Anais do XIII Ciclo de Conferências Históricas da FURG

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Anais do XIII Ciclo de Confer锚ncias Hist贸ricas


xiii Ciclo de Conferências Históricas R. 19 de Fevereiro, 550/301 Centro - Rio Grande RS Fone/fax (53) 3232.1972 editora@pluspropaganda.com www.editora.pluspropaganda.com

Corpo Editorial Prof. Dr. Elio Flores (UFPB) Prof. Dr. Francisco das Neves Alves (FURG) Profª Drª Júlia Silveira Matos (FURG) Prof. Dr. Luiz Henrique Torres (FURG) Prof. Dr. Moacyr Flores (FURG)

Coordenação geral Francisco das Neves Alves Júlia Silveira Matos Marcelo França de Oliveira

Comissão organizadora Adriana Kivanski de Senna Carmem G. Burgert Schiavon Daniel Porciuncula Prado Derocina Alves Campos Sosa Francisco das Neves Alves Júlia Silveira Matos Marcelo França de Oliveira

Comissão de apoio Alessandra Rodrigues Lobo Cíntia Machado Ferreira Felipe Radünz Krüger Flávia Liziane Gonzales Bandeira Jean Tiago Baptista Lidiane Elizabete Friderichs Luisa Kuhl Brasil Maria Clara Lysakowski Hallal Olivia Silva Nery Pablo J. G. Pereira Pâmela Pereira de Pinho Rodrigo de Assis Brasil Valentini


Francisco das Neves Alves Júlia Silveira Matos Marcelo França de Oliveira Adriana Kivanski de Senna organizadores

Anais do XIII Ciclo de Conferências Históricas

Rio Grande 2010


© Francisco das Neves Alves, Julia Silveira Matos, Marcelo França de Oliveira e Adriana Kivanski de Senna (organizadores) 2010 Gravura da capa: Estátua de Clio - Museu do Vaticano

Capa: Marcelo França de Oliveira Diagramação e formatação eletrônica: Marcelo França de Oliveira

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Ciclo de Conferências Históricas (13 : 2010: Rio Grande) Anais do XIII Ciclo de Conferências Históricas/ organizadores Francisco das Neves Alves, Júlia Silveira Matos, Marcelo França de Oliveira, Adriana Kivanski de Senna. – Rio Grande: Universidade Federal do Rio Grande, 2010. 948 p. ISBN: 978-85-62983-04-7 1. História – Conferências. I. Alves, Francisco das Neves. II. Matos, Julia Silveira. III. Oliveira, Marcelo França de. IV. Senna, Adriana Kivanski de. V. Título. CDU

930 (061.3)

Todas as informações e opiniões expressas e a revisão do texto são de inteira responsabilidade dos respectivos autores.


Apresentação Os Ciclos de Conferências Históricas constituem uma das mais antigas e tradicionais atividades extensionistas organizadas pela Área de História da Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Sua edições originais datam ainda dos anos oitenta, época da gênese do Curso de História, na qual o pequeno grupo de docentes que fundara o Curso compensava a escassez numérica com a qualidade de trabalho e conseguiram organizar as três primeiras edições dos Ciclos. Após um interregno em suas edições e acompanhando as transformações pelas quais passou o Curso de História nos anos noventa, com a ampliação do corpo docente, o aperfeiçoamento da Licenciatura Plena e a criação do Bacharelado em História, esses eventos voltariam a ser oferecidos à comunidade. A partir de então, os Ciclos de Conferências Históricas manteriam algumas de suas características originais, mormente as referentes a destinar-se a enfoques múltiplos, sem maiores preocupações com um eixo temático único e a ocorrer sem intervalos fixos na sua organização. Nesse sentido, em 1993 e 1994, ocorreriam o VI e o VII; entre 1999 e 2001, a cada ano, o VIII, o IX e o X, todos estes três com a peculiaridade de terem sido lançados os anais respectivos do evento; e finalmente, em 2004, se daria o XI e, em 2006, o XII. Agora se deu a retomada deste evento que bem representa um dos tripés básicos de sustentação da FURG, a extensão. Entre 25 e 27 de agosto de 2010 estiveram reunidos vários especialistas em História que, no âmbito regional, discutiram temas diversificados com o público acadêmico e a


comunidade em geral interessada na sua formação histórica. Mais uma vez os organizadores do evento buscaram atender os anseios dos participantes deste Ciclo com a publicação dos anais. Durante o XIII Ciclo, lembrando palavras expressas nos anais da nona edição, as diferentes abordagens e temáticas encontraram convergência no anseio intelectual de desvelar fragmentos do passado, edificando interpretações para diversificadas historicidades, ou buscando a compreensão de variadas práticas histórico-culturais. Através da participação de docentes e discentes, o maior intento foi que a percepção investigativa viesse a canalizar a atenção dos pesquisadores envolvidos durante o evento, de modo a gerar debates e reflexões num processo de construção/desconstrução de discursos que caracterizam a investigação crítica de natureza histórica.

Os organizadores.


Sumário Apresentação, 7 Programação, 11 A formação de oásis: movimentos frentenegrinos ao Congresso do Negro de Porto Alegre-RS (1931-1958) Arilson dos Santos Gomes, 15 Entre santos e comunistas: a atuação dos assistentes eclesiásticos Carla Xavier dos Santos, 41 Imprensa e censura durante o Estado Novo no Brasil: a vigilância também atinge a colônia portuguesa Carmem G. Burgert Schiavon, 63 A Educação Ambiental e suas “rimas” com a arte musical - uma proposta pedagógica entre música e Educação Ambiental Daniel Porciuncula Prado, 79 Ensinar História: construir Cidadania Derocina Alves Campos Sosa, Adriana Kivanski de Senna, 95 As ameaças à saúde pública e suas representações na caricatura ao final do século XIX Francisco das Neves Alves, 105 Os Diários Associados e o Estado Novo no Brasil: cordialidade em nome da Democracia Júlia Silveira Matos, Carmem G. Burgert Schiavon, 135 O patrimônio documental e a diversidade dos suportes de registro da informação Luciana Souza de Brito, 151 A imprensa como fonte e/ou objeto de pesquisa para a História – algumas considerações Luis Carlos dos Passos Martins, 167 A epidemia de Cólera e o jornal O Povo Luiz Henrique Torres, 187 Patrimônio documental e arquivos: teorias, conceitos e procedimentos Rita de Cássia Portela da Silva, 203 O jornal O Tempo e o centenário político de 1937: breves incursões neste cenário e no decreto do Estado Novo Tiago Fonseca dos Santos, 223 Quando todos vão à guerra: indícios da participação de mulheres e crianças na Revolução Federalista Marcelo França de Oliveira, 243



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Programação LOcal: MINI-AUDITÓRIO CIDEC-SUL (CAMPUS CARREIROS)

25/agosto/2010 – quarta-feira 8h - Credenciamento 10h - Abertura 10h15min. – O ensino de História – Profa. Dra. Adriana Kivanski de Senna; Profa. Dra. Derocina Alves Campos Sosa e Prof. Dr. Daniel Porciuncula Prado (FURG) 14h – Imprensa e saúde pública – Prof. Dr. Francisco das Neves Alves e Prof. Dr. Luiz Henrique Torres (FURG) 16h – A imprensa como fonte e/ou objeto de pesquisa para a História – Prof. Ddo. Luís Carlos dos Passos Martins (PUCRS) 19h – Exposição de banners

26/agosto/2010 – quinta-feira 9h – O Estado Novo e a imprensa – Profa. Dra. Camem G. Burgert Schiavon; Profa. Dra. Júlia Silveira Matos (FURG) e Mdo Tiago Fonseca dos Santos (FURG) 10h30min. – A formação de oásis: os movimentos frentenegrinos em Porto Alegre – Prof. Msc. Arilson dos Santos Gomes (Memorial do Rio Grande do Sul)

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14h – Entre Santos e Comunistas: A Atuação dos Assistentes Eclesiásticos – Profa. Msc. Carla Xavier dos Santos (PUCRS) 16h – Arquivos e preservação documental – Profa Msc. Rita de Cássia Portela da Silva e Profa. Msc. Luciana Sousa de Brito (FURG) 19h – Exposição de banners

27/agosto/2010 – sexta-feira 8h – Sessão de comunicações (Prédio 4 - Campus Carreiros) 10h30min. – Entre o esquecimento e o preconceito: gaúchos e historiografia – Prof. Dr. Jussemar Weiss Gonçalves (FURG) - Prédio 4, Auditório 416

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COnferĂŞncias



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A formação de oásis: movimentos frentenegrinos ao Congresso do Negro de Porto Alegre-RS (1931-1958) Arilson dos Santos Gomes1

Introdução Para o entendimento deste trabalho, desenvolveremos nossa narrativa vinculando as ideologias surgidas a partir da organização Frente Negra Brasileira e as aproximações de seus pensamentos com os assuntos discutidos nos congressos negros e afro-brasileiros realizados em nosso país a partir da década de 30. Esta organização nasceu do amadurecimento social e das necessidades de a comunidade negra reivindicar através de pensamentos elaborados de acordo com as legislações vigentes, a inserção das populações negras em São Paulo. Propomos analisar a circulação destas ideias por intermédio de intelectuais e da imprensa negra, como um intenso movimento frentenegrino. O conhecimento a respeito da influência exercida pela Frente Negra Brasileira na realização das atividades de caráter nacional sobre o negro em nosso país, foi de extrema relevância, pois nessa relação entre grupos humanos 1  Doutorando em História pelo PPGH-PUCRS, Membro do Grupo de Pesquisas Africanidades, Ideologias e Cotidiano do PPGH-PUCRS. Primeiro Secretário da ANPUH-RS. Assistente Cultural do Memorial do RS. E-mail: arilsondsg@yahoo.com.br

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e em virtude das diferenças históricas constituídas em nossa sociedade, seria impossível desenvolver um artigo narrando os lugares sociais2 que pensaram na complexidade das relações raciais e sociais, a partir da década de 1930, sem mencionar esta organização. Ela notadamente influenciou o fazer política3 em uma sociedade complexa e diversa, já que pleiteava a integração das populações negras em todos os segmentos sociais da vida brasileira, mantendo suas especificidades a partir de cada localidade que a mesma existiu, em um período relativamente curto, entre o pós-abolição e o ano de suas fundações, a partir de 1931. As demais iniciativas de caráter nacional, que incluíam como temática as questões negras entre os anos 30 e 50, tiveram a participação direta de homens e de ideias que passaram por ela.4 Evidenciaremos, neste trabalho, em ordem cronológica, a existência de quatro Frentes Negras fundadas entre 1931 e 1937.5 Chamamos a atenção para a relação intrínseca entre os locais em que existiu as Frentes Negras e os estados onde foram realizados os encontros de caráter nacional sobre as temáticas afro-brasileira e negra. Ou seja, em Pernambuco, Bahia, São Paulo e Rio Grande do Sul, existiram as Frentes. O mais interessante é que se antes as ideias viajavam de São Paulo para o Sul e depois para o Norte e Nordeste brasileiro, agora por ocasião da realização dos Congressos, o movimento é justamente o inverso, os oásis/lugares sociais surgem no Nordeste, passam pelo Sudeste e chegam ao Sul do país, mais precisamente à cidade de Porto Alegre. A circulação das ideias propostas nestas atividades é que intitulamos de movimento frentenegrino. Pois, embora elas tenham encerrado suas atividades com o Estado Novo de Getúlio em 1937, seus homens continuavam a elaborar as ideias de inserção social referente as populações negras. O Movimento Frentenegrino e os Cabos Distritais em movimento Nossa hipótese quanto ao “movimento das ideias” sobre a temática negra é a seguinte: os cabos distritais6 arregimentavam filiados para os quadros da Frente Negra nos bairros da cidade de São Paulo. Os delegados em trânsito7 fundavam núcleos da organização em cidades portuárias pelo Brasil,

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sendo que muitas destas filiais continuaram a produzir periódicos próprios, propiciando a circulação de suas propostas. Pretendemos demonstrar que após o término das Frentes Negras as ideias, passam a se movimentar através das delegações e de participantes de outros estados brasileiros, que viajaram pelo país para debater nos congressos nacionais a temática, o que de certa forma coloca essas pessoas, hipoteticamente narrando, como cabos distritais dos encontros, conceito que utilizaremos para demonstrar a importância destas pessoas, independentemente de sua origem étnica e de sua formação intelectual, para a difusão das questões negras por todo o território nacional. Identificamos o deslocamento dos homens vinculados à Frente Negra Brasileira, e na sua divulgação de ideias entre as regiões brasileiras, como um movimento frentenegrino e denominamos os locais que estas pessoas se reuniam, bem como os congressos, de “Oásis”. Em contrapartida, reconhecemos como “desertos” o racismo, preconceito e as discriminações sofridas por qualquer ser humano, neste caso, mazelas que atingiam diretamente a população negra. A formação de oásis A metáfora de oásis e deserto foi pensada a partir da leitura de Arendt, que utiliza esses termos para refletir a condição humana que é mantida através desses desafios. Segundo a autora: “... o deserto é o mundo sob cujas condições nós nos movemos... dependendo da situação, talvez seja necessária a capacidade de sofrer, a virtude de suportar ou a coragem para agir. Em termos genéticos, que a esperança repouse sobre aqueles que vivem apaixonadamente sob as condições do deserto e que podem agir com coragem: pois, o que eles fazem, é político”. (ARENDT, 2006:183). A formação das Frentes Negras e a realização dos Congressos AfroBrasileiros e negros tiveram como principais características proporem a criação de “oásis” para a sociedade e os negros brasileiros combaterem o racismo, preconceito e as discriminações em todas as cidades que existiam. Convém informar que percebemos estes lugares sociais também como espaços políticos, acontecimentos propícios para que seus organizadores buscassem entender e agir, através das pesquisas apresentadas e das propostas efetuadas, em busca de uma sociedade melhor. Procurando respostas nos

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aspectos culturais para formar a nação8 ou aprofundando os conhecimentos dos problemas enfrentados cotidianamente pelos negros no período, com isso visando através de medidas jurídicas atenuar os problemas sociais que sofria este grupo. A propósito da Frente Negra Brasileira pensamos que, para analisála, bem como para mensurar a sua importância, devemos contextualizar sua trajetória nas diferentes cidades em que existiu. Procurando entendê-la como um movimento. Concordamos com Flávio dos Santos Gomes ao dizer que: “para se analisar a FNB temos que pensar em seus desdobramentos que foram diversos”. (GOMES, 2005:55). Para examinar a formação de oásis, como o I Congresso Nacional do Negro, demonstraremos os encontros de caráter nacional, que ocorreram antes dele, uma vez que foram estes locais que motivaram os debates sobre a temática. Ou seja, nestes oásis as ideias continuam movimentando-se, agora em um lugar fixo, com isto possibilitando a troca de informações entre os seus participantes. O I Congresso Nacional do Negro, de 1958, foi organizado pela Sociedade Beneficente Floresta Aurora e ocorreu no município de Porto Alegre. Podemos concluir que o termo “nacional” denota uma transformação importante nos interesses de seus organizadores, já que existiu uma forte influência político-partidária em sua organização. É importante salientar que nessas reuniões inexistia o caráter separatista ou isolacionista entre grupos étnicos, instâncias políticas, etos religiosos ou coisas do gênero, pelo contrário, eram altamente “integracionistas”, pois preconizavam respeito às Constituições vigentes. A Frente Negra Brasileira A Frente Negra, embora tenha características diferentes de um Congresso propriamente dito, merece atenção especial em nossa análise. Representou o embrião político-social de unidade para uma comunidade negra carente de recursos materiais e de “direção” no pós-abolição. Portanto, perguntamos: quais as origens das Frentes Negras nas cidades de São Paulo, Salvador, Pelotas e Pernambuco? Quais eram os contextos históricos vivenciados por elas? Que escritas foram produzidas

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nestes lugares? Que ações foram propostas e como se encerraram as atividades destes núcleos? Existiam em São Paulo, antes desta entidade, jornais e organizações recreativas que criticavam as dificuldades enfrentadas pelos negros no pósabolição, mas nenhuma atingiu tamanha expressão como ela, embora tenham sido os embriões de sua formação.9 A Frente Negra Brasileira foi fundada em São Paulo no dia 16 de setembro de 1931 por Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978). Em sua trajetória foi presidida por Arlindo Veiga dos Santos, que ocupou o cargo até junho de 1934, e por Justiniano Costa, que ocupou a presidência até a extinção da organização, em 1937 (DOMINGUES, 2007:5). Desde a sua formação, a Frente Negra tornou-se um núcleo centralizado, o que possibilitou seu crescimento e penetração no interior paulista. Já em outras regiões do país existiram também as Frentes Negras, embora com ideologias e administrações diferentes desta, sendo seus vínculos administrativos inexistentes, salvo a participação individual de intelectuais que integrando Frentes de outras localidades mantinham contatos entre si. Como o contato identificado entre Barros Mulato, da Frente Pelotense, com Solano Trindade, fundador da Frente Pernambucana. Em São Paulo o cotidiano das populações negras antes da origem da FNB, era deserto. Conforme Domingues, foi possível identificar fatores, concomitantes, ocorridos no final do século XIX, que decretaram as mazelas sociais para a população negra, tais como a diminuição “assombrosa” da natalidade, óbitos agravados com a mortalidade infantil e doenças, ausência de políticas públicas, o aumento da imigração europeia e a miscigenação pensada como processo de branqueamento da população negra. (DOMINGUES, 2002:566-572). No que tange à organização conter em seu título a nomenclatura Frente, sabemos que era um nome comum em outras agremiações políticas, como em torno das disputas oligárquicas. Mas por que esta entidade também carregou o adjetivo Brasileira? Conforme Francisco Lucrécio (1909), membro da Frente Negra, não foi fácil, para os integrantes do movimento, definir uma ideologia entre tantas outras existentes na época. Lucrécio citou o socialismo, trotskismo, comunismo, integralismo etc. E afirma “nós fazíamos política de

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boa vizinhança...”. (apud BARBOSA, 1998:44). Outro marco registrado nesse período foi a grave crise enfrentada pelo capitalismo. De escala mundial, a estagnação de 1929 trouxera miséria, desesperança e colapso político que colocou em “xeque” a democracia liberal. (FAUSTO, 2002:194). Portanto, muitos homens intelectuais que pertenceram aos quadros desta organização, eram adeptos a ideologias centralizadoras. (LUNA, 1976:312). Nesse sentido, foram muitas as discussões em seu seio, tanto que a Frente Negra Socialista, fundada por José Correia Leite, que foi um dos líderes do grupo, se tornou uma dissensão da organização. Leite acusava os líderes da FNB de monarquistas e integralistas. Segundo Francisco Lucrécio, secretário da organização, a principal preocupação da organização foi a criação de uma ideologia identificada com a nacionalidade. Lucrécio explica que o referencial de resistência para o negro no passado do Brasil foram a Guerra do Paraguai, Zumbi, a Revolta de João Cândido, a Revolta dos Malês, etc. A referência não era a volta à África e sim dar sequência nessas lutas em território brasileiro. (apud BARBOSA,

1998:46). Na sede da associação, na cidade de São Paulo, localizada na Rua da Liberdade nº 196, foram elaborados os seus estatutos e a sua administração. Composta por um grande conselho, um chefe e o secretário. Os cabos distritais arregimentavam simpatizantes. A partir de 18 de março de 1933, esse lugar social passa a produzir, sob a coordenação do departamento de imprensa, o seu próprio jornal para defender e divulgar os seus interesses, intitulado: A Voz da Raça. Agora as reivindicações passam a ser registradas e públicas.10 Notamos que foi no Rio Grande do Sul o nascimento da denominada imprensa negra brasileira. O jornal O Exemplo de Porto Alegre é o mais antigo do Brasil, fundado em 1892, e o jornal A Alvorada de Pelotas, o que mais tempo circulou, sendo o primeiro número lançado em 1907 e o último em 1965. Após o surgimento da imprensa negra, o “grito” de protesto se cristalizou. Para Abdias do Nascimento, a Frente Negra “foi um movimento de massas, protestava contra a discriminação racial que alijava o negro da

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economia industrializada, espalhando-se para vários cantos do território nacional” (NASCIMENTO, 2000:204). Para o historiador Flávio dos Santos Gomes, o perfil dos intelectuais líderes da entidade era de funcionários públicos e letrados, o que impediu a afirmação da organização entre as massas, sendo Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978), professor de latim e Francisco Lucrécio, cirurgião-dentista. “A Frente Negra não se constituiu em um movimento de massas, como, aliás, nenhuma instituição naquela época...”. (GOMES, 2005:55). Em 1934 a direção da Frente paulistana, decidiu registrá-la como partido político atuando pela busca de votos para conquistar o eleitorado negro, o que se tornou impossível devido ao encerramento das atividades eleitorais em nosso país, determinadas pelo Estado Novo, em 1937. Para Francisco Lucrécio, que vivenciou o fechamento da organização no Estado Novo: “Quando a Frente Negra foi fechada, podíamos até ter fechado o departamento político que tinha sido registrado como partido e continuar a obra social, educacional e de assistência. Mas na época, ninguém pensou nisso...” (Lucrécio apud BARBOSA, 1998:63). A Frente Negra na cidade de São Paulo durante a sua breve existência, de 1931 a 1937, constituiu-se como o principal movimento social negro. Conquistou avanços nas áreas sociais e políticas e seus exemplos acabaram sendo seguidos por grupos, em outros Estados.11 No que diz respeito aos aspectos culturais, a organização entendia cultura como instrução e conhecimento. A Frente Negra em Salvador A Frente Negra, de Salvador, foi criada entre julho e novembro de 1932, por Marcos Rodrigues dos Santos, fiscal de estrada de rodagem, que participara um ano antes da fundação de um núcleo da organização na cidade de Santos. Na “Mulata Velha”, sua sede se localizava na Rua Rui Barbosa, nº 44. As principais propostas deste núcleo na cidade eram a alfabetização e o levantamento moral da raça. Em janeiro de 1933, a organização baiana mudou para a Rua da Ajuda, nº 12, mantendo-se até agosto do mesmo ano. Realizou, em suas dependências, cursos de alfabetização, música, datilografia e línguas, além de

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sessões de filmes. Também manteve um quadro social feminino. Em Salvador, promovia conferências sobre: “O negro, a indústria e a sociedade”, “O negro baiano, a família e a alfabetização”, além de publicar um semanário com o objetivo de divulgar e defender seus interesses. Quais as aproximações e os distanciamentos que localizamos entre a Frente Negra Paulista e da Frente Baiana? Segundo Bacelar do ponto de vista do ideário, bem como das ações, existiam muitas aproximações entre elas. Porém, levando em consideração as peculiaridades históricas e políticas de Salvador, são identificados mais distanciamentos. (BACELAR, 2001:49). A cidade de Salvador, diferentemente do que ocorreu em São Paulo, era a favor da ordem social, política e econômica estabelecida nos moldes tradicionais. Em São Paulo aconteceram transformações políticas, sendo os negros discriminados no mercado de trabalho e substituídos pelos imigrantes. Os negros paulistas tinham grandes expectativas de superação dessas condições acenadas pelas agitações dos anos 30. Já em Salvador, os negros baianos continuavam integrados ao trabalho, sobretudo autônomo, isso quando não marginalizados. Marcos Rodrigues dos Santos, fundador da Frente Negra era operário, sendo que os dirigentes que o acompanhavam na organização eram negros de condição modesta. Os negros socialmente ascendentes se afastavam inteiramente da identificação com os “pretos pobres” e seu modo de vida, ou seja, quanto mais bem-sucedido o negro, mais distante da identidade negra e deste movimento social. (BACELAR, 2001:156). Para Bacelar, a organização teve vida curta, durou cerca de cinco meses, porém, foi intensa na sociedade soteropolitana, na medida em que o movimento trouxe à tona a questão racial naquela sociedade tradicional, como a desigualdade entre negros e brancos e a união dos negros como caminho para a superação do preconceito e da discriminação, pontos importantes para a formação de oásis. Seu líder e fundador, Marcos Rodrigues dos Santos, continuou morando em Salvador, onde faleceu na década de 1950 (BACELAR, 2001:157). Em Pelotas: O “Alvorada” como origem No Rio Grande do Sul, a Frente Negra Pelotense foi fundada no dia

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10 de maio de 1933 por José Adauto Ferreira da Silva, Carlos Torres, José Penny, Humberto de Freitas e Miguel Barros, integrantes do periódico A Alvorada. Tinham como atividades, em suas dependências, a realização de cursos para a comunidade negra direcionados para a educação e a união. Dentre os seminários estavam a “Reabilitação e engrandecimento de todos os elementos da raça” e “A mulher negra e o futuro da raça”. Conforme Santos (2001:143), que pesquisou os estatutos da Frente Negra em Pelotas/RS, um dos interesses desta organização era instruir a mulher negra. O principal motivo, segundo o autor, era porque ela ficava encarregada de dar educação para as crianças. O conhecimento era definido pela FNP como o melhor caminho para a integração racial. Uma das particularidades da Frente Negra Pelotense, em relação às outras analisadas, era que a mesma tinha um caráter mais sindical, inclusive mantendo alianças com organizações classistas. Pelotas, a “Princesa do Sul” teve em sua consolidação urbana e industrial, condições geradas pela da riqueza proporcionada pelo charque. Em função dos estabelecimentos saladeris, de caráter artesanal, que iniciaram em 1780, a região foi um dos locais de maior concentração de escravos no Rio Grande do Sul, situação que se manteria até o século XIX, quando as charqueadas, transformaram-se em empresas voltadas para o mercado nacional. (SANTOS, 2000:48). Devido a esta situação, o município desenvolveu fatores socioeconômicos diferenciados de São Paulo. Como característica peculiar da cidade Loner ressalta a utilização da mão-de-obra negra na industrialização, ao contrário de São Paulo, que utilizou o imigrante. (LONER, 1999:232). Os operários negros através de organizações classistas, desenvolveram o que Loner denominou de dupla militância, em associações de raça e de classe. Para a pesquisadora: “... a opção pela organização classista operária era uma das poucas esperanças de melhoria de vida”. (LONER, 1999:233). Esse movimento social contou com o apoio de parte significativa da comunidade, mas muitos ficaram temerosos com o que tal organização pretendia, já que o preconceito de cor e o racismo eram “desertos” poucos falados publicamente. O Jornal A Alvorada difundia e registrava os interesses do grupo na

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cidade. Apesar de que a sua fundação ocorreu duas décadas antes da mesma, como veremos a seguir. Fundado por Rodolfo Xavier, Juvenal e Durval Morena Penny e Antonio Baobab, todos negros, o jornal circulou entre os anos de 1907 e 1965, parando momentaneamente em virtude da II Guerra Mundial, em meados da década de 1940, que afetou a imprensa da época de uma maneira geral em decorrência da escassez de matéria-prima. (SANTOS, 2000:74). Os intelectuais negros integrantes do jornal, na década de 30, Humberto Freitas e Miguel Barros, além de fundadores eram líderes desta organização, o que o torna, a partir desse momento, o periódico oficial da Frente Negra Pelotense, tendo por intuito a seguinte proposta: “Propor uma identidade como negros, através do jornal e reivindicarem seus direitos...” (SANTOS, 2000:107). A “campanha pró-educação” foi uma das propostas efetuadas pela organização no sentido de motivar a aceitação da identidade negra pelos afro-descendentes locais. A primeira informação sobre a Frente Negra Brasileira no A Alvorada foi um artigo assinado por Rodolfo Xavier, fundador e articulista do jornal, que escreveu: “São Paulo, neste momento, indica o caminho a seguir pela raça negra...ciente e consciente de seu valor moral, cívico e intelectual, como parte integrante do povo brasileiro...”(A ALVORADA, 28/02/1932 apud SANTOS, 2000:129). A Frente Negra indicava duas direções para os negros pelotenses. Uma referente à identidade negra positiva incentivada pela educação e, outra, a reivindicativa, linha já adotada pelo jornal em torno dos debates a respeito dos direitos trabalhistas instituídos por Getúlio Vargas. Neste contexto, local e nacional, formou-se o oásis pelotense. A fundação do Centro de Cultura Negra, em 23 de abril de 1933, na cidade de Pelotas foi, para Santos (2001:140), o embrião da Frente Negra. O responsável pelas atividades culturais da entidade era Miguel Barros, que participaria das atividades do I Congresso-Afro-Brasileiro, realizado em 1934 no Recife. Identificamos dois motivos que contribuíram com a sua breve existência. Em primeiro lugar, a Constituição brasileira, e em segundo a causa proletária, sendo que ambos iam de encontro ou dificultavam a construção de uma identidade exclusivamente negra. Esse movimento social, pelos indícios

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que dispomos, perdurou em Pelotas por três anos, até 1936. Percebemos que devido à Frente Negra Pelotense ter sido fundada pelos donos do jornal A Alvorada na década de 1930, essa situação fez com que na prática as duas instituições, pelo período de três anos, se tornassem fundidas em um único lugar social, registrando e difundindo os mesmos interesses. No Recife: o Congresso como princípio Miguel Barros, conhecido por “Mulato”, era integrante da Frente Negra Pelotense e foi um dos responsáveis diretos pela fundação desse movimento social em Recife. Conforme Santos (2000:107): “Barros assume a redação do jornal A Alvorada por um breve período em 1934, logo após iria representar a Frente Negra Pelotense no Congresso do Recife”. Segundo Florentina Souza, a Frente Negra Pernambucana foi fundada em Recife com a participação de Solano Trindade (1908-1974) no ano de 1934. Solano foi poeta, escritor, teatrólogo, ator, pintor e pesquisador das tradições populares. Conhecido como “Poeta do Povo”, participou das atividades do I e II Congressos afro-brasileiros. (SOUZA, 2004:283-293). Fátima Aparecida da Silva (2007), entrevistou o filho de Vicente Lima, um dos fundadores do movimento no Recife, o Senhor Gustavo Lima. Segundo sua versão: “o gaúcho Barros dos Mulatos (sic) veio para Pernambuco e quando ele chega aqui faz contato com Solano e com Zé Vicente e criam a Frente Negra Pernambucana, isto é em 1936”. Independentemente do ano de sua fundação, 1934 ou 1936, Miguel Barros, Solano Trindade e Vicente Lima, estiveram juntos na origem desta organização. Tanto Luiz Luna (1976:312) quanto Fátima Silva (2007:283) concordam nesta informação, o que aceitaremos como indícios dessa hipótese, e que confirma a estreita ligação entre frentenegrinos pelo território nacional. Se o embrião da Frente Negra em Pelotas foi o Centro de Cultura Negra, no Recife ocorreu justamente o inverso, pois conforme Fátima, devido à vaidade dos pernambucanos, a Frente Negra Pernambucana, a partir de 1937, passou a se chamar Centro de Cultura Afro-Brasileiro, querendo ser uma organização original, “diferente daquela imitada”, vinda do sul. (SILVA, 2007:5). Acreditamos que essa vaidade pode ter sido tênue para essa alteração

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de nome, já que Vicente Lima, por ter sido companheiro de Miguel Barros, pôde ter em algum momento, tomado conhecimento do Centro de Cultura Negra de Pelotas, fundado em 1933. Miguel Barros era o responsável direto pelas atividades culturais do movimento pelotense. Devemos estar atentos para os fortes acontecimentos relacionados com o ano de fundação do Centro de Cultura de Recife, causados pela ditadura do Estado Novo. Pensado por nós como o principal motivo da mudança de nome. Por isso a curta duração, entre 1936 e 1937. Já o Centro de Cultura Afro-Brasileiro que teve como embrião a Frente Negra Pernambucana, existe até os dias atuais. Congressos Afro-Brasileiros e Negros: os oásis nacionais Em novembro de 1934 ocorreu no Recife, o I Congresso Afro-brasileiro, organizado e proposto por Gilberto Freyre (1900-1987), contando com o apoio dos integrantes da Frente Negra Pernambucana. Realizado no Teatro Santa Isabel, entre as suas atividades foram debatidos temas diversos: a história da importação e da escravidão africana, os problemas de aculturação do negro e as variações antropométricas raciais, bem como discussões sobre o livro Casa Grande e Senzala. Miguel Barros “o Mulato”, representante da Frente Negra Pelotense, participou do Congresso apresentando trabalho sobre “a grandeza da raça”.33 A distância percorrida por ele, tendo como partida a cidade de Pelotas foi de mais de quatro mil quilômetros. Na época, o principal meio de transporte para viagens deste tipo era o navio, o que denota um imenso interesse de pessoas e de seus pensamentos, por ocasião destes oásis, independente das regiões de suas formações. Os cabos distritais deste encontro foram: representando Pernambuco, Gilberto Freyre, Solano Trindade, Pedro Cavalcanti entre outros; por Alagoas, por Alfredo Brandão e José Lins do Rego. Da Paraíba tivemos a participação de Adhemar Vidal, da Bahia, Edison Carneiro e Jorge Amado, do Estado do Rio Grande do Sul, Miguel Barros. E apresentando comunicações pelo Rio de Janeiro: Nóbrega da Cunha, Robalinho Cavalcanti e Renato Mendonça. Conforme Clilton Paz o encontro do Recife foi muito importante para a época, por pretender estudar a trajetória do negro e a sua importância para

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o processo de formação da identidade sóciocultural do país. (PAZ, 2007:19). Tuna explica que este congresso demonstrou um amplo esforço de sistematização do que havia sido produzido até então sobre a cultura afrobrasileira, num tempo em que a universidade brasileira ainda estava em estágio de formação. (TUNA, 2005:73). Deste evento foram produzidos os ANAIS, compostos pelos trabalhos apresentados, prefaciados por Roquete Pinto, que afirmou a importância da postura de Freyre e a sua disposição de dedicar uma maior atenção ao negro na história brasileira. Para Maria Aparecida da Silva Bento, a ideologia do “mito da democracia racial”, foi em primeiro lugar apontado a partir da publicação de Casa Grande e Senzala, lançado em 1933 por Freyre. Conforme nos explica Bento: “Ao postular a conciliação entre as raças e suavizar o conflito ele nega o preconceito e a discriminação possibilitando a compreensão de que o ‘insucesso dos mestiços e negros’ deve-se a eles próprios”. (BENTO, 2002:48). Este pensamento, somente pode ser considerado como mero mito a partir dos revisionistas do final dos anos 50, que começaram a falar da intolerável contradição entre a harmonia entre as raças e a real discriminação contra negros no Brasil, sentido cotidianamente por eles (COSTA, 1998:366). Os intelectuais, historiadores e cientistas sociais operam no nível da mitologia social, quer queiram quer não, ajudam a destruir e a criar mitos. Para Emilia Viotti “no processo, a ‘verdade’ de uma geração muito frequentemente torna-se o mito da geração seguinte”. Ainda segundo a autora: “um poderoso mito, a ideia da democracia racial – que regulou as percepções e até certo ponto as próprias vidas dos brasileiros da geração de Freyre – tornou-se para a nova geração de cientistas sociais um arruinado e desacreditado mito”. (COSTA, 1998:368). A democracia racial durante muito tempo serviu para harmonizar conflitos raciais em nosso país, produzindo uma ideologia que “mediou” nossa sociedade, tornando-a mais política. Três anos depois do Congresso do Recife, ocorreu entre os dias 11 e 19 de janeiro do ano de 1937 o II Congresso Afro-brasileiro, nas dependências do

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Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. Os cabos distritais deste lugar social foram, entre outros: Percy Martim, Robert Park, Fernando Ortiz, Maria Archer, do International Commite of African Afairs e da All Africa Convention, Artur Ramos, Donald Pierson. De Alagoas participou Manoel Diegues Júnior, do Rio de Janeiro, Renato Mendonça, Robalinho Cavalcanti, Jacques Raimundo. João Calazans representou o Espírito Santo. Dante Laytano e Dario Bittencourt, o Rio Grande do Sul. Segundo Carneiro, de todos os pontos do Brasil chegavam os mais entusiásticos aplausos. (CARNEIRO, 1940:100-101). Organizado pelo Governo do Estado sob liderança de Edison Carneiro (1912-1972), Áydano do Couto (1914-1985) e Reginaldo Guimarães, o encontro teve apresentações de trabalhos e homenagens a Nina Rodrigues. Depois da realização do conclave, no dia 03 de agosto de 1937, fundava-se com o apoio dos participantes do encontro a União das Seitas Afro-brasileiras da Bahia. (CARNEIRO, 1940). Para Bacelar, Carneiro buscou dar ao Candomblé uma organização que o capacitasse para o exercício da liberdade religiosa e a preservar as tradições das seitas africanas em suas formas autênticas. (BACELAR, 2001:130). Vinicius Clay, que pesquisou a sociedade baiana através da imprensa, no trabalho intitulado: “O Negro em O Estado da Bahia: de 09 de maio de 1936 a 25 de janeiro de 1938”: explica que, embora com propostas diversas, as iniciativas deste lugar social redundaram no atual Centro de Estudos AfroOrientais da Universidade Federal da Bahia (CEAO - UFBA), criado em 1959. (CLAY, 2006:03). Deve-se ressaltar a presença de dois participantes gaúcho nesse congresso a do Prof. Dr. Dante Laytano (1908-2000) e a do Prof. Dr. Dario Bitencourt (1901-1974). O sociólogo Guerreiro Ramos (1915-1982), em 1954, analisou da seguinte maneira o I e o II Congresso Afro-brasileiro: “Ambos estes conclaves foram predominantemente acadêmicos ou descritivos...”. (RAMOS, 1954:55). O TEN - Teatro Experimental do Negro foi fundado na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1944, no final da vigência do Estado Novo, pelo intelectual negro Abdias do Nascimento. Tinha por objetivo além de produzir peças

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teatrais, motivar o negro através da alfabetização, a combater a discriminação e o preconceito racial. Funcionava em sede emprestada da União Nacional dos Estudantes, na Praia do Flamengo. O responsável teórico do Grupo foi Guerreiro Ramos. Para Pinto (1954:292) é a partir destas atividades que surgiu a bandeira de luta de forte conteúdo emocional e místico, a ideologia da negritude. O TEN realizou em São Paulo e no Rio de Janeiro Convenções e Congressos nos anos de 1945 e 1946.(CEVA, 2006:26). De 09 a 13 de maio do ano de 1949, em comemoração ao aniversário da abolição, na capital Fluminense, o grupo organizou a Conferência Nacional, que reuniu representantes de várias regiões do país. Este encontro propunha, segundo Abdias do Nascimento (2000:214) “a revisão das teorias racistas e das pesquisas antropológico-sociológicas convencionais sobre o negro, representado pelos congressos anteriores”. A Conferência serviria também como preparatória para o I Congresso do Negro Brasileiro. Este congresso foi realizado em 1950, na então Capital Federal, a cidade do Rio de Janeiro. Teve entre seus temas: a necessidade da regulamentação e organização das empregadas domésticas, campanhas de alfabetização e teses sobre manifestações de racismo. Seus organizadores foram: Edison Carneiro, Guerreiro Ramos e Abdias do Nascimento. Conforme L.C Pinto, este encontro pretendeu também criar uma progressiva identificação dos objetivos comuns entre os negros brasileiros. O I Congresso do Negro contou com a apresentação de treze trabalhos entre os dias 26 de agosto e 04 de setembro de 1950. Seus cabos distritais foram: Roger Bastide, Gilberto Freyre, Afonso Arinos de Melo Franco, Guiomar Ferreira de Matos, Oraci Nogueira, Mário Barata, Luis Câmara Cascudo, Ironildes Rodrigues, entre outros. (apud L.C PINTO, 1953:296-299). No entanto, conforme Ceva “...correntes divergentes surgiram no interior do Congresso ilustrando a complexidade do tema, entre academia e militância”. Nesse contexto, foi instituída em 1951 a “Lei Afonso Arinos”, lei que tornou crimes comuns, passíveis de sanção penal, os atos de discriminação racial no Brasil. (CEVA, 2006:66).

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O oásis de Porto Alegre e os partidos políticos As atividades do I Congresso Nacional do Negro, realizado em Porto Alegre no ano de 1958, relacionaram-se com os interesses políticos partidários oriundos, principalmente, do PTB – Partido Trabalhista Brasileiro. A iniciativa de organizar o encontro coube à Sociedade Beneficente Floresta Aurora apoiada pelo Governo Municipal, Estadual, Federal e empresas privadas. Conforme a historiadora Liane Muller (1999), a entidade foi fundada na cidade de Porto Alegre no dia 31 de dezembro de 1872, pelo negro forro Polydorio Antonio de Oliveira. O principal objetivo da organização era zelar pela comunidade afro-gaúcha materialmente e socialmente, auxiliando na realização de enterros dignos para os negros. Este congresso recebeu delegações dos estados do Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina, São Paulo, Distrito Federal e interior gaúcho, contando com a presença de estudiosos, pesquisadores, intelectuais brancos e negros e da comunidade. Em fevereiro de 1945, com o chamado Ato Adicional à carta de 1937, Getúlio Vargas fixou um prazo de noventa dias para a realização de eleições gerais em nosso país. Era a abertura democrática iniciada no final da II Guerra e do Estado Novo. Neste contexto foram fundados os três principais partidos do período entre 1945-1964: a UDN, o PTB e o PSD. Conforme Alves dos Santos (SANTOS, 2001:59), ao analisar os programas partidários, encontramos referências sobre a questão racial nas seguintes agremiações: Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Partido Democrata Cristão. Nos maiores partidos deste período, o Partido Social Democrático (PSD) e a União Democrática Nacional (UDN), inexistiam menções sobre o tema. É importante salientar que o PTB representava o trabalhismo independentemente da origem étnica deste trabalhador, com influências em sociedades polonesas, ucranianas, alemãs e russas de Porto Alegre (FORTES, 2004:117-177). A Sociedade Floresta Aurora tinha muito prestígio no período, por sua antiguidade e pela influência nacional. Além de enviar representantes para os Congressos e Convenções Nacionais do Negro de São Paulo e do Rio de Janeiro, ainda teve como ex-presidente Heitor Fraga, homem conhecido por sua participação como dirigente na Confederação nacional de esportes. 30

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O PTB tinha como principal interesse fazer que seu projeto político conquistasse o poder no Estado do Rio Grande do Sul, através da eleição de seus representantes ao Governo e à Assembleia deste Estado. A Floresta Aurora tinha como interesse a sua (re) construção social e material devido às dividas contraídas pela administração anterior, com isto queria superar a sua crise financeira aumentando o seu quadro social em um primeiro momento e, em um segundo, também alargar, através de reformas, a sua sede social. Mas ambas as agremiações tinham um interesse em comum: a educação do povo, seja ela pensada como programa político nacionalizador, neste caso vinculado à ideologia do PTB, seja como estratégia de inserção e de integração social de grande parcela da comunidade negra ainda marginalizada neste estado, representada pela SBFA, que entendia profundamente o sofrimento de seus pares com o analfabetismo existente. Eis, em síntese, que entendemos como o principal elo de “estabilidade” entre os projetos destas duas organizações sociais: a educação. Sob esta hegemonia tivemos, pelo intermédio da educação, a principal força geradora para a formação do oásis porto-alegrense. O PTB mantinha um representante no seio da organização negra, o Deputado Armando Temperani Pereira (1910-1991), que era conselheiro. Localizamos evidências das constantes visitas do líder do partido no Rio Grande do Sul, Brizola (1922-2004), à entidade. Em entrevista realizada com o Sr. Hélio Fontoura, advogado de Brizola que era Prefeito de Porto Alegre na época, tornaram-se evidentes estas relações. Consta em ata que o conselheiro Eurico Souza propõe que fosse oferecido, por parte da entidade, um coquetel para Brizola e sua esposa (Ata 248, 20 de maio de 1958). Neste período, a SBFA tinha como presidente Heitor Fraga. Empossado Valter Santos, em 1958, a sua administração passa a fazer contatos em outras esferas da sociedade gaúcha e no eixo Rio-São Paulo. A entidade tem as suas relações alargadas o que possibilita a sua contribuição na situação políticosocial e cultural dos negros gaúchos e brasileiros. Após contatos com o Prefeito da capital gaúcha, no mês de junho, o Presidente da SBFA, Sr. Valter Santos e o conselheiro Eurico Souza viajaram para o Rio de Janeiro no intuito de conseguir apoio federal (ATA 251, de 08 de junho de 1958). É importante salientar que o PTB era o partido do vice-

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presidente da República, João Goulart. O apoio do Governo do Estado do Rio Grande do Sul ocorre mediante o decreto nº 9267, do dia 20 de agosto de 1958, assinado pelo então Governador do Estado Ildo Menegetti do PSD, no qual autorizou a liberação de 60.000 cruzeiros para a entidade. Esta participação deu um viés democrático ao encontro. Outra fonte de recursos foram os 70.000,00 cruzeiros doados pela Prefeitura de Porto Alegre, como consta na ata nº 262 encontrada no acervo da Sociedade. Também localizamos a apoio da Pepsi-Cola e da Rede Mineira de Viação ao congresso além dos periódicos: Correio do Povo e Folha da Tarde, que difundiram diariamente as atividades propostas neste lugar social. O encontro ocorreu simultaneamente nas dependências da Sociedade Floresta Aurora e na Câmara de Vereadores entre os dias 14 e 19 de setembro de 1958, e contou com o comparecimento de Dante Laytano (1908-2000), que versou sobre sua viagem a África, e de Dario Bittencourt (1901-1974), ambos participaram das atividades do II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador e dos Congressos organizados pelo Teatro Experimental do Negro. Além destas presenças, o evento teve diversos palestrantes vinculados ao PTB e ao Curso de Engenharia da UFRGS, faculdade, que estudou Brizola. Os participantes chegaram à seguinte conclusão: o maior problema do negro brasileiro era o seu baixo nível intelectual (pouco estudo) sendo necessária uma ampla campanha de alfabetização organizada pelas associações negras com o auxílio dos Poderes Públicos constituídos. (Correio do Povo/ Porto Alegre/ 20/09/1958:07). Podemos certamente enfatizar que a realização deste oásis foi fundamental para as eleições estaduais, pois segundo o Jornal Correio do Povo, do dia 17 de setembro de 1958 o Estado do Rio Grande do Sul tinha 1.274.344 eleitores. A população negra conforme informado no discurso do Prof. da UFRGS, Laudelino Medeiros, que palestrou no congresso, era de 440.000 pessoas. Como os analfabetos eram impedidos de votar e no RS o número de negros analfabetos girava em torno de 70%, significava que somente 132.000 negros, ou seja, 30% poderiam votar, se os mesmos tivessem a idade prevista em lei, isto é, maiores de 18 anos. Prosseguindo este raciocínio, se

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diminuirmos este número pela metade e nos concentrarmos em 66.000 mil eleitores, 15% dos negros votantes, mesmo assim devemos considerar esta quantidade como razoável e notar como foi importante a relação entre o PTB e a comunidade negra gaúcha, por ocasião desta disputa, pois os resultados das eleições para o Governo do Estado do Rio Grande do Sul foram os seguintes: Brizola, do PTB, obteve 55% dos votos válidos, em um total de 670 mil e Walter Perachi Barcelos, representante da UDN, PL e PSD, ficou com 45% dos votos, totalizando 500 mil. Proporcionalmente, temos os indícios necessários para valorizar a importância da comunidade negra nestas eleições. O I Congresso Nacional do Negro foi concretizado entre os dias 14 a 19 de setembro e no dia 10 de outubro de 1958, o PTB alcançou a vitória nas urnas. Lembremos do binômio no slogan da campanha de Brizola neste pleito: “Educação Popular e Desenvolvimento Econômico”. Para a Sociedade Floresta Aurora, o benefício foi material, já que além de ver aumentado o seu quadro social concomitantemente ela conseguiu adquirir uma sede social mais ampla, localizada em frente ao Hipódromo do Cristal, bairro nobre de Porto Alegre. Politicamente para a comunidade negra em geral existiram melhorias, visto que a mesma passou a ter um representante no gabinete de Brizola, o Sr. Alexandre Moreira além da efetivação da “Campanha de Alfabetização Intensiva dos Negros Brasileiros”. Localizamos na “escritas de si” 41expedida por Archanjo Martins Santos, considerado por nós como o principal cabo distrital deste encontro, já que era representante da União Mineira Pró-Homens de cor do Rio de

Janeiro e de Minas Gerais, indícios da difusão das ideias apresentadas neste lugar social que repercutiram em outras regiões do Brasil. Leonel de Moura Brizola D.D Governador do Estado do Rio Grande do Sul Exmo. Snr.(sic) Governador. As grandes obras tendem a ser compreendidas, somente, por um círculo restrito da opinião pública, só depois de exaustivos trabalhos, é que a ideia vinga, floresce e frutifica. Conhecendo esse fenômeno, é que venho à presença de Vossa Excia (sic) levar os meus sinceros parabéns pela tão acertada escolha do cidadão Sr. Alexandre Moreira para oficial de Gabinete de V. Excia (sic). Trata-se de um dos atos mais simpáticos e democráticos do governo de V. Excia (sic), que veio repercutir em todo

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o Brasil, numa demonstração de que V. Excia (sic) deseja governar o grande estado, com a colaboração de brancos, pretos, sem a distinção de raça ou credo, e com todos os Riograndenses(sic) que desejam o progresso do grande estado sulino. Deixo aqui as minhas sinceras felicitações, apresentando V. Excia os meus protestos de grande estima e distinta consideração. Que Deus guarde V. Excia “AD MULTOS ANNOS”. Cordialmente Archanjo Martins dos Santos B.Mansa, 30/06/59.42

Conclusão Durante esses vinte e sete anos (1931-1958), período em que surgiu o movimento frentenegrino e que culminou com a realização do Primeiro Congresso Nacional do Negro, na cidade de Porto Alegre, foram promovidos sete Congressos que motivaram os estudos culturais, discussões sobre as questões sociais e os assuntos de cunho político sobre o negro em nosso país. Entendemos que todos foram acontecimentos políticos, mas o único que teve a questão político-partidária em evidência foi o encontro de Porto Alegre. Estes eventos tiveram aspectos culturais, políticos e sociais, propostos de maneira dinâmica e abrangente, o que contribuiu positivamente para o reconhecimento da identidade negra e afro-brasileira em nosso país. A formação de oásis iniciou, em nossa perspectiva a partir do movimento frentenegrino e de seus intelectuais e organizações, que surgiram em praticamente todo o território nacional. Embora com ideologias diferentes, tinha em comum a luta pela inserção e ascensão das populações negras em nossa sociedade nacional. Quanto aos Cabos Distritais, concordamos com Flávio dos Santos Gomes, que cita estes como uma inovadora estratégia da época para conquistar associados. Avançamos nesta hipótese percebendo que outras estratégias foram inovadoras para os intelectuais frentenegrinos. Como os Delegados em Trânsito, que viajavam de navio pelos portos brasileiros no intuito de fundar núcleos da organização, o que nem sempre dava certo. Tomamos por exemplo, o caso de Simeão, que embora tenha sido convidado para participar do movimento, negou o convite, deixando claro que ideias como a das Frentes 34

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Negras eram perigosas ao Brasil já que significava, para muitos, uma sociedade dividida. Para José Antônio dos Santos (2000) Simeão sentiu a influência da democracia racial brasileira em sua decisão. Através destas movimentações e dos debates sobre as questões negras, criamos em nossa narrativa a ideia de que os homens que participaram de Congressos foram importantes meios para difundir a trajetória da comunidade negra no país, embora reconhecendo que muitos eram brancos e sem nenhum compromisso militante com a causa negra. Guardadas as devidas proporções, também propomos demonstrar que as reivindicações da Frente Negra, sempre estiveram presentes nos Congressos Negros e Afro-Brasileiros realizados entre 1934 e 1958. Para comprovar esta situação, devemos destacar que Abdias do Nascimento, ex-integrante da Frente Negra, foi organizador das Convenções e Conferência do Negro de 1950. Miguel Barros, membro da Frente Negra Pelotense, esteve participando do Congresso de 1934, organizado por Freyre no Recife. Solano Trindade, fundador da Frente Negra no Recife, participou além deste encontro, e nas atividades promovidas por Abdias, na década de cinquenta. Assim como tivemos a presença de Arlindo Veiga dos Santos, fundador da Frente paulista nos congressos dos anos cinquenta. A partir destes indícios conceituamos as pessoas que atuavam na criação, participação e manutenção destes congressos, como Cabos Distritais dos Encontros, cientes de que dificilmente existiu relação destes com os Cabos Distritais da Frente Negra Paulista, e com os seus Delegados em Trânsito. O ponto em comum, e que salientamos, nestas funções, foram suas movimentações pelo território, divulgando interesses, que em última análise, contribuíam para a história afro-brasileira. Intelectuais como Armando Temperani Pereira, Abdias do Nascimento, Arlindo Veiga dos Santos, Dante Laytano, Dario Bittencourt, Edison Carneiro, Gilberto Freyre, Guerreiro Ramos, Leonel Brizola, Miguel Barros, Solano Trindade, Walter Santos, Archanjo Martins Santos e tantos outros, que devido ao limite de nossa narrativa acabaram sem ser citados, independentemente de sua formação acadêmica, militante, político-partidária e de suas origens étnicas, perceberam, à sua maneira, que algo deveria ser feito em torno das questões negras, visto que as mesmas representavam

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uma grande parcela da população deste país. Para reconhecê-la deveria ser entendida sua participação em nossa formação cultural e serem resolvidas as suas carências sociais, como analfabetismo e o desemprego. Entendemos que existiram limitações nestes acontecimentos, já que a desigualdade entre negros e brancos, embora com avanços, persiste em nossa sociedade.

