A FLOR DO JASMIM Poesia Pompeu Miguel Martins
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A FLOR DO JASMIM para Maria Augusta Ribeiro, amiga e ativista e em memória da poeta afegã Nadia Anjuman
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Pompeu Miguel Martins escreve A Flor do Jasmim ecoando um sabor que traz consigo toda a esfera. Traz consigo livros de almofada onde os corpos se misturam com as estrelas das letras de que são feitos. Mulheres e multidões, sonhos ou solidões, mas todas estas viagens que nos fazem reviver em passos intensos de alteridade, fazem-nos imaginar e viver aquelas que são outras verdades.
A escrita de Pompeu Miguel Martins adoça os dias num suave lume brando, que por um lado mexe connosco, mas por outro respira um conforto existencial que dança lentamente entre o belo caos e lindo cosmos. Bruno Neto*
* Ativista e promotor de projetos de desenvolvimento em cenários de catástrofes humanitárias. Em 2021, coordenou uma operação em Kandahar, no Afeganistão, na área da saúde. Foi condecorado com a Ordem da Liberdade pelo Presidente da República.
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Em 16 de agosto de 2021, Cabul foi tomada pelos Talibãs.
Uma parte do mundo alertou para o facto de estarem em perigo os direitos humanos e neles os direitos das mulheres. A flor nacional do Afeganistão é a flor do Jasmim. Hoje, esta é a única flor de que disponho para erguer num tributo a todas as mulheres de todas as partes do mundo.
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(Rio de Janeiro, 7h de um dia de domingo) 1 Tinha a memória do corpo e era um corpo de memória. Calçava-se como quem aparelhava uma arma para depois descer a avenida, enfrentando a multidão de olhares. Contudo, só um lhe interessaria para que perdesse todas as guerras sem que as não tivesse vencido e isso fosse a única coisa que do amor aprendera.
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(Buenos Aires, 17h de uma tarde de verão) 2 Cai com a tarde sobre o corpo dele. Sabe-lhe os ritmos. São uma espécie de coração simultâneo, um tango desregrado, perfeito nos movimentos. Vivem num pequeno largo em Buenos Aires. Lá fora espera-os o fim. Entre o corpo, a casa e a rua entardecerá, não se sabendo quantas vezes mais. Desconhecem-se no tempo que há de quebrar-se. Até lá, ela fica sobre o peito dele olhando-o como só os viajantes conseguem. Procura-se nesse continente. Não tem a certeza de encontrar-se. Mas sabe que é o sol que dali se avista a cada vez. 9
(New York, 22h numa noite de fevereiro) 3 Se chover na marginal do Hudson River, ela será a sua face de inverno, fixando histórias. Recolherá depois a casa com um saco em ráfia que comprou numa viagem solitária pela América do Sul. Recolherá a casa com o coração habitado pelos que escolheu e pelos que desconheceu. Nas suas caminhadas pelo passeio marginal do Hudson River nunca deixa de celebrar a liberdade. A sua. Os pais moram longe e ainda não começaram a falar-lhe da infância ao telefone. Quando o fizerem começarão a morrer. Na sua casa, com os objetos que lhe são eternos, prepara um café, espreita a rua, tenta adivinhar o tempo que fará amanhã, não para que se organize, mas para adivinhar como lhe escorrerá a luz sobre a face e de que lugar nessa luz ela envelhecerá na tão merecida rota do espanto e de um urgente desamarrar.
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(Guangzhou, 23h numa noite de primavera)
4 Sobre o corpo pousava um lençol de seda e lembrava um dos seus amantes que se demorava a tocar-lhe os cabelos tão lisos e brilhantes. Nesses momentos, sentia, a cada gesto, a descida vagarosa dos rios e o sobressalto do olhar sobre as montanhas. Do prédio onde hoje mora não se vêem rios nem montanhas mas ouve-se o vento muitas vezes quando anoitece. E, do som do vento, ela recorda as vozes, as suaves carícias e o sussurro de desejos e promessas. E, ao som do vento, envolve o corpo no lençol de seda e sabe que nunca se muda de pele na travessia do que salvámos. 11
(Osaka, 22h num dia comum)
5 Vê da janela a cidade e as suas luzes. Num antigo poema escrevia-se sobre a luz das estrelas e o silêncio da noite. As estações pousam-lhe e ainda pensa nos pássaros e nas suas linhas de voo ou no milagre da erva a crescer. Procura-se nesse imaginário. Tem dias em que o encontra e demora-se neles como se pudesse ser ancestral de si mesma. Pensa na avó materna, que nunca saía da aldeia, e nos animais que ela criava. Pensa na erva sobre os pés e na sua frescura tão livre. Pensa na infância de si que não para de inventar.
