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Esperançar ou ter esperança?
ESPERANÇAR OU TER ESPERANÇA?
Clarice Lispector escreveu um conto rico de sentidos intitulado “Uma esperança” (do livro Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998). Na narrativa, uma família é surpreendida, em um dia comum, com a visita daquele inseto verde. A chegada do pedaço frágil e esvoaçante de vida à casa altera, ainda que brevemente, a rotina e faz com que a mãe mergulhe em uma reflexão não só sobre o inseto, mas sobre a experiência chamada esperança. Geralmente é assim mesmo: perceber ou experimentar a esperança é capaz de nos transformar. A origem da palavra trata desse potencial transformador. No hebraico, tikvah é um dos termos que se referem à esperança, indicando expectativa certa e, curiosamente, correspondendo também a uma corda, ou seja, algo concreto em que se pode apoiar, não algo abstrato. No grego, elpis indica espera confiante e é também o nome da sobrevivente depois que a caixa de Pandora foi aberta. Em latim, spes remete à raiz indo-europeia spéh, indicando a ideia de se obter êxito.
E, aproveitando a reflexão em torno de línguas, entre esperançar e ter esperança há alguma diferença? Em termos de estrutura gramatical e de sentido, sim. “Esperançar” é verbo designativo de ação intransitiva, ou seja, que, por si só, é suficiente, independente de complementos. Quem esperança esperança. Ponto final. O sujeito, portanto, já experimenta a ação e não precisa de mais nada. “Ter esperança” já é uma construção diferente. Nesse caso, usa-se o verbo “ter”, verbo transitivo direto, que pede um complemento não preposicionado. Assim, o “ter” é a ação verbal e, no caso, “esperança” passa à condição complementar. Quem tem tem algo. E, dessa forma, o complemento pode ser diverso. A partir dessas considerações gramaticais, é possível perceber que o emprego da construção “ter esperança” faz com que, discursivamente, entre-se na lógica do “ter”, e não necessariamente na do “ser”. Explicando: ter algo não compromete existencialmente o ser do sujeito com aquilo que se tem. Logo, “ter esperança” é bom, mas “esperançar” pode ser bem melhor. Esperançar é verbo, é ação e só se pode conjugar esse verbo comprometendo um sujeito. Eu. Tu. Ele. Nós. Vós. Eles. Todos se comprometem com a esperança ao esperançar, é algo que os afeta diretamente, não pela mediação do “ter”, mas pela potência do “ser”.
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O esperançar faz lembrar o ruach divino que, face ao caos, à ausência de formas, ao desespero do vazio, movia-se sobre a face das águas no Gênesis. É fôlego de vida. É ânimo sobre a criação. É vida em nossa vida. Biblicamente, as referências à esperança relacionam-se ao enfrentamento de dificuldades, situações complicadas, contextos desanimadores, com uma viva confiança firmada em Deus. E esperança é uma das virtudes cristãs, possibilitando àquele que crê o enfrentamento das circunstâncias, já que a esperança se encontra centrada no próprio Eterno. Jó, por exemplo, é um livro permeado de esperança. Tal como o profeta Jeremias, que, apesar de tanto lamento, demarca seu esperançar firmado no cuidado zeloso e bem presente do Senhor. Os textos veterotestamentários e neotestamentários apresentam exemplos encorajadores do esperançar. Em 1 Coríntios 13.13, Paulo registra: Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três; porém o maior deles é o amor. Ler esse versículo em paralelo com o que Romanos 5.1-5 apresenta auxilia a compreender o valor da esperança na vida e no testemunho cristão. Quando o apóstolo conclui a poética exposição em 1 Coríntios 13, ele associa fé, esperança e amor como conjunto de atributos do que permanece na caminhada com Cristo. É bonito perceber que a esperança está envolvida no texto bíblico pela fé e pelo amor. A fé e o amor cercam e preservam a esperança. E isso nos ensina, pois esperança sem fé em Cristo Jesus é mera utopia humana; esperança sem amor tende à alienação e à desumanização. Há um convite claro para experimentar uma esperança que não falha, sustentada pela fé em Cristo e pelo perfeito amor de Deus. De volta ao conto de Clarice Lispector, a mãe, diante do inesperado pousar do inseto em casa, surpreendeu-se pela esperança. Tanto esperançou que se registra no texto: “Não havia dúvida: a esperança pousara em casa, alma e corpo”. E que seja assim conosco também. Que a esperança firmada em Cristo Jesus nos alente de modo delicado e potente para esperançarmos.
Dr. Edson Munck Jr. Professor, doutor em Ciência da Religião, mestre em Letras pela UFJF Juiz de Fora/MG