NOTAS 2 Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar social de produção sócio-econômica, político e cultural. Implica um meio de elaboração que circunscrito por determinações próprias: uma profissão liberal, um posto de observação ou de ensino, uma categoria de letrados, etc. (...) é em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões que lhes serão propostas, se organizam. Ver CERTEAU, Michel De. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2006, p.66-67. 3 A política baseia-se na pluralidade de homens e trata da convivência entre diferentes (...) manifesta-se na vida privada, em costumes e convenções; e na vida pública em leis, constituições e estatutos. Será dada ênfase também sobre o contato político partidário no que tange às relações entre políticos ou partidos políticos e os organizadores dos congressos e representantes das organizações negras. Ver ARENDT, Hannah. O que é política? Fragmentos das obras Póstumas Compilados por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p.21-22. 4 Solano Trindade, Barros Mulato e Abdias do Nascimento são exemplos das participações de exmembros da Frente Negra em atividades de caráter nacional sobre o negro neste período. 5 Além da Frente Negra paulista, baiana, pelotense e pernambucana, que analisaremos, existiram núcleos dessa organização em Sorocaba, Santos, Campinas e Rio de Janeiro. Ver DOMINGUES, Petrônio José. “A insurgência do Ébano”: A História da Frente Negra Brasileira (1931-1937). Também localizamos referências quanto a um núcleo fundado em Minas Gerais em 1935. Ver GOMES, Flavio dos Santos. Negros e Política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005, p.48. Ver LUNA, Luiz. O Negro na luta contra a escravidão. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1976, p.313. 6 A FNB inovaria com o mecanismo de cabos para arrecadar sócios e recursos. Ver GOMES, Flavio dos Santos. Negros e Política (1888-1937). Rio de Janeiro: Jorge Zahar editor, 2005, p.48. 7 Notamos estas viagens através do discurso de fundação da FNB em Salvador no ano de 1932, sendo que naquela ocasião o seu líder, Marcos Rodrigues dos Santos disse, que: “gostava de ensinar a ler aos que não sabiam, chegando a reger a Escola noturna da Sociedade de São Vicente (...) fui alfabetizar em Segueiro do Espinho, Verruga, Encruzilhada, ahi (sic) iniciei a minha vida de judeu errante viajando para o norte de minas, sempre pregando contra o analfabetismo (...) fui para Santos, lecionando no mosteiro de São Bento. Ahi (sic) fundei a Frente Negra, conseguindo alistar quatro mil negros...”. Diário da Bahia, 16/11/1932 apud Jéferson Bacelar, A hierarquia das Raças, Negros e Brancos em Salvado, Rio de Janeiro, Pallas, 2001, p.146. Em outra leitura identificamos que Simeão M. da Silva, pelotense, foi convidado para ser “delegado em trânsito” da FNB em Santos, no ano de 1932, viajando a bordo do cargueiro Mantiqueira.

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Segundo José Antônio dos Santos, como Simeão viajava regularmente pelos portos brasileiros, poderia representar a FNB em outras cidades do país. José Antônio dos Santos, “Raiou ‘A Alvorada’: Intelectuais negros e imprensa, Pelotas (19071957)”, (Dissertação de mestrado em História Universidade Federal Fluminense, 2000), p.132. 8 Por cultura entendemos: “o terreno das práticas, representações, linguagens e costumes concretos de qualquer sociedade historicamente específica. Também inclui formas contraditórias do ‘senso comum’ que se enraízam e ajudam a moldar a vida popular”. Ver HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003, p.332. 9 Conforme Domingues: “A FNB não foi criada da noite para o dia; ela foi resultado do acúmulo de experiência organizativa dos negros no pós-Abolição”. 10 Convém destacar que o primeiro jornal negro de São Paulo foi o Menelik, fundado em 1915, depois surgiram os seguintes jornais: A Princesa do Norte, o Tio Urutu, A Rua, O Xauter e A União, em 1918, O Alfinete e o Bandeirante, e A Protetora, em 1919, A Liberdade, de 1920, A Sentinela, em 1922, O Kosmos, em 1923, O Getulino, em 1924, O Elite, em 1928, O Auriverde, O Patrocínio e O Progresso, em 1932. O mais representativo jornal foi O Clarim da Alvorada, fundado por José Correia Leite e Jayme Aguiar. Somente em 1933 com a participação dos membros do O Clarim da Alvorada foi que surgiu o jornal da Frente Negra Brasileira o a Voz da Raça. 11 Conforme Francisco Lucrécio os negros paulistas eram proibidos de passear em alguns parques da cidade. Também aos negros era impossibilitado acesso a trabalhos como os de guarda-civil. Ambas as proibições foram extintas devido a conversas de líderes da Frente Negra com o então presidente Getúlio Vargas.

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Entre santos e comunistas: a atuação dos assistentes eclesiásticos Me. Carla Xavier dos Santos1

As linhas que se segue, tem por objetivo abordar a atuação dos Assistentes Eclesiásticos, pessoas muito importantes, tanto para a fundação, quanto para a permanências, ao longo da História, do movimento de operários católicos, os Círculos Operários. A característica não revolucionária, ordeira e nacionalista dos Círculos Operários, que visavam o entendimento entre trabalhadores e o sistema político vigente, foi o motivo do “despertar” da simpatia do presidente Getúlio Vargas que o levaram a adoção do movimento circulista , com o propósito de disciplinar e supervisionar o operariado brasileiro. Como veremos, os Assistentes Eclesiásticos foram muito importante para os circulistas e para a sociedade em que os seus círculos estavam inseridos. Este movimento foi fundado e consolidou-se no Brasil, à partir dos pensamentos contidos na chamada “Doutrina Social da Igreja Católica”2, e tendo como documento inaugural a encíclica Rerum Novarum, publicada em 1891, pelo papa Leão XIII. Foi a primeira vez que um documento do magistério católico dedica-se integralmente à chamada “questão social”. No decorrer do

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texto, o papa propõe-se abordar a “condição dos operários”. Isto não quer dizer que os problemas sociais estivessem ausentes das publicações anteriores na história da Igreja. O próprio Leão XIII referiuse, na introdução da Rerum Novarum, a abordagem do tema em encíclicas precedentes sobre soberania política, liberdade humana e constituição cristã dos Estados, publicadas respectivamente nos anos de 1831, 1885 e 1888. Mas, enquanto anteriormente essas questões apareciam de forma secundária, a margem de outros assuntos de maior relevância, agora o papa faz da condição social dos operários o tema central de sua carta. Podemos notar que houve uma mudança de enfoque ou de perspectiva: a Igreja, na pessoa do papa, deixou em segundo plano os assuntos internos e volta-se para os problemas que afligiam os trabalhadores. O olhar da Igreja dirige-se ao mundo exterior, identificando nele os principais desafios sociais à fé cristã e buscou alternativas às contradições da sociedade. O contexto da Rerum Novarum é uma sociedade profundamente transformada pela Revolução Industrial. Uma sociedade formada de pessoas que vivem na alma e no corpo os efeitos de um “salto gigantesco” em termos científico-tecnológicos. A Revolução Industrial trouxe avanços inegáveis, especialmente através da imensa capacidade de produção através da máquina. O poder das máquinas multiplicou a capacidade de produzir bens, alimentos e equipamentos, mas esse conjunto de transformações trouxe, também, efeitos negativos. Os benefícios de semelhante progresso não foram harmoniozamente distribuídos. Os “novos tempos” vieram acompanhados, simultaneamente, de um enorme potencial produtivo e de uma crescente desigualdade social. Os trabalhadores estavam submetidos a condições de trabalho e de vida extremamente precárias e desumanas. Neste ambiente da fábrica, as ideias marxistas eram mais atraentes que as católicas, ainda mais se levarmos em conta o afastamento considerável entre a hierarquia eclesiástica e o operariado. Como vimos, a Doutrina Social da Igreja nasceu num tempo em que as transformações sociais têm uma velocidade espantosa. A Igreja procurou adaptar-se à evolução da história, sobretudo na questão, referente ao trabalho e ao trabalhador. Quarenta anos após a encíclica de Leão XIII, foi lançado um

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segundo documento voltado à questão social. Assim, em 1931, o papa Pio XI, publicou a encíclica “Quadragésimo Anno”, que irá conferir atenção especial ao direito de organização dos trabalhadores. Tal organização, em sua maneira de ver, muito pode contribuir para superar a questão social, além de reforçar diversos pontos abordados na encíclica de Leão XIII, principalmente, reforçou o combate e os males do comunismo e do socialismo, o sumo pontífice segundo Mainwaring, Pio XI havia lamentado que o maior escândalo do século XIX foi o fato da Igreja ter perdido a classe operária. Ambos os pontífices Pio XI e Pio XII visavam à reconquista dessa classe como um objetivo prioritário. 3 Mainwaring apontou que o apostolado católico voltava-se para as elites econômicas e, conseqüentemente, afastou-se das massas operárias que acabaram desinteressando-se da religião não respondendo às suas necessidades. Por isso, precisamos considerar todo o histórico de abusos financeira da Igreja e incompreensão, para com as classes subalternas, e esta foi uma das batalhas travadas por Pio XI para chegar até as massas. Também almejava falar de igual com o operáriado e tinha como meta principal fazer com que este operário o aceitasse entre os seus, da mesma forma que os comunistas interagiam. A verdade é que o apostolado, no decorrer dos anos 1930, ainda não sabia, na prática, os ensinamentos de seus pontífices Leão XIII e Pio XI. Havia, dentro da própria Igreja, os que viam com bons olhos àqueles adeptos da defesa da atuação da Igreja na questão social, enquanto os outros faziam oposição. Leão XIII tentou lançar um projeto de transformação social que se legitimasse perante a sociedade como a verdadeira modernidade. Tentou, com isso, estabelecer parâmetros para constituir uma nova organização mundial, ao objetivar que a Igreja se afirmasse novamente como a “consciência moral do mundo”.4 Sendo assim, ancorado no pensamento de São Tomás de Aquino,5 buscou subsídios, para enfrentar o racionalismo moderno e reconquistar o espaço perdido pela instituição. Leão XIII, por meio da razão, buscou uma ação da Igreja mais condizente com as necessidades postas pela modernidade sem, no entanto, abandonar os dogmas e as tradições católicas. O pontífice trouxe à tona os perigos que rondavam a classe operária e o pensamento daquilo que deveria ser feito para ajudar os trabalhadores. O papa Pio XI propôs colocar em prática os princípios sobre a questão

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social, levantados por Leão XIII, quarenta anos depois, sobre o capital de trabalho e sua mútua coordenação. Portanto, era necessário evitar tanto o individualismo quanto o coletivismo, ponderar com igualdade e rigor o caráter individual e social do trabalho, regular as relações econômicas, conforme as leis de justiça comutativa. Todas as propostas da encíclica centravam-se no regresso à doutrina católica, e o papa defendeu a sua temporal validade, ao mostrar a forma como os movimentos leigos e os clérigos deveriam atuar. Ao clamor das encíclicas, padre Leopoldo Brentano não se fez surdo, e em março de 1932, fundou o Círculos Operários, o primeiro dos muitos que viriam a se espalhar pelo Brasil,. Assim, tendo por base assistir os trabalhadores nas áreas: jurídica, saúde e educação. O padre Leopoldo Brentano contou, para a realização de sua “missão”, com outros colegas sacerdotes, que abraçaram a causa trabalhista e, por isso, carregaram os estigmas de “santos” e de “comunistas”. Aos operários e as camadas mais pobres eram vistos como enviados de Deus em sua defesa, verdadeiros santos. Todavia, não foram poucos os que o julgaram desviados e aliados aos comunistas, com o intúito de abalar a ordem e a moral social. Foram homens ímpares em seu tempo. Período onde a Igreja Católica brasileira estava mais ligada à elite, que propriamente aos mais necessitados. Estas “batinas” enfrentaram, não só estradas de chão batido, morros e rios para levar o circulismo ao máximo de cidades possíveis, enfrentaram o julgamento e a discriminação dos seus “iguais”, pois muitos representantes da Igreja os consideravam subvertidos, padres que haviam se deixado levar pelo pensamento comunista, simplesmente por estarem atuando juntos aos operários.6 Essa visão de “comunistas”por parte da Igreja Católica, aos que apoiavam a inclusão social e econômica, era comum durante o século XX: não faz muito tempo, expressões como “padre comunista”, “bispo vermelho” e “católico de esquerda” eram comuns e designavam religiosos ou mesmo leigos ligados à Igreja Católica que defendiam idéias e programas parecidos com os do Partido Comunista Brasileiro e de agrupamentos de esquerda. Lutavam por uma sociedade mais justa.7

Nesse sentido, segundo Andrade, “havia quem visse esse engajamento

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como uma aberração. Como poderia uma pessoa religiosa conviver com o materialismo, o ateísmo, a filisofia marxista, ou mesmo adotá-las como principio”8? Até porque, na segunda metade do século XX, não foram poucos os membros do clero, que além de compartilhar dos princípios e militarem na esquerda, chegaram à pegarar em armas para defender esse pensamento.9 Porém, alguns padres e cristãos que lutaram pela melhoria da qualidade de vida dos trabalhadores, não estavam ligados ao comunismo. Ao contrário disso, tinham como únicas armas, sua fé e o seu “colarinho romano”. Muitos católicos (clero ou leigos) divergiram dessa postura voltada para os mais abastados, adotaram uma posição crítica frente a estas práticas da Igreja. Os padres, assitentes eclesiásticos dos Círculos Operários, ousaram contestar a chamada “ordem estabelecida”, mas esses religiosos, ainda que contestados por alguns de seus pares, tinham papel destacado em suas comunidades. Inspiraram-se na história e na pregação de Jesus Cristo, eles contestaram o que viam como erro e desvio da Igreja na questão social. Portanto, trabalharam para reparar as lacunas deixadas junto ao operariado e intrínsecamente contra o comunismo e o socialismo, princípios básicos do circulismo. O corpo eclesiástico estava por demais ligado às elites econômicas e à intelectualidade do Rio Grande do Sul e do Brasil. Essa posição da Igreja pode ser exemplificada por sua postura contra o movimento de jovens católicos gaúchos, “Centro Católico de Acadêmicos” (1935). De fato, esse movimento de vanguarda despertou desconfiança tanto do laicado,10 quanto da própria arquidiocese. Esses foram tachados de comunistas, porque lutava contra a exploração do operário, por salários mais dignos, controle do Estado sobre preços e contra as injustiças cometidas pelos patrões. Sua atuação se dava tanto na capital, quanto no interior do Estado. Ensinamentos básicos da Rerum Novarum, seguidos pelo grupo de jovens era motivo de escândalo segundo Artur Isaia.11 Além disso, “a população católica não estava habituada a conviver com leigos ao mesmo tempo profundamente vinculados à hierarquia católica e às lutas sociais de seu tempo. A presença de elementos do laicado junto a movimentos grevistas, por exemplo, escandalizava amplos setores do catolicismo rio-grandense”.12 Dom João Becker, então no comando da arquidiocese de Porto Alegre,

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foi criticado, tanto pela juventude católica, por não se fazer presente na questão social, quanto por clérigos que eram contra o elitismo da instituição gaúcha. O padre Leopoldo Brentano, fundador do movimento circulista, ao unificar os operários católicos do Brasil através dos Círculos Operários, também ganhou o estigma de “comunista” por ser crítico da falta de valorização do movimento operário e da visão burguesa da arquidiocese. Antes da fundação dos Círculos Operários, a atuação da Igreja Católica no Rio Grande do Sul era quase nula. Ainda em 1935, fundou-se, sob o comando da arquidiocese, um movimento que não teve um tempo de atuação muito longo, entretanto, tinha o intuito de combater o comunismo no Estado, a Ação Brasileira de Renovação Social, organizada por leigos. Acreditava que o combate ao comunismo viria da atuação dos católicos junto aos operários e para isso contavam com a elite intelectual católica de Porto Alegre, para com isso recristianizar a sociedade. Contudo, vê-se uma grande distância entre a instrução dessa elite intelectual e as massas operárias, que a Ação Brasileira queria orientar.13 Todavia, os círculos e os seus Assistentes Eclesiásticos não se abateram, muito menos deixaram de exercer seu amor e trabalho, em prol dos operários. Todos os núcleos, que estavam em atividades desde 1932, quando se fundou o primeiro circulo, têm em seus Assistentes Eclesiásticos como a figura principal do movimento. A eles nada se negava, tinham a confiança plena e o respeito de todos os associados, como da comunidade em geral. Barreto salienta, em Propostas e contradições dos círculos operários, que entre as funções dos Assistentes Eclesiásticos cabiam aos que participavam das reuniões da diretoria velar pela orientação doutrinária, afastar os membros que julgasse nocivos ao grupo, podendo vetar qualquer atitude ou decisão, sendo que para a diretoria poderia derrubar este veto, e o caso seria avaliado pela Federação ou pela Confederação.14 Como também, na sua atividade de doutrina social, assuntos de fé moral e assistência religiosa, o Assistente Eclesiástico está acima da diretoria da entidade e tem plena autoridade. O mesmo não vale para assuntos econômicos e de administração. O assistente, obviamente é o único cargo não eletivo da diretoria e sua indicação, bem como tempo de atividade, é prerrogativa do Bispo diocesano. A diretoria e a assembléia geral não podem recusar aquele que for nomeado.15

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Ao Assistente Eclesiástico caberia o voto de desempate, sempre que a diretoria ficasse dividida, o Assistente Eclesiástico do círculo nomeava o padre que exerceria a função de assistente do núcleo. Além de suas atribuições poderiam ser ampliadas, porém, jamais restringidas.16 Deste modo, o assistente responsável pela Federação, supervisionava cerca de 46 círculos. Assitiam sem intervir diretamente, pois esta atitude caberia ao assistente responsável pelo núcleo, que deveria ter contato com os operários e interesse por seus problemas e os de sua família. Isso seria possível se o religioso tivesse parte ativa na vida e atividades dos núcleos.17 O elemento estrutural fundamental da hierarquia dos Círculos Operários, seria a figura do Assistente Eclesiástico nomeado pela a Igreja. Embora figurasse como qualquer membro da diretoria, possuía autoridade para orientar os Círculos, as Federações e a Confederação em assuntos doutrinários, de fé e de moral. Tinha poder estatutário de veto, até mesmo às decisões de assembléias se julgasse que tais decisões fossem contrárias às orientações da doutrina católica, tanto as espirituais, quanto as sociais. O Assistente Eclesiástico, É o primeiro dirigente de qualquer das esferas do movimento circulista. Em última instância era ele quem definia a ação católica entre o operáriado, o Estado e o patronato. Por isso, mesmo, era que seus nomes se sobressaíam entre os demais em todos os documentos e articulações realizadas: assim conhecemos mais padre Leopoldo Brentano (...) e menos os nomes dos presidentes respectivamente da Confederação, Federação e dos Círculos, até porque estes últimos são indivíduos “passageiros” no comando da entidade, enquanto o Assistente Eclesiástico pode ter cargo vitalício.18

Segundo Dinara Paixão, os principais Assistentes Eclesiásticos que auxiliavam a Federação dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul foram quatro padres jesuítas: Ignácio Valle, responsável por todos os núcleos, que compunham a COPA (onde também morava) e também fazia algumas visitas ao interior do estado; padre Cláudio Mascarello, residia no Seminário São José, em Santa Maria, e se responsabilizava também pelo atendimento ao Círculo Operário de Santa Maria e ao Círculo Operário Ferroviário, inclusive dirigindo 80 escolas mantidas pela cooperativa dos ferroviários; Emílio

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Schneider, responsável pelo Circulo Operário Ferroviário, atendia todo interior mais especificamente a fronteira com o Uruguai; e o padre Urbano Rausch, a região metropolitana.19 Entretanto, para este artigo, salientaremos três Assistentes Eclesiásticos, que fizeram sua história valer, não só frente aos circulistas dos núcleos que pertenciam, mas a sociedade em que viviam. Os padres Leopoldo Brentano (idealizador e fundador dos círculos), Inácio Valle (assistente dos núcleos de Porto Alegre, da Federação dos Círculos Operários e ajudou na fundação da maioria dos núcleos gaúchos) e Ângelo Tronca (assistente de Caxias do Sul, ajudou na fundação da maioria dos círculos da Serra Gaúcha) com suas vidas, contaram um pouco da história do circulismo. Padre Leopoldo Brentano tornou os Círculos Operários uma realidade dentro do movimento operário gaúcho e brasileiro, com a fundação do COP (Círculo Operário Pelotense) em 1932 e expandiu-o para todo o Rio Grande do Sul e posteriormente, com o apoio do presidente Getúlio Vargas, para todo o país. Construindo-se uma alternativa ao movimento anarquista e, principalmente, ao comunismo, tão temido pela a Igreja. A figura singular do padre Leopoldo Brentano, se destacou no cenário da Igreja Católica brasileira. O intelectual, idealizador, fundador e difusor do circulismo, viu nas palavras dos sumos pontífices Leão XIII e Pio XI seu ensinamento e nos operários sua missão, desempenhada dedicadamente até o dia de sua morte. Sob sua liderança, unificou os movimentos de trabalhadores cristãos, espalhados pelo país e enfrentou todas as resistências, pois segundo Jessie Souza, outras organizações sindicais operárias católicas, como a Confederação Católica do Trabalho (CCT), mantinham uma postura crítica em relação ao circulismo, por este ter estabelecido parcerias com o ministério do trabalho no processo de sindicalização. (...) A discordância com o circulismo foi mais exaltada, pelo fato de existir no interior dessas organizações uma grande expectativa quanto à possibilidade de os católicos construírem uma estrutura sindical.20 A unificação nos Círculos Operários significou uma atuação forte com os mesmos princípios e linguagem de norte a sul do Brasil, que se baseavam na moral, na doutrina de Cristo, na justiça, no respeito mútuo, visando acima de tudo o bem estar do trabalhador. E por esta atuação, em maio de 1941, pelo

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Decreto 7164/41, a Confederação Nacional dos Círculos Operários recebeu a prerrogativa de Órgão Técnico e Consultivo do Ministério do Trabalho. Tão implacável quanto à batalha anticomunista, foi à pró-operário, enfrentada pelo padre Brentano, pois o clero não estava preparado para atuarem junto aos trabalhadores. Existia um abismo entre eles, desse modo, Brentano teve de “catequizar” os operários e os religiosos. Indo por muitas vezes de encontro ao pensamento da própria Arquidiocese de Porto Alegre, que preferia atuar junto da elite socioeconômica do Estado e do país, ao meio operário. Neste viés, o Leopoldo Brentano foi por muitas vezes discriminado perante seus pares, que o julgavam subversivo por sua ligação com as massas. Ele queria cristianizar o trabalho, como estava escrito na encíclica Rerum Novarum, e reforçada na Quadragésimo Anno, e não querendo subverter a ordem. Porém, a Igreja estava mais vinculada às classes mais elevadas de nossa sociedade e deixavam à margem os trabalhadores, como o próprio governo o fez durante muito tempo.21

O “comuna de saia” 22, como era chamado por alguns dos seus colegas de batina, não escondia sua devoção para com os trabalhadores, nem suas críticas ao clero pelo seu completo despreparo para atuarem na área social. O padre acreditava que a relação de um sacerdote, unido com o proletário, deveria ser de interação e, por sua vez, se fazer presente tanto junto ao operário quanto ao seu patrão, assim poderia defender os direitos de ambos, privilegiando a justiça. Tudo dependeria da forma em que os religiosos entrariam em contato com esses trabalhadores, de como abordariam questões de extrema importância em seu meio. São temas muito pouco explorados pelo catolicismo, até o lançamento da encíclica Rerum Novarum, mas foram amplamente utilizados pelo comunismo, anarquismo e socialismo. Desta forma, Brentano percebeu que não bastaria as encíclicas para que o corpo eclesiástico se alinhasse ao meio operário. Era preciso que estes trabalhadores tivessem confiança nas palavras dos religiosos. Portanto, a fala e a conduta dos padres deveriam ser tão simples quanto era a dos seus “inimigos vermelhos”. Decididamente, padre Leopoldo foi um homem além do seu tempo

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e um padre que, antes de ser da Igreja construída por Pedro, era um fiel seguidor do exemplo de Jesus Cristo, pois dedicou sua vida aos que julgava ser, mais humildes e vulneráveis. Não esmorecendo frente às dificuldades e problemas que apareciam o seu caminho. Faleceu em 08 de outubro de 1964 e recebeu o título de “Apostolo dos Operários”. Na figura abaixo, vemos a foto do idealizador e fundador dos Círculos Operários. Figura: 01

Fonte: Padre Leopoldo Brentano. Arquivo João Batista Marçal História Operária.

Padre Ignácio Valle23, grande idealizador da romaria de Nossa Senhora de Medianeira, tornou-se o assistente religioso do movimento circulista, pois atuava intensamente nos núcleos de Porto Alegre e no interior do Estado, principalmente quando o Padre Leopoldo Brentano partiu para outros Estados com a missão de fundar novos núcleos do movimento circulista e auxiliar os que já haviam sido fundados. O padre Inácio Valle, desde que 50

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concluiu sua formação sacerdotal até o seu falecimento, em maio de 1982, sempre atuou nos Círculos Operários, tanto como Assistente Eclesiástico do Círculo Operário de Porto Alegre­ – COPA, como também da Federação dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul – FCORS. Padre Inácio Valle, dedicou sua vida ao circulismo e ao movimento operário cristão. Realizou duas grandes metas para a doutrina cristã, a romaria de Nossa Senhora de Medianeira de Todas as Graças, padroeira oficial dos Círculos Operários, e a Escola Técnica Santo Inácio, que originalmente era para ter sido a Universidade do Trabalho. A devoção a esta Virgem, no Rio Grande do Sul e no Brasil, teve início em 1928, com o então Frade Inácio Valle, que introduziu esta devoção entre os membros do Seminário São José, da arquidiocese de Santa Maria, dirigido pela Companhia de Jesus. Em setembro do ano seguinte chegou ao seminário três “santinhos” vindos da secretaria do arcebispado de Malinas, que serviram de modelo para pintar o quadro que seguiu durante décadas a Romaria de Medianeira.24 Padre Leopoldo Brentano uniu-se a essa devoção em 1932, quando visitou Santa Maria com intenção de conhecer a cooperativa da estrada de ferro, para começar os círculos, conheceu o humilde santuário e resolveu consagrar o movimento social que iria fundar25 à Santa Medianeira. Juntamente com o padre Leopoldo Brentano, o padre Inácio Valle pediram aos operários circulistas, em congresso nacional dos Círculos Operários, realizado na cidade do Rio de Janeiro, em 1937, que fosse proclamada Nossa Senhora de Medianeira de Todas as Graças como padroeira e intercessora dos Círculos Operários. Essa foi aceita por unanimidade pelos operários católicos. Assim, em 1939, foi concedido oficialmente, pelo Concílio Plenário Brasileiro, a proclamação da Virgem de Medianira como padroeira dos Círculos. Este fato chamou a atenção principalmente pelos Círculos serem um movimento de operários e, como tais, já tereiam um padroeiro que era São José, protetor de todos os operários. Desta forma, coloca a proeminência, tanto dos Círculos Operários, quanto dos padre Brentano e Valle para concessão deste pedido. Segundo o Assistente Eclesiástico da Federação dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul, o padre Odelso Schnaider26 e o padre Inácio Valle tinham o sonho de fazer a Universidade do Trabalho. E no terreno que

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queria construir um prédio, ele enterrava uma medalhinha de Nossa Senhora de Medianeira de todas as graças e dizia que naquele local seria construído o prédio “X” da universidade do trabalho. Lenda ou não, o certo é que logo vinha a doação, ou a concessão daquela área para os círculos. Neste sentido, o senhor Ruduite27 conviveu diretamente com o padre Valle e relara que ele “começou desde que surgiram os círculos de Porto Alegre, começou já como seminarista, já começou a trabalhar, desde a fundação, lá foi em 34 (...), em Porto Alegre”. E se refere à atuação do Assistente Eclesiástico, junto ao Governo do Estado, O padre Valle, ele se dedicava como Assistente Eclesiástico dos círculos operários, só esse trabalho, então ele dedicava todo o tempo dele. Ele tinha acesso livre no governo, tinha um cartão azul que ele podia entrar a hora que quisesse falar com o governador, ele conseguia tudo isso, porque o trabalho era um trabalho importante na época para arregimentar, organizar e orientar os trabalhadores, então ele tinha acesso livre no governo.

Bem como, entre os empresários gaúchos, Ele conseguia verba com os empresários, por exemplo, a policlínica, se tu entrar, hoje ali, na Santo Inácio 325, tu vai ver uma placa onde tem dezenas de empresários que ajudaram a fazer a policlínica e assim eram os lucros, ele buscava dinheiro e auxílio para redundar em que... Auxílio ao operário.28 A creche dos Navegantes, ele foi feita assim com o auxílio da primeira dama, ajudado, criou a primeira creche importante em Porto Alegre, foi a Nossa Senhora dos Navegantes, que existe até hoje, só que hoje ela tem cento e poucas crianças, quanto na época tinha duzentos e cinqüenta e era importantíssima na época. Aí tu vê, foi muito importante a atuação do padre Valle com os círculos operário no Rio Grande do Sul, essa é a verdade. 29

Padre Valle tinha passagem livre no palácio Piratini, assim como com autoridades, de jeito simples e sereno, por onde andava, ia distribuindo suas medalhinhas de Nossa Senhora de Medianeira de Todas as Graças e balinhas. Assim, ia arrecadando recursos para financiar seus projetos junto aos Círculos Operários. As palavras de sua sobrinha, Benta Tonini, esboçadas por Dinara Paixão, demonstram a forma de atuação do padre Valle: 52

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“Eu nunca vi meu tio criticar governantes. Podia até ser ateu. Ele era muito discreto. E assim conseguia ajuda para as obras dele. Ele nunca se posicionou político-partidariamente. Ele não era de falar, era de trabalhar. Ele perseguia o objetivo até conseguir” 30.

Essa “liberação de acesso” não se destinava a todos os circulistas, muito pelo contrário, esse atendimento era, exclusivamente, ao representante eclesiástico junto ao movimento, fato que não ocorria aos demais representantes da diretoria laica. Claro que detinham seu reconhecimento, mas não ao mesmo nível do padre Valle31. Seu trabalho como Assistente Eclesiástico, mereceu o reconhecimento e admiração, por sua imensa obra social, que visou a melhoria da “qualidade de vida” dos operários circulistas. Empenhou-se pela formação educacional das crianças, adolescentes e jovens em tantas creches, escolas circulistas e na sua “Universidade do Trabalho”, onde ofereceu um dos primeiros cursos de Técnico em Eletrônica. E na área da saúde, foi o responsável pela criação nos círculos do interior de vários pontos de atendimento, com consultórios médicos e odontológicos e farmácias. Especialmente com a criação e a consolidação da Policlínica Santo Inácio que prestou e, ainda presta, relevantes serviços à população da região norte da cidade de Porto Alegre. Na figura abaixo, vemos a foto do padre Valle, Assistente Eclesiástico do Círculo Operário Portoalegrense e da Federação dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul.

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Figura 02

Fonte: Padre Inácio Valle. Arquivo do Santuário de Medianeira.

Sem dúvida alguma, foram os assistentes os que mais impulsionaram e se empenharam para o desenvolvimento do circulismo; da mesma forma, os clérigos assistentes dos núcleos se tornaram personagens ativos nas demais cidades. Também o padre Tronca teve importante atuação nos Círculos Operários Caxiense, iniciando em 1944 até o dia do seu falecimento em 1993, como também, em diversos segmentos da sociedade de Caxias do Sul. Porém, houve dois assistentes anteriores ao padre Tronca que abriram o caminho que ele solidificou e que permanece até a atualidade. Padre Orestes Silvio Valeta foi o primeiro Assistente Eclesiástico (1934-1940) e fundador do Círculo Operário Caxiense. Em 1934, padre Valeta procurou o padre Leopoldo Brentano, residente ainda em Pelotas, e trouxe a idéia do circulismo para Caxias dos Sul. Posteriormente, o padre Ernesto Mânica, assumiu a orientação dos circulistas caxienses de 19401944, lembra que as reuniões dos associados ao Círculo Operário Caxiense, eram realizadas no salão paroquial, existente na parte de baixo da catedral. “Estávamos semeando a semente”.32 Lembramos que, em sua maioria, os núcleos formaram-se de forma muito humilde de patrimônio e de pessoas 54

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para auxiliar, contavam essencialmente com esses “trabalhadores de batina”, que eram incansáveis em nome do circulismo. O padre ainda lembra que o Círculo Operário Caxiense foi criado para resolver os problemas dos operários sob a ótica cristã. “No início, havia muita exploração ao trabalho operário”, conta ele. Os Círculos pregavam colaboração de patrões e empregados com justiça social.33 O núcleo circulista caxiense foi instalado em 1934, com a presença do Padre Leopoldo Brentano, e se misturam com a história da própria diocese de Caxias do Sul, que foi criada no mesmo ano, quando foi nomeado Dom José Barea como responsável. No ano de 1944, o padre Ângelo Tronca assumiu, por indicação do padre Ernesto Mânico ao arcebispo, a função de Assistente Eclesiástico do Círculo Operário Caxiense, onde permaneceu na função até o dia de sua morte em 1993. Foi uma personalidade de destaque entre os circulistas, como, em toda a sociedade caxiense. Participava ativamente da política da cidade e detinha grande prestígio entre os comerciantes e donos de fábricas da região, sempre à busca de benefícios e auxílios aos operários e suas famílias. Padre Mânico reconhece que o Círculo Operário Caxiense deu um grande salto a partir do ingresso, como Assistente Eclesiástico, do padre Tronca. “Ele tinha o dom para o trabalho”, assegura o religioso.34 Da mesma forma, o primeiro Assistente Eclesiástico e fundador do moviemnto na região, padre Valeta fazer referência que “para ele, o grande batalhador das horas mais difíceis, que sempre deu o melhor de sí para o sucesso da instituição foi o padre Ângelo Tronca”.35 Em Caxias do Sul, muitos foram os incentivadores da obra assumida pelo padre Valeta, mas a atuação do padre Tronca sempre esteve embasado no serviço para o bem dos operários que devem ser, sempre, os principais beneficiados. Para isso, buscou, inúmeras vezes, recursos junto ao comércio, a indústria, políticos e empresários de Caxias do Sul. Em ata número 349 de 1945, da Associação Comercial e Industrial de Caxias do Sul responde a iniciativa do padre Tronca para adquirir uma sede própria ao Círculo Operário: A dias foi a Diretoria procurada pelo Rvdo. Pe. Tronca, orientador do Círculo Operário, que desejava saber como encararia a nossa entidade uma campanha da mesma em favor dos Círculos OperáriosCaxiense, no sentido de proporcionar a este meios financeiros para adquirirem um prédio para ser instalada a sua sede social e nela organizar também, de

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acordo com as finalidades do Círculo, gabinete médico, idem dentário, créche e outras iniciativas destinadas a proporcionar aos operários assistência social quanto possível. (...) Com a melhor bôa vontade e desejo sincero de ajudar o Círculo Operário que representa uma laborosa classe, fator primordial do progresso caxiense, chegou-se a conclusão de que a indústria e o comércio de Caxias poderiam comprar e oferecer o prédio para as atividades dos Círculos.36

O reconhecimento da importância do Círculo Operário para o desenvolvimento da cidade de Caxias do Sul, manifestado nesse documento, pelo comércio e indústria, foi o fator preponderante para que este núcleo circulista, permanecesse em próspera atividade até hoje. Na mesma ata, padre Tronca foi colocado como responsável pela compra do prédio para a sede do movimento caxiense e do recolhimento dos valores para o pagamento do mesmo, A Assembléia autorizou ao Rvdo. Pe. Tronca de fechar o negócio (...). As contribuições ficou combinado que seriam recolhidas pelo Rvdo. Pe. Tronca que as empregaria imediatamente no pagamento do prédio à medida que fosse obtendo quotas razoáveis.37

Desta forma, conseguiu a sede dos Círculos Operários (em 1947), bolsas de estudos para operários, verbas para oferecer cursos de corte e costura, tricô, bordado, datilografia, qualificação proficional em várias áreas, farmácia, entre outras atividades, para os circulistas e seus familiares. Tornando-se não apenas o nome de uma das avenidas da cidade, mas um dos atores que comporam a história da Serra Gaúcha. Na figura 03, vemos a foto do Assistente Eclesiástico do Círculo Operário Caxiense, no período de 1944 até o ano de 1993.

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Figura 03

Fonte: Assistentes Eclesiásticos do Circulo Operário Caxiense. Extraído do Círculo em Revista. Comemorativa aos 60 anos do COC. Caxias do Sul. Setembro /Outubro, Ano I, n. 3, 1994. p. 14.

O padre Leopoldo Brentano e seus Assistentes Eclesiásticos, muitas vezes, foram taxados de “comunistas” por seus colegas clérigos, que não viam com “bons olhos” a relação dos padres como o movimento operário. Este estranhamento, em parte, vinha da própria formação sacerdotal, que não os preparava para um contato maior com as classes operárias. Por conta disto, o próprio padre Leopoldo, juntamente com a Confederação Nacional de Operários Católicos, que presidia, editou diversos livros, com o intuito, de uma melhor formação para os padres, para que estes, ainda seminaristas, pudessem desenvolver o gosto pelo trabalho junto aos operários e suas famílias. Padre Leopoldo Brentano concluiu: Concluindo, podemos afirmar, sem exagero, que, no Círculo Operário, o clero, principalmente, o que paróquia em zonas mais, ou menos operárias, encontra um meio relativamente fácil de acudir ao apelo do papas: “Ide ao povo, ide ao pobre, para lhes prestar serviços e trazê-lo a Cristo”. No C.O. o padre, com relativamente pequeno dispêndio de tempo, presta, auxiliado pelos chefes e dirigentes, serviços variados ao povo, põe-se desta maneira em contato com ele, conquista-lhe o coração e abre um vasto campo para desempenho de sua missão espiritual. E esta tarefa se lhe facilita cada vez mais, à medida que o movimento circulista de serviços sociais bem articuladas entre si e transformando o ambiente operário.38

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O padre Leopoldo Brentano, buscou as palavras de Pio XI, para tentar chegar ao coração e ao bom censo dos eclesiásticos. Ao chamá-los para irem ao povo, aos que, realmente, precisariam dos olhares atentos da Igreja Católica. Era a tentativa de trazer o clero, não só para trabalho e convívio com os trabalhadores, mas padre Brentano tentava, com suas atitudes, atrair a atenção do clero, para que seguissem as palavras dos sumos pontífices. E assim, perceberem que a atuação junto às massas trabalahdoras se fazia necessárias e não significava o alinhamentos desses padres com os ideias do comunismo, muito pelo contrário. Todavia, este pensamento preconceituoso, não estava reservado ao clero gaúcho, era a cada fundação de um novo núcleo circulista reavivava o sentimento de serem considerados “santos” e “comunista”, de “Deus” e do “Diabo”. O trabalho destes padres, não era com o desejo de “quebrar a ordem”, muito pelo contrário, seu maior impulso foi para que a classe operária fosse conscientizada, valorizada e colocada em seu devido lugar na sociedade, Para os padres Leopoldo Brentano, Inácio Valle e Ângelo Tronca, que dedicaram décadas de suas vidas ao seu trabalho como Assistente Eclesiástico dos Círculos Operários, foi, verdadeiramente, o alvorecer de uma novo momento na história. Porque foi a fé inquebrantável no futuro e esperança no ser humano, que verdadeiramente movia esses homens. Sua atuação no meio social não era algo a acrescentar à sua fé e sim, decorrência dela.

FONTES: Ata da Associação Comercial e Industrial de Caxias do Sul. Caxias do Sul, 15 de setembro de 1945. nº 349. BRENTANO, Leopoldo. O fundador dos círculos, Padre Leopoldo Brentano, fornece alguns dados históricos. In: Copa em Revista. 20 Anos do Círculo Operário Porto Alegrense. Porto Alegre, n. 24. 1954. MÂNICO, Ernesto. O passado contado hoje por padre Mânica, aos 83 anos. Entrevista a Círculo em Revista. Comemorativa aos 60 anos do COC.

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Caxias do Sul. Setembro /Outubro, Ano I, n. 03, 1994. RUDUITE, Osvaldino. Os Círculos Operários no Rio Grande do Sul (1937-1945). [24 de setembro de 2007] Carla Xavier dos Santos, Porto Alegre. VALETA, Orestes. Padre Valeta foi o fundador. Entrevista a Círculo em Revista. Comemorativa aos 60 anos do COC. Caxias do Sul. Setembro / Outubro, Ano I, n. 03, 1994. VALLE, Inácio. História da devoção a Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças no Brail. In: Copa em Revista. 20 Anos do Círculo Operário Porto Alegrense. Porto Alegre, n. 24. 1954.

REFÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ANDRADE, Juracy. Padres Comunistas: o que pensa e por onde anda a Igreja de esquerda no Brasil. São Paulo: Terceiro Nome, 2006. BRENTANO, Leopoldo. O clero e a ação social. Rio de Janeiro: C.O.N.C., 1942. p.17. BRENTANO, Leopoldo. Modelo dos Estatutos para Círculos Operários. C.N.O.C., 1941 FARIAS, Damião Duque de. Em defesa da ordem: aspectos da práxis conservadora católica no meio operário em São Paulo(1930-1945). São Paulo: Editora Hucitec, 1998. FENOCCHI, Rodolfo. Círculo Católico. 120 Años acompañando el desarrollo del país. Montevidéu: s/ed. 2005. p.15. ISAIA, Artur César. Catolicismo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998 LEÃO XIII. Sobre a Condição dos Operários: “Rerum Novarum”. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1950 MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916/1985).

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São Paulo: Brasiliense, 1989. MENEZES, Carlos Alberto de. Ação social católica no Brasil. Corporativismo e sindicalismo. São Paulo: Edições Loyola, 1986. PAIXÃO, Dinara Xavier. Padre Ignácio Valle Sj. e a devoção à Nossa Senhora de Medianeira. Santa Maria: Palloti, 2003. SANTOS, Carla Xavier dos. “Nossa Senhora de Medianeira Rogai Por Nós”. A Relação do Estado Novo com a Igreja Católica através dos Círculos Operários no Rio Grande do Sul (1937-1945). Dissertação (Mestrado em História) PUCRS, Porto Alegre, 2008. SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários: a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002.

Notas 1 Mestre em História das Sociedades Ibéricas e Americanas, pelo Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atuação nas seguintes áreas de pesquisa: Estado Novo, Igreja Católica Brasileira (entre o pontificado de Leão XIII até o Conselho Vaticano II) e o Movimento Operário. Faz parte do CEJHA/PUCRS (Centro de Estudos e Jornadas em História Antiga), desde 2002, na organização da Jornada de Estudos do Oriente Antigo, sob coordenação da professora Dra. Margaret M. Bakos. Curriculum Lattes: <http:// lattes.cnpq.br/0954320041525907> Contato: carlaxaviers@hotmail.com 2 Doutrina Social da Igreja é o conjunto dos ensinamentos contidos no magistério da Igreja constante de numerosas encíclicas e pronunciamentos dos papas, inseridos na tradição multissecular, e que tem suas origens nos primórdios do Cristianismo. Ver mais em: MENEZES, Carlos Alberto de. Ação social católica no Brasil. Corporativismo e sindicalismo. São Paulo: Edições Loyola, 1986. 3 MAINWARING, Scott. Igreja Católica e Política no Brasil (1916/1985). São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 141 4 SOUSA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários: a Igreja Católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 60. 5 São Tomás de Aquino acreditava que por meio da razão seria possível chegar às verdades supremas. 6 SANTOS, Carla Xavier dos. “Nossa Senhora de Medianeira Rogai Por Nós”. A Relação do Estado Novo com a Igreja Católica através dos Círculos Operários no Rio Grande do Sul (1937-1945). Dissertação (Mestrado em História) PUCRS, Porto Alegre, 2008.

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7 ANDRADE, Juracy. Padres Comunistas: o que pensa e por onde anda a Igreja de esquerda no Brasil. São Paulo: Terceiro Nome, 2006. p. 10. 8 Idem, p. 09-10. 9 Idem p. 09 10 Laicado no atual uso cristão, este termo significa a condição ou o conjunto (normalmente organizado) dos leigos na Igreja, os membros do povo de Deus que não são clérigos nem religiosos. Ver mais em: <http://www.agencia.ecclesia.pt/catolicopedia/artigo.asp?id_entrada=342> (05/05/2008-12h:32min) 11 ISAIA, Artur César. Catolicismo e Autoritarismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1998. p. 128. 12 Idem, p. 129. 13 Idem, p.133-141. 14 BRENTANO, Leopoldo. O fundador dos círculos, Padre Leopoldo Brentano, fornece alguns dados históricos. In: Copa em Revista. 20 Anos do Círculo Operário Porto Alegrense. Porto Alegre, n. 24. 1954. p. 58. 15 Idem, p. 58. 16 BRENTANO, Leopoldo. Modelo dos Estatutos para Círculos Operários. C.N.O.C., 1941. p. 23-34. 17 BRENTANO, Leopoldo. Op. cit. p. 09. 18 FARIAS, Damião Duque de. Em defesa da ordem: aspectos da práxis conservadora católica no meio operário em São Paulo(1930-1945). São Paulo: Editora Hucitec, 1998. p. 193-194. 19 PAIXÃO, Dinara Xavier. Padre Ignácio Valle Sj. e a devoção à Nossa Senhora de Medianeira. Santa Maria: Palloti, 2003. p. 47-49. 20 SOUZA, Jessie Jane Vieira de. Círculos Operários: a Igreja católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. p. 204-205. 21 BRENTANO, Leopoldo. O clero e a ação social. Rio de Janeiro: C.O.N.C., 1942. p.134. 22 ISAIA, Artur César. op. cit, p. 128. 23 Para saber mais sobre a vida e as obras do padre Inácio Valle, como também sobre a romaria de Nossa Senhora de Medianeira, ver: PAIXÃO, Dinara Xavier. Padre Ignácio Valle Sj. e a devoção à Nossa Senhora de Medianeira. Santa Maria: Palloti, 2003. 24 VALLE, Inácio. História da devoção a Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças no Brail. In: Copa em Revista. 20 Anos do Círculo Operário Porto Alegrense. Porto Alegre, n. 24. 1954. p. 27. 25 Idem, p. 27. 26 Assistente Eclesiástico da Federação dos Círculos Operários do Rio Grande do Sul e professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). 27 RUDUITE, Osvaldino. Os Círculos Operários no Rio Grande do Sul (1937-1945). [24

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de setembro de 2007] Carla Xavier dos Santos, Porto Alegre. Ex-presidente do Círculo Operário Porto-Alegrense. O senhor Ruduite, nasceu em 1926 e desde os 13 anos, quando sua mãe associouse ao núcleo do Monte Serra dos Círculos Operários Porto-Alegrense (1939), começou a trabalhar para o círculo fazendo cobranças, e já em 1942, aos 17, tornou-se subdelegado circulista. 28 SANTOS, Carla Xavier dos. Op. cit., p. 95-96. 29 Idem, p. 175. 30 PAIXÃO, Dinara Xavier. Op. cit., p.52. 31 SANTOS, Carla Xavier dos. Op. cit., p. 96. 32 MÂNICO, Ernesto. O passado contado hoje por padre Mânica, aos 83 anos. Entrevista a Círculo em Revista. Comemorativa aos 60 anos do COC. Caxias do Sul. Setembro /Outubro, Ano I, n. 03, 1994. p. 15. 33 Idem. 34 Idem. 35 VALETA, Orestes. Padre Valeta foi o fundador. Entrevista a Círculo em Revista. Comemorativa aos 60 anos do COC. Caxias do Sul. Setembro /Outubro, Ano I, n. 03, 1994. p. 15-16. Originalmente parte desta entrevista foi retirada de outra, concedida pelo padre Valeta, à mesma revista , na edição de 50 anos dos C.O.C. 36 Ata da Associação Comercial e Industrial de Caxias do Sul. Caxias do Sul, 15 de setembro de 1945. nº 349, p. 01. 37 Idem, p. 02. 38 BRENTANO, Leopoldo. O clero e a ação social. Rio de Janeiro: C.O.N.C.,1942. p. 100.

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IMPRENSA E CENSURA DURANTE O ESTADO NOVO NO BRASIL: A VIGILÂNCIA TAMBÉM ATINGE A COLÔNIA PORTUGUESA Profa. Dra. Carmem G. Burgert Schiavon FURG - cgbschiavon@yahoo.com.br

A década de trinta do século XX, com Getúlio Vargas à frente do executivo nacional, inaugura uma nova fase nas relações luso-brasileiras, pois a partir deste momento verifica-se um processo de reaproximação entre os dois países. Com a implantação do Estado Novo no Brasil, em 10 de novembro de 1937, tendo por base as afinidades ideológicas e histórico-culturais, bem como o expressivo número de portugueses residentes no Brasil, acentuase este processo de aproximação. Desse modo, com base na retórica da afetividade, Portugal irá assumir a liderança nesse processo de ligação com o Brasil, visando a formação da comunidade luso-brasileira e o incremento nas relações entre os dois países. Assim, com base nas ligações histórico-culturais e na afinidade ideológica do regime estadonovista dos dois países, o governo português investirá no fortalecimento das relações luso-brasileiras. De acordo com o pensamento português, o fortalecimento das relações com o Brasil, era de suma importância, notadamente para que o país tivesse condições de abandonar a condição de país periférico e ocupasse uma posição de maior RIO GRANDE, 25 A 27 DE AGOSTO DE 2010

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destaque junto ao cenário mundial. Todavia, para isto, necessitava da construção de um Estado forte, com uma economia estável e, devido à falta de industrialização portuguesa, a manutenção do seu império colonial era um ponto inquestionável. Acontece que, com o deflagrar da Segunda Guerra Mundial, a onda anticolonialista irá adquirir forma. E, dentro deste contexto, a intensificação nas relações luso-brasileiras representa um alicerce no sentido da defesa de manutenção das colônias portuguesas. Além disso, o fato do Brasil ter sido colônia de Portugal constituía uma espécie de prova irrefutável da eficiência portuguesa no que respeita à administração dos seus impérios coloniais, pois “Portugal seria um fabricante de Brasis: um grande país, filho de Portugal e onde todas as raças, em permanente processo de miscigenação, coexistem harmonicamente”1. Em outras palavras, existia a necessidade de se mostrar que Portugal era eficiente na sua administração colonial2. Por outro lado, em escalas diferentes, essa intensificação nas relações luso-brasileiras também interessava ao Brasil, pois em face das graves crises econômicas e políticas que circundavam o cenário internacional – que teve como conseqüência direta um retraimento comercial – a perspectiva de um aprofundamento das relações envolvendo os dois países poderia incentivar o quadro das exportações brasileiras para o velho continente. Além disso, há que se registrar a questão do nacionalismo brasileiro e a relação deste com o elemento português, assim como o fato de que na iminência de um conflito mundial, a amizade luso-brasileira representava um elo entre o Brasil e a Europa. Nesta direção, constata-se que Vargas não apresenta imposições a esta intensificação nas relações entre Portugal e Brasil, até mesmo porque ela será aproveitada no projeto de construção do ideário nacionalista – fato este que fica evidente quando se avalia a política imigratória adotada no período 1  GONÇALVES, Williams da Silva. O realismo da fraternidade: Brasil-Portugal. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003, p. 89. 2  Nesta direção vale assinalar a obra Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, a qual aponta a colonização portuguesa como um empreendimento de êxito, inclusive, na forma como havia oportunizado a miscigenação no Brasil. Posteriormente, com a publicação da obra O mundo que o português criou, em 1940, Freyre sedimenta este posicionamento e vai além ao defender a superioridade portuguesa no que respeita à colonização em todos os lugares onde se processou. Em outras palavras, o posicionamento de Freyre avaliza a política colonial portuguesa.

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e as inúmeras concessões feitas aos portugueses. Assim, a aquiescência brasileira quanto às investidas portuguesas ocorre em virtude do fato de que a presença portuguesa no Brasil favorecia o desenvolvimento de uma política de valorização do elemento nacional3. Neste caso, em virtude do processo de colonização portuguesa, de todo um passado em comum, das afinidades lingüísticas e histórico-culturais, os portugueses poderiam ser equiparados aos brasileiros sem prejuízo da questão nacional4. Desse modo, é possível inferir que, no que se refere à posição portuguesa, o Brasil é visto como uma espécie de “extensão” do território português – levando-se em consideração o elevado número de portugueses aqui residentes e a necessidade de controle à colônia de portugueses residentes no território brasileiro. Aliás, este procedimento de vigília sobre a colônia portuguesa é exercido antes mesmo da saída dos emigrantes de Portugal, tendo em vista que “são inúmeros os decretos que demonstram a preocupação do regime em inspecionar aquele que embarca, realizando uma triagem cada vez mais qualitativa do emigrante”5. Além desse aspecto, ressalta-se o fato de que a colônia de imigrantes também precisa ser “doutrinada”, disciplinada, principalmente porque há “concorrência” externa, como bem atesta o Cônsul português de Pernambuco, Manuel Anselmo, no relatório sobre a sua visita oficial a Maceió: A Colônia Portuguesa de Maceió é pequena mas é ótima. Fui encontrála, porém, dividida. A grande maioria era já salazarista e disciplinada ás instruções superiores. Pessoas havia, porém, que, em comunicação com os maus elementos da América do Norte (Camoezas, por exemplo) e do Rio, formavam dos métodos governativos do nosso país uma idéia 3  De acordo com o próprio presidente Getúlio Vargas, a questão do nacionalismo esteve sempre presente em suas intenções, tanto que “desde que reassumi o Governo, ordenei que se reexaminasse o problema, dentro da orientação nacionalista de que nunca me afastei” VARGAS, Getúlio. O governo trabalhista do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1969, p. 156. 4  Com relação a este ponto, Amado Cervo informa que “o nacionalismo brasileiro não haveria de comportar qualquer atitude de isolamento, prevenção ou hostilidade, mas, pelo contrário, uma disposição congênita para varrer obstáculos externos e aprofundar a inserção no sistema internacional. Um nacionalismo à base da não-confrontação política e da cooperação econômica”. CERVO, Amado Luiz. O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 aos nossos dias. Brasília: Ed. da UnB, 1994, p. 20. 5  PAULO, Heloisa. Aqui também é Portugal – A colônia portuguesa do Brasil e o Salazarismo. Coimbra: Quarteto, 2000, p. 69.

