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Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov

Paulo Serra

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Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC) atual com a inclusão de uma introdução por Irene Flunser Pimentel que contextualiza este romance no atual momento histórico. Há inclusivamente uma passagem no romance que o torna tão atual quanto premonitório: “Não escrevi este livro simplesmente para relembrar o passado: escrevo hoje sobre a ocupação de Kiev, que testemunhei e que está bem documentada; porque a mesma espécie de acontecimentos está a suceder agora; e não há qualquer garantia de que não voltem a acontecer amanhã episódios ainda mais sinistros.” (p. 396)

Documento em forma de romance

Como nos é anunciado, logo no Prefácio, assinado pelo autor, a cujas primeiras linhas, nos fará regressar mais do que uma vez: “Tudo o que este livro contém é verdadeiro”. Num dos vários capítulos em que o autor interpela directamente o leitor (designados justamente «Fala o Autor»), podemos ler: “Devo lembrar-te uma vez mais que nada disto é inventado; aconteceu, de facto. Nada se inventa, nada se exagera. Pelo contrário, omito, até, certos pormenores da carnificina, (…) nada há neste livro que de longe se assemelhe a invenção literária.” (p. 300) exército soviético, a população dividiu-se. Anatóli tinha então doze anos e assistiu à discordância no seio da própria família; o avô era um simpatizante germânico, que via a Alemanha como sinónimo de progresso e ordem, enquanto a Rússia significava fome e repressão, contudo, ao longo do livro, arrepender-se-á profundamente e muda de opinião.

Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, é agora publicado pela primeira vez em Portugal pela Livros do Brasil numa versão integral não censurada. A tradução é de Jorge Rosa e a revisão de Manuel Reis. A coleção Dois Mundos continua assim, há que dizê-lo, a ganhar destaque no campo editorial com uma excelente oferta de obras inéditas, mas também com a reedição de romances já conhecidos do público leitor.

A reedição deste livro, em outubro do ano passado, torna-se ainda mais

«Esta edição de Bábi Iar, de Anatóli Kuznetsov, publicada pela Livros do Brasil, é diferente e complementar da versão que a mesma editora deu à estampa em 1970. Enquanto esta se baseava na tradução da versão soviética de 1966, censurada pelas autoridades, a atual tem origem no livro completo com o mesmo título, Bábi Yar, publicado em 1970, nos EUA, depois de, no ano anterior, o autor se ter exilado para o Reino Unido», explica Irene Flunser Pimentel na Introdução.

Não obstante a dimensão – quase 500 páginas – e a temática do livro, é um romance apaixonante, que se lê de um fôlego, que retrata uma cidade e um país destruídos pela guerra, pela perspetiva de uma criança.

Criança essa que, há que dizê-lo, é, desde tenra idade, um voraz leitor que, mesmo em tempos de guerra, procura avidamente o que possa aproveitar entre as pilhas de livros que vê serem destruídos.

Mais do que um romance, Anatóli Kuznetsov classifica assim Bábi Iar como um «documento em forma de romance», consoante o subtítulo explicita. E é um facto que, ao longo da narrativa, são vários os recortes de documentos, notícias e anúncios de que o autor faz uso, para compor e dar veracidade ao texto. Recorre-se ainda a testemunhos de outros sobreviventes, que conferem uma veracidade pungente ao texto, e há passagens que nos atingem como um murro.

Entre os doze e os catorze anos, enquanto era «um faminto e assustado rapazinho», a sua luta pela sobrevivência, cujo relato vivo nos assombra ao longo destas páginas, não impediu o autor de compilar notas sobre o massacre que ocorreu no que tinha sido até então o seu local de brincadeiras. Nas primeiras páginas, podemos ler como dá por si a pisar um campo de cinzas e ossadas humanas…

Em setembro de 1941, as tropas nazis conquistaram Kiev. Fascinada pela elegância dos soldados alemães ou esperançosa na reconquista do

Obra é um importante testemunho sobre a ocupação nazi de território soviético

O horror banaliza-se

Os dias passam e a esperança dá lugar ao horror, conforme se torna claro que o território de Bábi Iar –nome dado pelos alemães e depois mantido pelos soviéticos – passa a ser palco de um crime terrível. Soube-se ainda, mais tarde, que se estava a montar ali uma fábrica experimental para transformar os mortos em sabão – o que nos recorda, uma vez mais, como, mais do que o horror da guerra, capaz de dizimar milhões de vidas humana, é a forma cerebral e desumana como se tentou converter a guerra numa máquina de lucro. Entretanto, em Kiev, o horror generaliza-se e banaliza-se. Queimam-se livros (o que é sempre um sinal do princípio do fim dos tempos); incentiva-se que as pessoas não tenham educação em excesso; os disparos não cessam, ao ponto de se tornarem um ruído de fundo que acompanha o pulsar dos dias; abrem-se valas comuns; convocam-se os judeus, que não percebem bem que se encaminham para o seu fim, depois os ciganos, depois todos aqueles que se designam como “inimigos do povo”, até que não haja mais povo para chacinar…

Estes acontecimentos terríveis são filtrados pela perspetiva inocente de uma criança que, inevitavelmente, dá por si a despedir-se da infância e a perder a inocência. O seu dia-a-dia passa a girar em torno de algo tão primal como sobreviver – e o que é certo é que ele conseguirá, de facto, escapar às balas, às bombas, às patrulhas –, e algo tão instintivo como conseguir encontrar o que comer, ou conseguir ganhar algumas moedas, de modo a ter algum sustento para a família. A fome é uma constante sensorial e descritiva que perpassa as páginas deste romance de forma incrivelmente nítida. Uma fome capaz de levar as pessoas ao canibalismo.

Versão censurada

Em 1961, Anatoli Kuznetsov submeteu o seu testemunho deste período às autoridades soviéticas.

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