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A arte pode ser sentida na PELE?

Além disso, beneficiam duma formação multidisciplinar, em que o desenho, a pintura, a escultura, a fotografia, a videoarte e a arte digital/multimédia se complementam na sua formação.

A criação do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC) foi também essencial neste processo, sobretudo do ponto de vista da investigação em Artes Visuais, permitindo a construção do conhecimento neste domínio, mas estando este muito associado à própria formação dos alunos, sobretudo ao nível do mestrado e do doutoramento no âmbito das Artes Visuais, que abriram mais recentemente na UAlg. Assim, o centro de investigação e a formação em Artes Visuais interligam-se quase como um laboratório de criação e aprendizagem neste domínio científico/artístico, em que a arte e a ciência se entrecruzam, tornando-se a arte ciência e a ciência arte.

Faro”, lançado oficialmente no dia 29 de março e inserido na Bienal Cultura e Educação do Plano Nacional das Artes. Trata-se de um percurso que apresenta o trabalho desenvolvido nas diferentes escolas do Agrupamento de Escolas Pinheiro e Rosa durante o ano letivo, tendo como impulso a PELE: estímulo para a criação e fruição artísticas, explorando todas as suas possibilidades, conceito para uma mudança das metodologias utilizadas em sala de aula (sentir na pele).

SAÚL NEVES DE JESUS

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

Desde os primórdios da humanidade, quando o homem ainda não tinha um domínio completo da linguagem e da escrita, que a arte esteve presente nas manifestações simbólicas, em particular nas pinturas rupestres localizadas nas cavernas. Mas, para além da dimensão comunicacional, a arte tem tido uma dimensão emocional nas expressões humanas.

Inclusivamente, por vezes parece que sentimos na pele a emoção induzida por uma obra de arte. Nesses momentos, há que saber apreciar, fruindo com a sensação corporal produzida.

A fruição e a produção artística parecem encontrar no Algarve

condições climatéricas excelentes. Com uma luz que permite uma cor e um brilho especiais, vários artistas de renome, portugueses e estrangeiros, têm vindo residir para o Algarve nos últimos anos. Desta forma o Algarve tem sido, não apenas local de fruição, mas também espaço e tempo de produção artística no âmbito das Artes Visuais.

Num projeto iniciado já no século XXI, no Algarve começou-se também a desenvolver o conhecimento e a investigação no domínio das Artes Visuais, tendo a Universidade do Algarve (UAlg) sido essencial para isso, com a abertura da licenciatura em Artes Visuais, permitindo a existência no Algarve dum ambiente formal para aprendizagem no âmbito das artes visuais. Com um corpo docente constituído sobretudo por artistas, os alunos têm tido oportunidade de vivenciar de perto o mundo da arte na sua complexidade e articulação entre a teoria e a prática.

A relação com a comunidade tem sido desde o início um dos aspetos muito valorizado pela equipa de docentes, sendo constantemente feitas mostras ou exposições do trabalho artístico produzido nas atividades letivas, em particular pelos próprios alunos. Muitas das atividades de mostra do trabalho produzido, permitindo a fruição por parte dos “espetadores”, têm sido realizadas na Galeria Trem, em Faro, ou no Convento de Santo António, em Loulé, expressando o reconhecimento e o apoio que ambas as autarquias têm proporcionado às Artes Visuais na UAlg. Mas não é apenas ao nível do Ensino Superior que as artes têm tido um incremento no Algarve. Também ao nível do Ensino Básico e Secundário têm ocorrido iniciativas que procuram sensibilizar os estudantes para as artes e cultura, bem como têm sido realizadas atividades que pretendem contribuir para o desenvolvimento cultural na comunidade. Neste âmbito destacaria a iniciativa “PELE - Percurso Artístico

A Bienal Cultura e Educação 2023 decorre de 1 de março a 30 de junho de 2023, tendo uma dimensão nacional e sendo dirigida à infância e juventude, visando refletir e disseminar o lugar das expressões e das linguagens artísticas na educação, formal e não formal, através de uma programação cultural integrada e diversa, com o grande objetivo de transformar as instituições culturais em território educativo e as escolas em pólos culturais. Trata-se de um movimento para reconhecer quem está a trabalhar para o público infanto-juvenil e reforçar redes de colaboração e circulação.

A cidade de Faro acolheu este evento na semana do 24 a 28 abril, com um programa que incluiu exposições, espetáculos, concertos, visitas, conferências, oficinas, entre outros, para valorizar a criação e a programação para a infância e a juventude, os artistas, os professores e os mediadores, quer nas instituições culturais, quer nas educativas.

Com a PELE pretendeu-se trazer a escola para a rua, derrubando os seus “muros” e abrindo-a para os espaços da arte, cultura e lazer da cidade, permitindo que a Rua de Santo António, a Alameda João de Deus, etc, se enchessem de ritmo, cores, sabores e, sobretudo, gentes.

O Agrupamento Pinheiro e Rosa tem sido pioneiro numa série de iniciativas e mais uma vez revelou o seu potencial e constituiu exem-

plo ao nível do papel da escola nas artes e na cultura, envolvendo as associações culturais e artísticas locais.

Cada vez mais a escola deve estar inserida na comunidade e esta na escola, numa interação constante, permitindo que os espaços e os tempos de aprendizagem e desenvolvimento sejam constantes e diversificados.

Naquele que foi o meu primeiro artigo científico, ainda como estudante finalista na Universidade de Coimbra, intitulado “O sentido da Escola”, em 1989, salientava que a escola deveria ser cada vez mais um espaço e tempo de aprendizagem e desenvolvimento com prazer para quem aprende e para quem ensina.

A arte, enquanto catalisadora de emoções positivas, pode constituir um instrumento importante neste sentido...

ARTES VISUAIS Ficha técnica

Direção GORDA, Associação Sócio-Cultural

Editor Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções:

• Artes Visuais Saúl Neves de Jesus

• Café Filosófico Maria João Neves

• Crónicas de um Beduíno Cobramor

• Bibliotecofilia

Maria Luísa Francisco

• Espaço ALFA Raúl Coelho

• Império Júdice Fialho Luís de Menezes

• Letras e Literatura Paulo Serra

• Mas afinal o que é isso da cultura?

Paulo Larcher,

Fotos: António Homem Cardoso

• Os Dias Claros Jorge Queiroz Colaborador desta edição

Mauro Rodrigues e-mail redação: geralcultura.sul@gmail.com

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MAIO 2023 Ÿ n.º 174
8.947 EXEMPLARES
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Cartaz da iniciativa “PELE” (abril de 2023) Imagem de pintura rupestre localizada na caverna de Chauvet (França) FOTO DR Desenho de Raquel Figueiredo, aluna do Agrupamento Pinheiro e Rosa FOTO DR

O Algarve de Costa-a-Costa: Albufeira:

o nosso Gibraltar?

muralhas: altas, poderosas, pouco menos que inexpugnáveis. Albufeira, aliás, pode apresentar galões históricos de gabarito. Foi na época romana um burgo com uma forte actividade económica baseada na pesca e na mineração e, após a conquista árabe no Séc. VIII, ganhou novas fortificações e importância económica, sobretudo graças ao comércio que foi capaz de desenvolver com o norte de África.

PAULO LARCHER

Jurista e escritor

FOTOS: António Homem Cardoso

Conta uma antiga lenda que o nosso Rei Dom Afonso III viveu no castelo de Albufeira muito apaixonado por uma bela escrava muçulmana que, infortunadamente, já teria entregue o seu coração a um homem da sua religião. Mas as lendas têm o condão de conduzir as narrativas para onde mais lhes convêm e, nesta em particular, o amor

do Rei consegue derrubar as reticências da linda moura e conceber um rebento real que lhes permitirá viver felizes para sempre, protegidos pelas vigorosas fortificações do castelo. Linda história mas falsa, como é aliás o timbre da maior parte das lendas: não houve Rei, nem moura, e quanto ao forte castelo é necessário uma forte imaginação para o visualizar quando se olha o diminuto pano de muralha que ainda lá está, derribado, in memoriam. Mas eu, baseado nos dados históricos disponíveis, garanto a autenticidade das antigas