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falsa e injusta. Tratei-os, a todos esses elementos, com um carinho redobrado e pude verificar, através deles, quanta falta têm feito, neste país, Cônsules com formação mental e política conforme com a hora nova de Portugal6.

A análise do relatório do representante consular também se torna instigante à medida que o Cônsul Manuel Anselmo deixa escapar alguns aspectos da vigilância portuguesa exercida sobre os lusitanos do além-mar, ao relatar o tipo de ação direcionada a estes, no momento em que, fazendo referência à ação deflagrada para com os portugueses que, no seu entender, “caluniavam” o governo português no Brasil, afirma: “obriguei os capitães desse partido a, num almoço íntimo só de portugueses, declararem-se arrependidos das afirmações anteriores, a que haviam conduzido por informações erradas, e a proclamar-se, com comoção, salazaristas”7. Deste modo, o governo português se utiliza de uma política de controle levada a efeito por meio – notadamente – dos representantes diplomáticos e consulares aqui residentes, visto que os “Consulados deveriam acompanhar com mais método e proximidade os nossos emigrantes estabelecendo os ficheiros em que atrás falo, premiando os que se mantivessem firmemente portugueses, desaconselhando-lhes a naturalização, de acordo com a Polícia Internacional”8. E é, justamente, esta postura por parte do governo português, que se observa com relação aos portugueses emigrados, residentes no Brasil. O ofício do Embaixador Martinho Nobre de Mello, enviado ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, Antônio de Oliveira Salazar, em setembro de 1940, também reafirma tais interesses. Na correspondência indicada, Mello faz referência à necessidade de “conter as atividades sempre perigosas de certos elementos como o ex-capitão Sarmento Pimentel e seus sequazes sempre em oposição pessoal a Sua Excelência”9. 6  Relatório do Consulado de Pernambuco, de 27 de fevereiro de 1943, p. 3. Ministério dos Negócios Estrangeiros (M. N. E.), 2º piso, Armário 48, Maço 233 A. 7  Idem. 8  Relatório de Augusto Pires de Lima, ao Presidente do Conselho, em 28 de maio de 1942. In: Correspondência entre Mário de Figueiredo e Oliveira Salazar. Lisboa: Presidência do Conselho, 1986, p. 91. 9  Ofício do Embaixador Martinho Nobre de Mello, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 10 de setembro de 1940. M. N. E., 3º piso, Armário 9, Maço 117.

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Um expressivo número de ofícios e telegramas emitidos pela representação diplomática e consular portuguesa no Brasil evidencia o “cuidado” de Portugal para com a sua colônia no Brasil. Neste sentido, torna-se ilustrativo o ofício emitido, em setembro de 1942, pelo Cônsul geral português, em São Paulo, ao Embaixador português Martinho Nobre de Mello. Neste, ele demonstra certa preocupação com a situação da intensa propaganda política dos aliados e seus partidários no Brasil, o que pode ser traduzido pelo temor relativo à perda de espaço no cenário brasileiro e, notadamente, na origem de problemas quanto à aceitação do regime político de Portugal. De acordo com o Cônsul, “há meses que se vem recebendo por via postal, inúmeros impressos de propaganda política, estrangeira, remetida pelo Rio de Janeiro e ‘Comitês’ de São Paulo”10; para ele, este expressivo número de impressos representa motivo de preocupação porque “toda esta ativa propaganda constitui um poderoso instrumento de indiscutível valor para procurar excitar a colônia, que, também, recebe aqueles manifestos e, servem aos agitadores (...) que poderiam estabelecer um Comitê português livre”11. Do lado português, um telegrama de Salazar, encaminhado para o Embaixador português no Rio de Janeiro, informa que o presidente do Conselho se mantinha atualizado e por dentro das questões internas ocorridas no Brasil, inclusive, emitindo parecer sobre o material enviado, como comprova um telegrama seu de 1945, de acordo com a afirmação de que “apreciei devidamente [a] entrevista [de] V. Exa. [no] Brasil-Portugal, [no] aludido ofício agora lido”12. Deste modo, como se pode verificar, por um lado, existe o desenvolvimento de uma política de controle sobre atitudes tidas como “contestatórias” do regime salazarista e, por outro, o estabelecimento de ações que visavam à exaltação do governo português ou da figura de Salazar. Este é o caso das solenidades realizadas no momento da inauguração dos quadros de Antônio de Oliveira Salazar no Brasil. Comentando sobre a solenidade de inauguração do retrato de Salazar, no estabelecimento comercial do 10  Ofício do Cônsul geral em São Paulo, ao Embaixador de Portugal no Rio de Janeiro, em 19 de setembro de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. 11  Idem. O grifo consta no original. 12  Telegrama nº 104, do Presidente do Conselho, à Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, em 15 de julho de 1945. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119.

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português Raul Fernandes Forte, em 19 de setembro de 1942, o Cônsul de Pernambuco deixa transparecer importantes aspectos da política salazarista desenvolvida no Brasil, objetivando “doutrinar” a colônia, tendo em vista que “esta inauguração constituiu o início de uma política em movimento. Dentro de meses, todos os estabelecimentos comerciais portugueses em Pernambuco terão o retrato de V. Exa. como símbolo da sua fidelidade à Mãe-Pátria”13. Seguindo esta orientação, a vigilância da colônia portuguesa também acontecia por meio do controle de artigos publicados na imprensa brasileira. Na sua maioria, estes textos ressaltavam o regime salazarista ou fatos que o colocassem em evidência, como é o caso da publicação das declarações feitas pelo Embaixador da Inglaterra, em Lisboa, por ocasião da realização de um banquete oferecido em honra a Salazar, momento em que a Embaixada portuguesa, no Rio de Janeiro, “de posse do texto completo do discurso, promoveu a sua publicação nos jornais ‘Voz de Portugal’ e ‘Brasil-Portugal’, os mais lidos pelos portugueses”14. Neste mesmo ofício, o Embaixador português ainda deixa transluzir que esta é uma prática rotineira, ao informar que utilizou “os serviços noticiosos de várias emissoras para pôr em foco aquele discurso, à semelhança do que se tem feito com os discursos de Vossa Excelência e outros assuntos de interesse nacional”15. A correspondência emitida pela representação diplomática portuguesa sediada no Brasil inclui, em seus relatórios e ofícios, a emissão de artigos publicados por membros da colônia lusa no país ou, ainda, aqueles que contém notícias que são tidas como relevantes para o regime salazarista. Tal fato

13  Ofício nº 179, do Cônsul de Pernambuco, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 22 de setembro de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. O Cônsul português ainda evidencia o seu trabalho relatando: “não oculto que tenho patrocinado com todo o calor essa iniciativa que tem merecido a maior simpatia às autoridades locais (...). Inaugurando, com todo o respeito e admiração, o retrato do seu Chefe, os portugueses daqui afirmam inequivocamente que não pretendem furtar-se aos seus deveres para com a Mãe-Pátria”. Idem. 14  Ofício nº 80, do Embaixador português no Rio de Janeiro, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 9 de julho de 1945. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 121. 15  Idem. O grifo não consta no original.

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ocorre, por exemplo, com a publicação do artigo “O Escudo”16, de Cristóvam Dantas, no jornal Diário da Noite. Este artigo foi encaminhado para Portugal porque sua publicação “causou uma enorme e agradável impressão nos meios intelectual e político paulistano e o seu autor tem recebido fartos aplausos e cumprimentos pela maneira como se refere a Portugal”17. A opinião contrária a este posicionamento também pode ser constatada. As notícias de críticas ao governo português de igual forma são evidenciadas na correspondência encaminhada pelo corpo diplomático e consular português no Brasil. Este é o exemplo do artigo “A vez de Portugal”18, publicado pela revista semanal Ilustração, o qual, além de considerar Salazar como um “fascista de segunda ordem”, questiona os rumos da situação portuguesa após o término da Segunda Guerra Mundial, já que com a “derrota do nazismo na Europa, Portugal deverá ter plena liberdade para continuar mantendo o seu regime declaradamente totalitário, infelicitando seu povo que há mais de uma década vive mergulhado na miséria e na servidão mais abjeta”19. Em alguns casos, o remetente (o Embaixador ou algum Cônsul português no Brasil) menciona suas atitudes com vistas a neutralizar tal elemento ou situação. Um exemplo desta atitude flagrante de intervenção salazarista foi informado pelo Cônsul geral português em São Paulo, no momento em que ele noticia que o Dr. J. Batista de Souza, diretor da seção de imprensa do Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda (DEIP), havia comunicado-o “ter em seu poder quatro artigos procedentes do Rio de Janeiro e destinados à publicidade no

16  Neste artigo, Cristóvam Dantas tece inúmeros elogios à política de neutralidade adotada por Portugal com relação ao conflito da Segunda Guerra Mundial, inclusive, segundo o autor, esta foi uma medida acertada porque “não participando até agora do conflito, a sua atuação mostrouse, todavia, de tal forma inteligente e proveitosa que aliviou sobremaneira a tarefa de guerra dos povos aliados, em um setor fundamental do Mediterrâneo e do Atlântico”. Jornal Diário da Noite, São Paulo, em 2 de julho de 1943, p. 2. 17  Ofício nº 435, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 2 de julho de 1943. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. 18  Ofício nº 503, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 23 de junho de 1944. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Neste ofício, o Cônsul geral português, chama a atenção para o fato de que “a edição deste artigo se esgotou nesta Capital”. Idem. 19  A vez de Portugal. In: Revista Ilustração, nº 30, março de 1944, p. 1.

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vespertino local ‘A Gazeta’ e cuja publicação foi sustada em nossa atenção”20. Sobre a prática do referido jornal, o ofício emitido pelo Cônsul esclarece, ainda, que “os nossos amigos de ‘A Gazeta’ esforçam-se, em face da guerra mundial, em afastar recriminações ou acusações a Portugal, dando preferência a tudo quanto respeita a um maior entendimento entre os dois países irmãos”21. Além desse aspecto, o desenvolvimento de ações que desfaçam ou neguem a presença portuguesa no Brasil são imediatamente comunicadas a Portugal. Esse é o caso, por exemplo, da notícia veiculada no jornal O Estado de São Paulo, sobre a desaprovação do Instituto Histórico e Geográfico referente à execução de um monumento ao Pe. Anchieta como o fundador da cidade de São Paulo, ignorando o feito do Pe. Manuel da Nóbrega pois, este, no entendimento do Cônsul geral português, é o “verdadeiro fundador, de nacionalidade portuguesa e a quem cabe aquela homenagem”22. Nesta direção, os ofícios confidenciais deste período, em sua maioria, identificam o alerta feito pelo corpo diplomático e consular no Brasil, no sentido da execução de possíveis manifestações contrárias ao regime. Inclusive, a documentação enviada para Portugal ressalta a prática da coibição destas. Não obstante, o contrário também ocorre. Verificam-se gratificações às manifestações favoráveis ao regime; pessoas ilustres e/ou influentes junto à colônia portuguesa no Brasil recebem comendas ou são colocadas em evidência. Além disso, as ações de portugueses, que vangloriam o governo português, também encontram respaldo junto à correspondência enviada pela representação diplomática e consular portuguesa no Brasil. Exemplo desta afirmação é o ofício de 27 de fevereiro de 1943, no qual o Cônsul Manuel Anselmo relata a realização da conferência do Dr. Francisco Patti – Diretor do Departamento Municipal de Cultura de Recife – intitulada “Influência da Literatura na Medicina”, momento em que o conferencista, por ter se referido “em termos sumamente elogiosos, a vários escritores portugueses, inclusive 20  Ofício nº 184, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 11 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119. De acordo com o Cônsul geral, os artigos intitulavam-se “A política internacional luso-espanhola”; “Um aviso de toda a oportunidade”; “Em Portugal começa a sentir-se a guerra”, e outro “Sobre a tendência nazista do governo português e a questão do Timor”. 21  Idem. 22  Ofício nº 95, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 23 de abril de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68.

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ao dr. Fidelino de Figueiredo”23, recebe elogios e respaldo dos portugueses moradores no Estado de Pernambuco. Assim, a busca pela adesão dos emigrantes portugueses aos pressupostos do regime salazarista constitui uma linha de ação do corpo diplomático sediado no Brasil. Para isto, os meios de comunicação – notadamente a imprensa – são vistos como mecanismos muito importantes no sentido de doutrina e vigília sobre a colônia portuguesa no território brasileiro24. Deste modo, os jornais ligados ao regime salazarista procuram neutralizar qualquer tipo de influência negativa aos preceitos do governo português e, para isto, contavam com o apoio de importantes meios de comunicação no Brasil. Dentro desse contexto, aponta-se que a imprensa representa um importante instrumento de reprodução da ideologia do regime salazarista junto à colônia de imigrantes portugueses no Brasil, “quer através da propaganda direta dos regimes de Lisboa, quer através da reprodução dos valores comuns da sociedade portuguesa, destinada aos filhos de imigrantes”25. Durante o Estado Novo brasileiro, o jornal que mais se destaca no exercício deste papel é a Voz de Portugal26; com o passar do tempo, este periódico tornar-se-á “a expressão totalitária da Pátria distante”27. O jornal Brasil-Portugal28, fundado no Rio de Janeiro, em abril de 1944, era dirigido por Viriato Dornelles Vargas, irmão do presidente Getúlio Vargas. Muito embora a defesa do regime salazarista e o respaldo evidenciado à colônia portuguesa no Brasil, o jornal citado não constitui um órgão de efetivação da aproximação luso-brasileira. Contudo, o citado periódico publicava, com muita freqüência, o resumo dos discursos proferidos por 23  Relatório do Consulado de Pernambuco, de 27 de fevereiro de 1943, p. 3. M. N. E., 2º piso, Armário 48, Maço 233A. 24  A historiadora Heloisa Paulo ressalta que, além da imprensa, o rádio, o teatro e a televisão também constituíram elementos porta-vozes da ideologia salazarista para a colônia portuguesa. Sobre o assunto, ver: PAULO, Heloisa. Aqui também é Portugal – A colônia portuguesa do Brasil e o Salazarismo. Op. cit., pp. 204-215. 25  Idem, p. 189. 26  O jornal Voz de Portugal, fundado em abril de 1936, surgiu a partir de uma cisão entre o Dr. Mário Moreira Fabião e Henrique Ferreira Lopes, diretores do periódico Diário Português, e o seu fundador, Crisóstomo Cruz. 27  Jornal Voz de Portugal, Rio de Janeiro, em 11 de abril de 1936, p. 2. 28  O jornal Brasil-Portugal existiu durante o período de abril de 1944 até o ano de 1948.

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Salazar, em Portugal. Aliás, este foi um dos mecanismos encontrados pelo regime português para “refutar de vez a insidiosa campanha de críticas à nossa política externa movida por emigrantes políticos, com erros e falsidades históricas engenhosamente arquitetados e alimentada por boa parte dos jornais deste país”29. Com relação a este jornal, há que se fazer menção à sua importante atuação no que diz respeito à crítica aos portugueses exilados políticos no Brasil por ocasião da sua reunião na sede da União Universitária, cuja pauta seria a definição do pensamento português em prol do antifascismo, porque, a partir deste momento, o jornal Brasil-Portugal “abriu [uma] violenta campanha contra esses portugueses que fazem política fora [da] sua terra, mormente quando ela toma aspecto vingativo chegando [a] reclamar medidas enérgicas para fazer terminar o Estado Novo”30. Assim, o apoio desses periódicos ao Estado Novo português, seja por meio de publicações que ressaltem e exaltem o regime salazarista ou pela coibição de notícias que “maculem” a imagem portuguesa, tem sua razão de ser, afinal, estes jornais têm relação quase que direta com o governo brasileiro e esta oposição ao governo português poderia refletir-se no Estado Novo brasileiro. Desse modo, constata-se que o controle exercido por Salazar apresentava uma dimensão mais profunda e ultrapassava a linha dos discursos. O expressivo número de recortes de jornais, artigos publicados por membros ligados à colônia, encaminhados para Portugal via sua representação diplomática e consular no Brasil comprovam tal afirmativa. Todavia, além da imprensa, para o exercício deste trabalho de vigilância, os representantes diplomáticos e consulares portugueses buscam, também, apoio em outras frentes. Nas festividades de batismo do avião Lusitânia – cujo padrinho era o Almirante Gago Coutinho – em abril de 1943, o escritor Assis Chateaubriand proferiu um discurso condenando a designação de estrangeiros aos portugueses, concitando “a nossa juventude a que nunca tolere que se chame de estrangeiro a um português. Nossa individualidade é 29  Ofício do Embaixador de Portugal, Martinho Nobre de Mello, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 29 de maio de 1940. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. 30  Trecho do Telegrama nº 102, do Embaixador de Portugal no Rio de Janeiro, em 24 de abril de 1945. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 121.

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lusitana e a preservação dessa individualidade é essencial”31. Este discurso levou o Cônsul de Portugal em Recife, Manuel Anselmo, a defender o “aliciamento” de Chateaubriand à causa portuguesa, argumentando que “este homem, que tem 18 diários em todo o Brasil e dispõe de uma influência poderosíssima, precisa ser acarinhado na imprensa portuguesa”32, ou seja, de acordo com o Cônsul português, o apoio de Chateaubriand apresenta-se como fundamental para conter “o perigo que paira sobre a cultura portuguesa nestas terras”33. Uma outra face deste processo de busca pela adesão dos emigrantes portugueses no Brasil consiste na exaltação a Portugal ou a fatos, pessoas, festas etc. cujos interesses portugueses podem ser evidenciados. Este parece ser o caso do monumento erigido a Luís de Camões, no átrio da Biblioteca Municipal de São Paulo34. Todavia, “mais contundente, porém, é a busca do controle dos principais postos das associações da colônia, como nos casos do Clube Português, da Casa de Portugal, da Câmara Portuguesa de Comércio e do Centro Transmontano”35, tendo em vista que eles constituem importantes mecanismos de vigília e doutrinação da colônia portuguesa no Brasil. Assim, a colônia portuguesa era subvencionada por meio das suas associações e pela representação oficial portuguesa residente no país, formando-se uma espécie de policiamento das atividades desenvolvidas pelos membros da colônia no território brasileiro. Com relação à adoção destas ações, o Cônsul geral português corrobora este pensamento ao informar que: (...) só se poderá conseguir por uma série de manifestações cívicas, constantes, não só na capital como nos aglomerados do interior, trabalho insano por nós iniciado, desde o ano de 1937 e mantendo a atuação brilhante da “Casa de Portugal” com as suas conferências da alta cultura 31  Ofício, confidencial, do Cônsul de Pernambuco, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 6 de abril de 1943, p. 1. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. 32  Idem. 33  Ibidem. 34  O monumento custou, aproximadamente, 40 contos de réis e foi realizado por meio de uma subscrição entre a classe de comerciantes e outras figuras da elite portuguesa de São Paulo. Ofício do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 14 de novembro de 1941. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. 35  PAULO, Heloisa. Aqui também é Portugal – A colônia portuguesa do Brasil e o Salazarismo. Op. cit., p. 96.

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luso-brasileira e a “Caravana de cooperação intelectual luso-brasileira” nas suas excursões ao interior do Estado, visitando os núcleos coloniais portugueses36.

Além da imprensa, as notícias veiculadas por emissoras de rádio no Brasil também constituem objeto de atenção – leia-se procura de controle – do governo português. Este tipo de intervenção portuguesa pode ser exemplificado pela ação consular ocorrida após o comentário “indigno” difundido pela Rádio Sociedade Farroupilha, de Porto Alegre, a propósito da conferência realizada em Sevilha entre Salazar e o Franco37. Nesta direção aponta-se a atitude consular portuguesa promovida no sentido de repelir o fato, de modo que “de tão insólito ataque chamei desde logo a atenção do governo deste Estado para a inconveniência daquele comentário, tendo-me o Secretário do Interior assegurado que sem demora seriam tomadas as necessárias providências”38. E, Miguel Tostes, Secretário do Interior do governo do Rio Grande do Sul, em seguida, esclarece sobre a atitude executada com relação à solicitação do Cônsul português: Levando na devida consideração o pedido que, verbalmente, formulastes, a propósito de comentários feitos pela Rádio Sociedade Farroupilha, cientifico-vos de que tomei a respeito as necessárias providências, junto à Repartição Central de Polícia, que acaba de comunicar-me haver aquela difusora, em virtude das medidas postas em prática pela censura, resolvido suspender o noticioso que habitualmente costumava

36  Anexo ao Ofício nº 743, do Cônsul português em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 14 de dezembro de 1939. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. 37  Com relação a Portugal, o comentário difundido pela Rádio Sociedade Farroupilha aludia que “seu regime é corporativo como o de Mussolini. E o deste, como se sabe, não pode ser criticado, nem presta contas de seus atos a ninguém, embora haja em Roma, como em Berlim, um arremedo de Parlamento. Na Alemanha, na Itália, na Espanha e em todos os regimes fascistas, o povo não tem o direito de saber de que maneira são geridos os negócios públicos, de que forma é empregado o suor que o Fisco lhe pede ou lhe tira. As decisões do chefe nacional são dogmas (...)”. Anexo 1 ao Ofício nº 39, do Cônsul português em Porto Alegre, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 18 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119. 38  Ofício nº 39, do Cônsul português em Porto Alegre, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 18 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119.

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irradiar39.

Dessa forma, como já foi evidenciado neste texto, os Consulados constituíam foco de vigilância constante da colônia portuguesa no Brasil. Entretanto, suas atribuições abrangiam uma profundidade maior. Por um lado, há um incremento nestas atividades no sentido da publicação de material de propaganda do governo. E, por outro, desenvolve-se uma série de eventos nos Consulados e Embaixada, que objetivam a promoção do emigrante, bem como a sua incorporação em atividades sociais, as quais permitam ao cidadão ausente da Pátria uma possibilidade de torná-lo membro participativo dentro do projeto do Estado Novo português. Assim, verifica-se que as autoridades consulares trabalham na direção do reforço da identidade portuguesa, mesmo que distante da Pátria-mãe, e que a imprensa constitui um dos principias mecanismos desse controle, como foi atestado no decorrer deste texto.

Referências bibliográficas CERVO, Amado Luiz. O desafio internacional: a política exterior do Brasil de 1930 aos nossos dias. Brasília: Ed. da UnB, 1994. Correspondência entre Mário de Figueiredo e Oliveira Salazar. Lisboa: Presidência do Conselho, 1986. GONÇALVES, Williams da Silva. O realismo da fraternidade: BrasilPortugal. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2003. PAULO, Heloisa. Aqui também é Portugal – A colônia portuguesa do Brasil e o Salazarismo. Coimbra: Quarteto, 2000. VARGAS, Getúlio. O governo trabalhista do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1969.

39  Anexo 2 ao Ofício nº 39, do Cônsul português em Porto Alegre, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, em 18 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119.

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Fontes consultadas no Arquivo do Ministério dos Negócios Estrangeiros (M.N.E.), em Lisboa Anexo 1 ao Ofício nº 39, do Cônsul português em Porto Alegre, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 18 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119. Anexo 2 ao Ofício nº 39, do Cônsul português em Porto Alegre, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 18 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119. Anexo ao Ofício nº 743, do Cônsul português em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 14 de dezembro de 1939. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Jornal Diário da Noite, São Paulo, 2 de julho de 1943. Jornal Voz de Portugal, Rio de Janeiro, 11 de abril de 1936. Ofício do Cônsul geral em São Paulo, ao Embaixador de Portugal no Rio de Janeiro, de 19 de setembro de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Ofício do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 14 de novembro de 1941. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Ofício do Embaixador de Portugal, Martinho Nobre de Mello, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 29 de maio de 1940. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Ofício do Embaixador Martinho Nobre de Mello, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 10 de setembro de 1940. M. N. E., 3º piso, Armário 9, Maço 117. Ofício nº 179, do Cônsul de Pernambuco, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 22 de setembro de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Ofício nº 184, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 11 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119.

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Ofício nº 39, do Cônsul português em Porto Alegre, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 18 de março de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119. Ofício nº 435, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 2 de julho de 1943. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Ofício nº 503, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 23 de junho de 1944. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Ofício nº 80, do Embaixador português no Rio de Janeiro, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 9 de julho de 1945. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 121. Ofício nº 95, do Cônsul geral em São Paulo, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 23 de abril de 1942. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Ofício, confidencial, do Cônsul de Pernambuco, ao Presidente do Conselho e Ministro dos Negócios Estrangeiros, de 6 de abril de 1943. M. N. E., 2º piso, Armário 50, Maço 68. Relatório do Consulado de Pernambuco, de 27 de fevereiro de 1943. M. N. E., 2º piso, Armário 48, Maço 233 A. Revista Ilustração, nº 30, março de 1944. Telegrama nº 102, do Embaixador de Portugal no Rio de Janeiro, de 24 de abril de 1945. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 121. Telegrama nº 104, do Presidente do Conselho, à Embaixada de Portugal no Rio de Janeiro, de 15 de julho de 1945. M. N. E., 2º piso, Armário 47, Maço 119.

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A EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUAS “RIMAS” COM A ARTE MUSICAL UMA PROPOSTA PEDAGÓGICA ENTRE MÚSICA E EDUCAÇÃO AMBIENTAL Daniel Porciuncula Prado1

A Educação Ambiental como Estratégia para a Superação de Conflitos

Após a segunda grande guerra, especialmente na década de 1960, há a emergência no plano político de variados movimentos sociais, como o feminismo, a luta pelos direitos civis das minorias negras, movimentos estudantis, movimento hippie dentre outros, que buscavam a partir de suas especificidades, questionar os modelos sociais de então. Neste contexto de Guerra Fria (campo socialista versus campo capitalista), conflito no Vietnã e crescimento dos meios de comunicação via satélite, surge o movimento ecológico. À época, temas tão diversos como energia nuclear, desenvolvimento sustentável, desmatamento, extinção de baleias e proteção e conservação de biomas estavam na pauta do ambientalismo, sendo que a estes se agregaram 1  Músico. Historiador. Dr. em Educação Ambiental (FURG). Professor dos cursos de História Licenciatura, História Bacharelado do Patrimônio Socioambiental e do Programa de Pósgraduação em Educação Ambiental da Furg.

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outros neste início de século XXI, como o efeito estufa (aquecimento global), reservas extrativistas, biodiversidade, amazônia, transgenia, patrimônio genético, preservação de recursos naturais, justiça social e energias renováveis. Neste arcabouço de expansão do movimento e das várias vertentes do pensamento ecológico, surge a educação ambiental, enraizando-se na interdisciplinaridade e na busca de novas metodologias. Embora marcando do ponto de vista geológico presença recente, nossa interação junto aos biomas tem sido profundamente marcada por desequilíbrios que se radicalizaram com a revolução industrial e a expansão das sociedades urbano-industriais e do chamado mercado. No interior de muitas sociedades ocidentais ainda persiste a ideologia do crescimento ilimitado, com a adoção da aceleração da produção material em detrimento das possibilidades dos ecossistemas, que sabemos não serem infinitas tornando o modelo social insustentável à médio e curto prazo pois os recursos naturais não podem reproduzir-se na velocidade exigida pelo ritmo de produção e o planeta não possui capacidade de absorver os detritos gerados na forma de lixo, poluição etc, ocasionando gravíssimos problemas socioambientais. Neste contexto se afirma a EA como uma ferramenta, uma prática social que pretende não somente a incorporação da dimensão ambiental na educação, mas em todo o tecido social, projetando e almejando novos paradigmas e valores culturais, repensando a relação intrínseca, indissociável entre espécie humana e o restante da ecosfera. Portanto, uma das facetas da EA é justamente sua capacidade de promover intervenção, sendo o “tom” metodológico a participação da comunidade/grupo. Não se “ensina” EA, mas constroe-se coletivamente através de diagnósticos socioambientais, na intervenção em conflitos, na valorização do sentimento de pertencimento à casa Terra e ao conjunto dos elementos que a formam. e também na relação com o lúdico, utilizando-se da diversidade artística. Pode-se refletir se a crise ambiental posta diante da humanidade não seria uma crise civilizatória. A superação da diversidade de problemas exigirá mudanças de postura, de concepções de mundo, de um novo olhar com relação ao meio natural, e nesta nova relação, a percepção de que a espécie humana não é o centro do mundo, mas sim parte desta.

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Diversas são as possibilidades de saídas, novas formas de produção, combate ao consumismo, adoção de vida frugal, e neste universo, a educação possui importante papel de desempenho. Já ao final dos anos de 1960 fóruns ligados ao poder econômico como o Clube de Roma apontavam para necessidade de uma educação ambiental. Porém, oficialmente a EA começará a se definir em termos metodológicos e conceituais na década posterior nas Conferências de Estocolmo (1972) e Tibilisi (1977), tendo sua continuidade nos anods 80 e 90 (Rio-92), e mais recentemente nos Fóruns Sociais Mundiais. No Brasil, percebemos dois importantes marcos legais. Com a promulgação da constituição em 1988 é aprovado o capítulo Meio Ambiente (artigo 225), determinando a promoção da EA nos diversos “níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”2, e em 1999 com a sanção da Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA). A institucionalização da EA tem gerado uma diversidade na aplicação da EA, desde sua utilidade junto aos movimentos ambientais que remontam aos anos 60 e 70, através de denúncias e ações militantes que impactavam a opinião pública, passando pelo seu viés altamente naturalizante e conservacionista até recentemente sua aplicabilidade nas escolas, com estudos de caso. Porém entendemos que a escola não se caracteriza como único agente de ambientalização do tecido social, pois informações veiculadas pela mídia exercem grande influência, através de rádio, tv, imprensa escrita etc, sendo inegável sua importância no desencadeamente do debate. Se por um lado o apelo midiático incentiva o consumismo, violência, derperdício, preconceito, também encontramos elementos, mesmo que muitas vezes isolados nesta mesma mídia, nos apontam para a reflexão. Desde meados da década de 1990, o governo federal brasileiro através do Ministério da Educação tem instituído os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN’s). Levando-se em conta as diversidades regionais, culturais e políticas existentes no país, os PCN’s apresentam um conjunto de temas para a construção de referências nacionais comuns ao processo educativo

2  Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988. Pg.100.

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em todas as regiões brasileiras3. Tais temáticas são denominadas de temas transversais: Ética, Pluralidade Cultural, Saúde, Orientação Sexual, Trabalho e Consumo e Meio Ambiente. A idéia de transversalidade com relação aos temas propostos pelos PCN’s e, especificamente ao Meio Ambiente requer o entendimento de uma necessária impregnação em toda a ação educativa, não mais fragmentada em algumas disciplinas, mas assumida por todo o currículo em articulação com o conjunto da comunidade/bairro onde a escola está inserida. O desafio da EA está em ocupar espaços não somente nas tradicionais ciências e geografia, mas na literatura, ensino da língua portuguesa, matemática, educação física e artes. No que tange ao ensino das artes, nas suas mais variadas formas de expressão, promovendo a apreciação, sensibilização e integração com o meio ambiente. Para Brant (ecologia e artes plásticas p.18), a relação entre natureza e homem começa desde o período das sociedades primitivas, sendo refletida tal interação através da arte, com nas pinturas rupestres, mais recentemente com o advento das sociedades modernas, a paisagem natural tornou-se como pano de fundo para retratos ou cenas. Ao longo da história da arte ocidental, a relação arte x natureza refletiu momentos diferentes, ora de maior ora de menor reciprocidade, tal afirmação, para Brant, configura-se mais pontualmente entre artistas plásticos, onde do ponto de vista ecológico, dividem-se entre os estetas, que pintavam paisagens inspirados em sua forma plástica, e os documentadores, como um registro da flora e fauna e que ecologia em um sentido de preocupação com preservação do meio natural começa a ser uma tônica entre artistas a partir das décadas de 60 e 70. A Música como Ferramenta na Educação Ambiental A dimensão do ambiente não deve ser considerado objeto de estudo isolado em cada disciplina, mas parte de um projeto político pedagógico 3  Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiros e quartos ciclos: apresentação dos temas transversais/Secretaria de educação fundamental – Brasília: Mec/Sef, 1998. Pg. 06. Segundo o Programa Nacional de Educação Ambiental (PronEA), os PCN constituem-se como um subsídio para apoiar a escola na elaboração do seu projeto educativo, inserindo procedimentos atitudes e valores no convívio escolar, bem como a necessidade de tratar de alguns temas sociais urgentes, de abrangência nacional.

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que perpassa os aspectos físicos, biológicos, sociais e culturais4, e o estudo e utilização das artes possuem papel preponderante nesta transversalidade do conhecimento. No campo da linguagem musical, pode-se capturar o interesse dos estudantes, ampliar sua sensibilidade com o tema, o ambiente natural e mesmo inspirar à ações de defesa e denúncia. Em muitas organizações sociais do passado e mesmo em culturais orientais do mundo moderno, acreditava-se que a música estava vinculada ao funcionamento do cosmos, fornecendo conexão entre o homem e o mundo natural e o conjunto do universo, pois então como elemento ordenador endógeno às sociedades e como vínculo com o espiritual. A própria dinâmica dos ecossistemas produz sons característicos e, sem entrarmos no debate se podemos considerar tais sonoridades como música, o fato é que várias sociedades a consideram e tais sons acabam sendo incorporados e imitados através de instrumentos tradicionais. Uma variedade infindável de animais e seus sons produzidos estão incorporados ao imaginário, sons de pássaros, de baleias, de primatas, o uivo dos lobos, coaxar dos sapos, sons de grilos e cigarras etc. A própria música regionalistas brasileira, culturalmente plural, como a caipira, a sertaneja, a nativista etc trazem elementos sonoros dos ecossistemas locais em suas melodias, quando não temas dedicados a estes aspectos de fauna e flora e a relação entre homem e seu meio natural. Além dos sons produzidos pelos animais, também podemos resgatar os chamados “barulhos” sonoridades das ondas do mar, dos ventos, da chuva, do bater das folhagens, dos trovões etc. Tais sonoridades são captadas da natureza ou mesmo reproduzidas através de instrumentos musicais (sintetizadores) e transportados para cd’s e comercializados pelo mercado fonográfico. Tanto os sons da natureza animada como inanimada podem auxiliar no processo educativo, seja não apenas pelo aspecto do “relaxamento mental” a que proporcionam, mas principalmente em ambientes mais urbanizados (ecossistemas urbanos de pouca prática frugal e alta dependência de tecnologia, eletroeletrônicos) ajudam a uma maior conexão com a natureza e à criação de um sentimento de pertencimento, de sustentabilidade. 4  SATO, Michele. Educação Ambiental. São Carlos: Rima, 2002. Pg. 24.

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Tais sons podem ser executados em grupos desenvolvendo-se a habilidade de percepção de espécies que o produzem, identificando a diversidade de pássaros e suas características específicas, da importância e funcionalidade destes na cadeia ecológica. Com a sonoridade produzida pelas águas (ondas, chuvas, cachoeiras, córregos etc), podemos gerar reflexões sobre preservação das águas, ciclo das águas, impactos sobre transposições e obras de irrigação, construções de barragens, biodiversidade aquática etc. A proposta de audição das sonoridades do meio natural portanto não fecham-se em si próprias, mas são instrumentos geradores de temas, promovendo a reflexão, sensibilização e debate, devendo estar articuladas com outras metodologias. Tais atividades podem ser realizadas no próprio espaço da sala de aula, em palestras, mini-cursos etc. Outra faceta importante que destacamos são os temas ambientais abordados na música popular brasileira, e pelo fato de circularem nas diversas mídias, podem auxiliar no processo de sensibilização e construção do conhecimento. Será destacado a seguir um conjunto de composições que julgamos mais conhecidas e apropriadas para a proposta deste trabalho. Destacamos: América Latina Talvez um dia não existam aramados e nem cancelas nos limites das fronteiras talvez um dia milhões de vozes se erguerão numa só voz desde o mar às cordilheiras da mão do índio explorado aniquilado ao camponês mãos calejadas e sem terra do peão rude que humilde anda changueando e dos jovens que sem saber morrem nas guerras América latina latino américa de sangue e suor talvez um dia os gemidos das masmorras e o suor dos operários e mineiros

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vão se unir à voz dos fracos e oprimidos e às cicatrizes de tantos guerrilheiros talvez um dia o silêncio dos covardes nos desperte da inocência destes anos e o grito de sepé na voz do povo vai nos lembrar que esta terra ainda tem dono e as sesmarias de campo e riqueza que se concentram nas mãos de pouca gente serão lavradas pelo arado da justiça de norte a sul do latino continente A música América Latina, composta pelos músicos Francisco Alves e Huberto Zanatta e interpretada pelo cantor uruguaio Dante Ramon Ledesma, proporciona a uma reflexão socioambiental sobre o continente latino americano, inserindo-nos na temática das históricas injustiças sociais a que a região foi submetido. Podemos alencar temas como modelo de propriedade agrária e os conflitos que daí emergiram; situação indígena; guerras civis e golpes militares. Ao mencionar as palavras “mar” e “cordilheiras”, é possível refletir sobre os “temas recursos naturais” e “acidentes geográficos”, relacionando-os com a formação histórico-cultural das diversas sociedades e atores sociais que ocuparam o continente latino-americano. Lagoa dos Patos Lá no fundo da lagoa Dorme uma saudade boa Longe desse céu sereno O coração pequeno E vazio ficou Sei que a vida içou as velas Mas em noites belas Sou navegador Lá no fundo da lembrança Dorme um resto de esperança

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De voltar à vida a toa A beira da lagoa Só molhando o pé Seja em Tapes São Lourenço Barra do ribeiro ou Arambaré Lagoa dos Patos Dos sonhos dos barcos Mar de água doce paixão Ah essa canção singela Eu fiz só pra ela Não me leve a mal Ela que é filha da lua Que ilumina as ruas Lá do laranjal Escrita e cantada por Kleiton e Kledir Ramil, a canção Lagoa dos Patos possibilita-nos um olhar lúdico sobre a laguna localizada no extremo sul do Brasil, proporcionando o exercício do sentido de pertencimento à uma região. Além de citar várias localidades que se estruturaram no entorno da laguna (Arambaré, Laranjal, Tapes, São Lourenço e Barra do Ribeiro), a canção motiva a pesquisas sobre o imenso patrimônio ambiental da região, englobando biodiversidade, situação pesqueira, Estação Ecológica do Taim, Parque Nacional da Lagoa do Peixe, poluição aquática, importância dos cordões das dunas costeiras e mesmo propor reflexões acerca de modelos econômicos que se instalaram na chamada zona de restinga, como monoculturas de pinus e eucaliptos e os possíveis impactos socioambientais advindos destas opções de desenvolvimento. Lírica Poesia para uma Pequena Sereia Noiva do mar Beleza sem fim Pequena sereia, pedaço de mim

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Me sinto tão só A te procurar As ondas me dizem que vou te encontrar O meu navio Navega no teu coração Marés que vem, marés que vão O meu amor Canto por ti Pra te encontrar, meu doce lar meu litoral O canto do mar O encanto do sol Sereias das lendas, louca imensidão Purezas do ar Do meu coração Corrente segura pra navegar Popularmente conhecida como “hino” da cidade marítima Rio Grande (ponto de encontro entre a Laguna dos Patos e o Oceano Atlântico), a música foi escrita pelos riograndinos Luis Mauro Vianna e Gilberto Oliveira. Cidade em forma de península (“pequena sereia pedaço de mim”), é cercada de águas doce da laguna dos patos e salgada do oceano (região de marisma). Possui rico patrimônio histórico e ambiental, com estruturas arquitetônicas que remontam a mais de 200 anos, além de museus, ilhas e lagoas. A música, por descrever uma região específica, pode motivar a percepção do sentido de pertencimento. Planeta Água Água que nasce na fonte serena no mundo e que abre um profundo grotão água que faz inocente riacho e deságua na corrente do ribeirão águas escuras dos rios que levam a fertilidade ao sertão águas que banham aldeias e matam a sede da população águas que caem das pedras no véu das cascatas ronco de trovão

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e depois dormem tranquilas no leito dos lagos no leito dos lagos Águas dos igarapés onde Iara mãe d’água é misteriosa canção água que o sol evapora pro céu vai embora virar nuvens de algodão gotas de água da chuva alegre arco-íris sobre a plantação gotas de água da chuva tão triste são lágrimas na inundação águas que movem moinhos são as mesmas águas que encharcam o chão e sempre voltam humildes pro fundo da terra pro fundo da terra Terra planeta água Oriunda dos festivais do início da década de 1980, Planeta Água, de Guilherme Arantes, serve-nos como ferramenta pedagógica motivadora para diversas reflexões. Presente na canção os “estados” da água (“água que o sol evapora”), o entendimento o fato que a água de que se constituiu à bilhões de anos atrás no planeta é a mesma que hoje utilizamos; a percepção dos ciclos da água (águas que encharcam o chão e sempre voltam humildes pro fundo da terra); a interdependência entre os diversos ecossistemas aquáticos (água que faz inocente riacho e deságua na corrente do ribeirão). Sabiá Vou voltar sei que ainda vou voltar para o meu lugar Foi lá é ainda lá que eu ei de ouvir cantar Uma sabiá (cantar uma sabiá) Vou voltar sei que ainda vou deitar à sombra de uma palmeira que já não há Colher a flor que já não dá E algum amor talvez possa espantar As noites que eu não queria e anunciar o dia Composta por Chico Buarque e Tom Jobim, a música sabiá foi vencedora do 3º Festival Internacional da Canção dos anos 60, sendo possível a reflexão sobre os exílios políticos no regime militar pós-64.

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O Caderno Sou eu que vou seguir você do primeiro rabisco até o bê-á-bá. Em todos os desenhos coloridos vou estar A casa a montanha duas nuvens no céu e um sol a sorrir no papel Sou eu que vou ser seu colega seus problemas ajudar a resolver te acompanhar nas provas bimestrais junto você vai ver Serei de você confidente fiel se seu pranto molhar meu papel Sou eu que vou ser seu amigo vou lhe dar abrigo se você quiser quando surgirem seus primeiros raios de mulher A vida se abrirá num feroz carrossel e você vai rasgar meu papel O que está escrito em mim comigo ficará guardado se lhe der prazer a vida segue sempre em frente o que se á de fazer Só peço a você um favor se puder não me esqueça num canto qualquer Também de composição de Chico Buarque de Hollanda, o caderno possibilita uma variedade de debates ambientais. A questão dos valores, tão caros para a EA, da relação de utilização e ao final do ano letivo, em que em muitas situações o aluno queima, joga-o ao lixo, esquecendo-o “em um canto qualquer”. Este debate pode servir de motivação tanto para o tema resíduos sólidos quanto ser transferido para as próprias relações entre a espécie humana e entre estes com as demais formas de vida do planeta. Outro aspecto a ser ressaltado é o próprio entendimento sobre a origem e confecção do papel, potencializando a questão das reservas florestais, monoculturas de eucalipto e o processo de fabricação do papel de celulose e o impacto socioambiental. Correnteza A correnteza do rio vai levando aquela flor O meu bem já está dormindo zombando do meu amor Na barranceira do rio o ingá se debruçou

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E a fruta que era madura a correnteza levou E choveu uma semana e eu não vi o meu amor O barro ficou marcado aonde a boiada passou Depois da chuva passada céu azul se apresentou Lá na beira da estrada vem vindo o meu amor E eu adormeci sorrindo sonhando com nosso amor De composição de Luiz Bonfá e do maestro Antonio Carlos Jobim, a Correnteza faz parte de um conjunto maior de peças de Tom dedicada à temática do meio natural. Vale destacar a regravação de Djavan em 1995 de Correnteza, com arranjos estilizados unindo os tradicionais violão, contrabaixo, percussão, teclado com violinos e violoncelo com acréscimos de sonoridades de água corrente e canto de pássaros. Cântico à natureza Nelson Sargento e Jamelão Ó primavera adorada inspiradora de amores ó primavera idolatrada sublime estação das flores Brilha no céu o astro rei com fulguração abraçando a terra anunciando o verão Outono estação singela e pura é a pujança da natura dando frutos em profusão Inverno chuva geada e garoa molhando a terra preciosa é tão boa desponta a primavera triunfal São as estações do ano num desfile magistral ó primavera matizada e viçosa pontilhada de amores Engalanada majestosa desabrocham as flores nos campos nos jardins e nos quintais A primavera é a estação dos vegetais

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Sobradinho O homem chaga já desfaz a natureza Tira a gente põe represa diz que tudo vai mudar O São Francisco lá pra cima da Bahia Diz que dia menos dia vai subir bem devagar E passo a passo vai cumprindo a profecia Do beato que dizia que o sertão vai alagar O sertão vai virar mar dá no coração O medo que algum dia o mar também vire sertão Adeus Remanso casa nova Santa Sé Adeus Pilão Arcado vem o rio te engolir Debaixo d’água lá se vai a vida inteira Por cima da cachoeira o gaiola vai subir Vai Ter barragem no salto do Sobradinho E o povo vai se embora com medo de se afogar Remanso, Casa Nova, Santo Sé, Pilão Arcado, Sobradinho adeus adeus Composta e cantada pela dupla Sá e Guarabira, a canção “Sobradinho” destaca o rio São Francisco e as várias interferências em seu ecossistema por obras de barragens, levando ao desaparecimento de vários povoados na região nordeste (Remanso, Sobradinho, Santo Sé etc) . Além da discussão atual sobre a transposição do Rio São Francisco, onde pode-se fazer um apanhado das várias posições sobre o tema (ambientalista x governos), fenômeno da seca, agronegócio, desenvolvimento sustentável etc.

O Sal da Terra Anda, quero te dizer nenhum segredo Falo nesse chão da nossa casa Vem que tá na hora de arrumar Tempo quero viver mais duzentos anos Quero não ferir meu semelhente

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Nem por isso quero me ferir Vamos precisar de todo mundo Pra banir do mundo a opressão Para construir a vida nova Vamos precisar de muito amor A felicidade mora ao lado e quem não é tolo pode ver A paz na Terra amor o sal da terra És o mais bonito dos planetas Tao te maltratando por dinheiro Tu que és a nave nossa irmã Canta leva tua vida em harmonia e nos alimenta com teus frutos Tu que és do homem a maçã Vamos precisar de todo mundo Um mais um é sempre mais que dois Pra melhor juntar as nossas forças É só repartir melhor o pão Recriar o paraíso agora para merecer quem vem depois Deixa nascer o amor deixa fluir o amor Deixa crescer o amor deixa viver o amor O sal da terra Finalizando o presente artigo, propõe-se a canção O sal da Terra, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos. Seus versos trazem a constatação dos contínuos desrespeitos para com a “nossa casa” propondo mudança de postura e ação com o verso “vem que tá na hora de arrumar”. Por fim, há diferentes maneiras de inserir o tema meio ambiente nas comunidades e escolas, tanto com atividades práticas, realização de pesquisas, projetos e saídas de campo, quanto com a utilização da linguagem musical, como proposto neste artigo. Cabe aos educadores ambientais, com o auxílio da prática interdisciplinar, construir ferramentas pedagógicas que direcionem à sensibilização, compreensão, responsabilidade e cidadania ambiental.5 5  SATO, Michele. Educação Ambiental. São Carlos: Rima, 2002. Pg. 24.-25.

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BIBLIOGRAFIA GONÇALVES, Carlos Walter Porto. Os descaminhos do meio ambiente. São Paulo: Contexto, 2005. LAYRARGUES, P. Do risco à oportunidade da crise ecológica: o desafio de uma visão estratégica para a educação ambiental. In: A contribuição da educação ambiental à esperança de pandora. SANTOS, J. & SATO, M. (org). São Carlos: Rima, 2003. PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais/Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1998. PROGRAMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL – ProNEA. Brasília: Ministério do Meio Ambiente, 2005. SATO, Michele. Educação Ambiental. São Carlos: Rima, 2002.

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Ensinar História: construir Cidadania Derocina Alves Campos Sosa1 Adriana Kivanski de Senna2

Considerações Iniciais A problematização das práticas pedagógicas relacionadas ao ensino de História tem sido constantemente repensada. Atualmente questionamos muito mais as formas de estudar a História ou as representações que essa disciplina coloca para o saber concreto da sala de aula. No tempo presente, mais do que apreender conteúdos que serão repassados aos estudantes, os estudos têm encaminhado reflexões importantes sobre o saber histórico, as metodologias de ensino dessa disciplina, a formação identitária do professor, entre outras. As formas de ensinar a aprender História passaram do estágio puramente contemplativo onde o estudante visualizava a História como um conhecimento apartado da sua realidade para o reconhecimento de que a História faz parte da vida de todos, que somos o reflexo de um conjunto de 1  Professora do ICHI da FURG. Doutora em História das Sociedades Ibéricas e Americanas pela PUCRS. 2  Professora do ICHI da FURG. Doutora em História das Sociedades Ibéricas e Americanas pela PUCRS.

