Gravuras Atiram-se a n贸s as mem贸rias. S茫o bichos. Feras que nos mordem e deixam a agonizar no mundo a idade. O tempo n茫o morre nunca. Mas despede-se.
Junho . 2013 Gravuras - Junho 2013 p.1
Para abrir As entregas. São as entregas. As entregas à luz clareando sobre os olhos tantas vezes cansados de despedidas, cansados de fazer caminho ao lado de tanta beleza solta, de tanta inquietação, de tanto fruir o que fora futuro e se foi tornando no mais cuidado passado. As entregas são o que fica sobre o beiral das chuvas, o beiral das tardes soalheiras, o beiral das frases lentas, dos gestos fundos, das carícias apenas breves na sua duração material. As entregas e as suas perguntas eternas, as entregas e o seu mais genuíno pulsar que nos segura a morte por instantes. Uma vez qualquer, havemos de nos surpreender com tudo o que uma entrega possa contar. Havemos de querer sair sobre esse território, apanhar um velho autocarro, sentar num lugar vazio e preenchê-lo com um amor inaugural, como deve ser todo o amor que se sente quando se desconhece. Mas, nesses lugares vazios deixamos cair, mesmo antes da surpresa, o que das velhas entregas guardámos e só depois começamos a jurar. Pas-
Uma entrega é um despir. samos a vida a ocupar lugares vazios com juras e depois, quando partimos, olhamo-las e voltamos a empobrecer por não saber ao certo para que serviram. É, contudo, também nesse mais belo espaço de pobreza que conseguimos desenhar um sorriso, fazendo-o com a intensidade e a alegria com que os macondes desenham linhas em suas máscaras. Somos de repente o que já fomos, somos as juras e as perguntas. E seguimos, colocando aqui e ali esses tão carnais sorrisos como se fosse um destino recoloca-los para depois os perdermos para sempre. As entregas são este corpo inexistente que irrompe e parte e deixa de si este não saber, essa máscara em madeira eterna, essa forma de permanecer, sendo a máscara com rosto dentro para depois ser o rosto de fora da máscara que admira a sua própria desaparição. Uma entrega é um despir. Mas o sentido de um despir só significa quando do despir desaparece a pouco e pouco o corpo que vestido se esquece na tumultuosa beleza de o não ser, alguma vez. Gravuras - Junho 2013
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Para Ser O espelho. O que se vê num espelho não somos nós, é uma história. Sobrepomos camadas de tempo, de sabedoria, de emoções, de convulsões e aí começamos a ser o que o espelho mostra sobre cada uma de suas camadas. A imagem de um quadro é um conjunto de camadas sobrepostas sobre duas
visões, a do artista e a de quem a toma com o olhar implicado. E se o que vemos num espelho não é uma realidade mas uma interpretação, então poderemos facilmente chegar a um ponto em que se afirma: as coisas não existem, existe a sua narrativa. Podemos por isso dizer que a imagem que o espelho nos mostra é um fantasma de nós mesmos, tão doce e assombroso como doce e assombrosa é sua própria morte. Somos o que vemos. Aí moram todas as guerras e todo o amor. Quando te vês ao espelho, não te vês, inventas-te e só o que sentes te dá um corpo. Gravuras - Junho 2013
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Para ler A montanha
Se chegarmos à montanha, olhemos em volta desde o cimo. Que se perceba vagarosa a correnteza do ar, o pousar da luz sobre o riacho no sopé, o testemunho das árvores marcando a fronteira do Tempo e o peso das rochas devolvendo o silêncio mais antigo do Lugar. Se chegarmos à montanha, reinventemo-la para a contar. Não há melhor forma de expressar o amor senão pelo modo como o traduzimos depois de ter mudado o coração.
Gravuras - Junho 2013
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Cantautor do Recife, Geraldo Maia é uma voz e uma sonoridade ao nível do melhor que o Brasil nos habituou na linha dos seus maiores representantes neste género musical: Chico Buarque, Caetano Veloso ou Maria Bethania. Virá a Portugal e estará em Fafe para apresentar o seu concerto na noite de 13 de Julho.
Para ouvir Geraldo Maia
Conheci o Geraldo Maia em Janeiro deste ano numa acolhedora receção que a APACEPE organizou em Recife. Clique na foto para escutar o tema Numa noite de cantares entre amigos descobri essa voz e «Janeleiro» esse compositor que do nordeste retoma um universo musical que nos devolve o melhor da música popular brasileira. O seu último álbum, denominado ESTRADA é um dos seus trabalhos mais autorais. Nele encontramos uma música magnífica intitulado «Janeleiro» que conta a história de alguém que vive através daquilo que avista de sua janela. Com uma poética tocante e uma voz suave, Geraldo Maia tem o dom de nos colocar sobre os dias uma ideia de Brasil com tudo de magnífico que tem a lonjura dos continentes, a proximidade das emoções, a intensidade das paisagens e das gentes, os seus tormentos e as suas alegrias, a forma musical a que cada um tem o direito de ser enquanto escuta. Gravuras - Junho 2013
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Para beber Quinta Dona Leonor Reserva 2007
Do Douro para dentro de nós, como só os poemas conseguem.
