraduação em Letras, 2010. COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e modernidade: forma das sombras. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. ______. O Conto da Modernidade Brasileira. In: FILHO, Domício Proença (Org). O livro do seminário. São Paulo: L. R. Editores, 1982. ______. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. DANTAS, Gregório F. José J. Veiga e o romance brasileiro pós-64. Falla dos Pinhaes, Espírito Santo do Pinhal - SP, v. 01, n. 01, p. 97-108, 2004. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra; Campinas: Editora da Unicamp, 2006. ISER, Wolfgang. Teoria da Recepção: reação a uma circunstancia histórica. In: ROCHA, João Cezar de Castro. Teoria da ficção: Indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: UERJ, 1999.
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Carla Araújo Lima da Silva
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio Representação social e mímesis: uma breve reflexão
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m dos campos mais férteis e passíveis de divergências no estudo da mímesis artística é a sua relação com as representações sociais. Costa Lima (1980) se propõe a repensar os conceitos de representação social e representação poética no intuito de teorizar a mímesis e entender como se dá a relação entre as duas.
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Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
Pensar o conceito de representação implica desfazer a ideia de que a idiossincrasia, os atos e costumes do homem são construídos através de sua própria vontade. Segundo o ensaísta (1980), os agrupamentos sociais são, na verdade, produto de uma rede de símbolos a qual se denomina representação e que, na verdade, não há uma única representação mas sim um vasto sistema de representações, tendo em vista que a sociedade é plural e possibilita várias formas de se portar e de pensar o mundo. Nesse caso, as representações estão ligadas às várias formas de estar no mundo: física, poética, social, política. E nesse sentido, os “sistemas de representação funcionam como uma linguagem semiológica, de dimensões fluidas e assim, dificilmente exaurível, cuja apreensão pelo estrangeiro é muito mais difícil do que o código lexicado.” (COSTA LIMA, 1980, p, 71), ou seja, os sistemas de representação são múltiplos de significado exatamente pelo fato de que o homem, graças as representações, vê o mundo a sua maneira. Entender o fenômeno da representação como um recorte pressupõe que o real não é algo dado, mas sim algo construído socialmente. Costa Lima ao tratar das representações aponta que a forma como entendemos o mundo supõe classificações, ou seja, “um princípio naturalmente imotivado, pelo qual uma cultura, uma sociedade, uma classe ou um grupo estabelece e diferencia valores, concebe critérios de identificação social, de identidade individual e 240
Carla Araújo Lima da Silva
de distinção sócio-individual.” (COSTA LIMA, 1981, p, 219). Desse modo a representação é produto das classificações, das formas como um grupo da sociedade vê e entende o mundo. É através das representações que damos significado ao mundo das coisas e dos seres. Goffman (apud COSTA LIMA, 1981), ao falar do teatro do mundo e das cerimônias sociais necessárias para a efetivação da comunicação traz o conceito de frames que, para o teórico, são espaços, quadros determinados que apresentamos aos nossos parceiros de comunicação a fim de ajustarmos a nossa fala e realizarmos o processo comunicativo. O conceito de frames se aplica ao estudo da representação no sentido de que as classificações – que regem as representações – são espécies de frames (ou grilles), recortes de entendimento sobre a sociedade. Se as formas de entendimento, grilles, frames, classificações são múltiplas, isso implica dizer que as representações sociais também são múltiplas e, por sua vez, a significação que damos às representações são, também, variadas. Todo esse debate e esclarecimento sobre os conceitos de representação e classificações servem para estabelecer um diálogo entre as representações sociais e o texto poético. O texto poético é uma atividade de representação social e esta não aparece na literatura como correspondência e sim como uma outra possibilidade de se representar, uma espécie de representação da representação – como Aristóteles explicava a mímesis. 241
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
Para Costa Lima (1980) considerar a representação social como algo distinto da mímesis impede de perceber esta como uma das formas de representação e como um fenômeno que dialoga com as classificações sociais. Ou seja, abandonar a visão imanentista colabora para a compreensão de que o texto poético é resultado de uma interação entre o social, a proposta do texto e a aceitação do leitor, como confirma o teórico: “O que vale dizer, o valor estético não existe por si. Mediado pela norma estética, ele só se realiza pela atividade do receptor, conforme a estética da recepção.” (COSTA LIMA, 1980, p, 76). A representação social, na função pragmática assume um caráter apenas comunicativo, enquanto que na função estética estabelece uma relação indireta com o real. Esta relação indireta, segundo Costa Lima (1980), é o que diferencia a mímesis (ou representação poética) das outras representações. Na mímesis a representação social é trabalhada através da ficção e atua no real, assumindo um caráter de ‘como se’, ou seja, realiza-se pelo fingimento ficcional. Em seu texto Mímesis e Representação social, Costa Lima (1981) põe em diálogo representação social e mímesis no intuito de esclarecer como a mímesis retrabalha a representação social e suas implicações na recepção pelo leitor do produto mimético. A teoria dos frames proposta por Goffman autoriza o entendimento das representações sociais como um recorte cultural, político, filosófico que nos orienta a ver e entender 242
Carla Araújo Lima da Silva
o mundo, ou seja, a idiossincrasia do homem é produto de uma classificação social. É através dos frames que se determina o recorte cultural de uma sociedade e através dos frames que, no texto poético (mímesis) determina-se a possibilidade de leitura, ou seja, é por conta da condição flexível dos frames que o leitor pode entender o jogo narrativo – as possibilidades internas do texto e sua interação com o leitor – e participar efetivamente resultando em significações plurais do produto mimético. Segundo Bateson, o jogo é uma combinação de processos primários e secundários, ou seja: Segue-se daí a moldura do jogo (the play frame) [...] implica uma combinação especial de processos primário e secundário. (...) No processo primário [por exemplo], mapa e território são igualados; no secundário, podem ser discriminados. No jogo, eles são tanto igualados, quanto discriminados. (BATESON, 1954 apud COSTA LIMA, 1981, p, 225)
Essa natureza dupla do jogo – igualar e discriminar – está diretamente ligada à mímesis por evidenciar a condição dupla da semelhança e da diferença. A concepção de mímesis proposta por Costa Lima descarta a visão essencialista da arte mimética e passa a entendê-la como uma “transposição de molduras primárias e habituais.” (COSTA LIMA, 1981, p, 225) Dessa forma, a grande contribuição de Costa Lima para o entendimento da mímesis é exatamente considerá-la não 243
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
uma mera imitação do real e sim uma representação do real – entendendo o real como uma representação da realidade. Para Costa Lima (1981) a mímesis só irá se aproximar do conceito de imitação no sentido da verossimilhança, tendo em vista que a obra literária apoia-se na realidade para sua construção. No entanto, considerar apenas a semelhança da representação mimética com o real implicaria, novamente, em uma concepção imanentista da mímesis e, para essa resolução, através de uma análise da Poética de Aristóteles, Costa Lima infere que, na verdade, o produto mimético está regido sob o signo da semelhança, porém, também sob o signo da diferença. Com o aparecimento da Estética da Recepção há uma mudança em relação à visão essencialista da mímesis, pois os teóricos da recepção descartam a ideia de que a obra literária seja produto apenas da interioridade do poeta, ou seja, para a Estética da Recepção, a obra só se realizará com eficácia através da mediação do leitor. Wolfgang Iser, inserido na vertente da Estética do efeito, em seu texto Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional (2000) aborda a relação do ficcional com o real e a essencial relação obra-leitor. Para Iser, os atos de fingir são um processo no qual, primeiramente, o autor seleciona sistemas preexistentes (culturais, sociais), depois os reorganiza no texto literário, fazendo com que esses sistemas assumam uma nova significação e, por último, o autor desnuda a ficcionalidade, ou seja, desrealiza o real a fim do leitor perceber o ficcional distinto do real. 244
Carla Araújo Lima da Silva
Segundo o teórico alemão (2000), um texto literário por si só assume a condição de discurso vazio, vazio esse que será preenchido pelo imaginário do leitor, ou seja, o discurso literário não é apenas estético nem apenas semântico, é um ato de fingimento que se dá através dos aspectos estéticos e dos aspectos extraliterários mediado pelo leitor no momento da recepção. O caráter de fingimento do texto ficcional permite uma condição múltipla ao texto literário e, nesse sentido, sobre mímesis e fingimento, Costa Lima afirma: do ponto de vista do produtor, o próprio da mímesis consiste em, através de um uso especial da linguagem fingir-se outro, experimentar-se como outro ou ainda usar a linguagem, não como meio de informação, mas como espaço de transformações, cumpridas não em função de um referente a que descreveria, mas possibilitadas pela própria ideação, verbalmente formulada. (COSTA LIMA, 1981, p, 230).
Sendo assim, para Costa Lima (1981) a mímesis é um fingir-se outro que se torna possível através dos frames transpostos pelo leitor na recepção da obra. Através do jogo o autor guiará o leitor às possíveis significações que o texto oferece e, sabendo o leitor desse caráter múltiplo, através do seu imaginário irá preencher as lacunas do texto, dando significado à obra e reinvestindo essa significação no mundo real empírico. Esse reinvestimento do ficcional no real se dá 245
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
pelo prazer catártico do leitor. Costa Lima (1981) retoma a concepção de catarse de Aristóteles para esclarecer o processo de recepção da obra literária. Para o teórico – assim como em Aristóteles –, o prazer do leitor se dá através do afastamento e da aproximação com a obra literária. No caso, o prazer primeiro do leitor seria resultado de uma identificação com a obra, tendo em vista que esta é uma representação do real e que se assemelha – ao menos em alguns aspectos – aquilo que o leitor conhece em sua realidade. Esse prazer da semelhança é que permite o leitor emocionar-se, compadecer-se com a felicidade ou a dor do herói. No entanto, em um processo inverso, o leitor, ao mesmo tempo, sente o prazer da diferença, pois, ao ler a obra sabe que, por maior identificação que tenha sentido, ainda assim o que está diante dele não é algo que refere a si mesmo ou a uma realidade empírica, é um fingimento, e é através desse distanciamento que o leitor pode aprender e experimentar outras possibilidades e outros sentimentos do mundo. Essa condição dupla é a chave de leitura da mímesis de Costa Lima. Para o crítico o texto literário não pode enclausurar-se dentro de uma única fórmula de representação: semelhança ou diferença. Voltar-se apenas para a semelhança, segundo Costa Lima, significaria “converter a experiência mimética em experiência do kitsch significa abafar o paradoxo daquela – paradoxo de toda experiência estética e não só mimética – em favor da vivência desta.” 246
Carla Araújo Lima da Silva
(COSTA LIMA, 1981, p, 232), ou seja, a obra literária soaria como um epifenômeno da representação social. Voltar-se também apenas para a diferença transformaria a experiência mimética em experiência teórica, ou seja, o texto literário estaria a serviço de uma teoria, seria alimento para um determinado conceito. Seguindo esse caráter duplo e interativo da mímesis, Costa Lima (1980) vai propor duas modalidades: a mímesis de representação e a mímesis de produção. O próximo passo deste artigo é, portanto, tecer considerações sobre esses dois conceitos de mímesis e, em análise literária, notar como a mímesis e a representação social são percebidas no romance O visconde partido ao meio de Italo Calvino. Medardo e a alegoria do homem partido: mímesis de representação e mímesis de produção Segundo Costa Lima, a mímesis configura-se através de uma dupla modalidade, equivalendo cada uma dessas modalidades a uma forma de representação pelo predomínio do vetor da semelhança (mímesis de representação) ou pelo predomínio do vetor da diferença (mímesis de produção). No primeiro caso, há uma expectativa do leitor sobre o que vai ser lido e essa expectativa é guiada pelos padrões culturais e sociais, pelos frames e grilles que o leitor construiu socialmente. Essa expectativa se dá em função 247
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
da semelhança, ou seja, da relação entre o que é esperado e que será percebido. No entanto se faz necessária, também, a presença da diferença, pois se uma obra literária guiar-se apenas pelo vetor da semelhança, esta se tornará – como comentado no capítulo anterior – um objeto do kitsh, um ‘retrato’ social, como o próprio teórico afirma: “Sem o vetor da ‘diferença’, o produto mimético se confundiria com a cópia, com o duplo, que não passam de casos particulares e anômalos da produção mimética.” (COSTA LIMA, 1988, p, 294). Sendo assim, a semelhança na mímesis de representação não se resume a uma repetição do real, mas sim a uma reconfiguração deste real onde uma ação que se assemelhe a realidade empírica significa, ao mesmo tempo, aquilo que representa, mas também – por seu caráter ficcional – “uma configuração, cujos contornos são passíveis de significação para um certo receptor” (Idem, p. 294). Se a mímesis de representação é um correlato das representações, a mímesis de produção será a transgressão dessas representações. Desta forma, o lastro social que antes guiava a leitura não está mais presente na obra, como afirma Costa Lima: “a mímesis parte da destruição daquele substrato, radicaliza seu trabalho no sentido de despojarse ao máximo dos valores sociais e da maneira como eles enfocam a realidade e, por fim, desta própria realidade.” (COSTA LIMA, 1980, 169). Nesse caso, o que antes se tomava como referência não é mais o lastro de partida e sim o de 248
Carla Araújo Lima da Silva
chegada, que é concluído através da recepção por parte do imaginário do leitor. Ainda sobre a mímesis de produção, Costa Lima defende a mesma assertiva de que, para a efetivação do produto mimético, deve haver a presença dos vetores da semelhança e da diferença. No entanto, no caso da mímesis de produção, haverá a preponderância do vetor da diferença, responsável por desfazer o lastro de referência que guiava o receptor. Ao tratar da mímesis, Costa Lima (1980) infere que esta supõe uma relação de correspondência entre uma cena primeira e uma cena segunda. Para o crítico, a cena primeira (orientadora) estaria ligada as representações sociais e a cena segunda estaria ligada à cena particularizada na narrativa. Neste sentido, na mímesis de produção, o vetor da semelhança se faz necessário para que haja a revelação de uma diferença, ou seja, é através da semelhança que a diferença será exaltada e receberá uma nova significação. Esse apoio mínimo em algum dado externo é fundamental para que o leitor possa perceber o alargamento (ou subversão) do real proposto pela mímesis de produção, caso contrário o produto mimético seria uma mera abstração inacessível ao receptor. Sendo assim, a mímesis de produção é a divergência entre o que o leitor tem como expectativa e a proposta de significação do texto literário. Em resumo: na mímesis de representação prevalece o vetor da semelhança, enquanto que na mímesis de produ249
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
ção prevalece o vetor da diferença, garantindo à mímesis o caráter de dupla entrada, no qual a semelhança está ligada a reconfiguração da realidade empírica, permitindo ao leitor uma identificação com o real reconfigurado; enquanto que no caso da diferença, o autor rompe o lastro de identificação que guia o leitor, e aquilo que se tem como Ser é destruído e recriado pelo autor, ainda que este rompimento com o referente não seja gratuito, pois o autor o faz com o intuito de alargar o real e, interagindo com o imaginário do leitor, atualizar-se neste mesmo real. Após essa explanação teórica sobre os dois tipos de mímesis, este artigo cede espaço a uma breve análise de O visconde partido ao meio, no intuito de através da arte mimética entender a alegoria do homem partido proposta por Italo Calvino. O visconde partido ao meio é um romance narrado pela ótica do sobrinho adolescente de Medardo, que não tem seu nome revelado ao longo da narrativa. O jovem sobrinho conta a chegada de Medardo a Terralba, envolto em uma capa preta e apoiado em uma bengala, partido ao meio. Medardo, após uma batalha sangrenta é gravemente ferido por uma bala de canhão que o parte ao meio. Para curar-se, volta a sua cidade e, após algum tempo, recupera-se totalmente, ainda que partido verticalmente. No entanto, Medardo é agora um jovem triste e sombrio que passa a aterrorizar a população com suas maldades. O Visconde parte ao meio tudo o que 250
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vê: bichos, plantas, objetos; manda construir forcas e instrumentos de tortura para punir os cidadãos que discordassem dele, incendeia as casas dos pobres camponeses. A existência do Visconde passa a causar medo e terror em Terralba até o dia em que suas ações começam a mudar. O Visconde passa a agir com bondade, intrigando os moradores que tão logo percebem que não era o Mesquinho que havia mudado e sim que a outra metade do Visconde, a bondosa, havia voltado. No início, a bondade do Medardo Bom agradava a população, porém, de tão excessiva, passou a incomodar a todos e a população já não aceitava nem a bondade excessiva nem a crueldade desmedida dos Viscondes e esperava um dia que essa situação se resolvesse. Apaixonados pela mesma garota, Pamela, as duas partes do Visconde resolvem ganhar o amor da moça através de um duelo. Na luta, os dois se ferem exatamente na linha que os dividia, abrindo novamente as chagas que haviam cicatrizado. Graças aos estudos do Dr. Trelawney, uma cirurgia é feita e, finalmente, as duas partes do Visconde são unidas, dando lugar a um Medardo muito mais sábio e consciente de sua natureza humana. Como consequência, a população de Terralba tem o tão esperado alívio e, com Medardo novamente inteiro, pode usufruir de uma vida melhor. Italo Calvino ao construir uma narrativa do impossível, trata de um tema fundamental da modernidade que é o abismo que separa o homem do mundo e de si mesmo. A 251
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
existência, nesse romance, é proposta através da alegoria do homem partido e dicotômico, dividido entre a bondade e a maldade. No entanto, para que essa alegoria seja percebida pelo leitor, Calvino ambienta seu romance em uma cidade fictícia medieval. Para a construção da trilogia I nostri antenti, Italo Calvino tomou por base histórias, lendas e contos orais pertencentes ao imaginário literário medieval italiano, e sendo assim, ao ambientar a narrativa de O visconde partido ao meio no medievo, Calvino se utiliza das principais representações e classificações sociais que dispõe para possibilitar o lastro de entendimento do leitor. O mundo medieval tem como principal referencial histórico e social as Cruzadas cristãs e os cavaleiros que se propunham a lutar em nome da fé. Era uma sociedade estratificada, dividida entre os membros da nobreza, da Igreja, os cavaleiros e o vulgo. Como era o homem nobre quem comandava as cidades e os povos, as regras e convenções criadas privilegiavam apenas os interesses da nobreza. É nessa configuração, percebida na narrativa italiana, que se pode inferir a presença do vetor da semelhança, essencial à construção da arte mimética e que transpõe para a ficção o correlato de real, ao reconfigurar informações e situações da realidade empírica para o texto literário. No caso de O visconde partido ao meio, mesmo construindo uma narrativa do impossível – um homem partido ao meio –, Italo Calvino ambienta sua narrativa em um mundo 252
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plausível e identificável. As referências que se tem de tempo, costumes e maus costumes, estratificação social, divisão religiosa, abuso de poder, intolerância (social, religiosa), todos esses elementos são representados em consonância com aquilo que se tem como representação social da Idade Média. Essas referências denotam a presença do vetor da semelhança necessário a efetivação do produto mimético no texto literário, no entanto, a representação mimética que Calvino propõe vai além da tentativa de transformar a narrativa em um mero quadro ou mera exibição de como seria a vida em tempos medievais. Ao reconfigurar a representação social medieval, Calvino, como um homem do século 20, propõe discussões acerca da própria humanidade, discussões que desde a Idade Média fazem parte da formação do ser humano. Nesse sentido, a presença do vetor da semelhança se faz necessário na construção da narrativa para que o lastro de representação e entendimento do receptor seja construído. Italo Calvino faz uso dessas representações para que o leitor identifique-se com um universo reconhecível e plausível com a realidade empírica mimetizada, ainda que, com o desenvolver da narrativa, perceba-se que este lastro de referência é desfeito. Um exemplo bastante evidente da presença do sema da semelhança é a inserção feita por Calvino de duas comunidades: a comunidade dos huguenotes e a comunidade dos leprosos. Os huguenotes eram um grupo de camponeses 253
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que seguiam a religião de mesmo nome e que moravam em Col Gerbido, como explicita o trecho: Era gente que fugira da França, onde o rei mandava cortar em pedaços todos os que seguissem a religião deles. Na travessia das montanhas haviam perdido seus livros e objetos sacros, e agora não tinham mais nem Bíblia para ler, nem missa para celebrar, nem hinos para cantar, nem orações para recitar. Desconfiados como todos que sofreram perseguições e que vivem no meio de gente que professa outra fé, não tinham aceitado receber nenhum livro religioso, nem ouvir conselhos sobre o modo de celebrar seus cultos. (CALVINO, 2011, p.41).