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ações que se desenrolaram ao longo do tempo. Deixamos de assistir a História como um filme que passa diante dos nossos olhos para a compreensão e apreensão de uma outra dimensão, ou seja, de que participamos dessa mesma História, interagimos com ela, reproduzimos conceitos muitas vezes estereotipados, fragmentados e comprometidos. 1- A disciplina de História no Tempo A partir do momento em que a História separou-se da Filosofia no final do século XIX e adquiriu status próprio, uma série de transformações pôde ser verificada, ou seja, um número significativo de acontecimentos desencadeou orientações sobre o direcionamento que a História deveria seguir. Questionou ainda sua identificação enquanto ciência (criticada por algumas escolas ) e sua função social matizada principalmente pela necessidade de conhecê-la para forjar-se o mito do Estado – Nação, da identidade nacional, da consciência cívico – patriótica, entre outras. Quanto à questão da formação de uma identidade nacional, Nadai destaca que o conhecimento histórico do final do século XIX até meados do século XX procurou:

garantir, de maneira hegemônica, a criação de uma identidade comum, na qual os grupos étnicos, formadores da nacionalidade brasileira apresentavam-se, de maneira harmônica e não conflituosa como contribuidores, com igual intensidade e nas mesmas proporções naquela ação: portanto, o negro africano e as populações indígenas, compreendidas não em suas especificidades etno-culturais eram os cooperadores da obra colonizadora/civilizatória conduzida pelo branco português/europeu e cristão. (Nadai, 1997:25)

Completando seu raciocínio quanto à identidade homogeneizante da prática histórica, a autora complementa que: em decorrência, institui-se uma tradição muito forte que privilegiou, nos estudos históricos, a constituição de uma nação organicamente articulada, resultante de um processo caracterizado pela contribuição harmoniosa das diversas classes sociais, pela conciliação e pela organização de um

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‘bem comum’, processo portanto que privilegiava o passado vivido e recuperado sem conflitos, divergências ou contradições (idem)

Dessa forma, a História ensinada nas Escolas, carregada da ideologia dominante procurava enquadrar os agentes sociais dentro de determinada “ordem”, de modo a impedir contestações que pudessem por em risco o Status quo das elites no poder. As histórias de vida dos alunos, ou, uma história mais presente, não era considerada em nome de uma reflexão mais aprofundada sobre o tempo histórico que acabava dissimulando a recusa de compromisso frente à História vivida, desencadeando dessa forma, um fascínio por tudo aquilo que estava mais afastado no tempo. (Silva, 1982:19) Em contrapartida, havia uma supervalorização do passado, entendido como sendo um ordenamento cronológico mais ou menos perfeito, sem que fosse dada a devida importância aos agentes do/no processo. A autoridade do professor e dos livros era reconhecida como a única verdadeiramente capaz de “dizer a verdade”3 sem que fosse aberto algum tipo de espaço para posicionamentos contrários. Essa prática esteve concatenada com o momento político da afirmação do Brasil enquanto país independente da metrópole portuguesa, passando pelo espaço de afirmação das elites agrárias até o período em que o Estado encampou totalmente a Escola, tida como a vitrine de representação e de propaganda desse mesmo Estado – note-se o período do Estado Novo. O retorno a essa linha de pensamento que condicionava o ensino da História a mero espaço de reprodução das instituições políticas ocorreu durante os vinte anos de ditadura militar. Antes disso, o ensino dessa disciplina adquiriu certa autonomia, bafejado como foi pela chamada abertura democrática. A partir do golpe de 64 e principalmente pela reforma no ensino de 1971, o que se verificou foi a introdução de estudos tecnicistas onde as ciências exatas foram supervalorizadas em detrimento das ciências humanas em uma clara intenção de refrear o pensamento reflexivo, tornando o espaço 3  Para reiterar essa idéia do professor como autoridade, Marcos Silva salienta o papel da Escola enquanto núcleo da reprodução das formações sociais capitalistas que alimenta-se dos próprios conflitos gerados pelo Sistema (Silva, 1982:15)

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destinado a História como um amontoado de nomes, datas e heróis, passando essa ciência a um conjunto amorfo, completamente desvinculado da realidade dos alunos e descompromissado com a sua historicidade. Ainda nessa linha da Escola como reprodutora do sistema, a emergência dos ideais democráticos no início da década de 30, com a extensão do direito ao voto, bem como à formação de uma classe média urbana proporcionou às disciplinas – entre elas a História – finalidades específicas. Para Circe Bitencourt:

a manutenção de uma disciplina escolar no currículo deve-se à sua articulação com os grandes objetivos da sociedade. Assim a formação deliberada de uma classe média pelo ensino secundário, a alfabetização como pressuposto ao direito do voto, o desenvolvimento do espírito patriótico ou nacionalista, entre outras questões determinam os conteúdos do ensino e as orientações estruturais mais amplas da escola. (Bitencourt, 1998:17)

A História, enquanto disciplina foi chamada a cumprir essa função, ou seja, a de transmitir essa identidade nacional de modo a perpetuar de cima para baixo o que as classes dominantes entediam como sendo aquilo que deveria ser ensinado4 para a “formação correta” do cidadão. 2) A cidadania forjada versus cidadania conquistada Com relação ao sentido da História e sua prática pedagógica ou o saber na sala de aula, muito se tem associado à História, a prática da cidadania, ou seja, o contexto atual apresenta uma disciplina como devendo ser compromissada com a valorização do cidadão, enquanto agente capaz de transformar seu meio. No entanto, essa prática ou ação não ocorreu com o nascimento e a afirmação da disciplina. Antes a História associada ao surgimento do Estado – Nação servia muito mais para manter a ordem instituída do que para transformá-la. No dizer de Nadai, a História se apresentava assim como: 4  em outro artigo, Bitencourt destaca que o ensino da História englobava, junto com outras disciplinas, entre elas a Moral e Cívica e o OSPB, as comemorações relacionadas às datas nacionais, hinos pátrios, entre outras (Bitencourt, 1997:44)

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uma das disciplinas fundamentais no processo de formação de uma identidade comum – o cidadão nacional – destinado a continuar a obra de organização da nação brasileira (NADAI, 1997:25)

A partir da 2ª Guerra Mundial e do fim ou minimização da perspectiva eurocêntrica, abandonou-se a História historicista, com a ciência adquirindo novo status. Para Furet: Já não se trata a história historicista, que faz da escola do tempo o princípio dos progressos da humanidade, ritmados pela formação dos Estados–nações e pela extensão da ‘civilização’, ou seja, do modelo europeu. A História, hoje, pelo contrário, tem a característica de já não ser investida por um sentido prévio e implícito dado ao tempo e de ter rompido com esta visão linear que a tornava uma disciplina real encarregada de pesar os méritos dos diferentes ‘períodos’ do passado (FURET in NADAI, 1997:26)

O objetivo até então do ensino de história era a formação do cidadão político para o Estado democrático, capaz de referendar via voto secreto os reais interesses da burguesia liberal. Assim, os Estudos Sociais das séries iniciais que compunham Sociologia, História e Geografia, tinham como meta formar cidadãos adaptados ao meio para desempenharem seu papel produtivamente, no sentido de se inserir e reforçar o sistema. (BITENCOURT, 1998:21) Até aqui o que vimos foi um sentido de cidadania forjada que não corresponde ao real sentido da História enquanto ação crítico-reflexiva capaz de questionar para transformar. Alguns autores, no entanto, mais temerosos de uma postura histórica engajada, consideram que os profissionais de história (historiadores, professores, alunos) não devem correr o risco de assumirem tal postura, por considerarem o trabalho do historiador apenas como fazendo parte de um posicionamento analítico-interpretativo, sem a vinculação com o presente de cada um de nós. Essa posição é extremamente esclarecedora da distância ainda existente entre a academia e a sala de aula, ou seja, do historiador que se considera o produtor do conhecimento e do professor que muitas vezes apenas se enxerga como o reprodutor desse conhecimento. Tal divisão hoje nos parece inconcebível por entendermos que o historiador deve

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voltar-se também para as questões pedagógicas e que o professor, por sua vez, pode envolver-se com a pesquisa histórica, de modo a propiciar a seus alunos a introdução em uma prática verdadeiramente reflexiva. Nessa perspectiva, a idéia desafiadora é fazer com que historiadores e professores sejam capazes de identificar na História, outros agentes sociais responsáveis pela própria História. Trazê-los ao primeiro plano, significa abandonar velhos chavões ultrapassados que serviram para manter as velhas estruturas de poder. Dessa forma, as classes dominadas ou os marginalizados socialmente devem ser valorizados, não apenas como componentes de uma teia social ou como figuras decorativas que podem ser estudadas como “animais raros de zoológico”, mas como setores responsáveis pela construção da História. Isto posto, viabilizaremos um estudo mais amplo, menos estigmatizado que pretende no dizer de Nadai “dar conta de encontrar e esclarecer a ação e a contribuição do conjunto dos agentes sociais presentes na história e não somente dos privilegiados tradicionalmente.” (NADAI, 1997:28) No bojo dessas considerações, a cidadania então enquanto objeto de estudo e construção deve abandonar o amálgama que até então estava envolta, ou seja, precisa desligar-se de sua definição tradicional, em que era vista como uma etapa da construção do homem adaptado ao Estado Liberal, completamente submisso a esse, e onde seu único direito consistia em escolher representantes que iriam intermediar sua relação com o próprio Estado, para assumir sua interação com a História. No lugar dessa cidadania, mantenedora da ordem vigente, a História enquanto disciplina deve se preocupar com um ensino que: contribua para libertar o indivíduo do tempo presente e da imobilidade diante dos acontecimentos, para que possa entender que cidadania não se constitui em direitos concedidos pelo poder instituído, mas tem sido obtida em lutas constantes e em suas diversas dimensões” (BITENCOURT, 1998:11)

Assim um exemplo elucidativo é a questão da Abolição da Escravatura sempre colocada nos livros didáticos como sendo uma concessão da regente brasileira aos negros, escravizados durante quatro séculos. Uma leitura que realmente privilegie os agentes sociais irá destacar a verdadeira luta dos

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escravos para a aquisição da chamada “liberdade”. No entanto ainda tornase necessário fazermos a ponte entre as pesquisas acadêmicas que salientam essa dimensão, e o saber da sala de aula. Os autores então, reconhecem a importância de estabelecer essa ponte, ou de levarmos para os currículos uma proposta de construção da cidadania que abarque novas concepções de ação dos movimentos sociais e que compreenda sua dimensão histórica. Assim os movimentos ecológicos, feministas, raciais, movimento pela terra, pela moradia devem ser entendidos à partir de sua historicidade. Dessa maneira, “o compromisso da História seria o de aprofundar esta complexa noção para evitar a banalização do termo. O sentido político da questão da cidadania deve explicitar a relação entre o papel do indivíduo e o da coletividade” (idem) Por ser uma disciplina comprometida com a prática reflexiva, pode a História ocupar o espaço escolar de modo a criar nos alunos uma série de interrogações que vão desde a desigualdade local, passando pela regional até chegar à nacional. Enquanto campo teórico humanístico, a História pode e deve ocupar esse espaço. À partir do reconhecimento de nossa individualidade, conhecendo a História que nos precede podemos avançar no sentido de conquistarmos um pensamento mais livre, ou como diz Marson: a crítica possibilita o questionamento do núcleo das relações entre o saber e o poder internalizadas na atual sociedade de classes, que movimentam os poderes constituídos do Estado e permeiam o todo social em seus ‘pequenos mundos’ fragmentados, como a Escola e as demais instituições organizadas ( MARSON, 1982:46)

A tarefa do professor/historiador ou historiador/professor apresentase árdua. No entanto a práxis histórica nos remete constantemente a desafios que antes de negados simplesmente podem ser trabalhados, no sentido de se reconhecer na História um campo fértil e promissor à crítica e ao questionamento consistentes. Para Continuarmos refletindo... As discussões colocadas aqui e por outros autores que refletem sobre a necessidade de se pensara e repensar constantemente o Ensino de História precisa levar em considerações um conjunto de informações

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que estão relacionadas diretamente com o conhecimento histórico que se estabelece na sala de aula. Esses elementos dizem respeito à formação dos futuros professores, o que aprendem nas Universidades, o conhecimento que internalizam, as reflexões que são capazes de realizar para desconstruir conceitos muitas vezes preconceituosos e elitistas; os currículos desenvolvidos nos Cursos de Licenciatura em História, suas características principais, são esses currículos, instigadores de reflexão? Ou apenas reproduzem um conhecimento elaborado sem possibilitar que o estudante participe e construa novos conhecimentos? As Universidades desenvolvem a chamada Educação Continuada aos seus egressos, de forma que eles possam refletir sobre o ser professor; as Escolas estão ou são receptivas aos novos conhecimentos que se adquire nas Universidades no que concerne às metodologias de Ensino de História; os licenciados que aprendem nas Universidades novos métodos de ensino ou reflexões mesmo sobre os conteúdos dos quais se apropriam levam para dentro das Escolas esse conhecimento? Essas e outras reflexões têm tomado conta dos pesquisadores que discutem o Ensino de História, ou seja, a necessidade de aprofundar um campo de estudo que era até certo ponto desconsiderado pela academia. Pensar e pesquisar sobre o Ensino de História, é um campo que se abre aos olhos dos historiadores que se sentem comprometidos com a outra ponta do processo, ou seja, a Escola, pois é lá que todo o esforço do professor que deve necessariamente ser um pesquisador irá se fazer sentir. É na Escola que o professor será capaz de demonstrar tudo aquilo que apreendeu os conceitos que internalizou as reflexões que despertaram outras inquietações. Muitas vezes somos questionados pelos atuais professores de que tudo aquilo que apreenderam nas Universidades não se coaduna com a realidade das Escolas, que o Sistema engole de forma voraz as perspectivas inovadoras que os professores queiram desenvolver com os seus estudantes nas Escolas. Junto com essas colocações entram outras de ordem financeira com os baixos salários, a carga horária da disciplina de História insuficiente para o desenvolvimento dos conteúdos, o número excessivo de turmas e Escolas onde o professor tem que dar aula, entre outras.As pesquisas apontam que todas esses questões devem ser consideradas, no entanto, continuarmos reproduzindo conteúdos carregados de estereótipos, em que os

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estudantes tem apenas que memorizar, sem qualquer exercício de reflexão, não pode ser considerado normal por culpa do Sistema e, aí o papel mais do que importante da Universidade, proporcionando os cursos de Educação Continuada, interagindo com os professores nas Escolas, rompendo os muros da Universidade, que a separa da comunidade, pois os professores que estão atuando na rede de ensino são o produto da universidade que os forma e, esta não pode e não deve se furtar em assumir a sua responsabilidade na formação dos futuros cidadãos

Referências Bibliográficas ALBERTI, V. História Oral: a experiência do CPDOC. Rio de aneiro: CPDOC, 1989 BITENCOURT, Circe Maria. “Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de História” in O Saber Histórico na sala de aula/ Circe Bitencourt ( org. ). São Paulo: Contexto, 1998. CRUZ, Heloísa. “Ensino de História, da reprodução à produção de conhecimento” in Repensando a História / Marcos Silva ( org. ). São Paulo: Marco Zero, 1982. FURET, François. A oficina da História. Lisboa: Gradiva, Sd. MARSON, Adalberto. “Reflexões sobre o procedimento histórico in Repensando a História / Marcos Silva ( org. ). São Paulo: Marco Zero, 1982. NADAI, Elza. “O Ensino da História e a Pedagogia do cidadão” in O Ensino de História e a criação do fato / Jaime Pinsky ( org. ). São Paulo: Contexto, 1997. PINSKY, Jaime & NADAI, Elza. O Ensino de História e a criação do fato. São Paulo: contexto, 1988 SILVA, Marcos. “A vida e o Cemitério dos vivos” in Repensando a História / Marcos Silva (org.). São Paulo: Marco Zero, 1982. SOSA, Derocina Alves Campos. A História e a prática pedagógica. Anais do

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As ameaças à saúde pública e suas representações na caricatura ao final do século XIX Francisco das Neves Alves1

A prática da caricatura como um gênero jornalístico constituiu-se num processo crescente que caracterizaria significativa parte da evolução da imprensa mundial, mormente na segunda metade do século XIX. Nesse sentido, os jornais caricatos tornaram-se comuns em grande parte dos países bafejados pelo desenvolvimento do periodismo, apresentando muitas vezes, apesar das discrepâncias nacionais/regionais, feições gráficas e um norte editorial muito próximos entre si. Eram normalmente semanários que dividiam meio a meio suas páginas entre texto e desenho e promoviam um jornalismo crítico-opinativo carregado de humor e ironia, recriando as realidades descritas a partir de um prisma caricatural. Essas folhas discutiam os mais variados temas, realizando normalmente variados estilos de críticas como a política, a social e a de costumes. Ainda que considerados como humorísticos, os caricatos, por vezes, intentavam demonstram que também poderiam fazer um jornalismo do tipo sério, como normalmente realizavam os jornais diários. Era nesse 1  Professor da FURG. Doutor em História – PUCRS. Pós-Doutorado em História junto ao ICES – Portugal.

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emaranhando de crítica, ironia, jocosidade e seriedade que as publicações caricatas várias vezes se arvoravam à função de moralizadoras, buscando apontar, diagnosticar e corrigir as mazelas que afetavam a vida em sociedade. Nesse contexto, por diversas vezes os periódicos caricatos se transformariam em incansáveis defensores da questão da saúde pública, cobrando atitudes e providências de parte das autoridades governamentais, ainda mais quando as ameaças de epidemias batiam às portas das comunidades. Esse processo da evolução da imprensa caricata não seria diferente no Brasil, onde foram publicados diversos títulos, com destaque para aqueles editados no centro do país. Mas o fenômeno caricato chegaria a várias das províncias brasileiras, como no caso do Rio Grande do Sul, notadamente nas últimas décadas do século XIX, quando circularam vários semanários caricatos, com destaque para as três mais importantes comunidades riograndenses de então, a capital da província – Porto Alegre; o mais importante entreposto comercial – Rio Grande; e uma das cidades que mais crescera como resultado das atividades charqueadoras – Pelotas. Os hebdomadários gaúchos também assumiriam muitas vezes um comportamento moralizador e buscariam alarmar a sociedade sobre os riscos de possíveis avanços de determinadas doenças. Algumas exemplificações gerais, levando em conta determinados caricatos dessas três comunas, e um estudo de caso específico permitem um melhor entendimento das formas pelas quais essas folhas riograndenses, nos anos oitenta daquela centúria, levavam a público o perigo das epidemias. Logo no início dos anos oitenta, o caricato rio-grandino Marui cobrava atitudes das autoridades públicas, referindo-se à letargia da Câmara diante do hóspede que visitara a cidade, de modo que os cidadãos comuns teriam de tomar providências por si próprios para combater o mal. A figura trazia um sujeito de porrete à mão pegando à unha o ceifador de vidas que representava a febre amarela. O jornal avisava ainda que o tal hóspede tinha pretensões de viajar pela Campanha, mostrando novamente o ceifador de vidas, agora num cavalo, a galope em direção àquela região provincial2 [Figura 1]. Meses depois, o pelotense Cabrion intentava demonstrar que os maiores alvos em potencial das doenças eram as populações humildes, sem recursos para combatê2  MARUI. Rio Grande, 8/fevereiro/1880. p. 4-5.

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las. Mais uma vez criticando os governantes, o semanário apresentava o ceifador de vidas como que autorizado por aqueles para atacar, afirmando que a epidemia aportara na localidade de Canguçu com licença particular e vinha fazendo seus prodígios com as pobres vítimas, num quadro em que a penúria chegava a tal, que o único preservativo que os médicos aplicavam era a cachaça3 [Figura 2]. O calor e abafamento do verão eram apontados pelos caricatos como ambiente ideal para a proliferação de doenças, como no caso do Diabrete da cidade do Rio Grande que, durante aquela estação, dizia que, segundo a opinião de muitos, alguém teria de fazer uma viagem depois do carnaval. O “alguém” referido pelo jornal era o próprio ceifeiro de vidas que, qual timoneiro, conduzia um barco cujos remadores eram outros quatro esqueletos4 [Figura 3]. Mas as transformações climáticas advindas das mudanças de estações também eram vistas como danosas à saúde pública, tanto que o pelotense Cabrion mostrava o avanço da tifóide, afirmando que um tormento implacável ameaçava a sociedade, diante do que os seus leitores deveriam ter amplo cuidado com as umidades, indicando que os mesmos deveriam ver que a figura retratada – que estaria a exalar seus malefícios – era muito pouco simpática5 [Figura 4]. Na mesma linha, O Seculo de Porto Alegre apresentava um agrupamento de cavaleiros em armaduras que deveriam combater o ceifador de vidas identificado com o cólera morbus. A legenda explicava que a crítica dirigia-se aos edis porto-alegrenses, comparados a carabineiros que chegavam sempre tarde em tudo, de modo que, quando quisessem opor-se à vinda daquele terrível hóspede, que ameaçava a todos, já seria muito tarde6 [Figura 5]. Posteriormente, o mesmo jornal com humor indicava uma possível forma de combater uma epidemia, quer seja, através de aguardente. A folha caricata mostrava a personificação do cólera, com a figura do micróbio a cabeça, decaída e prensada por um barril de cachaça7 . 3  CABRION. Pelotas, 2/maio/1880. p. 5. 4  DIABRETE. Rio Grande, 27/fevereiro/1881. p. 1. 5  CABRION. Pelotas, 20/março/1881. p. 1. 6  O SECULO. Porto Alegre, 16/setembro/1883. p. 4. 7  O SECULO. Porto Alegre, 26/outubro/1884. p. 1.

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Mantendo o estilo humorado, O Seculo dizia que, segundo algumas opiniões o famoso cólera morbus deveria chegar pelo primeiro paquete de novembro e, como tal ilustre hóspede pudesse de alguma forma perturbar os festejos que se preparavam para a recepção de suas altezas imperiais, recomendava como antídoto seguro a caninha miúda. De acordo com a folha, com o efeito da bebida, o animal (o cólera) estrebuchava, pinoteava, mas não resistia ao peso, ficando chatíssimo, além do que recomenda que deveriam ser abandonadas as águas chocas tão preconizadas pelos seus vendedores, e que não se fizesse caso das panacéias anunciadas pela imprensa, manifestando finalmente um “viva” à caninha miúda e arrematava que esta receita era grátis para os seus assinantes 8 [Figura 6]. No mês anteriormente previsto, o periódico da capital provincial voltaria ao tema, mostrando a mesma figura simbólica do cólera atravessando as ruas numa biga conduzida por um esqueleto em direta alusão à data de veneração aos mortos, diante da população que olhava estupefata. A legenda anunciava que deveria ser naquele dia que se daria a entrada triunfal de “Sua Majestade o Cólera” e considerava que aquela seria uma má ocasião, uma vez que se complicava com a festa de finados9 [Figura 7]. Já ao final dos anos oitenta, a folha pelotense A Ventarola, associando a crítica política à social, mostrava figuras públicas metamorfoseadas em ratos, afirmando que os mesmos preferiam enfrentar o cólera morbus ou a febre amarela do que a alcunha que lhes fora atribuída10 [Figura 8]. Pouco depois, a mesma publicação mostrava o ceifeiro de vidas personificando a febre amarela que, foice em riste, entrava triunfante na província na proa de um navio. O indesejado visitante era chamado de presente grego e era lamentada a falta de iniciativa da intendência para combater tal flagelo11 [Figura 9]. O mesmo semanário pelotense mostraria ainda que os riscos da doença eram iminentes a avançavam pelo Rio Grande do Sul, apresentando o ceifeiro de vidas atacando dois homens, um, mais idoso, representando a comunidade rio-grandina, já derrubado e outro, pronto a ser vitimado pela lâmina da 8  O SECULO. Porto Alegre, 26/outubro/1884. p. 1. 9  O SECULO. Porto Alegre, 2/novembro/1884. p. 1. 10  A VENTAROLA. Pelotas, 20/janeiro/1889. p. 4. 11  A VENTAROLA. Pelotas, 10 /fevereiro/1889. p. 8.

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foice. A figura aparecia sobre a frase: Como era de prever, Rio Grande e Porto Alegre estão a braços com a febre amarela... [Figura 10]. Tratava-se de um conjunto de caricaturas, que ainda mostrava a figura que simbolizava a peste devorando a Princesa do Sul – a cidade de Pelotas –, além de aconselhar aos senhores de família, como medida preventiva que desinfetassem suas habitações, conservando-as muito limpas e asseadas, além de indicar o uso do lenço às damas 12 [Figura 11]. Na mesma época, o periódico humorístico da cidade de Pelotas apresentava conjunto de caricaturas alusivas às atividades do carnaval e do entrudo, referindo-se a que nos salões públicos dançara-se até pela manhã, entre um forrobodó de mil pecados, mas, enquanto o “Zé Povo” se divertia, a febre estaria muito próximo, pronta para surpreender. No desenho apareciam várias de pessoas dançando alegremente, para, logo no quadro seguinte, surgirem duas figuras do ceifador de vida, que desciam pelo mapa do Brasil em direção ao Rio Grande do Sul, na iminência de fazer farta colheita diante da população espantada [Figura 12]. O conjunto de gravuras era encerado com a apresentação do encontro entre o ceifeiro e uma dama que representava as artes médicas, sobre a legenda: Será a ocasião de vermos a medicina a braços não aos braços) com a febre amarela, medindo as suas forças...13 [Figura 13]. Em outro momento, A Ventarola voltava ao tom moralizador associando a censura de natureza social à política e econômica, apresentando o ceifador como a febre amarela que se engalfinhava com um servidor público em um barco. Na legenda, explica que um funcionário fora enviado com a meta de estudar um modo de impedir o contrabando, tarefa tão complexa e de difícil execução que chegara a gerar comentários como a lembrança de que seria mais fácil se a autoridade pública tivesse vindo à província comissionado para impedir o ingresso da febre amarela, do que para combater o comércio ilícito, pois tal hipótese teria mais cabimento14 [Figura 14].

12  A VENTAROLA. Pelotas, 3/março/1889. p. 4-5. 13  A VENTAROLA. Pelotas, 17/março/1889. p. 4-5. 14  A VENTAROLA. Pelotas, 7/abril/1889. p. 8.

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Após esta breve amostragem exemplificativa das formas pelas quais as epidemias eram retratadas pela caricatura gaúcha, um estudo de caso específico pode detalhar tais representações. Um dos jornais caricatos que maior preocupação teve com as doenças que assolavam o Rio Grande foi o Bisturi, semanário rio-grandino que circulou a partir de 1888, constituindose num dos mais importantes representantes do jornalismo caricato sulrio-grandense. Desde os últimos anos da monarquia, o Bisturi demonstrava uma aproximação política da agremiação liberal de ascendência gasparista. Com a mudança na forma de governo, o periódico apoiaria a república, mas, progressivamente, colocar-se-ia na oposição e até resistência ao autoritarismo governamental e na defesa das forças oposicionistas ao regime estadual e federal. Ainda que tivesse seu forte na crítica política, a folha praticava também as de natureza social e de costumes e, como moralizador da sociedade, censurou fortemente as epidemias que ameaçavam a sociedade rio-grandina. Tal atitude do Bisturi marcou toda a sua existência regular, tendo parado de circular durante a crise revolucionária de 1893. Nos meses iniciais de 1889, o hebdomadário caricato desenvolveria pesada campanha contra os riscos à saúde pública15 . Em uma cidade portuária como o Rio Grande, frágil diante do constante intercâmbio de indivíduos provenientes dos mais diversos lugares do globo e portadores em potencial de moléstias, as epidemias transformavam-se num constante fator de medo e, por vezes, de pavor, entre a população, visto que a epidemia era a representação mais nítida das doenças irreparáveis no espaço16 . Ao final do século XIX, a capital do Império, caixa de ressonância do que acontecia no país, era alvo de uma série de moléstias epidêmicas. Nesse 15  Sobre a história do Bisturi ver: ALVES, Francisco das Neves. O Bisturi: imprensa oposicionista na cidade do Rio Grande (1888-1893). In: ALVES, F.N. & TORRES, L.H. (orgs.). Pensar a Revolução Federalista. Rio Grande: Editora da FURG, 1993. p. 53-63.; ALVES, Francisco das Neves. Uma introdução à história da imprensa rio-grandina. Rio Grande: FURG, 1995.; ALVES, Francisco das Neves Alves. A pequena imprensa rio-grandina no século XIX. Rio Grande: Ed. da FURG, 1999.; ALVES, Francisco das Neves. Imagens e símbolos: a caricatura rio-grandina e o discurso político-partidário no século XIX. Rio Grande: FURG, 1999.; e FERREIRA, Athos Damasceno. Imprensa caricata do Rio Grande do Sul no século XIX. Porto Alegre: Globo, 1962. Texto elaborado a partir de: ALVES, Francisco das Neves. Sociedade e saúde pública no Rio Grande do Sul: ensaios históricos. Rio Grande: FURG, 2005. p. 8-12 e 33-48. 16  REVEL, Jacques & PETER, Jean-Pierre. O corpo: o homem doente e sua história. In: LE GOFF, J. & NORA, P. (dir.). História novos objetos. 3. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. p. 145.

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quadro, à época da transição monarquia–república, o Rio de Janeiro teve os velhos problemas de abastecimento de água, de saneamento e de higiene agravados de maneira dramática com o mais violento surto de epidemias da história da cidade, como a varíola e a febre amarela, que vieram juntar-se às tradicionais matadoras, a malária e a tuberculose17 . A situação era de receio em outros portos, como Santos, Paranaguá e Rio Grande, diante do que as autoridades públicas buscavam tomar algum tipo de providência. Ainda no início de 1889, reunira-se no Rio de Janeiro o Conselho Superior de Saúde, formado por ministros, conselheiros, inspetores de saúde, higiene e obras públicas, cirurgiões militares, diretores de hospitais, membros da academia de Medicina e vários médicos. No Conselho foi chamada a atenção para as graves questões de higiene pública que deveria se ocupar aquele órgão colegiado, revelando as intenções do governo que manifestava o desejo não somente de atender ao estado da saúde pública, mas ainda de salvaguardar as condições futuras de salubridade da capital do Império. Revelando a urgência dos acontecimentos, esperava-se que os especialistas ali reunidos indicassem quais as medidas que deveriam ser postas em prática imediatamente, não querendo o governo demorar na sua execução. Uma das primeiras providências consideradas relevantes foi o serviço de drenagem da cidade que deveria ser executado o mais brevemente. Foram ainda debatidas outras medidas relativamente à higiene da comuna, caso do transporte e da incineração do lixo, dos esgotos e seus prolongamentos e de um projeto geral de saneamento, o qual também deveria ser efetivado no menor prazo18 . As providências no combate à epidemia espraiavam-se a partir do Rio de Janeiro, aconselhando-se que medidas da mesma natureza fossem adotadas em outras comunidades, mormente naquelas mais expostas a possíveis riscos. Desse modo, com o fim de procurar extinguir com maior presteza a febre amarela, nos lugares infectados e preservar a população do Rio de Janeiro ou outras quaisquer cidades ou vilas, onde o flagelo fizesse o seu aparecimento, a Inspetoria Geral da Higiene da Corte mandara publicar pela imprensa uma 17  CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. p. 19. 18  Ata do Conselho Superior de Saúde, citada em: DIARIO DO RIO GRANDE. Rio Grande, 13/fevereiro/1889. p. 1.

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série de medidas ou conselhos que deveriam ser adotados por crianças e adultos, nacionais e estrangeiros recém-chegados, uma vez que o governo as considerava como sendo de utilidade geral e especialmente eficazes. Esse rol de providências também foi divulgado junto à cidade do Rio Grande. Dentre as medidas estava a de manter toda a regularidade na alimentação e excluir dela o uso de frutas verdes ou alteradas, de alimentos indigestos, do gelo e bebidas geladas sempre que o corpo estiver agitado pelo exercício e durante as horas mais quentes do dia, do abuso do álcool em qualquer de suas formas. Outra seria evitar, tanto quanto possível a exposição prolongada à ação do sol e, durante a noite, a do ar exterior fora das habitações19 . As medidas previam outras incursões ao conjunto de hábitos e costumes da população, como a de manter todos os cuidados de asseio corporal com o uso diário de banhos gerais frios ou mornos, e com a substituição freqüente das roupas em contato com o corpo. Recomendava-se ainda que se evitasse aglomerações de pessoas nos aposentos de dormir, e quando as condições de fortuna o não permitissem, que se conservasse sempre comunicação franca com o ar livre para que se desse a renovação contínua do ar nos domicílios. Os cuidados também se direcionavam às questões sanitárias, indicando-se que, em cada casa, se fiscalizasse com a maior atenção e zelo o asseio rigoroso das latrinas e se verificasse sempre a existência de água nos sifões ligados aos encanamentos. Outra determinação era a de verificar com cuidado a pureza aparente da água potável, devendo-se conservá-la em depósitos de barro cozido, perfeitamente limpos e cobertos, declarando-se que havia grande conveniência em usar águas filtradas em aparelhos suscetíveis de fácil limpeza e arejamento. A eliminação de lixos e entulhos também estava dentre as propostas estabelecidas pelas autoridades públicas, recomendando-se que se evitasse no interior das habitações ou nos pátios e áreas das casas, quaisquer depósitos de imundícies, fazendo-as remover prontamente ou incinerando-as diariamente, o que era considerado preferível. A busca de responsabilidades era outro ponto adotado pelas forças governativas, como ao exigir que se denunciasse às autoridades sanitárias todas as infrações do asseio doméstico

19  Inspetoria Geral de Higiene, 17 de janeiro de 1889, citado em: ECHO DO SUL. Rio Grande, 5/março/1889. p. 1.

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e todos os abusos contra a saúde privada e pública20 . Aconselhava-se a população a não levar crianças aos cemitérios nem aos enterramentos, bem como privá-las das visitas em domicílio onde existissem doentes acometidos da epidemia. Recomendava-se também às pessoas que exigissem socorro médico imediato para quaisquer sintomas de moléstia acompanhados de febre, num quadro onde, aos indigentes, os primeiros socorros seriam prestados gratuitamente pelas autoridades sanitárias. Ficava também determinado que todo o epidêmico que não pudesse a juízo do médico que o socorresse, receber tratamento conveniente em seu domicilio, deveria sujeitar-se com a maior confiança ao tratamento nos hospitais ou enfermarias especiais criados pelo governo e onde lhe seriam garantidos todos os recursos terapêuticos e a concessão de todos os benefícios que suavizassem o afastamento da família e o seqüestro temporário que se lhe impunha. Já os doentes tratados no próprio domicílio deveriam ficar sujeitos à vigilância das autoridades sanitárias, exclusivamente em relação às medidas de isolamento e desinfecção que lhes fossem aplicáveis, convindo haver toda a presteza na comunicação do caso mórbido à autoridade da respectiva circunscrição, desde que o médico assistente declarasse a natureza epidêmica da moléstia. Explicava-se ainda que a população deveria ter a máxima confiança nas autoridades, as quais incumbia especialmente velar pela saúde pública, devendo auxiliá-las no cumprimento de seus pesados encargos e recorrer a elas sempre que houvesse mister, com a certeza do auxílio e socorro que a ninguém lhes era lícito recusar e que a todos lhes cumpria prontamente conceder21 . Com essas providências, os governantes buscavam demonstrar que estavam fazendo a sua parte no sentido de debelar o mal que assolava corpos em algumas localidades e assombrava mentes em todo o país. Reflexo destas tentativas ficava impresso na última “Fala do Trono”, realizada em maio de 1889, com a qual o Imperador abria os trabalhos do legislativo nacional. No discurso, D. Pedro II lembrava que o extraordinário rigor do verão, influindo sobre causas mórbidas, que a higiene ainda não removeu, determinara 20  Inspetoria Geral de Higiene, 17 de janeiro de 1889, citado em: ECHO DO SUL. Rio Grande, 5/março/1889. p. 1. 21  Inspetoria Geral de Higiene, 17 de janeiro de 1889, citado em: ECHO DO SUL. Rio Grande, 5/março/1889. p. 1.

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o aparecimento de epidemias no Rio de Janeiro e nas cidades de Santos e Campinas, na Província de São Paulo. Apontava o Imperador que a prontidão de socorros e de providências adequadas atenuara os estragos do mal que, segundo a autoridade máxima da nação, estava extinto na capital do Império e tendia a desaparecer nas outras cidades22 . Esses cuidados advindos dos homens que gerenciavam os negócios públicos do país em suas várias esferas foram, no entanto, considerados insuficientes e a imprensa reproduziria em suas páginas esse clima de insatisfação. Diante desse contexto, o Bisturi se manteve fiel às suas simpatias para com o partido liberal, não renegando tal afiliação, a qual se manifestaria não apenas nos posicionamentos políticos da folha. De acordo com suas convicções, o semanário caricato foi um severo e mordaz crítico das administrações conservadoras, no âmbito nacional, provincial e citadino, de modo que, por ocasião da ameaça da epidemia de febre amarela, tanto em nome da defesa dos interesses do povo, como na intenção de, na conjuntura citadina, atacar os situacionistas conservadores o periódico, nas edições do primeiro trimestre de 1889, através de textos e desenhos, teceu fortes censuras à atuação dos homens públicos de então. Uma das primeiras manifestações do Bisturi quanto ao tema dos perigos da febre amarela deu-se através de uma caricatura publicada na primeira página, onde o ceifeiro de vidas era recepcionado por um indivíduo representando a municipalidade, o qual seria o articulador da fala que aparecia como legenda: Venha querida epidemia! Estou preparando a cidade o melhor possível para que possas ter uma esplêndida colheita de vidas23 . A associação entre epidemia e morte foi a forma mais comum que o jornal adotou para simbolizar junto aos leitores os riscos que a moléstia poderia representar para a comunidade portuária, uma vez que o esqueleto é a personificação da morte e a imagem do esqueleto armado de foice é suficientemente eloqüente como representação da morte24 [Figura 15]. 22  Falas do Trono desde o ano de 1823 até o ano de 1889. São Paulo: Melhoramentos, 1977. p. 509. 23  BISTURI. Rio Grande, 10/fevereiro/1889. p. 1. 24  CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. 5.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991. p. 401 e 622; e CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de símbolos. São Paulo: Moraes, 1984. p. 242-243.

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Na mesma edição, o jornal caricato publicaria um conjunto de desenhos representando o verdadeiro pânico que a peste estaria representando no cotidiano dos rio-grandinos25 [Figura 16]. Na abertura da gravura apareciam vários caixões e cruzes de sepulturas, buscando demonstrar os óbitos ocorridos na capital do Império por conta da moléstia, afirmando a folha que a febre amarela voltara ao Rio, imperando com toda a sua força, num quadro onde pereciam cento e tantas pessoas diariamente, construindose um terrível reinado de morte. O ceifeiro de vidas voltava a aparecer nas páginas do hebdomadário, explicando que a doença, ainda não satisfeita com sua ação no Rio de janeiro, fora até Mato Grosso e em outras partes, ceifando centenas e centenas de vidas. Demonstrando a pouca fé nas autoridades públicas na busca de soluções para o grave problema, o semanário caricato mostrava a população em prece, manifestando o desejo de que a epidemia não se lembrasse de vir até a cidade litorânea gaúcha, sendo esses os votos que se endereçava à Divina Providência. O próprio jornalista também se auto-representava a rezar, designando sua opinião de que o povo estava abandonado à sua própria sorte, de modo que a ajuda divina seria a única que poderia valer naquela crítica situação. De acordo com a folha, as precauções tomadas pelos administradores da cidade eram insuficientes, como no caso do tratamento direcionado aos barcos que adentravam o porto, focos em potencial da peste, acusando que as embarcações procedentes de epicentros de epidemias eram economicamente desinfetadas com apenas uma garrafa de água. A folha mostrava que o calor inclemente, somado à imundície que se espalhava pela cidade, era um fator de extremo agravamento da situação, consistindo verdadeiro convite à epidemia. Descrevia a folha que as ruas e praças estavam convertidas em monturas, a que o sol contemplava serenamente, com os terríveis efeitos de seus raios mortais. O simbolismo do sol é tão diversificado quanto é rica de contradições a realidade solar, de maneira que o astro imortal nasce toda manhã e se põe toda noite no reino dos mortos, de modo que ele pode tanto guiar as almas e trazê-las à luz, quanto pode levar os homens e, ao se por, dar-lhes a morte26 . Chamando a atenção 25  BISTURI. Rio Grande, 10/fevereiro/1889. p. 4-5. 26  CHEVALIER & GHEERBRANT. p. 836.

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para as falhas da autoridade pública no controle do lixo na cidade, o jornal caricato buscava demonstrar que a associação entre sujeira e os efeitos do excessivo calor poderiam ser um indelével convite à ação da peste. Ainda no mesmo conjunto de desenhos, o semanário caricato apresentava aquilo que considerava como um abandono dos homens públicos para com o município, chamando atenção para o som tristemente monótono dos sapos e das rãs que povoavam os charcos da cidade. Sapos e rãs têm significados por vezes análogos, sendo considerados como animais crepusculares que comumente despertam medo, fazendo deles um símbolo de fealdade e de falta de jeito27 . Além de denunciar a inação das autoridades citadinas, o Bisturi buscava demonstrar que as mesmas estavam concentrando esforços em ações sem maior relevância diante do mal maior que ameaçava a comuna, caso da colocação de expositores na Praça D. Izabel, cuja instalação era noticiada com carregadas cores de ironia, afirmando que, para cúmulo de tantas belezas, havia agora os novos quiosques. Segundo a folha, não era aquele tipo de “progresso” que a população estaria por esperar. Encerrando o conjunto de caricaturas que buscava apresentar as condições que a cidade tinha diante do perigo epidêmico, o jornal apresentava os governantes montados em tartarugas, que podem significar a lentidão, o excesso de peso, a involução e a estagnação28 , numa clara alusão crítica aos administradores. O hebdomadário associava as censuras aos homens públicos tendo em vista os riscos da epidemia, com as atitudes consideradas pífias em relação a algumas das mais veementes reivindicações da comunidade portuária, mormente ligadas à tarifa especial que protegia os produtos gaúchos e à ampliação do sistema de transportes, com as obras da abertura da barra do Rio Grande. A referência a esses temas ficava expressava no texto e no desenho na forma de uma placa sobre a tarifa. A esperança do jornal estava na vitória da oposição que, representada por um vulcão29 , eliminaria 27  CHEVALIER & GHEERBRANT. p. 764 e 803. 28  CIRLOT. p. 551. 29  O vulcão tem um significado ambíguo pois não só é símbolo da força primária da natureza e do fogo vital (criador e destruidor), mas também pode ser o lugar simbólico do descenso (involução) dos elementos, que em seu poço se relacionam e transformam (CIRLOT. p. 605). No caso dessa caricatura, o vulcão representava a força que iria destruir os representantes da involução – os conservadores –, promovendo a ascensão do progresso através dos liberais.

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os governantes conservadores, simbolizados por um rato, ou seja, um animal esfomeado, prolífico e noturno, que aparece também como uma criatura temível, até infernal, sendo ainda tido como impuro e como uma imagem da avareza, da cupidez, da atividade noturna e clandestina, podendo também ser considerado como um ladrão30 . Servia como legenda dessa última parte da gravura a irônica frase: Enquanto as nossas vistas se distraem na admiração de tantas coisas bonitas e úteis, a tarifa e a proposta para o abrimento da barra... caminham com esperança de chegar ao porto e salvamento e a tempo de assistir ao parto da montanha... No mesmo número, à última página, o Bisturi era bem mais incisivo e veemente no ataque às autoridades públicas municipais, imputando-lhes a culpa pela possível proliferação de foco epidêmico na comuna portuária. Na perspectiva da caricatura publicada pela folha, tais homens públicos eram apresentados enforcados num galho de árvore. A legenda era cheia de ironia: Tratando-se de por em prática todas as precauções tendentes a evitar a propagação nesta cidade da febre amarela que atualmente reina no Rio de Janeiro com medonha intensidade, resolvemos por esses senhores de quarentena, fora de casa até que estejam convenientemente desinfetados e tenham carta limpa...31 [Figura 17]. Em outra edição, o Bisturi publicava caricatura na qual o próprio jornalista abandonava sua escrivaninha de desenho, cabelos arrepiados, ante o espectro do ceifeiro de vidas, manifestando que o receio da epidemia continuava rondando a comuna. Segundo o jornal aquele não era um momento propício para o trabalho, tendo em vista o calor, o carnaval e o medo da peste. Afirmava a folha: Estamos em pleno carnaval, trabalhar nesta semana de entusiasmo, de excessos, de suores e de febre amarela!... horror!!... nem é bom falar nisto... Horror!32 [Figura 18]. Ao delegado de higiene pública foram imputadas várias culpas pelos riscos de epidemia o que também viria à tona nos desenhos do semanário caricato o qual, em primeira página, estampou o servidor em estado aflitivo, deitado em seu leito, sendo alvo das vozes dos adversários que bradavam “Peça demissão, peça demissão...”. A legenda era 30  CHEVALIER & GHEERBRANT. p. 770-1. 31  BISTURI. Rio Grande, 10 de fevereiro de 1889. p. 8. 32  BISTURI. Rio Grande, 3/março/1889. p. 4.

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sucinta: O delegado de higiene pública – Que gritaria Meu Deus!...33 [Figura 19]. Já ao final do primeiro trimestre de 1889, o periódico caricato riograndino demonstrava que o pavor diante da peste não havia arrefecido junto à população, fazendo referência ao fato de que o espectro da morte poderia continuar a rondar, tendo em vista que, em outros portos, a sua ação ainda se fazia sentir. O símbolo mais uma vez era o do ceifeiro que dilapidava vidas com sua enorme foice, declarando a folha: A febre amarela continua em Santos e na Corte a ceifar centenares de vidas...34 [Figura 20].

33  BISTURI. Rio Grande, 17/março/1889. p. 1 34  BISTURI. Rio Grande, 24/março/1889. p. 8.

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- Figura 15126

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- Figura 20 Apesar dos desenhos serem a marca registrada do Bisturi, também através de textos o jornal manifestou sua insatisfação com os administradores vinculados ao partido conservador no que tange à precariedade de providências para evitar os males da epidemia. As possíveis brechas deixadas pelas autoridades, que teriam permitido que portadores da doença chegassem à cidade foram denunciadas pela folha. Nesse sentido, o jornal explanava sobre a entrada para a Santa Casa de um indivíduo que desembarcara do vapor Rio Pardo, com todos os sintomas da mortífera epidemia – a febre amarela –, o que se constituiria, irrecusavelmente, em uma outra prova da desídia dos senhores encarregados de zelar pelas vidas e saúde dos cidadãos. De acordo com o semanário, a situação parecia provar que os governantes, ao contrário de cuidar da população, estariam cegamente empenhados na invasão da horripilante hóspede que, na capital do Império, Santa Catarina e outros pontos vinha fulminando centenares de vidas preciosas35 . Destacava o hebdomadário caricato que a imprensa local, chamando atenção mormente para as folhas liberais, vinha, em uma linguagem enérgica e 35  BISTURI. Rio Grande, 17/março/1889. p. 2-3.

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franca, estigmatizando o demasiado relaxamento e pouco caso das autoridades sanitárias, as quais estariam a continuar na mais completa impassibilidade, surdas aos clamores da população inteira e do jornalismo, já estafado de pregar no deserto. Na concepção do periódico, desprezando todas as medidas urgentemente reclamadas e que deveriam escrupulosamente ser prescritas, estariam alegando os homens públicos que nada era preciso fazer, porque as condições climatéricas do momento estariam a constituir positivamente sólidas garantias para impedir a evasão da doença. De acordo com a folha, o diagnóstico dos servidores públicos consistia em uma suposição toda duvidosa e falsa, a qual expunha uma população inteira à mais medonha das catástrofes, permanecendo os jornalistas apreensivos diante de tanta incúria e desídia36 . A ocupação de cargos públicos por questões de filiações partidárias também foi denunciada pelo Bisturi, segundo o qual, naquele grave momento, o que se devia exigir era competência e não afeição partidária, como quesito fundamental para o preenchimento das funções públicas. Em matéria intitulada “O secretário da inspetoria da saúde do porto”, o jornal divulgava correspondência que passava uma estrondosa descompostura contra os edis da Câmara Municipal, denunciado a demissão de funcionários por motivos políticos, quer seja, o afastamento de empregados que teriam votado no partido liberal, sendo demitidos pela administração da agremiação adversária. A folha citava que o ato que acabara de praticar a maioria conservadora era de 36  BISTURI. Rio Grande, 17/março/1889. p. 2-3. Em elogio ao provedor da Santa Casa, o jornal destacava novamente a presença de portadores de febre amarela na cidade. Ao enaltecer a chefia do hospital, a folha buscava demonstrar que não era só de críticas a sua atuação, ainda mais quando o enaltecimento direcionava-se a uma figura que não ocupava cargo de natureza política. Era o seguinte o texto: Não temos mais na Santa Casa de Misericórdia pessoa alguma em tratamento de febre amarela. É oportuno lembrarmos aqui os importantes serviços prestados pelo provedor daquele pio estabelecimento, que em tão crítica situação não desamparou um só momento os infelizes que ali eram recolhidos, atacados da horrível enfermidade, fazendo com que fossem escrupulosamente cumpridas todas as prescrições médicas. Este cidadão tem justo direito à gratidão de todos, pelo notável zelo, dedicação e humanidade com que tem desempenhado o espinhoso cargo de provedor da Santa Casa. A imprensa local já lhe teceu os merecidos elogios, pelos seus bons serviços, os quais ninguém pode negar. O Bisturi não tem política, nem sabe bajular, mas tem sempre palavras de justiça para aqueles que se tornam dignos da consideração dos seus concidadãos. É dever de toda a imprensa independente e moralizada trazer à luz da publicidade os fatos que nobilitam os homens e os cercam de estima e gratidão pública. Temos cumprido o nosso dever, juntando a nossa fraca voz à dos nossos colegas, para que seu nome brilhe perdurável no coração do povo agradecido (Bisturi. Rio Grande, 24/março/1889. p. 3).

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uma vileza só própria de uma política tacanha e mesquinha37 . A publicação caricata criticava também o periódico rio-grandino Echo do Sul, órgão dos conservadores, por elogiar a ação de autoridades públicas ligadas aos assuntos da higiene38 . Para o Bisturi, a nomeação fora injusta, exclamando que, em outra parte seria uma pouca vergonha, e só mereceria o desprezo de todos, aqueles indivíduos que não coravam em dar um emprego por razões partidárias. Acusava que o nomeado mal sabia assinar seu nome, ao passo que o Echo dizia que o mesmo reunia as precisas habilitações para o cargo. Ironicamente, o semanário caricato afirmava que o novo administrador sabia também fazer cigarros e passar descomposturas, estando, portanto, nos casos de ser secretário da inspetoria e mais alguma coisa, e complementava, debochando que se pertencesse ao partido dominante, poria em campo todo o seu prestígio para que ele viesse a ser nomeado secretário da Câmara, onde ali sim, o homem faria uma bonita figura. Concluía o artigo, com a breve e significativa expressão: “Ah! mundo!.. ah! política!”39 . Desse modo, o Bisturi, durante os primeiros meses de 1889, fez questão de enfatizar o tema da epidemia, acompanhando a onda de medo que convivia cotidianamente no seio da população rio-grandina. Ainda que seus desenhos e textos fossem impressos em preto sobre branco, simbolicamente, o hebdomadário pintava em cores vivas a peste que estaria a se avizinhar da comunidade portuária. Em quase todas as caricaturas estampadas sobre o tema, estava presente o esqueleto da morte, o ceifeiro de vidas, apavorante tanto na aparência quanto no significado, demonstrando não só a morte individual, mas uma possível destruição que ameaçava a própria existência espiritual40 e da coletividade como um todo. Não deixava a folha caricata de também utilizar-se dos riscos da epidemia para atacar a municipalidade 37  Bisturi. Rio Grande, 31/março/1889. p. 2. 38  Os elogios do Echo do Sul, citados pelo Bisturi relacionavam-se com a fiscalização sobre a ação de farmacêuticos, comentada por aquele como segue: Mais uma vez o zeloso inspetor de higiene pública vem de dar a prova mais incontestável do interesse que toma pelo serviço sanitário que lhe fora acertadamente confiado, chamando ao cumprimento da lei os seus infratores. Em outro enaltecimento à administração provincial, o Echo noticiava a nomeação para a inspetoria do porto da província, considerando-a como acertada, pois o nomeado reuniria as precisas habilitações para o desempenho daquele cargo (ECHO DO SUL. Rio Grande, 24/março/1889. p. 2-3). 39  BISTURI. Rio Grande, 31/março/1889. p. 3. 40  CHEVALIER & GHEERBRANT. p. 622.

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e as autoridades em geral ligadas aos conservadores, cobrando providências e criticando a atuação dos mesmos, utilizando-se do debate sobre o assunto com fins partidários, tendo em vista sua aproximação com os liberais. Assim, ao longo dos primeiros meses do ano que demarcaria o encerramento da forma de governo monárquica, a epidemia de febre amarela que atingia algumas cidades brasileiras tornar-se-ia tema recorrente junto à comunidade rio-grandina. Cidade portuária, o Rio Grande permanecia como alvo em potencial da moléstia que parecia bater às portas de seus habitantes. Destruição, aniquilamento e morte eram palavras presentes de boca em boca, nos debates, nos diálogos e nas páginas da imprensa. O medo da morte rondava pelos cantos, no sentido de que ela designa o fim absoluto de qualquer coisa de positivo, ou seja, um ser humano, um animal, uma planta, uma amizade, uma aliança, a paz, uma época, de modo que não se fala na morte de uma tempestade, mas na morte de um dia belo. Nesse quadro, enquanto símbolo, a morte é o aspecto perecível e destrutível da existência, indicando aquilo que desaparece na evolução irreversível das coisas41 . Peste e morte associavam-se no imaginário de medo dos rio-grandinos e os jornais refletiriam este pavor coletivo. O combate às epidemias tornava-se uma luta incansável e, por vezes, inglória, nos mais variados recantos do mundo, onde se buscava, através dos avanços médicos e higiênicos, debelar os males advindos da peste, sendo esta, inclusive uma das ações dos países hegemônicos imperialistas, já que os impérios ofereciam um forte incentivo ao controle das chamadas doenças tropicais42 . Nesse contexto, se os países centrais da denominada “civilização” ocidental combatiam estas moléstias, o Brasil, que almejava uma posição mais destacada no rol dessas “nações civilizadas”, também seguia esse caminho, ainda mais tendo em vista os focos epidêmicos concentrados em algumas das principais localidades brasileiras ao final do século XIX43 , e a cidade do Rio Grande constituía um microcosmo desse universo. A conjuntura mundial 41  CHEVALIER & GHEERBRANT. p. 621. 42  HOBSBAWM, Eric J. A Era dos Impérios (1875-1914). 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989. p. 349. 43  CASTRO, Jorge Alberto. Apontamentos sobre o desenvolvimento da Medicina no Brasil, desde o descobrimento até o presente. In: ALVES, F. N. (org.). Brasil 2000 – quinhentos anos do processo colonizatório: continuidades e rupturas. Rio Grande: FURG, 2000. p. 149-150.

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refletia à época um fenômeno característico da formação histórica humana, em que a doença esteve marcando a sua presença e revelando traços e intrigas de várias sociedades, de modo que, fossem elas reais ou fictícias, tais tramas sociais só viriam a tornar-se visíveis diante do flagelo44 . Medo, epidemia e morte, uma tríade assustadora que provocaria comoção junto à comunidade portuária do Rio Grande. Os jornais assumiriam o discurso acerca do papel social da imprensa, na defesa dos direitos e dos interesses da população em geral, exigindo que fossem tomadas as devidas providências no sentido de enfrentar a peste e impedir que a mesma adentrasse o sítio urbano. Ao mesmo tempo, os periódicos utilizaramse da trama em torno da moléstia para manterem o já tradicional conflito discursivo entabulado por meio das páginas impressas, nas quais liberais e conservadores digladiavam-se mutuamente. Foi o caso do Bisturi que, com seu estilo e estratégias discursivas, chamava a atenção da sociedade para os riscos da doença que se avizinhava. Palavras e desenhos apareciam no papel impresso do semanário caricato como mecanismos que despertavam reações íntimas e coletivas da comunidade, inspirando o cuidado, tanto em nome das conveniências sociais, quanto refletindo as convicções partidárias do jornal, em oposição aos governantes de então, numa teia em que se inter-relacionaram imprensa, epidemia e política. A breve amostragem exemplificativa e este estudo de caso específico apresentaram uma perspectiva das formas pelas quais a caricatura apresentou algumas das ameaças à saúde pública no Rio Grande do Sul do final do século XIX.

44  FERREIRA, Renata Brauner. Epidemia e drama: a Gripe Espanhola em Pelotas – 1918. Rio Grande: FURG, 2001. p. 15.

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OS DIÁRIOS ASSOCIADOS E O ESTADO NOVO NO BRASIL: CORDIALIDADES EM NOME DA DEMOCRACIA Júlia Silveira Matos1 Carmem G. Burgert Schiavon2

O estadista é o indivíduo que, totalizando os valores do seu tempo, faz da sua vida uma unidade de tal modo dependente das outras unidades concorrentes do conjunto social, que cada uma delas, sem embargo das suas particularidades, dos seus caracteres individuais, nele se completa e por ele se realiza no sentido do universal. Assis Chateaubriand, 1926.

