Gravuras # 9 - julho13

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Gravuras Caderno de notas de Pompeu Miguel Martins

Não deixes escapar o verão. O calor do mundo vai segredando como se estivesse a salvar-te a memória e a mostrar-te uma parte dele que, não sendo tua, te vai mudando, provando-te que partir é sobretudo mergulhares no que te falta e que, por enquanto, tão belamente desconheces.

Julho- Julho-Agosto2013 – Agosto . 2013 Gravuras p.1


Para abrir As perguntas. Alguma vez teremos de partir. Partir dos nossos dentros, abandonar as entranhas do conforto e começar a fazer perguntas. Perguntar como um vício, um vício de morte ou de vida. Alguma vez, as esperas hãode chegar todas, ainda que estejamos onde só o coração souber. E esse lugar, há-de ser perto de tudo por onde os ventos passaram, pousando os sorrisos mais sãos, mais vivos e mais eternos que a juventude cruelmente criou para se avistar tardiamente da velhice mais lenta. Alguma vez, sairemos pelas tardes, de mãos dadas, com uma tristeza que se assemelha à alegria que o amor sempre confunde. Alguma vez, perguntaremos onde e quando pararemos o coração, sabendo que se não deve perguntar sobre aquilo que se não pode comprovar. Mas, o amor é mesmo assim, um vício de perguntar o que, não se comprovando, constrói no mundo um tal rasto que não sendo, vai sendo o rasto comprovado de um certo mundo ter havido. Alguma vez, contarão exatamente o que não fomos, mas que importa se nenhuma exatidão levou o vento, quando pelo mundo pousou o sorriso que, sendo nosso, mais vez alguma em nossa boca pousou? Alguma vez, na vez dos outros, nasceremos, sem que o saibamos. Gravuras - Julho-Agosto2013

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Para Ser Liberdade 2) 1) Há uma narrativa no que se não conhece. Uma narrativa de tempos que não são teus. Uma narrativa que te espera. Como só a morte sabe esperar. Até lá terás de viver.

Estás pronto a partir. Põe o cachecol. Esquece o Verão. Esquece os violinos impossíveis que contavam o que devias ao medo. Esquece o piano a detalhar-te as horas de ficar no lodo impossível dos que te viam por fora. Leva a memória, apenas isso. Leva-a para que nunca tenhas de voltar. Estás pronto. Põe o cachecol. Esquece o Verão. Há uma parte da vida onde não chegaste ainda e onde será diferente morrer.

Varsóvia, 12 de Setembro de 2011

Gravuras - Julho-Agosto2013

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Para ler

Se sorrir fosse urgente, havíamos de saber da fome. Se amar fosse urgente, havíamos de saber da solidão. Se cantar fosse urgente, havíamos de conhecer o silêncio. Se falar fosse urgente, havíamos de saber de ti. Se tocar fosse urgente, havíamos de conhecer a distância. Se olhar fosse urgente, conheceríamos as perguntas.

Poema revolucionário

A mais primordial questão é: - Então, por que não sabemos?.

Gravuras - Julho-Agosto2013

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Para ouvir Chavela Vargas

Uma voz eterna a de Chavela Vargas, um dramatismo que só no entoar das divas acontece. Um amor antigo, um estar dentro e fora do mundo e ser esse o lugar mais amado, mais batido, mais calcorreado. Chavela tão linda, tão funda, tão de nós.

Nascida em 1919 em Costa Rica, viveu e morreu no México onde se tornou uma das maiores lendas da música do mundo. Chavela amiga de Frida Khalo concentra um imaginário de paixão, amargura e entrega, numa paisagem do amor que vem ter com o que sabemos por dentro e nos pergunta. Clique na foto para escutar La Llorona Chavela não é da música, é da alma do mundo. Há poucos artistas assim. Veio e foi embora para que nunca nos esquecêssemos daquilo que somos quando sentimos. Se alguém acreditar em Anjos, tem nesta voz e neste intenso dramatismo um envio dos céus para que o lado sensível da humanidade se não perca. Linda Chavela eterna na forma única como interpreta o que milhares cantaram assim na «Nave del olvido» : “Espera. Aun me quedan en mis manos primaveras / para colmarte de caricias todas nuevas/que moririan en mis manos si te fueras.