Em 1249, Dom Afonso III (o nosso herói na lenda romântica), atacou Albufeira mas esta resistiu valentemente. Penso até que terá sido a última cidade do Al-Garb a ser tomada pelos soberanos cristãos. Desgraçadamente, os oficiais cavaleiros da Ordem de Aviz, a quem a praça foi oferecida, encarregaram-se do quase completo extermínio da população moura. Desde essa altura Dom Afonso III autoproclamou-se Rei do Algarve, título que, curiosamente, a nossa monarquia ostentou até ao malogrado Dom Manuel II. Verdade é que após a conquista Albufeira cresceu em importância e dimensão - recebeu foral de D. Manuel I em 1504 - crescimento travado pelo terramoto de 1755 e terrível maremoto que se seguiu, tendo causado uma enorme mortandade e destruição do edificado. Menos de um século depois, em 1833, não teve também modo de escapar a outro episódio sangrento ocorrido durante a guerra que opôs miguelistas a liberais. Um facínora, de alcunha O Remexido, mais os seus homens de mão, atacaram-na e passaram a fio de espada um considerável número de habitantes. A cidade entrou então num acentuado declínio económico e social só contrariado já nos finais do Séc. XIX e meados do século XX, pelo surgimento da indústria conserveira e do crescimento da exportação de frutos secos, a meias com alguma indústria ligada ao processamento da alfarroba. Depois, entre 1930 e 1960, uma insidiosa decadência tomou conta da povoação até ao poderoso resgate permitido pelo turismo de massas a partir dos anos sessenta, ao qual se seguiu um enorme crescimento urbanístico nos anos oitenta. Visitei Albufeira no passado mês de janeiro. Já não o fazia há pelo menos 40 anos! Uma vida. É claro que em janeiro não se visita o Algarve com o mesmo estado de espírito que se tem em agosto. Nem, aliás, a cidade apresenta um

aspeto agradável aos seus poucos visitantes. Pressente-se um clima de abandono. Nas ruas dos bairros antigos passamos por lojas, por restaurantes e bares, todos encerrados. Os seus anúncios desatualizados (apenas em inglês 90% das vezes), dão-nos uma noção do que deverão ser na época alta. Há que fazer um forte apelo à imaginação para povoar a Avenida da Liberdade - artéria principal da cidade velha - com as torrentes de turistas que por ela passam em marés que no Verão são sempre cheias. As estatísticas refletem a brutal diferença de atividade entre verão e inverno, mas não deixam transparecer a melancolia que perpassa aquelas ruas e praças desertas, desarrumadas, expectantes, aguardando um novo verão que as resgaste da crise sazonal e reate o cash-flow tão desejado. Talvez esteja a ser demasiado impiedoso nesta apreciação porque Albufeira, embora quase vazia, respira uma atenção cuidadosa à qualidade urbana. É verdade que nas áreas para onde a cidade moderna se expandiu, as grandes avenidas são extensas, rasgadas, arborizadas, limpas. Nada a dizer. Contudo, eu trazia na cabeça o sonho de rever a vilazinha ingénua da minha adolescência, de me acomodar numa esplanada muito rústica de que estranhamente me recordava do local - voltado a umas arribas ocre e a um mar turquesa - e do nome: A Ruína.

Lembrei-me até que dessa vez comera um belo e fresquíssimo peixe grelhado vindo diretamente das ondas do mar para o prato, pois nessa época não se inventara ainda a aquacultura. Para minha gratíssima surpresa, no passeio pela Rua da Bateria passei à porta dessa mesma casa, mas estava fechada.

Tive pena. Tanto que gostaria de ter revisto a inesquecível paisagem que seguramente deverá manter, e de ter encomendado o peixe mais atrativo que os modernos expositores me sugerissem, indiferente à inevitável contraparte financeira. Pelo contrário almocei no único restaurante que encontrei aberto na Praça da Cidade Velha ou, para o dizer como os locais, Old Town Square. Encomendámos duas pizzas. Experiência a não repetir… Chegámos por volta do meio-dia e sentámo-nos na esplanada que em coisa de meia-hora se encheu de velhos e velhas (mais eles que elas)1. Todos de língua inglesa. A maior parte muito desmanchada

e semi-nua num frio de janeiro apesar de amaciado por um Sol soberbo. Todos (ou quase) já bebiam àquela hora álcoois diversos; todos muito relaxados e conversadores. Reparei então melhor no fenómeno: há velhos por todo o lado em Albufeira. A cidade descobriu uma fonte inesgotável de receita para as épocas baixas: os velhos ingleses middle-class Imagino eu que, com o avançar do ano, a faixa etária vá diminuindo paulatinamente até às invasões juvenis do verão. Não interessa. É uma maneira de obter alguma receita e esperar pelos verões. De facto, uma temperatura de 20 graus ao Sol deve parecer um Éden a estes seres de ossos atacados pelos reumatismos e pelas artroses. Existem para cima de trinta mil ingleses a residir no Algarve a maioria em Albufeira. Eles e muitos outros adquiriram imobiliário. Esta situação, embora seja conveniente do ponto de vista económico levanta algumas preocupações. Quando eu questionei a empregada que nos trouxe as pizzas, uma azougada algarvia de olhos cor de mel, esta não teve papas na língua:

- Estes velhotes gostam dos copos mas são sossegadinhos - afirmou ela - e são eles que me pagam o ordenado ao fim do mês.

- Mas no verão - retruco eu, a tentar tirar nabos da púcara - isto é tudo deles. Ou não?

- Ó senhor! isto no verão é pior que Gibraltar! - e com esta se foi a empregada azougada.

Seria injustificável e imperdoável não fazer uma referência ao aspecto mais espantosamente belo e harmonioso de Albufeira: a sua frente de mar entre as praias do Peneco e a dos Pescadores. A falésia, talhada num tom castanho alaranjado que contrasta com as casas e vedações muito brancas, surge com uma força telúrica impressionante. Não deve ser só minha, esta opinião. Será seguramente partilhada pelos grupos humanos - provavelmente ingleses - que transitam lá em baixo, caminhando calmamente sobre as cómodas passadeiras de madeira que cobrem a areia escura, tendo de um lado o pacífico e amigável oceano e, do outro, a força imensa da falésia apaziguadora.

(1) Posso chamar “velhos” aos “seniores” porque eu também o sou e acho mais simpático ser um velho pachola do que um sénior recalcitrante.

16 CULTURA.SUL POSTAL, 5 de maio de 2023
MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

SOS Educação

MARIA JOÃO NEVES

Imaginem que estamos a caminhar por um bosque de denso arvoredo. Como é que se chama o espaço vazio que nele podemos encontrar, insuspeitadamente?

Fiz esta pergunta, há alguns dias atrás, a alunos universitários de um curso de humanidades. Perante o silêncio, e mau grado a minha falta de talento, desenhei no quadro várias árvores, um bosque denso, deixando no centro um espaço vazio, ligeiramente arredondado. Como se chama isto, insisti.

As respostas foram as seguintes: “um descampado”, “um buraco”, e muitos “ehhh sei lá, professora!”, com um ar enfastiado. Chama-se “clareira”, respondi, algo desanimada, mas sem dúvida impreparada para o que viria a seguir: “cla...quê?”, “Clareira, clareira, que é isso? Nunca ouvi essa palavra antes!” E assim por diante, para minha tristeza e desespero. Como poderia eu levá-los da clareira física, biológica, existente nos bosques da natureza, para a clareira intelectual, se o ponto de partida lhes era totalmente desconhecido? Quando nem do significado denotativo há referente, como passar à metáfora? Ou pior, quando nem a palavra se conhece, como saber da existência de algo?

Um amigo dizia-me outro dia que se recordava de que na sua infância existiam nomes diferentes para o cesto da fruta, o cesto da roupa, ou cesto da lenha, etc... Tinham nomes individualizados, agora tudo são apenas cestos. Caíram no indiferenciado. Vi-o encolher-se e um esgar de dor assomar-lhe o rosto. Quanto mais palavras conheço, maior é o meu mundo... Sim, o nosso mundo está a encolher.

Não se trata de capricho ou obstinação, a clareira é uma das metáforas mais importantes do pensamento ocidental. Heidegger a ela se refere no seu Caminhos de Floresta ; “O Bosque” é, justamente, o primeiro capítulo das Meditações do Quixote de Ortega y Gasset, e María Zambrano dá o título de Clareiras do Bosque a um dos seus mais excelentes livros. A história do

pensamento ocidental está ligada à metáfora da visão. Mesmo em linguagem coloquial, quando queremos certificarmo-nos de que alguém percebeu o que dissemos costumamos perguntar: “estás a ver?”, ou “está claro?”. A clareira do bosque é o lugar vazio e aberto para o acontecimento da luz e também do som. A clareira de pensamento é espaço mental que reúne as condições onde talvez possa dar-se o acontecimento da aletheia - o desvelamento da verdade encoberta.

Algumas semanas antes tinha carregado comigo mais de uma dezena de livros de diferentes filósofos, entre eles: a Ética a Nicómaco e a Política de Aristóteles, A República e o Protágoras de Platão, o Emílio de Rousseau, as Meditaciones del Quijote de Ortega y Gasset, os manuscritos de Filosofía y Educación e as Clareiras do Bosque de María Zambrano, as Cartas a Lucílio de Séneca, Sobre a Pedagogia de Immanuel Kant, Música e Pensamento de Fidelino de Figueiredo, Cartas a um Jovem Filósofo de Agostinho da Silva. Dispus os livros ao longo das mesas e polvilhei-os de flores de buganvília e jasmim. Levei comigo uma coluna de som e fiz soar o segundo andamento do Concerto em Sol M de Ravel, com a Hélène Grimaud como solista. No quadro escrevi o seguinte: “o pensamento é uma paisagem intelectual, cada filósofo um bosque por desvendar”.

Pouco a pouco, as expressões de hostilidade foram como que derretendo e a curiosidade começou a nascer. Pediram-me licença para mexer nos livros - claro que sim, é mesmo para mexerem! - vi como alguns reviravam um livro nas mãos como se fosse um objecto estranho. Aquelas capas duras, aquelas folhas amarelecidas, por fim alguém perguntou: “que é isto professora?”, referindo-se a um marcador de fita.