Ao criar a comunidade dos huguenotes, Calvino faz uma clara referência à intolerância religiosa tão evidente na Idade Média e que ainda se faz presente na nossa atualidade. Quando cria a comunidade dos leprosos, uma comunidade excluída, mas que ainda assim é mais feliz e solidária que a população saudável de Terralba, Calvino reconstrói o papel da ciência medieval onde, por falta de conhecimento, muitos doentes eram excluídos ou assassinados pelas autoridades, como no caso da epilepsia que era vista como possessão demoníaca. É nessa condição que o sema da semelhança, através da alegoria e do fingimento, se faz presente na narrativa de Calvino. O autor lança mão das principais representações,
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das principais características sociais, políticas, filosóficas e históricas da Idade Média e as reconfigura de forma que elas, no momento da recepção, fazem sentido dentro do universo literário de Terralba e dentro das classificações sociais do mundo empírico do leitor; assim como também fazem sentido no momento de recepção quando o leitor, através de seu conhecimento e do preenchimento dos vazios pelo seu imaginário, pode efetivar a recepção com eficácia e reinvestir a ficcionalidade dos acontecimentos da obra na realidade empírica, aprendendo e refletindo, por exemplo, um pouco mais sobre a intolerância religiosa e a intolerância perante o desconhecido. Nesse caso, O visconde partido ao meio foge da condição de mímesis como imitação e assume o caráter de ‘como se’, de recriação de uma realidade. O vetor da semelhança, próprio da mímesis, ao ser trabalhado por Calvino, permite que a narrativa reconfigure um tempo passado reconhecível pelo leitor, assim como também permite que este mesmo leitor, através de seu imaginário, atualize essa reconfiguração e reinvista a significação recebida em sua própria realidade. A inserção do tempo histórico medieval feita por Calvino é proposital e serve de apoio para que a situação de Medardo seja plausível. É fato que nas novelas de cavalaria da baixa Idade Média, os acontecimentos eram regidos pelo aspecto do maravilhoso. Havia uma explicação divina ou mágica para acontecimentos surreais ou impossíveis na rea255
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
lidade empírica. No entanto, em O visconde partido ao meio, não há uma explicação mágica, divina ou maravilhosa para o que acontece com Medardo. Há, nessa obra, uma brincadeira entre o possível e o impossível. Em um tempo onde o impossível era justificado através de ações divinas ou mágicas, Calvino explica o impossível através do plausível, através de justificativas científicas. A áurea do medievo permite ao leitor aceitar que a bala de canhão que atingiu Medardo apenas partiu-o ao meio e que este não morreu, pelo contrário, ficou com metade de seu corpo após a cicatrização das feridas. O avanço científico do século 20 permite ao leitor imaginar que cirurgias e óleos medicinais talvez pudessem curar acidentes tão graves. Nesse caso, o aspecto do fantástico típico da literatura medieval dialoga com o avanço científico evidente do século 20. Nesse sentido, Italo Calvino joga com o antigo e o moderno para ambientar sua narrativa do impossível e ao construir essa atmosfera do surreal, Italo Calvino desfaz lastro de referência com o real antes construído e propõe ao seu leitor uma outra consideração daquilo que se adotava como Ser. As situações nas quais se encontra Medardo (tanto sua metade bondosa quanto a cruel) fazem parte de uma subversão daquilo que se tem como Ser, utilizando-se o conceito no sentido empregado por Costa Lima (1980, p, 169): “a maneira como a sociedade concebe a realidade, o que aí ela recorta como o passível de existência”. Para a realidade empírica é 256
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impossível que o ser humano seja atingido por uma bala de canhão e sobreviva partido ao meio. Essa condição subversiva do físico (e do ser) do homem aparece na narrativa através da alegoria. Italo Calvino utiliza a figura partida de Medardo para abordar o caos da existência humana e da frustrada tentativa da humanidade de ser inteiro, de defender uma essência pura: bom ou mal, feliz ou triste. Esse critério de fragmentação do Ser representado através da figura partida do Visconde denota a predominante presença do vetor da diferença, também essencial a efetivação do produto mimético. A representação antes construída por Italo Calvino em sua narrativa, através do signo da semelhança, e que permitia o leitor identificar-se com um tempo e uma situação social do medievo, é quebrada pelo próprio autor quando este parte, literalmente, Medardo ao meio. O lastro de referência antes construído é desfeito quando o autor italiano propõe um jogo narrativo onde o impossível – explicitado através do vetor da diferença – irá se atualizar, através do imaginário do leitor, na realidade ficcional, fechando a leitura e permitindo um novo entendimento do que antes se tinha como representação social, ou seja, tornando-se possível, ganhando significação. Infere-se, portanto, que na narrativa O visconde partido ao meio, há a predominância do vetor da diferença e, portanto, a presença da mímesis de produção. O jogo narrativo de Italo Calvino perpassa o viés da semelhança exatamente para que o receptor possa construir 257
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
uma referência que o próprio autor, com o desenvolver de sua narrativa, vai mostrar não ser sustentável. Em pleno avanço científico do século 20, Italo Calvino irá mostrar, através da fratura de Medardo, que há uma impossibilidade do homem moderno de ser inteiro em sua essência. Através da alegoria da fragmentação física, a narrativa instiga um entendimento sobre a fragmentação do homem moderno que pensa ser consciente de si e que, na verdade, conhece pouco de sua natureza humana. A referência de um Visconde inteiro e a destruição desta com a cesura de Medardo é a ponte para a inserção do tema do sujeito moderno fragmentado. Costa Lima ao tratar da fábula do eu solar traz a tona a questão do sujeito moderno, defendendo que é possível descobrir sob o cogito solar cartesiano um sujeito fraturado. Essa defesa é feita pelo teórico através da oposição entre o pensamento cartesiano e o pensamento kantiano. Para Descartes, o “penso, logo existo” determinava a natureza do sujeito solar, sujeito esse que se queria completo, guiado pela razão e por aquilo que supunha ser o verdadeiro conhecimento. Segundo o filósofo, o homem, guiado pela razão e, portanto, apto a pensar sobre si mesmo, estava assegurado quanto ao entendimento de sua essência. No entanto, essa centralidade no sujeito e na razão vai ser repensada quando Kant sugere a totalidade do homem não como um modelo mecânico, como propunha Descartes, mas sim como um fenômeno que responde às várias condições do conheci258
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mento, não resumindo-se na centralidade do homem e da razão. Descartes entendia que a totalidade do homem era a totalidade do corpo como máquina no qual o ato de pensar assegurava a existência como algo dado, enquanto Kant contrapunha esse pensamento ao sugerir que o “eu penso” deveria determinar a existência do homem, mas não como algo dado e sim como resultado da vivência e da transcendência do conhecimento. Com essa contraposição, o pensamento de Kant desfaz a posição do sujeito solar e passa a entender a essência humana “como um fenômeno e não mais uma substância, [...] ao contrário, do que pretendia Descartes, de servir de mínimo denominador comum do conhecimento infalível. A sombra da fratura que, em Descartes, ainda se escondia da luminosidade do cogito, agora se expande” (COSTA LIMA, 2000, p, 106). Essa explicação teórica sobre a fratura do sujeito moderno esclarece bastante a alegoria do homem fraturado proposta por Calvino. Através da figura de Medardo, Italo Calvino questiona a integridade – enquanto essência – da figura humana e de como o entendimento de si parte, principalmente, das experiências vividas pelo homem e de como este não é mais um sujeito solar, completo, guiado pela integridade da razão, do conhecimento ou da religião. O homem moderno é partido, fraturado, múltiplo e essa multiplicidade do sujeito é quem vai permitir este viver diversas situações que, como sugere Kant, são fenômenos 259
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
que vão possibilitar o homem compreender a si mesmo enquanto essência e, por consequência, entender mais do mundo e das pessoas ao seu entorno. Essa fratura de alma é representada pela fratura do corpo do Visconde e essa fratura física, presente na narrativa italiana em questão, é produto da mímesis de produção que desfaz o lastro de referência através da inserção e predominância do vetor da diferença na obra mimética. Uma vez que a mímesis de produção desfaz o lastro de referência da representação, esse rompimento vai conferir um novo significado à cena primeira (orientadora) e, nesse caso, as ações, os acontecimentos, assim como a própria personagem irão denotar, através da estrutura do texto, a presença desta mímesis de produção. No entanto, é importante lembrar que esta mímesis não se encerra apenas na ruptura do lastro de referência, na subversão daquilo que se tem como ser. A mímesis de produção, como afirma Costa (2010, p.51): [...] envolve a construção e a vivência de novos sentidos até então não experimentados, a “outra realidade” que ela produz não concerne apenas à criação de uma nova versão de mundo, a mímesis da produção, dito de outro modo, envolve a possibilidade de experimentarmos novos estados de ser no mundo.
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Nesse sentido, para além da subversão a mímesis de produção precisa oferecer ao leitor uma nova visão do mundo, uma nova vivência e, em O visconde partido ao meio, através da figura de Medardo, de suas ações e de seus questionamentos, o leitor pode experienciar a sensação de estar partido ao meio. Questionar-se sobre sua inteireza e, como consequência deste questionamento, compreender mais de si e da natureza do homem, como bem explicitado em uma passagem na qual o Visconde questiona sua nova condição de sujeito fraturado: Ó, Pamela, isso é o bom de ser partido ao meio: entender de cada pessoa e coisa no mundo, a tristeza que cada uma sente pela própria incompletude. Eu era inteiro e não entendia, e me movia surdo e incomunicável entre as dores e as feridas disseminadas por todos os lados, lá onde, inteiro, alguém ousa acreditar menos. Não só eu, Pamela, sou um ser partido e desarraigado, mas você também, e todos. Mas agora tenho uma fraternidade que antes, inteiro, não conhecia: aquela com todas as mutilações e as faltas do mundo. (CALVINO, 2011, p, 70-1).
Sendo assim, pode-se inferir que na narrativa de Italo Calvino há a presença da mímesis de produção proposta por Costa Lima. Apesar da inserção do vetor da semelhança que surge como uma reconfiguração das representações sociais 261
Mímesis e representação em O Visconde Partido ao Meio
que se tem do medievo; o vetor da diferença predomina na narrativa através da subversão do Ser e do aspecto físico do homem. A presença dos dois vetores na mímesis de produção percebida na obra indica que não há uma exclusividade na forma de representação da arte mimética, de modo que Calvino não tenta reproduzir a vida medieval, nem subverte a condição do ser do homem apenas para causar estranhamento. O intuito do autor, através do diálogo entre os dois vetores – semelhança e diferença – é conduzir o leitor a uma reflexão sobre a natureza da humanidade que insiste em valorizar uma verdade pura, imutável e que traduza a essência de si, sem perceber que, talvez, a essência do homem esteja exatamente em sua condição fraturada: “uma mistura de maldade e bondade” (CALVINO, 2011, p, 94). Considerações finais Para além de uma mera narrativa cômica, de errâncias e enganações, O visconde partido ao meio propõe uma análise sobre a grande questão do homem moderno: a fratura da alma. É através da figura partida de Medardo que Italo Calvino discute a tentativa do homem moderno de resgatar a sua ilusória inteireza. Medardo quando inteiro, antes do acidente, era um jovem que não tinha consciência de sua natureza e não entendia do mundo. Quando partido, bipolarizou os sentimentos e as ações, vivenciando experiências 262
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que se tornaram essenciais para a formação do Visconde quando operado e unido novamente. Ao final da narrativa o Visconde tem uma consciência de si e do mundo, entende com mais clareza a subjetividade do homem e pode, com essa sabedoria, comandar sua vida com sobriedade. Para isso, Italo Calvino ambienta sua narrativa em um período assombroso da História, a Idade Média, onde o homem ainda estava perdido entre os discursos oficiais das instituições de poder. No entanto, Terralba não é apenas um retrato de uma cidade medieval, Terralba é a reconfiguração das principais representações sociais da sociedade medieval e, nesse sentido, Calvino nos põe em contato com – essa realidade, fingindo-a através dos vetores da semelhança e da diferença que reconfiguram esse universo e utiliza-o como ponte para o entendimento de muitas questões da humanidade que resistem ao avanço dos tempos. A figura do Visconde Medardo de Terralba é uma alegoria do homem moderno partido ao meio, do herói moderno que não tem mais a ajuda dos Deuses nem o destino traçado. Do homem moderno que tem que se entender para conseguir viver, viver por conta própria. A subversão, a ruptura do lastro de referência antes construído, através do vetor da diferença, predominante na narrativa e próprio da mímesis de produção, é o caminho que permite o leitor, no processo catártico de Aristóteles, aliviar-se por não padecer do mesmo mal de Medardo, ao mesmo tempo em que a semelhança e 263
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o processo alegórico mostram ao leitor que o mal que sofre o Visconde é, na verdade, a busca de todo o ser humano: entender-se enquanto essência – ainda que partida, múltipla e instável – para, enfim, viver inteiro. Referências CALVINO, Italo. O visconde partido ao meio. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. COSTA, Fabiana Ferreira. A mímesis, os estudos culturais e a Balada da infância perdida: a literatura em questão. 2010. 138f. Tese (Doutorado em Letras) – Programa de Pós Graduação em Letras na Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010. COSTA LIMA, Luiz. A explosão das sombras: mímesis entre os gregos. In: Mímesis e modernidade: formas das sombras. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1980. p. 1-63 ______. O questionamento das sombras: mímesis na modernidade. In.: Mímesis e modernidade. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1980. p. 67-223. ______. Representação social e mímesis. In: Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1981. p. 216-236. ______. Aproximação de Jorge Luis Borges. In: O fingidor e o censor. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1988. p. 257-306. ______. Mímesis e verossimilhança. In: Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 31-68. ______. Sujeito, representação: fortuna, reversão. In: Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 73-161. ISER, Wolfang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. In: LIMA, Luiz Costa [org.]. Teoria da literatura em suas fontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 2. p. 955-987.
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Mímesis e tradução, uma perspectiva
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ma das grandes problemáticas do estudo da ficção é a da relação entre o texto ficcional e a referencialidade. Ampliando o espectro desse debate até os estudos da tradução literária, vêse como ainda é terreno controverso o do estatuto do texto traduzido na sua relação com a obra-fonte. Ao lado disso, o percurso conceitual desse fenômeno esteve sempre acompanhado da ideia de imitação, o que nos remete ao próprio trajeto da mímesis, por tanto tempo identificada com o sentido de imitatio. Diante desse panorama, em que o significado de imitação
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Mímesis e tradução, uma perspectiva
adquire tal relevância para ambos os fenômenos, desejou-se articulá-los a fim de, ao menos, apontar diferentes pontos de vista sobre a prática tradutória. Sobretudo, com o anseio de, com essa articulação, ampliar o debate e buscar contribuir com novas possibilidades de pesquisa em ambos os campos. O resgate da mímesis A leitura tradicional que interpretou a mímesis como imitatio supõe um equívoco de compreensão, fruto de uma tradição que deformou o núcleo semântico da palavra ao associá-la a termos como imitação, cópia, reflexo, espelho (COSTA LIMA, 2002). Tal percepção remonta à era dos poetas e pensadores clássicos gregos. A esse momento pertencem os primeiros vestígios de uso da palavra, mas ela não denotava diretamente o sentido de imitação; era mais um emprego sugestivo, aproximado desse sentido, que terminou por ser assimilado pela crítica com o significado de cópia, reprodução. Posteriormente, essa forma de compreender a mímesis foi amplamente difundida pelo Renascimento, cujo ideário postulava a imitação da natureza – a realidade – pela arte de forma a organizá-la. A “matematicidade” renascentista buscava a representação dos objetos o tanto mais próxima possível da realidade concreta. Além disso, a reverência ao passado clássico grego e romano praticada pelo Renasci266
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mento fazia dos referentes artísticos limites bastante determinados. Diante disso, a reflexão apressada do conceito de mímesis facilmente a colocaria como uma cópia da realidade inspiradora da arte. Se o objeto artístico era julgado belo tanto mais parecido fosse com a realidade, identificar a prática artística com a imitação parecia natural, esperado. A revisão conceitual da mímesis foi como que demandada pelo próprio curso da poética moderna. Expressões artísticas desenvolvidas ao longo do século XX, as tradicionalmente chamadas vanguardas, claramente negaram a representação artística identificada com a imitação exata da realidade – o espírito renascentista por excelência. Nesse sentido, a compreensão da mímesis como imitatio estava sendo concretamente afastada. Chegou o tempo em que o artista passou a ser considerado alguém que efetivamente cria – e cria, portanto, a sua realidade, numa busca pelo pertencimento causada pela sensação de desconhecimento da nova configuração do mundo moderno. Este, por não ser mais passível de compreensão pelo homem, agora identificado como um sujeito fragmentado, não é mais passível também de ser representado de forma especular e unívoco. A concepção tradicional de mímesis, portanto, demanda a sua própria reelaboração: “Aí se inaugurava uma prosa de extrema criticidade quanto às feições assumidas pelo real [...] nesta situação, a teorização que podia permanecer implícita necessita repassar seus pressupostos, revê-los e 267
Mímesis e tradução, uma perspectiva
não mais simplesmente se deixar guiar por eles.” (COSTA LIMA, 2002, p. 30). Se a criação artística se volta para uma realidade interiorizada do artista, a mímesis como reprodutora da realidade exterior perde sentido. Mas, mais do que simplesmente excluir o fenômeno do pensamento artístico, era preciso resgatar um paradigma diferente do conceito. A mímesis vem com a sombra A menção à possibilidade da diferença na atividade mimética aparece já no campo pré-conceitual da mímesis, com Píndaro (COSTA LIMA, 2000). Aí já era possível entender que, no fazer mimético, pela produção da diferença se tentava chegar à semelhança, porém o que havia mesmo era uma dominância da semelhança. Fala-se mesmo até na composição ilusionista de certas obras, que, de tão semelhantes ao seu referente, confundiam-se com o real. Nesse momento, o importante era a habilidade de esconder a diferença, criando uma verdadeira tensão com o elemento da semelhança pela inevitável presença daquela. Invariavelmente associada à cultura clássica grega, entre os séculos V e VI a.C., na “situação sociomental” (COSTA LIMA, 2002, p. 31) em que se localizava essa sociedade ainda não cabia espaço para a teorização da mímesis. Havia uma relação do poeta com a verdade e a realidade em que ele as deveria construir como únicas. Havia uma única verdade, e 268
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esta era a ditada pelo poder da nobreza, não havendo possibilidade de o poeta formular outra concepção de verdade e, portanto, de realidade. Sendo a palavra una, uma teoria da mímesis não se fazia possível. A chamada dobra da palavra vai se dar como uma consequência, ou uma demanda, das transformações políticas pelas quais passa a sociedade grega, saindo de um período de domínio absoluto da aristocracia para a progressiva democratização –�������������������������������������������� ��������������������������������������������� horizonte propício para o debate, a discordância de opiniões, a divergência de pontos de vista: a não unicidade da verdade. A épica deixa de dar conta da nova configuração social, enquanto a tragédia mostra-se hábil em aproximar a arte do homem comum e sua nova realidade. Em outras palavras, a nova situação social tornou possível, por meio da tragédia, a palavra promover uma releitura da tradição sobre a realidade e o homem. A palavra una, sem sombra, passa a ser biface: “A dobra da palavra significa sua força de engano, sua capacidade de conduzir para este ou para aquele rumo”, explica Costa Lima (2002, p. 43). A palavra ilumina e também faz sombra ao iluminado. Daí nasce a possibilidade de representação, pela duplicidade do objeto que se cria na relação luz-sombra.
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A inversão do molde, ou as formas da diferença Em um dado momento de suas reflexões sobre a mímesis, Costa Lima (2000) levanta o seguinte questionamento: se, diferentemente da mímesis antiga, que sujeitava a produção artística aos limites de um referencial identificado como sendo a realidade, como tratar da mímesis não normatizada (visto que não se podia mais falar de realidades padronizadas diante da fragmentação do sujeito)? É possível desconectá-la de um referencial externo? Pode-se falar de uma produção mimética livre de uma modelagem histórico-social, inerente a qualquer sociedade? A reelaboração propriamente na conceituação da mímesis acontece não com a anulação da sua teorização antiga, como já afirmado acima, mas pela reconsideração de um aspecto nela presente, mas como que tornado latente pela crítica tradicional: a presença do vetor da diferença. Tal pressuposição não deseja que se pense estar eliminado da atividade da mímesis o vetor da semelhança. Na relação entre atividade mimética e referencialidade, está claro que a primeira, no seu fazer, suporá um algo anterior a que servirá de molde, a que costumeiramente se identifica por realidade, ou melhor, uma concepção desta. Esse mesmo molde serve tanto para que o mimema suponha a semelhança quanto para que produza a diferença.
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Se existem obras de arte que praticaram a valorização do oposto ao semelhante, foi preciso problematizar a relação da mímesis com a referencialidade, o que Costa Lima (2002) chama de questionamento da mímesis de representação, fundamentando a mímesis de produção. Criado pioneiramente com a obra de Mallarmé (cf. COSTA LIMA, 2002), esse tipo de mímesis não representa uma realidade previamente estabelecida ou não se baseia minimamente nesse dado prévio, mas produz uma nova dimensão dessa realidade, justamente por apresentar um vazio inicial de compreensão da obra. Fica evidente a relação do receptor com a mímesis e também como esta se faz em meio a relações ambíguas. É pela diferença que se conhece a semelhança. É só pelo conhecimento do que o receptor considera realidade que se pode quebrar com ela e apresentar uma nova possibilidade de concebê-la; e só se poderá concebê-la de uma maneira nova sabendo-se como é prévia e consensualmente estabelecido esse conceito de realidade. A partir daqui desejamos ter chegado a um ponto de esclarecimento para conseguirmos pensar sobre o estatuto do texto literário traduzido no território da reflexão sobre a mímesis. Como a relação entre a tradução e referencialidade sempre se apresentou como a grande problemática nesse campo, pensamos obter um novo ponto de vista do fenômeno ao pensá-lo em vista da própria história do desenvolvimento da mímesis. 271
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Os labirintos da tradução Ao analisar a trajetória do conceito de tradução, observamos que ele, tal como no caso da mímesis, sempre esteve cercado pela ideia de ser uma imitação. Sua definição, porém, não é fechada nem absoluta, mas um construto histórico, flexível. Embora hoje pareça haver um consenso em torno do que o termo significa, diversas expressões diferentes já foram usadas de forma concomitante para se referir, aparentemente, à mesma atividade. Segundo Burke (apud SILVA, 2011), já no século XVIII não se podia nem mesmo afirmar haver garantias de que se falava da mesma coisa quando se utilizava a palavra tradução, já que o que se entendia por texto original e texto traduzido diferia: em alguns casos, o texto traduzido era completamente diferente do texto original, por ter sido abreviado ou ampliado. A própria expressão traduzir se apresenta problemática desde sua origem, como atesta Eco (2007, p. 9): O que é traduzir? A primeira e consoladora resposta gostaria de ser: dizer a mesma coisa em outra língua. Só que, em primeiro lugar, temos muitos problemas para estabelecer o que significa “dizer a mesma coisa” e não sabemos bem o que isso significa por causa daquelas operações que chamamos de paráfrase, definição, explicação, reformulação, para não falar das supostas substituições sinonímicas. Em segundo lugar, por272
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que, diante de um texto a ser traduzido, não sabemos também o que é a coisa. E, enfim, em certos casos é duvidoso até mesmo o que quer dizer dizer.
No período renascentista, quando o estatuto de mímesis como imitatio difunde-se definitivamente, o campo literário também ressoou as consequências dessa ideia. Tendo alguns escritores se consagrado pela tradição literária, passaram a constituir o cânone literário de certa cultura, com a consequência de se tornarem, naturalmente, paradigma para as produções posteriores. Tornam-se escritores-modelo. Nesse sentido, se tais obras são consideradas modelo de literatura, passam a ser, então, imitadas. Mas, nessa mesma época, a divisa entre tradução e imitação era menos nítida do que veio a ser em períodos posteriores, principalmente a partir do século XIX. Ainda no Renascimento, segundo Freitas (apud SILVA, 2011, p. 29), “o tradutor gozava de um estatuto de autor, uma vez que ele produzia um texto que primava pelo seu efeito na cultura de chegada e, por conseguinte, poderia interferir mais na escritura do texto produzido”. Podemos perceber que, em tradução, a figura do autor foi adquirindo autoridade com o passar do tempo, de forma a criar uma servidão do texto traduzido ao autor do texto-fonte, que parece se confundir, quando se trata de tradução, com a própria obra. Nessa reelaboração da posição do autor, valores e discursos vão sendo construídos, e é aí que a tradução se atrela à ideia de imitação. 273
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Foi no final do século XVIII, com a publicação de Essay on the Principles of Translation, do escritor escocês Alexander Fraser Tytler, que tomou corpo a concepção tradicional e popularizada de que a tradução deveria ser acompanhada da transparência, neutralidade e fidelidade em relação à obra referência. Tytler (apud SILVA, 2011, p. 31) chegou a estabelecer normas para a realização de uma boa tradução: 1) A tradução deve prover uma reprodução, em sua totalidade, das ideias da obra original. 2) O estilo e o modo de escrita da tradução devem ter a mesma natureza do original. 3) A tradução deve ter toda a fluência do original.
Segundo a concepção de Tytler, a boa tradução deve unir fluência à fidelidade, só alcançando essa meta pela incorporação, pelo tradutor, da “alma” do autor, seus sentimentos e seu modo de pensar e se expressar. A tradução, portanto, era uma imitação em busca da máxima correspondência possível com seu referente. O leitor como sujeito agente ainda não era considerado, assim como também não se cogitava tratar o texto traduzido como em diálogo com a situação social a que se dirigia. A pesquisa em tradução costuma dividir a trajetória da construção de seu conceito em duas grandes vertentes representativas. A primeira seria a concepção tradicional
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acima apresentada, encabeçada por Tytler. A segunda seria a de orientação linguístico-cientificista, desenvolvida no período pós-Segunda Guerra e representada por nomes como o americano Eugene Nida, o escocês John Catford, o alemão Erwin Theodor e, no Brasil, o húngaro-brasileiro Paulo Rónai. Não cabendo ao escopo deste trabalho apresentar cada ponto de vista dos tradutores acima, vale, ao menos, resumir que a linha linguístico-cientificista mantém a concepção de texto traduzido como uma reprodução do texto fonte, devendo aquele anular qualquer rastro da presença do tradutor, apenas reproduzindo em outra língua a mensagem dada. A virada paradigmática: da normatividade aos estudos descritivos Os considerados primeiros métodos de tradução se davam pela tradução palavra por palavra ou sentido por sentido, sistematização estabelecida pelos romanos e que deu origem a todas as dicotomias de conotação literal versus livre que guiaram a tradução. A tradução palavra por palavra se pretendia o mais literal possível. Sua utilização remonta à tradução das primeiras Escrituras, quando a Igreja Católica preocupava-se em não desvirtuar as palavras divinas, exigindo, portanto, fidelidade com as palavras traduzidas. Certamente esse método gerava dificuldades de 275
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compreensão. Segue-se, então, a ela o método da tradução sentido por sentido, que remonta à tradução do grego para o latim no século II da era cristã. Menos apegados ao sentido literal de cada palavra, os romanos priorizavam a fluência e naturalidade do texto traduzido, como atesta Cícero (apud SILVA, 2011, p. 54): Decidi tomar discursos escritos em grego por grandes oradores e traduzi-los livremente. E eu obtive o seguinte resultado: dando uma forma latina ao texto que li, eu não apenas faço uso das melhores expressões de uso corrente entre nós, mas também posso cunhar novas expressões, análogas às usadas em grego, e elas não são mal recebidas por nosso povo desde que sejam apropriadas.