Gravuras - Julho-Agosto2013

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Para beber Quinta da Alorna, colheita tardia 2010

Era um tempo de verões lentos, abríamos uma colheita tardia e ficávamos no terraço a soltar a geografia do mais confinado território da nossa sempre imaginada liberdade.

Provámos pela primeira vez uma colheita tardia, em 2006, comprada na garrafeira do CCB. Um jantar em Belém, na companhia do Zé e da Gi. Desde então, ligamo-nos a estas colheitas e trazemo-las pelo prazer que dá o seu cuidado, a sua mais rara produção. Pelo prazer que dá estarmos em volta de um copo de vinho cuja maturação é diferente e o risco maior. As colheitas tardias estão para o vinho como a aguarela está para a pintura, ou o conto está para a literatura: o erro é dificilmente emendável. Habituamo-nos a duas marcas portuguesas, a Quinta da Alorna e o Grandjó. Também os há deliciosos em França, especialmente os Sauternes, embora a estes se deva a identidade graças a um fungo que os torna únicos e não só tardios.

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Para comer A vez do peixe. Atracados no verão, nas tardes mais demoradas e sem agenda, nada como um peixe que saiba a peixe e um molho que se distinga e não perca personalidade. O verão é dado a elevar as coisas simples. Nesta linha de ideias, fomos comprar umas postas de peixe espada, aproveitando para meter na conversa os dias felizes juto ao mar do Funchal, o inconfundível cheiro das árvores da marginal, em junho, o silêncio da Sé, o café do Golden, a fala das gentes. Voltando ao peixe, basta que o coloquemos na frigideira com um pouco de manteiga aromatizada com alcaparras, umas gotas de limão (muito poucas) e um pouco de azeite picante de malagueta, feito calmamente em casa, moderadamente. Com o peixe tudo deve ser moderado. Somem-se uns legumes cozidos ou salteados e pronto! Uma boa mesa, uma boa vista, uma boa companhia e um branco civilizadamente fresco, farão disto uma expressão justa dos dias felizes. Bom verão, leitor!

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Para sentir

De regresso a Frankfurt, com a manhã clara perto do rio e a quietude dos domingos. Tempo sufiFrankfurt ciente para olhar a cidade uma outra vez e reconhecer a poética do espaço, feita também pelos seus habitantes, preparando o inverno. A preparação do inverno é das minhas atividades preferidas. Sempre foi. Mudamos de rosto, de sorriso, de andar, de disposição. Mudamos a estética, mudamos as emoções. E somos outros, regressando ao abrigo, regressando ao profundo, regressando. Os habitantes de Frankfurt estavam assim este Domingo de manhã. O regresso é das coisas mais belas que a vida possui porque só se regressa ao que se deseja e ao que se ama. Caso contrário, não regressamos: vamos ao encontro do que nos é neutro ou prejudicial. Isso não é regressar é ir em direção a. Regressar é acessível apenas ao coração. Indo até às margens do rio, pelo interior dos bairros económicos, como gosto de fazer, vemos as pessoas dali com esse ar de regresso a uma parte de si condizente com o inverno que há-de vir em cada um. Nunca troquei um palácio por uma pessoa sempre que viajo. Inesquecível é o que sentimos de íntimo num espaço que só é nosso pelo olhar que pousamos nos outros e aí descobrimos a sintaxe da cidade a que chegamos e onde somos estranhos ou descobridores, quase sempre o mesmo, pela intimidade de ambos, pela ousadia de ambos. Gravuras - Julho-Agosto2013