Apesar desta interrogação tão reveladora da ausência de contacto com livros, há esperança, porque uma pergunta interessada revela curiosidade intelectual.

O desejo de aprender, que Aristóteles no livro alfa da Metafísica considerava ser aquele que todos os homens têm em comum, ainda não morreu. E eu tinha válidas razões para suspeitar que sim... Logo na primeira aula fui bombardeada pelos alunos

a quererem saber como ia ser a avaliação. Respondi-lhes que a avaliação não é neutra com respeito aos conteúdos que se leccionam, e que me parecia que primeiro deveriam querer familiarizar-se com os conteúdos daquela unidade curricular. Foi um desastre! Só queriam saber como seriam avaliados. Estavam completamente fechados, incapazes de ouvir o que quer que fosse que não se referisse à avaliação. Uma vez estabelecido esse ponto, dispus-me uma vez mais, a introduzir o tema de que trataríamos nessa aula. Imediatamente alguém quis falar e eu não acedi. Logo se levantaram vozes indignadas em defesa da colega que pusera a mão no ar “A professora não deixa a colega falar! Nós temos o direito de dar a nossa opinião!” Estaquei. Respirei fundo e respondi: “Opinar sobre o quê se eu ainda não comecei?”

Assim está o mundo universitário. Qual será a situação nos níveis anteriores? Posso relatar o que se passou comigo quando, cheia de ideais, resolvi experimentar leccionar no ensino secundário, há quatro anos atrás. Deparei-me com alunos de décimo e décimo primeiro ano que não sabiam conjugar o verbo ser. Quando lhes pedia para lerem em voz alta recusavam veementemente. Depois percebi porquê: soletravam! Hesitavam a cada palavra, incapazes de lerem uma frase inteira até ao fim, quanto mais dar-lhe uma entoação apropriada! Quanto ao significado daquilo que se está a ler, o esforço mental estava todo em conseguir juntar os signos linguísticos e produzir o som adequado. Esgotados, já não tinham forças para tentar perceber o significado daquilo que tinham acabado de ler. Temos, pois, nos níveis complementares de ensino, alunos semianalfabetos. Aqui nos conduziram as políticas educativas que impedem de reprovar um aluno seja em que circunstâncias for. O horror burocrático pelo qual tem de passar um professor que se atrevesse a fazê-lo é tal que ninguém ousa!

Nessas aulas percebi que o máximo que podia fazer era tentar passar alguns valores éticos, porque pedir a esses alunos que não dominam a sua língua materna que reflictam é, como calcularão,

uma impossibilidade!

Nesse mesmo ano foram-me dadas direcções de turma. Entre as tarefas desse cargo estava a de, em horários definidos, permanecer na sala de directores de turma e realizar o trabalho burocrático que me competia. Invariavelmente, havia alguma falha no sistema informático que impedia que a tarefa se realizasse. Porém, mesmo incapacitada de trabalhar naquele horário e naquele local por falta de condições, eu era obrigada a permanecer nesse sítio sob pena de me marcarem falta! Esse trabalho teria de ser depois realizado em casa sobrecarregando ainda mais uma vida já assoberbada. Dei-me conta de que passava mais de 90% do meu tempo a resolver problemas burocráticos, ou técnicos, causados pela tirania informática e administrativa em que vivemos. Deixei de ter tempo para ler.

Ora eu preciso de ler como de respirar, e comecei a asfixiar. Como fariam os meus colegas?

Fui então falar com a directora da escola, uma colega doutorada em Literatura Portuguesa. Revelei a minha angústia e pedi-lhe conselho. Ela ergueu para mim

um rosto tão cansado que já nem a perplexidade assomava: “A Maria João sabe há quantos anos é que eu não leio um livro?”

A minha solidariedade está com todos os colegas professores que apesar de massacrados por um sistema que nos suga a vida e nos maltrata, continuam a lutar por ensinar.

A minha compaixão está com todos os alunos vítimas de embrutecimento mental, resultado do facilitismo a que foram sujeitos num sistema que só pretende resultados estatísticos.

A minha força está com todos aqueles que queiram mudar este estado de coisas

Café Filosófico: SOS Educação

18 Maio 2023 | 18:30 | AP Maria Nova Lounge Hotel, Tavira Contribuição: 5€

Inclui: água aromatizada / cálice de vinho

Inscrições: filosofiamjn@gmail.com

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

17 CULTURA.SUL POSTAL, 5 de maio de 2023
Doutorada em Filosofia Contemporânea Investigadora da Universidade Nova de Lisboa
CAFÉ FILOSÓFICO
Bosque de Filósofos FOTO MARIA JOÃO NEVES | DR

Planta do alçado da fábrica de conservas de peixe da Júdice Fialho de Olhão s/d (colecção do Museu de Portimão)

IMPÉRIO

1ª edição, Olhão: Câmara Municipal, 2001, p. 26 e Biblioteca Nacional

Planta da fábrica de conservas de peixe da Júdice Fialho em Olhão em 1924 (colecção do Museu de Portimão)

Fábrica Júdice Fialho de Olhão

LUÍS DE MENEZES Investigador e Documentalista

Afábrica de conservas de peixe em azeite de Olhão, estava localizada no sítio denominado do Costado, freguesia de Marim, concelho de Olhão, distrito de Faro. Destinava-se a conservas de peixe em azeite, terminando a sua instalação a 20-3-1913 e através de um pedido de alvará de licença para exploração da fábrica passado pela Câmara Municipal de Olhão a 10-91917 e laboração pelo Administrador do Concelho em 22-9-1917, tendo concessão de alvará n.º 939 de 17-5-1923.

Em 20-3-1913, este estabelecimento continha: «3 geradores de vapor; 1 motor a vapor; 5 máquinas cravadeiras; 2 aparelhos de iluminação

“F P”; 3 bombas de alimentação; 2 (…) de puxar água; 2 cofres de ferro para cozer peixe; 1 estufa para ebulição. Pessoal todos nacionais: 1 mestre fabricante de conservas; 3 empregados de escritório; 25 trabalhadores; mulheres, conforme o peixe que houver».1

Na vistoria realizada à fábrica de Olhão pela Inspeção Geral de Fiscalização do Consórcio Português de Conservas de Sardinha a 14-2-1933, constavam 3 caldeiras a vapor (2 do tipo D Babcok e 1 C-F Fourcy Fils), 2 cozedores (1 de 1m,23 de comprimento, 1m,27 de largura e 1m,52 de altura e outro de 1m,25 de comprimento, 1m,26 de largura e 1m,55 de

altura) e 1 esterilizador (de 3m,87 x 1m,25 x 1m,78), 2 caldeiras para peixe grande (1m54 de diâmetro e 0,46 de altura), 6 cravadeiras (5 Karges Hammer (Matador) e 1 de formato redondo). As áreas calculadas nessa vistoria para esta fábrica eram em solo coberto de 9.726m2 e terreno livre 13.282m2. Produzia 848 caixas com o peso líquido de 20.352 kl em 1929, 11.518 caixas com o peso líquido de 276.42 kl em 1930, 21.261 caixas com o peso líquido de 510.264 kl em 1931, 5.925 caixas com o peso líquido de 142.200 kl em 1932, no total de 39.552 caixas e peso líquido de 949.248 kl entre 1929-1934.2

Por despachos ministeriais do Subsecretário de Estado ou do Ministro do Comércio e Indústria era esta fábrica autorizada: a 15-3-1935, a instalar uma máquina de azeitar; a 8-5-1939, a instalar um cozedor simples igual ao aí existente e uma cravadeira Sudry B.C. 15, publicado no Diário do Governo n.º 120 de 255-1939; a 5/7-12-1945, a instalar uma máquina de vazio, que estava isenta de autorização do condicionamento industrial ao abrigo do decreto n.º

32.742 de 8-12-1942.3

Nesta fábrica, existiam os seguintes equipamentos, máquinas e produção de energia em 1939: «Recebia energia para iluminação, da Empresa de Electricidade Olhanense Limitada, possuía 3 geradores de vapor e 1 motor de vapor de 18 C.V. Em relação às máquinas para fabricação de conservas existiam 5 cravadeiras Matador, 1 cravadeira para lata

redonda, 2 cofres simples, 1 bateria de duas caldeiras de fogo directo, 5 carros para cozedura, 6 carros para estufagem, 1 filtro de pressão normal para azeite, 1 máquina de azeitar. Para fabricar guano havia 2 prensas manuais para aperto de desperdício e 2 dornas para os cozer. Como utensílios diversos eram discriminados, 2 caldeiras de lavagem de grelhas, 1 caldeira para estranhar grelhas, 1 caldeira para fazer solda, 1 engenho de furar, 1 forja de fole e 2 bombas de vapor horizontais para tirar água».4

A fábrica de Olhão, produzia 299 caixas em 1933, 6588 caixas em 1934, e o seu melhor ano de produção foi o de 1927 com 20.000 caixas, conseguindo produzir 25 caixas com as cravadeiras existentes na fábrica.5