O debate de viés dicotômico na pesquisa em tradução (e também na atividade em si) perpetuou até metade do século XX, e a equivalência e a fidelidade estiveram sempre presentes, cristalizando continuamente seus sentidos. Apesar de raramente definida com alguma precisão, a fidelidade parece ter sido a medida mais empregada para avaliar a qualidade de uma tradução. Por muito tempo, portanto, para a tradução, o texto original tinha valor de verdade, e a tradução só poderia ser um subproduto desse texto padrão. A palavra autoral exigia um comportamento subserviente do tradutor. Nesse 276
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sentido, associar fidelidade à verdade apresenta o problema de presumir que a verdade seja fixa e única, em cada obra e para todo autor. A noção de integralidade também foi associada à de fidelidade em tradução e acarretou problemas. A reprodução integral de um texto tornou-se imperativo da boa tradução; se se considerasse que houvera alguma mudança na tradução, esta já seria classificada como uma adaptação ― embora, na prática, considerando que texto fonte e tradução são dois textos de existência independente, todo texto traduzido seria, então, uma adaptação. Só nas décadas de 1970 e 1980 é que pesquisadores israelenses e dos Países Baixos trouxeram para os estudos de tradução uma mudança de paradigma que veio iluminar consideravelmente novos caminhos para esse campo. A partir de influências advindas dos estudos de Literatura Comparada, foram incorporadas aos estudos de tradução, principalmente de tradução literária, uma “postura comparativista”, que buscava favorecer uma concepção de tradução como sendo livre, procurando dar ao tradutor a possiblidade de exercer sua atividade com relativa liberdade. A partir desse novo paradigma, passou-se de um modelo de análise prescritivo para um estudo descritivo do fenômeno tradutório, constituindo os chamados Estudos Descritivos da Tradução. Por esse modelo, foram introduzidos aos estudos de tradução “a abordagem não normativa da tradução literária, a visão da literatura traduzida como parte integrante de um siste277
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ma mais amplo e o interesse pelas condições de recepção e produção de uma obra traduzida”, explica Batalha (2007, p. 76). Dessa forma, portanto, admite-se pela primeira vez nos estudos tradutórios a inserção e influência que o contexto, o leitor e o “horizonte de expectativas” (BATALHA, 2007, p. 78) exercem nessa atividade. No Brasil, já em 1970 podíamos encontrar textos sobre tradução, reflexões realizadas especialmente pelos poetas e tradutores Haroldo de Campos e Augusto de Campos. Estes já consideravam a literatura traduzida como renovadora do sistema literário para o qual se dirigia (BATALHA, 2007). Na perspectiva de Haroldo de Campos, a tradução é um processo de fecundação da língua, uma transcriação que produz novos textos e novos significados. Por isso, o poeta tradutor fala de “transluminação”, “transluciferação”, para expressar sua visão de tradução criativa e resgatar o papel configurador da função poética, refazendo o percurso da “intencionalidade” do autor. (BATALHA, 2007, p. 71).
Com esse ponto de vista, vemos que os irmãos de Campos admitiam uma função impulsionadora da tradução e a inserção da atividade em uma perspectiva histórica, ou seja, admitindo que a tradução produz um texto novo, reconheciam-na como atividade criadora, e não copiadora.
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A partir da virada paradigmática iniciada pelos Estudos Descritivos, muitos outros poetas, críticos e tradutores brasileiros publicaram suas reflexões sobre o assunto, entre eles o crítico e tradutor José Paulo Paes, que considera o texto traduzido dotado de um estatuto próprio, uma subjetividade única. Há também os trabalhos de Heloísa Gonçalves Barbosa ������������������������������������������������� –������������������������������������������������ que fez uma revisão dos modelos teóricos e procedimentos metodológicos da tradução, livro considerado pioneiro por fazer esse apanhado da prática tradutória de até o início dos anos 1980 – e de Paulo Roberto Ottoni, que se propôs a pensar a relação da teoria e prática no ensino da tradução (BATALHA, 2007). Existem ainda os trabalhos de Maria Paula Frota, Mário Laranjeira, Marcia Martins, John Milton, Andréia Guerini, Maria Clara Galery, entre tantos outros, incorporando à literatura do assunto cada vez mais material, com pesquisas atualizadas.1 Abordagens modernas do assunto centram-se na relação da tradução com outras áreas, como Psicanálise, Sociologia, Estudos Pós-coloniais, Estudos Culturais. Teatro e música popular são outros campos que passaram a ser examinados tam1. BARBOSA, H. G. Procedimentos técnicos da tradução: uma nova proposta. Campinas: Pontes, 1990. FROTA. M. P. A singularidade na escrita tradutora. Campinas: Pontes, 2000. GALERY, M. C. V. (org.). Tradução, vanguarda e modernismos. São Paulo: Paz e Terra, 2009. GUERINI, A. (org.). Literatura traduzida e literatura nacional. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. LARANJEIRA, Mário. Poética da tradução: do sentido à significância. São Paulo: Edusp/ Fapesp, 1993. MARTINS, M. A. P. (org.). Tradução e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999. MILTON, J. O clube do livro e a tradução. Bauru: Edusc, 2002. PAES, J. P. Tradução, a ponte necessária. São Paulo: Ática, 1990.
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bém pelo viés tradutório (GALERY, 2009), além do cinema, abordando a questão da legenda traduzida, e o fenômeno da autotradução, bastante recente, mas que já conta com material próprio, as autotraduções do escritos brasileiro João Ubaldo Ribeiro. Esta última abordagem da tradução parece bastante rica e possibilita ainda aos pesquisados se voltar para a análise da literatura brasileira traduzida, um campo menos estudado em comparação com a quantidade de pesquisas sobre literatura traduzida em outras línguas. Mímesis e tradução: espaços da diferença A partir do acima exposto foi que se pensou haver uma possível relação entre as naturezas da mímesis e da tradução. O questionamento inicial foi o de pensar se o texto traduzido poderia ser considerado um produto mimético. Partindo afirmativamente desse pressuposto, passou-se a vislumbrar pontos de encontro no desenvolvimento dos dois fenômenos. Um primeiro ponto refere-se à interpretação tradicional de serem ambos um produto da imitação; posteriormente, de serem produto e produtores do elemento da diferença. A primeira ideia legou tanto à mímesis quanto à tradução o “fardo” de estarem subordinadas a algo anterior, um modelo a ser imitado. Ao produto mimético foi conferido um estatuto de inferioridade por ser considerado sempre uma cópia do original. Esta mesma herança herdou o texto traduzido, 280
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sendo visto como um produto infiel, copiado de um texto superior porque original, primeiro. Hoje, a premissa da intraduzibilidade já não faz mais parte dos questionamentos sobre a atividade. Com a revisão conceitual da mímesis, foi preciso questionar a relação entre mimema e referencialidade. Nas palavras de Costa Lima (2000, p. 56), “como falar de mímesis sem a sujeitar [...] à modelagem a que uma época história a amolda?”. O caminho, entretanto, para desembaraçar a mímesis não foi a aposta de esta não corresponder a nada que a anteceda, não sendo, portanto, uma cópia, mas sim de deslocar o ponto de vista sobre a sua produção. Se antes sua compreensão era guiada pelo princípio da semelhança com o referencial, passou-se a observá-la como sendo moldada pelo vetor da diferença, menos como uma relação de exclusão de um vetor pelo outro, e mais como uma relação de complementaridade: [as formas de diferença] sempre mantêm um resto de semelhança, uma correspondência, não necessariamente com a natureza, mas sim com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade concebe a própria natureza. [...] A própria diferença só é percebida por alguém que nela encontra ao menos um ponto de semelhança com aquilo de que se distingue. (COSTA LIMA, 2000, p. 56).
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Dito isto, vê-se que a revisão conceitual também passou a considerar o horizonte sociocultural para o entendimento da mímesis. A mímesis, portanto, se orienta sob uma classificação social, o que significa que existe um diálogo entre o receptor e o mimema. Assim, o mimema anterior a esse diálogo está como que ainda não completo, é um produto pré-dado; a operação mimética só será efetuada após essa troca, cujos resultados são imprevisíveis, frutos de interpretações subjetivas e diversas. Em termos de texto traduzido, esse diálogo é realizado com a leitura do receptor. Por muito tempo a norma era a de que os indícios de presença do tradutor deveriam ser inexistentes, pretendendo-se criar uma verdadeira ilusão de transparência. A partir da virada conceitual iniciada pelos Estudos Descritivos, o estudo da tradução aproximou-se da teoria da recepção, pois passou a realizar a análise das traduções a partir da premissa de que a tradução é uma prática social. Portanto, enquanto mimema, ela é uma forma explícita de recepção, e o tradutor age tanto como leitor quanto como agente produtor. Nesse horizonte mimético, pode-se entender que cada texto traduzido, mesmo que seja de uma mesma obra, é fruto da leitura interpretativa de cada tradutor. As características próprias de cada idioma excluem a total correspondência entre os códigos envolvidos, o que significa dizer que foi preciso perceber os textos traduzidos considerando essa impossível equidade entre as línguas. Em 282
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outras palavras, foi preciso admitir as diferenças linguísticas (e também extralinguísticas) para dar um passo adiante nos estudos de tradução. Nas palavras de Gorovitz (2006, p. 54), “a tradução comparece precisamente na diferenciação”, pois que gera, necessariamente, um novo texto. Esse novo texto, porém, para ser percebido como tradução, precisa estar minimamente parecido com o texto-fonte. Vemos, então, que a tradução opera mesmo no campo mimético, uma vez que se concretiza pela recepção, como um produto novo, diferente, passível de interpretações diversas, mas necessariamente similar a um texto anterior. Sendo um mimema, a tradução será sempre fruto de uma interpretação, produto do que o sujeito é, pensa, de onde se localiza. O sentido não é mais delimitado pela physis, mas pela interpretação advinda da leitura. Conclusão: um ponto de partida Com este trabalho, buscamos suplementar o estudo da mímesis sob um viés diferente, o da tradução literária. Mais perguntas do que respostas, naturalmente, surgem. O que o fenômeno da autotradução, em que tradutor, autor e leitor são a mesma pessoa, implica sobre o mimema? A classificação de um texto traduzido como mímesis de representação ou de produção gera que efeitos na sua recepção? Analisar literatura traduzida dentro do horizonte da mímesis implica 283
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considerá-la um ato de criação artística? Essas questões desejam apenas ilustrar as veredas que a realização deste trabalho abriu. O maior aprofundamento é possível, e as possibilidades de cruzamentos são tanto múltiplas quanto as dúvidas que surgem com o estudo contínuo. Sem nenhuma pretensão de ter revolucionado os campos de estudo em questão, talvez tenhamos obtido sucesso com nosso anseio primeiro: o de, com o enlace entre mimema e tradução, fortalecer a compreensão da liberdade que a palavra traduzida demanda. Referências BATALHA, M. C. Tradução. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. COSTA LIMA, L. A antiphysis em Jorge Luis Borges. In: Mímesis e modernidade – Formas das sombras. Rio de Janeiro: Grall, 1980. Intervenções. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 237-265. ______. A explosão das sombras: mímesis entre os gregos. In: Mímesis e modernidade – Formas das sombras. Rio de Janeiro: Grall, 1980. Intervenções. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 25-82. ______. Desembaraçar a mímesis. In: Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 293-328. ______. Mímesis e verossimilhança. In: Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 31-69. ______. O questionamento das sombras: mímesis na modernidade. In: Mímesis e modernidade – Formas das sombras. Rio de Janeiro: Grall, 1980. Intervenções. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 85-234. ______. Representação social e mímesis. In: Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1981. p. 216-236. ECO, U. Quase a mesma coisa: experiências em tradução. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007.
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GOROVITZ, S. Os labirintos da tradução: a legendagem cinematográfica e a construção do imaginário. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2006. SILVA, H. O. C. Tradução e dialogismo: um estudo sobre o papel do tradutor na construção do sentido. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2011.
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A Mímesis em marcha: perspectivas para a literatura angolana no século XXI
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m seu ensaio Problemas da teoria da literatura atual: o imaginário e os conceitos-chave da época, que data originalmente de 1979, o teórico alemão Wolfgang Iser lança luz sobre a relação problemática que se realiza nas fronteiras entre imaginário, ficção e real. É de seu pensamento que partimos, no intuito de analisar os caminhos trilhados pela ficção angolana.
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[...] Comprova-se que a ficção é a configuração do imaginário ao se notar que ela não se deixa determinar como uma correspondência contra factual da realidade existente. A ficção mobiliza o imaginário como uma reserva de uso específico a uma situação [...] No entanto, a configuração que o imaginário ganha pela ficção não reconduz à modalidade do real que, através do uso do imaginário, deve ser justamente revelado. A ficção é também uma configuração do imaginário na medida em que, em geral, ela sempre se revela como tal. Ela provém do ato de ultrapasse das fronteiras existentes entre o imaginário e o real. Por sua boa forma [...], ela adquire predicados de realidade, enquanto, pela elucidação de seu caráter de ficção, guarda os predicados do imaginário. Nela, o real e o imaginário se entrelaçam de tal modo que se estabelecem as condições para a imprescindibilidade constante da interpretação. (ISER, 2002, p. 948).
A ficção, portanto, não pode ser validada apenas como um universo a parte, distante de seu referente, nem, num sentido oposto, ser tomado simplesmente como fotografia, imagem duplicadora do mundo, mas como elemento-espaço outro que dialoga com o mundo empírico, instaurando um universo representativo deste. Num processo de atribuição de nova forma ao mundo, na criação ficcional são interseccionados o imaginário e a ficção num duplo e simultâneo processo de transgressão de limites: desrealização do real 288
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e realização do imaginário. “Na conversão da realidade vivencial repetida em signo doutra coisa, a transgressão de limites manifesta-se como uma forma de irrealização; na conversão do imaginário, que perde seu caráter difuso em favor de uma determinação, sucede uma realização [...] do imaginário” (ISER, 2002, p.959). O que o autor denomina ato de fingir é, por conseguinte, como movimento do ficcional, uma transgressão de limites. São três os atos de fingir, como designa o teórico alemão: a seleção, na qual o autor retira elementos da identificação com os campos de referência e os converte em objeto da percepção; a combinação, realizada pelo texto, proporciona relacionamentos intratextuais que produzem uma relação de forma e fundo, que no ato da recepção, pelo leitor empírico, pode permitir uma delimitação de campos lexicais, alterações de perspectivas e ou mudanças nos potenciais semânticos; e, por fim, o desnudamento da ficção, ocorre quando esta se evidencia por si mesma graças aos sinais que carrega consigo. Portanto: No fictício, [...] o imaginário estaria presente como um ato negativo, com alto grau de determinação, porque se refere a algo dado. Assim, o fictício, como uma transgressão de limites, não é substituível pelo real a que se refere, porquanto garante ao imaginário sua significação, e, mais ainda, a condição de sua
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experimentabilidade, não pela determinação de sua configuração, quanto por sua referência a algo real. (ISER, 2002, p.983).
Contando com o pensamento de Luiz Costa Lima, teórico que tem dedicado sua vida acadêmica à reconsideração da mímesis e a uma investigação da ficção no âmbito não apenas do literário – a exemplo de seu livro História. Ficção. Literatura (2006), em que relaciona as esferas da historiografia e da literatura –, conclui-se que a ficção é capaz de reformular o mundo, mas não de forma prática e efetiva, porque, exigindo de seu receptor empírico a capacidade de romper com os automatismos que presidem as interações cotidianas e, simultaneamente, o fluxo difuso da fantasia, põe em prática uma pragmática própria: “[...] por exigir uma maturação lenta e complicada a reformulação do mundo pela ficção é muito menos eficaz [...]. Em troca, ela é potencialmente mais profunda” (COSTA LIMA, 2006, p.285). Defendendo a vantagem da interrelação da mímesis com o conhecimento do ficcional, Costa Lima (2006, p.291), a respeito das diferenças e semelhanças entre os mecanismos constitutivos da ficção e da mímesis, nos diz o seguinte: Sua diferença está em que a mímesis se cumpre em face de um certo outro, i.e., uma certa sociedade, ao passo que a descrição do mecanismo da ficção não necessita chamar a atenção para a sociedade, de que 290
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tematiza apenas determinadas parcelas, dando-lhe outra configuração. A mímesis fixa a ancoragem do ato ficcional no interior de um quadro de usos e valores, e, portanto, de referências vigentes em uma certa sociedade.
É nosso intuito, a partir deste ensaio, lançar um olhar sobre a ficção angolana observada em alguns dos estágios principais de sua produção permitindo-nos uma comparação problematizadora de tais momentos, tendo em vista os conceitos de mímesis de representação e mímesis de produção, como formulados por Luiz Costa Lima (2003). Assim, sem esquecer que a literatura angolana é muitas vezes entendida apenas como reflexo de um horizonte histórico de guerras, buscaremos entender o conceito de ficção e a ficção angolana a partir dos critérios de transgressão face a uma estética que tem suas bases no realismo literário, em especial o português, e tentar estabelecer um diálogo com sua segunda fase de escrita em que se pode dizer que há uma problematização da linguagem, ou seja, em que não se acentuaria o sema da sema da semelhança, mas o da diferença, o que Costa Lima conceitua como mímesis de produção. O aparecimento de uma atividade cultural regular em termos de escrita em Angola, em África, está associado à criação e desenvolvimento do ensino oficial e ao alargamento do ensino particular ou oficializado pelo processo de coloni-
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zação, à liberdade de expressão e à instalação do prelo, que se registram a partir de 1845. Só a partir do aparecimento das primeiras publicações angolanas é que se começaria a proporcionar as condições necessárias para a manifestação de um fenômeno literário nacional. É a partir da criação da imprensa em Angola, no período da chamada geração de 1880 (transição da abolição do tráfico da escravatura, por decreto de 1836 e sua substituição gradual por uma colonização baseada na agricultura e no comércio), que se origina uma primeira burguesia africana. Contando com as palavras de Carlos Erverdosa (1979, p.23), que toma por base os registros do historiador Júlio de Castro Lopo, ficamos sabendo que [...] a população europeia que no último quartel do século XIX habitou a cidade [de Luanda] era essencialmente constituída por africanistas de permanência incerta no território, aventureiros, colonos forçadamente amarrados por necessidades econômicas e contrariedades diversas à vida colonial, missionários e clérigos, militares e degredados.
Eis, grosso modo, o perfil do público leitor da época. Um senso de 1889 nos mostra que a população era composta de cinco mil europeus para vinte e três mil africanos. Esses dados, ainda segundo Erverdosa (1979, p.24), revelam uma sociedade luandense em que o mestiço, no declinar do 292
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século, gozava duma certa relevância. Está nela a primeira elite angolana que, desenvolvendo a sua atividade profissional no comércio e no funcionalismo público, encontra no jornalismo florescente, pelo decreto que tornava extensiva às colônias e liberdade de imprensa, de autoria do Marquês de Sá da Bandeira, o primeiro veículo para a expressão das suas aptidões literárias. Segundo Iser (2002, p. 960), “[...] como produto de um autor, cada texto literário é uma forma determinada de tematização do mundo [...]”. E, portanto, no intuito de entender o percurso da escrita literária e sua forma sui generis de tematização do (de um) mundo (angolano) e do tratamento dado a esta tematização, consideramos válida uma apreciação que, partindo dos primeiros escritores literários angolanos, siga uma linha temporal que alcance o que chamaríamos de um momento de ruptura em sua forma e fundo. Isso nos permitirá uma mais vasta caracterização da produção literária no cenário deste país africano. O que críticos como Manuel Ferreira (1977) denominam literatura colonial tem seu ponto alto entre as décadas de 1920 e 1930. Nesse período a institucionalização do regime colonial dificultava uma consciência anti-colonialista ou outra atitude que não a de aceitá-la como conseqüência fatal da história. Tendo sua vinda a lume iniciada na última década do século XIX e tendo forte aceitação do público, certamente movido pelo gosto do exótico, tais produções 293
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mantinham seu centro ou universo narrativo e poético vinculado ao homem europeu e não ao homem africano. Em tais produções, o homem negro aparece como que por acidente e é, na maioria das vezes, visto paternalisticamente, animalizado ou coisificado. Por sua vez, o homem branco aparece sendo elevado à categoria de herói mítico, desbravador das terras inóspitas, portador de uma cultura superior e, paradoxalmente, eleito como grande sacrificado, como agente dinâmico (FERREIRA, 1977). A prosa de Henrique Galvão, a exemplo do romance O velo d’oiro, que recebeu o primeiro prêmio de literatura colonial, corresponde a este período de produção na qual podemos encontrar as seguintes descrições de uma personagem negra: “[...] a sua face negra, de beiçola carnuda, tinha reflexos demoníacos” (GALVÃO, 1936, p. 122); e “[...] era um negro esguio [...] [que] dava a impressão [...] dum excelente animal de corrida” (p.34). Ainda na segunda metade do século XIX, surgem paralelamente a essa chamada produção colonial textos que preanunciavam um sentimento nacional, a partir da rejeição da exaltação do homem branco. Pertence a esse contexto a publicação do primeiro livro de poemas de um escritor angolano, Espontaneidades de minha alma: às senhoras africanas, de autoria de José da Silva Maia Ferreira. O seu livro, de cinqüenta e quatro poemas, impresso em Luanda, no ano de 1849, pela Imprensa do Governo, será, possivelmente, o primeiro volume de poesias publicado em toda a África de 294
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língua portuguesa (ERVERDOSA, 1979, p.20). Esta produção poética pertence à chamada primeira fase da literatura angolana. Em sua poesia, e na poesia angolana deste século, observa-se um certo rudimentarismo, uma tessitura frágil, cuja tônica é o lirismo vazado, sobretudo no amor, na fraternidade, na gratidão, na recordação familiar, na amizade, no enlevo rústico ou paisagístico. No poema “À minha terra!” Maia Ferreira revela tendências românticas, facilmente detectáveis, em diálogo com o brasileiro Gonçalves Dias: À minha terra (No momento de avistá-la depois de uma viagem) [...] Debaixo do fogo intenso, Onde só brilha formosa, Sinto n’alma fervorosa O desejo de a abraçar: É a minha terra querida, Toda d’alma, – toda – vida, – Qu’entre gozos foi fruida Sem temores, nem pesar. Bem vinda sejas ó terra, Minha terra primorosa, Despe as galas - que vaidosa Ante mim queres mostrar: Mesmo simples teus fulgores, Os teus montes têm primores, 295
A Mímesis em marcha: perspectivas para a literatura angolana no século XXI
Que às vezes falam de amores A quem os sabe adorar! (FERREIRA, 1980, p.101-2).
No mesmo cenário de produção, na senda da prosa, impõe-se Alfredo Troni, que, nascido em Coimbra, segundo Erverdosa (1979, p.28), dirigiu e fundou alguns dos principais periódicos da época, entre eles o Jornal de Loanda (1878) e Mukuarimi (1888?). A novela de sua autoria Nga Muturi foi publicada em folhetins no ano de 1882, na imprensa de Lisboa, mas apenas cem anos depois fora descoberta e reunida em volume único, assegurando ao escritor lugar de relevo entre os precursores oitocentistas e do começo do século XX do moderno surto de ficção africana em língua portuguesa. A personagem que dá nome à narrativa, em que podemos acompanhar sua formação desde a infância, quando vendida pelo tio como pagamento de uma dívida, é arrancada de sua aldeia e transportada numa embarcação para a capital Luanda, até sua fase adulta. Quando já viúva – como indica o pronome de tratamento nga, na língua mbundo –, é reapresentada como uma personagem (des)caracterizada em meio ao processo de ‘metamorfose cultural’ forçada em que viveu. Como podemos observar no excerto abaixo: É uma boa cidadã, paga bem os impostos, e está agora tratando de amigar a Bebeca, que trata como filha, e já tem muitos pretendentes, mas só quer branco do putu para arranjar uma buxila. 296
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Uma vez ficou muito surpreendida quanto lá foi o Pontes, escrivão das décimas citá-la para pagar. Ela riu-se e disse que no dia seguinte falaria, alegou que já tinha pago. No dia seguinte logo de manhã Nga Muturi foi à sua cômoda e tirou uma rinaua toda bordada, depois uma ritoaia e os panos, todos. Tirou também as giponda, vestiu-se e apresentou-se na tesouraria da Junta ao empregado que ali estava da Fazenda, era o Domingos Vampa, filho de um dos italianos que vieram em 1828 para a província. (TRONI, 1985, p.59-60).