Pensar o indivíduo nunca foi algo fácil e esta atividade complicase mais ainda quando a pessoa em questão é nada mais, nada menos do que Assis Chateaubriand. Homem de consideráveis polêmicas, foi grande empreendedor dos meios de comunicação e, à parte de seus embates pessoais, 1  Doutora em História, Professora do Curso de História do Instituto de Ciências Humanas e da Informação da Universidade Federal do Rio Grande (ICHI-FURG). Contato: jul_matos@ hotmail.com 2  Doutora em História, Professora dos Cursos de História e Arquivologia do Instituto de Ciências Humanas e da Informação da Universidade Federal do Rio Grande (ICHI-FURG). Contato: cgbschiavon@yahoo.com.br

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trouxe grandes modernizações nessa área para o Brasil. No entanto, seus artigos inflamados – atividades estas nem sempre claras – e sua participação na política nacional, lhe renderam fama de ganancioso, aproveitador e desajustado. Em meio aos paradigmas de sua personalidade, pode-se perceber que, apesar de controverso, Chateaubriand foi um homem constante frente aos seus posicionamentos ideológicos, afinal, a defesa das liberdades individuais sempre constituiu a sua bandeira de honra e, independentemente do momento político, esse tema se faz presente em seus textos jornalísticos. Sendo assim, o objetivo deste texto consiste na análise do posicionamento político de Assis Chateaubriand frente à transformação do cenário político em 1937, às vésperas do decreto do Estado Novo no Brasil e, também, em momentos posteriores a este fato. Para facilitar a compreensão do cenário político brasileiro desse momento, a seguir, apresenta-se um pequeno esboço da situação política em princípios do século XX. 1 A conturbada década de 1930 A década de trinta do século XX apresenta uma série de transformações para o Brasil, haja vista que o país passa de uma posição agro-exportadora para uma condição de base urbana industrial. É claro, não existe, neste momento, a consolidação capitalista no Brasil, entretanto, “os pressupostos, as bases, os fundamentos necessários para o desenvolvimento dessa nova ordem econômico-social foram lançados durante o primeiro governo Vargas” (DINIZ, 1999: 24). Por outro lado, destaca-se que a sociedade brasileira, desde os anos vinte, vivenciou inúmeras transformações, tendo em vista que a urbanização e a industrialização tomaram corpo e a classe operária, por sua vez, passou a lutar por melhores condições de vida3. É nesse período que o país vivencia a efervescência do movimento modernista, com a realização da Semana de Arte Moderna de São Paulo, em 1922, e a ocorrência das revoltas tenentistas de 1922, 1924 e a Coluna Prestes – uma série de conflitos armados que tiveram 3  Sobre este ponto, Eli Diniz esclarece que “não se trata de afirmar que a construção do capitalismo industrial no Brasil se deu nos anos 30. Como é sabido, a consolidação da ordem industrial ocorrerá algumas décadas depois, sobretudo com a expansão impulsionada pelas políticas do governo Kubitschek. Porém, os pressupostos, as bases, os fundamentos necessários para o desenvolvimento dessa nova ordem econômico-social foram lançados durante o primeiro governo Vargas” (DINIZ, 1999: 24).

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início com a tomada do Forte de Copacabana e que só chegariam ao seu final com a deposição do governo de Washington Luís (eleito em 1926) e o impedimento da posse do presidente eleito, Júlio Prestes. É dentro desse cenário de extrema ebulição política que Getúlio Vargas, no momento governador do Rio Grande do Sul, após inúmeras negociações e arranjos políticos, candidata-se à Presidência do Brasil à frente da coalizão política da Aliança Liberal. Esta representa o resultado final do acordo firmado entre os Estados de Minas Gerais e Rio Grande do Sul, em 17 de junho de 1929, que entre outras condições estabelecia o nome de Getúlio Vargas ou Borges de Medeiros como candidato à Presidência da República, ou no caso de escolha direta do Presidente Washington Luís, determinava que Minas só aceitaria a candidatura caso o vice-presidente fosse um gaúcho. Para o historiador Edgard Carone, A Aliança Liberal representou uma cristalização paradoxal das oposições. Diferentemente de outros movimentos anteriores, ela significou um amálgama de tendências mais complexas e geograficamente amplas, tornando-a uma realidade mais atuante. Sua concretização foi possível principalmente devido à cisão da oligarquia dominante, em virtude do crescimento e expansão de Estados politicamente relegados a segundo plano pela união do “café com leite” (CARONE, 1965: 76-77).

Após as recusas do Estado de Pernambuco e Bahia para indicar um nome para preencher o cargo de Vice-Presidente, o então governador da Paraíba, João Pessoa, aceita o convite realizado pela Aliança Liberal. Diante de um processo fraudulento, Getúlio Vargas perde as eleições presidenciais de primeiro de março de 19304, para o candidato paulista Júlio Prestes, mas os aliancistas denunciam as fraudes eleitorais5 e o uso da máquina eleitoral governista e iniciam um movimento que toma proporções nacionais, com

4  “Getúlio Vargas obteve aproximadamente oitocentos mil votos, e o candidato oficial, Júlio Prestes, foi eleito com cerca de um milhão de votos” (TOTA, 1996: 11). 5  O brasilianista Thomas Skidmore esclarece que a questão das fraudes eleitorais não constituía um tipo de prática nova na política brasileira, muito pelo contrário, “nas eleições anteriores, especialmente as de 1910 e 1922, os candidatos derrotados tinham sempre acusado de fraude a contagem dos votos, da mesma forma que reclamavam que a força, a ameaça e o suborno eram usados à boca das urnas” (SKIDMORE, 1969: 22).

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o assassinato de João Pessoa, em 26 de julho de 19306. Em 10 de outubro, unidades do Exército rebelam-se em praticamente todo o país, selando o término da República Oligárquica Brasileira e, sendo assim, “os comandantes do Exército e da Marinha encontraram-se colocados numa posição que se deveria tornar cada vez mais familiar na subseqüente história do Brasil: o papel de árbitros finais da política interna” (SKIDMORE, 1969: 25). Em 4 de novembro de 1930, Getúlio Vargas é empossado como presidente da República. Em seu uniforme cáqui é conduzido ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, em caráter “provisório”, com base em uma das suas principais características, a de unir facções contrárias; de lá inicia uma nova etapa da história brasileira: a Era Vargas, e só deixaria o poder 15 anos mais tarde, também induzido por uma estratégia dos seus antigos apoiadores – a cúpula militar do exército e grupos da elite civil. Ao ser conduzido ao poder, Getúlio Vargas suspende a Constituição de 1891 e designa interventores para todos os Estados brasileiros, com exceção de Minas Gerais, local governado por Olegário Maciel, seu aliado político, que pode se manter no cargo “porque havia participado da revolução, era prestigiado pelo ministro da Guerra e modificara seu ministério” (CARONE, 1965: 89). Dentro desse quadro, o 4 de novembro não representa somente o desfecho da revolução de 1930, o momento significa a derrocada da República Velha (1889-1930) e a queda da aliança café-com-leite e da política dos governadores. A partir deste momento, o país passa por inúmeras transformações. Numa análise geral, destaca-se o papel desempenhado pelo quadro econômico e financeiro internacional gerado pelo crack da Bolsa de Valores de Nova York, em outubro de 1929. A ocorrência desta crise, apesar de ser negativa para as exportações de café7, acaba gerando um saldo positivo para o Brasil, 6  Sobre o assassinato de João Pessoa, Carone informa que “a razão de sua morte eram questões regionais, acrescidas das circunstâncias políticas do momento. As principais nasciam de sua política tributária, que onerava grandemente os produtos entrados por Pernambuco, forçando o comércio por Cabedelo, numa tentativa de luta contra os oligarcas sertanejos e fortalecimento dos elementos da capital, com degola política dos candidatos representativos do sertão, principalmente das cidades do interior mais atingidas por estas medidas” (CARONE, 1965: 80). 7  “O preço médio do café no exterior cai de 4.71 libras em 1929 para 2.69 em 1930; a produção, em 1929, atinge 28.941.000 sacas e a exportação 14.281.000, sem se falar nos estoques acumulados” (FAUSTO, 1986: 242).

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traduzido por incrementos na industrialização do país, tendo em vista que a redução nas exportações ocasiona a falta de recursos em moeda estrangeira para a importação de produtos industrializados e que, diante dessa nova realidade, resta ao Brasil a alternativa da produção interna em substituição às importações8. No âmbito social, a mudança mais significativa fica por conta das relações entre o governo e os trabalhadores, com a criação do Ministério do Trabalho, em 25 de dezembro de 1930, e a posterior adoção de uma legislação trabalhista com concessão de direitos tais como: a fixação da jornada diária de 8 horas, direito de férias remuneradas, regulamentação do trabalho feminino, noturno, de menores, entre outros. Paralelamente à adoção desses avanços trabalhistas, Getúlio Vargas impossibilita a existência de um sindicalismo autônomo. No aspecto cultural, as reformas no ensino foram empreendidas no nível federal, por meio da implantação de um ensino técnico, cujos reais interesses estavam voltados à obtenção e qualificação de mão-de-obra para a industrialização do país. Nessa época, o Brasil passa a ser palco de inúmeras outras transformações na educação, as quais resultam numa melhor qualidade e padronização do ensino, apesar das divergências entre governo e Igreja Católica, que imbuída da idéia de tornar o ensino religioso obrigatório, pressiona o governo getulista.

Por outro lado, a centralização política exercida por Vargas origina uma série de problemas advindos tanto das forças que o apoiaram, afinal, “o compromisso de correntes antagônicas fatalmente tendia a desagregarse depois da vitória” (CARONE, 1965: 84), quanto dos que estavam na oposição ou, ainda, daqueles que passaram a ser oposicionistas ao seu governo. Entretanto, é em São Paulo que sua forma de governo – autoritária e centralizadora – acaba gerando os mais profícuos focos de resistência. A 8  Com relação ao crescimento industrial, o historiador Edgard Carone evidencia que “o fenômeno do crescimento industrial, na verdade, é mundial e o Brasil é um dos países que mais expandiram percentualmente a sua produção, entre 1930 e 1938: com o índice 100 em 1929, o Japão lidera o aumento, passando de 94,8 para 473,0, isto é, 378,2%; a Rússia vai de 130,9 para 470, com 339,1%; o Brasil, de 77,2 chega a 192,6, com 115,4%; a Holanda, de 102,1 passa a 104,1, com 2,0%; a Alemanha, de 85,9 chega a 126,2, com 40,3%. Se focalizarmos o caso particular de cada atividade brasileira, vemos que, entre 1930 e 1939, os produtos transformados crescem de 70 para 229%; a produção extrativa mineral, de 93 passa a 317%; a produção industrial básica vai de 146 para 1.192%” (CARONE, 1976: 57-58).

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elite paulista não aceitava a perda de poder e instigada por um maior espaço de participação política representa um grande foco de resistência à figura de Getúlio Vargas, advindo daí as raízes da revolução de 1932, revolução que: Representa a revolta de todos os setores da burguesia paulista, não tanto por razões estritamente econômicas (bem ou mal o governo virase obrigado a considerar o problema do café, estabelecendo um novo esquema de defesa), mas sobretudo por razões de natureza política. A decepção dos democráticos levou à luta tanto a “aristocracia do café”, como todo o grupo industrial mais importante do país que, sem discrepâncias, realizou um considerável esforço para armar o Estado rebelde (FAUSTO, 1986: 249).

Muito embora a revolução de 1932 tenha sido sufocada pelas forças do Exército Nacional, algumas de suas sementes começaram a frutificar em maio de 1933, no momento em que numa “tentativa de apaziguamento nacional, o governo permitiu a organização de uma Assembléia Constituinte encarregada de elaborar a nova Carta Constitucional do país” (FERREIRA, et al, 2003: 114) e, principalmente, por ocasião da promulgação da nova Constituição, em 14 de julho de 1934, um verdadeiro produto híbrido, pois o documento jogava tanto com os ideais do liberalismo como àqueles do reformismo econômico. Do ponto de vista social e político, o documento jurídico trouxe significativas mudanças para o Brasil. Numa caracterização geral, destaca-se a instituição do voto secreto, o voto feminino (obrigatório) para mulheres funcionárias públicas, a representação profissional, por meio da qual os sindicatos indicavam novos membros para o Congresso Nacional; introdução de leis sociais e a organização de sindicatos. Com relação à adoção desta política “assistencialista”, a historiadora Mercedes Kothe chama a atenção para o fato de que a legislação trabalhista não foi estendida à população rural, ela ainda considera que “para conseguir o apoio da população, foram outorgadas algumas medidas trabalhistas e sociais, que vieram a beneficiar segmentos da população urbana, sendo esquecidos, porém, os camponeses” (KOTHE, 2000: 104). Uma das determinações da Constituição de 1934 era a realização de eleições para presidente da República, em janeiro de 1938. Dessa forma, a partir de 1936, a questão da sucessão presidencial passa a ser pauta nas discussões do cenário político nacional. Apesar da tentativa

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de esvaziamento das discussões por parte de Getúlio Vargas, Armando de Sales Oliveira, governador de São Paulo, lança sua candidatura pela oposição após ter tentado obter, sem êxito, o apoio do grupo da situação. As forças situacionistas, em contrapartida, apresentam o paraibano José Américo de Almeida. Além destes, o chefe integralista, Plínio Salgado, também se candidata à presidência da República.

A campanha para a “sucessão” de Getúlio Vargas, em razão do estado de guerra decretado no Brasil9 – pela justificativa de combate ao comunismo – desenvolve-se num quadro de repressão, censura e restrições de participação política. Os mesmos instrumentos criados para a repressão ao comunismo também foram aplicados aos antigos aliados de Getúlio Vargas, àqueles contrários a sua política de permanência no governo, de forma a enfraquecêlos ou neutralizá-los. Esta era a posição defendida por Góis Monteiro; ele almejava construir um exército forte, unificado e isento de influências políticas e assim foi feito. 2 A figura de Assis Chateaubriand e o governo de Getúlio Vargas Antes de se adentrar ao ano de 1937, propõe-se a análise de alguns embates políticos vividos pelo fundador e empreendedor dos Diários Associados. Sendo assim, é importante considerar-se que desde os anos de 1925, Chateaubriand buscou aproximação com Getúlio Vargas, então Ministro da Fazenda. No processo de divulgação e de propaganda do nome de Vargas, os Diários Associados foram fundamentais, assim como o inverso, pois Vargas possibilitou – e muito – a expansão da rede. No entanto, no decorrer dos anos que se sucederam à Revolução de 1930, a política ditatorial varguista começou a alijar do governo as forças que o apoiaram, situação semelhante à ocorrida no Rio Grande do Sul, seu Estado natal. Em 1932, o Rio Grande do Sul colocou-se contra Getúlio Vargas e aliou-se às forças revolucionárias de São Paulo. O mesmo ocorreu com o fiel 9  Inicialmente, o estado de guerra é decretado por um período de três meses, mas, posteriormente, “foi prorrogado ininterruptamente, desde o levante comunista até junho de 1937, quando líderes das bancadas e o ministro da Justiça, Macedo Soares, decidiram por sustá-lo. No entanto, em outubro do mesmo ano, sob pretexto da iminência de um novo golpe comunista, em virtude de um plano recentemente descoberto, o Executivo solicitou mais uma vez a declaração do estado de guerra” (FERREIRA, et al, 2003: 141).

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escudeiro do presidente, Assis Chateaubriand, posicionamento este que não é de se estranhar, tendo em vista que ele estava, desde os primeiros sinais de lentidão no processo de redemocratização do país, decepcionado com os rumos do governo provisório. De acordo com Fernando Morais, a revolução de 1930 mal triunfara e Chateaubriand já escrevia críticas incessantes aos tenentes: Tudo indicava que ele escrevia por convicção. E com um fôlego admirável: não havia uma semana em que seus jornais não estampassem artigos insistindo no mesmo cantochão – o problema não era Getúlio, mas os tenentes que o empurravam cada vez mais para a esquerda. Eles, sim, eram o grande obstáculo à redemocratização do Brasil, que só viria quando a Constituinte fosse convocada (MORAIS, 1994: 260).

Dessa forma, o jornalista revelou que seu posicionamento político não estava estritamente ligado aos seus interesses comerciais, mas também a um conjunto de ideais obscuros para a maioria de seus amigos e leitores. A partir desse momento o dono dos Diários Associados deu início a uma campanha pró-redemocratização, a qual tomou pulso durante a Revolução de 1932, e essa postura incendiária levou o governo a intensificar a censura sem seus jornais naquele ano. Chateaubriand passou a ser perseguido pela censura do Governo Provisório, que passou a visitar seus jornais no meio da noite, tratando-os como um órgão criminoso. Seus jornais eram vistoriados, regularmente, com o intuito da prisão do seu proprietário. Neste mesmo ano, Chateaubriand foi preso ao tentar entrar em casa, após semanas escondido com amigos, ficou 24 horas na prisão. Entretanto, após sua libertação permaneceu em prisão domiciliar. Enquanto isso, em São Paulo, seu irmão Oswaldo Chateaubriand incendiava as páginas de seus jornais paulistas com artigos contra Getúlio Vargas, além de guardar em seus porões armamento para a almejada revolução. Esta situação agravava em muito a situação de Assis Chateaubriand no Rio de Janeiro. Diante desse contexto, Chateaubriand resolveu fugir para São Paulo utilizando-se de documentos falsos; no entanto, acabou preso e levado para Rio Branco. Em pouco tempo os principais veículos de imprensa já haviam recebido o telégrafo que comunicava a prisão do importante jornalista. Após algum tempo preso o jornalista foi comunicado que seria

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deportado, o que na realidade acabou não acontecendo. Chateaubriand estava preso, seus jornais fechados ou a serviço do governo e sua casa saqueada pelos militares. Parecia que chegara ao fim seu sagaz poder de persuasão. Além disso, o governo iniciou seu plano de aquisição dos jornais pertencentes aos Diários Associados por meio da compra das dívidas de Assis Chateaubriand. No entanto, o governo não contava com um obstáculo, o medo dos banqueiros das possíveis retaliações do jornalista. Segundo Fernando Morais, este obstáculo não foi suficiente para impedir que Maciel Filho10, a mando de João Alberto, comprasse a dívida dos jornais junto a Oscar Flues & Cia e tomasse posse do maquinário dos Diários e Associados. Chateaubriand logo depois do golpe declarou em artigo que esta atitude de João Alberto não impedia a existência do jornal, pois este era feito com jornalistas e não com “linotipos”. Assim em 14 de janeiro de 1933 “(...) as máquinas da Treze de Maio voltariam a funcionar para colocar nas ruas não mais o provocativo O Jornal, mas A Nação, um diário semi-oficial a serviço de Getúlio, de João Alberto e do tenentismo” (MORAIS, 1994: 308). Desta forma, Assis Chateaubriand saiu da prisão após 41 dias, sem seu veículo de imprensa mais importante, O Jornal. Entretanto, logo começou a fazer contatos com antigos partidários e deu início a uma campanha para levantar fundos de ajuda aos exilados. Novamente com apoio dos amigos e de posse de sua revista O Cruzeiro, além dos jornais de São Paulo, Assis Chateaubriand deu continuidade as suas atividades jornalísticas. Em fins de fevereiro de 1933 julgou-se preparado para iniciar outro ciclo de embates com o governo central; para tanto, aproveitouse do descuido da censura e publicou em São Paulo uma série de artigos em defesa da anistia aos exilados políticos. Os primeiros artigos foram assinados com um pseudônimo, mas logo se tomou de ousadia e assinou com seu próprio nome. O resultado é que, no dia seguinte a este episódio, Chateaubriand foi levado ao presídio político localizado no bairro Paraíso, em São Paulo. Nesse momento, Assis Chateaubriand chegou a ser ameaçado de deportação para o Japão. Enfim, os ânimos entre ele e o presidente Vargas estavam alterados. O jornalista ainda precisava retomar seus jornais. Com a morte do interventor 10  Tinha 30 anos, era advogado e filósofo. Foi aluno de Benedetto Croce na Itália e em 1954 foi apontado como o verdadeiro autor da carta-testamento de Getúlio Vargas.

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de Minas Gerais Olegário Maciel surgiu a oportunidade a Chateaubriand para a recuperação do O Jornal11. Este conseguiu um novo acordo com o presidente e recuperou seu principal veículo de imprensa. Juntamente com a recuperação de sua matriz conseguiu também os Diários Associados de Minas Gerais que estava nas mãos de Afonso Arinos. Dentre tantos percalços o proprietário dos Diários Associados conseguiu prosseguir seu projeto expansionista. Apesar da trégua com o presidente seu relacionamento com o “ditador”, como o chamava, não foi restabelecido até o golpe do Estado Novo, em 1937. O ano de 1937 se iniciara inflamado com a proximidade das eleições presidenciais. Chateaubriand desde cedo se colocou como militante pela causa democrática, em seu artigo de 4 de fevereiro de 1937, publicado no O Jornal, afirmou: (...) o direito que não pôde ser postergado ontem, também não venha ser violado amanhã. (...) Em 1937, os chefes dos executivos federal e rio-grandense estão no dever de assegurar ao Brasil o que o Brasil já deu ao Rio Grande. Do rebelde de há seis anos, tudo o que o povo brasileiro exige é o pleito presidencial livre, em que a soberania, escolha seu mandatário supremo, sem tutelas nem curatelas impertinentes. O espírito que inspirou a revolução foi o da liberdade-flor do caráter do nobre povo do pampa.

Nessa reportagem o astuto Chateaubriand se refere ao Estado do Rio Grande do Sul genericamente, no entanto, sua crítica mascarada de apelo era voltada ao representante máximo deste Estado, o presidente da República Getúlio Vargas. A crítica que a princípio aparecia nos artigos do proprietário 11  “O successor natural de Olegário Maciel na interventoria mineira, com amplo apoio dos tenentes e do ministro Osvaldo Aranha, era Virgílio de Melo Franco – o avalista do acordo feito entre Chateaubriand e o governo, por meio do qual o jornalista, apesar de perder O Jornal, escapou do exílio. Virgílio era o responsável junto a Vargas não só pelo cumprimento do acordo, por parte de Chateaubriand, mas também pela orientação política dos Associados mineiros, entregues a seu irmão Afonso Arinos”. (MORAIS, 1994:327) Vargas acabou nomeando o advogado Benedito Valadares. Esta posição de Vargas neutralizava os tenentes e as ambições eleitoreiras de Osvaldo Aranha, no entanto, desagradou os Melo Franco. Afonso Arinos imediatamente escreveu um artigo contra o presidente que foi impugnado pelo próprio Chateaubriad. Este impediu a publicação de tal artigo planejando realizar um novo pacto com o presidente. O que realmente acabou ocorrendo. Vargas recebeu seu recado e apresentou nova proposta. Sobre este assunto, ver: MORAIS, 1994.

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dos Diários Associados suave e indireta tornou-se incisiva e voraz com a aproximação do pleito. Assis Chateaubriand logo se posicionou ao lado do candidato da oposição Armando Sales. Em artigo publicado em 2/05/1937 no O Jornal acusou o presidente de traidor da causa revolucionária. Se esses cavalheiros da Comissão Diretora entendem agora que, aderindo ao sr. Getúlio Vargas aderem à revolução, eles se enganam. Teríamos gosto em vê-los, arrependidos dos erros passados, e formando ao nosso lado em favor da república civicamente mais asseada que sinceramente desejamos. Mas, o que acontece é que a adesão serôdia ao presidente da República envolve uma traição grosseira ao espírito revolucionário. Hoje, é o sr. Getúlio Vargas o inimigo mais encarniçado dos ideais de Outubro. (O Jornal, 02/05/1937)

Dessa data em diante Chateaubriand não poupou palavras para denegrir a imagem de candidato do governo José Américo. Implacável e incansável fez campanha abertamente para Armando Sales em seus jornais. Entretanto, todo este ódio transparecido em seus artigos pelo presidente pareceu desaparecer a partir da proclamação do Estado Novo. Não é espantoso ver o proprietário dos Diários recolher-se em artigos sobre economia internacional após o 10 de novembro de 1937: Quem se informasse sobre a situação política nacional pela coluna de Chateaubriand, no entanto, levaria muitos dias para saber da existência do golpe. De repente, e sem nenhuma explicação, a partir de 10 de novembro Chateaubriand parou de falar de política. Se no dia 9 ele debochava do candidato oficial, chamando-o de ‘pirarucu de aquário’, no dia seguinte o jornalista gastou nove laudas de texto para falar da importância do Instituto Agronômico de Campinas (MORAIS, 1994: 374).

Com a proclamação do Estado Novo a censura tornou-se mais ativa e implacável e Assis Chateaubriand já havia experimentado a prisão e o confisco de seus jornais; chegou a ver seus linotipos produzirem o jornal A Nação exclusivamente para suprir as necessidades do governo Vargas. Nesse momento de incertezas diante do inesperado golpe, o jornalista recolheu-se, mas não por muito tempo. Logo em seguida ao golpe Chateaubriand passou a produzir, inesperados, artigos de apologia ao governo Vargas. Nada pode ser mais inusitado, o mesmo que a pouco proclamara aos quatro ventos seu

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ódio pelo presidente, chamando-o de traidor, agora se tornava novamente seu mais devoto fiel, como se constata a seguir: Dos artigos de Chateaubriand emanava tamanha e tão convicta louvação das virtudes da ditadura recém-implantada que o governo decidiu que a oficial Agência Nacional passaria a distribuí-los em seu serviço gratuito despachado diariamente para os jornais de todo o país. Além de sair em todos dos Diários Associados, os elogios do jornalista ao novo regime ganhavam as páginas de centenas e centenas de outros jornais (MORAIS, 1994: 376).

Estes artigos tão apreciados pelo governo apresentavam um Chateaubriand amante do fascismo e dos governos ditatoriais, muito diferente daquele que em 1930 publicara seu Terra Deshumana: a vocação revolucionária do presidente Arthur Bernardes, momento em que criticava, vorazmente, seu governo arbitrário, quando afirmava que: Em vez, porém, de conduzir-se como um governador geral inglês, dotado da objetivação humana do gênio imperial britânico, transfundindo o seu espírito no das gentes viciosas, que vinha moralmente sanear, preferiu usar os processos duros de extermínio dos aborígenes, empregados pelos colonizadores hispânicos (CHATEAUBRIAND, 1936, s.p.).

Se muitos pensaram que Assis Chateaubriand não tinha um projeto político idealizado para o Brasil é porque não leram atentamente suas obras e artigos. Sempre esteve em defesa das liberdades de expressão, de escolha e da democracia. Depois de participar da Revolução de 30 ao lado de Getúlio Vargas, voltou-se contra ele incisivamente e da mesma forma tornou-se seu pior inimigo. Dessa forma, após tantos embates, torna-se muito difícil a compreensão acerca da sua última mudança de opinião. Tudo leva a crer que seus artigos de apologia a Vargas constituíram, na verdade, outro astuto plano do jornalista para derrubar o governo. No entanto, desta vez Chateaubriand resolveu não bater de frente com o “ditador” e sim aliar-se a ele, como uma forma de derrubar seu governo. Sendo assim, a atuação de Assis Chateaubriand no processo de ascensão e queda do governo Vargas teria sido determinante. A divergência de Chateaubriand com o governo de Getúlio Vargas teria sua fundamentação no distanciamento entre as propostas e posicionamentos governistas e o pensamento político do jornalista. Em artigo publicado no dia 146

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12 de fevereiro de 1937, o dono dos Diários Associados defendeu, mais uma vez, a proposta democrática e afirmou que “a democracia, ao contrário das ditaduras, vive da discussão, do livre exame da luta”. A liberdade de expressão, de propriedade privada, escolha dos governantes e de comércio eram a base de seu pensamento e o rompimento com qualquer um desses princípios políticos era recebido por Chateaubriand como ofensa pessoal. No entanto, diante da proclamação do Estado Novo Chateaubriand viu-se de mãos atadas, consciente do que Vargas era capaz de fazer, optou pela submissão e apoio ao governo como forma de sobrevivência. Essa hipótese se confirma, pois segundo Antônio Hohlfeld, nem bem Vargas saído de cena, em outubro de 1945, e a rede dos Diários Associados já o atacavam vorazmente. Tanto que, passado alguns anos, o jornal Diário de Notícias, de Porto Alegre, chegou a ser fechado após a morte de Vargas diante das ameaças de empastelamento pela população que almejava se vingar das críticas proferidas ao seu mártir. Desse modo, constata-se que Chateaubriand não foi apenas um oportunista e grande empreendedor, foi também um idealista político que sonhou com a possibilidade de implantação de um governo forte, centralizado, mas dentro dos preceitos de manutenção da democracia, com liberdade plena do indivíduo. Entre o pensamento autoritário proposto pela centralização política e a liberal democracia que prevê a liberdade de comércio, de propriedade privada e a limitação das intervenções governamentais, se situa o pensamento de político de Assis Chateaubriand.

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O patrimônio documental e a diversidade dos suportes de registro da informação Luciana Souza de Brito1

Introdução O presente trabalho apresenta inicialmente a caracterização do termo patrimônio documental e a sua relação com os diferentes suportes utilizados ao longo dos tempos para o registro de informações. A partir da caracterização do termo apresenta-se um breve relato sobre o surgimento e algumas características dos principais suportes utilizados para o registro de informações. É importante relatar que dentre os suportes citados encontram-se as fotografias, os registros sonoros, as fitas magnéticas, as películas cinematográficas e os registros informáticos. Entende-se que a caracterização dos suportes utilizados para o registro de informações é essencial para que possam ser projetadas ações com vistas à conservação do acervo, pois cada material tem características físicas próprias. Assim, ao identificar brevemente algumas das características dos suportes de registro da informação pretende-se colaborar para o planejamento 1  Professora do Curso de Arquivologia da Universidade Federal do Rio Grande, mestre em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria lucyanabrito@yahoo.com.br

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estruturado de ações pontuais para a conservação e o acesso às informações contidas nesses documentos. A identificação e o estudo desses acervos podem revelar ainda informações importantes com vistas à captura de histórias e memórias sobre uma determinada realidade passada. Nesse contexto, esses documentos de acordo com o seu valor, podem ser identificados como um patrimônio documental a ser conservado e preservado com vistas à realização de pesquisas futuras. O patrimônio documental Ao abordar a temática de patrimônio documental, faz-se necessário comentar como a expressão insere-se no contexto do termo patrimônio cultural. Entende-se que o conceito de patrimônio cultural caracteriza-se pela sua amplitude, o que permite abrigar diferentes bens culturais de valor material ou imaterial, móveis ou imóveis. Bellotto (2004, p. 276) aponta que a definição clássica de bem cultural dada pela Unesco considera como bens culturais “os móveis e imóveis ligados à tradição cultural, e que devem ser transmitidos, devem ser lançados nessa transmissão cultural para as gerações vindouras”. Nesse contexto, os bens móveis referem-se aos objetos, documentos textuais e bibliográficos, incluindo coleções científicas. No que concerne à identificação dos bens imóveis esses podem ser descritos como os monumentos de arquitetura e arte e os sítios arqueológicos. Caracterizados os bens quanto à classificação móvel ou imóvel, partese para a sua definição enquanto bens culturais de valor material ou imaterial. Assim, pode-se afirmar, que os bens materiais são aqueles que podem ser palpáveis, tais como documentos, objetos, etc. Em contra partida, entende-se por bens imateriais aqueles impalpáveis, tais como aspectos culturais de uma comunidade registrados por meio de ritos, músicas e danças. O foco desse trabalho consiste no estudo dos diferentes suportes e formatos dos documentos, os quais podem ser caracterizados como bens materiais, e que constituem grande parte dos acervos de instituições públicas e privadas. A identificação e o estudo desses acervos podem revelar informações com vistas à captura de histórias e memórias sobre uma realidade passada. Assim, esses documentos de acordo com o seu valor, podem ser identificados

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como um patrimônio documental a ser conservado e preservado com vistas à realização de pesquisas futuras. No entanto, é importante destacar que a possibilidade de utilização de outras fontes além dos registros encontrados nos documentos textuais surge com a Escola dos Annales. A referida escola propiciou a utilização de outras fontes que não as textuais ao ampliar o conceito do termo documento. Silva e Silva (2006, p. 159) afirmam que, Depois dos Annales, principalmente com seus seguidores da ‘Nova História’ na segunda metade do século XX, o conceito de documento foi modificado qualitativamente, abarcando a imagem, a literatura e a cultura material. Os termos registro e vestígio passaram, nas últimas décadas do século, a ser mais e mais adotados, demonstrando a nova concepção dominante em pesquisa, isto é, a cultura e o cotidiano, a alimentação e a saúde, as mentalidades coletivas. Múltiplas pesquisas, que utilizavam como fontes receitas culinárias, relicários e ex-votos, cordéis e vestimentas, todo tipo de registro da imagem, além da literatura em suas várias formas, começaram a ter grande desenvolvimento.

Dessa forma, as possibilidades de pesquisa em torno de acervos com suportes e formatos diferentes, tais como acervos fotográficos, fílmicos, depoimentos orais coletados por meio da utilização da História oral, etc. tornaram-se uma realidade no meio acadêmico. Outro instrumento que favoreceu o alargamento do conceito de patrimônio documental foi o Decreto lei n. 25/37. Ao mencionar que o patrimônio cultural corresponde a um conjunto de bens móveis e imóveis, cuja preservação é de interesse do país, o referido decreto também alarga a escala dos objetos que podem ser considerados como bens móveis, ou seja, bens materiais. Assim, insere-se a expressão “patrimônio documental” como uma forma de identificação dos bens móveis ou materiais, que podem ter diferentes formatos, formas, suportes e conteúdos diversos. A seguir apresenta-se uma caracterização dos principais tipos de suporte utilizados para o registro de informações ao longo dos tempos. A diversidade dos registros de suporte da informação Ao longo dos tempos, houve a criação de uma diversidade de materiais,

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utilizados com a finalidade de registrar as informações. Inicialmente essas informações eram transmitidas somente por meio de narrativas, seja pela inexistência da escrita, seja pela falta de suportes duráveis que pudessem servir para esse fim. Com o tempo, o desenvolvimento das atividades humanas favoreceu a produção de diferentes suportes, formatos e formas dos documentos. Muitos foram os suportes utilizados para o registro e disseminação de informações e do conhecimento humano. Entre os materiais utilizados podemos citar: as pedras, ossos, placas de bronze, tabuletas, papiro, pergaminho e por fim o papel. Dentre os suportes mais utilizados encontrase o suporte textual, que durante muitos anos foi utilizado de forma absoluta para o registro de informações com vistas à garantia de direitos e como elemento de prova ou testemunho de um fato. Atualmente outros suportes são empregados para o registro de informações tais como discos, fitas magnéticas, disquetes, microfilmes, DVDs, CDs. É comum encontrarmos em instituições públicas e privadas uma variedade de documentos, produzidos tanto em gênero2 textual, como iconográfico, filmográfico, informático, entre outros. Assim, percebe-se que o registro da informação perpassa pela escolha inicial do suporte onde a mesma será inserida. O suporte, segundo Bernardes e Delatorre (2008) diz respeito ao material sobre o qual as informações são registradas. No âmbito da arquivologia os arquivos que contém documentos com suporte e formas físicas diversas do que não os documentos textuais, são denominados arquivos especiais. Em termos conceituais Paes (2005, p. 22) define que arquivo especial é aquele que tem sob sua guarda documentos de formas físicas diversas – fotografias, discos, fitas, clichês, microformas, slides, disquetes, CDROM – e que, por essa razão merecem tratamento especial não apenas no que se refere ao seu armazenamento, como também ao registro, acondicionamento, controle, conservação, etc. 2  No campo da arquivística, o gênero corresponde a “reunião de espécies documentais que se assemelham por seus caracteres essenciais, particularmente o suporte e o formato, e que exigem processamento técnico específico e, por vezes, mediação técnica para acesso, como documentos audiovisuais, documentos bibliográficos, documentos cartográficos, documentos eletrônicos, documentos filmográficos, documentos iconográficos, documentos micrográficos, documentos textuais” (Brasil, 2004, p. 99).

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Portanto, no campo da arquivística, o termo arquivo especial é utilizado com a finalidade de identificar os documentos produzidos ou recebidos, que possuem diferentes tipos de suportes e que merecem nesse sentido um tratamento diferenciado com vistas à consulta e manutenção das informações. O documento “Subsídios para um Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística“, publicado pelo Arquivo Nacional, define documento especial como um documento em linguagem não-textual, em suporte não convencional, ou, no caso de papel, em formato e dimensões excepcionais, que exige procedimentos específicos para seu processamento técnico, guarda e preservação, e cujo acesso depende, na maioria das vezes, de intermediação tecnológica (Brasil, 2004, p. 67).

Assim, dentre os arquivos especiais existentes, no que se refere ao suporte, destacam-se para o registro de informações as fotografias, as fitas magnéticas, os filmes ou películas cinematográficas, os microfilmes, os registros sonoros e os registros informáticos. Com vistas a uma melhor compreensão sobre esses suportes, a seguir apresenta-se algumas das suas características, pois entende-se que a identificação dessas características é essencial para o estabelecimento de medidas de conservação e preservação da informação registradas nesses suportes variados. a) Fotografia A fotografia corresponde a uma imagem produzida pela ação da luz sobre uma película coberta por emulsão fotossensível, a qual é revelada e fixada por meio de reagentes químicos. A primeira imagem registrada foi criada no ano de 1826, por Joseph Nicéphore Niépce, militar e cientista francês, o qual conseguiu fixar a imagem do exterior da janela da sua casa. Ao longo do tempo, foram produzidos diferentes formatos de fotografias, as quais possuem características próprias, de acordo com a variedade de processos utilizados na sua produção. Dentre essas fotografias, podemos citar: o daguerreótipo; calótipo ou talbótipo; ambrótipo; ferrótipo; placa de vidro a base de colódio úmido e sais de prata; a fotografia albuminada;

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fotografia em papéis sem revestimento; fotografias impressas; fotografias “permanentes” (produzidas em goma bicromada e à carvão); fotografias em papeis com revestimento; fotografia colorida em papel com revelação química. De modo geral as fotografias são compostas por camadas, as quais são identificadas em suporte, emulsão e aglutinante. Brito (2010, p. 28) informa que Ao longo do tempo, foram utilizados como suporte da imagem, chapas metálicas, folhas de ferro laqueado, vidro, papel, plásticos e papéis. Na camada da emulsão, foram utilizados alguns materiais aglutinantes, tais como o albúmen (derivado da clara do ovo), o colódio (resultante da mistura de piroxila ou nitrato de celulose, éter e álcool)3 e a gelatina (derivada de ossos e couros de animais). Suspensos nessa camada da emulsão foram utilizados materiais, que variavam de acordo com a cromia das fotografias.

As fotografias correspondem ao material mais comumente encontrado nos arquivos após os documentos textuais. Nesse contexto, acredita-se ser oportuno apresentar uma caracterização sobre alguns dos formatos produzidos. •

Daguerreótipo: elaborada em 1839, por Daguerre, consiste em uma placa de cobre coberta por uma camada sensível de prata. O daguerreótipo dava origem a um objeto único, que não possibilitava a produção de mais cópias, e eram armazenados em pequenas caixas, que os protegiam. Apresentava a superfície espelhada e, segundo Pimstein (2000, p. 44), Como la imagen producida era muy frágil y com sólo tocarla se borraba, los fotógrafos protegían la plata cubriéndola con un marco de metal dorado o de bronce, luego con un vidrio y finalmente se le ponía un borde de metal que envolvía todo. Algunos los encapsulaban com papel y luego le ponían el borde de metal. Finalmente este “paquete daguerreano” era introducido en una caja como un libro a presión.

3  O uso do colódio em fotografias foi anunciado na revista inglesa “The Chemist”, pelo inglês Frederick Scott Archer, em março de 1851. Fonte: História da fotografia. <http://br.geocities. com/victorinooliveira/fotoh.html> Acesso em 3 de novembro de 2008.

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Ferrótipo: elaborado entre 1856 e 1890, a imagem era formada em colódio4 com sais de prata. Para o suporte era utilizada uma fina chapa de metal, a qual era pintada de preto e envernizada, gerando uma imagem positiva. Ambrótipo: foi produzido a partir de 1854 e tem como suporte a placa de vidro com emulsão a base de colódio. A imagem formada é negativa e passa a ser positiva quando se coloca um anteparo preto atrás da placa de vidro. O conjunto era acondicionado em uma caixa-estojo, similar ao daguerreótipo, no entanto seu custo era bem inferior a esse último. Variava de formato e não tinha a superfície espelhada característica do daguerreótipo. Colótipo ou Talbótipo: criado em 1841, por Henry Fox Talbot, utilizava um papel salgado para a confecção do negativo, que era copiado por contato em outro papel salgado, ato que gerava a imagem positiva. Permitia a cópia de quantas fotografias fossem necessárias. No entanto, segundo Pimstein (2000, p. 40) Los calotipos son muy escasos. Los retratos son los motivos más frecuentemente encontrados en esta técnica. Algunos de ellos tienen cierta semejanza a la toma típica de los daguerrotipos. Sin embargo, las imágenes más antiguas corresponden a vistas en exterior.

Fotografia albuminada: criada em 1847 é produzida com uma solução à base de albumina5, cloreto de sódio e nitrato de prata colocada sobre um papel extremamente fino. Por meio dos negativos em placa de colódio era feito o contato com o papel albuminado, que originava a imagem positiva. Como era confeccionada sobre um papel muito fino, normalmente encontrava-se montada em um suporte mais grosso para proteção. De acordo com Filippi, Lima e Carvalho (2002), a fotografia albuminada foi utilizada nos seguintes tipos de cartão, classificados de acordo com suas

4  O colódio corresponde a uma mistura de nitrato de celulose, éter e álcool, cujo uso foi anunciado pela primeira vez na revista inglesa “The Chemist” por Frederick Scott Archer em março de 1851. 5  Albumina ou albúmen deriva da clara de ovo.

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dimensões: cartão de visita (5,7 x 10,8 cm); gabinete (10,8 x 16,5 cm); estereoscopia (7,6 x 17,8 cm); cartão vitória (8,3 x 12,7 cm); cartão promenade (10,2 x 17,8 cm); cartão imperial (20 x 25,1 cm); cartão boudoir (12,7 x 20,6 cm). A fotografia contemporânea surge em 1888, com a invenção da primeira câmera automática, criada pela Kodak. Segundo Pimstein (2000, p. 24), a Kodak daba La facilidad de enviar la cámara a la fábrica donde se revelaba y copiaba la película. La cámara se devolvía cargada com una película nueva y con las cien fotos montadas. El slogan decía: “Usted apriete el botón y nosotros haremos el resto”.

Assim, com esse slogan, a empresa abarcou uma grande fatia do mercado consumidor, pois o usuário não precisava se preocupar com a revelação das imagens produzidas, bastava encaminhar a câmara para a fábrica. Identificadas as características gerais das fotografias, a seguir apresenta-se as características dos demais suportes utilizados para o registro de informações. b) Os registros sonoros Os registros sonoros podem ser divididos em materiais produzidos à base de fitas magnéticas, em discos ou discos compactos (Cds). No caso das fitas magnéticas, essas consistem em uma fita coberta por uma fina camada magnética, sobre a qual são armazenadas informações na forma de sinais eletromagnéticos. Como exemplo desse tipo de material tem-se as fitas cassete (K-7) e mini cassete, produzidas inicialmente em 1963 pela empresa Philips, para o armazenamento de informações sonoras. Já os discos correspondem a outro tipo de registro sonoro, e foram produzidos a partir de 1887 em três suportes - de acetato, goma laca e vinil6. 6  O material mais utilizado para a fabricação de discos, empregado até 1948, era constituído por uma massa composta de acetato de celulose, colofônia (resina de jatobá ou cera de carnaúba no Brasil), negro de fumo, gesso e goma laca. (ALMEIDA, Marcelo de. A evolução do registro sonoro. Disponível em: <www.construindoosom.com.br> Acesso em 21 de ago. 2009).

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Os discos de acetato e goma-laca foram gradativamente sendo substituídos pelos discos de vinil, que surgiram em 1948 e foram produzidos em três tipos: long play, extended play e single ou compacto simples. Os discos compactos (compact discs) são registros digitais que baseiam-se numa série de medidas discretas de voltagem elétrica. Esse tipo de material armazena as informações através de cavidades e áreas ao longo de uma espiral que se inicia no centro do disco. Surgiram entre o final da década e 1980 e início da década de 1990 e a empresa Philips foi a principal responsável pela sua criação. Estruturalmente possui quatro camadas: uma camada adesiva, que consiste no rótulo do CD; uma camada de acrílico, que contém os dados propriamente ditos; uma camada reflexiva composta de alumínio e uma camada plástica, feita de policarbonato. A cor prata que é visualizada no CD é resultante da soma das camadas de gravação e reflexão. Os CDs foram produzidos com diferentes materiais (CD-ROM, CD-R, CD-RW), o que tecnicamente diferencia a sua estrutura interna. c) Fita magnética A fita magnética consiste em uma mídia de armazenamento não volátil que consiste em uma fita plástica coberta de material magnetizável (em geral, partículas de óxido de ferro)7. Em termos estruturais é composta por três camadas: partículas metálicas, aglutinante e suporte, e pode ser utilizada para o registro de informações analógicas ou digitais, incluindo áudio, vídeo e dados de computador. Esse material foi utilizado para o registro de informações em diferentes formatos, tais como: fita cassete (para registros sonoros), Quadruplex, U-matic, Betamax, VHS, S-VHS e DV (para registros audiovisuais), disco magnético ou disquetes, fitas DAT, DDS e AIT, além de discos rígidos (para registro de dados). Tendo em vista a variedade de materiais produzidos com 7  De acordo com Giacomantonio (1981, p. 71) “o princípio físico que está na base desta técnica de gravação é a imantação permanente de alguns metais, como e ferro e alguns de seus óxidos [...] os óxidos de ferro que compõem sua superfície sensível são englobados num verniz protetor que cumpre a dupla tarefa de mantê-los aderentes à fita suporte e evitar o atrito com os cabeçotes magnéticos”.

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a utilização de fitas magnéticas optou-se pelo não detalhamento de cada item de forma pormenorizada. Assim, realizou-se uma seleção dentre o material e apresenta-se a seguir a caracterização de apenas alguns desses materiais. •

Fita quadruplex: no ano de 1956, dois cientistas da empresa americana Ampex, Charles Ginsberg e Ray Dolby, revolucionaram o modo de fazer televisão com a invenção do videoteipe, que utilizava uma fita denominada quadruplex8. A partir de 1959 foi criado o sistema helicoidal, fato que permitiu a redução da espessura da fita para uma polegada, pois nesse sistema as trilhas de vídeo passam a ser mais inclinadas, e utilizam melhor o comprimento da fita. Fita U-Matic: foi criada em 1970 pela empresa Sony Corporation e utilizava uma fita magnética de ¾ de polegada, acondicionada num cassete plástico, com sistema de gravação helicoidal, o que permitia uma melhor utilização do comprimento da fita. Fita Betamax: a Betamax foi lançada em 1975 pela empresa Sony Corporation e utilizava uma fita magnética de 1/2 polegada, acondicionada num cassete plástico. Foi idealizada para uso doméstico. Fita VHS (Video Home System): corresponde a uma fita magnética, acondicionada num cassete plástico, lançada em 1977 pela empresa JVC – Japan Victor Company e idealizada para uso doméstico. Também foi produzida pelas empresas JVC – Japan Victor Company e Panasonic no formato VHS-C, um tamanho reduzido, adaptado para câmeras filmadoras, o qual necessitava de um adaptador para visualização no videocassete.

d) Película cinematográfica Os primeiros filmes cinematográficos surgiram no ano de 1895, em 8  A fita tinha 5 cm de largura (2 polegadas), e rodava a uma velocidade de 38 centímetros por segundo, os quais passavam por um conjunto em forma cilíndrica de 4 cabeças dispostas a 90º cada uma que tanto gravavam quanto reproduziam e giravam a 240 rotações por segundo <www. tudosobretv.com.br> Acesso em 20 de ago. 2009)

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Paris, com a companhia dos irmãos Lumiére e foram produzidos inicialmente sem som, pois filmes sonoros só foram produzidos a partir de 1922. Em termos conceituais o filme ou película cinematográfica consiste em uma série de fotografias tiradas em rápida sucessão, as quais são reveladas numa velocidade de vinte e quatro quadros por segundo, o que provoca no expectador a ilusão de movimento das imagens. Ao longo do tempo, o filme (fotográfico ou cinematográfico) foi produzido em diferentes suportes, tais como: filmes de nitrato de celulose, de acetato de celulose e de poliéster. A seguir apresentam-se algumas características de cada material. •

Filme de nitrato de celulose: bastante inflamável, entra em combustão espontânea ao atingir um determinado grau de degradação. Foi utilizado até a década de 50, e pode ser identificado pela expressão “nitrate”, impressa na base do filme. Filme de acetato de celulose: corresponde a um suporte mais seguro, que por ter inflamabilidade muito baixa foi chamado de “suporte seguro ou de segurança - safety”. Pode ser identificado pela expressão “safety” ou “S”, impressa na base do filme. Alguns produtos utilizados na sua fabricação são voláteis, desprendemse e tornam o filme quebradiço e ressecado. Segundo Coelho (2006) esse tipo de filme em avançado estado de deterioração é acometido pela perda de substância, o que gera a desplastificação ou síndrome do vinagre9. Esse fato levou a elaboração de um novo tipo de suporte para o filme, o de poliéster. Filme de poliéster: é produzido com material mais estável que os filmes de nitrato e de acetato de celulose, e é considerado de fácil conservação. Tem menor espessura e é mais translúcido que os filmes de acetato de celulose, e não apresenta marcas de identificação no filme. Segundo Coelho (2006) esse material existe desde a década de 30, mas no Brasil foi utilizado em grande escala a partir da década de 90.

9  Corresponde a “pior forma de deterioração do suporte de acetato [...] tem vários estágios e é um processo de deterioração que não pode ser interrompido, apenas retardado”. (Coelho, 2006, p. 43).

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e) Microfilme Consiste em um filme, resultante do processo de reprodução de documentos, dados e imagens, por meios fotográficos10 ou eletrônicos11, com diferentes graus de redução. Sua leitura só é possível por meio de um leitor de microformas. Conceitualmente, segundo Souza (1979, p. 15) o termo microforma diz respeito a “todas as formas de apresentação do microfilme, rolo12, jaqueta13, cartão-janela14, etc.” Feijó (1988), acrescenta um outro formato de apresentação do microfilme, a microficha, que corresponde a uma folha de filme, com fotogramas, que contém na borda superior um espaço para anotações, visíveis a olho nu.

A escolha da microforma a ser utilizada está ligada ao tipo de documento a ser microfilmado e suas respectivas finalidades. No Brasil a regulamentação da microfilmagem de documentos ocorreu por meio da lei n. 5.433 de 8 de maio de 1968. f) Os registros informáticos Atualmente os registros informáticos correspondem a grande maioria de documentos produzidos nas instituições públicas e privadas. Via de regra, todas as administrações recorrem ao computador com vistas à redação, utilização e conservação de informações necessárias ao desempenho de suas atividades. No entanto, como bem lembra Rousseau e Couture (1998, p. 239) 10  Nos processos fotográficos os equipamentos utilizados são microfilmadoras convencionais, rotativas e planetárias. (Stringher, 1996, p.57). 11  Os processos eletrônicos utilizam a ferramenta COM – Computer Output Microfilm. (Stringher, 1996, p.57). 12  O rolo de microfilme é “a microforma básica e que serve de origem para as demais microformas. Apresenta-se em filmes de várias larguras e comprimentos, sendo usado de acordo com a natureza do documento a ser microfilmado. É acondicionado em carretéis, que para facilitar a identificação são colocados em caixas especiais.” (Feijó, 1988, p. 92) 13  Feijó (1988, p. 93) define jaqueta como “uma microforma capaz de individualizar as informações por unidade independente, no arquivo. [...] É confeccionada com duas folhas de material especial, transparentes e muito finas, unidas a intervalos regulares, formando canais abertos na extremidade por onde são inseridas as tiras de microfilme.” 14  O cartão-janela corresponde a um “cartão tabulável contendo uma ou mais aberturas, onde são montados os fotogramas”. (Feijó, 1988, p. 93).

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os suportes informáticos requerem a intervenção de uma máquina para se aceder à informação, mas também para decodificá-la e restituí-la de forma compreensível ao ser humano. O acesso às informações só é, pois, possível através da compreensão dos códigos utilizados, da estrutura dos dados e da sua organização física.

Assim, o acesso à informação presente nos registros informáticos não depende apenas do acesso ao documento em si, mas também ao equipamento e software que possa disponibilizar a informação. O primeiro suporte informático utilizado consiste no cartão perfurado. Os caracteres eram representados pela presença ou ausência de perfurações nos locais pré-determinados do cartão. Alguns registros informáticos se utilizam de meios magnéticos para o registro de informações. É o caso dos disquetes e de alguns discos rígidos. Entretanto há informações essencialmente produzidas em âmbito digital, no caso em meios ópticos e, como exemplo desses suportes temos os disquetes, disco rígido, CDs, CD-Rom, DVD, entre outros. A seguir, apresentam-se algumas características dos principais suportes utilizados para o registro de informações informáticas. Os disquetes ou discos magnéticos correspondem a um disco de material flexível, coberto por uma superfície magnética, a qual é recoberta por uma capa de plástico ou vinil. Essa ferramenta, criada em 1971, encontrase em desuso, no entanto foi bastante utilizada na década de 80 e início dos anos 90 para o registro de informações. Caracterizados os discos magnéticos apresentam-se alguns dados sobre os discos rígidos, um dos principais componentes de armazenamento de dados em computador. Estruturalmente, os discos rígidos são “feitos de metal (normalmente alumínio) em vez do mylar ou plástico flexível usado na fabricação dos disquetes” (Norton, 1996, p. 182). Apresenta grande capacidade de armazenamento de dados, que pode chegar, segundo Innarelli (2007) a 500GB em uma única unidade. Com relação aos compact discs os mesmos já foram caracterizados enquanto suporte de registro de informações sonoras, assim, parte-se para a caracterização do último elemento de registro de informações informáticas,

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o DVD. O DVD ou Digital Versatile Disc corresponde a um tipo de disco para armazenamento de mídias digitais. Surgiu da união de dois formatos o MMCD (Multi Media Compact Disc) e o SD (Super Density Disc), e foi inicialmente denominado de DVD Consortion e DVD Forum. Pode armazenar até 17GB, em uma única mídia. Conclusões No âmbito da historiografia, a utilização de outros tipos de fontes de pesquisa que não os documentos textuais é uma abordagem recente, que ocorreu com o “alargamento do conceito que o termo ‘documento’ passou a ter” (Kossoy, 2001, p. 31). A noção do termo documento foi ampliada por meio da influência da Escola dos Annales, a partir dos anos 30 do século XX. Nesse sentido os documentos produzidos em suportes diferenciados passaram a ser utilizados como fonte de informação em diferentes pesquisas. As informações registradas em diferentes suportes consistem em valiosas fontes de informação, pois a partir da coleta e interpretação dos códigos visuais, sonoros e imagéticos impregnados nesses suportes é possível realizar novas abordagens sobre uma determinada temática. Assim, as informações registradas em diferentes suportes consistem em promissoras fontes de informação na medida em que permitem a coleta de dados diversos. Ou seja, a partir da pesquisa e entrelaçamento de informações registradas em suportes diferentes é possível captar novas perspectivas sobre uma mesma temática. De posse das informações sobre o processo de produção e estruturação dos materiais é possível elaborar políticas específicas para uma melhor gestão, preservação e conservação dos acervos. Acredita-se que a partir do conhecimento dos materiais que compõem cada suporte, forma e formato de documentos é possível criar medidas com vistas a gestão e preservação específica desses materiais, de acordo com as suas reais necessidades.

