Guia Pedagógico - Violência Doméstica -
Pelos Caminhos ddaa VViioollêênncciiaa DDoommééssttiiccaa:: U Um m EEn nccoon nttrroo ccoom m a Vio1lência Conjugal
Pelos Caminhos ddaa VViioollêênncciiaa DDoommééssttiiccaa:: U Um m EEn nccoon nttrroo ccoom m a Violência Conjugal
2009 – 2010 2
Ficha Técnica Titulo: Pelos caminhos da Violência Doméstica: Um Encontro com a Violência Conjugal.
Autores: Benedita Aguiar Daniela Monteiro Mariana Silva
Prefácio: Dr. Carlos Aguiar Gomes, Presidente da Associação Famílias
Poema: Mafalda Alvelos
Edição Gráfica: Hugo Mendes Regina Sequeira
Fotografia: Bruno Moreira
Edição: Comissão para a Igualdade e para Direitos das Mulheres Associação Famílias Braga – Bragança /2009 -2010
Projecto Sinergias – Equipa Técnica: Coordenadora: Dr.ª Benedita Aguiar Acção Social: Dr.ª Daniela Monteiro Comunicação: Dr.ª Regina Sequeira
Contactos: Telefone: 253 611 609 e-mail: projectosinergias@gmail.com www.projectosinergias.org www.projecto-sinergias.blogspot.com
Sede: Rua de Guadalupe, nº 73 4710-298 Braga (São Vicente) Telefone: 253 618 456 E-mail: associacao.familias@gmail.com
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O presente trabalho foi efectuado no âmbito do Projecto Sinergias, promovido pela Associação Famílias. Este Projecto é financiado pelo Programa Operacional Potencial Humano (POPH), eixo 7 (Igualdade de Género), tipologia 7.3 de Apoio Técnico e Financeiro às Organizações Não Governamentais. Dentro das três temáticas chave do Projecto Sinergias, Sinergias foram elaborados três guias pedagógicos, sobre: Igualdade de Género, Género Violência Doméstica e Tráfico de Seres Humanos. Humanos O presente guia incide sobre a temática da Violência Doméstica. Todos os guias são acompanhados por vídeos pedagógicos que poderão ser utilizados em acções de sensibilização sobre estas temáticas. A Associação Famílias disponibiliza os recursos pedagógicos às entidades que operam naquelas áreas, numa perspectiva de disseminação dos princípios orientadores do Projecto Sinergias. Para a aquisição de uma cópia deste exemplar deverá contactar: projectosinergias@gmail.com ou 253611609 VisiteVisite-nos onon -line em: www.projectosinergias.org www.projectowww.projecto-sinergias.blogspot.com sinergias.blogspot.com
É permitida a reprodução, citação ou referência com fins informativos não comerciais, desde que expressamente citada a fonte. Este Guia Pedagógico foi concebido no âmbito do Projecto Sinergias financiado pela Iniciativa Comunitária POPH, entre os anos 2009 e 2010.
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Já vivo há tanto tempo Este miserável tormento Nem sei se devo chorar Ou quem sabe talvez gritar… Sinto-me sufocar Ele não para de me bater… Já pensei que sabe Se não vai ser assim até morrer Se a minha voz nada dita As marcas são o que são Tão duro é que vai na alma Como é o que vai no coração… Tantos nomes feios Nem sei bem porquê Será que não percebe que me dói Será que não o vê? Grito ajuda sem dizer Apelo amor sem querer Esgotou-se o meu silêncio vão Já morreu tanta paixão… Agora penso eu, Começo a gostar de mim um pouco E quero fugir desse agressor Desse homem tão louco. Se algum dia vou perdoar? Não sei, mas sei que não vou esquecer Um murro pode-se apagar Mas a palavra de fel é até morrer… E mais não direi Fica aqui o etc. e tal, Ajudem se puderem Quem sofre de violência conjugal!!! Mafalda Alvelos 5
Índice
PARTE I – ENQUADRAMENTO DO FENÓMENO............................................................................. 9 Capítulo 1 – Contributos para a Discussão sobre a Violência Doméstica .................... 12 1.1 Nova visibilidade para um problema antigo ..................................................................... 12 1.2 A Violência doméstica: espaços e expressões .................................................................. 13 1.3 Encontro com a Violência Conjugal .................................................................................... 16 Capítulo 2. Formas e ciclo da violência conjugal............................................................... 20 2.1 Formas e o sistema circular da violência conjugal ............................................................ 20 2.2 As vítimas e os agressores ................................................................................................. 24 2.3 Breve exploração das teorias sobre Violência Conjugal .................................................... 28 Referências Bibliográficas...................................................................................................... 38 PARTE II - Maus-tratos na conjugalidade: princípios de intervenção ........................ 41 1 – O encontro com a definição do conceito ............................................................................ 42 2 – Espaços e contextos da Violência Conjugal ........................................................................ 42 3 - Ciclo da Violência Conjugal sistema circular ....................................................................... 42 4 - Características, Efeitos e Razões.......................................................................................... 44 5 - Procedimento(s) em situação de violência ........................................................................ 44 6 - O papel dos profissionais de intervenção – o trabalho com as vítimas............................ 45 6.1 - A importância do trabalho em rede ................................................................................ 49 7 - O Processo de Apoio – Modelo de Intervenção em Crise .................................................. 50
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Prefácio A violência doméstica, intra-familiar está nos media, com clareza e veemência. O número de mortes causadas por aquela falam por si. Corremos o risco, porém, de nos focalizarmos num tipo de violência doméstica, a violência física homicida e esquecemos as outras, tantas vezes subtis, mas nem por isso menos perigosas e causadoras de danos. Pode-se, também, ficar com a ideia simplista de que a violência doméstica, intra-familiar, é sinónimo de agressão de um homem (marido, namorado, companheiro…) exercida sobre uma mulher. Na realidade, esta forma violenta de agressão intra-familiar, é a mais mediática, mas é redutora. Infelizmente há muitas outras formas brutais de fazer valer o argumento da força sobre a força do argumento exercido na serenidade e respeito dialogante nas situações “normais” de desacordo ou de diferença de ponto de vista. Corremos o risco, grave, de esquecermos que a violência intrafamiliar está muito presente nas relações conflituosas com os mais velhos, doentes, deficientes ou crianças, isto é, com os que têm menos força e estão ou são mais frágeis. Quantas vezes este assunto, tão arredado da exposição mediática, sofrem brutalidades tão violentas e que passam do abandono, ao encerramento em casa ou, até, ao abuso sexual e exploração laboral? Sim, não se pode esquecer ou relegar para um plano escondido e inferior da cena do teatro familiar!
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A brutalidade física homicida, teremos de associar brutalidades chantagistas, emocionalmente falando, às agressões verbais, dos não ditos que não raras vezes magoam e ferem mais do que as palavras. A calúnia as suspeições infundadas, os insultos ou a desqualificação dos aspectos físico ou estético arremessado contra alguém, também são formas de violência intra-familiar e a que urge dar especial atenção. Afinal, tudo o que nas relações inter-pessoais e familiares, agride a dignidade de toda e qualquer pessoa humana – homem ou mulher, velho ou criança, deficiente ou sem deficiência – sobretudo quando exercida cobardemente sobre a fragilidade dos outros tem de ser denunciada, combatida e … prevenida. Infelizmente, as acções contra a violência intra-familiar ainda carecem de percorrer com mais clareza e veemência os caminhos da denúncia, do combate a todas as suas expressões e de outra maior pró - actividade no caminho imenso da prevenção que, afinal de contas, é o percurso para se educar para o exercício da liberdade pessoal no respeito pelo outro, sabendo manejar com responsabilidade a dinâmica do diálogo que sabe usar a força de argumentos racionais e prescrever a irracionalidade dos argumentos da força. Afinal, o grande desafio é conhecer, aceitar e respeitar os direitos Humanos que reconhecem a dignidade, na igualdade, de toda a pessoa humana.