Na prosa de Troni, uma espécie de crítica de costumes, encontramos uma narrativa centrada na área mestiça da Luanda da segunda metade do século XIX, na qual aparecem destacadas as relações familiares, justiça, hábitos sociais, religiosos, conceitos de vida, conceitos morais, a culinária local, e as tradições africanas de algum modo reelaboradas devido a convivências entre diferentes culturas, sobressaindo a alienação trazida pela assimilação cultural, em que transparece uma crítica declarada ao sistema colonial e à estrutura instável colonizado/colonizador promotora do fenômeno de coisificação do homem negro. Por sua linguagem depurada e, segundo muitos, “cingida ao real”, é um texto comumente reconhecido também como importante documento histórico-sociológico da Luanda do século XIX.
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É sabido, como afirmam muitos críticos, que a literatura angolana teve uma missão histórica que seria a de fazer o povo dar-se ao conhecer. Muitos dos escritores que fizeram parte dessa história, na luta armada das guerras pela independência, clandestina ou intelectual, usaram a literatura como arma de combate, ou seja, usaram a escrita literária e o terreno do ficcional como férteis espaços para a proliferação e ou disseminação dos ideais revolucionários para a libertação do povo angolano, tendo em vista o espremido ambiente colonial da ditadura portuguesa. José Luandino Vieira é um grande representante desse momento. De acordo com Rita Chaves (1999, p. 158), Proveniente do cárcere ou da guerrilha, a matéria literária iria incorporando, a cada passo, a disposição de recuperar riscos e procedimentos que possibilitam a conquista de uma particular fisionomia da cultura angolana. A hora, é verdade, exigia um novo pacto, que assumido no encontro do homem com a história, precisava banir qualquer apego ao saudosismo passadista, sem, entretanto, renunciar à energia transformadora guardada em suas raízes.
Nesse sentido, a literatura desse contexto teve de dar conta do imaginário e do real. Teve de dar conta da lacuna existente na produção historiográfica e em todas as outras formas de produção que não existiam até então. Era a litera298
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tura que de modo sui generis – juntamente com as outras formas de expressão cultural, como a música e a pintura – daria uma espécie de start na produção do pensamento angolano. É bastante recorrente, em diversos estudos críticos, a visão reducionista dada à literatura angolana de simples retrato fiel do cotidiano da cultura de dezenas de etnias. Para lutar contra não rara ingenuidade crítica, pensaremos a relação entre o texto literário e o mundo palpável levando em consideração os processos de constituição, propostos por Luiz Costa Lima, da mímesis de representação e da mímesis de produção. Nesse sentido, nos explica o teórico (2000, p. 326-7): [...] mímesis repensada difere por completo da mímesis antiga: esta, tal como encarnada na escultura clássica grega, dava ao homem alguma coisa: a idealização físico-anímica de si próprio. A reconsideração da mímesis já não permite essa congratulação. Em vez da idealização do homem, antes dele exige algo diverso: o reconhecimento de sua obscura diferença. Assim entendida, a mímesis implicaria um ethos distinto do que existe a partir do absolutismo científico. E se poderia até especular sobre o humanismo [...]. Sua condição prévia estaria em (a) partir-se do sujeito enquanto fraturado, porque ele implica que cada um não se confunde com a maneira como pensa a si mesmo; (b) reconhecer-se que a incompreensão não
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é um estado passageiro, que passageiramente nos desune de nós próprios e daqueles que estimamos. [...] A mímesis [reconsiderada] não oferta alguma imagem otimista. Mas tampouco oferta tão-só imagens que, desconstruídas, se resumiriam a vestes brilhantes de um mundo sempre opaco.
A partir da obra Mímesis e modernidade (2003), Costa Lima propõe uma distinção entre duas formas de mimema: a mímesis de produção e a mímesis de representação. No tocante à primeira, poderíamos afirmar, de forma bastante simplificada, que nela a apresentação de uma cena passa a ser feita por uma flagrante transgressão do horizonte de expectativas do receptor. E como resultado disso, este deve demonstrar uma maior habilidade, ou seja, deve estar mais preparado para perceber que a obra transgride sua expectativa. Pode-se afirmar, portanto, que o que é destacado na mímesis de produção é que esta deixa de se relacionar diretamente a uma representação-efeito, o que seria bastante previsível da parte do leitor e pela própria tradição poética, para dar conta de algo que permita ao leitor fruir, o que se valeria de uma transformação, operada do lado de dentro da linguagem do texto literário. A obra seria, portanto, recebida em referências que nela mesma se constituem, ‘desarmando’ seu receptor que mesmo assim não deixaria de se valer de sua memória para atualizá-la. O significado da obra será,
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portanto, apreendido a partir da análise de sua produção: “[...] o próprio da mímesis de produção consiste em fazer o apenas possível transitar para o real; ou melhor, o que seria tomado como limite entre o possível e o impossível [...] como um possível atualizado”1 (COSTA LIMA, 2003, p.181). O próprio da mímesis de produção é provocar, portanto, um alargamento do real. Ao contrário, a mímesis de representação coloca-se em plena comunhão com os valores do mundo de seu receptor, permanecendo em sintonia com sua concepção de realidade, acentuando, portanto, o sema da semelhança em detrimento do sema da diferença. Na mímesis de representação, a partir de sua correlação ao ambiente social, a obra revelaria, simplesmente ao indivíduo receptor a que universo2 este estaria, portanto, ligado. Para retomarmos à problematização teórica que deu impulso às primeiras linhas deste ensaio, vejamos outro momento do pensamento de Wolfgang Iser. Em seu ensaio intitulado Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcio-
1. Costa Lima (2003, p.182) aponta a obra de Mallarmé como pioneira para o estabelecimento do conceito de mímesis de produção pois “para que uma obra possa ser acolhida pelo leitor é preciso que contenha indicadores do referente que desfaz”. 2. Vale observar que, inevitavelmente, a ideia de mímesis de representação, a nosso ver, estaria atrelada a uma idéia de realismo, aqui entendido como postura diante do mundo, ou seja, como modo de criação ficcional, não de um estilo de época ou escola literária. Para nós, é perfeitamente possível que outras escolas literárias tenham se valido, em alguma medida, desse modo de fazer ficção que “só poderia ter seu teor realmente compreendido uma vez inserido no plano temporal e espacial em que fosse desenvolvido”, como afirma Bezerra (2008, p.183).
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nal, resultado da comunicação proferida em 1979, o teórico avalia a relação opositiva, durante muito tempo admitida por críticos e estudiosos, entre realidade e ficção quando se trata de entender a natureza ficcional do tecido literário. O que ele propõe, em contrapartida, é a relação tríplice entre ficção, realidade e imaginário como sendo uma propriedade fundamental do texto ficcional. A aliança se daria, como defende o teórico, a partir de uma transgressão de limites expressa no ato de fingir realizado no texto ficcional. No intuito de observar como esse processo ocorre na produção literária angolana, pensemos em mais uma fase dessas produções. Em meados dos anos 1950, José Luandino Vieira começa a produzir seus textos literários. Sob forte influência da geração Mensageira3 de escritores, poetas maisvelhos, voltados para as questões de seu povo, e submetido aos ideais estéticos da jovem leva de prosadores de Cultura, o ficcionista consegue, valendo-se dos atos de fingir que o texto permite, e sob o modo realista de expressão, trazer a tona uma reflexão sobre o cenário agudo da dor do combate dentro do sistema colonial, como é possível perceber na narrativa de “Quinzinho”, presente no volume de contos A cidade e a infância.
3. Para um maior aprofundamento a respeito do referido movimento literário nas letras angolanas, consultar TRIGO, Salvato. A poética da “Geração de Mensagem”. Porto: Brasília Editora, 1979.
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Operário não pode sonhar, Quinzinho, não pode. A vida não é para sonhos. Tudo realidades vivas, cruéis. A luta com a vida. Mas tu não eras operário, Quinzinho, tu eras um poeta. E os poetas não devem ser amarrados às máquinas. Agora vais quieto, mais branco, no teu caixão pobre. Os teus amigos vão atrás, tristes, porque tu eras a alegria deles. A tua mãe já não chora, Quinzinho, não chora porque é forte. Já viu morrer outros filhos. Nenhum morreu como tu. Despedaçado pela máquina que te escravizava e que tu amavas. (VIEIRA, 207, p.87-8).
Valendo-nos do conceito de desrealização do real, como entendido por Iser (2002). E lembrando que entre a obra e o real está o imaginário, é possível concluir que a consciência histórica de uma obra estaria no poder da consciência da linguagem que emprega, e, portanto, sobreviveria no texto. Essa consciência histórica está no texto de Luandino Vieira e não na Luanda que se vê passar no dia-a-dia, na vida vivida. Num seu romance da chamada primeira fase (TRIGO, 1981, p.206-7), o autor oferece uma leitura do mundo em que viveu e, em sintonia com este, seleciona este mesmo mundo que lhe parece imediato para figurar a narrativa. Em A vida verdadeira de Domingos Xavier (1984), primeiro romance do autor, a voz narradora, em terceira pessoa, não questiona a realidade a sua volta, mas simplesmente a descreve: “E nove horas eram já, lua cheia sobre a sanzala a pratear as 303
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rápidas águas do Kuanza entre os morros, quando o ruído da carrinha junto das cubatas apertou o coração das mães e companheiras” (VIEIRA, 1984, p.24). O romance, escrito em 1961, mas publicado pela primeira vez em 1974, por meio de passagens recheadas de descrições realistas, nos conta a história da personagem Domingos Xavier, tratorista, de nacionalidade angolana, que trabalhava na barragem de um estaleiro para sustentar sua família. A narrativa segue seu curso compondo-se de idas e voltas no tempo e no espaço. A obra é repleta de rupturas temporais nas quais tudo parece surgir na mente, nas lembranças ou memórias do narrador. Apresentam-se a nós leitores basicamente dois núcleos principais de histórias: o da família de Domingos Xavier e o que se reunia no Clube do Botafogo e na casa do Amigo Mussunda, alfaiate do Bairro Operário, para realizar leituras e discutir a situação do povo. As histórias giram em torno do medo do grupo e das famílias de seus integrantes com relação à perseguição violenta da polícia e da situação colonial local. A partir de então, seguem-se imagens de recolhimento do negro diante da sociedade e do engajamento do grupo nas causas nacionalistas, mesmo agindo na clandestinidade. Outro aspecto importante é a aderência do narrador à situação das personagens: Maria e miúdo Bastião que sofrem, respectivamente, a perda do esposo e pai, arrancado de madrugada, para que fosse interrogado e torturado por conta de sua relação política engajada nas causas de seu povo; Sá 304
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Zefa, mãe de Sousinha, que lamenta a ausência do filho; e dos membros-companheiros de causa do grupo, Mussunda, Xico João e os outros que se reúnem ao fim da narrativa para comemorar a vida de mais um irmão angolano que “[...] se portou como homem, não falou os assuntos de seu povo, não se vendeu [...]” (VIEIRA, 1984, p.94). Em A vida verdadeira de Domingos Xavier, temos um narrador que, apesar de aderir à situação das personagens, narra se pondo de fora dos eventos contados, e, por conseguinte, seu narratário, ou seja, o receptor ficcional da história, também não se insere no plano dos eventos, empurrando-os para a situação de simples contemplação. Nesse romance, Luandino inspirado pela tradição do romance brasileiro de 30, a exemplo de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, remonta uma visão catastrófica do mundo, numa postura de denúncia, mas ainda sem uma problematização densa da linguagem. Em sentido contrário, o Luandino da segunda fase, de João Vêncio: os seus amores, quebra com a ideia de literatura que deveria dar conta do nacional através do desnudamento da ficção. O texto se anuncia enquanto tal a partir já do contrato entre narrador e narratário que é feito nas primeiras páginas do romance. Tem a quinda, tem a missanga. Veja: solta, misturase; não posso arrumar a beleza que eu queria. Por isso
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aceito sua ajuda. Acamaradamos. Dou o fio, o camarada companheiro dá a missanga – adiantamos fazer nosso colar de cores amigadas. [...] Por isso pergunto depoimento do muadié: vida de pessoa não é assim a missanga sem fio dela, misturada na quindinha dos dias? (VIEIRA, 2004, p.31).
Chegando até Luanda os ecos dos grandes modernistas brasileiros, os escritores angolanos entenderam que entre a palavra e a coisa havia uma grande distância, ou seja, passaram a dar um outro tratamento ao social e a enxergar o essencial que se transforma na ordem do dia: a linguagem. A partir daí, a obra não é mais apenas uma representação de alguma coisa, mas ela própria passa a ser a sua máquina de linguagem. Para dizermos nas palavras de João Alexandre Barbosa (1974, p.10), o texto literário, “que agora corta segmentos da realidade, [passa] a incorporar espaços inesperados cujas coordenadas somente são verificáveis a partir de suas próprias vinculações no espaço do texto”. O que marca historicamente um texto são suas tensões internas. O que está dentro da obra é, portanto, a realidade (re)fabricada. A consciência da linguagem (literária) só acontece quanto ela entra em crise. Quando os poetas angolanos rompem com os parâmetros da negritude, a escrita poética angolana passa a se repensar enquanto tal e a partir dessa tomada de consciência é que se busca uma nova forma
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(modo) de expressão nos textos literários. Com o movimento da negritude não se pensava sobre, talvez por ser algo automatizado, herdado do pensamento francês. Como o entendemos, tal movimento teve sua importância a partir da tomada de consciência que proporcionou ao homem negro com relação a sua situação no âmbito das colônias africanas, mas é só. A partir do momento em que o universo narrativo passa a ser preenchido não apenas com o tema da colônia e das questões relacionais ao ‘ser negro’, mas ao ‘ser homem’ é que pode ser flagrado o momento de viragem nas produções angolanas. Na produção luandina, enxergamos o momento culminante da referida ruptura, e a mímesis de produção, empregada na configuração de um modo de criação ficcional que constitui o fenômeno promotor de tal ruptura. Com o fio narrativo, e por meio da peneira do narrador que conta sua própria história, experimentamos novas palavras nascidas dos atos de fingir: seleção e combinação. O texto consegue exprimir a complexidade do sentimento novo, fruto da relação vivenciada por Vêncio e Mimi, e do estado que se encontra a mente do ouvinte depois da escuta de um mussosso4. [...] A noite corre, o sol não estraga, muita lua é pouca só – e tem as histórias missossas de noites e noites,
4. Do quimbundo, musoso, narrativa oral. Conto tradicional angolano.
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[...] para desamorecer inteligência (VIEIRA, 2004, p.55-6, grifo nosso). Nossa amorizade durou nem bem dois anos – morte, vida e ressurreição, hóstia consagrada... (VIEIRA, 2004, p.50, grifo nosso).
Resta ao leitor utilizar-se de sua memória e buscar novas chaves para acessar as camadas do texto. Por meio da voz do narrador Juvêncio Plínio do Amaral, como o preferem chamar algumas personagens do romance, nós, leitores, somos ainda convidados a uma reflexão acerca do poder da palavra. Como é possível perceber no fragmento abaixo, Juvêncio, acusado de homicídio, e sendo interrogado pelo muadié, ou senhoro, narratário-personagem que, numa leitura possível, pode ser entendido como uma espécie de delegado, ou investigador, lucidamente duvida das palavras, pondo em evidência uma postura opositória à ideia de linguagem como transparência. [...] porquê mais palavras feias na justiça são mais, no amor são menores? O que eu fiz mesmo, o que não me deixaram concluir acabar, cabe nesses chavecos de palavrosas? [...] As palavras mentem. (VIEIRA, 2004, p.34-5).
O dizível só é possível no texto tendo como fonte primeira o próprio texto. A ficção que se vale da mímesis de 308
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produção acaba por debruçar-se sobre si mesma. O universo do musseque representado no romance não se confunde com o topos do musseque, mas é tensionado (elevado a um grau maior de experiência de forma que nos chega a nós leitores por meio da estrutura meândrica e labiríntica tecida ao longo das muitas histórias contadas pelo narrador). Assim experienciamos o texto, adentrando o texto. E como se não bastasse, metáforas desconcertantes lançam luz (ou sombra?) no horizonte que buscamos enxergar para compreender o que Vêncio conta, como podemos observar nos seguintes fragmentos abaixo: Olhe: no fim do almoço, nosso musseque era cacimba sem barulho de pedra ou de rã. O caloro mandava, não é estes caloros de agora, fogo morto. Dormia-se. (VIEIRA, 2004, p.37). Deus, muadié, é o que a gente ainda não viveu. O que se está a viver é que é o homem, somos nós. Do diabo, o vivido para assustar os outros... (VIEIRA, 2004, p.63). Mentira é assim, muadié: fubazinha do diabo com branquez de anjo em nossas mãos. (VIEIRA, 2004, p.67).
Explica-nos Costa Lima (2006, p.321) que “[...] o diferencial da mímesis de produção está na transformação das referências que nela mesma se constituem, transformação portanto efetuada pela própria linguagem, ajudada pela 309
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memória do leitor que a atualiza”. É preciso explicar que a diferença entre as duas espécies de mímesis aqui apontadas a partir dos textos analisados – a de representação e a de produção – não implica em qualquer hierarquia (ou anulação de uma a outra, mas acentuação); o que se pretende é apreciar as facetas de ambas as formas de tematização do mundo. Na mímesis de representação, como foi possível perceber a partir do romance A vida verdadeira de Domingos Xavier e na narrativa “Quinzinho”, há também a presença de um imaginário, mas de um imaginário controlado. A produção realista põe o real entre parênteses para sobre ele refletir. Ainda para Costa Lima (2000, p.328), Rua de mão dupla, a mímesis não só tira do mundo mas lhe entrega algo que ele não tinha. Que substancialmente continuará não tendo mas que, nem por isso, deixará de incorporar. Ao fazer ver de outra maneira, ela reconhece a existência do que dela não depende; ao mesmo tempo, provoca o conhecimento do que, sem ela, não seria possível de se obter.
Os limites da invenção e criação na literatura angolana são extrapolados por Luandino Vieira na sua segunda fase, já apreciada a partir dos fragmentos de João Vêncio: os seus amores, romance que entendemos como sendo a produção do autor em que a linguagem está posta de forma mais tensa. O texto parece escapar ao trivial de dar voz ao povo angolano 310
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e sua identidade, elementos tão apontados pela crítica das produções do referido país. A discussão de linguagem que está no texto de Luandino é a mesma que está na ordem do dia dos escritores contemporâneos. Na tentativa de ser transistórica, a poética luandina inaugura uma poética que é só sua. O narrador de João Vêncio é um contador nato, a semelhança do enunciador de Grande Sertão: veredas, consegue pôr em evidência não uma narrativa que conta a história de um povo, mas sim o próprio ato de narrar e os recursos narrativos que emprega. Recheada de passagens de cunho notadamente filosófico que lançam mão de problemas do homem moderno, como revelam as faces escorregadias e multifacetadas da personagem narradora João Vêncio, Luandino Vieira, através dessa forma de narrar, dá novo fôlego ao cenário da ficção angolana. Mas todos os dias a minha alegria era encher o coração de ódio, afiar as agulhas para a Màristrêla, para as nossas brincadeiras com os pássaros. E só tinha tristeza se pensava o Mimi. Quando estava a sofrer por ela [pela menina Tila], eu tinha vergonha do Mimi, não gostava dele, achava pecado. Hoje eu sei, já perguntei saber também do muadié: amigo de mulher amante de homem, etecétera, pode? Não diga sua verdade, sem sentir minhas mentiras – jingongo5... (VIEIRA, 2004, p.37-8).
5. Segundo os apontamentos para um glossário para uso exclusivo do autor, disponível
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Agora o muadié me diga ainda: ser e não ser, ao mesmo tempo, pode? Gostar e não gostar, dor e alegria, água e fogo? – eu odiava a Màristrêla no meu amor. (VIEIRA, 2004, p.45).
O narrador realista6 é o narrador que observa. O narrador do romance contemporâneo – notadamente o da segunda fase da produção literária angolana – adentra a experiência, portanto sai da postura de observador. A memória entra como recurso de linguagem (o narrador a utiliza ou é utilizado por ela). Se a palavra é insuficiente para tratar do referente, então que a Literatura fale dela mesma (autorreferência) e em sua dimensão metalingüística mostre com razão a crítica da própria razão. Referências BARBOSA, João Alexandre. A metáfora crítica. São Paulo: Perspectiva, 1974. BEZERRA, Antony Cardoso. Uma inserção de Tortilla Flat e de Esteiros na história do romance: investigação sobre problemas de realidade, ficção e personagem da narrativa. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2008. CHAVES, Rita. A formação do romance angolano. São Paulo: Bartira, 1999. COSTA LIMA, Luiz. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
no final do romance João Vêncio: os seus amores, Jingongo é uma palavra em quimbundo que significa gêmeos (VIEIRA, 2004, p.91). 6. O emprego do termo não se limita ao contexto de escola literária, conforme foi dito antes.
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Borges, o Conto Moderno e a Antiphysis
E
mbora tenha sido um teórico do formalismo russo (linha teórica que, como bem ensinou a tradição crítica do séc. 20, costumava tratar o fato literário como imanente e a-histórico), Tynianov (1973, p. 106-7), no ensaio “Da Evolução Literária”, fez a seguinte consideração: A noção fundamental da velha história literária, a “tradição”, não é mais que a abstração ilegítima de um ou muitos elementos literários de um sistema no qual têm um certo emprego e certa função, não é mais que sua redução aos
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mesmos elementos de um outro sistema no qual eles têm um outro emprego. O resultado é uma série unida apenas fictìciamente, que não tem senão a aparência de “entidade”.