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A imprensa como fonte e/ou objeto de pesquisa para a História – algumas considerações Luis Carlos dos Passos Martins1

Meu objetivo com esta comunicação é apresentar uma análise sobre as possibilidades e os limites do uso da imprensa como fonte e como objeto de pesquisa histórica. Embora o conceito imprensa se refira a uma ampla variedade de materiais impressos, neste artigo, meu foco central será o jornalismo com periodicidade regular e voltado para públicos extensos ou, ao menos, não restritos a uma categoria ou espaço social específico, o qual tradicionalmente classificamos como grande imprensa.2 As razões desta escolha se devem, além da minha maior familiaridade com este suporte textual, à sua crescente presença nas pesquisas acadêmicas contemporâneas. Entretanto, apesar das características específicas deste objeto, muitas das considerações aqui apresentadas poderão ser úteis ao pesquisador que se interessar por documentos impressos similares, como os jornais ligados a 1  O autor desse trabalho é doutorando em História pela PUCRS, com a tese “A grande imprensa liberal da Capital Federal (RJ) e a política econômica do segundo governo Vargas (1951-1954): conflito entre projetos de desenvolvimento nacional”, financiada pelo CNPq. 2  Uma definição mais detalhada sobre esta forma de imprensa será apresentada nas páginas a seguir.

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partidos e/ou sindicatos. Atualmente, na pesquisa acadêmica brasileira, os estudos que associam História e meios de comunicação estão se tornando cada vez mais frequentes. Para evidenciar esta afirmação, basta mencionar o crescente volume de trabalhos relativos a tal temática, identificável nos encontros de pesquisadores, tanto na História – como as reuniões da ANPUH, as quais sempre apresentam, em nível nacional e regional, simpósios temáticos voltados ao tema História e Imprensa -, quanto na Comunicação – cujos principais exemplos estão na INTERCOM (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) e, especialmente, na Rede Alfredo de Carvalho (REDE ALCAR), criada em 2001, como uma instituição que integra as mais diferentes áreas de pesquisa como o objetivo de resgatar a “memória” da imprensa brasileira. Essas duas últimas instituições, porém, procuram acentuar a interdisciplinaridade nos estudos concernentes ao tema História e Meios de Comunicação, o que nos dá uma boa ideia de como os mesmos atualmente não são uma preocupação exclusiva dos historiadores e vêm cada vez mais se tornado objeto de atenção de diversas áreas de pesquisas, que neles introduzem novas preocupações e novos métodos de abordagem.

Fazendo-se uma avaliação geral dos trabalhos mais recentes, ao menos até meados dessa última década, algumas características chamam a atenção. Primeiro, a enorme diversidade dos estudos que abordam épocas diferentes e temas muito distintos, nas mais diversas áreas de conhecimento (História, Comunicação, Sociologia, Ciência Política). Segundo, a tendência à fragmentação dos objetos de análise, privilegiando-se temas bem limitados no tempo e no espaço ou abordando aspectos bastante específicos dos mesmos. Terceiro, uma boa parte desses trabalhos tem caráter meramente descritivo, sem demonstrar uma preocupação com reflexões teóricas ou propor qualquer discussão metodológica; os trabalhos que apresentam uma orientação teórico-metodológica mais precisa, porém, transitam por uma enorme diversidade de métodos e de teorias, não havendo uniformidade ou padrão nas abordagens, tanto no que se refere ao enquadramento sociocultural do meio de comunicação estudado – ou mesmo sobre a necessidade deste tipo 168

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de enquadramento –, quanto no que diz respeito ao tratamento do próprio conteúdo, desde a coleta de dados até a análise dos mesmos. Quarto e como decorrência do terceiro: a carência de trabalhos dedicados prioritariamente à reflexão teórico-metodológica, capazes de oferecer parâmetros para as demais pesquisas ou que procurem integrar as diferentes áreas de conhecimento envolvidas nas mesmas, em especial História e Comunicação. Que conclusão podemos tirar dessas constatações? No mínimo que é muito difícil, quando não impossível, falar na existência de um campo de pesquisa em “História e Imprensa” efetivamente delimitado em nosso país. Porém, tendo em vista esta lacunas, mais recentemente, algumas iniciativas importantes têm procurado cobrir este espaço aberto, como os estudos ligados à REDE ALCAR e o trabalho de alguns pesquisadores como Marialva BARBOSA, Marcos MOREL, Tânia de LUCA e ROMANCINI & LAGO.3 Embora seja necessário lembrar que, não obstantes a importância de tais esforços e as perspectivas que eles lançam para os pesquisadores, ainda não se conseguiu modificar o panorama geral a qual nos referimos. Com base no exposto, nossa comunicação se propõe a expor algumas reflexões sobre a pesquisa envolvendo História e Imprensa, voltadas mais especificamente para os historiadores. Essas reflexões, é necessário frisar, não pretendem oferecer um receituário de pesquisa e muito menos resolver todos os problemas apontados acima, mas tem como objetivo básico dialogar com quem deseja se aventurar em uma área tão rica e, ao menos tempo, tão desafiadora como a abordada aqui. Imprensa fonte e objeto de pesquisa Para dar continuidade a esta exposição, iremos retomar um ponto 3  BARBOSA, M. C. . História Cultural da Imprensa - Brasil (1900-2000). 1. ed. Rio de Janeiro: MAUADX, 2007. v. 1. 262 p., ROMANCINI, Richard; LAGO, Cláudia. História do Jornalismo no Brasil. Florianópolis: Insular, 2007. 276 p., LUCA, T. R. (Org.) ; MARTINS, A. L. (Org.) . História da Imprensa no Brasil. 1. ed. São Paulo: Contexto, 2008. v. 1. 303 p., LUCA, T. R. ; MARTINS, A. L. . Imprensa e Cidade (co-autoria com Ana Luiza Martins). 1. ed. São Paulo: Editora UNESP, 2006. v. 1. 136 p. LUCA, T. R. . História dos, nos e por meio dos periódicos (1a ed. 2005; 2a ed. 2006). In: PINSKY, Carla Bassanezi. (Org.). Fontes Históricas. 2a ed. São Paulo: Contexto, 2006, v. 1, p. 111-153 e MOREL, M. (Org.) ; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das (Org.) ; FERREIRA, Tania Maria Tavares Bessone da Cruz (Org.) . História e Imprensa - representações culturais e práticas de poder. 1. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. v. 1. 448 p.

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abordado inicialmente, qual seja, o crescente emprego dos meios de comunicação, no geral, e da imprensa, em particular, na pesquisa histórica recente. Para termos uma ideia da dimensão desse emprego, no congresso da ANPUH/RS, realizado em 2008, tivemos dois Simpósios Temáticos focados no estudo da imprensa, em um universo total de 17 sessões de trabalho, estando ambos com praticamente todos os horários preenchidos. Além disso, as comunicações apresentadas correspondiam a temas e períodos históricos muito variados, fazendo com que o eixo unificador dos simpósios fosse a própria imprensa, em uma rara oportunidade na qual os pesquisadores reuniramse em torno da fonte documental que utilizam em seus trabalhos e não em virtude do período, da metodologia ou mesmo do tema estudado. O mesmo vale para o encontro da ANPUH nacional de 2009, no qual três Simpósios Temáticos tiveram como centro de análise os meios de comunicação. Diante disso, segue um questionamento: o que leva a esta verdadeira profusão, para não dizer hipertrofia, das pesquisas com base na ou sobre a imprensa? É claro que fatores conjunturais, como as comemorações em torno dos 200 anos da imprensa no Brasil, contribuem para este “fenômeno”. Mas isso não é explicação suficiente, na medida em que o mesmo já vem ocorrendo desde, no mínimo, os anos 90. Também poderíamos lembrar a enorme importância dos meios de comunicação na vida contemporânea, o que realmente é um argumento mais consistente, tendo em vista, como apontam os manuais de metodologia em História, a grande influência da sensibilidade do historiador à sua própria época no recorte de seu objeto de pesquisa. Contudo, apesar de importante, essa explicação ainda é insuficiente, porque, além de dar excessiva ênfase às influências externas sobre o metiér do historiador, em detrimento das internas, não explica porque o fenômeno é tão recente, tendo em vista que na década de 80 e mesmo início da de 90 do século passado, ele não se demonstrava com tanta intensidade. Para buscarmos uma explicação mais completa, devemos inquirir também sobre a própria evolução da historiografia brasileira das últimas décadas. Com efeito, dificilmente poderemos compreender o papel da imprensa nas pesquisas históricas sem levarmos em conta a forma como os

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próprios historiadores pensaram e reformularam a sua profissão ao longo do século XX. O jornal como fonte Como afirmam alguns pesquisadores, até os anos 70, a imprensa tinha um emprego muito limitado pela historiografia. Eram raras as pesquisas que utilizavam jornais e, quando o faziam, usavam-nos como fonte secundária, normalmente acompanhada de outras bases documentais.4 Em linhas gerais, esse uso limitado da imprensa pela historiografia tinha origem na forma como ela era encarada como fonte diante dos cânones da História Metódica ou Tradicional, conhecida também como “paradigma rankeano”. Essa “escola” colocava como uma das tarefas básicas do historiador a constituição de critérios rigorosos para a crítica documental a fim de estabelecer a “verdade do texto”, através: a) da crítica externa, atestando a autenticidade do documento textual em si mesmo, por intermédio da análise da escritura, da língua, do suporte material dos escritos, para o que se empregavam as técnicas de erudição oferecida pelas “ciências auxiliares” da História (filologia, heráldica, paleografia, etc.); b) da crítica interna, através do estabelecimento da sinceridade (intenção do autor ou autores do escrito) e da precisão em relação àquilo que o texto relataria. Diante dessa perspectiva e considerada como um lugar de erros, de imprecisões e mesmo de mentiras, a imprensa foi considerada como uma fonte de menor valor, diante de outros documentos mais confiáveis. Em consequência, a ela seria destinado um papel secundário ou mesmo a sua inutilização no trabalho do historiador. A crítica marxista – imprensa de fonte à objeto de pesquisa Uma visão diferente da utilidade da imprensa nos estudos históricos viria a surgir a partir de uma corrente historiográfica com uma raiz teórica distinta da Escola Metódica: o marxismo. Para essa corrente, também 4  Ver, quanto a isso, LUCA, op.cit., p. 116. Um levantamento sobre o emprego da imprensa pela historiografia antes da década de 70 pode ser encontrado em CAMARGO, Ana Maria de Almeida. A imprensa periódica como fonte para a História do Brasil. In.: PAULA, Eurípedes Simões de (org.) Anais do V Simpósio Nacional dos Professores Universitário de História. São Paulo : Seção Gráfica da FFLCH/USP, 1971, v II.

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recaía uma forte desconfiança sobre a imprensa, na medida em que esta era situada no universo da superestrutura, o que fazia dos jornais um reflexo da infraestrutura econômico-social e, desta forma, um instrumento ideológico que teria por função contribuir para a instituição/manutenção do sistema capitalista e da hierarquia entre as classes sociais. Entretanto, era por esta razão que eles deveriam ser estudados, pois ofereciam a possibilidade de analisar os mecanismo ideológicos que permitiam aos grupos dominantes perpetuar as relações de poder sociais e econômicas. No caso brasileiro, essa forma de abordagem se tornou predominante nos trabalhos sobre a História da Imprensa nacional, especialmente entre os anos 60 e 80. O maior exemplo dessa linha de pesquisa é apresentado pela obra basilar de Nelson Werneck SODRÉ (História da Imprensa no Brasil), de 1966,5 e o trabalho pioneiro de Lígia PRADO e Maria Helena CAPELATO, sobre o Estado de S. Paulo.6 Essas análises se assemelham ao colocar a imprensa primordialmente como suporte do discurso dominante e, assim, instrumento ideológico da luta de classes. Contudo, elas também se diferenciam na medida em que, no trabalho de SODRÉ, a imprensa aparece como reflexo da evolução do capitalismo no Brasil e dos interesses dos dominantes, enquanto que na linha de trabalho inaugurada por PADRO & CAPELATO, apesar do enquadramento geral da imprensa como “instrumento” ideológico ainda ser mantido, a ela é atribuído um papel mais ativo na construção da ideologia do sistema e até da própria “consciência de classe”. Essa linha de pesquisa acabaria por formar uma forte tradição na historiografia brasileira, na qual a imprensa deixaria de ser apenas fonte para se tornar também objeto de análise dos historiadores e outros pesquisadores interessados no tema. Contudo, como tendência geral, os trabalhos que seguiram esse caminho não exploraram a possibilidade de a imprensa ocupar um papel ativo na formação/difusão das “ideologias”. Inspirados nos estudos da Escola de Frankfurt e em uma leitura apressada dos Aparelhos Ideológicos de Estado, de Louis Althusser, ou mesmo sem uma base teórica mais elaborada, tais pesquisas se limitaram a apresentar uma visão excessivamente crítica e negativa dos jornais, como meros instrumentos político-ideológicos de grupos 5  SODRE, Nelson Werneck. Historia da imprensa no Brasil. São Paulo : Martins Fontes, 1983. 6  CAPELATO, Maria Helena & PRADO, Maria Lígia Coelho. Bravo matutino: imprensa e ideologia no jornal “O Estado de São Paulo”. São Paulo, Alfa-Omega, 1980. 176 p.

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econômicos e/ou políticos. Porém, entre os anos 70 e 80, ainda dentro do próprio marxismo, tivemos uma nova mudança de curso. Buscando suas bases teóricas nos trabalhos do New Marxism anglo-saxão e, através deste, nos Estudos Culturais de Raymond Williams e Stuart Hall, uma nova linha de pesquisa procurou dar voz às “classes subalternas”. Seu foco inicial foi o movimento operário e a imprensa surgiu aí com fonte privilegiada para dar conta do pensamento, das estratégias de mobilização e até da vida cotidiana dos trabalhadores. Posteriormente, os temas se ampliaram e buscou-se também abarcar outras formas de organização social, como os estudos de gênero, de etnias e mesmo comunidades regionais. Nesse novo enfoque, os grandes jornais deixaram de ser o centro de análise, que passou para a imprensa de baixa circulação e de periodicidade irregular, como os jornais sindicais, as revistas voltadas para públicos específicos (como as revistas femininas) e a chamada “imprensa negra”. Além de ampliar a utilidade e a variedade dos impressos para a pesquisa histórica, estes estudos também trouxeram uma nova visão para o seu papel político. A imprensa deixa de ser mera manipuladora de interesses para se transformar também num veículo capaz de construir identidades sociais e oferecer novos espaços de sociabilidade, contribuindo, dessa forma, inclusive para fornecer alternativas de articulação/difusão de um discurso contra hegemônico. Escola dos Anais, Nova História e História Cultural Seguindo um caminho semelhante, embora de forma paralela, outro polo de inovação do emprego da imprensa na pesquisa histórica teve origem na historiografia francesa cujo movimento de renovação ficou conhecido como Escola dos Anais. Embora não se trate de fazer apologia desse movimento e nem de atribuir-lhe todas as modificações que iremos abordar, é inegável que os questionamentos e os trabalhos das diversas gerações de pesquisadores ligados a esta “escola” contribuíram em muito para que a historiografia rompesse as amarras tradicionais que a ligavam à história factual, das grandes personalidades e dos grandes acontecimentos, em direção a uma ampliação de seus objetos legítimos e a própria renovação dos objetos tradicionais, como

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a história política.7 Em lugar da História Narrativa ou dos Eventos, focada na superfície do factual, a Escola dos Anais propôs uma História que privilegiasse as estruturas – econômicas, sociais, mentais – que condicionavam os eventos e as ações dos indivíduos, naquilo que ficou conhecido como História Total. Essa História Total tinha dois sentidos diferentes e nem sempre compatíveis: de um lado, apresentava uma visão holística, ou seja, assim como o marxismo, os diversos elementos da realidade deveriam ser integrados em um modelo geral (no que, nem sempre foram felizes); de outro lado, bem ao estilo da sociologia de Marcel Mauss e Émile Durkheim que defendia o “fato” social como total (englobando o material, o psicológico, o cultural, etc.), defendiam que todos os elementos da realidade eram passíveis da abordagem história. Nessa nova perspectiva, tornaram-se dignos do trabalho do pesquisador os hábitos e os costumes, as mentalidades, as representações, o gesto, as relações de gênero, etc.. Da mesma maneira, embora as estruturas econômicas tivessem seu espaço bastante ampliado, não se adotou uma visão determinista do cultural pela infraestrutura material, procurando-se dar igual relevância às diferentes esferas do social. Ora, essa ampliação dos objetos legítimos da historiografia exigiu também do historiador uma busca por novas fontes que pudessem, para além dos documentos oficiais, permitir-lhe, mesmo que parcial e opacamente, encontrar vestígios dessas novas dimensões da vida social. Dessa maneira, fontes antes relegadas a segundo plano ou simplesmente negligenciadas, como fotografias, cartões-postais, cartas pessoais, relatórios policiais, etc., passaram a ganhar outro status como documentos históricos, porque eram mais capazes de responder aos novos questionamentos que instigavam os pesquisadores do que as séries documentais tradicionais. Esse processo foi ampliado com a chamada “terceira geração dos Anais”, especialmente com o historiador francês Roger Chartier e a sua proposta de estudar as representações sociais – dando origem ao que hoje se chama de História Cultural, embora muito do que se faz com este nome 7  Uma boa análise da Escola dos Anais e de suas principais inovações pode ser encontrada em LE GOFF, J. A História Nova. São Paulo : Martins Fontes, 2001, LE GOFF, Jacques et NORA, Pierre. História: Novos Objeto. Rio de Janeiro : Livraria Francisco Alves Editora, 1976 e BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). 3. ed. São Paulo : UNESP, 1991. 154 p.

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fuja ao propósito original de Chartier, por abandonar a integração entre o particular e o geral.8 Esse processo de renovação direcionou um novo olhar à imprensa. A variedade de temas, de assuntos e de abordagens encontradas nas páginas dos jornais se mostrou um terreno fértil para o historiador interessado em pesquisar o cotidiano, a vida cultural, os códigos de comportamento e de consumo das grandes cidades. Diante dessa forma de inquérito, jornais e revistas se apresentaram como documentos vivos e dinâmicos, refletindo e refratando diversos aspectos do viver urbano que dificilmente poderiam ser recuperado com outra fonte documental. E isso inclusive em espaços dos quais pouco se suspeitava que pudessem responder as indagações dos historiadores, como é o caso das sessões de classificados e mesmo da publicidade, que atualmente são vasculhadas pelos pesquisadores em busca de informações sobre aquilo que se procurava vender, aquilo que se procurava comprar, bem como a forma como se procurava vender e comprar. Com efeito, essas mesmas páginas, além de fornecer uma boa noção do mercado de bens de consumo oferecido pelos jornais e revistas, permite ainda acesso a todo um imaginário social contido no discurso publicitário.9 No caso da política, os novos questionamentos sobre o poder trouxeram outra visão do papel da imprensa, especialmente na tentativa de estudar a sua condição como ator político importante e influente nas mais diversas conjunturas históricas e de entender a mídia como um espaço fundamental dos conflitos nas sociedades modernas, no qual interagem interesses os mais diversos (políticos, econômicos, etc.), mas também visões de mundo, representações e imaginários sociais, que tem um enorme peso político-ideológico em determinadas situações. Isso, porém, ampliando muito o horizonte em que esse papel político da imprensa pode ser pensado. 8  Sobre a proposta do autor, ver: CHARTIER, Roger. A aventura do livro : do leitor ao navegador. São Paulo : UNESP, c1998. 159 p., CHARTIER, Roger. El mundo como representación : estudios sobre historia cultural. Barcelona : Gedisa, 1996. 276 p. e CHARTIER, Roger. A ordem dos livros : leitores, autores e bibliotecas na Europa entre os séculos XIV e XVIII. Brasília (DF) : UnB, c1994. 111 p. Em nosso país, atualmente quem mais segue de perto o aporte de CHARTIER é Marialva BARBOSA, op.cit. 9  No Brasil, existe uma vasta bibliografia que segue nessa linha de abordagem cujos principais destaques estão nos trabalhos da professora Marialva BARBOSA (idem.) e Tânia de LUCA (2006).

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Ou seja, já não se procura apenas compreender os jornais como instrumento de manipulação de interesses, subordinados ao campo social e econômico, mas também se busca estudar a maneira como a própria imprensa procura construir sua forma de inserção no debate público, conforme adquire um mínimo de especificidade frente à política. Nessa nova perspectiva, tenta-se identificar quais as estratégias desenvolvidas pelos meios de comunicação ao longo de sua história para legitimar sua condição de interlocutores legítimos na esfera pública e como esse discurso interfere na sua apreensão/representação da realidade e na sua relação com a política. 10 Contudo, o processo de incorporação da imprensa pela historiografia, especialmente àquela dedicada à História Política, implica em alguns desafios para o historiador. Vejamos alguns deles: a) a necessidade de o historiador relativizar sua preocupação com a questão da falsidade/veracidade do documento; com efeito, a riqueza da imprensa como documento não está em sua fidelidade a uma realidade exterior e anterior às suas páginas, que ela relataria e/ou espelharia. Como qualquer outro documento histórico, o jornal apresenta um ou vários pontos de vista sobre aquilo que relata e é dessa forma que deve ser considerado. Mesmo que seja possível encontrar nas páginas dos jornais dados “objetivos” que possam servir para formar séries estatísticas, essencialmente o que está presente no jornal são representações, visões de mundo, fragmentos da cultura de uma época que devem ser submetidos à análise crítica do historiador para terem alguma validade documental. E, mesmo se encontrarmos a “mentira”, a “falsidade”, a ilusão, estas são extremamente válidas para os pesquisadores que investigam, por exemplo, as estratégias argumentativas, os interesses 10  No caso do Brasil, as principais contribuições para uma nova interpretação do papel político dos jornais são dadas pela obra do historiador Marcos Morel, que estudou a formação do “espaço público” e das novas redes de sociabilidade no Brasil imperial através da imprensa (MOREL, Marcos. As transformações dos espaços públicos: imprensa, atores políticos e sociabilidades na cidade imperial (1820 - 1840). 1. ed. São Paulo: Hucitec, 2005. v. 1. 326 p.), da socióloga Lavínia Ribeiro (RIBEIRO, Lavínia Madeira. Imprensa e Espaço Público: a Institucionalização do Jornalismo no Brasil, Rio de Janeiro, e-papers, 2004) e dos pesquisadores Alzira ABREU e Fernando LATTMAN-WELTMAN (ABREU, Alzira. A. & LATTMAN-WELTMAN, Fernando. A Imprensa em Transição: O Jornalismo Brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas, 1996 e LATTMAN-WELTMAN, Fernando. Fechando o cerco: a imprensa e a crise de agosto de 1954. In: GOMES, Ângela (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro : RelumeDumará, 1994).

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(políticos, econômicos, sociais) e até o imaginário social dos grupos que fazem, financiam e mesmo lêem um jornal. Ademais, deve-se considerar que provavelmente a imprensa, em sua diversidade, seja a principal fonte na qual o historiador possa encontrar vestígios de todos esses elementos. b) a necessidade de não mais compreender o jornal como uma entidade isolada do todo social; o jornal é um produto cultural e social, feito por homens condicionados histórica e socialmente. Desta forma, entender um jornal e fazer história a partir da imprensa implica em situar este jornal no meio social, econômico e cultural no qual ele estava inserido, buscando sempre responder perguntas do tipo: como ele era produzido (desde a sua produção física até os métodos de trabalhos, valores, etc., dos profissionais envolvidos na mesma)? Quem fazia o jornal (formação básica, remuneração, vínculos profissionais e pessoais)? Quem eram o(s) proprietários/financiadores? Como o jornal circulava? Quem o consumia? c) por fim, a necessidade de o historiador ampliar o seu leque de metodologias e conhecimentos teóricos em direção ao que é utilizado por outras disciplinas ou áreas de conhecimento, como a análise de discurso, a análise imagética (fotografia, iconografia, etc.), os estudos na área de comunicação e de jornalismo, etc. Sem dominar estas ferramentas - ou, ao menos, algumas delas – dificilmente o historiador conseguirá explorar o documento-jornal em toda a sua riqueza e diversidade. Sem formas adequadas de inquérito, estará pouco apto, não só para encontrar as respostas às suas perguntas, como até para elaborá-las adequadamente. História e Jornalismo Depois de fazer essa exposição geral sobre História e Imprensa, gostaria de me deter um pouco sobre a relação entre História e Jornalismo. Normalmente, a maior parte dos historiadores que utilizam a imprensa em suas pesquisas não apresenta uma reflexão sobre os possíveis vínculos entre essas duas áreas do conhecimento, colocando-se, no geral, em uma posição de superioridade, contraponto a História como o olhar da “ciência” ao Jornalismo como o espaço do relato, da subjetividade ou mesmo da manipulação deliberada da informação. Ademais, também é muito comum uma grande despreocupação em

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considerar na análise da imprensa as características específicas que o ofício do jornalismo pode apresentar no período que está sendo objeto de estudo e as possíveis influências dessas características no documento-jornal. Em outras palavras, o historiador que normalmente aborda um jornal não se preocupa em questionar quais eram as práticas, os conceitos e mesmo a estrutura de produção dos periódicos que toma como base para a sua pesquisa. Considera, muitas vezes, um impresso periódico como um suporte inerte de informações ou aplica, por exemplo, a uma prática jornalística do século XIX o modus operandi do jornalismo contemporâneo. Em outros momentos, acha que mapear os supostos interesses econômicos e políticos que estariam “por trás” de uma publicação é suficiente para “desvendar” as chaves interpretativas de sua produção discursiva, sem levar em conta que elementos próprios do fazer jornalístico possam contribuir para esta interpretação. De outra parte, no que se refere às possíveis semelhanças e diferenças entre o fazer historiográfico e o fazer jornalístico, gostaria de chamar a atenção sobre dois aspectos fundamentais para quem pretende pesquisar com o tema História e imprensa. Em primeiro lugar, não obstante todas as diferenças que separam a História e o Jornalismo, ambos têm em comum o fato de exporem o conhecimento que produzem em narrativas. Ou seja, tanto o historiador quanto o jornalista são narradores, contadores de história e, dessa forma, seus trabalhos implicam em um duplo processo de construção textual: a) a seleção de determinados elementos diante de uma realidade que é sempre plural e por vezes mesmo caótica ou multifacetada; seleção que pode ser baseada em critérios ou conceitos, mas que também apresenta uma boa dose de subjetividade, de formas de ver e de interpretar o mundo (sensibilidades, ideologias, representações), que nem sempre são necessárias e universalizáveis; b) a “montagem” ou a “construção” dos elementos selecionados em uma nova tessitura, ou seja, em um novo texto ou narrativa, através do qual o narrador (historiador ou jornalista), rearticula aquilo que filtrou da realidade em uma “trama”, que dá sentido a esses elementos, um sentido que provavelmente é novo e que não tem uma existência obrigatória antes de ser

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rearticulado na narração;11 Claro que tanto a seleção dos elementos quanto a sua articulação textual podem obedecer a regras, métodos e mesmo a uma ética de trabalho; mas são resultados sempre de decisões, opções, escolhas, necessariamente subjetivas, mesmo que tal subjetividade seja discutida e compartilhada pelo coletivo da profissão. Além disso, deve ficar claro que o historiador ou mesmo um pesquisador da área da comunicação sempre entra em um jogo complexo no qual ele construirá um discurso (o texto acadêmico) sobre outro discurso (o texto jornalístico). Desta forma e este é o segundo ponto que gostaria de introduzir, uma das primeiras questões que o historiador deve ter em mente ao trabalhar com jornais e revistas é que estará lidando com uma área de conhecimento que tem suas regras próprias de produção textual, as quais não são universais no tempo e no espaço, possuindo uma história e diversas variações regionais. Muito provavelmente, essas observações são válidas não apenas para as pesquisas em História e Imprensa, mas para todo o trabalho historiográfico que utilize relatos como fonte ou objeto, sejam eles impressos, manuscritos ou mesmo orais. O queremos ressaltar para os pesquisadores que pretendem incorporar a imprensa em sua análise é a necessidade de se ter em conta as regras de produção textual não apenas da sua área de atuação específica mas também daquela em que se origina a documentação discursiva que deseja avaliar. Isso é fundamental para que possa fazer uma avaliação mais pertinente de uma fonte/objeto tão rica e multifacetada quanto a imprensa. Para não dizer que não falei de metodologia Gostaria de encerrar essa comunicação, apresentando algumas indicações metodológicas para a abordagem da imprensa. Como afirmamos no início, não se pretende delinear um receituário obrigatório ou infalível para a pesquisa com impressos periódicos, mas oferecer, com base na minha própria experiência profissional, algumas orientações que possam ser úteis 11  Sobre esse duplo processo e o conceito de “trama”, ver especialmente VEYNE, Paul Marie. Como se escreve a história. Brasília (DF) : Univ. de Brasília, 1982. Para o caso da relação entre Jornalismo, História e Narrativa, consultar BARBOSA, Marialva. Jornalismo e Historia: Um Mesmo Olhar e duas Temporalidades. In: COLOQUIO HISTORIA E IMPRENSA, 1998, Rio de Janeiro. Anais do Colóquio História e Imprensa. RIO DE JANEIRO : UERJ, 1997. p. 87-92.

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para quem se aventure por essa área desafiadora. O primeiro cuidado que o historiador interessado em trabalhar com a imprensa deve levar em consideração é a necessidade de situar o jornal/ revista que pretende investigar em algumas categorias de classificação usualmente empregadas pela historiografia e, especialmente, pelos estudos em comunicação. Não se trata aqui de isolar e imobilizar um periódico em módulos rígidos e muito menos limitar a pesquisa a uma tarefa classificatória, mas sim de encontrar parâmetros gerais que possam oferecer orientação para o bom entendimento do documento-jornal em suas características particulares. Vejamos algumas das classificações mais usuais. Com base na circulação e organização institucional: • grande imprensa: constituída por jornais direcionados para o mercado (empresas jornalísticas voltadas para a obtenção do lucro), de circulação diária regular e que atingem as maiores tiragens no período estudado; •

pequena imprensa: publicações ligadas a associações (sindicais, partidárias, religiosas); em geral, não estão direcionadas para o mercado; são financiadas pelos próprios grupos que as editam ou por colaboradores; o seu objetivo principal é a divulgação de uma proposta e/ou ideologia; apresentam baixa circulação e periodicidade irregular;

Com base no público visado e/ou no projeto editorial: • imprensa de prestígio: dedicada a assuntos “sérios” (política, economia), com linguagem rebuscada e/ou elegante e voltada para a elite (público intelectualizado); prioriza a informação apurada e a opinião política; •

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imprensa popular: dedicada ao fait divers (temas do cotidiano), com linguagem acessível e voltada para as camadas populares; caracteriza-se pelo sensacionalismo;

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Com base no “modelo” de jornalismo12 (RÜDIGER, 1993): • Imprensa Literária: dedicada à produção, circulação e divulgação de escritos literários; predominou no início da imprensa moderna, entre os séculos XVII e XVIII; com o tempo, esses impressos também abriram espaço para a discussão política (ver HABERMAS, 1994; RÜDIGER, 1993 e RIBEIRO, 2003). •

Imprensa político-partidária: toma posição explícita no debate público como porta-voz oficial da agremiação partidária que a controla; está subordinada à cúpula do partido e dele tira sua autoridade para falar na esfera pública; as idéias que defende ganham o respaldo da força coletiva do partido; em determinados casos, é a principal forma de atuação pública deste último; predominou no final do século XVIII e durante todo o século XIX; (ver ALVES, 2001a, RIBEIRO, 2003, ABREU & LATTMAN-WELTMAN, 1996);

Imprensa doutrinária ou político-polemista: toma posição explícita no debate público, mas não está oficialmente ligada a partidos; busca guiar ou justificar suas tomadas de posição com base em princípios doutrinários e/ou campanhas públicas; é do compromisso com estas bandeiras que procura ganhar legitimidade para participar do debate público; o que leva a se distanciar, por vezes, da luta política; é uma forma de imprensa tipicamente francesa que teve muita influência no Brasil entre o fim século XIX e primeira metade do século XX; (ver ALVES, 2001b, ALDÉ, 1997, MARTINS, 2006, SILVA, 1991 e RIBEIRO, 2004).

Imprensa comercial e/ou empresarial: jornal visto como empresa capitalista voltado para o lucro; justifica sua atividade através dos valores da neutralidade e da objetividade, procurando legitimar a sua inserção no debate público como uma instância informativa e fiscalizadora da condução dos assuntos coletivos

12  Ou seja, pelas regras formais que orientam atividade jornalística em um contexto sóciohistórico, determinando a forma como a atividade deve ser exercida legitimamente.

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em nome do leitor-cidadão; é auto-representada como “espelho da realidade”, “quarto poder” ou “cão de guarda” da política; teve origem nos EUA e na Inglaterra, com a consolidação do capitalismo industrial (ver CHALABY, 2003, GOLDENSTEIN, 1987, RIBEIRO, 2003). Por fim, seguem algumas indicações sobre os procedimentos básicos para quem deseja trabalhar com imprensa, em especial os grandes jornais comerciais. Essas orientações têm mais validade aos pesquisadores que empregam a imprensa como objeto e não como fonte de pesquisa e a necessidade de segui-las dependerá muito do objeto do pesquisador e dos recursos disponíveis (fontes, tempo, etc.). Não são orientações a serem seguidas cronologicamente, pois muitos desses procedimentos devem ser feitos simultaneamente ou retomados em diversos momentos do trabalho. a) identificação dos aspectos gráficos do jornal: formato da impressão (tablóide, standard), tipo de diagramação, uso de imagens, proporção do texto em relação à imagem, distribuição dos temas por editoriais, etc.; b) identificação da circulação do periódico: diária, semanal, mensal; regular/irregular; tiragem; abrangência regional e social; c) identificação do(s) modelo(s) de imprensa seguido pelo(s) jornal(is) pesquisados; fontes: bibliografia, o próprio jornal e entrevistas; d) identificação da posição do(s) jornal(is) no universo jornalístico (dominante, dominada) e de sua trajetória neste mesmo espaço (ascendente ou descendente); indicadores: tiragem, arrecadação, prestígio entre seus pares e frente à elite intelectual e política; fontes: institutos de pesquisa (como o Instituto de Verificação de Circulação, IVC, criado apenas em 1963), revistas especializadas (como o Anuário Brasileiro de Imprensa), entrevistas, bibliografia; e) identificação da linha editorial do jornal ou de suas tomadas de posição históricas em relação a partidos/grupos políticos e a bandeiras públicas e doutrinas defendidas; fontes: bibliografia e os próprios jornais; f) identificação dos proprietários e principais jornalistas do periódico (trajetória política e profissional), no intuito de mapear compromissos ou vínculos externos; fontes: bibliografia; entrevista com os próprios jornalistas,

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quando possível; relatos biográficos; g) identificação e mapeamento dos principais meios de financiamento do jornal: venda avulsa e por assinatura, classificados, publicidade privada e estatal, etc; como lembra BOURDIEU (1987), o grau de independência de um jornal depende de sua autonomia financeira e é maior quanto mais ele puder se sustentar por venda de assinaturas ou avulsa; sendo menor quanto mais ele depende da publicidade; fontes: bibliografia, o próprio jornal, consulta a balanços e dados contábeis; h) identificação do público preferencial do jornal, que pode ser dividido em: a) o leitor implícito, construído no texto jornalístico, identificado pelas marcas sociais do próprio texto (linguagem empregada, temas mais destacados); b) o leitor efetivo do jornal, ou seja, aquele que realmente compra ou lê, identificado por indicadores externos, como os índices de circulação, listas de assinantes, etc. fontes: bibliografia, ICV (criado apenas em 1963), Anuário Brasileiro de Imprensa, documentação de contabilidade dos jornais para a lista de assinantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABREU, Alzira. A. & LATTMAN-WELTMAN, Fernando. A Imprensa em Transição: O Jornalismo Brasileiro nos anos 50. Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas, 1996. _____. Fechando o cerco: a imprensa e a crise de agosto de 1954. In: GOMES, Ângela (org.). Vargas e a crise dos anos 50. Rio de Janeiro : RelumeDumará, 1994. ALDE, Alessandra. Imprensa e política no segundo governo Getúlio Vargas. In: Redes, Rio de Janeiro, v.1, n.3, set./dez. 1997. ALVES (a), Francisco das Neves. O partidarismo por opção discursiva: o Echo do Sul e se discurso político-partidário. Rio Grande : Fundação Universidade Federal do Rio Grande, 2001ª. _____. O primado da notícia como estratégia discursiva: uma história do Diário do Rio Grande. Rio Grande : Fundação Universidade Federal do Rio

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A EPIDEMIA DE CÓLERA E O JORNAL O POVO Luiz Henrique Torres1

“O Cólera Mórbus. Londres, 27 de setembro de 1849. Seria tão impossível exagerar o sentimento de gratidão que há em toda a metrópole pela diminuição da peste, como exagerar a miséria que a sua continuação teria produzido. O flagelo parou. A morte ataca com mão fraca e vacilante onde ainda há pouco feria com força horrível. O terror e o abatimento, satélites e companheiros da morte, fogem ante o poder que destruiu o descarnado exterminador. Nas ruas, que apresentam ainda o aspecto do luto e da tristeza, já não se divisam os sinais diários e distintivos da mortalidade. Encontra-se é verdade, em todas as partes, a memória de perdas irreparáveis, os sinais de dor pungente. Na praça do comércio, em todos os lugares públicos, abalroamos com pessoas que dias antes perderam seus mais próximos e queridos parentes. O homem que há uma semana era marido feliz ou pai ditoso, seguiu depois a sepultura sua mulher e seus filhos. O papagaiar das crianças e os suaves acenos da afeição foram abafados subitamente em milhares de casas, inúmeras famílias sofreram perdas que uma longa vida não pudera reparar. Mas a peste parou e por grandes que fossem as calamidades, não pequenas comparadas com aquilo que a tradição e a experiência moderna nos fazia receiar. Londres sofreu apenas metade das perdas de Paris e nem a décima parte da destruição que assolou Moscovia, Petesburgo ou Delli”.2 1  Professor do Instituto de Ciências Humanas e da Informação (FURG). 2  Times, Londres; Jornal do Comércio, Rio de Janeiro; In: Diário do Rio Grande. Rio Grande: 12 de dezembro de 1849.

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Registros deixados desde a antiguidade relataram o difícil convívio das sociedades humanas com as doenças. As chamadas pestes devastavam comunidades inteiras e espalhavam o pânico e o medo em sua marcha de mortalidade. Ao longo da história do Brasil o convívio com as epidemias foi sistêmico frente às precárias condições médico-higienistas. Varíola, tifo, peste bubônica, febre amarela, cólera e várias outras enfermidades provocadas por vírus, bactérias, vibriões sucederam-se e assumiram algumas vezes um caráter contínuo ou intermitente. Antes da devastadora gripe espanhola de 19183 que provocou uma altíssima mortalidade, em meados do século 19 uma epidemia de cólera abateu-se sobre o Brasil atuando com severidade na cidade do Rio Grande. A marcha devastadora do cólera e as mudanças urbanas provocadas pela doença no Brasil serão abordadas buscando um resgate de dias difíceis e desafiadores que foram vividos pela população de aproximadamente 12 mil habitantes que Rio Grande possuía neste período, quando os referencias da vida cotidiana foram rompidos diante do medo da morte. A epidemia de cólera foi importada do Oriente e chegou ao Pará através de imigrantes portugueses da região do rio Douro. Flagelou o Pará entre maio de 1855 e fevereiro de 1856 difundindo-se por cidades do litoral brasileiro. A epidemia chegou à cidade do Rio Grande no mês de novembro de 1855 e provocou comoção e medo devido à alta letalidade que matou quase 500 pessoas. Em situação de crise a imprensa passa a ter um papel ainda mais relevante no enfrentamento das situações públicas impostas pela epidemia. O Jornal O Povo foi criado no contexto desta crise e de forma enfática exigirá das autoridades atitudes saneadoras para combater os miasmas coléricos e também os miasmas da corrupção dos políticos. A EPIDEMIA DE CÓLERA NO BRASIL “... o nariz, as orelhas, os pés e as mãos começam a esfriar; logo, o infeliz doente a uma temperatura de [trecho incompleto] centígrados é acometido da cabeça à ponta das unhas e dos cabelos de um frio medonho e que em um piscar de olhos se torna glacial. O tocá-lo deixa sentir em seu corpo uma temperatura abaixo da dos objetos que o rodeiam e de um cadáver após 48 horas...; a glândula lacrimal se enche de serosidade e perde a cor...; a adinamia domina por toda parte; o doente não pensa 3  Ver TORRES, Luiz Henrique. A Gripe Espanhola e o Colapso do Cotidiano. Rio Grande: FURG, 2008.

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nem em si nem em quem o rodeia, um pequeno delírio se mostra de tempo em tempo; os soluços, este último esforço da natureza, vem ainda atormentar o doente; a respiração, o mais comumente sem o embaraçar, se enfraquece; e quando menos se pensa o doente toca a extremidade da morte de muito tempo começada. Lacerda, A. C. de 1832 ‘Choleramorbus’ (CM). Em ‘Opúsculos de matéria médica’. Paris, (BN, SM, 14,1,12)”.4

A trajetória de devastação da epidemia do cólera no Brasil iniciou pela cidade de Belém no Pará. A desestruturação de comunidades inteiras e o pânico provocado se difundiram pelo Brasil à medida que os casos da doença disseminavam-se pelas províncias brasileiras. Arthur Vianna registra que em 15 de abril de 1855, a galera portuguesa Defensor deixou a cidade portuguesa do Porto rumo a Belém do Pará, transportando trezentos e quatro passageiros, sendo duzentos e oito colonizadores. O capitão da embarcação era Rafael Antonio Pereira Caldas e a tripulação era composta de dezessete homens. A partir do décimo dia de viagem uma doença passou a vitimar os passageiros sem levantar a suspeita de ser uma epidemia de cólera, pois esta doença ainda não havia se manifestado na cidade do Porto. As mortes poderiam estar sendo causadas pelas péssimas condições de alojamento, asseio e alimentação fornecidas aos passageiros. Ao longo da viagem faleceram trinta e seis passageiros sendo as três primeiras vítimas crianças. O médico de bordo, erroneamente, não relacionou os óbitos com o cólera. No dia 15 de maio, o navio chegou ao porto de Belém sendo visitado pelo Provedor da Saúde do Porto Dr. Camilo José do Vale Guimarães. Fundado no parecer do médico de bordo o provedor redigiu o seguinte relatório: “Fui imediatamente examinar a referida galera e reconheci na realidade que estes infelizes não faleceram de moléstia alguma de caráter maligno ou contagioso, que na viagem aparecesse, mas sim correram a fome, a sede e espancados pelo capitão que, além de dar-lhes péssimo alimento, ainda chegou a tanto a malvadeza deste capitão que esse mesmo pouco e péssimo que dava, era cozinhado com água salgada. A vista do deplorável estado em que achei estes passageiros, cobertos de miséria, desembaracei

4  In: Cólera e medicina ambiental no manuscrito ‘Cholera-morbus’ (1832), de Antonio Correa de Lacerda (1777-1852) Nelson Sanjad. História. Ciências. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro: FIOCRUZ, vol.11, n.3, setembro/dezembro, 2004.

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a dita galera, dando-lhe neste porto a livre prática”.5

No dia 26 de maio de 1855, o Dr. Américo Marques de Santa Rosa, cirurgião alferes do corpo de saúde do Exército no Pará, realizou a visita diária aos doentes do 11º Batalhão de Caçadores quando observou o estado de saúde de dois soldados que apresentavam aparência cadavérica e um estado generalizado de debilidade física. Os soldados queixavam-se de dores no estômago, vômitos e diarréia. O médico fez o seguinte relatório do que observou nos dois pacientes: “...presenciei um quadro triste, que nunca tinha visto, e que faria arrepiar as carnes a outro que não fosse médico, porque o médico deve ter um semblante de mármore, insensível as grandes dores, para que o doente jamais possa ler o que lhe vai no fundo d’alma”. Segundo o médico a cena era desesperadora pois ambos os doentes pareciam dois cadáveres animados por uma força desconhecida; o corpo estava glacialmente frio, contrastando com o calor interno que diziam sentir a ponto de não consentirem a menor cobertura; a pele era embaciada, as feições decompostas, os olhos encovados, o nariz afilado, o ventre retraído, os dedos das mãos enrugados, como se estivessem mergulhados em água fria por longo espaço de tempo. O pulso estava tão concentrado que mal se percebia, a respiração era curta e freqüente; os vômitos e a diarréia de um líquido esbranquiçado, não cessavam. Os doentes sentiam cãimbras fortíssimas nas extremidades inferiores, estavam numa agitação extrema; um deles dava gritos com uma voz rouca e medonha; no outro a voz estava quase extinta. Ambos faleceram no espaço de apenas quatro horas.6 O médico diagnosticou cólera morbus epidêmico, o que ocasionou dúvidas e também pânico. Médicos foram convidados para uma discussão definindo se realmente era cólera epidêmico ou cólera esporádico. A maioria descartou o caráter epidêmico, respondendo o doutor Américo com a frase “permita Deus que eu seja mau profeta”. Apesar de novos casos e mortes surgirem até o final do mês de maio, continuou a resistência a reconhecer a presença do cólera morbus epidêmico, o qual foi considerado “colerina” ou “cólera morbus esporádico com caráter grave”. Esta resistência é recorrente no caso de epidemias como constatou-se 5  VIANNA, Arthur. As epidemias no Pará. 2ª ed., Belém: Universidade Federal do Pará, 1975, p. 120. 6  VIANNA. Op. Cit. p. 122.

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também na cidade do Rio Grande onde autoridades buscam descaracterizar a dimensão da epidemia. Conforme Vianna, inicialmente, devido a morosidade do morbus e preferência pela classe pobre, a posição contrária a manifestação do cólera migrado da Ásia fortaleceu-se. Porém a partir de 15 de junho, a junta de saúde reconheceu o erro de avaliação e considerou a manifestação pavorosa de cólera asiático epidêmico. “O período de recrudescência do mal deve ser contado de 15 de junho em diante; então com indômita violência atacou o cólera toda a cidade, varejou as casas dos ricos e pobres, as espeluncas imundas como os palácios asseados; antes que o mês terminasse podiam-se já contar sem exagero, seis a sete mil atacados, isto é, mais de um terço da população”, conclui Vianna. Este autor também analisou a recepção popular frente ao fantasma ou a presença da epidemia. Segundo ele, propalou-se a triste verdade dos estragos horríveis que o cólera fizera por todo o mundo; o espírito popular, propenso sempre ao exagero, incumbiu-se ainda de dar cores mais negras ao quadro. Em Belém do Para, o progresso espantoso e rápido do mal em junho de 1855, desvairou a população. As pessoas caiam pelas ruas, nas igrejas, durante as procissões, contorcendo-se no solo e morrendo as mais das vezes dentro de poucas horas. Famílias inteiras viam-se a braços com a infecção ao mesmo tempo, tornando-se necessária à intervenção dos vizinhos, para não sucumbirem ao abandono; teve a moléstia caprichos singulares, atacando ruas de ponta a ponta, sem perder uma só casa, ora seguindo por um lado, ora por outro; na noite de 8 para 9 de junho acometeu todos os moradores do lado ocidental da praça Pedro Segundo ou Largo da Pólvora, poupando, porém, os habitantes do lado oposto. Muitas embarcações ficaram abandonadas no porto, dizimadas as suas tripulações; casas de comércio fecharam a falta de empregados; o movimento da cidade diminuiu extraordinariamente. Acabaram-se todos os divertimentos e tudo ficou mergulhado em lúgubre tristeza. Para agravar ainda mais a situação, os roceiros fabricadores de farinha, vendedores de peixe, frutas e aves, deixavam-se estar nos seus sítios com receio da peste, daí resultando ficarem ermas de canoas as docas da cidade e sem ter o povo onde se abastecer de víveres. Aos enérgicos esforços do governo deveu-se a luta contra a fome, que, a ser assim, acabaria agravando

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a situação, já de si desesperadora.7 No sul do Brasil, o medo de que uma epidemia de cólera eclodisse, fazia parte do cotidiano dos moradores do Desterro (atual Florianópolis). Conforme o pesquisador Oswaldo Cabral8 quando, a epidemia chegou em 1855, às apreensões tornaram-se reais, porque, todas as medidas para deter a marcha da doença foram inócuas, todas as providências para combatêla, ineficazes. Cabral ressalta que em julho desse ano, a epidemia desceu do nordeste para o Rio de Janeiro e o alarme foi grande, pois as notícias a respeito do número de vítimas que ele fazia eram suficientes para criar o ambiente de apreensões que criou. Na forma do velho costume, só lembrado em tais momentos, a Câmara tratou de mandar limpar os quintais e riachos, caiar as casas, examinar os gêneros alimentícios para que fossem inutilizados os corruptos e danosos, a Saúde Pública foi entregue aos cuidados do dr. Hermógenes Miranda Ferreira Souto. Também cuidou a Municipalidade de localizar o despejo das matérias fecais, nas quatro pontes existentes sobre as marinhas, recolher o lixo das casas duas vezes por semana, criar lazaretos, remover o Hospital Militar do centro da cidade, dividi-la em duas zonas e deixar as fontes e mananciais de água potável em melhores condições de asseio. Infelizmente deixava-se escancarada a porta à entrada do mal, com o insolúvel problema do destino a ser dado às matérias fecais, pois outro não se conhecia além da iniciativa de jogá-las à praia – e, com o da água potável, nas condições em que era feito o suprimento da população, a situação era ótima para o desenvolvimento do mal. Em outubro a situação do Município foi declarada assustadora, pela Câmara, querendo significar de alarme, verdadeiro estado de sítio, tendo solicitado ela que os navios, vindos do norte, ficassem sujeitos a quarentena. O Governo convocou os médicos para uma reunião no Palácio e a quarentena foi decretada, devendo os navios fundear nos Ratones, durante três dias, com bandeira amarela içada, caso tivessem doentes a bordo. Os enfermos, seria desembarcados nos ditos Ratones, em isolamento ali preparado, suprido pelo Governo de gêneros e roupas. Estava na hora – porque, justamente no dia seguinte, 16 de outubro, o cólera chegou. Com o sinal de ‘peste a bordo’, o vapor Imperatriz deitou ferro nos Ratones. 7  VIANNA, op. Cit., p. 154. 8  CABRAL, Oswaldo. Nossa senhora do Desterro –notícia II. Florianópolis: UFSC, 1972.