Presidente da Associação Famílias Dr. Carlos Aguiar Gomes 8
PARTE I – ENQUADRAMENTO DO FENÓMENO _________________________________________ Daniela Monteiro Mariana Silva
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Capítulo 1 – Contributos para a Discussão sobre a Violência Doméstica
1.1 Nova visibilidade visibilidade para um problema antigo
O que hoje em dia se considera ser violência ou constituir comportamentos violentos não era forçosamente assim considerado há cinquenta ou há cem anos. Podendo ser ilusório dizer que “hoje há mais violência” ou que “há cada vez mais violência”. As estatísticas têm mostrado um aumento dos casos de violência doméstica, mas tal devese, em grande parte, a dois motivos: 1) à visibilidade que o fenómeno tem tido, tirando da “sombra” muitos dos casos escondidos dentro de “quatro paredes” e 2) ao esforço crescente através de medidas políticas, ao trabalho desenvolvido pelas Organizações (e.g. APAV e GIG) e pela sensibilidade crescente das políticas. Nas últimas décadas foi realizado um avanço cultural importante, com a compreensão de que os actos de violência são atentados aos direitos humanos fundamentais e como tal inconciliáveis com o valor e a dignidade inerente ao ser humano (Vicente, 2000). Contudo, esta compreensão não se efectivou na prática pois a violência no seio da família continua a estar muito presente e com novas (re)configurações, veja-se o caso do possível controlo/intimidação à vítima através das novas tecnologias como o telemóvel.
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Promovendo a reflexão reflexã o
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Quais as alterações legislativas mais relevantes na área da
Violência Doméstica em Portugal? (sugestão: consulte o Portal para a igualdade, no seguinte link http://www.igualdade.gov.pt/index.php/pt/violencia-domestica) 1.2 A Violência doméstica: espaços e expressões
A família é, idealmente, um espaço de pertença e de segurança em que o indivíduo, de qualquer idade, encontra a oportunidade de aprender e praticar valores morais, de se identificar como pessoa, de se autonomizar, de se afirmar, de acordo com o seu nível etário e de desenvolvimento. No entanto, segundo Costa e Duarte (2000), a família nem sempre promove da melhor forma o espaço privilegiado de desenvolvimento que a caracteriza. Para que este ocorra de modo harmonioso pressupõe-se que a família crie um contexto de amor, carinho e protecção, mas, por vezes, ela revela, implícita ou explicitamente, dinâmicas que se apoiam, não nestes pressupostos que lhe são socialmente atribuídos, mas no medo, hostilidade e violência. Nestes casos, as interacções familiares baseiam-se em relações de poder e controlo, o uso da força continua a ser uma resposta normativa e eficaz, socialmente aceite, de comunicação e interacção entre os diferentes elementos que constituem a família. Uma explicação plausível para esta situação deve-se ao facto de que “as sociedades
ocidentais conferiam autoridade ao homem tanto a nível económico como moral, o que incluía o direito, e às vezes o dever, de castigar fisicamente a mulher e os filhos. O interior do lar era considerado como 13
um local privado, onde ninguém podia interferir, e onde o homem, senhor da casa, podia impor o seu controlo sobre aqueles que viviam sob o seu tecto” (Almeida, 2001:255). A violência dentro da família era encarada com naturalidade e ninguém queria, nem podia, interferir. Ainda que se verifiquem algumas mudanças, quer ao nível do discurso vigorante, quer ao nível comportamental, não se pode negar que o sistema familiar continua a caracterizar-se, na maior parte dos casos, por um sistema patriarcal em que o homem é portador do poder e os papéis são definidos tradicionalmente com atitudes e crenças relativamente às estratégias de educação e vivência familiar ainda conservadoras. Daqui se depreende que a violência familiar não pode ser analisada sem ter em conta um conjunto de valores, de crenças, de estilos de vida, e do sistema sociopolítico, característicos de uma determinada cultura e época, pois a sua expressão e o significado que lhe é atribuído é claramente influenciado por estes factores. Apesar desta realidade constrangedora e das suas consequências, a violência na família só recentemente tem sido objecto de estudo por parte da comunidade científica, o que acontece apenas a partir da década de sessenta. Com efeito, um factor justificativo do pouco interesse neste tema pode-se atribuir à ideia dominante de que o que se passa na família pertence ao foro privado, logo, é interdito investigar neste domínio, restando apenas os casos clínicos, como referem Costa e Duarte (2000), em que a violência é tão evidente que extravasava as fronteiras familiares e é, assim, observada e impossível de ser negada. De entre muitos estudos constatou-se que um dos problemas essenciais na análise da violência doméstica é precisamente a dificuldade em definir o que é, ou não é, comportamento violento. Assim, e de acordo com Costa e Duarte (2000), inseparável das definições de violência e de 14
mau trato estão as noções de severidade e intencionalidade que, juntamente com a noção de frequência, são primordiais para perceber a forma e o tipo de abuso. Destas noções será, eventualmente, a de severidade severidade a que terá maior visibilidade, porque normalmente está associada às ofensas físicas que requerem a prestação de cuidados médicos. Por seu lado, a dimensão da intencionalidade, intencionalidade quiçá a mais difícil de operacionalizar, contribui, indubitavelmente, para a avaliação de um comportamento como violento ou não. A frequência do abuso é, igualmente, difícil de operacionalizar porque varia entre as diferentes formas de violência, por exemplo, considerando que o abuso emocional é mais frequente ou, pelo menos, mais aceitável em termos sociais, poderá acontecer que não seja considerado, em determinadas situações, como forma de violência, mas antes como estratégia habitual de lidar com determinados problemas (Costa e Duarte, 2000). No entanto, as suas consequências poderão ser ainda mais dramáticas que as da violência física ou verbal. Assim, e recorrendo à definição apresentada pela American Psychology Association de 1996 (cit. in Costa e Duarte, 2000:19), pode-se definir violência doméstica como sendo “um padrão de comportamentos
abusivos que incluem uma variabilidade de maus-tratos possíveis, desde físicos, sexuais e psicológicos, usados por uma pessoa contra outra, num contexto de intimidade, em ordem a adquirir poder ou manter essa pessoa controlada”. Porém, neste guia trataremos mais detalhadamente a violência conjugal, logo este é o caminho a percorrer a partir deste ponto do estudo.