Com esses termos, criticava-se a postura teórica dos pesquisadores que tomavam elementos de um sistema literário e, reconhecendo-os em outro, imaginavam que tais elementos mantivessem as funções de seu sistema original. Para Tynianov, a função de cada elemento de um texto não deveria ser tomada como imanente, mas analisada a partir das suas relações com o sistema – dentro de diferentes sistemas, os elementos assumiriam diferentes funções. Essa característica da literatura, percebida por Tynianov e desenvolvida posteriormente por críticos como Antonio Candido, foi bem exemplificada literariamente pelo clássico conto de Jorge Luis Borges (1965, p. 16-22), “Pierre Menard, autor del Quixote”. O escritor Pierre Menard, tendo concluído dois capítulos (e deixado um inconcluso) de uma obra que é idêntica em cada palavra a O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de la Mancha, teria como projeto – segundo o narrador – reescrever o Quixote de Cervantes (mas sem copiá-lo). Tal iniciativa logo se revela um problema mais difícil que aquele enfrentado por Cervantes: enquanto o primeiro Quixote seria um empreendimento natural no séc. 17 e em acordo com ideais da época, os acontecimentos
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ocorridos durante os trezentos anos que transcorreram até a idealização do projeto de Menard (entre eles, a própria publicação do Quixote) tornam sua atividade quase impossível (e talvez por isso mesmo inconclusa). Após o cotejamento da obra inacabada de Menard com a de Cervantes, o narrador observa que, embora iguais em palavras, os dois textos são inteiramente diferentes em suas intenções: o estilo que ao séc. 17 parece natural, quando escrito no séc. 20, só pode ser tomado como arcaizante; o que nas palavras de Cervantes pode aparecer como um elogio retórico da história, quando escrito por um Menard, que é contemporâneo de William James, só pode ser tomado como ideia assombrosa. Esse deslocamento dos elementos de um sistema, aqui tematizado por Borges, é, entretanto, mais que um tema quando considerada a totalidade de sua obra: críticos como Luiz Costa Lima, Arturo Gouveia e Davi Arrigucci Jr. já ponderaram sobre o modo como, tomando elementos da tradição literária (tanto em uma perspectiva formal, quando consideramos a forma do conto, quanto em uma perspectiva conteudística, quando a literatura filosófica se manifesta nas Ficções), Borges desloca esses mesmos elementos, que passam a cumprir diferentes funções. Gouveia consideraria esse “deslocamento” como uma perda da centralidade do enredo no conto moderno, que passa a privilegiar a reflexão em uma tentativa de desfazer o nó da linguagem criado em um mundo devastado pelo trauma histórico de um século 317
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que, como definiria Auerbach, é “grávido de desastres” – os contos mimetizariam o absurdo e a incomunicabilidade do mundo em sua própria forma. Arrigucci Jr., por outro lado, veria nos contos de Borges um desenvolvimento da estrutura manifesta nos escritos de Voltaire, o que caracterizaria o conto à Borges como um descendente latino do conto filosófico europeu – mais especificamente, do realismo filosófico, mas subvertendo esse mesmo realismo ao investir em uma mímesis que, fundamentada na metafísica, acaba por tornar toda a realidade representada uma abstração. Humanizante por estar calcado em uma filosofia que é humanista, sua ficção seria também desumanizante por transformar o que era ação humana em exercício de abstração. Já Luiz Costa Lima segue por outra via: acredita que a teoria da mímesis já não é mais aplicável aos contos de Borges, pois a reflexão filosófica, ao se tornar o próprio núcleo irradiador da narrativa, rompeu a relação de referência com a realidade (seja como mímesis de imitação, seja como mímesis de produção): em Borges, a ficção é a própria referência que se volta sobre si, como o texto de Pierre Menard que, ao invés de intentar a representação de uma realidade, tenta configurar uma representação de uma outra representação, um texto que reproduz outro texto – um Dom Quixote que não tem mais a Espanha como referência,
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e sim outro Dom Quixote, igualmente ficcional1. Para Costa Lima, teríamos, então, a inauguração de uma antiphysis: pois se anteriormente a physis era pensada ora em termos positivos (como, no pensamento grego, em Platão e Aristóteles), ora em termos negativos (como, modernamente, em Adorno), nos textos de Borges já não se pensa mais sobre a physis, não se tenta representá-la (o que é exemplificado perfeitamente pelo conto “Del rigor en la ciencia”, que discutiremos posteriormente). Antes de discutirmos as particularidades da literatura de Borges, tentaremos compreender algumas das tendências éticas e estéticas do conto moderno, a fim de assim perceber como Borges se diferencia ou se aproxima de outros autores de seu tempo. O conto moderno e a forma inacabada Apesar de ser um livro de ficção, a última seção de A arte do breve (em que seu autor, Arturo Gouveia, concede uma fictícia “entrevista a Deus”) é eminentemente teórica e traz uma série de ponderações importantes à nossa discussão:
1. Problema ainda maior quando lembramos que o Dom Quixote de Cervantes é, na verdade, uma paródia – e que, portanto, já tem a literatura (mais especificamente a novela de cavalaria) como referência central.
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Há contos que se impõem mais pela realização da linguagem do que pela seqüência de ações. [...] Herdeiros do romance de fluxo de consciência, esses contos causam estranhamento a partir mesmo da radical deformação semântica a que procedem. O esquema problemática/tensão/desfecho é desconsiderado. Neles, a problemática é o próprio nó da linguagem. (GOUVEIA, 2003, p. 173).
O pensamento está relacionado ao conceito de epopeia negativa, formulado por Adorno nos anos 30 e abordado também por Gouveia (2004) em “A epopeia negativa do século XX” (primeiro dos Dois ensaios frankfurtianos). Embora seja um termo que busca descrever complicações do romance moderno, não é difícil transportar uma parte do raciocínio à discussão sobre o conto. A ideia parte da percepção da crise de narratividade do romance contemporâneo: “não há mais o que narrar num mundo onde o sujeito histórico não consegue agir à margem das relações reificadas do sistema, ou seja, onde não existe mais espaço para a emancipação e a alteridade...” (GOUVEIA, 2004, p. 14). A práxis das personagens modernas ressoa inútil: elas não têm condições de romper com a opressão do mundo externo, o que causa o refluxo para a interioridade, numa “tentativa de avaliar sua situação crítica, para fins de autocompreensão e elucidação de si mesmos” (GOUVEIA, 2004, p. 38). Como esclarece Gouveia, para Adorno as coletividades não têm mais poder 320
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contestatório; todas as iniciativas utópicas são absorvidas pelas leis do mercado. Essa situação impossibilita que uma negação ao sistema transite da reflexão à práxis, o que dilui o coletivo e confina os indivíduos ao isolamento que nos acostumamos a ver na narrativa moderna. Cessam os diálogos, prevalecem os monólogos. Ao contrário dos heróis épicos, pertencentes a um mundo que se move a partir de suas ações (a totalidade épica), os heróis da reflexão têm consciência da sua inutilidade, e estão em constante conflito com um mundo que lhes é estranho e alienador: Nessa desilusão [dos personagens] transparece, à primeira vista, uma certa resistência à ideologização da vida social, uma vez que não há identidade entre o futuro vulgarizado pelas promessas sociais e a autoconsciência negativa das personagens. Entretanto, a própria solidão dos personagens, produzida por fatores que os transcendem e sobre os quais não têm o menor controle, significa o triunfo do poder capitalista, com um agravante: a forma mais corrente de pensamento se condensa nos monólogos, não nos diálogos. A própria forma dominante é sintomática da ausência de propósito. (GOUVEIA, 2004, p. 36).
Uma vez que a impossibilidade da ação é instaurada, não há mais uma sequência histórica de acontecimentos, impossibilitando a manutenção do enredo como categoria central.
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Se temos alguma sensação de prosseguimento da narrativa, ela é causada pelo discurso do narrador, que seleciona os pensamentos e pequenos gestos das personagens de forma que tenhamos a impressão de temporalidade histórica. Tudo se torna ainda mais complicado se pensarmos no advento do discurso indireto livre, que, ao tomar sem a mediação “filtrante” do narrador dados pertencentes ao inconsciente das personagens, presentifica informações correspondentes a um passado geralmente traumático, reinterpretando o presente e pondo, lado a lado, impressões mentais de acontecimentos reais e os próprios acontecimentos: perde-se o princípio de organização, uma vez que é tomada do próprio narrador a primazia do discurso; além disso, a linguagem resultante desse processo revela-se amorfa, confusa, assim como o é o próprio inconsciente das personagens. Por isso Gouveia identifica o “nó” da linguagem como problema central nesses contos: o fluxo de consciência, aliado a outros recursos, fragmenta o conto de tal forma que dificilmente podemos contemplar uma história; temos, muitas vezes, várias micro-narrativas que surgem unidas através de uma relação simbólica, uma relação de identidade só possível através da interpretação delas – e muitas vezes o único ponto de intersecção será a própria interpretação, aliada à forma do conto, que tenta unir tais narrativas fragmentárias através do discurso do narrador. O jogo com o leitor passa a ser obrigatório à compreensão da narrativa, pois apenas através dela os conteúdos 322
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podem ser ligados entre si, numa tentativa de reconstrução de um sistema de causalidade que parece demasiadamente diluído. A linguagem fragmentada desses contos é a formalização estética da situação caótica em que se encontram as personagens, e impossibilita assumirmos como regra a “unidade de tensão” pregada por Poe quanto ao texto a ser lido “de uma só assentada”; por fim, “A linguagem disforme é sintoma de uma grande desconfiança na noção de forma, razão, equilíbrio, superação, salto qualitativo, enfim, dos grandes conceitos ocidentais, quebrados no século vinte” (GOUVEIA, 2004, p. 76). Outros autores compartilharão de um raciocínio semelhante acerca da narrativa no século XX. No último capítulo de Mimesis, ao tratar do romance de Virginia Woolf (To the lighthouse), Erich Auerbach faz a seguinte afirmação: Aquilo que nele ocorre, trate-se de acontecimentos internos ou externos, embora se refira muito pessoalmente aos homens que nele vivem, concernem também, e justamente por isso, ao elementar e comum a todos os homens em geral. Precisamente o instante qualquer é relativamente independente das ordens discutidas e vacilantes pelas quais os homens lutam e se desesperam. Transcorre por baixo das mesmas, como vida quotidiana. Quanto mais for valorizado, tanto mais aparece claramente o caráter elementarmente comum da nossa vida; quanto mais
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diversos e mais simples apareçam os seres humanos como objetos de tais instantes quaisquer, tanto mais efetivamente deverá transluzir a sua comunidade. (AUERBACH, 2004, p. 497).
Auerbach trata especificamente, nesse momento, de um deslocamento do centro de gravidade, ocasionado pela escolha de momentos puramente quotidianos como matéria a ser narrada: geralmente momentos insignificantes, aparentemente escolhidos ao acaso pelos autores. Até ali, nos romances, a centralidade do enredo fazia com que os acontecimentos interiores servissem como preparação para acontecimentos exteriores, sendo estes importantes ao desenvolvimento da narrativa. Em Virginia Woolf, o processo segue o caminho inverso: o eixo é deslocado; a linguagem e os processos da consciência passam a compor o núcleo da matéria narrada, enquanto os acontecimentos externos passam a ter importância apenas na medida em que servem para deslanchar os movimentos internos das personagens. Desse modo, quaisquer acontecimentos, por mais distantes que estejam das realizações épicas das epopeias homéricas e mesmo, de certa forma, de alguns romances do realismo (lembremos os personagens de Dostoiévski, ao repousarem sobre si a função de representar as demandas de sua sociedade), são úteis ao desenvolvimento do romance, que, assim, afasta-se cada vez mais da epopeia clássica. A ênfase recai
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sobre um acontecimento qualquer, que deixa de ser utilizado como parte de um contexto necessário ao desenvolvimento da ação para ser aproveitado em si mesmo. A ação, portanto, perde a importância ante a reflexão (que é representada através da linguagem). Já Fábio Lucas, no texto “Guimarães Rosa e Clarice Lispector: Mito e Ideologia”, ao analisar alguns aspectos da narrativa moderna do século XX, também nota que: [...] a personagem, antes caracteristicamente de ação, apresenta-se mais comumente como personagem de reflexão. [...] O romance e o conto se mostram, então, introspectivos e dão abrigo aos ‘heróis da consciência’, isto é, às personagens problematizadas dentro de um mundo que as esmaga, a vagarem indecisas, desesperadas ou revoltadas, dentro da certeza apodítica de sua própria impotência. (LUCAS, 1982, p. 114).
O conto, aderindo a esses processos, muda sua própria forma – daí a grande dificuldade em estabelecer uma teoria do conto que seja capaz de defini-lo: porque, como o romance, ainda não é uma forma fechada; quando a própria linguagem passa a ser a problemática central, o conto moderno do século XX deixa de lidar apenas com conteúdos e passa a trabalhar com formas – o modo como a própria forma é concebida passa a ser plena de sentido.
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Regina Pontieri, no ensaio “Formas históricas do conto: de Poe a Tchékov”, perceberia, em Tchékov, um processo de “abertura” formal do conto, resultado de uma diferente visão do autor (em relação a Poe) sobre a função da brevidade como procedimento narrativo: embora o russo considere a importância da brevidade, esta já não é mais resultado da “articulação cerrada entre as ações significativas que compõem o enredo” (como é o caso em Poe), e sim resultado “justamente da ausência de alguns dos elementos significativos, deixados em elipse” (PONTIERI, 2001, p. 110). Pontieri considera que tal diferença se dá por uma divergência, entre os dois escritores, sobre a possibilidade de solução do “enigma” (a ideia de abertura para uma realidade mais vasta, o desvendamento do superficial e ilusório, elemento presente desde as origens religiosas do conto como narrativa oral) posto em cada um de seus contos: A crença numa causalidade rigorosa e, portanto, num tempo contínuo, isento de lacunas, levava Poe a pressupor que todo enigma pode ser solucionado, bastando para isso recompor cerradamente os elos da cadeia. [...] Em Tchékov, ao contrário, a descontinuidade rege a ordem das coisas e evidencia as lacunas, os não-ditos. [...] Aqui o silêncio importa tanto quanto a palavra porque aponta para as camadas profundas do psiquismo, sobre as quais é possível ter suspeitas mas não certezas. (PONTIERI, 2001, p. 110). 326
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Assim, o princípio da brevidade estaria respondendo a necessidades históricas diversas (tanto do ponto de vista literário quanto ideológico): Pontieri conclui que o solo cultural em que vive o romântico Poe permite uma visão totalizante, impossível no mundo “estilhaçado”, perpassado pela ironia pessimista finissecular, do escritor russo, que recusa a forma acabada, fechada. Daí a dificuldade em se estabelecer uma teoria do conto moderno que englobe todas as suas variantes: dotada de um significado ético (o de conferir sentido subjetivo ao mundo), a forma deste é proteica,2 adaptando-se de modo diferente a cada conto. A ideia da existência de alguns contos construídos a partir de várias micro-narrativas é viabilizada pelo fato de que estes conteúdos fragmentários, dispersos, estão ligados entre si não por um sistema de causalidade, mas pela própria forma do conto (que tenta ressemantizá-los). É a forma que confere sentido e coerência a esta matéria fragmentada. A forma moderna do conto aproxima-se, assim, do ideal de literatura buscado por Ítalo Calvino em suas Seis propostas para o próximo milênio, cuja última proposta,3 Multiplicidade, imagina uma literatura “enciclopédica”, que saiba “tecer em conjunto os diversos saberes e os diversos
2. Como Proteus, o deus capaz de alterar sua própria forma. 3. Na verdade a quinta, uma vez que a sexta proposta – presumivelmente, Consistência – permaneceria inconclusa devido à morte prematura do autor.
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códigos numa visão pluralística e multifacetada do mundo” (CALVINO, 1990, p. 127). Para este autor: O que toma forma nos grandes romances do século XX é a ideia de uma enciclopédia aberta, adjetivo que certamente contradiz o substantivo enciclopédia, etimologicamente nascido da pretensão de exaurir o conhecimento do mundo encerrando-o num círculo. Hoje em dia não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjectural, multíplice. (CALVINO, 1990, p. 131).
Calvino observa que as grandes obras literárias da modernidade são nascidas da confluência e do entrechoque de uma multiplicidade de métodos interpretativos, maneiras de pensar, estilos de expressão: “mesmo que o projeto geral tenha sido minuciosamente estudado, o que conta não é o seu encerrar-se numa figura harmoniosa, mas a força centrífuga que dele se liberta, a pluralidade das linguagens como garantia de uma verdade que não seja parcial” (CALVINO, 1990, p. 131). A partir disso, definiria quatro tipos de textos em que prevalece a multiplicidade: primeiramente, o texto unitário, que é interpretável em vários níveis embora seja discurso de uma única voz. Em segundo lugar, o texto multíplice, em que, substituindo a unicidade de um eu pensante, vigora a multiplicidade de visões sobre o mundo (equivalente ao modelo que Bakhtin chamou de “dialógico”). 328
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Em terceiro, a obra que permanece “inconclusa por vocação constitucional”, não conseguindo dar a si mesma forma por ansiar a contenção de todo o possível. O quarto e último tipo é aquele que corresponde em literatura ao pensamento não sistemático na filosofia: a obra que procede “por aforismos, por relâmpagos punctiformes e descontínuos” (CALVINO, 1990, p. 132). Tais tipos de “multiplicidade” em literatura seriam importantes porque, entre os valores que Calvino desejava serem passados para o próximo milênio, estava o de “uma literatura que tome para si o gosto da ordem intelectual e da exatidão, a inteligência da poesia juntamente com a da ciência e da filosofia” (CALVINO, 1990, p. 133) – valor que será encontrado pelo autor na obra de Jorge Luis Borges, justamente por seus contos adotarem, freqüentemente, a forma exterior de algum gênero da literatura popular, “formas consagradas por um longo uso, que as transforma quase em estruturas míticas” (CALVINO, 1990, p. 133). Calvino faz, assim, um elogio ao inacabamento semântico: a abertura formal é um valor desejável. Não é à toa que escolhe Borges como um de seus exemplos: a forma é um componente essencial em seus contos, como no já mencionado “Pierre Menard, autor del Quijote”: se Borges optasse por apresentar, em seu conto, a narrativa escrita pelo fictício Pierre Menard, o conto seria uma simples reprodução do Dom Quixote, de Cervantes. Em vez disso, Borges estrutura tal conto como uma análise literária do texto de Menard, 329
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recurso que aplicará também em outros contos (como em “Tres versiones de Judas” (BORGES, 1965, p. 65-68), que é estruturado como uma análise literária sobre as obras de um teólogo fictício que busca reinterpretar a função de Judas nos evangelhos). O próprio conto utilizado como exemplo por Calvino, “El jardín de los senderos que se bifurcan” (BORGES, 1965, p. 37-43), é iniciado como um romance de espionagem, incluindo posteriormente um relato lógico-metafísico e a breve descrição (e interpretação) de um romance chinês. Cabe ressaltar, entretanto, que embora essa dialética entre forma e subjetividade dê início à forma moderna do conto, ela não é identificada em todos os autores contemporâneos: não é ela quem fundamenta os contos de Borges, cuja originalidade se funda em outras questões. Por exemplo, no próprio “Pierre Menard, autor del Quijote” – as razões desse conto se estruturar de maneira tão inventiva estão pouco ligadas a uma ausência de teleologia nas personagens, e mais a uma dialética entre a poesia como forma de conhecimento4 e o pensamento5: enquanto a poesia como forma de conhecimento é o elemento que define o protagonista daquele conto (o já falecido escritor), o pensamento sistemático é próprio 4. Como diria Davi Arrigucci Jr. ao discutir a relação entre Borges e as idéias de Benedetto Croce, a poesia é “conhecimento intuitivo do particular, capaz de ir além do mero sentimento, que ela transfigura, encontrando a universalidade na própria particularidade, como uma expressão imediata e articulada do universo” (ARRIGUCCI JR, 2001, p. 12) 5. O qual “fora da esfera intuitiva, seria antes a sistematização do universo, reduzido aos signos prosaicos do conhecimento conceitual” (ARRIGUCCI JR, 2001, p. 12)
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do narrador, expressando-se através da forma – e gerando uma dualidade interna que obriga o texto a desdobrar-se entre, de um lado, “o plano da história (em que prestamos atenção no destino das personagens); de outro, o plano do discurso (em que nos fixamos nas ideias do narrador e em sua destreza em exprimi-las)” (ARRIGUCCI JR, 2001, p. 19). A Antiphysis O problema em se compreender os contos de Borges está na diferente forma de aproximação que eles exigem em sua leitura: pois o modelo clássico da mímesis já não pode ser reconhecido aqui. O conto “Del rigor em la ciencia” exemplifica perfeitamente essa situação: o narrador nos conta sobre determinado Império em que a Arte da Cartografia alcançou tal perfeição que o mapa de uma só província ocupava toda uma cidade, e o mapa do Império toda uma província. Entretanto, Con el tiempo, estos mapas desmesurados no satisficieron y los colegios de Cartógrafos levantaron um Mapa del Imperio, que tenía el Tamaño del Imperio y coincidía puntualmente com él. Menos Adictas al Estudio de La Cartografía, las Generaciones Siguientes entendieron que esse dilatado Mapa era Inútil y no sin Impiedad lo entregaron a las Inclemencias Del Sol y de los Inviernos. Em los Desiertos del Oeste 331
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perduran despedazadas Ruinas del Mapa habitadas por Animales y por Mendigos; en todo el País no hay outra reliquia de las Disciplinas Geográficas. (BORGES, 1993, p. 136).
Embora este breve texto trate do rigor científico em primeiro plano, em um segundo plano a questão da mímesis se faz fortemente presente: pois, se entendida como “imitação” ou reprodução da realidade, tão mais ela se aproxime da realidade que imita mais inútil se tornará – o mapa, ao reproduzir tão perfeitamente o país a que se propõe representar, já não serve mais como meio de compreensão deste país. A diferença (nesse caso, a necessária diferença de proporções entre o Império real e a sua representação cartográfica) é um componente essencial da mímesis que, quando descartado, torna a mímesis inseparável da própria realidade – o que, por extensão, leva à perda do seu efeito de desrealização e suplementação do real. No lugar de uma representação do Império através do mapa, o que se criou foi um segundo Império, degenerado “pelas inclemências do sol e dos invernos”, e habitado apenas por “animais e por mendigos”. A mímesis, neste caso, acabou por tornar-se aquela contra a qual Platão advertia: uma imitação degenerada da realidade (que, por si, já é uma imitação). Por isso foi acertadamente que na obra Mímesis e modernidade, ao discutir a antiphysis em Borges, Luiz Costa Lima
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se propôs a fazer uma revisão semântica do termo “mímesis”, pondo no foco da discussão dois usos em particular: o de Ésquilo em Choephoroe e o de Heródoto em As Histórias. Na cena de Ésquilo, o protagonista, Orestes, discute um meio de retornar do exílio e realizar sua vingança, a qual se fará: Vestido então como estrangeiro Com equipamento de viagem, chegarei à porta Junto com Pílades, meu verdadeiro aliado Fingindo a fala do Parnaso, imitando (mimoymémo) A língua e o sotaque dos fócios (...) (ÉSQUILO apud COSTA LIMA, p. 238).
De acordo com Costa Lima, a eficácia da mimesthai nesse caso não depende unicamente de imitar bem a língua e o sotaque dos fócios (ou seja, de proceder a uma grande semelhança), e sim de ocultar a diferença, que deve permanecer insuspeitada – o que constituiria a astúcia da mímesis, definida como o “ato de subtrair do receptor parcela que, entretanto, compõe o fenômeno” (LIMA, 2003, p. 239). Daí se conclui que “o mimema, i. é., a obra em que a mímesis se realiza, é lido pelo receptor da mesma maneira como fora, pelo sentinela, o disfarce de Orestes: a diferença que contém não é tematizada” (COSTA LIMA, 2003, p. 239). É o olhar do receptor que converte a obra em algo que ele espera, de acordo com a sua codificação cultural – pois a obra oculta
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suas próprias diferenças em relação a esta codificação, pondo em primeiro plano suas similaridades em relação a ela. O segundo uso da mímesis é encontrado por Costa Lima no texto de Heródoto, em que é descrito o processo de mumificação: A mumificação é uma operação distinta. Quando um corpo é trazido para os embalsamadores, apresentam modelos em madeira, pintados de maneira a se assemelhar à natureza (memimeména), e de diferentes qualidades; diz-se que a espécie melhor e mais cara representa um ser cujo nome temo mencionar neste contexto; a seguinte é algo inferior e mais barata, enquanto a terceira é a mais barata de todas. Depois de apontarem estas diferenças de qualidade, perguntam qual das três é a preferida e os parentes do morto, depois de concordarem quanto ao preço, se retiram e deixam os embalsamadores entregues ao seu trabalho. (HERÓDOTO apud COSTA LIMA, 2003, p. 240).