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Conduzia o navio, além da tripulação, numerosos passageiros e mais cento e nove soldados do Exército, destinados ao Rio Grande. Nesse mesmo trágico dia, seis dos doentes faleceram – todos soldados, que viajavam ao desabrigo, no convés do navio. Os doentes foram ali desembarcados e, no dia seguinte, ao chegarem os primeiros socorros médicos, mais quatro haviam deixado de existir. Daí pegou fogo. Cinqüenta praças, quatro tripulantes, um escravo de um passageiro, três pessoas da Fortaleza de Santa Cruz (Anhatomirim) que tinha então trinta moradores e mais uma preta da própria ilha dos Ratones que tinha catorze moradores, - ao todo cinqüenta e nove pessoas – foram logo atacadas. Delas, vinte e uma morreram. A cidade entrou em pânico – e não era para menos, enfatiza Cabral.9 Em 1856 a escuna Lima, chegada do Rio de Janeiro trouxe um escravo com cólera. Teria sido o ponto inicial para a propagação do contágio. O cólera surgiu, violento. Uma escrava do Hospital, que tratara do doente, foi a primeira atingida. Em dois meses, duzentas e noventa pessoas contraíram o morbus. Morreram sessenta e três, segundo as estatísticas oficiais. “O pior foi que ninguém mais queria tratar dos enfermos pois era passar de enfermeiro a doente, o que equivalia a um bilhete premiado para o cemitério. Os médicos visitavam, receitavam e retiravam-se. Mas, quem iria dar os medicamentos, alimentos, limpar os enfermos? Foi um transe difícil, mas, pensando bem, a vista do que se verificou no resto do país, o tributo pago pela cidade do Desterro foi talvez o mais reduzido de quantos cobrou ele em toda a nação, pois o desfalque foi, no cômputo geral, de 200 mil vidas.”10

E a epidemia do norte do Brasil foi descendo pelo litoral até chegar ao Porto do Rio Grande e daí infectou a Província do Rio Grande do Sul

9  CABRAL, op. Cit., p. 230-231. 10  CABRAL, op. Cit. p. 234.

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provocando cerca de 4.000 mortes.11 O JORNAL O POVO O jornal O Povo12 surgiu exatamente no contexto de crise decorrente da epidemia de Cólera na cidade do Rio Grande. Conforme o historiador Francisco das Neves Alves, O Povo foi um jornal crítico às instâncias de poder, principalmente em nível local, caracterizando-se pela combatividade e denúncia em seus pronunciamentos.13 O número 1 foi lançado no dia 16 de dezembro de 1855 e em seu editorial, já sinalizava a postura política de usar a imprensa como um instrumento de crítica aos representantes políticos no poder. “Povo do Rio Grande! O homem que vos fala é vosso amigo e partilhará vossa sorte. Uni-vos a ele para de todo inutilizar os tiranos, os nossos inimigos – esses homens que só aspiram títulos e brasões e que se riem e 11  A cidade do Rio Grande apresentava, pelo censo de 1848, uma população de 10.152 habitantes. Em 1858, a população aumentou para 13.514 habitantes, constituída de 2.087 escravos (15,4% do total). Quando da eclosão do cólera, a população era de aproximadamente 12.000 habitantes e de 2.000 escravos (estimativas). Conforme levantamento de óbitos realizado junto ao Bispado do Rio Grande, 153 escravos morreram de cólera entre os dias 06 de dezembro de 1855 e 04 de abril de 1856, sendo 105 (68,6%) do sexo masculino e 48 (31,3%) do sexo feminino. Nesta projeção, 7,65% dos escravos da cidade morreram devido a doença. A estimativa de vítimas para a Província, numa população de 280.000 habitantes foi de 4000 (1,42% do total). Na cidade, chegou a cerca de 500 vítimas (4,1% do total), porém, dados precisos ainda não foram coletados para a população não escrava. Porto Alegre apresentou a situação mais crítica, pois frente a uma população de 15.000 habitantes teve 1.405 mortos (9,3% do total). 12  Conforme Abeillard Barreto, o jornal O Povo circulou desde o mês de dezembro de 1855 até o ano de 1860. O surgimento está voltado “com o quase exclusivo propósito de defender os interesses locais, principalmente na questão pertinente ao cholera morbus, foi tal a celeuma que levantou, que os governos se viram obrigados a atender as justas reclamações do Rio Grande (...). Redigiram-no, na época e depois, o tenente da Armada José da Costa Azevedo, mais tarde Barão de Ladário, Dr. Emílio Valentim de Barros, Abel Pires de Oliveira e Constantino Jardim, além de outros”. BARRETO, Abeillard. A Imprensa do Rio Grande no Tempo do Império. Rio Grande. 27 de junho de 1935, p. 5. 13  Conforme Alves, “a publicação se intitulava ‘jornal político e social’. Era assinado por 10$000 anuais ou 6$500 semestrais, tinha quatro páginas e era editado em tipografia própria. Aceitava ‘todo o escrito a bem da humanidade, sem contribuição’ desde que viesse ‘com as formalidades prescritas na lei’. Seu lema era: ‘Não pode haver a paz, ordem estável no nosso século, longo do exercício legítimo das liberdades políticas e civis’. Dedicou-se notadamente ao combate de problemas sociais, em nível local”.ALVES, Francisco das Neves. A Pequena Imprensa RioGrandina no Século XIX. Rio Grande: Editora da Furg, 1999, p. 121-123.

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que escarnecem da vossa pobreza, da vossa aflição, de vossos infortúnios. A soberania do povo é um elemento inabalável, fortificado por suas convicções. A ela devem acatar aqueles que se acham encarregados da manutenção da ordem pública, porque do contrário, o povo revoltado e ferido no seu mais nobre sentimento resta-lhe o direito líquido de usar da facilidade que lhe confere a razão e a justiça”.14

Ou seja, o jornal surge para de forma contundente atacar o poder público naquilo não estivesse em sintonia com os interesses do bem público, em especial, da saúde pública. Melhorar as condições da saúde pública local significava denunciar a sujeira das ruas e do litoral e as emanações miasmáticas. Na concepção da teoria dos miasmas, as emanações pútridas ou decomposição cadavérica exalavam gases que ao serem aspirados poderiam provocar a doença reinante. Caberia ao poder público tomar medidas de higienização e aterramento de locais de depósito de ‘imundícies’. Considerava-se o cemitério do BomFim, localizado na área urbana,como um espaço por excelência para estas emanações. Daí a pressão que o cemitério fosse removido para longe do centro urbano, rompendo os limites das trincheiras do atual canalete da Major Carlos Pinto, distância que naquela época significava a segurança devido ao distanciamento da ocupação urbana. Manifestações começam a ocorrer para pressionar o poder público que não acompanhava o ritmo das mudanças trazidas com a devastadora epidemia que havia iniciado na última semana de novembro. Na tarde do dia 11 de dezembro, relata O Povo, cerca de 200 indivíduos dirigem-se à residência do delegado de polícia Domingos Vieira de Castro para declararem solenemente que desde então fosse proibida “(porque o povo não queria) a inumação de corpos no cemitério do BomFim no centro da cidade”. O delegado, que segundo o jornal, nutria os mesmos sentimentos do povo soberano, declarou que nada se podia conseguir sem a intervenção do presidente da Câmara “e saindo essa massa popular dirigiu-se ao sr. José Luiz de Mesquita, que, fingindo-se revestido da desesperação dos habitantes desta cidade arrazoou alta e compungidamente que parte da Câmara reunida em comissão partir já a designar terreno para além do entrincheiramento, que servisse para o sepulto do elevado número de mortos diariamente, acrescentando que incontinente 14  O Povo. Rio Grande: 16 de dezembro de 1855.

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providenciaria para ser trancada a porta do cemitério”.15 Porém, apesar de toda a pressão popular, o presidente da Câmara não fez, como prometido, a demarcação de um novo cemitério: “O que viste vós, povo pacífico do Rio Grande? Sair a comitiva comissionada, percorrer as campinas d’além trincheiras e voltar para a cidade sem assinalar terreno para um novo cemitério, sem dar providência alguma, como se nos prometera de proibir a continuação de lançar-se corpos quase insepultos no estreito quadro do velho cemitério!”16 Matéria do dia 16 de dezembro com o título de ‘Procedimentos escandalosos’ faz direta crítica a Câmara Municipal que segundo O Povo, desprezara as indicações higiênicas para serem empregadas como meio preventivo contra a ação do cólera morbus, pecando “gravemente e nada há que a possa isentar da indignação de que se acha possuída a população desta cidade”. E questiona: “Como é pois que se conduzem para um verdadeiro foco de moléstias, aqueles que se acham afetados de um mal, que para a realização de sua cura, torna-se de grande necessidade a salubridade do lugar e pureza do ar? E não quereis que o povo invista contra vós, que tanto os desprezais e dele escarneceis? Pois não temeis a Divina Providência, fulmine sobre vossas cabeças um reino de vingança e ainda ousais ameaçar a esses mesmos que tem todo o direito de queixar-se e pedir para que sejais apeados das posições que ocupais, por ineptos e soberbos? Ainda é tempo de arrepender-vos dos males que tendes causado; uni-vos ao povo não o insulteis; indagai dele o que pretende e reconhecereis que os seus pedidos são justos e a bem da humanidade que sofre porque ele nada mais exige de vós aconselheis com pessoas hábeis e desinteressadas para obrardes com acerto nas medidas que tiverdes que empregar para a extinção do mal que tanto nos flagela.”17

Críticas também não faltaram ao Hospital de Caridade “que bem pouca caridade tem mostrado nesta quadra, fechou as portas do seu estabelecimento aos atacados do cólera, e nem ao menos estabeleceu fora uma enfermaria para os marinheiros a quem era do seu dever tratar porque antecipadamente lhes impõe uma contribuição para esse fim e antes pelo contrário, recebe o 15  O Povo. 16 de dezembro de 1855. 16  O Povo. 16 de dezembro de 1855. 17  O Povo. 16 de dezembro de 1855.

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importante da despesa da condução e sepultura dos cadáveres daqueles que tem falecido”.18 O jornal também publicava matérias assinadas por pessoas da comunidade que atacassem a administração local ou orientasse a população sobre meios de defesa frente ao cólera. Foi publicada a carta enviada pelo Provedor de Saúde do Porto, Dr. José de Pontes França para o presidente da Câmara sr. José Luiz de Mesquita. Na carta o Dr. França traz interessantes informações sobre as precárias condições da cidade. Ele destacou que deveria receber mais atenção os “casebres imundos que a ambição de alguns seiva a sua cobiça, e que a povoação pobre e por necessidade incauta ali absorvem o veneno dos miasmas, que os vão matando lentamente e que na ocasião de alguma epidemia são largamente ceifados”. Conforme o Dr. França, o desaparecimento dessas moradias seria um “serviço feito à humanidade, a moralidade e civilização”. A mentalidade escravista ligada a insensibilidade no trato com os escravos é denunciada na afirmação de que “estas pocilgas são muitas habitações dos infelizes escravos, que esses senhores só lamentam a sua perda, mas progridem no mesmo tratamento que primeiro encetaram e muitas vezes são esses mesmos senhores vítimas de sua ignorância e desgraçadamente toda a povoação vem sofrer as incúrias de um, a ignorância e cobiça de outros porque as moléstias pestilenciais nivelam tudo com a morte”. Segundo ele, é nessa “época de calamidade que o pobre tem mais direito de exigir do rico os socorros para se manter e os ricos o devem de lhes dar, não por esmola, mas por interesse próprio, porque tanto uns como outros tem de respirar as mesmas emanações e o tributo de uns é igual ao dos outros (a vida) seja qual for a sua hierarquia”.19 Entre as orientações dadas pelo Provedor de Saúde do Porto, Dr. José de Pontes França para o presidente da Câmara sr. José Luiz de Mesquita, estão a limpeza da cidade que deveria ser prioridade dos governos “não consentindo nas ruas, largos, litoral etc, substância alguma que possa fermentar, como seja, materiais animais, vegetais e excrementícias de todos os animais, as quais substâncias deverão ser conduzidas, em caixões ou carroças fechadas para longe da povoação onde deverão ser enterradas profundamente e acabar 18  O Povo. 16 de dezembro de 1855. 19  O Povo. 22 de dezembro de 1855.

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com o abuso de enterrar essas substâncias nos lugares onde se encontram, como tem sido praxe a poucos dias, favorecendo assim a rápida putrefação dessas substâncias (...)”. Para ele, haviam lugares da cidade que estavam sujeitos não só a umidade como também a emanações pútridas devido as substâncias alteráveis que ali se lançavam, “tal é a vala (com o nome de canal) que vai da rua da Boa Vista ao centro do grande banhado que existe daquele lado da cidade; deve haver uma restrita proibição dali deitarem qualquer substância alterável, ainda que sejam águas sujas”. A vala referida é o canal que foi canalizado na atual rua Barroso, a qual “deverá ter sempre de três a quatro palmos de água para não se tornar um grande foco de miasmas e muito mais nas estações seguintes, da primavera e verão; não se podendo conservar com aquela porção d’água a prudência aconselha que seja fechada”. Um dos pontos críticos para a higienização é o matadouro público, o qual “nenhum melhoramento pode ter a não ser completamente demolido e desinfetado o lugar”. Também o litoral da rua da Boa Vista (atual rua Riachuelo) é outro foco de emanações miasmáticas, “desde a rua do Canal até por trás do paço municipal (atual local da Biblioteca Rio-Grandense), não só pelas substâncias que ali deitam como pela putrificação das madeiras de que se compõem as estacadas. O tapamento do lugar chamado dique, por trás da municipalidade é de toda prudência”. E o ponto mais nevrálgico e que causou manifestações populares é o cemitério que se tornara insuficiente sendo preciso removê-lo para longe mas não sendo possível fazer essa mudança é necessário o maior rigor nos enterramentos, tanto no chão como nas catacumbas: “estas só deverão ser abertas depois de quatro anos as das pessoas adultas e de dois a dos meninos; deitar grande quantidade de cal em proporção do cadáver, nunca menos de três arrobas para os adultos e uma e meia para os pequenos (...)”. As orientações ligadas à limpeza externa seriam completadas com a higienização do interior das casas. Dr. França indicava uma limpeza interna de todos os repartimentos das casas, pátios, áreas, quintais, utensílios etc, o arejamento por muitas horas ao dia, de todos os lugares, a caiação desses repartimentos e frente, a uma ou duas vezes ao mês e sempre no quarto em que falecer alguém, qualquer que seja a moléstia. Não se deveria consentir animais nos quintais e pátios, principalmente porcos e outros quadrúpedes, as galinhas

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mesmo deverá haver o maior aceio nos lugares onde estiverem. “Não permitir deitarem águas nos pátios e canos, que deverá estar sempre secos e muito limpos para o esgoto da chuva. Às águas de limpeza serão depositadas em vasos vidrados, metálicos ou de pão, e vasados antes de duas horas para não haver o princípio de fermentação”.20 A publicação das orientações do Dr. França estão em sintonia com a posição incisiva do jornal em criticar as autoridades locais, utilizando-se da autoridade do saber médico. A parte final da carta é ainda mais direta em associar o avanço da epidemia com o desleixo da Câmara relacionando a peste com a ira de Deus. “Nada fizesteis, nada providenciastes e hoje a peste vai devorando uma parte da população! A ira de Deus pesa sobre vós, que iludistes um povo inteiro, que hoje vos despreza!” Dr. França historia que foi nos fins de outubro que alguns casos se deram em Pelotas e que deveriam ter despertado a atenção das autoridades. “Oh vereadores! E no entanto, ficasteis para só cuidardes do Rio Grande, de seus habitantes – agora – que mais de 340 vítimas tem levado o cólera – talvez que a maior parte por vossa incúria e incapacidade! (...)” O autor exigia providências da Câmara para mandarem que nas ruas “se façam fogueiras de alcatrão, e nos lugares onde habita a pobreza fazei-as com esse dinheiro que é nosso e não vosso, e de que vos mostrai tão avarentos. Fazei com que os fiscais mandem aterrar as ruas, recolher os ciscos, demolir aquelas barracas do mercado – foco nauseabundo de imundícies -, como bem disse o delegado da comissão de higiene Dr. José de Pontes França”.21 Foi organizada uma procissão de penitência clamando que o poder divino livrasse os moradores do flagelo. Numa população de cerca de 12.000 pessoas a morte de quase quinhentas e o desenvolvimento da doença por possivelmente mais de um terço da população, a comoção chegou às raias da histeria coletiva. Lado a lado com a procissão dos desesperados, estavam às críticas aos membros da Câmara de Vereadores por não terem comparecido a atividade. O jornal relatou detalhes da estética dos desesperados que tinham familiares doentes ou que já haviam morrido pelo mal: “Um povo aterrado e contrito 20  O Povo. 22 de dezembro de 1855. 21  O Povo. 22 de dezembro de 1855.

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em procissão de penitência, sábado percorreu as ruas da cidade implorando do Senhor, que dele tenha compaixão. O coração estalava-nos de dor ouvindo as preces de uma mãe aflita. Tremíamos ouvindo o brado de compunção da escravatura aterrada ao último ponto”. A penitência que impuseram algumas senhoras causou revolta pois mulheres acompanhavam a procissão de pés descalços e algumas amparavam sobre a cabeça o pesado andor de Nossa Senhora, “arrancaram-nos lágrimas de compaixão, e de íntimo do peito bradamos contra os causadores de nossa aflição. Inocentes meninos calçando por penitência a fria areia como os delicados pés nus, não conhecendo o perigo expuseram-se a ser infectados do flagelo. Quando uma população inteira procura os recursos da fé e nela só confia é que o coração humano sangra em lenta agonia”. Segundo o articulista, “a ira de Deus pesa sobre nós e com o arrependimento e constrição queremos abrandá-la”. O clima de comoção e desespero é detalhado nas imagens de uma mãe que tendo em seus braços “seu filhinho correndo-lhe lágrimas pelas faces, caídos os cabelos e descalços os pés, soluçava orando; e sua oração era triste e fervorosa que devia ser ouvida do Onipotente”. A tragédia familiar também foi representada por uma esposa cheia de “desesperação e quase sem acordo arrancava orando o seu cabelo e penitente implorava pelo esposo e por si. Uma velha carregada de anos, arrimada ao seu bastão, a custo movia os mal-seguros passos e rodeada de seus filhos suplica ao céu movia os lastimosos olhos”. Era um “quadro triste e majestoso! O orgulho humano abatido recorria ao seu último arrimo – a fé! A pobreza, a escravatura, a mocidade e a velhice, sem distinção, na simplicidade de seus corações, orava com fervor ao Onipotente. Em todos os semblantes impressos de melancolia via-se pintada a desesperação, a mágoa de um povo inteiro. O prazer, o riso, de todos tinha fugido, dando lugar a negro e profundo desespero”.22 A epidemia de cólera teria como epicentro o cemitério do BomFim daí a insistência no tema: “O que exigia o povo? O cemitério dentro da cidade, cheio de cadáveres, quando uma epidemia devastadora flagela a população; - os miasmas de cólera que se desprendem de suas covas, infeccionando a atmosfera que alimenta a vida”.23 A pressão da imprensa 22  O Povo. 22 de dezembro de 1855. 23  O Povo. 29 de dezembro de 1855.

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local e as manifestações populares levaram ao abandono do cemitério do BomFim e o início dos enterramentos no cemitério extra-muros, além das trincheiras, afastando os mortos dos vivos num processo inexorável em nível de mentalidades. A morte reproduzia a morte e sua presença é lançada para o cemitério que garantia uma distância segura para os moradores que estavam dentro dos muros da cidade antiga. Algumas vitórias do jornalismo opinativo e de crítica ao gerenciamento político local foram conseguidas, em sintonia com a habilidade em aproveitar uma situação de crise para catalisar à posição popular no sentido de mudanças na ordem pública permeada por mazelas e interesses pessoais. O cólera foi embora no mês de janeiro de 1856, mas outros problemas perpetuaram-se. Uma vitória em meio a tantas derrotas. Na edição de 29 de novembro de 1856 os editores se mostram cansados: “Continue o povo a eleger certos homens para cuidarem de seus interesses e um dia chorará lágrimas amargas. (...) O município do Rio Grande, o que não tem tido são homens de inteligência clara na municipalidade, e que a ela ajunte vontade enérgica de bem servir. (...) E por ora nada mais diremos, porque nos achamos cansados”.24

24  O Povo. 29 de novembro de 1856.

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PATRIMÔNIO DOCUMENTAL E ARQUIVOS: TEORIAS, CONCEITOS E PROCEDIMENTOS Rita de Cássia Portela da Silva1

1. DO PATRIMÔNIO CULTURAL AO PATRIMÔNIO DOCUMENTAL Entende-se como algo natural ao ser humano a vontade de conhecer o passado, por simples curiosidade a respeito dos hábitos e costumes de uma época ou para tentar compreendê-lo e estabelecer relações com o presente. Esta prática, quando estimulada, fortalece a cultura e a identidade dos indivíduos e/ou grupos envolvidos no processo histórico. Neste sentido, a origem e a evolução do conceito de patrimônio cultural são apresentadas por Funari e Pelegrini (2006) na obra Patrimônio Histórico Cultural, onde os autores evidenciam as percepções de patrimônio no mundo (do indivíduo à coletividade) em diferentes épocas, abordando, inclusive, questões atuais relacionadas à gestão do patrimônio cultural, os desafios da preservação na era digital e as iniciativas e políticas patrimoniais na América Latina e no Brasil. Em linhas gerais, a noção de patrimônio está atrelada à intenção de transmitir de geração a geração, informações relacionadas ao comportamento, às crenças, instituições e valores sob o ponto de vista moral e material, na perspectiva do que HORTA denomina como processo cultural. Assim, ao 1  Professora da FURG/ICHI – Curso de Arquivologia. E-mail: ritaportela@furg.br.

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discutir patrimônio cultural e cidadania, a autora afirma que a condição primordial para que o processo cultural venha a acontecer é a existência do patrimônio cultural, ou seja, é fundamental a preservação do que foi acumulado e herdado dos pais, dos ancestrais. Uma “herança” de conceitos, valores e práticas, representados concretamente por palavras, sons, ritmos, gestos, expressões faciais e corporais, rituais, histórias e lendas, tecnologias e práticas, imagens, coisas, artefatos, construções e monumentos (HORTA , 2000, p. 15).

No Brasil a preocupação com a preservação do patrimônio cultural remonta ao início do Século XX e pode ser considerada recente se comparada às discussões e iniciativas de outros países2, principalmente da Europa. A expressão patrimônio cultural, hoje amplamente empregada no meio acadêmico e social, começou a ser utilizada por volta de 1970 e sua formalização ocorreu efetivamente quando foi absorvida pela legislação brasileira na Constituição Federal de 1988. Analisando-se os dispositivos legais produzidos ao longo do Século XX, observa-se que a composição do patrimônio cultural brasileiro foi referenciada e revista em diferentes momentos. Inicialmente, em 1937, no governo do Presidente Getúlio Vargas, o decreto lei 25 – art. 1° estabelece a composição do patrimônio histórico e artístico nacional. Este decreto marca a criação do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN. A Constituição Federal de 1946, ao regulamentar questões relacionadas à educação e cultura, afirmava que “a cultura é dever do Estado” e que “as obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público” (Constituição Federal de 1946, art. 174 e art. 175). A Constituição Federal de 1967, promulgada em meio à ditadura militar, manteve a definição de que “a cultura é dever do estado”, ao tratar de “família, educação e cultura” (Constituição Federal de 1967, art. 172). Porém, ao citar os elementos que, em função de seu valor, deviam ficar sob a proteção especial do Poder Público, acrescenta as jazidas arqueológicas junto aos 2  Além do livro de FUNARI E PLEGRINI (2006), na obra “A alegoria do patrimônio” de Françoise Choay pode-se acompanhar a evolução do que se discute hoje em termos de patrimônio cultural.

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demais elementos mencionados na Constituição de 1946. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) 3, atualmente vinculado ao Ministério da Cultura, é o órgão brasileiro que atua em benefício da proteção do patrimônio cultural por meio da fiscalização, proteção, identificação, restauração, preservação e revitalização dos bens, garantindo, desta forma, a preservação de um importante legado para gerações futuras. Considerando-se a diversidade dos bens, Bittencourt (2002) chama atenção para o fato de que o patrimônio cultural engloba acervos de proporções incomensuráveis e heterogêneas de bens móveis e/ou imóveis, formas de fazer (erudita ou popular, urbana ou rural), artefatos (artesanais e/ou industriais), estruturas arquitetônicas, monumentos (naturais ou construídos pelo homem) entre tantos outros objetos que, de alguma forma, asseguram a preservação e a construção da memória social. Conseqüentemente, a gestão e preservação do patrimônio cultural, da forma como apresentado, requer uma abordagem holística, que atenda integralmente as inúmeras manifestações deste elemento multifacetado. Para tanto, o IPHAN estabelece no plano conceitual a categorização dos bens que compõem o patrimônio cultural, conforme esquema apresentado no FIGURA 01, desenvolvido a partir de suas definições. FIGURA 01 - Patrimônio Cultural Fonte: desenvolvido a partir do estudo das definições estabelecidas pelo IPHAN, apresentado por SILVA (2010).

A gama de bens contemplados pelo IPHAN possibilita a identificação 3  No site <http://www.iphan.gov.br>, é possível conhecer os objetivos, políticas e ações desenvolvidas pelo IPHAN, e ter acesso a um importante aporte teórico para a área de patrimônio, disponível em artigos, revistas e demais documentos disponíveis no site.

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de subconjuntos do patrimônio cultural, interdependentes entre si e característicos de suas manifestações. Desta forma, subentende-se a existência do patrimônio artístico, arqueológico, arquitetônico, paleontológico, paisagístico e, entre outros, o documental. A compreensão efetiva do que se entende por patrimônio documental, perpassa o entendimento de que o conceito de documento é a informação registrada em um suporte que viabilize sua visualização/comunicação. A informação, elemento substancial do documento, é objeto de estudo de uma área em ascensão denominada Ciência da Informação definida como uma ciência social que investiga os problemas, temas e casos relacionados ao fenômeno info-comunicacional perceptível e cognoscível através da confirmação ou não das propriedades inerentes à gênese do fluxo, organização e comportamento informacionais (origem, coleta, organização, armazenamento, recuperação, interpretação, transmissão, transformação e utilização da informação (SILVA, 2006, p. 141).

Ao longo de suas pesquisas, Silva (2006) apresenta a origem e o desenvolvimento dos preceitos teóricos que envolvem a Ciência da Informação, defendendo seu caráter inter e transdisciplinar que congrega, em primeiro plano, a Arquivologia e a Biblioteconomia, entre outras áreas das ciências 206

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sociais e humanas. O autor também discute o caráter de metaciência da área, chamando atenção para o fato de que há uma diferença conceitual entre autores que se referem às “Ciências da Informação” e à “Ciência da Informação”. Neste estudo, trabalha-se também em uma perspectiva interdisciplinar entre as áreas referidas por SILVA, porém, num recorte delineado pelo patrimônio cultural e documental. Foge a este escopo uma análise detalhada da questão, contudo, parece inconcebível não mencioná-la. Assim como o patrimônio cultural, o patrimônio documental contempla inúmeras manifestações, cuja origem pode ser atribuída às diferentes configurações possíveis de serem realizadas entre os elementos constitutivos do documento (QUADRO 01). QUADRO 01 - Elementos constitutivos do documento. Fonte: Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005), apresentado por SILVA (2010).

Elemento

Definição

Suporte

Material no qual são registradas as informações

Formato

Conjunto das características físicas de apresentação, das técnicas de registro e da estrutura da informação e conteúdo de um documento.

Gênero

Reunião de espécies documentais que se assemelham por seus caracteres essenciais, particularmente o suporte e o formato, e que exigem processamento técnico específico e, por vezes, mediação técnica para acesso.

Espécie

Divisão de gênero documental que reúne tipos documentais por seu formato.

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Desta forma, o patrimônio documental contempla a diversidade de: • bases para registro da informação desenvolvidas ao longo da história4, das tabuinhas de argila ao papel e às mídias eletrônicas e digitais; • peculiaridades físicas do suporte advindas do modo como o documento foi produzido como por exemplo, caderno, cartaz, folha, livro, mapa, rolo de filme, entre outros; • sistema de signos predominante no documento característico do suporte utilizado como, por exemplo, documentos audiovisuais, bibliográficos, cartográficos, eletrônicos, filmográficos, iconográficos, micrográficos e textuais; • combinações de tipo e formato como por exemplo, atas, cartas, decretos, discos, filmes, folhetos, fotografias, memorandos, ofícios, plantas, relatórios etc. A partir da análise destes elementos, pode-se compreender a pluralidade de registros que compõem o patrimônio documental, um legado para comunidades presente e futura, formado por registros informacionais que representam a evolução do pensamento, as descobertas, e tantas outras realizações da humanidade. A preservação do patrimônio documental é fomentada internacionalmente pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) através do Programa Memória do Mundo, criado em 1992 com a missão de “aumentar a consciência e a proteção do patrimônio documental mundial e conseguir sua acessibilidade universal e permanente” partindo do princípio de que o patrimônio documental mundial pertence a todos, deveria ser plenamente preservado e protegido para todos e, com o devido respeito aos hábitos e práticas culturais, deveria ser acessível para todos de maneira permanente e sem obstáculos. (Memória do Mundo: diretrizes para a salvaguarda do patrimônio documental, p. 9)

4  SILVA (1998) ao abordar a origem e evolução do conhecimento arquivístico, apresenta diferentes suportes documentais, da Idade Antiga aos dias atuais.

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O “Registro da Memória do Mundo”5 criado em 1995, componente de maior visibilidade do Programa, atende ao princípio fundamental de conscientização da importância do patrimônio documental, constituído por itens, coleções e fundos documentais de arquivos, bibliotecas, museus entre outras instituições, enquanto herança mundial a ser preservada e cujo acesso deve ser favorecido por meio dos mais variados recursos. Do ponto de vista da Arquivologia, considerando-se os preceitos do Patrimônio Cultural e do Patrimônio Documental há o que se define como Patrimônio Arquivístico, ou seja, “conjunto dos arquivos de valor permanente, públicos ou privados, existentes no âmbito de uma nação, de um estado ou de um município” (Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, 2005, p. 130). 2. ARQUIVOLOGIA: TEORIAS E PROCEDIMENTOS A Arquivologia possui princípios e teorias próprios, característicos de seu objeto de estudo (os arquivos), que influenciam o desenvolvimento de seus procedimentos dentre os quais, destaca-se neste trabalho, a descrição. Por isto, antes de defini-lo e discorrer sobre sua aplicação/desenvolvimento, deve-se ter uma noção do significado do Princípio de Respeito aos Fundos, o Princípio de Respeito à Ordem Original e a Teoria das Três Idades. De acordo com Rousseau e Couture (1998, p. 79), autores canadenses que desfrutam de grande prestígio na área, o Princípio de Proveniência, também conhecido como Princípio de Respeito aos Fundos, tem origem em 1841 e é considerado “a base teórica, a lei que rege todas as intervenções arquivísticas”, pois resulta na identificação dos fundos documentais – unidade básica de um arquivo. A definição deste princípio comporta duas abordagens que o definem como princípio fundamental segundo o qual os arquivos de uma mesma proveniência não devem ser misturados com os de outra proveniência e devem ser conservados segundo a sua ordem primitiva, caso exista; ou o princípio segundo o qual cada documento deve ser colocado no fundo de onde provém e, nesse fundo, no seu lugar de origem. (ROUSSEAU e COUTURE, 1998, p. 82). 5  Maiores informações sobre o programa disponíveis em <http://www.arquivonacional.gov.br/ cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=91> Acesso em: jul. 2009.

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Na definição apresentada os autores sinalizam o que, posteriormente, chamam de graus do princípio de proveniência. No primeiro grau de aplicação, considera-se o fundo de arquivo como entidade distinta, mantendo-se juntos os documentos produzidos por um mesmo indivíduo, família ou instituição. No segundo grau, o documento deve ocupar um lugar específico dentro do fundo documental de acordo com sua ordem original estruturando-se, desta forma, o fundo documental em seções/grupos e suas subdivisões; classes/ sérias e suas subdivisões; dossiês/processos; tipos documentais e itens documentais. O segundo grau de aplicação do Princípio da Proveniência constituise na aplicação do Princípio de Respeito à Ordem Original. A aplicação conjunta destes princípios, conforme apresentado no QUADRO 02, preserva a organicidade6 característica dos documentos arquivísticos, distinguindo-os dos documentos bibliográficos e dos artefatos museológicos.

6  Organicidade é definida como a “qualidade segundo a qual os arquivos refletem a estrutura, funções e atividades da entidade acumuladora em suas relações internas e externas.” (DTA, 1996, p. 57).

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QUADRO 02 – Princípios da Proveniência e de Respeito à Ordem Original Fonte: Definições extraídas do Dicionário de Terminologia Arquivística, 1996; apresentado por SILVA (2010).

PRINCÍPIO

PRINCÍPIO DE PROVENIÊNCIA ou PRINCÍPIO DE RESPEITO AOS FUNDOS

PRINCÍPIO DE RESPEITO À ORDEM ORIGINAL

DEFINIÇÃO

Princípio segundo o qual os arquivos originários de uma instituição ou de uma pessoa devem manter sua individualidade não sendo misturados aos de origem diversa.

Princípio que, levando em conta as relações estruturais e funcionais que presidem a gênese dos arquivos, garante sua organicidade.

RESULTADO

Identificação dos fundos documentais (quadro de fundos)

Composição do fundo documental (seções, séries etc. estabelecidos no plano de classificação).

Outro elemento teórico importante é o Ciclo de Vida e a Teoria das Três Idades, inseridos no corpo teórico da Arquivologia a partir de 1940. Segundo Rousseau e Couture (1998) o “ciclo de vida do documento que, tal como a noção de fundo ou princípio de proveniência, faz parte das bases em que se assenta a arquivística contemporânea”, é composto por três períodos denominados de período de atividade (arquivos correntes), semiatividade (arquivos intermediários) e inatividade (eliminação ou guarda nos arquivos permanentes). A referência a arquivos ativos, semi-ativos e inativos corresponde, respectivamente, a arquivos correntes, intermediários e permanentes. O Ciclo de Vida dos Documentos está diretamente relacionado à Teoria das Três Idades e ambas dizem respeito à gestão documental, pois sistematizam os arquivos de acordo com seu valor, freqüência e tipo de utilização dos documentos, desde sua produção até sua destinação final

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(eliminação ou guarda permanente), conforme apresentado na FIGURA 2. FIGURA 02 – Ciclo de vida, teoria das três idades e valores Fonte: Definições do Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005), apresentada por SILVA (2010).

Do ponto de vista dos procedimentos necessários ao tratamento e acesso aos arquivos, destacam-se a classificação, avaliação e descrição. O procedimento de classificação requer essencialmente a aplicação do Princípio de Respeito aos Fundos/Princípio da Proveniência. Conforme explica Heredia Herrera (1993, p. 266) classificar um fundo de arquivo é dividir o separar un conjunto de elementos estableciendo clases, grupos o series, de tal manera que dichos grupos queden integrados formando parte de la estructura de un todo. Cada grupo o clase es único y distinto

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de los demás, con sus características propias que lo diferencian de los otros, pero insisto, formando parte de una estructura jerárquica; cada grupo a su vez es susceptible de subdivisiones. (HEREDIA HERRERA, 1993, p. 266)

O plano de classificação constitui-se no que Heredia Herrera chama de “materialización de la clasificación”, pois segundo a autora la clasificación siguiendo el principio de procedencia precisa de plasmación material en un esquema o cuadro que no es otra cosa que el andamio para sistematizar cada fondo en sus secciones y series. (HEREDIA HERRERA, 1993, p. 267).

Deve-se lembrar que plano de classificação e quadro de arranjo são sinônimos, porém, costumava-se utilizar plano de classificação para arquivos correntes e quadro de arranjo para arquivos permanentes. Ambos dizem respeito ao esquema que pauta a organização dos documentos em um arquivo e representam a estrutura interna de um fundo documental. Belloto (2004, p. 135) explica a origem da utilização dos termos na literatura nacional, bem como os motivos que fizeram os estudiosos de terminologia arquivística optar pelo uso do termo classificação tanto para arquivos correntes quanto para arquivos permanentes. Planos de classificação/quadros de arranjo são instrumentos elaborados após uma análise detalhada do ambiente em que o arquivo está inserido, mais precisamente, o contexto jurídico administrativo, de procedimentos, de proveniência e, tecnológico do organismo produtor. Proporcionam o domínio intelectual do acervo ao demonstrar a relação existente entre os documentos e sua origem, representada pelo fundo documental e suas subdivisões (seção, série, dossiê, processo), a partir de um elemento e, conseqüentemente, de um método de classificação utilizado. De acordo com Schellenberg (2004, p. 81 – 96) existem três elementos que podem nortear a classificação de um acervo, são eles: a ação, a estrutura organizacional e o assunto, que correspondem, respectivamente, aos métodos de funcional, estrutural e por assunto. O elemento e, conseqüentemente, o método de classificação, correspondem ao critério utilizado para formação de séries e subséries de um plano de classificação.

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O procedimento de avaliação é fundamental para a gestão documental7, e é definido como um trabalho interdisciplinar que consiste em identificar valores para os documentos (imediato e mediato) e analisar seu ciclo de vida, com vistas a estabelecer prazos para sua guarda ou eliminação, contribuindo para a racionalização dos arquivos e eficiência administrativa, bem como para a preservação do patrimônio documental (BERNARDES, 1998, p. 14).

De acordo com o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005, p. 41) “o processo de análise de documentos de arquivo, que estabelece os prazos de guarda e a destinação de acordo com os valores que lhes são atribuídos”. A Avaliação é pressupõe a aplicação dos preceitos do Ciclo de Vida dos Documentos, da Teoria das Três Idades e da valoração dos documentos (FIGURA 2). Um processo que congrega o trabalho do arquivista aliado a contribuição de profissionais de outras áreas que disponham de conhecimento pertinente à elaboração da tabela de temporalidade, instrumento de destinação de documentos arquivísticos definido como instrumento aprovado por autoridade competente que regula a destinação final dos documentos (eliminação ou guarda permanente), define prazos para sua guarda temporária (vigência, prescrição, precaução), em função de seus valores administrativos, legais, fiscais etc. e determina prazos para sua transferência, recolhimento ou eliminação (BERNARDES, 1998, p. 22).

Na tabela de temporalidade estão registrados os prazos de guarda em arquivo corrente e intermediário, bem como a destinação final, ou seja, descarte ou guarda definitiva em arquivo permanente. Também é o instrumento responsável pela programação das rotinas de transferência, recolhimento e eliminação. Uma vez transmitida uma noção dos procedimentos de classificação e avaliação, apresenta-se o procedimento de descrição, definido como 7  Segundo o Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística (2005, p.100) Gestão de Documentos é definida como “conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à produção, tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos em fase corrente e intermediária, visando sua eliminação ou recolhimento”.

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elaboração de uma acurada representação de uma unidade de descrição e de suas partes componentes, caso existam, por meio da extração, análise, organização e registro de informação que sirva para identificar, gerir, localizar e explicar documentos de arquivo e o contexto e o sistema de arquivo que os produziu. Este termo também se aplica ao produto desse processo (ISAD(G), 2000, p. 14).

A descrição visa à elaboração de instrumentos de pesquisa, ou seja, o desenvolvimento de um conjunto de recursos que podem ser definidos como “qualquer descrição ou meio de referência elaborado ou recebido por um serviço de arquivo, com vistas ao controle administrativo ou intelectual do acervo arquivístico” (ISAD (G), 2000, p. 15). O processo descritivo deve aproximar o usuário do arquivo aos documentos que foram tratados pelo arquivista, constituindo-se no “elo suficiente e necessário entre a indagação do pesquisador e sua solução, tornada possível pelos chamados instrumentos de pesquisa” (Bellotto, 2004, p. 173). Nesta aproximação são os instrumentos de pesquisa que demonstrarão o potencial de pesquisa de um acervo, permitindo que seus usuários (historiadores, jornalistas, arquitetos, estudantes e demais interessados) localizem os documentos de seu interesse a partir do tratamento dispensado aos arquivos ao longo de seu ciclo de vida. Destacam-se neste sentido as palavras de Bellotto ao analisar o sentido da descrição documental, afirmando que o trabalho do arquivista precisa revelar-se ao historiador desde o seu primeiro momento no arquivo; é esse trabalho que deve proporcionar o encontro satisfatório entre pesquisador e documento, através dos instrumentos de pesquisa. (...) A qualidade de um arquivista transparece na precisão dos instrumentos de pesquisa que ele elabora e na medida em que seu trabalho satisfaz o pesquisador. (BELLOTTO, 2004, p. 176 e 177)

O desenvolvimento de instrumentos de pesquisa deve obedecer as regras da descrição multinível respeitando, desta forma, as particularidades do documento arquivístico advindas da organicidade – conseqüência da aplicação do Princípio de Respeito aos Fundos e do Princípio de respeito a Ordem Original. O modo como se processa a descrição multinível é apresentado pela a ISAD(G), segundo a qual

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Se o fundo como um todo estiver sendo descrito, ele deverá ser representado numa só descrição (...). Se é necessária a descrição das suas partes, estas podem ser descritas em separado (...). A soma total de todas as descrições assim obtidas, ligadas numa hierarquia (...) representa o fundo e as partes para as quais foram elaboradas as descrições. (ISAD(G), 2000, p. 7).

A descrição multinível prevê a possibilidade de representar o arquivo aos seus usuários, em suas diferentes facetas, possibilitando a descrição do acervo no conjunto ou em suas partes, até o ítem documental – o documento propriamente dito. Observa-se, então, a existência de diferentes níveis de descrição. A expressão nível de descrição é definida pela ISAD(G) (2000, P. 15) como “a posição da unidade de descrição na hierarquia do fundo” e pela NOBRADE (2006, p. 16) como “posição da unidade de descrição em uma estrutura hierarquizada de organização de um acervo”. Tais definições não divergem entre si, pois ambas transmitem a noção de que correspondem a uma subdivisão intelectual do conjunto. O nível de descrição corresponde a uma unidade de descrição específica. As normas ISAD(G) (2000, p. 16) e NOBRADE (2006, p. 17) compartilham do mesmo conceito de unidade de descrição que é o de “documento ou conjunto de documentos, sob qualquer forma física, tratado como uma unidade, e que, como tal, serve de base a uma descrição particularizada”. Os níveis e suas correspondentes unidades de descrição são apresentados e definidos no QUADRO 03. QUADRO 03 – Níveis/unidades de descrição arquivística Fonte: ISAD(G) (2000, p. 14 – 16); NOBRADE (2006, p. 14 – 17), apresentado por SILVA (2010).

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NÍVEIS E SUAS UNIDADES DE DESCRIÇÃO

FUNDO

SEÇÃO

SÉRIE

DEFINIÇÃO ISAD(G) Conjunto de documentos, independente de sua forma ou suporte, organicamente produzido e/ou acumulado e utilizado por um indivíduo, família ou entidade coletiva no decurso das suas atividades e funções. Subdivisão de um fundo compreendendo um conjunto de documentos relacionados que corresponde a subdivisões administrativas da agência ou instituição produtora ou, quando tal não é possível, correspondendo a uma divisão geográfica, cronológica, funcional ou agrupamentos de documentos similares. Quando o organismo produtor tem uma estrutura hierárquica complexa, cada seção tem tantas subdivisões subordinadas quantas forem necessárias, de modo a refletir os níveis da estrutura hierárquica da unidade administrativa subordinada primária. Documentos organizados de acordo com um sistema de arquivamento ou mantidos como uma unidade seja por resultarem de um mesmo processo de acumulação ou arquivamento, ou de uma mesma atividade, seja por terem uma forma particular ou devido a qualquer outro tipo de relação derivada de sua produção, recebimento ou uso. É também conhecida como uma série de documentos (records series).

NOBRADE Conjunto de documentos de uma mesma proveniência. Termo que equivale a arquivo.

Subdivisão da estrutura hierarquizada de organização que corresponde a uma primeira fração lógica do fundo ou coleção, em geral reunindo documentos produzidos e acumulados por unidade(s) administrativa(s) com competências específicas, também chamada grupo ou subfundo.

Subdivisão da estrutura hierarquizada de organização de um fundo ou coleção que corresponde a uma seqüência de documentos relativos à mesma função, atividade, tipo documental ou assunto. Subdivisão da seção.

DOSSIÊ / PROCESSO

Unidade organizada de documentos agrupados, quer para uso corrente por seu produtor, quer no decurso da organização arquivística, porque se referem a um mesmo assunto, atividade ou transação. Um dossiê/processo é geralmente a unidade básica de uma série.

Dossiê: unidade de arquivamento constituída de documentos relacionados entre si por assunto (ação, evento, pessoa, lugar, projeto). Processo: unidade de arquivamento constituída de documentos oficialmente reunidos no decurso de uma ação administrativa ou judicial.

ITEM DOCUMENTAL

A menor unidade arquivística intelectualmente indivisível, por exemplo, uma carta, memorando, relatório, fotografia, registro sonoro

Documento que compõe dossiê ou processo.

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Os níveis e suas respectivas unidades de descrição definidos pela ISAD(G) e NOBRADE apresentam uma abordagem similar, evidenciando-se na NOBRADE nuances da utilização destes termos de acordo com a prática brasileira, observados especialmente no nível de dossiê/processo. Tais elementos não são definidos na descrição, mas herdados da classificação/ arranjo, evidenciando as estreitas relações entre os procedimentos. Por fim, deve-se destacar que o processo de descrição de acervos arquivísticos deve seguir as regras das normas arquivísticas, a saber: General International Standard Archival Description – ISAD(G), Norma Brasileira de Descrição – NOBRADE, International Standard Archival Authority Record for Corporate Bodies, Persons, and Families - ISAAR(CPF), International Standard for Describing Functions – ISDF, International Standard for Describing Institutions with Archival Holdings – ISDIAH. Tanto a ISAD(G) quanto a ISAAR(CPF) possuem codificação eletrônica o que possibilita, de fato, o intercâmbio das descrições. Trata-se, respectivamente, dos padrões Encoded Archival Description (EAD) e o Encoded Archival Context (EAC). 3. ARQUIVO, DOCUMENTAL

PATRIMÔNIO

ARQUIVÍSTICO,

PATRIMÔNIO

Os arquivos reúnem conjuntos documentais orgânicos e únicos, resultantes das ações praticadas por seus produtores ao longo de sua trajetória, requeridos tanto pelo aporte administrativo quanto pelo uso como fonte de pesquisa para preservação da memória e/ou conservação da história. A Arquivologia reúne os princípios teóricos, conceitos e procedimentos que permeiam a formação do Patrimônio Arquivístico entendido com um subconjunto do Patrimônio Documental que, por sua vez, é um subconjunto do Patrimônio Cultural. O Princípio de Respeito aos Fundos/Princípio da Proveniência, o Ciclo de Vida e, a Teoria das Três Idades são os fundamentos basilares subjacentes ás intervenções arquivísticas, evidentes na classificação/ arranjo, na avaliação e na descrição. Na classificação/arranjo observa-se a aplicação do Princípio de Respeito aos Fundos/Princípio da Proveniência e resulta num instrumento denominado plano de classificação, utilizado na organização dos acervos

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arquivísticos e necessários aos procedimentos de avaliação e descrição. A avaliação ocorre de acordo com o Ciclo de Vida, a Teoria das Três Idades e a identificação dos valores dos documentos. Pressupõe a realização prévia da classificação e resulta na tabela de temporalidade. Neste ponto, é necessário retomar o conceito de Patrimônio Arquivístico enquanto “conjunto dos arquivos de valor permanente, públicos ou privados, existentes no âmbito de uma nação, de um estado ou de um município” (Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística, 2005, p. 130) para que dessa forma se possa depreender que de todo conjunto documental produzido apenas os documentos de arquivo que apresentam valor secundário e tem guarda definitiva em Arquivos Permanentes (de 3ª Idade) constituem o Patrimônio Arquivístico (ver FIGURA 02). A descrição é o procedimento que viabilizará o acesso aos documentos arquivísticos ao longo de seu Ciclo de Vida, especialmente aos usuários/ consulentes dos arquivos permanentes, ou seja, do Patrimônio Arquivístico. Diante do exposto, pode-se observar que a formação do Patrimônio Documental perpassa as teorias, procedimentos e métodos da Arquivologia, cuja aplicação culminará na formação do Patrimônio Arquivístico.

REFERÊNCIAS: ARQUIVO NACIONAL (Brasil). DICIONÁRIO BRASILEIRO DE TERMINOLOGIA ARQUIVÍSTICA. Rio de Janeiro : Arquivo Nacional, 2005. ARQUIVO NACIONAL (Brasil). Memória do Mundo: diretrizes para a salvaguarda do patrimônio documental. Disponível em <http://www. arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=91>. Acesso em 21 out. 2007. BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivística: objeto, princípios e rumos. São Paulo: Associação dos Arquivistas de São Paulo, 2002. BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes: tratamento documental. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2004.

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(Especialista em Ciência da Computação) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2003. SILVA, Rita de Cássia Portela da Silva. Padrões de metadados para instrumentos de pesquisa: a integração em benefício do usuário tendo por base o acervo da Fábrica Rheingantz. Dissertação (Mestre em Patrimônio Cultural) – Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, 2010.

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O JORNAL O TEMPO E O CENÁRIO POLÍTICO DE 1937: BREVES INCURSÕES NESTE CENÁRIO E NO DECRETO DO ESTADO NOVO MSd. Tiago Fonseca dos Santos1

CONSIDERAÇÕES INICIAIS A década de 1930 foi um período de profundas transformações da ordem político-institucional no Brasil. Imbricada em um processo de adesão à economia internacional, a economia brasileira passou por fecundas transformações, configurada em função do modelo de modernização conservadora, tendo por base o emergente processo de industrialização. A articulação desses agentes e suas forças implicaram em uma conjuntura de tensão e acirramento dos conflitos de interesses dos grupos econômicos e políticos. Para Skidmore (1976), a exitosa política varguista de cooptação dos agentes político-econômicos fez com que o Estado passasse a incorporar a dissidência de outrora. O que ocorrera com os tenentes e as oligarquias rurais pós–revolução de 30, aos poucos, dar-se-ia aos agentes das Forças Armadas 1  Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental na mesma Universidade (PPGEA/FURG). Bolsista CAPES/REUNI. Contato: tiago_fsantos@yahoo.com.br

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e, desse modo, as concisas transformações político-institucionais vão arregimentando forças dentro do círculo gravitacional da estrutura de poder varguista, ou seja, o aparato burocrático montado por Vargas lhe garantiu uma concentração de poder singular. Nesse contexto, no decorrer do ano de 1937, o processo político de então criou um ambiente repleto de aspirações democráticas, face ao pleito eleitoral de 03 de janeiro de 1938; haja vista que, segundo Skidmore (1976: 46), “durante o primeiro semestre de 1937, Vargas pôs em prática um duplo estratagema: por um lado parecia cooperar com preparativos para a campanha presidencial, negociando com líderes estaduais; contudo, ao mesmo tempo, trabalha por isolar os mais refratários dentre os mesmos”. Em outras palavras, de acordo com o autor, o jogo político estabelecido por Vargas, teve na imprensa a sua principal aliada e esta análise constitui o principal foco deste trabalho. A centralização do poder é uma construção gradual e estrategicamente articulada por Vargas. As sucessivas medidas acima retratadas deram margem a esta interpretação. Ao longo do processo, são engendrados inúmeros fatores que, articulados, consolidaram a instituição de uma nova ordem: o Estado Novo. Contudo, a riqueza da disputa da opinião pública foi bastante significativa à compreensão do desencadear destes eventos macro-analíticos. A campanha eleitoral em 1937 surgiu como uma perspectiva de agitação dos meios políticos dentro de uma perspectiva democrática tanto que, os inúmeros agentes são colocados em ação, criando um cenário de articulações ímpar. Assim, dentro desse quadro, a proposta do presente texto é constituída a partir da investigação acerca dos elementos componentes da campanha eleitoral no jornal local O Tempo, periódico em que se encontra vasto material como subsídio à análise dos processos ora mencionados, afinal, o referido periódico é um veículo de comunicação tradicional na cidade. De acordo com Sosa (2007), Órgão fundado em fundado em Rio Grande a 1° de dezembro de 1906, sob a responsabilidade de Paulo Pacheco, Alípio Cadaval e outros, apresenta-se por vezes de maneira mãos independente das orientações do governo federal. Essa independência está obviamente condicionada aqueles momentos em que a censura estava mais arrefecida, nos outros precisou se submeter às ordens impostas (SOSA, 2007: 52).

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Assim, conforme a autora o periódico desfruta – ao longo da primeira metade da década de 1930 – de alguma autonomia em relação ao governo federal, excetuando, é claro, os períodos de controle e censura da imprensa. Não obstante, em período subseqüente, ao longo do ano de 1937, o periódico toma uma postura abertamente defensora do governo federal, situação claramente perceptível a partir do arrendamento do jornal, como poderá ser observado adiante. Em relação ao processo eleitoral às eleições de 03 de janeiro de 1938, o periódico apoiara, publicamente, como correia de transmissão da campanha e da divulgação das políticas varguistas. A partir da análise do jornal O Tempo, são elencadas como categorias de análise do processo da campanha eleitoral, a conjuntura político-econômica do Rio Grande do Sul à época, os inimigos do regime, o decreto do Estado de Guerra e, finalmente, a instituição do Estado Novo no Brasil, haja vista que, estes elementos estão imbricados e correlacionados ao processo políticoinstitucional do ano de 1937. Como mencionado, o objetivo da pesquisa está centrado na análise do olhar do periódico sobre os temas recorrentes em suas páginas e com vinculação direta ao processo político, institucional e partidário inerente ao processo eleitoral em questão. A investigação conta como corpus metodológico a Análise Documental, tendo em vista a prospecção, a seleção e a categorização das mesmas, a fim de estruturar a análise. Segundo Chaumier, esta técnica consiste em “uma operação ou um conjunto de operações visando representar o conteúdo de um documento sob uma forma diferente e original, a fim de facilitar num estado posterior, a sua consulta e referenciação” (CHAUMIER apud BARDIN, 1977: 45). O trabalho com as possíveis fontes documentais consiste, primeiramente, em um panorama onde objetiva traçar a qualificação das informações e a categorização das mais pertinentes à pesquisa. Traçado este panorama, realizamos a indexação das informações, com o objetivo de facilitar a consulta e a apresentação do tema, tendo em vista que a organização das informações a partir de unidades de informação e de categorias facilita o trabalho e a análise das mesmas em momentos posteriores. Enfim, o objetivo desta metodologia é dar uma organização às informações tal que sejam facilmente armazenadas e manuseadas (BARDIN, 1977: 46). Desse

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modo, em linhas gerais, analisa a visão do jornal local sobre os elementos apontados como objetos de estudo. Ainda assim, procura estruturar a partir dos discursos do jornal, aproximações e rupturas político s, sendo que, com esta perspectiva almeja tecer um panorama sobre os elementos encadeados na campanha eleitoral. PANORAMA DA CAMPANHA ELEITORAL À ÉPOCA O jornal O Tempo, apoiador das forças majoritárias, dando ênfase à candidatura de José Américo; tanto que traz, em suas páginas, a trajetória da campanha desse candidato, seus discursos e as expectativas do cenário político e intelectual do período. O início da campanha declarada ocorre em 17 de agosto de 1937, no momento em que o jornal estampa em sua capa a seguinte manchete: “Para presidente da Republica: José Américo de Almeida”. Nesta mesma data, em um comunicado do Sr. Alípio Cadaval, diretor-proprietário do jornal, comunica o seu afastamento da redação por problemas de saúde: Ha cerca de dois mezes, accommetido de grave enfermidade, de me determinou agora, por prescpição medica um periodo de rigoroso repouso. Consequentemente arrendei meu jornal <O Tempo> em sua parte redactorial, que desde hoje e durante a vigencia do contracto respectivo, passa a responsabilidade dos srs. Otto Brodt Filho e Luiz Emilio Leo, certo de que elles saberão presservar a mesma linha de elegancia moral que o <O Tempo> conquistou na opinião publica e que tem mantido por espaço de trinta annos.2

Com a posse da nova diretoria, a campanha eleitoral ganha maior espaço na página do periódico e, em segundo, o manifesto de seus novos editores-chefe, o jornal seguiria à conduta ética e retidão editorial dos trintas anos de história desse periódico, tanto que as reportagens a respeito do processo político envolvendo o governo central e a candidatura José Américo, se multiplicam. Em setembro, a maioria das reportagens versa sobre o governo de Flores da Cunha e as denúncias por improbidade administrativa. Em outubro, começa a campanha total contra Armando de Salles e Flores da Cunha e, em novembro, certo vazio aguarda pelo anúncio da instituição da nova ordem estabelecida. 2  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 16 de agosto de 1937.