A permanência dos tintos maduros, mesmo no decurso do tempo quente, é salutar. Há dias bebi um Quinta Dona Leonor Reserva de 2007. Este vinho tem tudo o que exijo de um vinho do Douro: que me devolva a brisa, a terra, os dias de sol nos socalcos, a antiguidade, o passar lento das horas. Encontrei-o nesta edição de 2007, fui feliz um jantar inteiro, uma noite inteira com aquele paladar. Saberia no fim do mundo que aquelas uvas eram dali. Se há um paladar para o romantismo em Portugal, o romantismo com nível e sem pieguices, esse paladar vem destas uvas maturadas em barris de carvalho francês e americano. Um vinho assim consegue ser o poema que os que não são poetas aprendem, ensinando-os sobre a essência da poesia. Gosto quando um vinho tem um certo indizível. Gosto quando um vinho conta uma história e nos inquieta e nos faz perguntas sobre a nossa experiência no mundo. Gosto quando um vinho é uma conversa para dentro. Gosto de ter saudades de mim num vinho. Gosto de ter saudades dos que amo num vinho. Por isso, um vinho para mim é uma história, uma obra. Este Quinta Dona Leonor conseguiu-o e fomos felizes assim.
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Para comer Risotto de tomilho com vieiras grelhadas
A Casa Agrícola, no Porto, mesmo ao lado do antigo mercado do Bom Sucesso, é um restaurante que guarda as melhores qualidades: é bonito e requintado sem ser formal, tem um atendimento sério e simpático sem ser intrusivo, dispõe de uma menu diversificado e de uma carta de vinhos com grande escolha e sem exageros de preço. Há umas semanas jantamos um risotto de tomilho que serviu de acompanhamento a umas vieiras grelhadas. Um achado! As vieiras estavam no ponto em tudo, nem demasiado grelhadas, nem demasiado «cozinhadas», fresquíssimas. O risotto com a intensidade do parmesão faziam com as vieiras um casamento perfeito. Um prato com uma ambiência especial para um jantar a dois, partilhando as imagens de um mundo que não desaparece com a contagem dos nossos próprios desaparecimentos.
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Para sentir
Aterrar em Malta, a meio da tarde. O calor do Mediterrâneo e do norte de África levam a que a primeira reação seja a de fugir deste tempo e ficar noutros mais antigos. Estando aí como em casa, numa casa que nunca foi possuída mas da qual conhecemos os cantos e os refúgios. Meio da tarde em Malta, para celebrar um amor que também já não é muito destes tempos. O mediterrâneo tem o nosso corpo. Não o nosso corpo efémero, mas o de sempre. Tem o nosso corpo nas rochas que se avistam por debaixo das águas, nas esculturas, nas casas e nas sombras que as pedras erguem. - Vieste cá para perguntar pelo tempo e, nele, clarificar a imagem do amor que foi mudando as rochas, deslocando a sua luz, esculpindo aí a infinitude que tem, não este mar, mas a tua comoção ao pé de si e da nossa sombra. Em La Valetta, os gatos proliferam, as pessoas são calmas, o mar é morno, a luz é forte. Podemos ficar tardes inteiras a ouvir música na varanda do hotel, bebericar um chá de menta frio, ler a imprensa estrangeira, esperar que o mundo se transfigure na nossa ausência, esperar não entender nada sobre os seus novos porquês, ler um escritor antigo que escreva sobre coisas essenciais. Sair depois pelas margens de St Julian e escolher um restaurante com vista para o mar e para a zona velha. Brindar com um vinho Italiano, relativamente leve, e deixar que a conversa flua, como se fossem eternos estes exílios, estas fugas para o nosso melhor dentro. Adormecer por fim com os versos de São Paulo sobre o amor como se começássemos uma longa carta ao que já fomos e deixámos a essas pequenas mortes, a quem escrevemos imaginárias cartas, declarações inúteis mas muito belas sobre o que conseguimos amar, sabendo que morreríamos alguma vez.
La Valetta
Gravuras - Junho 2013
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Instantâneo
César Taíbo é um artista plástico com quem trabalho desde o meu primeiro livro. No Hotel do Elevador, em Braga, nos finais de 1998, eu, ele e o compositor Nelson de Quinhones, celebrávamos com um burbon a chegada do nosso primeiro livro «O Lugar dos dias», um livro com poemas de minha autoria e os magníficos «Oráculos de Paris» do César. Durante este encontro, chegavam para a Feira do Livro José Saramago, Clara Ferreira Alves e José Manuel Mendes. O César, pintor a tempo inteiro, foi falando connosco e desenhando Saramago. No final, ofereceu-lhe o desenho. Anos mais tarde, vimos registo deste episódio nos «Cadernos de Lanzarote», confessando Saramago que não sabia a quem agradecer tal gesto, uma vez que o desenho não estava assinado. Fica assim fechado o processo: o resto do texto que falta aos Cadernos de Lanzarote fica publicado aqui: a pessoa era César Taíbo. O César é um artista espontâneo e profundo, livre e enjaulado na sua arte, velho e criança. Partilhar o caminho literário com ele tem sido mais do que um trabalho uma cumplicidade de sangue. Os universos do Taíbo são lugares de fuga, de exílio, lugares de onde nos chegam paisagens inquietantes, difíceis espelhos, estranhas moradas. O que a arte deve ser.
César Taíbo.
Gravuras - Junho 2013
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Um corpo em luta. Um corpo inteiro. A luta é uma condição da vida. O mais importante não é o volume da tua revolta, mas a qualidade da forma como olhas, como endureces e resistes nos gestos mais simples do viver diário. Mais importante que um berro é um abraço que questione a razão absurda do inimigo. Mais importante que uma garrafa em chamas atiO corpo da luta. rada à polícia é a conversa que terás com os que estão na Praça no dia da manif e nos dias que se seguirem, porque a tua revolta é uma parte de ti que faz falta ao que tens direito a ser e que te travam. Mais importante que odiares os teus inimigos é teres a certeza de que os poderás amar, um dia. Assim vença o teu gesto, assim seja límpida a palavra e a voz com que na praça não te cansas porque tu és a tua luta e de lutar ninguém se cansa, às vezes a gente cansa-se é de estar vivo.
Para fechar
Gravuras - Junho 2013
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