O uso da mímesis neste caso é visivelmente contrastante com o exemplo de Ésquilo: pois, se em Ésquilo importava dissimular o sema da diferença, aqui interessa aos embalsamadores acentuar tanto quanto possível a diferença entre os tipos de maquetes de madeira e o estado em que ficará o morto depois da mumificação. As maquetes de madeira, portanto, não são apenas uma imitação do modelo, e sim um
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“modelo reduzido”, em que as diferentes proporções estão acentuadas. Tal diferença, entretanto, ao ser percebida, não deverá causar objeção por parte dos familiares, pois estes a tomam como implícita e necessária – o seu horizonte de expectativas partilha das mesmas convenções sociais que têm o papel de “apagar” (ou melhor, tornar ignota) a diferença contida no mimema, que é visto não como tentativa de imitação mas como “naturalmente semelhante a seu referente” (LIMA, 2003, p. 240). Portanto, a distinção entre os dois contextos torna-se óbvia: no primeiro, o sucesso da representação depende da capacidade do mimetes de esconder a diferença, enquanto que no segundo este esforço não é necessário por contar com a conivência do receptor, que já possui uma convenção cultural internalizada que o permite compreender que o mimema é um “modelo reduzido” do objeto e, por isso, não precisa ser igual a ele. O conto de Borges sobre o rigor da ciência (e é curioso o fato de o narrador chamar a ciência cartográfica de “Arte da Cartografia”) demonstra justamente os problemas que surgem quando o agente da representação não conta com esta diferença implícita no procedimento mimético: ao invés de criar um modelo reduzido, uma maquete, acaba por tentar recriar o próprio objeto, que acaba por não ter nenhuma função em especial (uma vez que um objeto original já existe). O mapa do Império é inútil porque um Império real, com suas mesmas proporções, já existe. 335
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Daí a radical subversão nos contos de Borges: pois numa literatura que tendia cada vez mais para uma “reprodução realista” da physis (ainda que fosse uma physis interpretada a partir de sua negatividade), seus contos procedem ao desvendamento de seus próprios procedimentos literários e filosóficos, sem mais tentar sequer serem “modelos reduzidos” de uma natureza exterior: a natureza que lhes serve como modelo já é inteiramente ficcional, como os próprios textos que a mimetizam; não há mais relação de correspondência, pois a literatura não pertence mais ao mundo, nem o mundo pode ser subjugado pela literatura. Literatura e mundo são, ambos, criações, e criações simultâneas – contrariando uma criação que gere um modelo, como supõe a mímesis. Costa Lima notaria que na narrativa mimética a concentração em condutas extraordinárias, próprias da narrativa épica – o heroísmo, a perversidade, o comportamento singular – serve de guia para o leitor, como um meio de reconhecimento e identificação – cumpre, portanto, uma função mimetizante, funcionando como um modelo em que o mundo humano reconhece suas qualidades, maquete das virtudes humanas. Borges, ao contrário, dedica-se a esmagar estes recursos desde sua primeira obra, Historia universal de la infamia, em que a heroicidade, quando presente nos contos, funda-se em um destino contraditório, sendo banalizada e pervertida e diluindo-se em farsa – tal é o caso de personagens como Morell que, criando um plano para 336
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ganhar dinheiro com a falsa libertação dos escravos, é descoberto, sendo obrigado a fugir; em sua fuga, planeja futura vingança, que nunca é concretizada porque a personagem morre de congestão pulmonar, contrariando toda a expectativa de um “destino heroico” implicada pela narrativa épica. Tal procedimento pode ser reconhecido em sua culminância no conto “La forma de la espada”, publicado em Ficciones. Graças a uma enchente do arroio Caraguatá, o narrador deste conto é obrigado a pernoitar em La Colorada, sítio em que vivia misterioso inglês sobre o qual se sabia pouco exceto por uma cicatriz no rosto. Sob a condição de não mitigar nenhum opróbrio, nenhuma circunstância de infâmia, o inglês (que na verdade era irlandês, de Dungarvan) resolve contar a história da cicatriz ao narrador. Tendo feito parte de um grupo de companheiros que conspiravam pela independência da Irlanda em 1922, ele narra como veio a conhecer John Vincent Moon, um jovem magro e flácido e de características abomináveis: Tenía escasamente veinte años. Era flaco y fofo a la vez; daba la incómoda impresión de ser invertebrado. Había cursado con fervor y con vanidad casi todas las páginas de no sé qué manual comunista; el materialismo dialéctico le servía para cegar cualquier discusión. Las razones que puede tener un hombre para abominar de otro o para quererlo son infinitas: Moon reducía la historia universal a un sórdido conflicto eco337
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nómico. Afirmaba que la revolución está predestinada a triunfar. Yo le dije que a um gentleman sólo pueden interesarle causas perdidas... (BORGES, 1965, p. 50)
O irlandês menciona, então, um episódio em que, encurralados por guardas, Vincent Moon e ele são obrigados a correr; o irlandês socorre Moon (que, em estado de choque, fica parado), derrubando um dos guardas, mas na fuga Moon é acertado. Em virtude de seu ferimento, Moon permanece alguns dias fora de ação, e só então o irlandês percebe que seu companheiro trata-se de um covarde: magnificava sua própria soberba mental a fim de disfarçar seu temor físico. No décimo dia depois do ferimento, quando a cidade caía definitivamente ao poder dos Black and Tans, o irlandês retorna ao refúgio em que deixara Moon, e com surpresa o descobre delatando o seu grupo às tropas inimigas e exigindo, em troca, garantias de segurança pessoal. O irlandês persegue o delator: Lo acorralé antes de que lós soldados me detuvieran. De una de las panoplias del general arranqué un alfanje; com esa media luna de acero le rubriqué en la cara, para siempre, una media luna de sangre. Borges: a usted que es un desconocido, le he hecho esta confesión. No me duele tanto su menosprecio. Aquí el narrador se detuvo. Noté que le temblaban las manos.
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—¿Y Moon? —le interrogué. —Cobró los dineros de Judas y huyó al Brasil. Esa tarde, en la plaza, vio fusilar um maniquí por unos borrachos. Aguardé en vano la continuación de la historia. Al fin le dije que prosiguiera. Entonces un gemido lo atravesó; entonces me mostró con débil dulzura la corva cicatriz blanquecina. —¿Usted no me cree? —balbuceó—. ¿No ve que llevo escrita en la cara la marca de mi infamia? Le he narrado la historia de este modo para que usted la oyera hasta el fin. Yo he denunciado al hombre que me amparó: yo soy Vincent Moon. Ahora desprécieme. (BORGES, 1965, p. 51-52).
A surpreendente revelação final inverte toda a história: assumindo o ponto de vista do herói que é traído pelo covarde, Vincent Moon mantém a atenção do seu interlocutor até o fim da sua narrativa – que só então descobre que quem está lhe contando a história não é o herói, e sim o traidor sob o peso da infâmia. Borges utiliza, neste conto, as convenções narrativas do gênero épico a fim de subvertê-las: séculos de tradição narrativa nos ensinaram que, quando narrada em primeira pessoa, a narrativa está sendo contada do ponto de vista do narrador, o que aqui não procede: Vincent Moon narra em primeira pessoa, mas seu ponto de vista é aquele do companheiro morto por sua traição. Também buscamos reconhecer
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em quem narra a história os atos heroicos narrados: é desse reconhecimento que Moon se utiliza para que o interlocutor não o despreze até que conclua sua história. O que temos em “La forma de la espada” é, portanto, um engano causado pelo horizonte de expectativas do leitor, que é guiado pelo reconhecimento de convenções literárias que se revelam, enfim, enganosas: a linguagem da épica está a serviço não de um heroísmo, mas de uma traição, e é usada de forma a dissimular a infâmia do narrador. O que está sendo atacada é a relação de correspondência entre a forma como algo é narrado e aquilo que está sendo narrado; a mesma correspondência que fundamenta a mímesis. Se neste conto a relação de correspondência é atacada, em “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”, “La lotería en Babilonia” e “Las ruinas circulares” (três contos também de Ficciones), é o próprio referente (ou seja, a realidade) que é subvertido: se a mímesis supõe uma relação de reconhecimento, nestes contos é o estranhamento de uma physis irreconhecível que constitui a base da experiência – mais especificamente, uma physis que é criada pelo próprio pensamento; que não é anterior à escritura, mas que se realiza juntamente com ela. Tal é o caso no primeiro conto, em Borges e Bioy Casares (aqui tratados como personagens) descobrem, “devido a la conjunción de un espejo y de una enciclopedia” (BORGES, 1965, p. 03), um país, Uqbar, e posteriormente um mundo, Tlön, que seriam a culminância do pensamento idealista e 340
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o exato oposto do materialismo: tais lugares fictícios teriam sido criados por uma sociedade secreta formada por intelectuais de diversas áreas, que teriam se dedicado por anos (e, talvez, séculos) a escrever uma enciclopédia detalhando cada nuança de um mundo em que os objetos não teriam existência material fora da mente humana, mas que seriam involuntariamente criados por ela. Seria um lugar não definido por um conjunto de objetos no espaço, mas por uma série de atos (sendo, portanto, temporal e não espacial), algo que se configuraria na linguagem deste mundo por não existirem substantivos, mas “hay verbos impersonales, calificados por sufijos (o prefijos) monosilábicos de valor adverbial” (BORGES, 1965, p. 07). Um dos exemplos dessa estranha realidade idealista se manifestaria através da duplicação de objetos perdidos: “Dos personas buscan un lápiz; la primera lo encuentra y no dice nada; la segunda encuentra um segundo lápiz no menos real, pero más ajustado a su expectativa” (BORGES, 1965, p. 09) – o próprio ato de procurar o lápis geraria este mesmo lápis. O conto termina com a constatação de Borges (personagem) que os objetos de Tlön estariam começando a invadir o mundo real: uma bússola e alguns cones de metal muito pesado, símbolos da divindade em Tlön. Fica sugerido que talvez tais elementos tivessem sido forjados pela mesma sociedade secreta que escrevera a enciclopédia; entretanto, fica também sugerido que, talvez, o conhecimento de Tlön 341
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e seus objetos criariam objetos novos no mundo real, o que implicaria em dizer que a realidade é, assim como Tlön, resultado da psicologia humana, e que o conhecimento sobre Tlön tornaria aquele mundo uma realidade. A noção de “reconhecimento”, tão necessária à mímesis, está completamente dissipada neste conto: pois reconhecer é, na verdade, gerar algo novo que esteja de acordo com as expectativas de quem procura reconhecer um objeto. Reconhecer é o equivalente a criar: ler sobre Tlön é fazer com que Tlön exista. A materialidade física do mundo não é anterior ao que se escreve ou se lê sobre ele, mas posterior: a physis é criada pelo que deveria ser apenas seu mimema. Dessa maneira, não podem existir mimemas, pois o “modelo reduzido” de um objeto, criado antes do objeto, leva à descoberta posterior do objeto que até ali não existia. Neste sentido, temos algo não muito diferente do que se lê em “Las ruinas circulares”, em que um sonhador descobre-se capaz de materializar um homem a partir de seus sonhos – e o único modo deste homem descobrir que era um ser sonhado seria se tivesse contato com o fogo, pois não se queimaria. O desfecho da narrativa acontece quando o próprio sonhador entra em contato com o fogo e descobre que na verdade ele é um ser sonhado. “En ‘Las ruinas circulares’ todo es irreal”, diria Borges (1965, p. 03) no Prólogo, a respeito deste conto. Se “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” imagina uma physis que é resultado do idealismo, “La lotería en Babilonia” des342
Newton de Castro Pontes
creve um mundo fortemente influenciado pelo pensamento gnóstico, e completamente alheio a qualquer teleologia. Para Costa Lima, Borges isolaria o conteúdo religioso da gnose e a tomaria a partir de sua forma mítica: a forma de um mundo criado por acidente através da intervenção de um deus inferior que não possui nenhum plano de redenção para a humanidade, cujo destino seria completamente fortuito e entregue ao acaso ou às vontades indecifráveis de um deus que não é necessariamente bom. Tal é a configuração encontrada na Babilônia que dá título ao conto: a loteria, estendendo-se por cada camada da vida social, teria tornado toda a realidade fortuita, e todo o destino baseado em uma série de sorteios realizados de forma secreta por pessoas cuja existência seria desconhecida. O narrador deve inteiramente à loteria a variedade “quase atroz” de coisas que lhe sucederam: Como todos los hombres de Babilonia, he sido procónsul; como todos, esclavo; también he conocido la omnipotencia, el oprobio, las cárceles. Miren: a mi mano derecha le falta el índice. Miren: por este desgarrón de la capa se ve en mi estómago un tatuaje bermejo: es el segundo símbolo, Beth. Esta letra, en las noches de luna llena, me confiere poder sobre los hombres cuya marca es Ghimel, pero me subordina a los de Aleph, que en las noches sin luna deben obediencia a los de Ghimel. En el crepúsculo del alba, en 343
Borges, o Conto Moderno e a Antiphysis
un sótano, he yugulado ante una piedra negra toros sagrados. Durante un año de la luna, he sido declarado invisible: gritaba y no me respondían, robaba el pan y no me decapitaban. He conocido lo que ignoran los griegos: la incertidumbre. En una cámara de bronce, ante el pañuelo silencioso del estrangulador, la esperanza me ha sido fiel; en el río de los deleites, el pánico. Heraclides Póntico refiere con admiración que Pitágoras recordaba haber sido Pirro y antes Euforbo y antes algún otro mortal; para recordar vicisitudes análogas yo no preciso recurrir a la suerte ni aun a la impostura. (BORGES, 1965, p. 25).
Assim como a enciclopédia sobre Tlön, a instituição da loteria penetra tão profundamente as instituições sociais e se estende de forma tão vasta sobre o mundo que acaba por apagar seus próprios rastros, e já não se sabe sequer se tal instituição realmente existe ou se o mundo sempre esteve, desde o início, entregue à sorte: sucesso ou fracasso podem ser devido a um sorteio da loteria, ou talvez a loteria já nem mais exista – o mundo já se tornou inteiramente fortuito em sua própria natureza; a teleologia está anulada. Em termos literários, as noções de destino e de heroísmo estão completamente aniquiladas: o mundo é resultado de uma série de sorteios que prosseguem infinitamente, e cujos resultados são cada vez mais complexos, até o ponto em que se tornam entranhados no próprio cotidiano; o ca344
Newton de Castro Pontes
ráter fortuito de todas as relações se tornou base da physis configurada por este conto. Como diria Costa Lima (2003, p. 251), “O azar foi de tal modo capilarizado que este já não provoca surpresa, mas vem dotado de uma ‘misteriosa monotonia’. Noutras palavras, o azar já não produz choques, já não atinge a existência, porque se confundia com ela. O aperfeiçoamento do jogo tirou sua principal consequência: o efeito de azar”. A criação do jogo alterou a configuração da physis e todas as relações entre as coisas. O que Borges realiza em seus contos é um caminho diverso daquele aberto pelos contos de Tchékov e seguido por outros autores modernos: enquanto estes se dedicaram a modificar as convenções que fundamentavam a mímesis, denunciando a impossibilidade de uma literatura “realista” e fundando novos modelos que, abertos, indicavam um possível predomínio daquilo que Costa Lima chamaria de mímesis de produção, Borges se propôs a desrealizar aquilo que fundamentava a própria mímesis, ou seja, não simplesmente as convenções literárias de seu tempo e de tempos anteriores, mas a própria relação entre literatura e referente. Não simplesmente criando um novo referente fictício, mas fazendo com que a obra referencie seu próprio texto que, estruturalmente, passa a criar novos mundos que são posteriores àquilo que os representa. Se, por um lado, os contos de Borges tiveram a desvantagem de apresentar a possibilidade de uma literatura excessivamente erudita 345
Borges, o Conto Moderno e a Antiphysis
e que abusa do diálogo com a própria literatura, por outro teve a vantagem de libertá-la das amarras de uma physis que, positiva ou negativa, sempre lhe servia como guia, e da qual o texto podia apenas ser seu “modelo reduzido”. Referências ARRIGUCCI JR, Davi. Borges ou do conto filosófico. In: BORGES, Jorge Luis. Ficções. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001. p. 09-26. AUERBACH, Erich. A meia marrom. In: ______. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. p. 476-498. BORGES, Jorge Luiz. Del rigor em la ciencia. In: ______. Historia universal de la infamia. Madrid: Alianza Editorial, 1993. p. 136. BORGES, Jorge Luiz. Ficciones. 4. ed. Buenos Aires: Emecé Editores, 1965. 76 p. CALVINO, Ítalo. Multiplicidade. In: ______. Seis propostas para o próximo milênio. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 117-138. COSTA LIMA, Luiz. A Antiphysis em Jorge Luiz Borges. In: ______. Mimesis e modernidade: formas das sombras. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. p. 237-264. ______. Aproximação de Jorge Luiz Borges. In: ______. O fingidor e o censor: no Ancién Régime, no Iluminismo e hoje. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1988. p. 257-306. GOUVEIA, Arturo. A arte do breve. In: ______. A arte do breve. João Pessoa: Ed. Manufatura, 2003. p. 163-188. GOUVEIA, Arturo. A epopéia negativa do século XX. In: GOUVEIA, Arturo; MELO, Anaína Clara de. Dois ensaios frankfurtianos. João Pessoa: Ideia, 2004. p. 12-74. LUCAS, Fábio. Guimarães Rosa e Clarice Lispector: Mito e Ideologia. In: ______. Razão e emoção literária. São Paulo: Duas Cidades, 1982. p. 113-121.
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Conexões entre paradoxo narrativo e Mímesis em narrativas de super-herói
Figuras 1 e 2 – Ilustrações do livro Superheroes Decadence, de Donald Soffritti (2009)
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Conexões entre paradoxo narrativo e mímesis em narrativas de super-herói
O
ilustrador Donald Soffritti (2009) fez um trabalho com o propósito de responder como supostamente ficariam os nossos heróis na velhice. As imagens do Super-Homem e do Homem-Aranha, que abrem este artigo, são exemplares do projeto deste artista italiano. O efeito de comicidade que estas imagens suscitam se dá porque Soffriti, conscientemente ou não, explora o que Humberto Eco (2008) chama de paradoxo narrativo, noção relativa ao modo como uma narrativa busca inserir-se em dois esquemas temporais distintos: o tempo do mito e o tempo do cotidiano. Os super-heróis constituem-se com base numa dupla demanda ou apelo. São imunes ao tempo e suas vicissitudes – obedecendo ao apelo do caráter mítico. Simultaneamente, o super-herói é “uma criatura inserida na vida cotidiana, no presente, aparentemente ligado às nossas mesmas condições de vida e de morte, ainda que dotado de faculdades superiores” (ECO, 2008, p. 253). Nisto, o super-herói obedece ao apelo do romance, o qual abre mão da imunidade ao tempo. Portanto, quando se ri das charges de Soffritti, está-se encontrando uma forma de reagir diante do paradoxo narrativo que o super-herói instaura. É possível dizer que o paradoxo narrativo está relacionado a uma questão que é um dos principais fundamentos
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da arte ocidental: “a confiança na physis” (COSTA LIMA, 2003, p. 238). A physis é definida por Aristóteles (2009), no livro II da obra Física, como fonte ou causa do movimento e do repouso que enredam os seres. Conforme este conceito, a physis ou natureza está diretamente ligada à noção de forma, entendida tanto como matéria quanto como organização. Neste sentido, a physis é o drama do ser envolvido nos processos de formação e transformação (e termos derivados como “deformação”). A arte, como ressalta Costa Lima (2003), vem para questionar os fundamentos da physis. Entenda-se questionamento não como sinônimo de negação, mas como o esforço de desvendar as nuanças existentes entre as polaridades da formação e da transformação características da physis. Este questionamento, que faz do ato de representar uma expressão do conflito entre a confiança e a desconfiança na physis, aproxima-se do que Costa Lima entende como mímesis, termo derivado dos diálogos de Platão. Costa Lima (2003, p. 238), ao relacionar physis e mímesis, acrescenta que “esta não se cumpre sem um relacionamento (de semelhança e diferença) quanto àquela”. O paradoxo narrativo, do qual se reveste a narrativa de super-herói, pode ser relacionado ao enfrentamento da physis que a noção de mímesis implica. E neste enfrentamento, a mímesis joga com a semelhança e com a diferença,
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Conexões entre paradoxo narrativo e mímesis em narrativas de super-herói
comportando-se ora como uma fiel combatente, ora como adversária da physis. Neste caso, manifesta-se o que Costa Lima (2003) chama de mímesis da antiphysis. Em se tratando das narrativas de super-herói, em seu formato contemporâneo, a mímesis acaba por se comportar como mercenária. Ao comparar a mímesis com um mercenário, aludo ao mesmo tipo de comparação feita por Dallenbach (1979, p. 52), em nota, para descrever o caráter dúbio e oscilante do processo intertextual da mise-en-abyme, a qual é chamada por ele de “mercenária textual”. As narrativas de super-herói revelam o quão astuciosa a mímesis pode ser. O adjetivo “astuciosa” é empregado por J. Guilherme Merquior (1971) para se referir a como a mímesis joga com o ocultamento e o desnudamento da semelhança e da diferença. Nas narrativas de super-herói contemporâneas, há, como se verá, uma oscilação entre uma mímesis que tende a se aproximar da physis e uma mímesis da antiphysis. Ficará para outra oportunidade uma análise diacrônica da manifestação da mímesis nas histórias de super-heróis. Neste momento, o que se pretende é destacar a dubiedade assumida pela mímesis. Por esta razão, este estudo foca as narrativas de super-heróis contemporâneas. A historiografia tradicional, com base na obra de Cristoph Cellarius (1638-1707) intitulada Universal History divided into an Ancient, Medieval, and New Period, designa como marco do período contemporâneo a Revolução Fran352
Cláudio Clécio Vidal Eufrausino
cesa, de 1789. Apesar de serem imprecisos e controversos, os marcos são úteis para fins didáticos e até mesmo como coordenadas para as objeções que se levantam contra eles. Para fins da análise que se almeja realizar neste trabalho, será instituído como marco da contemporaneidade das narrativas de super-herói a década de 1960, período em que começam a ser publicadas as histórias de um grupo de super-heróis chamado X-men, representando uma mudança no modelo de super-herói até então encampado. No decorrer da análise, será possível entender o porquê da escolha deste marco que, a exemplo de qualquer marco, é cercado de limitações, mas também fornece um direcionamento à atividade de pesquisa. Identidade secreta e adesão ao sema da semelhança O plano de vingança do personagem Orestes, na peça de Ésquilo, Choephoroe, fornece, como observa Costa Lima (2003) elementos para uma discussão sobre o modo como a mímesis opera com a semelhança e a diferença. A fim de retornar, sem levantar suspeitas, ao palácio cujo trono havia sido usurpado por seu padastro, Orestes decide se passar por um mensageiro de uma nação estrangeira, enganar as sentinelas do palácio e entrar para deixar uma encomenda que subverterá a ordem do lugar. Para isso, o personagem fará uma imitação (mimeisthai) ou, utilizando outro termo, 353
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fingirá a língua e o sotaque dos fócios, além de vestir-se à moda deste povo. Costa Lima (2003, pp. 237-238) observa que o fato de a tradução de mimesthai ficar dividida entre o sentido de “fingir” e o de “imitar” é sintoma de como “séculos de tradição deformante” são responsáveis pela associação feita entre mímesis e imitação, levando-nos a identificar a mímesis “com uma problemática especular”. Segundo o teórico, afirmar que Orestes faz uma imitação da linguagem dos fócios termina por esvaziar a presença da voz grega como parte integrante do complexo mimético relativo ao fingimento orestiano. O mimesthai empreendido por Orestes não consiste propriamente no gesto de imitar, mas sim, como observa Costa Lima (2003), em subtrair uma parcela que, contudo, compõe o fenômeno. O êxito da mimesthai de Orestes “depende de a diferença permanecer oculta, insuspeitada, apenas aflorando o lado da semelhança” (COSTA LIMA, 2003, p. 238). Daí, o autor (2003, p. 239) afirmar que o mimema, isto é, a obra em que se realiza a mímesis “é lido pelo receptor da mesma maneira como havia sido lido pela sentinela o disfarce de Orestes: a diferença que contém não é tematizada”. As parcelas que compõem o complexo mimético são chamadas por Costa Lima (2003) de semas. Os semas, elementos mínimos que se fundem para gerar significação, dividem-se em sema da semelhança e sema da diferença, sendo simultaneamente atualizados em todo processo de 354
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realização da mímesis. Nesta perspectiva, o disfarce, com o qual a mímesis é comparável, surte efeito não por ser uma reprodução da realidade, mas por “ser lido de acordo com a nossa codificação cultural”. As sentinelas se deixam enganar porque projetam suas expectativas de semelhança. Trata-se de uma adesão ao sema da semelhança. Um tipo similar de adesão ocorre nas narrativas de super-herói, estando relacionado a uma noção frequente neste tipo de narrativa: a noção de identidade secreta, que expressa o modo como o mito se procura esconder por trás da máscara de homem comum, revestindo-se de cotidianidade. A despeito do que dirá Eco (2008), resumindo a identidade secreta a uma estratégia que contribui para que se crie uma atmosfera de suspense, ela é um momento de suspensão ora do sema da diferença, ora do sema da semelhança. Tome-se como exemplo o Super-Homem. Em sua identidade secreta, o Super-Homem é Clark Kent, um homem tímido que trabalha como repórter de um jornal chamado Planeta Diário. Apesar das mudanças pelas quais este personagem passou desde que foi criado, na década de 1930, algo nele permanece invariável: os óculos utilizados pelo personagem são o elemento desencadeador do mimesthai. Tanto Clark Kent quanto o Super-Homem têm a mesma aparência física ou, como diria Costa Lima (2003) são sintagmaticamente compostos pelos mesmos elementos, com exceção dos óculos e do uniforme. Mas, isto 355
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não impede que os demais personagens da narrativa ajam como se Clark Kent e Super-Homem fossem duas pessoas distintas. O mecanismo de disfarce do Super-Homem opera de forma análoga à versão do disfarce de Orestes. Porém, trata-se de uma analogia que age por meio da subtração do sema da semelhança. Em Orestes, o sucesso do disfarce se dá porque o sema da diferença é silenciado, o que permite que ele seja con-fundido com um estrangeiro. Por outro lado, no caso do Homem de Aço a estratégia da narrativa é promover uma subtração do sema da semelhança. A aura mítica trabalha para silenciar a semelhança que, aos olhos do leitor, grita. Nisso, eufemiza a semelhança e hiperboliza a diferença, condensando-a em alguns poucos elementos sintagmáticos, a saber: os óculos e a roupa. Contudo, não seria errado dizer que, sob outro ponto de vista, Orestes e Super-Homem se equivalem enquanto figuras exemplificadoras da operação mimética. Para que o Orestes disfarçado de estrangeiro seja ressaltado, o Orestes grego - que se lhe contrapõe - é silenciado. Mas, o leitor sabe que ambos os Orestes são a “mesma” pessoa. No caso do Super-Homem, Clark Kent é silenciado ou – para utilizar uma expressão de Costa Lima (2003) – é um elemento de diferença “colocado nos bastidores” para que o Super-Homem seja ressaltado ou vice-versa. Colocar nos bastidores tem um significado diferente de apagar. É justamente o ato de explorar a tensão entre o que está em primeiro plano e o 356
Cláudio Clécio Vidal Eufrausino
que está nos bastidores que torna efetivo, na narrativa de super-herói, o paradoxo narrativo. Semelhante ao caso de Orestes, o leitor sabe que ambos são a “mesma” pessoa. Acompanhemos essa discussão no esquema a seguir: Quadro de operações miméticas no Super-Homem Ponto de vista 1 subtração do sema da semelhança
Ponto de vista 2 subtração do sema da diferença
Semelhança é ocultada pela instauração da aura mítica
Diferença representada pela co-presença de Clark Kent no Super-Homem (ou vice-versa) é silenciada pela aura mítica, cuja ação é desencadeada pela presença ou ausença de elementos sintagmáticos (os óculos, por exemplo).