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1.3 Encontro Encontro com a Violência Conjugal
Segundo Vicente (2000:49), “a questão da violência contra as mulheres
na
família
era,
até
há
muito
pouco
tempo,
autorizada/tolerada/aceite/ignorada/suportada pela sociedade em geral”. Só recentemente é que a violência conjugal adquiriu visibilidade e começou a ser encarada como um fenómeno social, isto é, como um facto com dimensões colectivas e regulamentado na vida social. Pode afirmar-se que esta visibilidade começou a fazer-se notar primeiro, através dos movimentos feministas, que reivindicaram a igualdade de direitos entre os sexos e denunciaram a violência física contra as mulheres no interior da família. Segundo Dias (2004), foi graças a estes movimentos que a violência sobre as mulheres se transformou, simultaneamente, num problema social grave e numa questão política. Ao denunciar os abusos cometidos sobre as mulheres, a sociologia feminista veio chamar a atenção para a natureza “anti-social” da família moderna, pois privacidade significa, para a mulher, isolamento social e invisibilidade das situações de opressão. Depois e a partir dos anos oitenta, ao nível dos governos e de organismos internacionais, como a ONU e algumas das suas agências especializadas a violência conjugal ganhou maior visibilidade (Vicente, 2000). Em Dezembro de 1993 a Assembleia Geral da ONU aprovou a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher, que é definida da seguinte forma (cit. in Vicente, 2000): “todo o acto de violência baseado no género, do qual
resulte, ou possa resultar, dano ou sofrimento físico, sexual e psicológico para as mulheres, incluindo as ameaças de tais actos e coacção ou privação arbitrária de liberdade, quer ocorra na vida pública ou privada”. 16
Até à Declaração da ONU, a pluralidade dos governos encarava a violência contra as mulheres como um assunto menor, assunto privado que não afectava os direitos humanos e não requeria a intervenção do Estado. Mas, entretanto, a Organização Mundial de Saúde considerou que a violência contra as mulheres é um problema grave de saúde pública, passando a ser objecto de estudo científico, apesar dos obstáculos em obter dados objectivos nesta área, por se tratar de um assunto referente à esfera do privado. Por outro lado, constatou-se que a dimensão da violência entre cônjuges parecia ser de tal ordem, que a transformou, a par da violência parental, num problema capital da violência doméstica (Costa e Duarte, 2000). As mulheres fazem parte do grupo de pessoas historicamente mais agredidas no seio da família. O facto de, durante séculos, possuírem um baixo estatuto social, transformou-as em vítimas naturais de várias imposições, incluindo a da violência. Neste sentido, se voltarmos um pouco atrás e pensarmos na história das sociedades, podemos entender um pouco a evolução e o despertar da sociedade para o problema da violência contra as mulheres. Na grande maioria das sociedades a mulher sempre teve um estatuto social de submissão ao homem, onde primeiro submetia-se à autoridade do pai e depois à do marido. No século XX e segundo Duarte (2002), assistiu-se, talvez, à mais radical das transformações: a do estatuto social da mulher, que se emancipa através da conquista do voto, do direito ao trabalho e do direito à instrução. Estas mudanças de estrutura e de valores transferem para a vida privada a ideia de igualdade de oportunidades que se materializa em profundas reformas jurídicas no que diz respeito ao trabalho, à família, ao casamento e ao divórcio, e que levou à difusão, pelo menos ao nível teórico, de modelos simétricos e de aproximação dos papéis do homem e da mulher 17
reflectidos na indiferenciação de tarefas e nas relações de poder no interior da família (Duarte, 2002). Nas últimas décadas, devido, então, à maior visibilidade do fenómeno da violência contra as mulheres, quase todos os países da Europa Ocidental e da América do Norte têm vindo a estudar esse fenómeno. A partir destes estudos, desenvolve-se toda uma literatura dedicada ao “sindroma da mulher
batida” (Walker cit. in Dias, 2004:135). A maior evidência da violência física acabou por dominar a própria definição de “mulher batida”. Todavia, de forma célere, a referida síndroma passou a considerar outras formas de maus-tratos, nomeadamente o abuso emocional e psicológico, a agressão verbal e a violação. Com efeito, a violação da mulher no âmbito do casamento constituiu uma das formas de maus-tratos que mais beneficiou com a ampliação do conceito de “mulher batida”. Foi, novamente, graças à acção do movimento feminista que a violação passou a ser reconhecida quer como uma forma particular de violência conjugal, quer como um crime sexual (Dias, 2004). A violação conjugal
é
frequentemente
acompanhada
por
violência
extrema,
compreendendo submissão, tortura e, por vezes, a morte da vítima. Era, pois, essencial que fosse reconhecida como um acto criminoso, ainda que fosse praticada no seio da própria conjugalidade. É justamente esta característica que torna a violação mais prejudicial do que qualquer outra forma de agressão, uma vez que afecta certas representações acerca dos direitos e obrigações sexuais num casamento. Contudo, este reconhecimento foi mais controverso do que as restantes formas de violência, devido à convicção geral de que o assentimento da mulher para ter relações sexuais com o marido está subentendido na própria noção legal de casamento. Perante tais representações, a violação constituía,
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para as entidades oficiais e para a sociedade em geral, um falso problema (Dias, 2004). Porém, a frequência deste fenómeno conduziu os investigadores à identificação do “rape trauma syndrome” (Costa, 2002:143), dando assim visibilidade social a um problema cuja existência beneficiou extensamente da ideologia patriarcal, que sustentava a noção de que a mulher e o seu corpo eram propriedade do marido. Assim, se procurarmos as causas da violência dirigida às mulheres, um grande número de estudos encontra a sua raiz na menor consideração social que as mulheres detêm em todas as culturas e em todos os países do mundo, seja qual for o seu nível sócio-educativo. É pois a assimetria de poder entre mulheres e homens que está na base das várias formas de violência dos homens contra as mulheres. Segundo Duarte (2002), assistimos, portanto, a um predomínio da violência masculina
e
uma
elevada
vitimização
das
mulheres,
concretizada,
maioritariamente, em crimes contra a integridade física. Vítima e agressor, normalmente, pertencem a estratos sociais baixos, sendo o lar a zona privilegiada de vitimização. A violência nas suas diversas e múltiplas formas e manifestações deixou assim de pertencer ao foro do privado para passar ao público e ao político, quer decorra ou não em espaços privados. A violência é pois um problema da sociedade no seu todo, e não uma questão marginal ou social.
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Capítulo 2. Formas e ciclo da violência conjugal Ao abordar o fenómeno da violência conjugal é fundamental abordar duas questões: as formas de que se pode revestir e o sistema circular em que se desenvolve.
2.1 Formas e o sistema circular da violência conjugal
Segundo Almeida (2001), a violência conjugal é exercida de diversas formas que, em grande parte dos casos, acontecem em simultâneo, podendo traduzir-se em violência física, em violência sexual, em violência verbal/intimidação, em violência psicológica, em violência económica e em isolamento. A violência física, física caracteriza-se por maus-tratos físicos que englobam qualquer forma de agressão, desde a bofetada, soco, pontapé, puxar o cabelo violentamente, apertar o pescoço, até espancamentos e agressões com objectos e armas que podem levar à tentativa ou mesmo consumação de homicídio (Almeida, 2001). Normalmente o(a) agressor(a) agride em regiões do corpo que ficam escondidas sob o vestuário, para que ninguém se aperceba das marcas e ferimentos resultantes destas agressões físicas. A violência
sexual, sexual compreende comportamentos sexuais não
desejados e impostos à vítima pelo(a) agressor(a), muitas vezes violentamente e sob ameaças. Verificam-se também casos de torturas sexuais, e ameaças à integridade física e sexual dos filhos para obter o consentimento da vítima para a prática de actos sexuais que normalmente recusaria.
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Na violência verbal/intimidação, verbal/intimidação o(a) agressor(a) aterroriza a vítima e mantém-na sempre com medo do que possa vir a fazer contra ela ou contra os filhos. Faz comentários depreciativos, ameaças de morte e insultos, obriga-a a calar-se, acusa-a de inferioridade, incapacidade e incompetência como mulher/homem, mãe/pai e dona de casa, no caso da vítima ser mulher. Mostra ou mexe em objectos ameaçadores, como por exemplo manusear e limpar uma espingarda ou revólver, afiar uma faca, etc. A violência psicológica verifica-se quando o(a) agressor(a) recorre a comportamentos
menosprezantes
que
desvalorizam
a
vítima
(perseguições na rua e/ou no trabalho, comparações negativas com outras pessoas, difamações, acusá-la de ter amantes ou de exercer a prostituição, destruir objectos domésticos e pessoais, ferir ou até matar animais domésticos). Priva a vítima de necessidades pessoais, como comida, sono, entre outras. Na violência económica, económica o(a) agressor(a) controla todos os recursos financeiros da família, priva a vítima de recursos e de assistência material (negar o acesso a bens materiais do casal como dinheiro, comida, medicamentos, pagamento de despesas regulares - água, luz, telefone, etc.). Também faz parte desta estratégia impedir a vítima de trabalhar, obrigá-la a dar-lhe todo o seu vencimento, ou tentar que seja despedida. Esta forma de violência persiste por vezes após a separação, como forma de obrigar a vítima a regressar à situação de dependência anterior. Por fim, com o isolamento, isolamento o(a) agressor(a) pretende manter a vítima isolada de amigos, colegas, vizinhos e familiares e para tal, pode proibila de trabalhar, sair de casa, de ter amigos e de contactar frequentemente com familiares. As pessoas tendem a afastar-se, 21
temendo agravar a situação, ou mesmo com medo do(a) agressor(a). A vítima, por seu lado, tende também a evitar estes relacionamentos com medo de represálias do(a) agressor(a) e com vergonha da situação em que vive, temendo a incompreensão dos outros. Segundo Dias (2004:36), “os efeitos destes tipos de violência são tanto