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De modo geral, as notícias de seus discursos, de suas manifestações públicas e das conferências entre os políticos das forças majoritárias ressaltam nas manchetes e reportagens do periódico. A promoção da imagem de José Américo é, nitidamente, construída e surgem os qualitativos como “candidato dos pobres”, “candidato democrático”, entre outros. Em resposta às querelas com a candidatura de Salles, “Tudo isso não passa de pura intervencionisse de meus inimigos políticos. Isto, porém, não prejudicará o brilho da minha victoria no pleito de 03 de Janeiro, pois sou o candidato do povo brasileiro”3. A construção pública de um candidato que aglutina os interesses convergentes entre as forças majoritárias e os interesses do povo brasileiro pode ser percebida como a mola-mestra da propaganda política. Por outro lado, a trajetória desta campanha é marcada, como mencionado pelos ataques à imagem de Flores da Cunha e de Armando de Salles. A dilapidação de ambos dava-se de forma clara, direta e contundente. A vida pública de ambos os políticos são trazidas à tona frequentemente. A utilização da máquina pública em benefício próprio, ou de empresas privadas, é colocada a público. A respeito do governador do Estado, o Sr. Flores da Cunha, as manchetes e reportagens trazem evidências desse fato. Da reportagem Um homem de negocios - A prosperidade do sr. Flores da Cunha, segue o seguinte fragmento: O sr. Flores da Cunha não gosta de inverter em propriedades urbanas. Eis por que só possue a casa em Uruguayana, que lhe foi offertada em subscrição popular e, em Porto Alegre, para residencia e haras. Esse prédio estava localizado na Avenida Independencia. Em homenagem á sua posição economica e financeira actual, o sr. Governador do Estado mudou o nome da Avenida de Independencia para Flores da Cunha.4

Ao longo do período analisado, se desdobram as denúncias sobre o governo estadual, principalmente, a respeito do possível enriquecimento por meio de improbidade administrativa do Sr. Flores da Cunha, como se percebe neste fragmento. Além disso, aparecem casos da utilização da máquina estatal em seu próprio benefício, como por exemplo, o uso de pessoal, de viaturas, 3  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 18 de setembro de 1937. 4  Jornal O Tempo, rio Grande, em 15 setembro de 1937.

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de ferramentas e equipamentos em geral em suas fazendas. Da mesma forma, o jornal traz o esquema montado para a compra de equipamentos bélicos, contando com rifles, munições e até, tanques de guerra; sendo que este último não chegou a ter a compra efetivada. Por outro lado, em relação ao governo central, Flores da Cunha representava um entrave político às forças majoritárias. Suas inúmeras interpelações com as Forças Armadas representaram uma “pedra no sapato” do oficialismo. Constam nos jornais inúmeras conferências com forças do exército onde o governador do Estado procurava incitar as forças militares contra o governo Vargas. Em outra reportagem, mencionando as fazendas do Sr. Flores da Cunha, além de denunciar uso do aparato público para benefícios particulares, o jornal acidamente questiona o patriotismo do governador, pois o mesmo intenta vender uma área de sua fazenda às Forças Armadas, por um valor bastante acima do de mercado. Em linhas gerais, as reportagens a respeito do governo do Estado são contundentes e atacam, diretamente, a figura de Flores da Cunha em função de sua trajetória política frente ao Executivo estadual. O mesmo ocorre com o governo municipal, em várias reportagens esse é questionado em função de certo “abandono da cidade”. Já em relação ao prefeito, o “Dr.” Meirelles Leite, aparecem inúmeros questionamentos em relação às obras públicas, bem como ao erário municipal. Com relação à candidatura de Armando de Salles, da União Democrática Brasileira (UDB), o jornal é bastante crítico em relação à pessoa do candidato, buscando trazer à tona sua conduta política e, até certo ponto, a sua vida particular. As reportagens são bastante contundentes e, a partir de outubro, trazem o acirramento das matérias agredindo a sua imagem, sendo elas por práticas políticas do referido candidato e de sua ligação com empresas privadas, especulando os interesses aos quais estava a serviço. Os qualitativos a esse respeito são, no mínimo, bastante curiosos, haja vista que, em inúmeras reportagens, são os seguintes: “testa-de-ferro da especulação”5, “boneco de

5  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 10 de outubro de 1937.

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palha da plutocracia”6 e “candidato do capitalismo internacional”7. Em relação à sua gestão no governo do Estado de São Paulo, o jornal traz a curiosa manchete, em letras garrafais, na capa do jornal: “O governo do sr. Armando de Salles Oliveira, em S. Paulo, foi uma verdadeira calamidade. Até o meretrício foi taxado!”8. Ultrapassando o clima de ironia – e sarcasmo – as críticas relacionadas à gestão e à rede de apoio do candidato trazem questões bem mais emblemáticas. Em relação à trajetória política de Salles no interior, o jornal traz reportagens sobre as manipulações por este organizadas em eleições no interior de São Paulo, momento em que foram utilizadas urnas com chaves de papel. A respeito da atividade profissional e política do candidato, o jornal O Tempo­traz a seguinte reportagem: “O candidato do amarello-de-ouro” de S. J. Maciel Filho. O Presidente do Partido Constitucionalista tem vocação para governanças e presidencias. Já teve tambem pelas interventorias, que hoje as esquece, proclamando-se contra os intervencionismos [...] o candidato de amarello-ouro que é dollar electrico e libra ferroviária, pensa no codigo das águas e no código de minas, como coisas inuteis...9

Nesta reportagem, o autor traz as ligações de Armando de Salles com empresas de prestação de serviço, de energia e de ferrovias no interior de São Paulo, com quais fizera consideráveis negócios. Seguindo a linha sarcástica, Maciel aponta com destreza o posicionamento de Salles aos bens públicos, tidos por estes com bens apoderáveis pelos agentes econômicos. O mesmo se pode ver em relação à encampação de companhias de seguro pelo Estado; segundo o jornal, o candidato mantém o vínculo empregatício com uma companhia privada e recebe um salário de 10 contos. Uma frase de Salles é emblemática para se perceber a profundidade dessa discussão. Questionado sobre elementos de sua trajetória política, o referido candidato manifestou o seguinte, em uma conferência pública: “a 6  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 19 de outubro de 1937. 7  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 25 de outubro de 1937. 8  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 15 de setembro de 1937. 9  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 14 de outubro de 1937.

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política é, até certo ponto, a arte de esquecer...”10 A associação da figura de Salles às empresas estrangeiras e as denúncias de má utilização do aparato político aos interesses privados marcam as páginas de O Tempo sobre o candidato. Como se pode perceber, os tratamentos a seu respeito são bastante satíricos, tanto que a 17 de setembro, ocorre a publicação de um fragmento bastante peculiar, com a seguinte manchete: “Com o Brasil se for possível, contra o Brasil de for necessário! - o separatista de hontem é o campeão do nacionalismo de hoje!”11 por Galileu Inda. A frase é de autoria de Salles, e o autor da reportagem especula sobre seu posicionamento frente aos agentes econômicos internacionais, colocando-os como lesa-pátria. Não obstante, quanto à sua visita ao Rio Grande do Sul, o jornal aproveita para dar algumas “alfinetadas” ao respaldo popular a tal campanha. O candidato de Salles esteve no Rio Grande do Sul de 11 a 23 e, em 13 de setembro, visitou o município de Rio Grande. Na reportagem “A chegada do candidato”, a dedicação de boas-vindas ao visitante é retradada: ... durante dez dias, será s. excia. hospede da terra gaucha. E durante esses dez dias o bom e honesto povo rio grandense assistirá a espectaculos de uma magnificencia sem par. Numerosos batedores precederam o candidato. Verdadeira commissões de technicos vieram da culta Paulicéa preparar lhe a recepção. 12

Em outra página da mesma edição, em uma pequena nota, faz menção ao ponto facultativo do governo municipal e das repartições públicas do governo do Estado para engrossar as fileiras de apoio nos eventos da campanha. Em suas linhas, a reportagem expressa certo desprezo por tal iniciativa, face ao uso da máquina pública para fins político-partidários e eleitoreiros. A 18 de novembro, na reportagem intitulada A campanha Salles é mencionada a convocação de Alberto Bins à abertura de processo administrativo em função do uso político do sistema ferroviário estadual. Segundo a reportagem, Alberto Bins, então prefeito de Porto Alegre e presidente da Comissão de Propaganda da União Democrática Brasileira 10  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 14 de outubro de 1937. 11  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 17 de setembro de 1937. 12  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 11 de setembro de 1937.

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no Rio Grande do Sul, teria sido convocado ao ressarcimento dos serviços prestados em nome da comitiva da UDB durante a visita de Armando Salles ao Estado. Ainda, segundo o jornal, todos os gastos teriam sido afiançados por uma ordem verbal de Flores da Cunha (como presidente da Comissão, teria de ressarcir os gastos ou responder ao processo). Entre as despesas protestadas estavam as passagens e a alimentação de “classe A” aos integrantes comitiva. As reportagens sobre a visita de Salles em sua caravana pelo Rio Grande do Sul, procuram demonstrar o esvaziamento das atividades, acumuladas ao longo das cidades onde passa. Para corroborar esta perspectiva, se destaca a seguinte reportagem, “A partida do candidato”, uma manchete em que aparecem as seguintes considerações: Que resta agora ao sr. Armando Salles, depois do fragoroso desastre que foi sua excursão ao Rio Grande? Senão estivesse obcecado pela paixão ou dominado pelo interesse de seus aliados e sequazes, uma só coisa deveria fazer: resignarse christãmente á derrota eleitoral, ou evitala, retirando sua candidatura.13

As especulações sobre a retirada da candidatura de Salles são recorrentes às páginas de O Tempo. Em várias reportagens estas especulações se repetem, como se constata em parte no fragmento acima. Por outro lado, em outras reportagens, estas especulações são trabalhadas com fins políticos, articulando a campanha de Salles à situação política do Rio Grande do Sul, principalmente, em relação ao governo Flores da Cunha. Em outubro do corrente ano, estas especulações ganham relevância, aparecendo em inúmeras reportagens. Além disso, a conotação política das mesmas se reforça, tanto que a denúncia da chamada “trama armandista”, engrossa as fileiras jornalísticas do periódico. Desse modo, as notícias trazem, em sua maioria, as articulações “obscuras” de Salles e Flores da Cunha. As excursões destes às conferências com agentes das forças armadas causam agitação no circuito político da campanha José Américo. Já a 18 de outubro, o jornal O Tempo em reportagem de capa traz o relato de uma conferência de Flores como governado de Pernambuco, Lima Cavalcanti e de Minas Gerais, Benedicto Valladares, mencionando a referida articulação e denunciando a 13  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 25 de setembro de 1937.

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agitação causada por ela nos meios políticos. Em linhas gerais, o conteúdo dessas reportagens traz a possível retirada da candidatura de Salles e especulam a indicação de um candidato militar, tendo como objetivo maior a divisão das forças armadas. Além disso, colocam esta nova candidatura em consonância com as forças liberais da esfera internacional, outrora instaladas junto ao governo estadual de Salles e apoiadoras de sua campanha. Um terceiro fator à indicação do novo candidato consiste em colocar um militar no sentido de, caso saísse vencedor do pleito, o governo viria a ser salvaguarda de Flores da Cunha e dos floristas gaúchos. Em reportagem publicada a 16 de outubro, intitulada “vae desistir – a cadidatua do Sr. Salles em perigo!”, retrata o seguinte panorama da corrida eleitoral: As manobras do sr. Antonio Carlos para dirigír a retirada da candidatura Salles: Já lhe cabe a a direcçao das manobras da UDB para justificar a retirada da candidatura do sr. Salles, aob o pretesto de que a oposição armandista não tem confiança nas urnas, estando o pais em estado de guerra. Por outro lado todos sabem que, detrás dessa cortina de fumaça, visa o sr. Antonio Carlos preparar ambiente para a UDB se apresentar com um candidato militar... 14

Durante esse período, começam a surgir as especulações por parte das forças udebistas em relação à insegurança dos meios políticos para o pleito. Como mote a estas especulações, tem, principalmente, a nova decretação do Estado de Guerra. Em segundo plano estão os desdobramentos políticos desta medida e as próprias agitações das forças majoritárias em relação à sucessão presidencial e o novo contexto político, como poderá ser verificado a seguir. OS OLHARES SOBRE A CONJUNTURA POLÍTICO-ECONÔMICA DO RIO GRANDE DO SUL A respeito da situação política do Rio Grande do Sul, em O Tempo é retratada a realidade local e estadual de maneira crítica, face à oposição ao governo de ambas as esferas. Em suas páginas aparecem os problemas sociais, institucionais e de infra-estrutura, ao contrário do outro periódico. A natureza das matérias procura retratar as questões públicas; por exemplo, a coluna “Cartas do Leitor” abre espaço às reclamações acerca dos problemas dos 14  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 16 de outubro de 1937.

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serviços públicos. As reportagens, em geral, abordam a situação dos serviços públicos, bem como o arranjo e alocação dos bens e recursos públicos. Nas páginas do jornal podemos encontrar descrição bastante peculiar e intensa da situação político-econômica do Rio Grande do Sul. Durante o período estudado, estão concentradas contundentes críticas e retaliações ao governo Flores da Cunha. Além disso, as reportagens estão direcionadas à postura político-institucional do Estado em relação ao Executivo federal, trazendo o governo de Flores da Cunha como um entrave às pretensões políticas varguistas. O panorama econômico sobre o Rio Grande do Sul gira em função do abandono das regiões à sua própria sorte, estando o governo orientado aos interesses dos correligionários do PRR. Dessa forma, surgem aspectos das contas públicas do Estado, bem como da organização das medidas públicas visando atender interesses político-partidários. Por esta perspectiva, o mês de outubro aparece como o epicentro da degradação da imagem pública de Flores da Cunha. As agressões têm as mais variadas formas, principalmente a denúncia de suposto enriquecimento ilícito e de ser o agente da agitação dos meios políticos em função de suas conferências com os militares e com os governadores da base de sustentação do governo e da campanha varguista. Ainda em setembro, algumas reportagens são bastante pertinentes a esta análise. Entre elas, “Furor da destruição”, onde o retrato do panorama econômico do Estado é bastante consistente: O governo do sr. Flores da Cunha prossegue implacavelmente na sua condemnada e desastrosa política economica. Não contente com procurar manter os monopólios já exitentes, que tantos clamores teen levantado, outros igualmente escandalosos e nocivos estão preparando sob a eufemística denominação de <instictutos de producção>.15

Em linhas gerais, a matéria versa sobre a criação dos institutos, órgãos de associação dos grandes produtores a fim de defender a comercialização dos produtos a partir de uma política de manutenção dos preços no mercado. Segundo o jornal, os institutos tiveram sua proposta alienada e passaram a atender aos interesses dos grandes produtores e dos afiliados políticos. 15  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 19 de setembro de 1937.

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A 15 outubro, na reportagem “Um homem de negócios – a prosperidade do sr. Flores da Cunha – fortuna em terrenos e animaes” é descrito o patrimônio do ilustre governador construído ao longo dos sete anos à frente da governança estadual. Segundo a reportagem, o governador que começara sua gestão com certo patrimônio – ainda hipotecado! – chegara a esta altura a possuir 16 estâncias e 30 mil bois. Ainda a esse respeito, em crônica de Leal de Souza, intitulada, “16 Estancias e 30 mil bois”, se percebe certo olhar da opinião pública a respeito dos annos tyrania; segundo o jornalista, “... em sete annos! Nessa synthese, com a suggestão de opprobio, está toda a acção de Flores da Cunha no governo do RGS”16. Segundo a matéria, os bens e o aparato público estavam sendo açambarcado pelos correligionários floristas. No plano político, ao longo do mês de setembro, precipitam os primeiros passos da ruptura político-institucional, culminando na renúncia de Flores da Cunha, em 19 de outubro. Ao longo desse processo, a construção de um cenário pré-guerra civil intensifica as querelas, aparecendo uma articulação entre Flores da Cunha e Armando de Salles à resistência armada contra as imposições varguistas. As reportagens retratam criação de forças armadas e o aparelhamento da Brigada Militar, descrevendo os elementos componentes da preparação do movimento armando contra o governo federal. Em linhas gerais, aparece a questão dos armamentos, onde se desenvolve uma grande querela entre o governo florista e o Estado Maior das Forças Armadas. A ruptura se encontra na requisição de armas e diversos materiais utilizados na Revolução de 30 e que supostamente estariam ainda em posse do governo do estado. As cartas e conferências se desdobram, sem, contudo, apresentar encaminhamento consistente. Além disso, o jornal O Tempo aponta a utilização de recursos destinados ao financiamento da campanha armada em 30 que não chegaram a ser utilizados e que não teriam sido descontados por Flores da Cunha sem repassar pelo Tesouro do Estado. Segundo a reportagem, o dinheiro teria sido destinado à compra do Jornal da Manhã.17 Outro elemento apontado como determinante à caracterização das 16  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 18 de setembro de 1937. 17  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 08 de novembro de 1937.

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pretensões de um levante armado por parte do governo florista é retratado com as reportagens sobre os provisórios. Segundo as alegações do governo estadual, estes grupos armados dos à formação de rondas rodoviárias; já as reportagens procuram demonstrar que estas forças estavam preparadas à agitação aramada. A 09 de outubro, em “800 provisórios às portas da capital!” matéria colocada no cabeçalho da capa, o jornal menciona a alocação dos grupos armados em uma propriedade de Flores da Cunha, segundo consta, apenas aguardando as ordens. Com a renúncia de Flores da Cunha, as reportagens retratam o “desmonte do esquema”, retratando – até os primeiros dias de novembro – as minúcias da articulação floristas no Rio Grande do Sul. De acordo com as reportagens, seriam 3.500 homens armados, 8 mil contos investidos com os provisórios, 18 mil contos em armamentos e um déficit que atinge a cifra de 60 mil contos.18 Em interessante reportagem publicada a 22 de outubro e intitulada “A confissão de Flores da Cunha”, o jornal traz elementos de uma entrevista dada pelo ex-governador ao jornal El Pais do Uruguai. Da reportagem, ressalta o seguinte fragmento: “... nós pensávamos em mobilizar 30.000 homens armados, a Brigada, a policia e os corpos de provisórios”. Em reportagem do dia seguinte, apareceria um desmentido de Flores da Cunha, onde este contradizia o seu manifesto da renúncia e que, só não resistira, por que não pôde. Com a Intervenção Federal no Rio Grande do Sul, a partir de 20 de outubro, é iniciado um processo apontado pelo jornal como a “pacificação política gaúcha”. A nova ordem instituída trataria de reconstruir o Estado, a partir do saneamento das finanças e da reestruturação das instituições políticas, trazendo-o à estabilidade político- econômica.

18  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 09 de outubro de 1937.

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OS INIMIGOS DO REGIMEN No período analisado integram essa fileira os integralistas19, tidos agora como perigosos – os inimigos declarados do regime e da Pátria, da moral e dos bons costumes; e os comunistas, de longa data assim tratados, são vistos como uma ameaça à ordem pública e aos interesses da Nação. Já com a decretação do Estado de Guerra, estas fileiras são engrossadas pelos maçons, pelos kardecistas e pelas agremiações políticas diversas. Em O Tempo as considerações a respeito da “ameaça communista” são muito fortes, colocando os simpatizantes do socialismo como “inimigos públicos da brasilidade”. As reportagens trazem o perigo que sonda a sociedade brasileira em função da infiltração dos comunistas nas instituições sociais diversas, desde a família, à escola, às empresas, entre outras. Manifestam a apreensão da opinião pública e exigem do aparato estatal medidas que retornem à segurança e a estabilidade de outrora. Ainda persistem no ideário dos colaboradores do jornal e da opinião pública em geral, as lembranças da “novembrada”, nome no qual era chamada na época a Intentona Comunista.20 Em O Tempo, era veiculada com a mesma veemência no discurso anti-extremista. Tanto o comunismo, como o integralismo são apresentados como inimigos da ordem pública. Além disso, por exemplo, a menção das comunidades de imigrantes do Rio Grande do Sul é apresentada como focos em potencial de regimes autoritários, face à ligação e a influência ideológica às nações de origem. A publicação das prisões de pessoas tidas como subversivas, como agitadores; das reportagens a respeito da moral e da aspiração brasileira à democracia; as publicações relacionadas à situação do regime comunista soviético, apontado como explorador e pernicioso, permeiam as reportagens. 19  Aglutinados principalmente em torno da AIB – Ação Integralista Brasileira. A AIB enquanto agremiação política com atividades entre 1932-1937, caracterizava-se pelo nacionalismo, pelo anti-semitismo, o anti-comunismo, o anticosmopolitismo, defendendo uma sociedade una e estritamente hierarquizada; de caráter eminentemente totalitário, tinha como principais ideólogos, Miguel Reale, Gustavo Barroso e Plínio Salgado (Cf. TRINDADE In: GOMES et. al., 1996: 299-335). 20  A “Intentona Comunista” consistiu em putsch da Aliança Nacional Libertadora – ANL a novembro de 1935. A também conhecida “novembrada” procurou articular para um levante armado civis e militares a partir de quartelada, de greves operárias e manifestações de massa; o movimento foi fortemente reprimido, seus integrantes presos (RODRIGUES In: GOMES et. al., 1996: 372).

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Segundo reportagem de 15 de setembro, aparece o ponto de vista do candidato José Américo, e boa parte da opinião pública relacionada aos extremismos. A declaração do candidato das forças majoritárias é a seguinte: “Manter-me-ei no meu ponto de vista, radicalmente contrário á bolchevização ou facitização do paiz. O nosso clima é de democracia”. Sob a perspectiva da construção de um país democrático, a perseguição e do cerceamento ideológico é uma premissa básica. Na linha de frente o liberalismo de caráter nacional, combatendo o comunismo, o integralismo e qualquer outra ameaça à ordem instituída. A 19 do mesmo mês, em outra afirmação, José Américo reforça o seu ponto de vista. “Sou anti-communista porque sou democratico e tenho fé na democracia”. Já na reportagem intitulada “A mystica do communismo...” a utilização da “ameaça” comunista como trincheira política à campanha José Américo. Segundo a mesma, A folha assariada declara que o communismo não passa de uma simples mystificação, e os qne tentam destruir a trama vermelha são inimigos do regimen e da Patria. Inimigo do regimen e da Patria é o armandismo que não quer que o governo opponha um dique á onda rubra de Moscou.21

Como se verifica, a “ameaça” comunista passa a ser utilizada como instrumento da propaganda político-partidária, elemento conveniente à querela de ambas as candidaturas em suas campanhas, como se percebe no fragmento acima no ataque de O Tempo à imprensa adversária. Neste ínterim, o periódico refuta as especulações a respeito das articulações varguistas à manutenção da ordem instituída, mencionadas pela imprensa da campanha de Salles. Além do comunismo, o integralismo, outrora aliado, passa a ser tripudiado pela imprensa majoritária. Colocado como uma ameaça à democracia, os integralistas passam a ser retratados como articuladores de golpes e sabotagens. Segundo o jornal, engrossam as fileiras da campanha de Salles.

21  Jornal O Tempo, Rio Grande, em 05 outubro de 1937.

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OS OLHARES SOBRE O ESTADO DE GUERRA Com a publicação do Plano Cohen22 pelo Ministério da Guerra, em 30 de setembro, e a solicitação às pressas da votação do caráter de urgência, a 1º de outubro de 1937 da decretação do Estado de Guerra. O cenário políticoeleitoral começa a ganhar um novo caráter. As manifestações políticas condizentes à conjuntura nacional trazem em seu seio o zelo e a prudência da inserção do país em uma medida de exceção, posta como necessária à contenção da influência comunista nos meios políticos e sociais no Brasil. O arranjo de forças políticas fica em suspenso. A opinião pública ficara dividida. Em muitas reportagens aponta à necessidade de manter o país sob o império da lei e da ordem. A partir da ala governista, o olhar a coloca como a mais prudente, já que é assegurado o pleito de 03 de janeiro. Por outro lado, a oposição ganha fôlego em sua crítica à centralização do poder pelo Executivo federal, sendo esta medida arbitrária e com fins políticos, à perpetuação de Vargas no poder. A agitação do cenário político nacional reflete diretamente sobre as publicações do periódico local. O panorama a respeito da decretação do Estado de Guerra aparece nas páginas do jornal O Tempo como salutar medida de garantia à estabilidade política e social do país. O mês de outubro aparece como grande plano de fundo rascunho e descrição das medidas de recrudescimento da centralização política e da execução das medidas do regime de exceção. Na coluna Ultima Hora, é descrita a articulação em torno da convocação da votação do decreto, em caráter de urgência, em função da solicitação dos ministros da Guerra e da Marinha. Segundo a reportagem, a UDB foi contrária à medida. A partir de então, as reportagens retratam o decreto em si e as reportagens analíticas colocam “panos quentes” ao decreto. Segundo os analistas e suas declarações tranqüilizadoras, a medida tem caráter temporário, sendo apenas breve estado de excepção. A fim de proteger as instituições seculares como família, a propriedade e a religião, o Estado de Guerra é caracterizado como uma medida provisória e necessária, com o objetivo exclusivo de garantir a ordem democrática 22  O Plano Cohen, como ficou conhecido o suposto dossiê com os planos de ação dos comunistas, consistiu em uma grosseira falsificação, construída por um oficial integralista e integre a Góes Monteiro, sendo utilizado por Vargas como pretexto para estruturar o cenário político à decretação do Estado Novo. (Cf. SKIDMORE, 1985: 48).

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brasileira e a salubridade das instituições nacionais. Em perspectiva prática, o Decreto é o franco recrudescimento das liberdades individuais, de imprensa e de reunião. O cerco aos inimigos do regime impõe uma série de perseguições e prisões de caráter político. A criação da Policia Militar e do presídio da Ilha do Paiva, são exemplos deste caráter da medida. Ao longo do mês de outubro o circuito político nacional fora marcado pela intensificação das articulações em torno da execução das medidas constitucionais e das medidas tomadas pela Comissão Central de Execução do Estado de Guerra. Tal estado das coisas dá uma nova roupagem aos elementos constitucionais, repercutindo diretamente aos diversos segmentos sociais. A articulação dos variados elementos em questão deixam a entender a gradual consolidação da centralização do poder pelo aparato políticoinstitucional varguista. A consolidação do golpe de Estado é um percurso construído ao longo dos últimos meses. O mote utilizado à configuração de tal regime é a pretensa ameaça comunista. Eis o Estado Novo. Nas páginas do jornal O Tempo, a descrição da decretação do Estado Novo tem maior densidade política. As reportagens procuram demonstrar como repercutem as transformações sociais impostas a partir do decreto da nova Constituição. Da mesma forma, desenham o novo arranjo-político institucional, possibilitando aos seus leitores o desencadear dos fatos postos face à nova ordem política. As reportagens explicitam a nova composição do aparato estatal; os dispositivos da Constituição; a ação do Executivo quanto à gestão, utilizando decretos para legislar, tendo em vista a abolição da Câmara e do Senado; o alinhamento com os Estados Unidos; entre outros. Esses aspectos são fundamentais para investigar as características principais deste processo. Não obstante, as manifestações de Getúlio Vargas aparecem como convocações à vida cívica e de construção de uma Nação una, estável e forte frente aos interesses especulativos internacionais. Segundo Vargas, em reportagem publicada a 17 de novembro, “a Constituição promulgada em 10 de novembro não é facista nem integralista... é brasileira!”. Em reportagem de 12 deste mesmo mês, Getúlio Vargas fala sobre a influência dos extremismos nas instituições sociais brasileiras. Segundo o presidente, “As novas ideologias surgidas em outros países do mundo fizeram

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com que aparecessem novas formações partidárias interessadas em introduzilas entre nós, com grande perigo a nossa estructura democratica, refratária a taes credos”. O período estudado abarca a consolidação das políticas de centralização do poder em torno da figura de Getúlio Vargas. A situação criada é profundamente paradoxal, tendo em vista que a linha de frente da governança federal se dá em prol do regime democrático. Todavia, como plano de fundo, ocorre a articulação político institucional de caráter autoritário. A opinião pública se guiara pela expectativa do alcance do regime democrático e frustrara suas esperanças, pois o que se deu foi justamente o contrário. A decretação do Estado Novo instituiria uma nova ordem, caracterizada pela restrição das liberdades individuais, de culto e de reunião.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir de março de 1935, a imprensa estava sob a censura. Esta conjuntura fortalece ainda mais o papel da imprensa, pois em vários momentos políticos delicados, as suas críticas foram fundamentais e esclarecedoras à população. Por outro lado, com o decreto do Estado Novo, o papel da imprensa foi travestido. Os jornais passaram a ser controlados pelo governo, atendendo a interesses específicos; além disso, o debate e a crítica pública foram restringidos, passando os jornais à figura de meros jograis das idéias do governo de Getúlio Vargas. As campanhas demonstraram as características principais das coligações, de suas bases de apoio e os interesses envolvidos no cenário eleitoral em questão. De forma geral, é possível perceber o ascendente caráter populista de José Américo, apoiado pelo aparato estatal e as forças conservadoras. Em contraposição, existia a candidatura de Armando de Salles, representante das oligarquias paulistas e pelos dissidentes de Vargas, apoiado pelos interesses financeiros internacionais e pela ala florista dos liberais. Tal conjuntura permite inferir que o Estado Novo, para além do “sufocamento” do comunismo, significou a consolidação do modelo nacional de industrialização, retardando a invasão do capitalismo especulativo internacional. Todo esse panorama fora construído atrás da cortina do processo eleitoral, afinal, com as medidas do Estado de Guerra as campanhas

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ficaram em suspenso no início de novembro, face à possível prorrogação dos mandatos do Legislativo e do Executivo. E, por fim, Armando de Salles acaba sendo preso por incitar a resistência das Forças Armadas. Portanto, investigar os elementos componentes desta vasta colcha de retalhos é salutar para a compreensão dos eventos posteriores, tendo em vista que a campanha eleitoral ao longo do ano de 1937 constitui um momento político bastante peculiar à sociedade brasileira. O horizonte de então se compunha pela expectativa da consolidação do regime democrático no Brasil, todavia, não foi isto que preponderou. Curiosamente, após a decretação do Estado Novo, o periódico passa a anunciar as previsões dos tecnocratas varguistas que trazem previsões bastante otimistas, em função da eliminação da possibilidade de instabilidades, em detrimento do processo democrático que fora amplamente alardeado. REFERÊNCIAS E FONTES CONSULTADAS BARDIN, Laurence. Análise do conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. CARONE, Edgard. A segunda república: 1930-1937. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1974. FAUSTO, Boris. Historia do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1998. GOMES, A.M.C. et. al. O Brasil republicano: sociedade e política (1930 - 1964). 6 ed. Rio de Janeiro: Bertrand, 1996. JORNAL O Tempo, Rio Grande, de 01 de março a 20 de dezembro de 1937. LOPEZ, Luiz Roberto. Historia do Brasil Contemporâneo. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1983. SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Getulio Vargas a Castelo Branco (1930-1964). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. SOSA, Derocina Alves Campos. A História Política do Brasil (1930 1934) sob a ótica da imprensa gaúcha. Rio Grande: Editora da FURG, 2007.

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quando todos vão à guerra: indícios de participação de mulheres e crianças na revolução federalista Marcelo França de Oliveira1

A Revolução Federalista foi uma das maiores e mais dramáticas guerras civis ocorridas em território brasileiro, contabilizando, segundo a maioria dos historiadores e pesquisadores do tema, algo em torno de 10 a 12 mil mortos nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, entre os anos de 1893 e 1895. A Revolução não deve, contudo, ser reduzida apenas a este curto período temporal, uma vez que seus antecedentes remontam a antigas rivalidades arrefecidas a partir da instauração da República no Brasil (e o seguinte apeamento dos antigos mandatários Liberais do poder local), bem como não se pode considerar totalmente encerrada após o armistício de 1895. Ainda que o conflito armado seja normalmente estudado sob os enfoques político, econômico e social, é o fator violência que majoritariamente é destacado quando se trata de Revolução Federalista. Destaca-se a ferocidade 1  Bacharel em História e pós-graduando em História do Rio Grande do Sul pela Universidade Federal do Rio Grande. E-mail: contato@marcelodeoliveira.net

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das batalhas, o grande número de mortos, ou a prática da degola. Estudos de gênero, envolvendo a participação de mulheres e crianças, vítimas ou artífices desta violência, são ainda objetos de raras pesquisas. O objetivo deste artigo é abordar a participação destes atores, não apenas nos campos de batalhas da guerra, mas os indícios de envolvimento no contexto geral da Revolução. A eleição do gênero Tradicionalmente, em um contexto de guerra, aos homens é atribuído o símbolo de uma atividade realizada nos campos de batalha, enquanto a mulher, por sua vez, simboliza as tarefas realizadas no ambiente privado, longe dos horrores dos conflitos. Trata-se, obviamente, de um estereótipo, de uma idéia não raro desmentida pelos registros históricos. Segundo Lessa, citando Southgate, Por ser escrita pelos homens, as mulheres se tornavam ausentes, invisíveis e ignoradas da história, estando o passado apresentado como determinado pelos homens e a história escrita baseada em uma linguagem patriarcal.2

Ainda Lessa, citando B. Hill, defende que a História [...] tem sido um monopólio dos homens, pois foram eles que decidiram quais áreas do passado deveriam ser registradas e investigadas. E nisto as mulheres tiveram pouca ou nenhuma participação.3

O historiador que pesquisa sobre determinado evento, acaba reproduzindo este modo de apresentar a História, e as pesquisas de gênero acabam sendo relegadas a estudos muito específicos. Segundo Maria Noemi Brito, estes estudos ganharam força a partir da década de 1970 e não pretendiam a radicalização do estabelecimento de uma “história das mulheres”, em função de limitações principalmente de caráter teórico-metodológico. No lugar disso, a autora propõe: 2  SOUTHGATE, B. History: What and WHY?: Ancient, Modern, and Posmodern Perspectives. London/New York: Routledge, 1996, apud LESSA, Fábio de Souza. O Feminino em Atenas. Rio de Janeiro: Mauad, 2004, p. 15. 3  HILL, B. “Para onde vai a História da Mulher? História da Mulher e História Social – Juntas ou Separadas?” in Varia História. Belo Horizonte: UFMG, 1995, apud LESSA, op. cit. p.15

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[...] ver as mulheres na história de uma forma integrada e não segregada, através do emprego da noção de gênero que permitiria ampliar e dinamizar os estudos. Interessa modificar tanto o enfoque da historiografia tradicional que segrega, quando não ignora, as mulheres, quanto o radicalismo dos próprios trabalhos feministas que excluíam o masculino do seu quadro de referência.4

Ou seja, apresentar um estudo onde o foco está nas mulheres - e também nas crianças - não significa produzir uma história dividida, classificatória. Pretende-se, sim, mostrar as relações dos elementos justamente em suas interações, ou ainda, em seus pontos de encontro. Porém, para empreender um estudo que abarque um aspecto pouco estudado, é preciso – como de resto a todo trabalho histórico – de fontes documentais. Em virtude do que expomos, registros do momento que tragam informações da participação de crianças e mulheres na Revolução Federalista são extremamente escassos. Tanto os cronistas da época quanto os historiadores do conflito empenharam-se em retratar os aspectos militares e políticos, em grande medida, e sociais e econômicos, em menor escala. Estes são, aliás, os grandes vieses de estudo e explicação do conflito. O que temos, então, são informações esparsas, dispersas, advindas de outras abordagens, em que os elementos de gênero aparecem como ilustração, não como objeto principal. São os indícios que permitem reconstruir um pequeno aspecto da participação e envolvimento de mulheres e crianças na conjuntura revolucionária do período. Violência na revolução federalista Apesar de a violência não ser o elemento único a ser considerado quando se tenta explicar a Revolução Federalista, (nem, tampouco, exclusivo desta guerra) ela foi, sem dúvida, um dos fatores mais destacados da cena revolucionária. Nas palavras de Elio Flores, “[...] na verdade, a violência que já era histórica na sociedade meridional, torna-se em 93, política e de classe,

4  BRITO, Maria Noemi Castilhos Brito. O género, a história das Mulheres e a memória: um referencial de análise. p. 23 Disponível em <http://www.lacult.org/docc/ oralidad_05_22-27-o-genero-a-historia-das.pdf> acesso em 21/08/2010 às 21h30min

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isto é, estatal e paraestatal, militar e paramilitar.”5 Esta violência apresentou-se sob diversas formas no decorrer do conflito. Se o degolamento foi a marca pela qual ainda hoje a Revolução é lembrada ou retratada6, igualmente violentos foram os saques, estupros, assassinatos, mutilações, fuzilamentos, atos não raro descritos como barbárie pelos historiadores. Paradoxalmente, a respeito do grande destaque dado para o tema, Não há praticamente estudo sobre a violência no Rio Grande do Sul. Tratada sempre como segundo plano, ela é conceituada como externa, emprestada ou exógena. Nas revoluções rio-grandenses, o corolário da violência, ou seja, a degola, é atribuída aos contingentes estrangeiros, principalmente uruguaios e correntinos, não significando assim o comum comportamento político e dos parâmetros éticos dos lutadores riograndenses. Raros são os trabalhos que escapam deste senso comum.7

Um dos poucos estudiosos sobre o tema violência, Elio Flores apresenta em “No tempo das degolas...” um trabalho centrado na violência e suas manifestações no contexto rio-grandense, principalmente durante a Revolução Federalista e também na Assisista de 1923, baseando seu estudo em fontes majoritariamente bibliográficas. Em outra abordagem, Ângelo Dourado é talvez o autor que mais fornece indícios da participação feminina e infantil na Revolução. Dourado foi um médico, político e escritor nascido na Bahia que, após atingir projeção política no município sul-rio-grandense de Bagé, fronteira com o Uruguai, tomou parte no conflito armado de 1893. Sua participação na guerra civil deuse como coronel-médico acompanhando a coluna de Gumercindo Saraiva em seus deslocamentos e batalhas pelos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Nesta ocasião, efetuou o registro de suas observações e 5  FLORES, Elio Chaves. Violência no Conflito de 1893. in FLORES, Moacyr (org). 1893-95 A Revolução dos Maragatos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, p. 49. 6  Sobre a forma como a Revolução Federalista foi retratada pela historiografia sul-riograndense ver ALVES, Francisco das Neves. O enaltecimento da Farroupilha versus o esquecimento da Federalista: um estudo de caso historiográfico. Biblos, Rio Grande, 17: 103-120, 2005, p. 103 e ALVES, Francisco das Neves. Revolução Federalista: história e historiografia. Rio Grande: FURG, 2002 pp. 41-51. 7  FLORES, Elio Chaves. No tempo das degolas – Revoluções imperfeitas. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996, pp. 9 e 10.

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ideais, em plena vivência no campo de batalha. Tais registros, produzidos primeiramente sob a forma de cartas dirigidas à esposa, logo em seguida converteram-se em um relato-testemunho escrito,8 o qual foi organizado, reunido e publicado sob a forma de livro pelo autor, tão logo o conflito chegou ao fim. O livro, intitulado Voluntários do Martírio – Factos e epizodios da guerra civil (Pelotas: Livraria Americana, 1896) tornou-se uma das mais dramáticas e ricas descrições do conflito, qualificado por Moacyr Flores como “o mais notável livro sobre a revolução de 1893”9 e que foi largamente utilizado por pesquisadores e historiadores que buscavam destacar aspectos sociais do conflito que opôs federalistas e legalistas.10 Portanto, o enfoque dos indícios da participação de mulheres e crianças na Revolução Federalista passa necessariamente pela abordagem das relações com o fator violência, sendo ora como agente, ora como vítima. Mulheres e crianças no contexto revolucionário A mulher, pouco comentada e descrita no período e contexto da Revolução Federalista, aparece em situações de protagonismo em raríssimos casos. Conforme Elio Flores, Esquecida numa guerra de homens, desprezada pela história das batalhas militares, a mulher surge de circunstâncias inusitadas: ora como amantes de homens vingativos, ora sofrendo a violência sexual destes e, tantas vezes, despedaçadas com os filhos nos braços.11

Aliás, as tropas, sejam legalistas ou federalistas, sempre que passavam em seus deslocamentos por alguma propriedade, costumavam servir-se a bem entender do seu conteúdo. Saqueavam pertences, confiscavam armas, apreendiam alimentos, carregavam consigo bois, vacas, cavalos, inclusive 8  Sobre a proposição de se considerar o registro de Dourado como “relato-testemunho” ao invés de “diário”, ver OLIVEIRA, M. F. Quando a memória vira História – Angelo Dourado e a historiografia sul-rio-grandense. Rio Grande: Pluscom Editora, 2009 pp. 51 e 91-92. 9  FLORES, Moacyr. Historiografia da Revolução Federalista. In ________ (org). 1893-95 A Revolução dos Maragatos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993, p. 126-127. 10  Um estudo mais aprofundado sobre o uso da historiografia nacional e internacional com relação a Voluntários do Martírio foi realizado por OLIVEIRA, op. cit. pp 72 a 89. 11 ���������������������������������� FLORES E. (1996) op. cit. P. 119.

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recrutando os rapazes12. Restavam apenas as crianças e mulheres que, no entanto, ficavam à mercê de pior sorte. Nas pequenas comunidades, de acordo com Flores, [...] os homens, quando podiam, fugiam para os matos. E os velhos, mulheres e crianças, nem sempre poupados, recebiam aterrorizados os bandos que se disseminavam pelos campos. Vivia-se a revolução pela sucessão de execuções, castrações, estupros e degolamentos.13

Esta era a realidade das mulheres e crianças que ficavam à mercê da sorte entre as hostes federalistas ou legalistas. Poucas eram as chances de escapar ilesa em alguma destas abordagens, em virtude da realidade estabelecida. A banalização da violência trazia consigo conseqüências para toda a sociedade da época, mas principalmente para mulheres e crianças, envolvidos no contexto de guerra, mas sem maiores chances de defesa, em um momento em que mesmo homens adultos não as tinham. As crianças eram expostas aos perigos do ambiente de guerra sem maiores temores por parte dos pais, ao menos é o que se verifica a partir do depoimento do médico João Eickoff, registrado em seu livro de memórias “O doutor maragato”: Fiquei para trás, preparando o remédio e então a mulher do Polônio me fez merendar, argumentando que eu não sabia quando iria me alimentar novamente. Polônio acrescentou: - Mando meu filho de dez anos acompanhá-lo. Ele o levará por um corte e o senhor em seguida alcançará os companheiros. 14

Eickoff narra o episódio que o menino, de apenas dez anos de idade, guia-o por entre o vale até o topo, onde são perseguidos por republicanos por mais de meia légua, quando o menino entrou por um pinhal e gritou para que o médico seguisse pela estrada, a fim de encontrar seus companheiros federalistas que estariam adiante. Outro episódio, desta vez narrado por Dourado, exemplifica o cenário 12  FLORES, Moacyr. Dramas e conflitos revolucionários. In FLORES, Hilda A. H. Revolução Federalista. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1993, p. 37 13  FLORES, E. (1993) op. cit. P. 46. 14  EICKOFF, João. O doutor maragato. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1994, p. 58.

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de quem ficava no meio do caminho entre as tropas de lado a lado: Estamos na região serrana [...] chega-se a uma casa habitada encontrase 10 ou 12 mulheres, e muitas crianças. Pergunta-se-lhes: seu marido? Degollaram-no. Seu pae? Degollaram-no. Seu irmão? Degollaram-no. Seu filho? Degollaram-no. Estavam em armas? Não estava na roça, estava no campo, foi pegado a noite...15

O cenário descrito era de violência generalizada. É ainda Dourado quem afirma que, pelas casas por onde passavam “[...] não víamos mais do que physionomias de terror nas mulheres e estupor nas creanças. Lagrimas e preces em toda a parte...”16 Indícios de participação de mulheres e crianças na Revolução Se, por um lado, mulheres e crianças eram vítimas das circunstâncias do contexto revolucionário, por outro também fizeram parte efetiva dele, seja combatendo voluntariamente nas fileiras legalistas ou federalistas, ou alistadas à força. De todo modo, em Dourado encontramos várias passagens que fornecem indícios da participação de jovens e mulheres nas linhas de combate. Em uma delas, faz menção a pai e filho, no campo de batalha: Assim foi Thimoteo Paim, no Upamaroty. Levava consigo um filho, uma creança. Vi-o cahir morto a seu lado, continuou a luta até ser substituído. Retirou a sua gente, depois voltou ao lugar e tomando nos braços o cadáver do filho, levou-o sob as balas inimigas até o ponto onde com suas próprias mãos cavou-lhe a sepultura.17

E ainda, sobre um menino de dezesseis anos também na mesma situação: Ali vae Augusto Amaral a quem há poucos dias ferio um dos maiores golpes que se pode sentir. Trazia consigo um filho de 16 annos. Valente 15  DOURADO, Angelo. Voluntários do Martírio: narrativa da revolução de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992, p. 58. 16  DOURADO, op. cit. p. 26. 17  DOURADO, op. cit. p. 45.

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como elle, era o seu ajudante. Querendo sahir n´uma comissão foi pedir a um amigo uma arma emprestada e este experimentando se os cartuxos se adaptavam bem, o fez tão desastradamente que a arma disparando ferio em pleno peito o amigo. Tivemos de deixal-o sepultado ali. Pobre Augusto! Vel-o brigar tantas vezes junto a si sem o menor ferimento e vel-o morrer tão estupidamente!18

Quando chega ao Piraí, nas imediações de Bagé, informa que tratou de alguns feridos, entre eles um menino combatente, de treze anos: Entre [os feridos] havia um menino de 13 annos que fora o primeiro ferido no Cunhatahy. A bala resvalara-lhe pelo pescoço, sem offender vaso nenhum, nem osso. [...] Ele chorava e pedia-me para dizer se elle morria, porque então se mataria de uma vez. Na retirada elle galopava sempre perto de mim, mas sem coragem de mover o pescoço. [...] ordenei-lhe que movesse o pescoço. - Não posso, está duro. - Não está, pode movel-o. [...] Eu tinha no bolso alguns biscoutos e dei-lhe: - Vê se engoles. Mastigou e engoliu. Deu uma gargalhada e disse-me: Mais biscouto coronel, já estou são, e promto para brigar com esses picaços que não podem comnosco [...]19

Outro relato trata do irmão de um combatente de nome Julio de Barros: Nos 40 homens de Julio de Barros acha-se um irmão delle, contando hoje com 15 annos, e que há dois annos tem lutado sem nunca emigrar. Tem uma perna quebrada, o que o obriga a andar de muletas, e apezar d´isso, apezar das minhas recommendações de não entrar em tiroteio de piquetes [...] não há ocasião em que elle não se tenha achado, se ali está seu irmão, o que é constante. Julio de Barros e sua gente tratam-n´o por Pequeno. A fractura da perna desse heroe infantil, é uma página das mais dignas de brio.20

Segundo Dourado, Pequeno teria fraturado sua perna dois anos antes, quando, com apenas 13 anos, estaria guardando uma picada federalista, a mando de seu irmão, quando foi atingido por uma bala, sob ataque dos 18  Idem. 19  DOURADO, op. cit. p. 366. 20  DOURADO op. cit. PP 366-367.

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legalistas. Mesmo ferido e em inferioridade numérica, conta o autor que Pequeno teria atacado seus algozes e matado dois ou três. Na escassez de combatentes, os jovens soldados eram rapidamente promovidos ao oficialato, se a necessidade assim operasse. Um exemplo disto é quando Dourado, ao referir-se a um morto em uma investida legalista, refere-se como “major Plácido, rapaz de 20 annos”21 Mulheres também participaram da Revolução Federalista. Algumas por acompanhantes, outras como combatentes, outras, ainda, prisioneiras. Um dos registros mais destacados é da sargento Firmina: Perto estava um grupo com mulheres prisioneiras, me acompanhava a sargento Firmina. As mulheres choravam; entre ellas havia uma bem vestida. Perguntei-lhes se estavam com medo. Responderam-me que sim. Então fiquem com esse sargento que as há de garantir, e recommendei ao sargento que cuidasse d´ellas. – Venham minhas filhas. Não tenham medo da minha carabina, nem de minhas calças, eu também já vesti saia, disse a Firmina.22

Outras mulheres acompanham a marcha dos federalistas. Uma delas, segundo Dourado, é uma mulher “alta, muito loura e muito suja”, que teria perdido o marido e o irmão em Passo Fundo, e dali em diante vinha acompanhada pelos amigos deles. Há também o registro de “uma outra rapariga, italiana, [que] fugiu de casa para se casar com um official. Não se casou e adquiriu enfermidades cruéis. Tem viajado sempre junto de mim.”23 Nem só viúvas ou acompanhantes encaravam a jornada nas colunas federalistas. Mulheres casadas também acompanhavam os revolucionários: Perto de nós acampa também um cazal; é um cadete-sargento do exército, que desertou e veio para nós. A mulher, uma senhora bonita, de alguma educação, quiz acompanhal-o e aqui vai marchando a pé em estado adiantado de prenhez sem ter o que comer. A principio dei-lhes alguma couza que tinha, depois nada mais tive. Uma tarde muito chuvoza armaram a barraca perto da minha. Nós, para não chorarmos, contávamos uns aos outros historias alegres e riamos.24 21  DOURADO, op. cit. p. 361. 22  DOURADO, op. cit. p. 354. 23  DOURADO, op. cit. p. 297. 24  Idem.

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A jornada das mulheres que acompanhavam os federalistas era de completas privações, sendo a fome uma constante em suas jornadas, sobretudo as que iam como acompanhantes, sem maiores ligações com algum soldado ou oficial. Um exemplo é da rapariga que teria ficado no meio do caminho que, de acordo com Dourado, já não podia mais caminhar devido à fome. Ao saber disso, o médico baiano diz ordenado aos seus irem buscá-la com seu cavalo e dar-lhe comida.25 Porém, em momentos de perigo, ou quando se preparavam para um ataque dos legalistas, mulheres e os bagageiros ficavam em áreas protegidas26 Conclusão Mulheres e crianças viveram a Revolução Federalista. Estiveram intimamente ligadas ao fator violência, que norteou grande parte do trajeto desta guerra. A maioria das mulheres e crianças, é verdade, foram vítimas das circunstâncias e do momento revolucionário em que o Sul do Brasil estava envolvido, mas outras participaram de forma efetiva dos conflitos. Através do relato de Ângelo Dourado temos dados para afirmar que a participação era considerada como algo normal – haja visto as várias inserções em seu texto – e não uma aberração. Portanto este artigo não pretende encerrar o assunto, ao contrário, propõe iniciar as perguntas que devem ser formuladas para que mais e mais estudos se empreendam para se preencher a lacuna neste tipo de conhecimento histórico. Falta, pois, aprofundar a busca por documentos, relatos, registros, que indiquem qual o real papel de mulheres e crianças na Revolução Federalista de 1893. Ainda que a resposta, em virtude da escassez das fontes, não seja devidamente respondida, é tarefa do historiador lançarse ao desafio e escrever esta história. A história de uma guerra que sabemos, não foi só de homens.

25  DOURADO, op. cit. p. 305. 26  DOURADO, op. cit. p. 250.

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Referências Bibliográficas ALVES, Francisco das Neves. O enaltecimento da Farroupilha versus o esquecimento da Federalista: um estudo de caso historiográfico. Biblos, Rio Grande, 17: 103-120, 2005. ALVES, Francisco das Neves. Revolução Federalista: história e historiografia. Rio Grande: FURG, 2002. BRITO, Maria Noemi Castilhos Brito. O género, a história das Mulheres e a memória: um referencial de análise. p. 23 Disponível em <http:// www.lacult.org/docc/oralidad_05_22-27-o-genero-a-historia-das.pdf> acesso em 21/08/2010 às 21h30min. DOURADO, Angelo. Voluntários do Martírio: narrativa da revolução de 1893. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1992 FLORES, Elio Chaves. No tempo das degolas – Revoluções imperfeitas. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1996 FLORES, Elio Chaves. Violência no Conflito de 1893. in FLORES, Moacyr (org). 1893-95 A Revolução dos Maragatos. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1993. FLORES, Moacyr. Dramas e conflitos revolucionários. In FLORES, Hilda A. H. Revolução Federalista. Porto Alegre: Nova Dimensão, 1993. LESSA, Fábio de Souza. O Feminino em Atenas. Rio de Janeiro: Mauad, 2004. EICKOFF, João. O doutor maragato. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1994. OLIVEIRA, M. F. Quando a memória vira História – Angelo Dourado e a historiografia sul-rio-grandense. Rio Grande: Pluscom Editora, 2009.

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Este livro foi composto pela Plus Propaganda em Georgia e Aller Display sobre papel sulfite 75g para a Pluscom Editora em agosto de 2010






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