Segundo Ana Rita Silva de Serra Faria, esta unidade fabril produzia 10.160 caixas de conservas de peixe em 1938, 12.449 em 1939, 10.430 em 1940, 284 em 1941, 1602 em 1942, 4.032 em 1943, 4.547 em 1944, 2.046 em 1945, 6.802 em 1946, 6.626 em 1947, 4.238 em 1948.6 Luciano Cativo, refere que a fábrica de conservas de peixe em azeite de Júdice Fialho em Olhão, situava-se «a seguir aos antigos estaleiros dos irmãos António e José da Graça, hoje Doca Nova, a que corresponde, mais ou menos, a localização da firma Sopursal. Esta fábrica tinha uma ponte de madeira que entrava pelo mar dentro e se destinava à acostagem das enviadas e buques para descarrego do peixe, e também das barcas para embarque das conservas».7

Notícia sobre a visita de António Oliveira Salazar, Ministro das Finanças à fábrica Júdice Fialho de Olhão em 21-11-1931, in Diário de Notícias de 21-11-1931

Em 21-11-1931, esta fábrica recebia a visita de António de Oliveira Salazar, Ministro das Finanças, sendo acompanhado na mesma pelo genro do proprietário: «Vindo de Vila

Real de Santo António, chegou aqui [Olhão] o sr. Ministro das Finanças, que era acompanhado pelo seu chefe de gabinete, pelo sr. governador civil e por algumas individualidades daquela vila (…) Na fábrica Júdice Fialho, cujo proprietário se encontra no estrangeiro, foi o ministro acompanhado na visita pelo genro daquele

D. António de Sousa Coutinho e pelo sr. Emiliano Ramos (…)».8

Foi a fábrica Júdice Fialho de Olhão, expropriada para obras de alargamento do porto de pesca da localidade, por despacho do Subsecretário de Estado do Comércio e Indústria a 10-11-1951, conforme circular n.º 786 do Instituto Português de Conservas de Peixe de 16-5-1952, rondando o montante de indemnização, o valor de 701.712$00 escudos.9

Segundo a planta da fábrica de conservas de peixe da Júdice Fialho em Olhão esta era constituída em 1924:

1 - estrada que liga o terreno da fábrica com a vila, 2 - residência do guarda, 3 - poço que fornece água à fábrica, 4 - armazém para desperdício de peixe: prensas para prensar o desperdício de peixe, 5 - casa de ebulição: estufa (1), máquinas certisseuse de K H (3), motor a vapor (1), árvores de 30.000 de cumprimento e 0,05 de diâmetro (1), prensas à volante SS, tesoura mecânica de K H (1), mesa de soldadores para 18

lugares (1), abatage (2), balancés (4), fieira (4), tesoura de mão (1), aparelho de gasolina completo (1), 6 - casa de enlatar: mesas (12), bancos (12), 7 - casa de azeitar: tinas (6), 8 - casa para as grelhas, 9 - adega do azeite, 10 - casa de descabeçar: geradores de vapor de 27 cavalos tipo Babcot (2), bombas Wortington (2), cosedor para peixe (1), tinas de ferro para lavar as grelhas (2) e mesas para descabeçar (12), 11 - casa do sal, 12 - oficina do serralheiro, 13 - casa do carvão, 14 - chaminé, 15 - hangar para enxugar peixe, 16 - escritório e residência do mestre da fábrica, 17servidão para o rio, 18 - retretes, 19 - tanque de ferro depósito para água: A - logradouro da fábrica, a - casa do gasómetro de gasolina, b - casa da estanhagem das grelhas.

cf. Para a fábrica de conservas de peixe em azeite de Olhão, consulte-se a monografia de Luís Miguel Pulido Garcia Cardoso de Menezes - João António Júdice Fialho (1859-1934) e o Império Fialho (1892-1981), Lisboa: Academia dos Ignotos, 2022, pp. 50-53; e Arquivo Distrital de Faro (ADF), Cota: 5ª CIProc. 1037: Processo n.º 42 Unif. - Alvará n.º 939, documento 1, de 10-9-1917 e documento s/n de 18-5-1950: Relatório do agente fiscal da

5ª Circunscrição Industrial; Arquivo Municipal de Olhão, Licença de Laboração da Fábrica de Olhão de 22-9-1917, Fundo documental do Concelho de Olhão, Série D/C 4, registos de alvarás e licenças 1899-1938; e Jorge Miguel Robalo Duarte Serra - O Nascimento de um império conserveiro: “A Casa Fialho” (1892-1939) [Texto Policopiado], tese de Mestrado em História Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade do Porto, 2007, pp. 65-66.

cf. Ministério do Mar, Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (1936-1986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL, Portimão (S. José). Fab. 4.701.109, 1934. cf. Ministério do Mar, DGRM, Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (1936-1986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL., Olhão, Portimão, Sines, 1936 e Portimão (S. Francisco). Fab. 4.701.108, 1934.

4cf. ADF, Cota: 5ª, CIProc. 1037: Processo Nº 42 Unif. - alvará n.º 939, documento 6 v.º, de 10-2-1939. cf. ADF, Cota: 5ª CIProc. 1037: Processo Nº 42 Unif. - Alvará n.º 939, documento s/n de 21-2-1935 e Jorge Miguel Robalo Duarte Serra, op. cit., p. 100. 6cf. Ana Rita Silva de Serra Faria - A organização contabilística numa empresa da indústria de conservas de peixe entre o final do século XIX e a primeira metade do séc. XX: o caso Júdice Fialho”, Tese de Mestrado, Universidade do Algarve / Universidade Técnica de Lisboa, Faro, 2001, Anexos, quadro II. 7, op. cit., p. 15. cf. Luciano Victor Cativo - Ainda Olhão e a Indústria de Conservas de Peixe, 1ª edição, Olhão: Câmara Municipal, 2001, pp. 26 e 105. cf. Diário de Notícias, ano 67º, n.º 23640 de 22-11-1931, p. 1, Diário da Manhã, ano 1, n.º 232 de 21-11-1931, p. e Século, ano 51, n.º 17853 de 22-11-1931, p. 7. 9cf. Ministério do Mar, DGRM, Arquivo do Instituto de Conservas de Peixe (1936-1986), Júdice Fialho, Conservas de Peixe, SARL., Olhão, Portimão, Sines, 1936 e Diário de Notícias de 12-1-1952.

18 CULTURA.SUL POSTAL, 5 de maio de 2023
JÚDICE FIALHO
Fábrica Júdice Fialho de Olhão cerca de 1918, in Luciano Victor Cativo - Ainda Olhão e a Indústria de Conservas de Peixe,

O inventor do flash sincronizado

MAURO RODRIGUES

Membro da ALFA

- Associação Livre Fotógrafos do Algarve

Por volta de 1887, os inventores germânicos, Adolf Miethe e Johannes Gaedicke criaram uma forma de iluminar ou introduzir luz artificial, melhorando a exposição no geral da cena fotográfica à sua volta com literalmente uma pequena explosão, misturando dois pós químicos, magnésio e clorato de potássio. Esta mistura era acionada manualmente e colocada numa pá metálica, criando um som característico, fumo e muita faísca. Este tipo de utilização e explosão poderia correr mal se o material não estivesse em condições, e as pessoas que o operavam po-

diam até correr risco de vida. Dado este facto, esta técnica foi transferida para uma lâmpada, o pó ficava contido e haveria menos risco para os fotógrafos e pessoas em redor. Joshua Lionel Cowen em 1899 patenteou uma forma de ignição do pó através de baterias e fio que atravessava a lâmpada. Diversas variações e alternativas, muitas delas amadoras prevaleceram até 1929, onde se distinguiu a lâmpada de arco voltaico, mas muitas destas variações apresentavam resultados insatisfatórios, pois a queima era inconstante e a vida útil muito curta, exigindo constante manutenção. O pó foi eventualmente substituído por um gás bem conhecido, o oxigénio e filamentos de magnésio. Estas lâmpadas eram eletricamente aciona-

das através do mecanismo de disparo contido na própria máquina fotográfica, mas apenas funcionavam uma vez e ficavam extremamente quentes, não podendo ser manuseadas logo após o disparo. Mais tarde foi introduzido um plástico envolvente azul para simular a temperatura diurna do meio-dia, a famosa luz branca ou neutra e o magnésio substituído por zircónio de forma a produzir uma luz mais brilhante. O problema é que estas lâmpadas demoravam muito tempo a aquecer e a duração do flash era muito grande, o suficientemente para os fotógrafos serem obrigados a usarem tempos de exposição mais longos, tipicamente entre 1/10 e o 1/50 por segundo. Foi precisamente por volta de 1947 que o prolífico inventor

Artur Fischer, famoso por muitas outras invenções, pelo menos 1.100 invenções, como por exemplo a famosa bucha de plástico ou os brinquedos de construção Fischertechnik, parecidos com Lego, mas de uma complexidade muito maior, patenteou o tão famoso mecanismo sincronizado para flashes, permitindo assim que as câmaras fotográficas e o flash pudessem “conversar um pouco melhor” e adaptar a duração e momento preciso em que o flash disparava após carregar no botão.