mais graves quanto maior é a duração da relação conjugal violenta. Geralmente, estas relações prolongam-se durante anos e, ao longo do tempo, para além de se tornarem mais frequentes e graves, conhecem uma certa regularidade temporal e espacial. São as noites e os fins-desemana os períodos mais arriscados para a mulher vítima de violência. É também no quarto de dormir e na cozinha que esta ocorre com mais frequência”. Estas formas de violência mantêm a vítima sempre aterrorizada e sob domínio, num ciclo de violência de onde dificilmente se liberta. Segundo Almeida (2001), a violência conjugal desenvolve-se através de ciclos em que a intensidade e a frequência aumentam ao longo do tempo, podendo levar a vítima ao suicídio e expondo-a a elevados riscos de homicídio. Na maioria dos casos, o que não significa que aconteça em todos os casos, a violência conjugal segue um padrão cujo ciclo completo pode durar de alguns dias a vários anos. De acordo com Almeida (2001), o ciclo da violência conjugal divide-se em três fases: a fase do aumento da tensão, a fase da violência e a fase da lua de mel. Na fase do aumento da tensão, tensão é criado um ambiente de eminente perigo para a vítima. Este aumento de tensão, por parte do(a) agressor(a), pode ter vários motivos aparentes: problemas familiares, stress profissional, ou seja, qualquer pretexto serve para expulsar todas
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as suas tensões na vítima. O seu comportamento torna-se cada vez mais agressivo e a violência é facilmente despoletável. Na fase da violência, violência é a física que ocorre geralmente de forma repentina. O(a) agressor(a) maltrata física e psicologicamente a vítima. Este ataque pode ser muito intenso, ficando, por vezes, a vítima em estado muito grave, necessitando de tratamento médico, ao qual o(a) agressor(a) nem sempre lhe dá acesso imediato. Esta fase, ao longo de cada uma das repetições do ciclo da violência, tende a tornar-se mais intensa, com ameaças e agressões cada vez mais graves. Por fim, a fase da lua de mel ocorre depois da crise e caracteriza-se por ser um período de desculpabilização por parte do(a) agressor(a). O medo de perder o(a) companheiro(a) leva-o(a) a minimizar as agressões, justificando o seu comportamento. Mostra-se arrependido e faz promessas de não voltar a fazer o mesmo, adoptando uma atitude normal. Durante este período a vítima redescobre um companheiro calmo e atencioso que a trata delicadamente e lhe faz acreditar que realmente foi a última vez que aquilo aconteceu. Muitas vezes acontece que, ao longo do tempo, os períodos de reconciliação e de calma desaparecem, sendo cada vez maior a violência, podendo levar ao homicídio. Infelizmente, numa relação violenta, o ciclo continua a desenvolver-se, e quanto mais forte for a violência, menores são os períodos de Lua de Mel. Assim, a mulher pode ser exposta diariamente ao desprezo, ao controlo e às agressões, vivendo debaixo de medo, de insegurança e ajustando-se às necessidades e humores do companheiro. Este ciclo pode repetir-se centenas de vezes numa relação abusiva. O tempo que dura cada fase varia de relação para relação, podendo demorar algumas horas, um ano ou mais, para o ciclo se completar. Quanto mais o ciclo se repetir, mais 23
a mulher se vê como incompetente na sua vida de casal, podendo mesmo responsabilizar-se pela violência do companheiro.
2.2 As vítimas e os agressores
Não existe um retrato tipo das mulheres vítimas de violência conjugal e nada pode predizer que uma mulher se vá tornar uma vítima. Segundo Almeida (2001:262), “apesar de ser mais visível a violência conjugal em
famílias de classes populares, a verdade é que existe violência conjugal em todos os grupos sociais, económicos e culturais, em todas as faixas etárias, nos meios urbanos e rurais, independentemente do contexto educativo, religioso ou étnico. Contrariamente ao que normalmente se pensa, a maioria das vítimas exerce uma actividade profissional e usufrui de um rendimento”. A reacção de cada mulher à violência é sempre uma reacção pessoal. No entanto, pode-se tipificar as reacções emocionais das mulheres vítimas de violência conjugal. A própria situação de violência, causadora de dependência, tende a provocar a culpabilização e submissão da vítima, num esforço para, agradando ao agressor, não provocar mais situações violentas. São vários os sentimentos que se apoderam da mulher vítima de maus-tratos, tais como culpa, vergonha, revolta e medo. Quanto ao primeiro, a mulher começa a acreditar no que o marido ou companheiro diz acerca de ela ser incompetente e incapaz de funcionar sozinha. Normalmente ele só é violento com ela pelo que ela conclui que o que há de errado deve estar nela própria. Muitas mulheres acreditam que se deixarem de cometer erros e melhorarem as agressões irão acabar. Acaba por aceitar as justificações dele de que ela 24
“merecia” o castigo ou então de que ele estava bêbado demais para saber o que estava a fazer. A culpa é induzida pela própria sociedade que socializa as mulheres de forma a imputar-lhes a responsabilidade pela vida da família. Quanto ao sentimento de vergonha, a mulher vive numa situação em que se sente humilhada e sempre que fala com outras pessoas percebe que elas não conseguem compreender porque é que uma mulher que se respeite a si própria consegue ficar numa situação destas. Quanto ao terceiro, a mulher vive, intimamente, em revolta contra si mesma por não ser capaz de se defender e, em revolta, contra o companheiro por causa das agressões. Finalmente, quanto ao medo, as agressões tendem a tornar-se cada vez mais frequentes e violentas, com frequentes tratamentos hospitalares e exposição a perigos reais, tais como ameaças de novos espancamentos e mesmo morte. As mulheres vítimas de violência conjugal apresentam muitas vezes uma baixa auto-estima como resultado das agressões e das constantes humilhações verbais e psicológicas. Desconhecem os seus direitos, não se considerando como vítimas de um crime e acreditam que ninguém as poderá ajudar a resolver o seu problema. Tal como para as vítimas, não existe também um retrato-tipo dos agressores. “Em termos de aparência, os agressores muitas vezes
aparentam uma imagem de bons maridos, companheiros carinhosos e cidadãos cumpridores da lei; no entanto, dentro de casa, o seu comportamento é abusivo e pode levar a graves sevícias e mesmo ao homicídio” (Almeida, 2001:266). Uma pessoa que utiliza violência para controlar ou manipular outra, tende a recusar-se a aceitar a responsabilidade pela violência e pode 25
acreditar que a violência é justificável. Normalmente tenta racionalizar ou desculpar o seu comportamento, culpando a vítima de ter causado a agressão. O comportamento de violência tem início muitas vezes pouco tempo após o casamento, após o nascimento do primeiro filho, ou ainda durante a gravidez. Podendo iniciar-se antes do casamento (Machado, Matos e Moreira, 2003). Há algumas atitudes e comportamentos que permitem prever a provável tendência para o uso da violência. Em alguns casos, o agressor apresenta alguns destes comportamentos mas explica-os como sinal do seu amor e preocupação, o que faz a mulher sentir-se lisonjeada, numa primeira fase. À medida que o tempo vai passando, o comportamento torna-se mais grave e violento e é utilizado para dominar e controlar a mulher. De acordo com Almeida (2001), várias atitudes se apresentam nesse comportamento, tendo em vista a dominação e controlo, tais como: o
ciúme: no início de uma relação, ele dirá sempre que o ciúme é um sinal de amor. Questiona a mulher sobre com quem fala, acusa-a de ser namoradeira, tem ciúmes do tempo que ela passa com a família, amigos, ou até mesmo com os filhos; Comportamento controlador: ele vai ficar zangado, por exemplo, se a mulher chegar tarde quando volta de uma loja ou de um compromisso, vai questioná-la acerca dos sítios onde foi, com quem falou. No princípio, dirá que este comportamento se deve à sua preocupação pela segurança da mulher, à necessidade da mulher gerir bem o tempo, ou de tomar boas decisões; Envolvimento
rápido: muitas mulheres maltratadas conheceram o agressor há menos de seis meses antes de casar, de estar noivas ou de começar a viver juntos; Expectativas irrealistas: ele espera que a mulher corresponda a 26
todas as suas necessidades, seja a esposa perfeita, a mãe, a amante, a amiga; Isolamento: tenta isolar a mulher de todos os seus recursos e apoios; Culpa os outros pelos problemas: Comete erros e culpa a mulher de o transtornar e de lhe desviar a atenção e a concentração no trabalho. Vai culpar a mulher por quase tudo o que aconteça de errado;
Culpa os outros pelos sentimentos: ele é que toma realmente a decisão acerca do que sente ou pensa, mas vai utilizar sentimentos para manipular a mulher; Hipersensibilidade: sente-se facilmente insultado, reclama que os seus sentimentos estão feridos quando na verdade está é furioso; Crueldade para com animais ou crianças: é uma pessoa que castiga brutalmente os animais ou é insensível à dor ou sofrimento de crianças; Uso de força em brincadeiras sexuais: este tipo de pessoa pode gostar de sacudir a mulher e amarrá-la durante a relação sexual, pode querer levar à prática, durante o sexo, fantasias em que a mulher está desamparada; Abusos verbais: diz coisas propositadamente cruéis para magoar, insulta-a, humilha-a, amaldiçoa-a, não dá valor aos seus méritos; Papéis sexuais rígidos: vê a mulher como inferior a ele, responsável pelas tarefas subalternas/domésticas, incapaz de ser uma pessoa completa sem a relação que tem com ele; Dupla personalidade: muitas mulheres ficam confusas com as mudanças súbitas de comportamento do agressor pois num minuto é muito simpático e no seguinte explode em violência; Violência no passado: ele reconhece que no passado já bateu numa mulher, mas que foi ela que o levou a isso; ameaças de violência: inclui qualquer ameaça de força física destinada a controlar
a
mulher;
Partir ou atirar objectos: este tipo de
comportamento é usado como um castigo (quebrar objectos com valor sentimental), para aterrorizar a mulher, levando-a a submeter-se;
Qualquer tipo de força durante uma discussão: mantém a mulher à 27
força no chão, impede-a fisicamente de sair do quarto, dá encontrões ou empurra-a.