Considerar a operação de mímesis operada pela identidade secreta do Super-Homem como algo ingênuo é deixar de levar em conta que não é a simples presença ou ausência dos óculos que responderá pelo êxito do disfarce mimético. Na verdade, os óculos são somente a ponta do iceberg, o último aceno da cotidianidade, que abre passagem para a aura mítica. O êxito da mímesis no Super-Homem está ligado a esta aura, que, por sua vez, está relacionada ao acionamento de suas capacidades sobre-humanas. É importante destacar 357
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que, como explica Walter Benjamin (1975), a aura é a presença de algo invisível, por mais distante que este algo esteja. A presença aurática do mito expõe o elo que liga suas duas existências (enquanto mito e enquanto homem comum). Este recurso dramático, que dispõe do elemento narrativo da identidade secreta, está relacionado ao que Eco (2008) denomina mitificabilidade. A mitificabilidade é inversamente proporcional à cotidianidade. O autor (2008, p. 248) define, em termos literários, o mito da seguinte maneira: uma personagem, de origem divina ou humana, que, na imagem, permanecia fixada nas suas características eternas e no seu acontecimento irreversível. Não se excluía que, por trás da personagem, existisse, além de um conjunto de características, uma estória: mas a estória já se achava definida segundo um desenvolvimento determinado e passava a constituir, de modo definitivo, a fisionomia da personagem.
Em contrapartida, no personagem “romanesco”, a fixidez emblemática à qual se refere Eco cede lugar à imprevisibilidade. O mito é representante da fixidez por ser uma representação emblemática do eterno. Os personagens míticos, mesmo tendo seus feitos contados de formas variadas, têm suas atitudes centradas na reiteração da estrutura mítica. Os personagens romanescos, contrariamente, têm 358
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sua existência ferida pela imprevisibilidade. Daí, decorre que são personagens não de reiteração, mas de ação. E para uma personagem, agir significa, consumir-se (ECO, 2008, p. 53). O mito, então, tende a ser inconsumível. A identidade secreta age como um marcador de fronteira, regulando a inserção do super-herói nos domínios da ação e da reiteração, ou, em outras palavras, nos domínios do mito e do romance. Assim, nas narrativas de super-herói, a identidade secreta talvez seja o principal agente dosador da mitificabilidade, isto é, da movimentação da narrativa entre o terreno do mito e o terreno do romance. Mas, esta marcação de fronteira é problemática e contraditória. E, por esta razão, instaura uma situação paradoxal, a qual Eco (2008) definirá como paradoxo narrativo. Este, por sua vez, pode ser relacionado ao movimento de aproximação entre mímesis e physis e ao movimento de afastamento, isto é, a mímesis de antiphysis. Como acentua Costa Lima (2003), associa-se à noção de physis o efeito-reflexo, ou a ideia de que as representações podem funcionar como uma duplicação da natureza. Tal duplicação pressupõe que a natureza é harmônica, ou seja, estável e previsível. Portanto, seria apreensível pelas representações de forma direta como o reflexo de algo em um espelho plano e perfeitamente polido. A harmonia da physis pressupõe que a experiência do leitor pode ser controlada.
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Esta visão está ligada à necessidade apontada por Platão de controlar moralísticamente o texto da ficção. Assim, os elementos morais, na obra ficcional, deveriam seguir uma ordem e harmonia que supostamente refletiam a ordem e a harmonia da physis. Por isso, a mímesis relacionada à physis opera com base em comportamentos singulares, a exemplo de fronteiras bem marcadas entre o heroísmo e a perversidade. O próprio da physis, ressalta Costa Lima (2003, p. 246), é “servir de critério para o princípio da identidade”, baseado no controle, na unidade e no centramento. E ele reforça seu ponto de vista, com uma citação da Física, de Aristóteles: “Tudo o que é aqui nomeado se mostra como alguma coisa que se distingue em relação àquilo que não é, a partir da physis”. Por sua vez, a mímesis da antiphysis vem questionar os parâmetros de representação clássicos que tendem a varrer o caos para debaixo do tapete da ordem, entendida como o esforço de conferir valor e presença universais a uma determinada forma de classificação dos seres. Ao tirar o sema da diferença de uma situação de recalque, a antiphysis tenta lidar com o fato de cada vez mais nos percebermos como integrantes de uma sociedade complexa em que “há inúmeros sistemas de representação” (COSTA LIMA, 2003, p. 87). Ao se aproximar da physis, a mímesis pauta-se pela linearidade e pelo ordenamento; ao buscar dar voz à antiphysis, a mímesis explora as propriedades sêmicas da contradição e 360
Cláudio Clécio Vidal Eufrausino
do entrelaçamento. Enquanto a mímesis aparentada à physis tem como alvo o foco, a correspondência entre mundo e representação, a mímesis da antiphysis afasta-se, conforme a metáfora empregada por Costa Lima (2003), da ideia de que mundo e representação devem estar relacionados como lastro e moeda. Nos domínios da antiphysis, as correspondências são colocadas sob suspeita, o que gera a tendência de as representações se tornarem um templo “de proliferação das falsas correspondências”. O que está em jogo na estratégia narrativa da identidade secreta é a transição entre aura mítica e aura de cotidianidade. Esta transição, por sua vez, está relacionada às variações do grau de mitificabilidade da narrativa. O componente aurático cria, por meio do disfarce mimético, o efeito de distinção entre Clark Kent e Super-Homem. Em resumo, a aura mítica e a aura de cotidianidade atuam como convenções internalizadas, fazendo da identidade secreta uma engrenagem da mímesis na narrativa de super-herói. Com base neste raciocínio, é possível dizer que a utilização dos óculos como marcador de fronteira da identidade secreta é, na verdade, uma estratégia irônica, uma forma de desviar a atenção ou olhar do mimetes - definido por Costa lima (2003) como o agente da representação, seja ele ator ou autor – do efetivo agente operacionalizador da mímesis: a “convenção cultural internalizada” (COSTA LIMA, 2003, p. 241).
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Porém, a internalização de convenções culturais em narrativas de super-herói é, de saída, problemática, porque este tipo de narrativa oscila entre a convenção mítica e a convenção da cotidianidade. A convenção cultural é internalizada pelo mimetes na forma de um paradoxo narrativo. Physis, antiphysis e paradoxo narrativo no modelo clássico de super-herói Ao se aproximar do relato sobre o disfarce de Orestes, Costa Lima (2003) quis chamar atenção para como a mímesis está relacionada a uma estratégia de reconhecimento e identificação. Reconhecimento e identificação atuam como elos entre o agente da representação (autor ou leitor) e a physis, entendida como a natureza segundo o modelo da filosofia clássica: união harmônica entre as partes e o todo. O pressuposto do ideal da physis é que suas leis mantêm afastada a ameaça do caos. Seria cômodo chamar de modelo clássico de superherói aquele relacionado ao processo de mímesis pautado pela physis. Contudo, não há, nas narrativas de super-herói, mesmo em sua modalidade clássica, a ausência da antiphysis. Isto porque os próprios super-poderes, em sendo um dos principais elementos de caracterização dos personagens (VIANA, 2005), são pautados, em certos aspectos, pela antiphysis. Contudo, o que se verifica é que, no modelo clássico 362
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de super-herói, os pressupostos da physis são colocados em suspensão pelos super-poderes. Isto ocorre para que a narrativa abra caminho para que o super-herói aja reafirmando os mesmos pressupostos que foram suspensos. O super-poder ao romper com as coordenadas clássicas de tempo e espaço, simula a antiphysis para realçar o brilho da physis, num jogo de linguagem que remete à prescrição contida no capítulo segundo do livro bíblico do Eclesiástico: “Pois é pelo fogo que se experimentam o ouro e a prata”. Os super-poderes são o fogo que, ao mesmo tempo em que testa, reafirma a physis. Os super-poderes contestam os mecanismos de reconhecimento e de identificação com o topos ou modelo clássico de natureza. Percebe-se este caráter contestador quando se analisa o modo como o tempo é abordado nas narrativas de super-herói. Como destaca Eco (2008, p. 254), a definição clássica de tempo permanece sendo aquela sistematizada por Aristóteles e endossada pela Crítica da Razão Pura, de Kant, nos seguintes termos: “É lei necessária da nossa sensibilidade e, portanto, condição de todas as percepções que o tempo precedente determine necessariamente o sequente”. Os super-poderes, apesar da grande variedade, pautamse pela subversão a esta noção clássica de tempo. Tome-se novamente como exemplo o Super-Homem. A super-força e a super-velocidade do personagem são expressões do fenômeno nomeado por David Harvey (1992) de compressão do tempoespaço. Segundo este autor, um dos principais agentes de 363
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compressão do tempo-espaço é a tecnologia, que torna possível deslocar os acontecimentos dos marcos da temporalidade linear e inseri-los no marco da temporalidade simultânea, como exemplifica a possibilidade, mediada pela informática, de realização de múltiplos processos paralelamente. Nas narrativas de super-herói, o agente de compressão do tempo-espaço pode ser de ordem tecnológica, como acontece com o personagem Batman, cujos super-poderes são decorrentes de aparatos tecnológicos que intensificam suas habilidades corporais. Mas, o que mais comumente ocorre é que a compressão do tempo-espaço tenha origem mítica, representada pela magia, pela ação dos deuses ou pela conexão mística entre o super-herói e a natureza (como é o caso do Super-Homem). Um super-poder como a visão de raios-x, que permite ao Super-Homem enxergar as coisas por trás da densidade da matéria, demonstra a dubiedade que caracteriza os super-heróis. A nomenclatura “visão de raios-x” expressa uma ligação com a cotidianidade, mas se trata de um super-poder de cunho mítico. Algo semelhante ocorre com a personagem Mulher-Maravilha. Ela possui um laço mágico, forjado pelo deus Hefestos, da mitologia grega. Este laço tem como principal característica o fato de que quando enlaça alguém, seja mortal ou divindade, obriga tal pessoa a dizer a verdade. O criador da Mulher-Maravilha, William Marston, foi também inventor do aparelho detector de mentiras ou 364
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polígrafo. Portanto, o super-poder desta heroína, mesmo sendo expressamente vinculado à mitologia, tem uma conexão implícita com a cotidianidade. Além disso, o laço mágico da Mulher-Maravilha expõe a fissura que o super-poder, enquanto mimesthai, apresenta entre physis e antiphysis. O laço mágico desafia a ordem natural clássica que trabalha com o a possibilidade de se optar ente verdade e mentira, mas, ao mesmo tempo, pauta-se pela ideia de que existe uma verdade suprema, captável por detrás dos véus ou máscaras que o ser humano desenvolve na vida em sociedade. Este ideal de uma verdade suprema, inspirado pela filosofia platônica, está relacionado ao pressuposto de harmonia da physis. O laço mágico promove a aletheia, no sentido etimológico de desvelamento, sentido este que, como chama atenção Loparic (2004), foi adotado por Heidegger em sua reflexão filosófica sobre a verdade. O laço mágico é um agente de retirada dos véus que ocultam a verdade. Como já foi dito, a physis liga-se à noção de harmonia entre o todo e as partes que o compõem. Este princípio reflete-se na figura clássica do herói, cujas ações tendem a ser emblemáticas, ou, dito de outra forma, tendem a representar os valores da coletividade. E é um princípio que continua atuando no que se está chamando de modelo clássico de super-herói. Não é objetivo deste texto discutir como os super-heróis representam coletividades. Mas, pode-se dizer que, ao representarem uma coletividade, os super-heróis 365
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clássicos inscrevem-se na esfera de uma mímesis da physis. Exemplo cássico disto é o Capitão América, um supersoldado, cujas capacidades sobre-humanas servem como moldura para a propagação do mito dos Estados Unidos enquanto mais poderosa nação do planeta e maior porta-voz de ideais como a justiça e a verdade. E o que ocorre com o Capitão América não é muito diferente do que acontece com o Super-Homem. Portanto, deve-se levar em consideração que a antiphysis, expressa por meio dos super-poderes do superherói clássico, é problemática. Isso porque a subversão da ordem natural causada pelos super-poderes é menos uma subversão efetiva do que uma licença poética. Promove-se a perturbação da ordem natural para que ela possa ser reajustada pela ação redentora do super-herói, um agente de reafirmação do ideário da physis. Anteriormente, observou-se que a narrativa de superheróis está dividida entre mito e cotidianidade. Como observa Eco (2008) a esfera do mito está ligada à intemporalidade e à previsibilidade. O mito não conhece fronteiras temporais, por ser eterno. O acontecimento mítico antes de ter sua introdução já é escoltado pela conclusão. Além disso traz inscrito em si o futuro. O antes, o durante e o depois, na esfera do mito, são resultado da miopia dos seres humanos, incapazes de sondar a identidade plena e imutável do destino. Por estas características, Eco (2008) afirma ser a fábula a unidade narrativa padrão da estrutura mítica. 366
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Por outro lado, a cotidianidade é marcada pela temporalidade e pela imprevisibilidade. Introdução, desenvolvimento e conclusão são, na estrutura da cotidianidade, resultado da conexão “de estruturas do meu agir, segundo uma dimensão de responsabilidade” (ECO, 2008, p. 256). Na cotidianidade, a dimensão temporal fornece a medida da efetividade das decisões, diferentemente do mito em que a decisão praticamente não tem poder diante da grandiloquência do destino. A cotidianidade é imprevisível porque é escrita à medida que eu decido e “de que esse meu decidir se liga a uma série indefinida de dever-decidir que envolve todos os outros homens” (ECO, 2008, p. 256). Se o mito, em sua previsibilidade, é irreversível, a cotidianidade, em sua imprevisibilidade, torna todo fenômeno potencialmente reversível. Esta é a fórmula do enredo, entendido pelo autor (2008) como a unidade narrativa padrão da estrutura da cotidianidade ou do romance: a inter-relação de ações marcadas pela imprevisibilidade e pela reversibilidade. É importante mencionar que o filósofo utiliza o termo romance no sentido lato, não o restringindo às produções do Romantismo. Nas narrativas de super-herói, não é bem resolvida a relação entre mito e cotidianidade. É isto que leva Eco a entender que este tipo de produção literária (ele mesmo classificará assim a narrativa de super-herói) como sendo envolta pelo que ele denominará paradoxo narrativo. Veja367
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mos o que este pensador (2008, p. 253) diz sobre o paradoxo narrativo, tomando como exemplo o Super-Homem: O Superman deve, portanto, permanecer inconsumível, e, todavia, consumir-se segundo os modos da existência cotidiana. Possui as características do mito intemporal, mas só é aceito porque sua ação se desenvolve no mundo cotidiano e humano da temporalidade. O paradoxo narrativo, que os roteiristas do Superman têm, de algum modo, que resolver, mesmo sem estarem disso conscientes, exige uma solução paradoxal na ordem da temporalidade.
Em resumo, o modelo clássico de super-herói está relacionado à seguinte estrutura temporal: 1. Tempo mítico – esfera da intemporalidade; 2. Tempo cotidiano – esfera do tempo sequencialcausal. Perceba-se como a mímesis relacionada à physis e a mímesis de antiphysis jogarão com estas instâncias temporais do paradoxo narrativo. Revestido pela identidade secreta, o personagem insere-se na esfera da cotidianidade, regida pelo tempo clássico (linear e causal), que é expressão da physis. Nesta esfera de tempo, trabalham-se características da personagem que o aproximam do homem comum, “apa368
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rentemente ligado às nossas mesmas condições de vida e de morte” (ECO, 2008, p. 253). O super-herói, envolto pela identidade secreta desloca-se, como observa Eco (2008) do terreno dos mitos para o terreno dos tipos. Quando desveste sua identidade secreta e entra em ação como super-herói, ganha cena a simulação da antiphysis, no que diz respeito à suspensão temporária da lógica da physis cotidiana. Contudo, este rompimento com o tempo sequencial-causal é uma estratégia de reforço da aura mítica. Há ainda a presença de elementos da physis no proceder ético deste tipo de super-herói, também pautado pela ideia de harmonia e equilíbrio da episteme clássica. O super-herói no modelo clássico é, em termos éticos, próximo ao ideário prescrito por Platão para os governantes da República. Nesta perspectiva, a physis, em seu aspecto temporal, colabora para a cotidianidade, enquanto a antiphysis, como subversão simulada da temporalidade clássica, colabora com a aura mítica. Também colabora com a aura mítica a physis relacionada à dimensão ética dos personagens. Daí, ser possível concluir que, no balanço geral do super-herói clássico, a aura mítica leva vantagem sobre a aura de cotidianidade pelo fato de contar com apoio tanto da physis quanto da antiphysis, entendida, neste contexto, como suspensão temporária dos pressupostos da physis.
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Além disso, Eco (2008) atenta para o fato de que o modo como são estruturadas as narrativas de super-herói tendem a mascarar o paradoxo narrativo por meio do que o autor chama de presentificação contínua. O super-herói pratica uma determinada ação no âmbito de uma história ou de uma série de histórias. Posteriormente, começa-se uma nova história que tende a ter os vínculos com a história anterior esmaecidos ou rompidos: Essas estórias desenvolvem-se, assim, numa espécie de clima onírico - inteiramente inadvertido pelo leitor – onde aparece de maneira extremamente confusa o que acontecera antes e o que acontecerá depois, e quem narra retorna continuamente o fio da estória como se houvesse esquecido de dizer alguma coisa e quisesse acrescentar alguns pormenores ao que já dissera (ECO, 2008, pp. 257-258). Desta maneira, as reescrituras das origens dos superheróis são um exemplo de como a narrativa trabalha para inserir o personagem no cotidiano sem correr o risco de que ele se consuma ou, nas palavras de Eco (2008), mascarando o caminhar do personagem para a morte. Logo, o mascaramento do paradoxo narrativo também reforça a aura mítica no super-herói clássico. Como será visto a seguir, o novo modelo de super-herói não terá mais, para utilizar o termo de Eco, “obrigação” de solucionar o paradoxo narrativo. Contrariamente, serão exploradas quando não aprofundadas as veredas deste paradoxo. 370
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Batman como personagem de transição do modelo clássico para o novo modelo de super-herói No início deste trabalho, foi feita a proposta de escolher os X-men, um grupo de personagens criado na década de 1960, como representantes de um novo modelo de superherói que se contrapõe ao modelo clássico representado pelo Super-Homem. Mas, antes de iniciar a análise dos X-men, é importante mencionar o personagem Batman que, apesar de ter sido criado no mesmo período que o Super-Homem (final da década de 1930), viria, principalmente a partir de 1980, a agregar elementos que o tornariam um super-herói de transição entre o modelo clássico e o novo modelo de super-heróis. Em Batman, manifesta-se uma das características principais da antiphysis: ela “inverte ficcionalmente a tradição de que se nutrem as ficções” (COSTA LIMA, 2003, p. 246). Uma das tradições invertidas nas narrativas de Batman é a oposição dualista entre luz e trevas. O personagem inspirou seu uniforme e sua identidade super-heróica nos hábitos dos morcegos. Batman tem um temperamento tímido e soturno e, ao contrário dos super-heróis apolíneos, como o Super-Homem, não cultiva a mansidão e a solicitude, mas sim a inflexibilidade e a violência. Batman também não compartilha do código de honra que os super-heróis clássicos 371
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herdaram do heroísmo greco-latino. Segundo este código, a batalha deve oferecer a ambos os oponentes a chance de lutar em igualdade de condições. Batman herda o lado vingativo e impiedoso de Aquiles. O Homem-Morcego, ao contrário do Super-Homem, não se importa em preservar a integridade física de seus oponentes, tendo como único limite a preservação da vida. Batman evita ao máximo tirar a vida de alguém. É um personagem comprometido integralmente com a defesa da justiça e o combate ao crime. Nisto se expressa o lado de sua personalidade ligado ao imaginário das luzes. Mas, o Super-Homem, cidadão-modelo da República de Platão, identifica os ideais de justiça e verdade como estando ligados ao respeito à Lei. Para Batman, a Lei fica em segundo plano. Seu juízo particular é a fonte primeira que determina como ele vai agir. Desta forma, Batman segue como um personagem no qual há uma mistura confusa entre luz e trevas, o que o leva a, na luta pela justiça, desenvolver atitudes que beiram o sadismo, mas são atenuadas pelo respeito à vida. Além disso, em Batman, a voz interna que clama por justiça confundese com a voz de um trauma de infância que o atormenta: o assassinato de seus pais durante um assalto. Um exemplo do código de conduta deste personagem pode ser visto na reprodução a seguir do trecho de uma de suas estórias. Este trecho foi analisado, sob outro viés, por Vidal Eufrausino (2006):
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Figura 03 – Revista Super-Homem (nº40) – Super-Homem X Batman: 1º round! – Editora Abril (1987, p.10).
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Figura 04 - Revista Super-Homem (nº40) – Super-Homem X Batman: 1º round! – Editora Abril (1987, p.23).
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Figura 05 - Revista Super-Homem (nº40) – Super-Homem X Batman: 1º round! – Editora Abril (1987, p.23).