Uma invenção que melhorou consideravelmente as condições e os locais, principalmente em interiores que se fotografava o que expandiu a criatividade de vários tipos novos de fotografia. O

OS DIAS CLAROS

Celtas e Mouros, a genética populacional

AGenética é a área da Biologia que analisa os processos de transmissão hereditária.

Um dos seus ramos, a genética populacional, revela a diversidade, selecção natural, padrões de acasalamento e mutações genéticas, permite estabelecer itinerários migratórios, a “pegada humana”, disponibilizando, entre outros conhecimentos, a origem e desenvolvimento de doenças hereditárias em determinadas comunidades e grupos.

Na base da genética populacional encontra-se a investigação do ADN mitocondrial, transmissão por via feminina das características de cada ser humano, designada por “Eva mitocondrial”. As técnicas de análise do ADN mitocondrial surgiram sobretudo a partir de 1981, incidindo sobre as mitocôndrias responsáveis pela respiração e energia celulares. Hoje é possível determinar linhagens antigas, mais difícil será estabelecer a história genética

recente, porque os processos de transmissão ocorrem no tempo longo e por gerações.

Em Portugal é corrente ouvir-se falar em “celtas” a norte e “mouros” a sul, como se os portugueses fossem grupos étnicos genética e culturalmente diferenciados.

Mas o que revelou a genética populacional?

Nas últimas duas décadas sete estudos internacionais, utilizando metodologias diferentes, concluíram pela presença no noroeste peninsular da linhagem U6 dos berberes, correspondendo às regiões das Astúrias, Leão, Galiza e norte de Portugal. A revelação causou surpresa por serem zonas mais distantes do Norte de África, com menor controlo político muçulmano.

Entre os trabalhos publicados, encontram-se vários de investigadores portugueses do IPATIMUP, Luísa Pereira, António Amorim e outros, divulgados nomeadamente pelo “International Journal of Legal Medicine “abordando o património genético do País.

A população portuguesa, segundo a investigação genética, integra linhagens do neolítico, o haplogru-

po H, que resultam de migrações do Médio Oriente para a Europa, logo surge a linhagem característica das populações magrebinas, o haplogrupo U6, praticamente ausente no resto da Europa e ainda o haplogrupo L, resultante das colonizações do século XV-XVI, transmissões genéticas a partir de indivíduos vindos da África subsaariana por via da escravatura.

Os estudos em Portugal revelaram que o haplogrupo U6 dos berberes aparece com maior incidência no norte do País (5%), do que no centro (3%) e sul (2%), confrontando algumas teses do medievalismo tradicional.

Nos últimos anos surgiu investigação e bibliografia científica que questiona a “invasão árabe” ou “islâmica” de 711 d. C, não só porque o Islão se consolida mais tarde, também porque há registos de fixação de populações vindas do Magrebe em séculos anteriores, facto normal dada a facilidade de navegação e de atravessamento do Estreito de Gibraltar, apenas 16 quilómetros separam os dois continentes. É por outro lado conhecida a resistência berbere à colonização árabe, na-

tural que comunidades berberes tenham ido para a Galiza e zonas próximas dos Pirenéus.

A “reconquista cristã” teria por objectivo recuperar territórios perdidos, justificou a unificação das Espanhas pelos reis católicos, à qual apenas o Reino de Portugal não foi incluído até 1580.

A ocupação cristã do Sul, menos povoado, fez-se com a participação das ordens militares e milícias feudais que praticavam a endogamia, os não cristãos eram separados em “mourarias” e “judiarias”, bairros de onde apenas saíam de dia para trabalhar. Para o norte e centro do País, de propriedade mais fraccionada, carecida de mão de obra camponesa, terão ido famílias muçulmanas que acabariam por se integrar e se transformar em pequenos proprietários. Por aprofundar estão as consequências das deportações para o interior da Península dos “mouriscos” revoltosos de Alpujarras (1567-1571), décadas após à queda do reino nazari de Granada. O processo de “cristianização” forçada, que atingiu primeiro os judeus, culminou com a expulsão para o Norte

de África, entre 1609 e 1613, por decisão de Felipe III sob controlo da Inquisição, de cerca de meio milhão de “mouriscos”, que desde sempre viveram na Península.

Após mil anos de permanência de diferentes tradições culturais ibéricas, apareceu uma História eminentemente ideológico-religiosa, centrada na competição entre povos e culturas, na construção do Outro, baseada na lenda e na fé, explorada no interesse dos diferentes poderes. O Al Andalus é hoje reconhecido como uma das fontes da civilização europeia, evidencia-se nele características ibéricas particulares. Investigadores de diferentes origens e especialidades, identificaram neste centro de conhecimento partilhado o primeiro Renascimento que influenciou as universidades, na filosofia, medicina, ciências e artes por toda a Europa medieval. A genética populacional e outras ciências ligadas à História Cultural, permitem-nos entender melhor da história do País e do mundo, propor as revisões necessárias e normais alterações.

*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

19 CULTURA.SUL POSTAL, 5 de maio de 2023
inventor Arthur Fischer faleceu a 27 de janeiro de 2016.
ESPAÇO ALFA
O inventor alemão Arthur Fischer, segurando uma réplica aumentada da sua invenção mais popular, a bucha de plástico, mas também foi o responsável pela criação do mecanismo do flash, que veio melhorar significativamente a criatividade fotográfica FOTO DR

Biblioteca Municipal Carlos Brito

Uma janela poética para o Rio Guadiana

de ir a este espaço não só pela imprensa diária, mas também pelas novidades literárias e por ser um local histórico: a antiga Casa dos Condes de Alcoutim. Falou da importância das bibliotecas para incentivar o gosto pela leitura, principalmente com iniciativas em torno do livro infanto-juvenil.

Com 90 anos já feitos, Carlos Brito publicou recentemente um novo livro de poesia, (o sétimo) a que deu o título Estar Presente. Logo na primeira página explica-o, num curto poema: “Estar presente o lema que adoptei depois de ausente nesta fase da idade. Não me basta assistir mas intervir como posso e sei na actualidade.”

músico, poeta e também deputado à Assembleia Constituinte em 1974. Reza a história que quando D. Sebastião visitou Alcoutim, a Condessa convidou o Rei, que chegou pelo Rio Guadiana, para um almoço em sua casa.

MARIA LUÍSA FRANCISCO

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Programadora Cultural luisa.algarve@gmail.com

No passado dia 25 de Abril a Biblioteca Municipal de Alcoutim passou a ter como patrono o poeta e resistente Carlos Brito. Foi deputado da Assembleia Constituinte pelo círculo eleitoral de Faro e foi durante 15 anos deputado e líder parlamentar do PCP na Assembleia da República.

A data não poderia ser melhor escolhida, pelo Município, para atribuir a nova designação: Biblioteca Municipal Carlos Brito. Foi especial assistir ao momento em que foi descerrada a inscrição em ferro forjado que está, desde o Dia da Liberdade, no exterior do edifício, agora Biblioteca Municipal Carlos Brito e constatar o brilho no seu olhar. Tanto mais que foi surpreendido com um busto também em ferro igualmente no exterior da Biblioteca, como se pode ver na imagem.

O dia dos 49 anos da Revolução de Abril foi marcante para uma personalidade que sempre associamos à luta pela liberdade. Um momento importante na vida de um homem persistente que foi o convidado de honra na cerimónia comemorativa do 25 de Abril no Salão Nobre dos Paços do Concelho.

Depois de agradecer a homenagem, Carlos Brito disse publicamente:

“Nenhuma distinção tocaria de maneira tão profunda o meu coração, tanto pela deferência que comporta, como o simbolismo de que se reveste. Vejo nela uma alusão à minha ligação aos livros, à leitura, à escrita e à cultura. Mas sinto nela, sobretudo, uma referência à minha participação nas lutas pela liberdade e a justiça social, que antecederam e se seguiram ao glorioso 25 de Abril de 1974 e aos próprios acontecimentos desse Dia Memorável, em que a ditadura fascista, num golpe de misericórdia, foi finalmente derrubada.”

Os livros de Carlos Brito

Carlos Brito frequenta quase diariamente a biblioteca da sua terra, onde tantas vezes tem colaborado em actividades de dinamização cultural e cívica e contribuído para aumentar o espólio da mesma. Lá podem encontrar-se exemplares dos seus cerca de 20 livros. No final das cerimónias conversamos brevemente sobre a importância das bibliotecas. Carlos Brito é muito atento à actualidade e não dispensa a leitura matinal de jornais. Falou da crise do livro e de tudo que é leitura em papel. Referiu que agora já não se vende jornais diariamente em Alcoutim e que lê alguns jornais na Biblioteca. Gosta

Num outro, igualmente curto, fala do seu dia, assim: “Um pé na poesia outro nas plantas do quintal pautam o meu dia desde que saí do hospital. E não sei qual me dá mais felicidade ambos afastam a nostalgia e a saudade.”