2.3 Breve exploração das teorias t eorias sobre Violência Violência Conjugal
O fenómeno da violência conjugal reveste-se de grande complexidade. Aliás, diferentes definições e metodologias vieram a produzir diferentes perspectivas sobre o problema. Assim, pelos motivos envolvidos (psicológicos, sociais, culturais), e porque a violência contra a mulher é um “problema multicontextual” (Matos, 2003:90) explorar-se-á de seguida vários níveis de compreensão do problema. As teorias intra-individuais (Matos, 2003:90) focalizam a sua atenção nas
características
individuais
do
maltratante
ou,
ainda,
na
personalidade da vítima. Os defensores deste tipo de argumentação tentam, por um lado, alcançar uma compreensão das acções do ofensor, centrando-se no que poderá levar alguns homens a bater nas suas esposas, e por outro, procuram identificar os traços psicológicos das mulheres que suportam a violência. De
modo
sintético,
comportamento
algumas
maltratante
das
causas
incluem:
que
explicariam
perturbação
o
psicológica
(psicopatia, depressão), stress, baixa auto-estima, dificuldades na empatia, na comunicação e no auto-controlo, bem como pobres competências sociais (Pagelow cit. in Matos, 2003). Para além das características psicológicas referidas, Jasinski e Williams (cit. in Matos, 2003) citam vários estudos que compreendem outros factores de risco, como a irritabilidade, estilo de personalidade agressiva e hostil, elevada sintomatologia borderline, ansiedade, depressão e queixas somáticas. 28
Nessa concepção, estava implícita a crença de que a violência conjugal seria um assunto privado, a não ser discutido fora de casa, bem como um incidente isolado provocado pela anormalidade do perpetrador. O discurso patológico sobre a violência esquece, contudo, muitos aspectos importantes da vida e isto porque não é apenas no contexto das significações internas que se joga a agressividade e a violência, mas também no das representações sociais sendo o género, a idade, a classe social, a profissão, as trajectórias pessoais e sociais variáveis com um papel determinante na passagem ao acto (Duarte, 2002). Uma teoria ilustrativa do que foi dito é a da “mulher masoquista”. Assim, nos anos sessenta, desenvolveu-se um primeiro discurso que acabou por ser dominante e que insistia no carácter “masoquista” da mulher batida. Esta perspectiva considerava que existia uma “mútua
dependência e desviância exibida pelo “battering couple”, constituindo a agressão à mulher uma forma do casal manter um certo equilíbrio relacional” (Kirkwood cit. in Dias, 2004:36). Em suma, a “perspectiva masoquista” via a violência conjugal como uma anormalidade da psicologia feminina e considerava a natureza inconsciente da mulher batida como a principal responsável pela perpetuação da violência. Ao mesmo tempo, estas mulheres eram consideradas como sendo excessivamente ligadas aos maridos violentos, altamente atraídas pelo drama e por situações perigosas. Posteriormente, em meados dos anos setenta, a extensão e frequência da violência conjugal era tão acentuada que as explicações baseadas na psicologia desviante feminina se tornaram insuficientes. Deste modo, a “perspectiva masoquista” deu lugar ao discurso da mulher batida, considerada como vítima, conduzindo então à perspectiva seguinte.
29
As perspectivas diádicas-familiares (Matos, 2003:93) sustentam que a fonte da violência e a explicação para o comportamento daqueles que são vitimados se localizam nas interacções, ou seja, “atribuem os
comportamentos violentos mais à estrutura familiar e suas interacções do que ao indivíduo, pois será na família que os indivíduos irão aprender não só as estratégias maltratantes como valores morais que viabilizam esses comportamentos violentos” (Duarte, 2002:232). Esta perspectiva conduz-nos à teoria intergeracional da violência (Matos, 2003), que postula que a experiência de vitimação na infância favorece a sua perpetuação.
Portanto, esta explicação tem implícita a noção de aprendizagem social, a qual postula que o comportamento do indivíduo é determinado pelo ambiente social, sobretudo pelos membros da sua família, como já foi referido, através de mecanismos de reforço, modelagem ou coacção. A explicação do “desânimo apreendido” é um dos exemplos das perspectivas diádicas-familiares. Segundo Dobash e Dobash (cit. in Dias, 2004), o conceito de “desânimo aprendido” passou a ser central para se compreender o processo de vitimação da mulher maltratada. De acordo com esta perspectiva, a violência repetida de que a mulher é alvo vai diminuindo a sua motivação para reagir. Ela tende a ser submissa em virtude das constantes agressões de que é alvo tornando-se, desta forma, numa vítima passiva e desprotegida. Assim, esta teoria, em vez de responsabilizar a mulher pela violência de que era alvo, passou a insistir na importância dos contextos de socialização que, desde 30
cedo, a iniciavam no seu processo de vitimação. Assim, e de acordo com Kirkwood (cit. in Dias, 2004), a mulher batida era passiva e submissa porque a sua socialização e o abuso repetido a tornara psicologicamente incapaz de se proteger e de agir para seu próprio bem. Este discurso veio ilibar a mulher da responsabilidade de permanecer com um homem violento, uma vez que os traços psicológicos que a levam a ficar com o agressor não resultariam de uma personalidade masoquista mas de uma socialização e condições de vida inadequadas. Esta perspectiva “vitimista” ignorou seguramente o poder que as mulheres têm sobre a sua própria vida. Assim, nos anos oitenta, surge a perspectiva da mulher como sobrevivente activa. Pesquisas britânicas e norte-americanas demonstraram que a mulher não era uma vítima passiva da sua psicologia masoquista, nem do medo e desprotecção (stress psicológico) produzido pelo abuso. Pelo contrário, “estes estudos mostraram que as mulheres maltratadas
(re)avaliavam constantemente a sua situação e as oportunidades de mudança, para além de procurarem ajuda exterior” (Dias, 2004:38). Apesar de reconhecerem que a violência repetida e severa pode causar graves danos físicos, psicológicos e materiais nas mulheres agredidas, consideravam que ela também gera determinação e coragem para a acção. Durante o processo de sobrevivência a uma relação conjugal violenta, a mulher compromete-se a compreender a violência, a nova categoria a que pertence, e vai desenvolvendo acções no sentido de terminar com a violência, mesmo que isso passe por uma transformação ou, inclusive, pelo fim da relação conjugal. E isto implica, por parte da mulher, a procura de ajuda em várias fontes.