Da janela do seu prédio observa-se. As luzes dos outros hão de ser estrelas, mais dia menos dia. 12
(Paris, 10h num domingo de maio) 6 Nas ruas do centro vivem sobretudo os seus protestos. Ela ama-os. Há quem tenha bichos de estimação. Ela cuida diária e meticulosamente os protestos a que aderiu ao longo da vida. Ela já foi jovem e já experimentou muitas crises e assistiu a muitas vitórias e a outras tantas derrotas. Ela tem a pele muito mais entregue a esse corpo do que à pele de todos os amores. Ela pensa que continua a amar esses amores mesmo aqueles que terminaram de forma mais violenta. Ela pensa que ama e, por isso, ama. Do seu corpo de protesto uma urgência segura-lhe o olhar e talvez isso lhe tenha ensinado tudo até a ter de si um corpo de saudade sobre o que há de vir e que, sem passado, a comove como só o amor e a luta a comoveram na expressão incompleta do que o futuro fosse. 13
(Braga, 10h num dia de setembro)
7 Fechava-se. E enquanto isso era um quarto, era as histórias sobrepostas, as horas solitárias e a partilha em solidão. Também as despedidas e a merecida liberdade. Fechava-se e era um itinerário, uma estrada nada virgem mas quase sempre primeira. Às vezes, olhava em volta e estava junto. Houve alturas em que julgava que tal seria para sempre. Mas depois havia a morte. E a morte não se sabe se é para sempre. A morte e o amor. Ambos sofríveis. Fecha-se numa liberdade sem nome. Isso lhe tem bastado. Às vezes sai. E, quando o faz, o mundo transforma-se. Ela nem sempre acompanha o mundo. Mas, é um facto que ele a acompanha. E nesse meridiano de distâncias fica a vida por inteiro. Entre ela, o mundo e essa distância talvez habitem os deuses e façam aí inacessíveis as suas narrativas ou o seu derradeiro contributo para que sobreviva muito livre a beleza, a que ainda ninguém compreendeu. A que virá.
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(Mumbai, 7h de um qualquer dia)
8 Que menina é universo e dom, desdita e morte num mesmo círculo? O que morre por nascer e ser princípio e esquecimento, como se erro fosse toda a esperança e todo o longe lhe crescesse em cavernoso firmamento? O que morre por nascer? Desentendido é o ecoar desse quem que de menina é que desnasce quando nasce à procura desse quê que o seu corpo arrasta e nele quem o mata quando o nascer lhe basta. 15
(Tete, 11h de um dia de novembro)
9 Na machamba perde-se o horizonte, sobretudo o do tempo. Cozinho ao sol o próprio sol porque assim me ensinaste. Toda a comida tem sol dentro, mãe. Os frutos vão e vêm, as sombras dos embondeiros renascem todos os dias e fazem o milagre de demonstrar a luz e aqueles que lá permanecem por não estarem mais. Ouço a música do rádio e a sonoridade da terra. Às vezes, apetece-me dançar e a solidão embala-me e marca-me o ritmo. Abro a janela, lá fora as capulanas secam. Reparo nos seus padrões e nas cores que nos contam. Mas, o que eu queria mesmo, mãe, era uma capulana que tivesse os teus braços no estampado para que voltasses e me envolvesses e me cuidasses como antigamente, em que nem horizonte havia e o tempo não tinha sequer começado a contar. 16
(Cabul, 12h num dia de agosto de 2021) 10
Sob o sol o seu corpo em barro seca. Recorda-o moldável e húmido, a acolher as mãos que o circundavam. Sobre a regra indecifrada do amor, guardava-se na forma com que ficava e na língua gestual de ser corpo e de ser argila nas mãos que a inventavam. O sol abrasador esvaziou o lugar. Está só no meio da praça, sem mãos, sem gesto, sem uma gota de água que lhe mantenha livre a forma súbita e inesperada. Sob o sol o seu corpo em barro seca. Se se demorar talvez assim fique para sempre. Será primeiramente uma estátua em barro. Uma entre a multidão de outras tantas iguais a si no destino final. Mas, só aí. Nos últimos momentos, e mesmo antes de se transformar em estátua, expressa um último sorriso que lhe ficará para sempre na expressão imóvel de objeto. Um dia, os homens, os deuses ou o vento hão de fazer cair essa multidão. Esses corpos em barro serão cacos e depois pó ligados à terra. Nessa altura, estará a planta preparada para irromper debaixo de um sol abrasador no húmus de uma outra morte. E uma só lágrima de um só homem,
de um só Deus ou de uma gotícula que chegue com o vento poderá por fim fazer renascer a esperada flor do jasmim. 17
1ª edição Autor: Pompeu Miguel Martins Impressão: PIXARTPRINTING
Escrito em Vale da Parra, entre 18 e 27 de agosto de 2021. Data de publicação: dezembro de 2021 Tiragem: 50 exemplares numerados e assinados pelo autor.
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Em 1919, iniciava-se um projeto que havia de confundir-se com as nossas vidas: a loja de fazendas e confeções MARTINS DA AVENIDA. Foi criada pelo meu avô paterno, Bernardino Alves Martins, o único que conheci e que me marcou a vida para sempre. Esta loja, para nós, foi muito mais do que um negócio. Foi a afirmação de uma identidade a partir de um lugar e de um conjunto de práticas que nos tocaram. Em sua homenagem, todas as minhas edições restritas têm esta chancela. Não é uma marca, não é uma editora, é uma atitude.
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