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Instantâneo Adeus. Apanha comigo um comboio e deixa o caminho para os que não saem do lugar. Olha pela janela e conta os pássaros, as árvores da paisagem, as crianças, os velhos e volta para ti como se te esperasse o paraíso no curso dessa viagem. Lembra-te de mim e do que te não disse. Faz disso a nossa melhor história. Um dia, apanhámos o comboio numa estação no Sul de Itália. Houve uma mulher muito bela que me pediu lume enquanto tu me pedias para te dizer se alguma vez te trocaria. Lembro-me de te ter respondido que nunca troquei nada nem ninguém. Que apenas vou morrendo frequentemente e que, como tal, há pessoas e lugares que me perdem. Lembrome que me abraçaste cheia de medo, não que eu morresse, mas que me pudesses perder. Então, antes de entrarmos para o comboio, perguntei-te se querias fazer a viagem comigo, mesmo correndo o risco de eu não ser eterno. Disseste-me, enquanto se te embaciavam os olhos: - Todos havemos de morrer um dia, pelo menos uma vez, e nem por isso deixamos de viver. O comboio partiu ao final da tarde. Uma tarde quente de Setembro. Estávamos no Sul de Itália e os teus olhos morriam nos meus de tão belos, de tão irrepetíveis. Percebiam que o amor ē uma ciência, é uma imensa sabedoria. Saber que se nasce para morrer um dia, a cada dia, e que mesmo assim, e que só assim, é possível construir a beleza e seguir. Nem o amor nem a beleza se conquistam à chegada, só quando partem se elevam. E, quando partem, ficam e contam o que será. Apanha comigo um comboio e deixa o caminho para os que não saem do lugar. Há um planeta inteiro para nos morrer no coração e hoje ē o dia. Apanha esse comboio e deixa-me onde ainda não chegou o coração. Nem o teu, nem o meu. É aí que quero morrer. Por ser aí essa pátria de esperança, muito virgem, muito virgem de despedidas de todos os outros lugares por onde passámos e não paramos, mas que nos faltam e, por faltarem, significam. Apanha comigo esse comboio e deixa-me nessa viagem. Se eu não chegar nunca, não me procures, eu sou a tua viagem. Se me não vires esta tarde não faz mal, estou no sul de Itália numa velha estação a dizer-te com os olhos embaciados que o amor não se explica e que por isso te posso morrer. Estou nessa estação à espera que partas e que entendas que o amor também é uma despedida, uma longa e bela despedida. Apanha comigo esse comboio e olha pela janela. Podes acenar assim que o comboio começar o seu curso e vê, vê com os olhos molhados como ficamos nessa estação, julgando-nos eternos. Vê como partimos, como se está sempre a partir. Podes acenar. Podes dizer uma ou duas palavras sobre essa parte de nós que ficou e que morrerá por ali. Chega-te a mim. Está a arrefecer nesta carruagem. E o futuro, o futuro é sempre um lugar frio. Assim que chegarmos, estaremos a morrer novamente, mas é isso o amor, a sabedoria do amor. Estaremos a morrer e tu a perguntares se eu ficarei e eu a dizer que se fica muito quando se morre. Assim que chegarmos, vou dizer que nunca te deixarei. Que morro muitas vezes e que, por isso, há pessoas e lugares que me perdem. Apanha comigo esse comboio. Não deixes de dizer adeus, pois só dizemos adeus ao que queremos levar para sempre.

Gravuras - Julho-Agosto2013

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A grandeza das nações deve medir-se pela capacidade das suas gentes em gerar exigências que acrescentem à dignidade humana e à necessária criação de condições para que cada ser humano possa realizar o seu projeto de vida em harmonia com os desafios do seu tempo. A banalização das referências, a simplificação dos gestos e a não exigência levaram a uma progressiva implementação de um Estado liberal que tem na mira o esmagamento dos mais fracos pelos mais fortes, sem qualquer pudor e sem qualquer sensibilidade pela diversidade cultural dos povos.

Para fechar

Abaixo a idolatria do fácil!

Um povo disponível apenas para a cultura fácil, para a economia fácil, para a afetividade fácil, é um povo muito próximo da nova escravidão. A facilidade e a idolatria da mediocridade ou da mediania é o terreno mais fértil para quem tem na mira o retrocesso civilizacional. A crítica com substância é uma dádiva ao crescimento de cada um e dos povos. Só os fracos se olham ao espelho e se deslumbram. Os fortes interrogam-se, arriscam, seguem em frente e acrescentam, pese a incompreensão e a dureza do caminho. Uma coisa a História ensina: nunca é instantâneo o progresso. Gravuras - Julho-Agosto2013 p.10


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