31
Segundo Dobash e Dobash (Dias, 2004), a família e os amigos são as primeiras pessoas que estas mulheres procuram, pois para além de escutar atentamente as vítimas, dão-lhes apoio, conselhos e acomodação temporária. As mulheres agredidas, ao recorrer à família e aos amigos, procuram, sobretudo, alguém com quem conversar sobre a violência, de forma a compreender o seu sentido e a tentar alterar o comportamento do homem agressor. Também solicitam ajuda à rede formal, passando, assim, a contar com a colaboração das agências legais, médicas e sociais. Deste modo, não é só a mulher agredida que se encontra envolvida num processo dinâmico, é também a própria relação, a natureza da violência e a percepção da mulher sobre o seu problema, e as possibilidades de ajuda exterior que vão mudando ao longo do tempo. Esta imagem dinâmica da mulher envolvida numa relação conjugal violenta contrasta seguramente com o carácter estático e passivo da mulher maltratada, tal como era descrita pelo modelo do
“desânimo apreendido”. O discurso da mulher batida como “vítima” foi então substituído pelo da mulher como “sobrevivente activa” à violência conjugal. Estas mulheres sobrevivem, não só ao abuso em si, mas também à depressão, ansiedade e reemergência de sentimentos românticos pelo agressor durante o processo de transição para uma vida sem violência. De acordo com Dobash e Dobash (Dias, 2004), esta abordagem falhou, no entanto, ao desviar a atenção das raízes do problema, nomeadamente, do homem violento e das estruturas sociais e políticas que reforçam a dominância masculina, ou seja, “uma das fragilidades das explicações
até agora discutidas reside no facto de ignorarem que os processos ocorrem
numa
estrutura
social
em
que
existem
profundas
desigualdades de poder entre os sexos” (Duarte, 2002:233). 32
Destacamos as perspectivas sócio-culturais (Matos, 2003:95) que incluem as explicações feministas e a teoria dos esquemas de género. Estas teorias merecem o nosso destaque uma vez que não atribuem a culpa da violência à vítima ou ao maltratante, ou até à própria família, remetendo, portanto, a questão da violência para questões mais amplas como os factores históricos, sociais, culturais e políticos que concorrem para a mesma. De acordo com uma abordagem sócio-cultural, a violência contra a mulher é gerada como resultado do seu tratamento histórico e da actual sociedade patriarcal. Na conjuntura patriarcal, a violência é explicada pela premissa de que os homens reconhecem o seu poder e autoridade sobre as mulheres, e o uso da força é uma forma através da qual esse domínio masculino se mantém. O advento feminista expõe uma visão da violência contra às mulheres, advogando que a prática desta problemática se deve evidentemente à subsistência de um modelo religioso, político e cultural que historicamente corroborou o domínio do marido e legitimou a aplicação de violência para repreender ou dominar a insubordinação da mulher (Neves, 2003). As críticas feministas à família tradicional são abundantes e recorrentes (Segal cit. in Matos, 2003). Uma vez que a família assume um papel decisivo na sociedade a vários níveis (representações de género, processos de socialização, modos de resolução de conflitos), as feministas afirmam, então, que a família actual tem que ser repensada. Estudos recentes postulam que, se as famílias não são hoje estritamente patriarcais, elas são ainda, em muitos casos, transmissoras de desigualdades sexuais. Tal enfatiza a necessidade de se reconceptualizar, quer o lugar da mulher na família (promovendo 33
práticas de complementaridade), quer o seu lugar na sociedade (igualdade de acesso aos recursos, estatuto profissional). Para as feministas, a violência contra a mulher na conjugalidade continuam, largamente, ignorados pelo sistema de justiça criminal e social, em si mesmo dominado pelo sexo masculino. Assim, “as
feministas concluem que o género masculino se apoia na violência para preservar o status quo e para exercer as suas posições de poder ou controlo” (Matos, 2003:96). Neste contexto, a violência reside na privação de outrem do seu poder. O indivíduo que maltrata recusa-se a aceitar a sua perda de poder e, na tentativa de o preservar, recorre ao uso da força. Nesta abordagem, a violência contra a mulher é o resultado do processo normativo de socialização masculina. Segundo Neves e Nogueira (2004:16), “o viés androcêntrico foi mesmo uma das
críticas mais ferozmente apontadas pelas abordagens feministas às ciências sociais, considerando-se que a adopção do sexo masculino como norma e a assunção do sexo feminino como desvio contribuiu sobremaneira para a propagação do discurso de menoridade associado às mulheres”. Abreviando, para as feministas, a perspectiva de que “entre marido e mulher, ninguém mete a colher” deixou o público lá fora e a violência dentro de portas. Os homens batem porque têm muito a ganhar com a violência. Mais, “a violência conjugal não é só um problema individual,
mas social e político” (Matos, 2003:96). A perspectiva feminista tem proporcionado um contributo expressivo para uma melhor compreensão da violência conjugal e tem sido reconhecida como uma das abordagens com maior sucesso na recuperação das mulheres vítimas de violência, precisamente porque lida directamente com a questão do poder e enfatiza a necessidade de 34
dar voz às vítimas. Para além disso, a sua conceptualização da violência como uma desordem que emerge das desigualdades de género tem tornado possível desenvolver práticas interventivas que promovem alternativas à violência (contestação de estereótipos culturais, criação de grupos de auto-ajuda, construção de refúgios). Segundo Duarte (2002:230), “a violência conjugal é um fenómeno
complexo e multidimensional que não conhece classes, idades, fronteiras geográficas e culturais, mas que parece conhecer, à primeira vista, o género, usado como categoria relacional que expressa grande parte das histórias de violência conjugal sobre as mulheres”. O género diz respeito, segundo Neves (2003), a um leque de construções sociais, ou seja, a um conjunto de características que todas as sociedades, de formas diferentes, associam a cada um dos sexos biológicos. Segundo Amâncio (2001:4) “a partir do momento em que a variável sexo é
conceptualizada enquanto categoria social, o objecto de análise já não são as diferenças entre homens e mulheres mas o pensamento social sobre a diferenciação entre o masculino e o feminino”. A construção do género está envolvida, directamente, com as construções
de
poder.
Segundo
as
perspectivas
feministas
a
conceptualização da violência é vista como uma desordem que emerge das desigualdades de género, sendo estas construídas socialmente. As compreensões baseadas nos estereótipos de género, definidas por Bem (cit. in Neves, 2003), são indispensáveis para a percepção do modo como os homens interiorizam o papel “genderizado” da identidade masculina. A autora sustenta que os indivíduos assimilam, através de esquemas de papéis “genderizados”, definições culturais de feminilidade e masculinidade. Tais esquemas compreendem redes de associações que organizam e orientam a percepção individual de 35
masculinidade e feminilidade assente no sexo e, por sua vez, esses esquemas tornam-se parte do auto-conceito e são utilizados para avaliar a adaptabilidade pessoal de cada um, como homem ou como mulher. Estes esquemas, uma vez distorcidos poderão originar comportamentos violentos, que por sua vez assentam nas seguintes convicções: “os homens e a masculinidade são superiores às mulheres e
à feminilidade; o poder e o controlo são essenciais para provar a masculinidade pessoal; os sentimentos, a intimidade e as emoções são atributos femininos, em vez de serem características humanas e o julgamento da masculinidade e de valor pessoal baseia-se na potência heterossexual e no sucesso da carreira” (O´Neil e Nadeau cit. in Neves, 2003:136). As teorias contemporâneas referem o género como um sistema em configuração activa, formulado e reformulado, na linguagem e nas actividades do dia-a-dia (Hare-Mustin e Marcek cit. in Neves, 2003). Na reprodução do género, os indivíduos interiorizam discursos culturais sobre o que significa ser mulher ou homem e são estimulados e gratificados por adoptarem esses papéis nas suas próprias vidas. O facto da maioria dos homens e das mulheres adoptarem de um modo generalizado as visões culturais da masculinidade e feminilidade, comprova a força e o impacto da socialização (Wood cit. in Neves, 2003). Entre as diversas implicações que resultam da produção destes estereótipos de género, pode-se distinguir a menor acessibilidade das mulheres
a
cargos
profissionais
ou
a
posições
de
liderança
habitualmente masculina (Nogueira cit. in Neves, 2003). Esta herança histórico-cultural traduz-se também na forma como as pessoas pensam e se comportam diante as relações de intimidade, verificando-se
36
desigualdades no modo como se concretizam as demonstrações íntimas e próximas entre homens e mulheres (Wood cit. in Neves, 2003). Neste sentido a socialização estabelece como os comportamentos e as posições sociais das mulheres e dos homens influenciam o modo como as noções de Amor e de Poder são interiorizadas e exteriorizadas por cada um dos sexos. Segundo Neves (2003) o que interessa compreender é como o amor entre duas pessoas de sexos opostos e o domínio que é praticado pelos mesmos, está ou não relacionado com a subsistência das relações de violência entre casais e na forma como as relações de género influenciam essa dinâmica.