Estar Presente foi apresentado, em Faro, pelo poeta e escritor José Carlos Barros, numa sessão muito participada e também em Coimbra e Lisboa, depois de um pré-lançamento em Alcoutim.

A Casa dos Condes

O edifício da imagem, conhecido por Casa dos Condes, foi remodelado em 1997/8 pela autarquia e, no seu interior, foi instalada a Biblioteca Municipal e uma sala de exposições temporárias. Trata-se de um edifício medieval, que terá sofrido algumas transformações arquitectónicas realizadas por engenheiros militares, durante os séculos XVII e XVIII.

Edifício singular com escadaria de duplo acesso que interrompe a via pública. No interior existe um pequeno pátio com um poço como elemento central e que é usado para algumas das actividades da Biblioteca, nomeadamente “A Palavra Sexta à noite”.

Foi nesse pátio que, em homenagem a Carlos Brito e ao 25 de Abril, algumas canções de intervenção foram cantadas pela voz de Afonso Dias,

Esta Biblioteca foi casa de habitação dos Condes de Alcoutim e, posteriormente, de outras famílias, onde ainda se mantêm as divisões casa na sua versão original. Tem uma excelente localização, junto ao Rio Guadiana, em pleno centro da vila.  Os estrangeiros proprietários de barcos, que estão no Rio Guadiana, costumam frequentar a Biblioteca. Não só para consultar a internet, livros e jornais, mas também para participar nas actividades culturais e alguns até já mostraram trabalhos artísticos na sala de exposições temporárias. Vale a pena visitar Alcoutim, o Rio Guadiana, o Castelo, o Museu e a Biblioteca.

Tive a oportunidade de assistir a um dia especial na vida de um homem que faz parte da história portuguesa e de quem sou amiga desde 2009, quando trabalhámos conjuntamente na Direcção da Associação Transfronteiriça Alcoutim Sanlúcar (ATAS).

Através do Instagram Bibliotecofilia poderá ser vista a gravação dos principais momentos de um dia histórico para Alcoutim e para Carlos Brito.

*A autora escreve de acordo com a antiga ortografia

20 CULTURA.SUL POSTAL, 5 de maio de 2023 BIBLIOTECOFILIA
Exterior da Biblioteca Municipal Carlos Brito FOTOS MARIA LUÍSA FRANCISCO | DR
Carlos Brito e esposa, Rosa Brito, no final da Cerimónia de descerramento da placa enquanto patrono da Biblioteca Intervenção de Carlos Brito nas Cerimónias do 25 de Abril após ter sido distinguido com a atribuição do seu nome à Biblioteca FOTO MUNICÍPIO DE ALCOUTIM | DR

CRÓNICAS DE UM BEDUÍNO

Contra os concursos literários só tenho uma caneta

Biografia de Cobramor

Cobramor é o pseudónimo de Hugo Filipe Lopes, escritor amaldiçoado, poeta contrariado, tradutor, editor e guerrilheiro e curador.

Licenciado em sociologia, trabalha como copywriter publicitário criativo desde 2010, paralelamente à actividade literária. É tradutor e editor na Traça Edições e programador cultural na associação cultural CAL, tendo sido o criador do Clube dos Poetas Tortos que vai na sua quarta edição.

Foi premiado no concurso Lisboa à Letra em 2004 e em 2006 obteve uma menção honrosa no concurso Textos de Amor da Casa da Imprensa. Desde então tem escrito para diversas publicações, quer nacionais, quer internacionais, desde o suplemento do jornal Público até ao Bandcamp, passando pela revista DIF, Palavrar, Mapa, Umbigo, Gerador e Vice.

Fez também traduções literárias de nomes como John Zerzan, Robert Frost, Patti Smith ou Bill Wolak.

Conta com participações em diversos eventos literários, como a Feira do Livro de Lisboa ou o Festival Conexões Atlânticas.

COBRAMOR

Parte do problema será certamente meu. Medo de perder ou provavelmente de competir. Mas isso não é necessariamente mau numa sociedade assente no crescimento infinito e na competição incessante. Já houve um tempo em que concorri a vários concursos literários. Ganhei um e obtive uma menção honrosa noutro. Foi há décadas. Entretanto o mercado editorial mudou e não necessariamente para melhor. Grande parte devido às falsas editoras. Falsas na medida em que são um esquema de pirâmide em que o autor se compromete a adquirir dezenas de exemplares do seu livro no valor de várias centenas de euros, cujo ónus da venda fica depois nele. Entretanto, nem revisão nem promoção.

As redes sociais também vieram alterar as regras do jogo da forma que as redes sociais o fazem. Tornando tudo num concurso de popularidade. Como se mais seguidores implicassem mais vendas. Descontextualizando excertos de livros e poemas ou citações e tornando uma coisa em algo totalmente diferente. Podemos ver isso acontecer com Bukowski, em vias de passar de escritor maldito a guru de autoajuda. O mercado editorial mudou mas a lógica de funcionamento não. O que importa são as vendas. Portanto o que importa são as tendências do momento. Não verdadeiramente a relevância das temáticas ou a importância do que é escrito, mas se os ventos estão favoráveis. A indústria, seja ela de que espécie for, não tem estados de alma sobre nenhum assunto excepto o lucro. Fascistas ou anar-

quistas são apenas nichos de mercado. Como o são a ecologia, a identidade de género ou étnica. O único valor que resiste é o ganho. Os concursos operam na mesma base. A do concurso de popularidade e das tendências.

Não é o único factor a considerar, obviamente. Frequentemente os júris são pessoas cujas competências literárias deixam muito a considerar. O que leva à questão da qualidade. A qualidade é mensurável?

E se sim, qual o instrumento de medição? Vendas? Fama? Seguidores? Reconhecimento dos pares? E quem está habilitado para o fazer? Se assim for, o que dizer de Pessoa, por exemplo? Será necessário morrer para ser um autor de referência?

Pessoa hoje em dia é mais uma comodidade do que um escritor. É também o salvo-conduto para as centenas de pessoas que pouco ou na-

da lêem, algumas das quais que se afirmam escritores. É sempre possível fazer uma citação de Pessoa que se viu no Instagram qual ilusionista a tirar um coelho da cartola.

Finalmente, a forma como se tratam os participantes. O vencedor recebe alvíssaras, nos casos em que isso acontece. Já os restantes, recebem spam no email ou se tiverem sorte, são ignorados.

Tal como já fui premiado, já fui ignorado. Mas há muito que decidi deixar de participar em qualquer tipo de concurso literário. Talvez eu não saiba escrever. Talvez não tenha qualidade literária. Talvez não seja vendável. Talvez a minha atitude seja deplorável. Todas podem ser verdade. Não muda uma coisa: porque deveria alguém colocar-se na situação de ser avaliado por outros, excepto se houver algum tipo de interesse

É responsável pela curadoria do evento Casa dos Poetas em Silves, único festival anglo-lusitano de Portugal e colabora como o festival ConVento Levante.

Publicou o seu primeiro livro, “O Fim da Noite” em 2016 pelas Publicações Nabo e o seu mais recente trabalho, “Sol Invicto”, pela Traça Edições. Editou recentemente um livro infantil pela Toth, intitulado “O Atlas do Coração”.

Mais em www.cobramor.com

material na equação? Colocando-se numa espécie de negociação, sujeitando-se a um juízo de valor subjectivo em troca da possibilidade de obter um prémio monetário ou um contrato.

Para depois, poder incluir o mesmo no currículo e dessa forma, talvez abrindo algumas portas. Porque operamos sempre numa impostura de meritocracia, onde, como é da sua natureza, as oportunidades não são iguais para todos. E portanto, os resultados também não.

O público não decide o que quer ler, até porque pouco lê e quando o faz, não procura activamente. Recebe sugestões validadas pelos júris e especialistas culturais da nossa praça, com o CV a acenar qual bandeira, as medalhas ao peito e os galões aos ombros. Que não haja ilusões, não é por serem com escritores que os concursos literários são diferentes do Ídolos ou do The Voice.

21 CULTURA.SUL POSTAL, 5 de maio de 2023
*O autor escreve de acordo com a antiga ortografia FOTO DR

Entrevista a Lídia Jorge sobre Misericórdia

“Escrevi este livro apenas para falar da da sua capacidade de sonhar e realizar

Misericórdia, o novo livro de Lídia Jorge, foi publicado no ano passado e encontra-se agora na 4.ª edição. Como tem vindo a ser hábito, a Lídia Jorge deu uma entrevista ao Cultura.Sul sobre o seu mais recente romance. Depois de Estuário ter anunciado uma nova fase na escrita da autora algarvia, este é um livro inteiramente novo na sua obra literária, integralmente publicada pela Dom Quixote. Para quem conhece a autora e acompanhou a sua vida nos últimos anos, percebe de imediato os laivos pessoais deste livro. Leia-se um excerto do comunicado divulgado na altura do lançamento do livro:

“Um livro diferente, que Lídia Jorge nunca esperou escrever, acabando por fazê-lo para corresponder a um desejo da sua mãe que, internada numa instituição para idosos, várias vezes lhe pediu que escrevesse um livro chamado Misericórdia, que fosse um testemunho de compaixão para com aqueles que estando limitados pela sua condição de grande precariedade, vivem uma vida de resistência escondida.