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A mistura dos apelos da luz e das trevas revela uma presença mais intensa da antiphysis em Batman do que em outros super-heróis clássicos. E, certamente, a antiphysis aproxima Batman do homem comum (o homem típico). Conspira, neste caso, a favor da aura de cotidianidade do personagem. Mas, numa mesma intensidade conspira a favor da aura mítica, relacionando o personagem ao que Nietzsche (2007) chama de caráter dionisíaco, ligado ao potencial de divindade associado à desmedida e ao mistério. Há, porém, ainda um forte apelo da physis, relacionada à clássica tríade: beleza, bondade e justiça. Trata-se de uma physis de índole ultraromântica: como se as atitudes de Batman trouxessem uma physis que atua nos bastidores da antiphysis, e que tem medo de sair à luz do dia e enfrentar a crueza da realidade. A presença de uma antiphysis dividida entre prestar seus serviços ao mito ou a cotidianidade e de uma physis que, embora potente, é encoberta pelo véu da antiphysis, situam Batman numa zona de transição, tornando mais difícil o mascaramento do paradoxo narrativo, como ocorre com o modelo clássico de super-herói. Antiphysis, physis e paradoxo temporal no novo modelo de super-herói Wolverine é um personagem cujo principal poder está na capacidade de regeneração tanto corporal quanto psí376
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quica. No caso da regeneração psíquica, ela se dá por meio de um véu de amnésia lançado pela mente do personagem sobre os traumas sofridos por ele. Para se curar de traumas, o poder de Wolverine também opera substituindo as memórias traumáticas por memórias inventadas. Em um dado momento da vida deste personagem, ele foi capturado e utilizado em experimentos destinados a gerar supersoldados para participar da II Guerra Mundial. Durante estes experimentos, Wolverine foi vítima de lavagens cerebrais que implantaram nele falsas memórias. Devido a estes acontecimentos, ele termina por se tornar uma pessoa sem passado. O personagem não tem como diferenciar memórias falsas de memórias verdadeiras, não sabendo ao certo quem é, mas, ao mesmo tempo, sendo assaltado por fortes convicções que não sabe ao certo se estão relacionadas a memórias falsas ou verdadeiras. Por não saber definir quem é amigo ou inimigo, o personagem opta por uma vida solitária. Rogue é uma jovem que traz na palma da mão a senha de acesso e controle do espírito das outras pessoas. Quando toca outras pessoas, ela consegue absorver delas memórias, habilidades, mas também a força vital. Esta capacidade poderia soar como uma bênção, mas revela-se uma maldição. Rogue não tem controle sobre este poder. Por esta razão, não pode ter qualquer tipo de contato corporal com os outros, sob risco de tirar-lhes a vida. Durante uma batalha, Rogue tocou duas vezes em Carol Danvers, absorvendo todas as 377
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suas memórias, habilidades e sua força vital. Desde então, duas psiques – a da própria Rogue e a de Carol Danvers – disputam o controle pela alma de Rogue. Em determinados momentos, a psique de Carol Danvers assume o controle, fazendo com que Rogue tenha comportamentos e atitudes que não correspondem a sua personalidade. Jean Grey não foi mais a mesma depois de ter sido vítima de um acidente sofrido a bordo do ônibus espacial que pilotava próximo à órbita da Terra. O ônibus caiu no fundo das águas de uma baía, mas milagrosamente a jovem sobreviveu. Jean Grey tem a capacidade de ler a mente de outras pessoas e de mover objetos com a força de comandos mentais. Depois do acidente, estes poderes se intensificaram de forma espantosa. A personalidade da jovem também mudou drasticamente. Antes Jean Grey era uma moça tímida e recatada. Sem demora, ela se tornou audaciosa, assumindo uma postura debochada e agressiva, além de um comportamento luxurioso. O seu tutor, o professor Charles Xavier, a fim de compreender esta transformação resolveu usar sua telepatia para ler a mente da jovem. Descobriu, então, que aquela que estava ali não era exclusivamente Jean Grey. Junto a ela, coabitava uma entidade que havia tomado o seu corpo. Esta entidade era a Força Fênix, umas das energias primordiais que agiram no processo de criação do universo. Esta força cósmica tomou o corpo de Jean Grey, no momento em que ela sofreu o acidente. O objetivo desta força era ex378
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perimentar a sensação de viver como um ser humano sujeito aos limites do tempo e do espaço. O resultado da fusão entre o poder incomensurável da Força Fênix e as limitações do corpo humano foi que Jean Grey enlouqueceu, sendo tomada pelas paixões da Força Fênix, alimentadas pelo desejo desta força de sair universo a fora drenando a energia das galáxias. As histórias relatadas acima, com base em Quesada (2005), são de três personagens integrantes de um grupo de super-heróis chamados X-men. Como se pode notar, há várias mudanças entre estes super-heróis e os super-heróis descritos anteriormente. Uma primeira mudança a ser mencionada refere-se ao estatuto do super-poder. No modelo clássico de superherói, o super-poder está relacionado, como se viu, a uma antiphysis que age para reafirmar a soberania da physis. O super-poder do super-herói clássico atua com base na premissa de que a harmonia da physis pode e deve ser restaurada. Trata-se de um poder salvífico, encarado pelos que dele dependem como bênção. Além disso, o super-poder clássico está sob controle do super-herói, o qual pode, por meio de sua decisão, delimitar o escopo, o raio de ação e os marcos inicial e final de atuação deste poder na linha do tempo. Numa outra direção, o super-poder do novo modelo de super-herói, representado pelos X-men, não está sob controle do super-herói, causando-lhe disfunções corporais e psíquicas. A incapacidade de o super-herói harmonizar379
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se com seu próprio super-poder é reflexo de uma relação mimética pautada pela antiphysis, na qual não se pode mais encontrar no mundo o reflexo do ideal clássico de um cosmos ordenado e harmonioso. A esta nova forma de a narrativa de super-herói conceber os super-poderes está relacionada outra característica da antiphysis: o divórcio entre o herói e a comunidade. Os X-men são repudiados pela comunidade que eles tentam auxiliar. São vistos como aberrações e com uma nota secreta de inveja por parte dos seres humanos “normais”. O esforço que há, no modelo clássico de super-herói, de traçar fronteiras definidas entre a cotidianidade e o caráter mítico, é abandonado no novo modelo de super-herói. Exemplo disso é a origem dos poderes dos X-men. Apesar de sobrenaturais, os super-poderes dos X-men são originados por mutações genéticas. O tom mítico que caracterizava o super-poder, no super-herói clássico, é substituído por um tom de cientificidade, que faz a balança do paradoxo narrativo pender para o lado da cotidianidade. O fato de o poder ser uma expressão genética e de manifestar-se, muitas vezes, de forma espontânea e incontrolável, praticamente inviabiliza a existência de uma identidade secreta. Decorrência disto é que, no novo modelo de super-herói, não há espaço para o mascaramento do paradoxo narrativo. Contrariamente, são expostas as fissuras deste paradoxo.
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O fato de os X-men serem vistos como anomalias, ocasiona uma espécie de apartheid, dividindo a sociedade entre os que foram e os que não foram afetados pelas mutações originadoras do super-poder. Disto decorre um grave conflito. De um lado, boa parte dos humanos sem super-poderes defendem o controle e até mesmo o extermínio daqueles afetados pelas mutações. De outro, uma parcela dos mutantes, crente de ser uma raça superior, deseja extinguir os que não foram afetados pela mutação, em nome de uma espécie de eugenia. Mas há ainda uma terceira via, representada pelos partidários de um convívio pacífico entre os mutantes e os não-mutantes, baseado no respeito às diferenças. Os principais representantes deste conflito são os mutantes Charles Xavier e Erich Lasher. Lasher é adepto da crença de que os mutantes, como raça superior, devem imperar sobre a Terra. Xavier defende a coexistência pacífica. Outro sinal da presença da antiphysis é a dificuldade de se delimitar esferas de pertencimento social. Erich Lasher, por exemplo, é de origem judaica, tendo sido vítima do Nazismo. Mas, na narrativa, vincula-se a uma corrente de pensamento de índole fascista, propondo que os mutantes são superiores e, por isso, os não-mutantes devem a eles submeter-se. Além disso, os mutantes, mesmo os que defendem a coexistência pacífica, são pessoas confusas quanto a seu pertencimento. Sentem-se humanos como os demais, sendo iguais a eles na maior parte das características físicas (o que lhes permite 381
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se passarem por pessoas comuns boa parte das vezes), mas não conseguem, devido à discriminação, inserir-se no rol dos ditos “seres humanos normais”. Deste conflito deriva outra característica da antiphysis: a crise da identidade ou a impossibilidade de se promover o reconhecimento com base na ideia da existência de um núcleo central e constante de identificação. Costa Lima (2003) dirá que a identidade dos seres e das coisas é o princípio sobre o qual se erige a mímesis da physis. Em contrapartida, a antiphysis pressupõe “não a vontade, fosse até melancólica, de perenizar a fortuita ação humana pela durabilidade dos monumentos (escritos, pintados, esculpidos), mas, ao invés, a declaração de não identidade dos seres do mundo.” (COSTA LIMA, p. 246). A dupla personalidade de Rogue e de Jean Grey e a impossibilidade de Wolverine de creditar veracidade a suas memórias está relacionada a esta perda de lastro da antiphysis. Outra característica relacionada à antiphysis que é importante ser destacada é o esvaziamento do mito. Como observa Costa Lima (1988; 2003) Borges retoma elementos da cabala e do gnosticismo, esvaziando-os de seu direcionamento mítico e explorando o jogo simbólico que tais elementos inspiram. Nas narrativas de super-herói também há um esvaziamento do mito, mas não somente para se explorar a força simbólica. O mito ganha um novo preenchimento.
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É o que acontece com a personagem Rogue, já mencionada anteriormente. Ela representa uma retomada do mito do rei Midas, preenchido com um conteúdo que alude ao mito de origem, ao mesmo tempo em que é o avesso deste mito. Rogue não consegue tocar os outros sem manifestar seu poder. Nisso ela se assemelha a Midas. Contudo, numa direção oposta a de Midas, Rogue não empresta uma nova propriedade ao que toca. Ela suga determinadas propriedades daqueles que toca (energia vital, habilidades e memórias). Outro exemplo é a retomada do mito da Fênix no drama da já mencionada personagem Jean Grey. A Fênix é uma ave mitológica com a capacidade de queimar a si mesma e renascer das próprias cinzas. Na narrativa dos X-men, a força Fênix, que entra no corpo de Jean Grey, tem a mesma aparência da figura mitológica (uma ave de fogo). Mas o mito da Fênix passa por um processo de sincretismo, sendo associado ao mito de Cristo, referente ao Deus que se faz carne para habitar entre os seres humanos. Porém, o próprio mito de Cristo é esvaziado da aura sagrada que a tradição cristã lhe atribui e preenchido por novas características como a luxúria e a loucura, aproximando a releitura da Fênix, na narrativa de X-men, do mito grego de Dioniso. Pode-se também mencionar o esvaziamento de mitos contemporâneos. Um dos personagens de X-men, chamado Henry McCoy, sofreu uma mutação genética que fez com que ele se tornasse uma mistura de homem e de fera. Porém, 383
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McCoy a despeito da aparência animalesca é um grande cavalheiro e possui uma inteligência fora do comum, utilizada no seu trabalho como cientista. Retoma-se, nesse caso, o mito moderno O Médico e o Monstro, de R. L. Stevenson. Mas, este é esvaziado da monstruosidade e preenchido com um significo avesso ao mito. Este processo de esvaziamento e preenchimento do mito com novas motivações dá-se conforme um jogo que pode ser descrito com base no que Sônia Ramalho (2008, p. 164) denomina mecanismo de duplicação especular: “Esse mecanismo de duplicação especular é retomado por analogia e, sobretudo, por dessemelhança, através de vários artifícios narrativos metaficcionais e intertextuais”. O que acontece com o personagem Henry McCoy aponta para outra característica da antiphysis. Trata-se do desnível irônico entre aparência e essência. Sob a égide da physis, a beleza física do herói refletia sua índole de perfeição. Isto está ligado ao ideal clássico grego, o qual faz da beleza, da bondade e da justeza dimensões inseparáveis. Em muitos casos, a narrativa dos X-men trabalha com personagens que têm uma aparência aterradora, mas um caráter que reflete o ideal de perfeição grego. Ocorre também, com frequência, que personagens de beleza apolínea tragam no caráter o oposto dos valores que Platão pleiteava para os integrantes da República. Propõe-se finalizar esta análise trazendo o exemplo de uma personagem integrante de outra equipe de super-heróis: 384
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a personagem Ravena, membro de um grupo chamado Novos Titãs. Ela é uma jovem possuidora de um super-poder chamado empatia, que dá a ela a capacidade de absorver, doar e captar emoções. Ravena termina por encarnar o paradoxo narrativo, desmascarando-o. Ao utilizar seu super-poder, ela se esvazia de si e é preenchida pelas emoções das pessoas que a rodeiam. O auge do caráter mítico desta personagem é, ironicamente, quando ela se deixa preencher pela cotidianidade representada pelas emoções dos seres humanos que entram em contato com ela. Expressão da antiphysis, Ravena, ao salvar as pessoas de suas piores emoções não recebe a glória, como acontece com o super-herói clássico. Contrariamente, ela recebe como prêmio, pelo bem que presta à sociedade, o fardo de carregar sobre si as dores daqueles a quem se propõe salvar. “A ficção é pensada como antiphysis porque a vida é tomada como experiência de pesadelo” (COSTA LIMA, 2003, p. 248). Podemos acompanhar isto, por meio da figura 6, também já analisada por Vidal Eufrausino (2006).
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Conexões entre paradoxo narrativo e mímesis em narrativas de super-herói
Figura 6 - Ravena e seu dom da empatia. Fonte: The New Teen Titans: legends of the DC universe, nº18.
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Considerações finais Como pôde ser observado, o modelo clássico de superherói não é devedor exclusivamente da physis, como o fantasma da obviedade pode fazer supor. Ele se constrói com base no mascaramento do paradoxo narrativo e na subtração do peso da cotidianidade na narrativa, por meio de uma ênfase do caráter mítico. E esta ênfase conta com auxílio tanto da physis quanto da antiphysis. No modelo clássico, o super-herói trabalha para que a sociedade se aproxime de um modelo semelhante ao da República de Platão. Nesta perspectiva, a narrativa oferece a ele um contexto em que se simula a antiphysis ou, dito de outra forma, colocam-se em suspensão as prerrogativas da physis. O propósito do super-herói clássico será varrer de volta para a caverna as sombras que a narrativa deixa escapar de lá, temporariamente, devolvendo ao sol da physis o domínio. Sol este que esculpe sua luz na utopia platônica de instauração do Bem, entendido como verdade comunitária, que, por sua vez, é entendida como manutenção da lei e da ordem. Por outro lado, o novo modelo de super-herói trabalha explorando as contradições que habitam o paradoxo narrativo, em vez de tentá-las mascarar, como acontece no modelo clássico de super-herói. A tendência desse novo modelo é trabalhar a tensão entre physis e antiphysis, por meio do contraste entre aparência e essência. É perceptível 387
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um movimento em que a narrativa de super-herói caminha de uma predominância da physis para uma predominância da antiphysis. Esta começa a ser gerada com a criação dos X-men, na década de 1960 e atinge o ápice nas narrativas produzidas na década de 1980. Mas, também é possível notar que a physis não desaparece. Outros estudos serão necessários para abordar as diferentes formas assumida pela antiphysis na narrativa de super-herói. Mas, é possível dizer que a coexistência de physis e antiphysis não deixa de ocorrer, sendo prova disso personagens como o Batman. E, em alguns momentos, haverá uma retomada da physis. É o que acontece em narrativas como a Crise nas infinitas Terras. Publicada na década de 1980, esta história fala sobre a existência de universos paralelos nos quais haveria diferentes versões do Planeta Terra. A narrativa se encaminha para o desaparecimento dos universos paralelos, restando somente uma versão do planeta Terra. É flagrante, neste exemplo, o retorno da physis, tentando vencer a antiphysis em seu impulso de “desagregação de tudo com tudo, donde ausência de residência no tempo, donde a impossibilidade doutra identificação senão a falaciosa dos espelhos” (COSTA LIMA, 2003, p. 247).
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Autores
Os Autores
Frederico José Machado da Silva Licenciado em Letras pela Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE) e mestre e doutorando em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Estuda majoritariamente o teatro brasileiro do século XIX com investigações a respeito da comédia. É professor e coordenador do Curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO).
Thiago da Câmara Figueredo Thiago da Camara Figueredo é mestre em Letras, área Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é professor convidado do curso de Letras da Universidade de Pernambuco – Campus Mata Norte, onde ministra as disciplinas de Teoria da Literatura e de Língua Inglesa. Em 2011, foi um dos organizadores do livro Narrativa de Ficção Portuguesa do Século 20: estudos de crítica literária. Tem ainda artigos completos publicados em periódicos nacionais.
Bianca Campello Mestre em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco, tendo defendido em fevereiro de 2012 a disser-
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Mímesis e Ficção
tação “Monteiro Lobato, um Modernista Desprezado”. Atua como professora de Literatura na rede particular de ensino e é autora de Literarizando (atualmente em reformulação), blog voltado ao ensino de literatura com mais de 215 mil acessos.
Sônia L. Ramalho de Farias Possui graduação em Licenciatura Vernáculo pela Universidade Federal da Paraíba (1970), mestrado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1976) e doutorado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1988). Atualmente é prof. titular em Teoria da Literatura da Universidade Federal de Pernambuco. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura, José Lins do Rego, Ariano Suassuna, Nordeste, Literatura Brasileira Contemporânea. Em teoria Literária vem se dedicando ao estudo de temas como Mímesis e Ficção, Literatura e Ideologia, Literatura e Sociedade.
Kleyton Ricardo Wanderley Pereira Licenciado em Letras (2004) e Especialista em Literatura Luso-Brasileira (2006) pela Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE, é Mestre (2009) e Doutorando em Letras/Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco. Estuda a ficção em prosa dos países africanos de língua oficial portuguesa com ênfase nos estudos da diáspora. É professor de 394
Os Autores
Literaturas Brasileira e Portuguesa da FAFIRE, onde coordena o Centro de Estudos e Debates – CENEDE do Departamento de Letras. Tem publicado em revistas, periódicos e Anais de congressos nacionais e internacionais artigos nas áreas de Literaturas de Língua Portuguesa, Teoria e Crítica Literária, Literaturas Comparadas, Literaturas Pós-Coloniais.
Diogo de Oliveira Reis Diogo de Oliveira Reis é mestre (2011) e doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Possui graduação em Letras (2008), e graduação em Comunicação Social (2007). Ganhou o Prêmio Maximiano Campos de Contos Literários (2009). Foi professor do Colégio da Sagrada Família (2011). Atualmente, estuda a obra de Guimarães Rosa como recém ingresso no doutorado da UFPE.
Lucas Antunes Oliveira Possui graduação em Letras – Licenciatura em Língua Portuguesa e Bacharelado em Crítica Literária – e mestrado em Teoria da Literaturapela UFPE, tendo defendido a dissertação intitulada “O animal humano: ficção especulativa e alegoria em A hora dos ruminantes, de José J. Veiga e O ano de 1993, de José Saramago”. Atualmente é doutorando em Teoria da Literatura pela mesma instituição, desenvolvendo uma pesquisa sobre a obra do autor chileno Roberto Bolaño. Integra o Núcleo de Estudos em Literatura e Intersemiose, da UFPE. 395
Mímesis e Ficção
Carla Araújo Lima da Silva Possui Licenciatura plena em Letras Português/Inglês pela Universidade de Pernambuco (UPE). É aluna do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, em que cursa o Mestrado em Teoria da Literatura, concentrando estudos nas áreas de Literatura Comparada, Filologia, Discurso histórico e Discurso ficcional. Integra o Grupo de Investigações em Filologia Ibérica. É professora concursada pelo Governo do Estado de Pernambuco desde 2008 e ensina Literatura a turmas de Ensino Médio.
Sarah Catão de Lucena Sarah Catão nasceu em Garanhuns, Pernambuco, em 1985. Tem formação em Letras, com bacharelado em Tradução, pela UFPE. Profissional da escrita, trabalha com tradução e revisão de textos em português e em inglês, além de já ter lecionado língua inglesa. Atualmente finaliza mestrado em Teoria da Literatura, com uma pesquisa sobre autotradução, também na UFPE.
Joelma Gomes dos Santos Doutoranda em Teoria da Literatura pela UFPE. Bolsista CAPES. É Mestre em Letras com ênfase em Teoria da Literatura, pela Universidade Federal de Pernambuco - UFPE (2009). Possui Licenciatura Plena em Letras com habilitação nas línguas portuguesa e inglesa (2006). Tem experiência Docente 396
Os Autores
no Ensino Superior nos níveis de graduação e pós-graduação (Especialização). Desenvolve pesquisas cujos principais focos de interesse são Teoria da Literatura, Literaturas Africanas de língua portuguesa, Romance Angolano, Narrativas de ficção, a curta ficção de José Luandino Vieira. É revisora dos conteúdos inéditos dos escritores da União dos Escritores Angolanos – UEA. É pesquisadora do Grupo de Investigações em Filologia Ibérica - GIFI, da Universidade Federal Rural de Pernambuco - UFRPE.
Newton de Castro Pontes Newton de Castro Pontes é Mestre em Literatura e Interculturalidade pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Atualmente, é Professor Auxiliar de Teoria da Literatura na Universidade Regional do Cariri (URCA) e aluno do Doutorado em Teoria da Literatura na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É membro do Núcleo de Estudos em Teoria Linguística e Literária (NETLLI) e do conselho editorial de “Macabéa - Revista Eletrônica do NETLLI”. É co-autor, junto com Edson S. Martins e Ridalvo F. de Araújo, do livro “Sujeito e Subalternidade na Literatura Brasileira”, e organizou (com Antony C. Bezerra e Thiago da C. Figueredo) a obra “Narrativa de Ficção Portuguesa no Século 20: estudos de Crítica Literária”.
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Mímesis e Ficção
Cláudio Clécio Vidal Eufrausino Doutorando em Teoria da Literatura pela Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Comunicação e graduado em Comunicação/Jornalismo, também pela Universidade Federal de Pernambuco. Atuou profissionalmente como assessor de comunicação da Articulação Aids Pernambuco. Foi escolhido junto a mais 21 jovens brasileiros como integrante da publicação “Diretório de jovens produtores de mídia para educação preventiva sobre DST/ Aids”, da Unesco. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em teorias da comunicação, filosofia da comunicação e comunicação filosófica, atuando principalmente nos seguintes temas: alegoria e aspectos comunicacionais do sentido figurado, estudos do conflito entre unidade e dispersão na prática discursiva, mitologias contemporâneas nos quadrinhos e desenhos animados, debate político-filosófico, por meio do sentido figurado, nos meios de comunicação.
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Mímesis e ficção é uma coletânea de vários estudos acadêmicos decorrentes de duas disciplinas ministradas no Programa de PósGraduação da UFPE, entre os anos de 2011 e 2012. Os artigos e ensaios aqui presentes lançam mão das teorias do Efeito Estético, do pensador alemão Wolfgang Iser, e da Mímesis, do teórico brasileiro Luiz Costa Lima, se debruçando numa trajetória conjunta de repensar o estatuto do ficcional. Em seu conjunto, a coletânea estabelece, a partir da leitura de cada corpus literário selecionado, ilações entre as noções de mímesis e ficção, mímesis, memória e fingimento, mímesis e reescritura, mímesis e verossimilhança, mímesis e alegoria, mímesis e representação, mímesis e tradução, mímesis e antiphysis. Dessa forma, mediando a reflexão teórica por um método específico de abordagem, suscitado pelas respectivas análises das obras, procurou-se pensar, com os teóricos que subsidiam cada um dos estudos, a interação entre o texto literário e o leitor, tendo de permeio um quadro teórico capaz de indagar acerca da ficcionalidade daquele e do papel que a este cabe no preenchimento dos vazios do imaginário textual.
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