“Numa reflexão final, importa acentuar que as tentativas para se explicar os actos de violência conjugal através de justificações singulares, sejam psicológicas, familiares ou feministas, devem ser evitadas” (Matos, 2003:97). Nas experiências violentas é importante reconhecer, para além de factores de ordem mais individual ou relacional de relevância inegável, o peso dos estereótipos de género e da socialização diferencial de homens e mulheres, bem como a relação destes com a distribuição de poder dentro da família.
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Referências Bibliográficas
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38
VICENTE, A., (2000); “Direitos das Mulheres/Direitos Humanos”, Cadernos Condição Feminina, Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, Presidência do Conselho de Ministros.
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PARTE II - Maus-tratos na conjugalidade: princípios de intervenção ______________________________________________ Mafalda Alvelos Ana Patrícia Cruz Ana Rita Cruz Ana Teresa Carneiro Andreia Magalhães Catarina Coelho Eva Pereira Florbela Marques Isabel Gonçalves Isabel Freitas Joana Rocha Nádia Murta Sandra Ferreira Silvana Freitas Susana Frei
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A Violência Conjugal representa uma das faces de um fenómeno mais amplo que é a violência doméstica, neste guia pedagógico, apresentamos de forma sintetizada uma experiência pedagógica de um grupo de profissionais que em 30 horas, traçaram um caminho fundamental para quem quer trabalhar e estudar o fenómeno da Violência Doméstica/Violência Conjugal neste sentido passamos a apresentar as linhas basilares deste percurso de aprendizagem.
1 – O encontro com a definição do conceito
O primeiro passo sugerido é encontrar conceitos definidores do fenómeno de violência conjugal, neste sentido a proposta passa por pesquisar em livros, revistas científicas e em sites oficiais o conceito. Destas leituras chegaremos à(s) definição(ões) do fenómeno. 2 – Espaços e contextos da Violência Conjugal
A violência conjugal pode ocorrer em diversos contextos e espaços, sendo usualmente: - Na própria casa; - No local de trabalho; - Local público. Reflectir sobre o mito que a violência conjugal acontece sempre entre as quatro paredes da própria casa.
3 - Ciclo da Violência Conjugal sistema circular
A violência conjugal assemelha-se a um sistema circular, isto é, começa, processa-se e termina, iniciando-se de novo na fase em que primeiro começou. Este ciclo dificulta a decisão da vítima em abandonar a relação, uma vez que, no final sente sempre esperança de ter uma 42
conjugalidade sem violência. Podemos identificar as três fases da seguinte forma: 1) aumento da tensão (as tensões do dia-a-dia acumuladas pelo agressor sem que este as saiba resolver sem o recurso à violência, faz com que este se vire contra os outros membros da família, geralmente a mulher e às vezes os filhos ou outros elementos que morem na mesma casa, e os acuse de tudo e mais e alguma coisa. Aqui, por regra geral, o agressor, não chega a utilizar a violência física, ficando pelos insultos, ameaças e palavrões), 2) ataque violento (o agressor ataca a vítima física e psicologicamente que tenta defender-se através da passividade), 3) o apaziguamento ou lua-de-mel (o agressor chega a pedir desculpas à vítima, prometendo algumas que nunca mais vai descontrolar-se e desculpando o seu comportamento com factores externos a ele próprio. Neste sentido, o agressor não assume a sua responsabilidade nem o facto de ser violento, e culpabiliza os outros de ter este tipo de comportamentos).
43
4 - Características, Efeitos Efeitos e Razões
Como elemento fundamental de reflexão é importante pesquisar e conhecer •
as características ou “perfis” de agressores e vítimas,
•
os efeitos da violência ao longo do tempo.
•
razões para a manutenção na relação abusiva
5 - Procedimento(s) em situação de violência
•
Pedir ajuda imediata;
•
Dirigir-se a um hospital, centro de saúde, médico/a particular;
•
Ponderar a denúncia da situação (PSP, GNR, Tribunal);
•
Ligar para serviços/linhas de apoio
o
Serviço de Informação a Vítimas de Violência Doméstica - 800 202
148 o
Linha Nacional de Emergência Social – 144
o
Associação Portuguesa de Apoio á vitima (APAV) - 707200077
o
Associação de mulheres contra a violação – 218511223
o
Comissão para a Igualdade e para os Direitos das mulheres –
217983000 o
Gabinete de consulta Jurídica (Ministério da Justiça) – 213960586
o
Grupo de Ajuda Mutua a Mulheres Vitimas de Violação –
218400253 o
União de Mulheres Alternativa e Resposta - 808200175
44
6 - O papel dos profissionais de intervenção – o trabalho com as vítimas
A intervenção na área da violência doméstica é perspectivada no âmbito multidisciplinar. Isto porque o próprio fenómeno se assume como multifacetado, tendo a violência doméstica consequências a vários níveis. Desta forma, apoiar a vítima de violência doméstica pressupõe sempre um apoio diversificado, objectivando-se colmatar as necessidades sentidas pela vítima, que impedem a sua autonomização. Na maioria dos casos, as vítimas necessitam de apoio a três níveis: apoio psicológico, indispensável nas situações de grande fragilidade que comportam os cenários de violência, sendo fundamental o apoio à decisão iniciada, bem como a reestruturação emocional das vítimas, de modo a desenvolver a auto-estima, a confiança e crença nas suas competências; apoio jurídico, extremamente importante na resolução de confrontos com o passado, bem como em questões ligadas à luta pela tutela dos filhos, aos divórcios e queixas de agressão, entre outros; e apoio social, a intervenção técnica deve dar respostas a distintos níveis (habitação, emprego, etc.), revelando-se ainda importante nas questões de autonomização das/os utentes, uma vez que o sucesso da intervenção está no processo de envolvimento da pessoa nesse processo, deste modo a ajuda deve ser orientada para o empowerment, para optimização de recursos e potencialidades das vítimas. Contudo nem sempre a intervenção dos profissionais na área da violência doméstica se traduz na mais indicada, ficando aquém da necessária. Para isto, uma das razões encontradas é a existência de uma rede complexa de considerações profissionais, culturais, pessoais e institucionais que afectam a habilidade e vontade dos profissionais em
45
enfrentar a violência doméstica. Entre as barreiras mais fortes à adopção de respostas eficazes ao problema estão:
46
Reflectindo… Reflectindo…
•
A falta de competência técnica
Ex: Profissionais de saúde que, por vezes, deixam de perguntar às mulheres sobre sua experiência de violência doméstica por se sentirem despreparados para atender às necessidades das vítimas. •
Estereótipos culturais
Ex: “Entre o marido e a mulher ninguém mete a colher”. •
Atitudes sociais negativas generalizadas
Ex: O facto de considerar a violência doméstica como um assunto de cunho privado e temer perturbar ou ofender as clientes fazendo perguntas sobre este assunto. •
Constrangimentos Constrangimentos institucionais
Ex: Falta de recursos e tempo. De um modo geral, incluindo a prestação de vários profissionais que trabalham no âmbito da violência doméstica, podem ser apontadas como atitudes negativas dos profissionais perante a violência doméstica: •
Não seguimento a processos considerados “menos graves”;
•
Relutância em intervir por respeito à privacidade da família,
desvalorizando os direitos da vítima; •
Relutância em agir por crer que dificilmente uma acusação resulte
em sucesso; •
Valorização da ideia que a vítima provocou o conflito;
•
Desconhecimento de todos os recursos de apoio e ajuda à vítima;
•
Os profissionais de saúde enfrentam uma barreira no atendimento
da mulher em situação de violência doméstica, seja pela falta de 47
tempo, medo de que a abordagem usada possa ofendê-la ou frustração ao perceber a resposta negativa de algumas usuárias em relação aos conselhos recebidos; •
A reprodução constante dos atendimentos leva a desvalorização
das causas dos sintomas apresentados; •
A mulher em situação de violência doméstica é, por vezes,
encaminhada ao psicólogo sob o rótulo de um diagnóstico psiquiátrico. São as pacientes “poliqueixosas”, “histéricas”, “ansiosas”; Perante o apresentado, é essencial que os profissionais explorem as suas atitudes acerca do problema da violência doméstica, sendo necessário examinar a relação entre essas atitudes e a sua profissão. Os programas de formação para a consciencialização podem incutir discussões sobre: crenças pessoais acerca da violência doméstica: atitudes, valores e a sua relação com o trabalho profissional; ideias acerca da vida familiar, privacidade e papéis do homem e mulher como membros da unidade familiar; respostas emocionais à violência doméstica, o conhecimento e compreensão do fenómeno, experiências pessoais neste campo e respectivo impactam no seu trabalho; a relação entre atitudes pessoais e mandatos profissionais. Concluindo acerca da intervenção inadequada dos profissionais perante o fenómeno da violência doméstica Albano (2006) refere que “se os profissionais não combaterem muitos dos seus preconceitos e
não partilharem de um entendimento comum acerca das raízes e processos da violência doméstica, a intervenção poderá resultar até para a vítima de modo contraproducente”.