A última vez que esse pedido foi feito coincidiu com a última vez que Lídia Jorge esteve com a mãe – dia 8 de março de

2020. A partir desse dia, a instituição onde se encontrava, como todas as outras do mesmo género por toda a parte, entraria num isolamento com tudo o que isso significou de dramático. Perante esta realidade, o pedido da mãe de Lídia Jorge assumiu um relevo absoluto.”

Misericórdia é uma narrativa híbrida, entrelaçando o romance, o diário íntimo, o memorial, a biografia e a crónica. Uma nota inicial indica que estas páginas se tratam de uma transcrição de várias gravações áudio.

Maria Alberta Nunes Amado encontra-se num lar, onde convive com vários outros idosos e funcionários. Hotel Paraíso parece ser um lugar acolhedor, onde estes idosos são bem acompanhados. Dona Alberti, como é apelidada, tem a filha longe, algures no Chile, e vale-lhe as visitas do genro para a atualizar. Persegue-a uma memória fugidia e incerta, um lugar cujo nome não consegue situar. Da mesma forma que muitas vezes Dona Alberti, embora seja capaz de nos deixar este diário, parece não conseguir encontrar as palavras necessárias para expressar o que lhe vai na alma. Certo dia, um dia que se demarca dos demais, e parece marcar uma cisão,

temente voando em torno do mesmo assunto e de si próprios. E há os que a cada livro levantam um mundo, constroem-no, destroem-no, e partem para uma nova aventura no livro seguinte, erguendo de novo um outro mundo. Saramago incluía-se neste segundo grupo. Salvas as devidas proporções, também é neste segundo grupo que me incluo.

um garboso idoso dá entrada no lar, o sargento João Almeida. Lídia Jorge estreou-se com a publicação de O Dia dos Prodígios (1980). Os seus livros têm sido adaptados para teatro e cinema, e têm sido distinguidos com os mais relevantes prémios literários nacionais, alguns deles pelo conjunto da obra, como o Prémio da Latinidade, o Grande Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores – Millennium BCP ou o Prémio Vergílio Ferreira. Largamente traduzida e estudada também no estrangeiro, recebeu prémios internacionais como o Prémio ALBATROS da Fundação Günter Grass, o Grande Prémio Luso-Espanhol de Cultura e o Prémio FIL de Literatura em Línguas Românicas de Guadalajara em 2020.

Em 2022, foi inaugurada, nos Estados Unidos da América, a Cátedra Lídia Jorge, criada e anunciada pela Universidade UMass Amherst, no Massachussets.

Mais recentemente, no passado dia 28 de abril, Lídia Jorge foi anunciada vencedora, por unanimidade do júri, da segunda edição do Prémio Vida Literária Vítor Aguiar e Silva, instituído pela Associação Portuguesa de Escritores em parceria com a Câmara Municipal de Braga.

idosa, que era também a mais frágil, imediatamente remetida a um confinamento e isolamento dramáticos, ao ponto de nem ser possível visitar familiares ou de os enterrar condignamente, como forma de fazer o nosso próprio luto.

amigos. Afinal, escrevi este livro apenas para falar da resistência dos seres humanos, da sua capacidade de sonhar e realizar a partir das forças mínimas. Sobre o fulgor da vida.

PAULO SERRA

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do Centro de Investigação em Artes e Comunicação (CIAC)

P Estuário já anunciava uma nova fase na sua escrita. Com este livro marca uma vez mais uma nova fase, e possivelmente um momento único, na sua obra. Afinal este livro, e o próprio título, resultam de um pedido que a fez colocar de

lado outro romance em curso. A própria história de como este livro nasce parece em si romanceada. R Compreendo o seu comentário. Mas tenho dificuldade em responder de forma esclarecedora. Essa questão, a da continuidade, rotura e ciclos, faz-me recordar o que o Académico que entregou o Prémio Nobel a José Saramago disse na altura. Foi mais ou menos assim – Há escritores que são como os condores (houve quem traduzisse do sueco por abutres) que andam permanen-

P Numa entrevista ao Cultura. Sul, em 2021, teve oportunidade de explicar como gosta de inserir subtilmente elementos de romances anteriores nas suas obras. É isso que acontece, uma vez mais, com o Globo Terrestre de Maria Alberti Atlas, que se liga à corrente como um candeeiro, de uma luz esverdeada, e lembra o globo azul de Estuário. Nas suas próprias palavas, em entrevista, afirmava que nessa “forma esférica perfeita também está encerrada a forma utópica de salvar o mundo”. R Não me lembrava dessa menção. De facto, o Atlas é um elemento de que me sinto próxima. Talvez coisa da infância. Atlas, globos terrestres, olhar para eles era a minha forma de viajar quando as distâncias geográficas percorridas eram tão curtas. Também em O Vale da Paixão a manta do soldado se transforma num atlas. Todos nós temos objetos-chave que alimentam a vida. Dona Alberti, limitada pelas paredes de um quarto, conseguia liberta-se porque mantinha a capacidade de imaginar outros lugares. Um gosto partilhado.

P Aquilo que acontece no Hotel Paraíso é apenas um reflexo do que aconteceu um pouco por todo o mundo, com a geração mais

R O isolamento dos idosos constitui um problema como é sabido. As sociedades modernas não conseguem resolvê-lo satisfatoriamente, como está bem patente. Mas a pandemia, que foi global, que obrigou a um sobre-isolamento, acabou por nos colocar perante uma situação nova e inesperada. Ficámos desarmados diante da situação. Foram dias extravagantes, desertos, silêncios e aprisionamentos. A nossa precariedade foi posta à prova, e também a nossa capacidade de superação, mas ainda estamos longe de retirar conclusões.

“Misericórdia é uma história, e não pretendeu denunciar, apenas mostrar”

P É um livro duro, onde transparece a realidade do que acontece nos lares, a rotatividade dos cuidados, a falta de cuidados, uma certa brusquidão das pessoas que por lá trabalham, os cuidadores que são predominantemente imigrantes.

R Misericórdia é uma história, e não pretendeu denunciar, apenas mostrar. Escrevi-o como uma viagem pelo interior da intimidade dos fragilizados, vítimas de condições precárias, ora em tom trágico ora em tom irónico e até cómico, como na vida. Por isso, na história que conto, os cuidadores não são homogéneos, também há figuras formidáveis que estão atentas, que respeitam os idosos, que são seus

P Há ainda, e creio ser algo que tem sido pouco falado, uma série de episódios revestidos da natureza alegórica dos seus primeiros livros. Refiro-me às formigas que ameaçam devorar os idosos do lar… Não fosse o triste facto de esta triste série de eventos ter ocorrido efetivamente num lar no Algarve. R Há coincidências impressionantes neste mundo. De facto, desde O Dia dos Prodígios que as formigas invasoras perpassam pelas minhas narrativas. A presença de seres minúsculos que surgem como pragas sempre me impressionou. Coisa dos países do Sul, creio. Ítalo Calvino também foi tocado pela presença das formigas, leia-se A Nuvem de Smog e a Formiga Argentina. Em Misericórdia, eu simplesmente usei a invasão das formigas como um sinal de que uma outra invasão, a do vírus, vinha a caminho. Afinal, um recurso literário que iria ter correspondência num facto real que acabaria por ter lugar no mesmo espaço que me havia servido de cenário para a ficção. Isto é, o texto escrito antecedeu esse certo episódio paralelo posterior que, uma vez sobre-difundido, acabou por ter um forte impacte na população portuguesa. Mas eu não adivinhei nem chamei as formigas, foi coincidência.

P À medida que os acontecimentos se precipitam e se torna claro que assistimos ao desenrolar da pandemia, a narrativa de

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Lídia Jorge tem sido distinguida com numerosos prémios em Portugal e no estrangeiro FOTO FRANK FERVILLE | DR

resistência dos seres humanos, a partir das forças mínimas”

Alberti continua de uma forma ingénua a não ter em devida conta a verdadeira dimensão dos acontecimentos. O que aconteceu, provavelmente, com todos aqueles que se viram fechados e arredados do mundo para sua própria proteção, ou por medo dos de fora.

Aquilo que aqui parece alegorização pode ser, afinal, o desconhecimento possivelmente imposto em instituições deste género?

R Não posso generalizar. Creio ter descrito em Misericórdia o sentimento de surpresa que dominou aqueles primeiros meses de 2020. A tentativa de ir respondendo às situações momento a momento, quando tudo era dúvida sobre a dimensão do desastre, quando não havia ainda nem meios de higienização adequados nem vacinas, nada de nada. Os próprios profissionais da saúde infetados continuavam a trabalhar, exaustos, sem ainda se ter a noção de que infetavam os outros. Se este livro ajudar a reconstituir esses dias de perturbação, seria um contributo para alimentar a memória que é bem curta, no meio da rapidez em que vivemos, e desembocados que estamos em catástrofes de outras dimensões, como são a brutalidade da guerra e a histeria das sociedades desorientadas pela desinformação.

Seja como for, Misericórdia é apenas um livro de ficção.

P No quotidiano de Alberti, ainda assim, a beleza dos dias, especialmente pelas memórias, das flores no seu jardim, nunca é abafada pela sombra dos dias, e continua a rematar cada jornada com pequenos versos. Criação da autora ou transmissão de um legado?

R A resposta justa e honesta é a do meio termo. As últimas palavras escritas pela figura que deu origem a dona Alberti eram quase ilegíveis, e as frases sincopadas, sem pontuação. Eram simulacros de páginas de um diário que já não se escrevia como antes, mas ainda havia algumas marcas escritas. Palavras isoladas no meio da folha. Isto é, sínteses de pensamentos a um milímetro de serem poemas.

“Dona Alberti representa uma geração de mulheres que atravessaram o Estado Novo amarradas a vidas limitadas”

P Nos seus romances temos, quase sempre, uma jovem protagonista, de olhar inocente e desarmado,

que aprende de algum modo a maldade sobre o mundo. Penso que pela primeira vez, Misericórdia traz-nos uma voz narrativa que, a acompanhar a idade, é também mais crítica. Isso nota-se sobretudo no conflito que se estabelece com a filha escritora e nas exigências e acusações que lhe faz, desde o desmazelo com a roupa à dispersão com a escrita ou ao desarranjo na rotina dos dias. Estamos ainda no domínio da ficção, ou há aqui alguma projeção…

R Há uma certa projeção. Na verdade, essas passagens, que roçam a crónica biográfica, só aí estão referidas para vincarem o retrato do carácter de uma mulher batalhadora. Dona

Alberti representa uma geração de mulheres que atravessaram o Estado Novo amarradas a vidas limitadas, mas que desejaram para as suas filhas e os seus filhos um mundo novo. Proporcionaram-lhes autonomia, preparação escolar e académica, desejaram que a geração que iria ser sua descendente encontrasse formas de libertação à altura.

A sua visão é a da pessoa comum, aquela que associa linearmente a escrita e a publicação ao triunfo.

P Tão depressa critica, aliás, como logo depois defende a filha, perante um grupo de viúvas religiosas: “Pois fiquem a saber que todas as palavras que a minha filha escreve também são ditadas por Deus. Ela senta-se à mesa, olha para cima, para as alturas, e Deus dita-lhe o que ela deve escrever. Os livros da minha filha também são sagrados, também são ditados pelo Criador. Quem pensam vocês que ela é?” (p. 241) R Sim, ela balança entre o aconselhamento, seguindo modeles empíricos, e procedendo em privado a críticas severas para estimular a correcção do trabalho da filha, mas em público consegue enaltecê-la sem medida. Naturalmente. Como disse, trata-se da pintura de uma personalidade enérgica. Na passagem citada, perante o denegrir do trabalho da filha, por parte das quatro mulheres piedosas, ela encontra uma forma de as afrontar assumindo que Deus também está presente na escrita profana.

P Em contrapartida, Dona Alberti muitas vezes tenta encontrar as palavras, mas vê-se incapacitada, quase como se a voz lhe faltasse, como as próprias mãos já lhe fraquejam e não lhe permitem escrever com a segurança de outrora… R Sim, dona Alberti deixou de poder suportar na sua mão, quer a agenda onde escrevia o seu diário, quer uma esferográfica normal. Os seus instrumentos de escrita foram-se reduzindo até serem apenas papelinhos soltos onde desenhava palavras com pontas de lápis.

de vir sempre ao mesmo ponto e repetir cenas e ideais. Mesmo quando quero afastar-me desse processo, apenas consigo escondê-lo. Tem a ver com a forma como as primeiras imagens de um livro surgem. Este modo tem vantagens e tem limitações. Cada um tem as suas.

“Este livro fala do poder de escrever, ler em voz baixa e em voz alta, o poder libertador de deixar palavras escritas”

P Misericórdia é também um hino à literatura. Uma parte da beleza dos dias de Alberti – podemos ler a certa altura de como “Este foi um dia belo e um dia tremendo”(p. 72) – acontece também quando ela é visitada por um jovem leitor.

E o poder da leitura é de tal forma encantatório que o jovem, aparentemente feio, se transfigura, da mesma forma que a história, horrível, se torna enfeitiçantemente bela: “O rapaz leitor, de sobrancelhas espessas, que eu achara feio e era belo, também.” (p. 296)

R Sim, este livro fala do poder de escrever, ler em voz baixa e em voz alta, o poder libertador de deixar palavras escritas. Os dois contos de Luís Sepúlveda que são lidos pelo rapaz a dona Alberti permitem o esclarecimento sobre o que é a Literatura, através do diálogo entre dona Alberti e o rapaz. Vejo que o Paulo põe em evidência uma passagem do Capítulo 5. Foi lido na apresentação deste livro pela Ana Zanatti. Os escritores vivem de pequenos nadas. Esse momento foi um nada que se transformou em tudo. Agora, quando volto a abrir Misericórdia, dona Alberti fala com o timbre de voz de Ana Zanatti.

certeza de que a Terra era um local de fragilidade, perdido no Espaço? - Era-me tão claro. Mas agora sinto-me envergonhada. Qualquer pessimista, e até mesmo qualquer cínico de taberna, era mais esperto do que eu. Ainda o ciclo da pandemia não tinha terminado e desencadeia-se uma guerra de uma crueldade sem limites no meio da Europa. Não escondo que sinto uma enorme amargura, e por vezes desesperança. Estamos tal qual como na Idade do Bronze, quando Homero escreveu as epopeias sobre a carnificina no Mediterrâneo Oriental, só que no século XXI temos meios letais que dão para explodir dois planetas. Afinal confirma-se que não há ciclos, a História é só um ciclo de violência após violência. É triste o momento que passa.

P Em 2021, a Lídia foi convidada a substituir Eduardo Lourenço como membro do Conselho de Estado. Pode falar-nos um pouco do que representa para si esta responsabilidade e honra enquanto Conselheira.

R Aceitei porque significava ir tomar o lugar de um amigo, ainda que a distância a que me encontro de Eduardo Lourenço seja a que se sabe. Enquanto Eduardo Lourenço poderia falar a partir do ponto de vista próprio de um erudito na área da História da Cultura e da Filosofia, eu coloco-me na perspectiva de alguém que fala a partir da observação da vida comum. É esse o ponto de vista de um escritor como eu, não é outro. Mas essa participação não passa pela honra, passa pela verdade.

P A mãe acha a filha “fraca” (p. 84) e acusa-a de que o “remate” dos seus livros é “completamente desajustado em relação à forma como os finais devem ser” (p. 86).

R Dona Alberti, do ponto de vista da instrução, é uma mulher colocada sobre o muro, entre o mundo rural arcaico e um outro, cultivado, já moderno, a caminhar para o tecnológico. A personagem, autodidacta, leitora informal, habitada pelo desejo do conhecimento, claro que só poderia ter visões simplistas sobre a Literatura.

P Tece-se assim um subtil paralelismo ao longo do livro em que a filha dá voz e corpo às palavras da mãe. Simultaneamente, ecoa-se romances como A Costa dos Murmúrios em que há um relato primeiro que se vai de alguma forma decompondo ou reconstruindo.

R Cada escritor tem a sua forma. Vendo bem, desde O Dia dos Prodígios que esse é o meu modo. Um relato qualquer, como se fosse um incipit, que depois vou desembrulhando e desenvolvendo. Os meus livros surgem assim, acho que já o disse – uma espécie de ovo inicial, embrulhado e confuso que depois se esclarece. De onde uma forma um tanto solene e litúrgica que resulta

P Durante a pandemia, escreveu vários textos em que manifestava esperança num mundo melhor, mais solidário. Essa fé foi desacreditada pelo testemunho do que hoje se vive…

R Tem toda a razão. Escrevi doze textos durante a pandemia, e estava crente que depois de uma experiência global tão avassaladora, iríamos ficar mais próximos e mais fraternos. Afinal tinha havido uma batalha contra um inimigo não humano, e estávamos sozinhos, só nos tínhamos a nós mesmos sobre a Terra. Como não nos aproximarmos, como não passarmos a viver em conjunto, depois de salvos pela Ciência e pela Medicina? Agora que tínhamos a

P Também por estes anos, O Vento Assobiando nas Gruas, uma das suas obras mais aclamadas, em que retomou como cenário o Algarve, foi transposta para o cinema. Acompanhou a produção desse filme? Podemos esperar novidades para breve?

R Não acompanhei o processo. Uma numerosa equipa, e total liberdade. Veremos como está o filme, por certo que ouviremos falar dele. Também estou à espera.

P Ao aceitar o pedido de sua mãe, para poder escrever Misericórdia, conseguiu retomar o projeto interrompido? Ou perdeu essa voz?

R Não perdi a voz, só se distanciou, mas estou a aguardar o momento próprio para retomar. Veremos. Veremos é uma boa fórmula – combina receio e esperança.

23 CULTURA.SUL POSTAL, 5 de maio de 2023
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Misericórdia foi escrito a pedido da mãe da autora, que foi uma das primeiras vítimas da covid-19 no sul do país

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