48
6.1 - A importância do trabalho t rabalho em rede
Como referido anteriormente, a violência deve ser encarada como um fenómeno multifacetado que não pode ser reduzido a um único campo de saber ou serviço específico, envolvendo vários segmentos como a segurança pública, a educação e a saúde. O trabalho em rede possibilita a ampliação dos serviços prestados e o envolvimento de um grande número de profissionais na luta para prevenir e tratar os agravos causados pela violência. Como parte de uma rede, cada um tem o seu papel. Isto tem implicações na mudança de posturas e práticas disseminadas em serviços e na comunidade – a de não envolvimento com a violência doméstica e a de passar o problema para as mãos de outrem. Além disso, a constituição de uma rede desta natureza tem que levar em consideração que o trabalho a que se propõe é o de uma permanente construção, implicando mudanças culturais e de hábitos arraizados de trabalho sectorizado e verticalizado. A abordagem interdisciplinar envolve profissionais de várias formações na solução de problemas e no desenvolvimento de respostas. Essencialmente, inclui quase todos os meios – formais e informais – para o trabalho conjunto no desenvolvimento de respostas. Os profissionais e os membros da comunidade congregam esforços para (Direcção Geral de Saúde, 2003): •
Reconhecer a complexidade do fenómeno e suas consequências,
•
Aprender mais sobre outros serviços e recursos,
•
Aumentar a rentabilidade da prestação de serviços,
•
Entre-ajudar,
•
Satisfazer as necessidades mais variadas que a vítima sente, 49
•
Descobrir maneiras de congregar esforços, sempre que possível.
As diferenças de formação e de perspectiva podem constituir obstáculos. Os profissionais podem, também, ter que evitar a tendência para encarar as coisas apenas do ponto de vista específico do seu sector ou baseados apenas na sua experiência pessoal. Assim, os profissionais de vários sectores estão a lidar com um número crescente de vítimas (directas ou indirectas) e de agressores. Geralmente, são profissionais das seguintes áreas: Educação; Organizações religiosas; Sistema de justiça criminal; Serviço Social; Organismos ligados à Habitação; Serviços de Saúde; Organizações comunitárias; Serviços comunitários de apoio legal; Serviços comunitários de apoio jurídico; Grupos de mulheres; Abrigos e refúgios para mulheres vítimas de violência (Direcção Geral de Saúde, 2003). A violência doméstica é um fenómeno psico-socio-cultural com danos a vários níveis, devendo assim a intervenção organizar-se em torno da consolidação de uma rede os diferentes agentes de intervenção.
7 - O Processo de Apoio – Modelo de Intervenção em Crise
A família é hoje idealizada como um lugar seguro, como fonte de carinho, protecção e bem-estar, ocupando, na vida dos indivíduos, um lugar considerado de extrema importância na procura da felicidade pessoal. A família é assim entendida como “um espaço em que os seus
diversos elementos podem encontrar a compreensão e ajuda necessárias à manutenção de uma vida emocional e afectiva estável” (Casimiro, 2002: 603). 50
No entanto, de uma forma paradoxal, embora a família seja representada como “um local de estabilidade, afeição e um pólo de
construção de uma identidade” (Casimiro, 2002: 604), vários estudos parecem apontar a instituição familiar como sendo também, surpreendentemente, uma das instituições mais violentas da sociedade contemporânea. Como refere Giddens “o lar é o lugar mais perigoso nas
sociedades modernas” (cit. Ferreira, 2005: 21), e assim sendo, a afectividade e a violência podem coexistir no seio das relações familiares (Casimiro, 2002: 604). Tornou-se então fundamental conceber estratégias de intervenção que fossem de encontro às necessidades destas vítimas de violência. Desta necessidade nasceu então, uma nova forma de intervir com estas vítimas - o modelo de intervenção em crise. A intervenção em crise é um modelo específico de ajuda que reúne um conjunto de estratégias que podem ser usadas na intervenção com vítimas de violência. Esta forma de intervenção baseia-se nas abordagens propostas pela teoria feminista e pela teoria do trauma (ambas emergentes nos anos 70). Os princípios orientadores desta filosofia de intervenção são: a limitação
dos objectivos - o estado de crise é uma ocasião crítica e geralmente não demora muito tempo sendo por isso auto-limitadora; Focalização
dos esforços terapêuticos - a gestão da crise refere-se a todo o processo de trabalhar a crise para se atingir a sua resolução, este processo inclui, usualmente, esforços não só do indivíduo, como também dos vários membros da sua rede primária (família) ou da rede secundária (associações, entidades públicas, etc.); elevada actividade do terapeuta - para a resolução da crise ser positiva ou negativa depende sobretudo da intervenção em crise efectuada pelos “profissionais da crise”, como 51
por exemplo os Assistentes Sociais, Médicos, Enfermeiros, Juristas, ou Psicólogos; intervenção imediata - o tipo de intervenção ou ajuda imediata que a pessoa recebe, após o acontecimento traumático, podem determinar a duração do período que vai desde a fase do desânimo ao inicio da recuperação. Nesta modalidade de intervenção em situação de crise, a avaliação reveste-se de alguns aspectos muito particulares. É essencial que os técnicos estejam conscientes de que a segurança da vítima é crítica para o processo de intervenção. Portanto, o risco que a vítima percepciona como real deverá ser, cuidadosa e realisticamente, explorado e constantemente reavaliado pelos diferentes técnicos que estão a intervir com a vítima em questão. A maioria das vítimas está realmente em perigo quando procura ajuda, sendo, por isso, importante procurar de imediato manter a mulher numa situação livre de violência. Neste tipo de intervenção os técnicos devem ter bem presente que as vítimas de Violência Doméstica, quando fazem apelo à ajuda de um técnico, podem não querer ou ainda não estarem preparadas para uma tomada de decisão que implique a ruptura do ciclo de violência. Esta decisão não é fácil e deve ser sempre algo muito pensado e preparado por parte das vítimas, exigindo muitas vezes um balanço difícil em termos de prós e contras do que a decisão vai implicar. A intervenção dos técnicos com as vítimas em situação de crise passam por elaborar com a vítima um Plano de Segurança Pessoal, que pode passar por reflectir e delinear algumas estratégias como: segurança durante um acto violento; segurança para quando decidir sair de casa; segurança para depois da separação / divórcio. Concluímos então que o modelo de intervenção em crise tem como objectivo a longo prazo, uma intervenção com a vítima que propõe a 52
escolha entre ficar ou abandonar a relação. Vários estudos comprovam que a maioria das vítimas que procuram apoio quer permanecer na relação conjugal, mas sem violência. Assim sendo, é importante que o técnico não considere como objectivo de intervenção o abandono da relação conjugal violenta. Assim sendo, os técnicos devem focalizar a sua intervenção no empowerment e na autonomia da vítima. Desta forma o técnico deve enfatizar na sua relação com a vítima os seguintes aspectos: validação dos seus direitos e das suas decisões; optimização dos recursos existentes; promover a segurança da vítima – Plano de Segurança Pessoal; compreensão da opressão; prestação de apoio afectivo (exemplo: evitar a repetição dos acontecimentos a outros técnicos); postura de serenidade e confiança; reformulação do projecto de vida da vítima; encaminhamento para uma Casa Abrigo; empowerment da vítima em questão.
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Referências Bibliográficas CASIMIRO, C., (2002), “Representações sociais de violência conjugal”,
Análise Social, Vol. XXXVII (163), pp. 603 – 630. FERREIRA, M. E., (2005), Da Intervenção do Estado na Questão da
Violência Conjugal em Portugal, s.l., Edições Almedina. DIRECÇÃO GERAL DE SAÚDE, (2003), Estratégias de combate à violência
doméstica, Lisboa, Ministério da Saúde. ALBANO, Batista, (2006), “Inclusão Social no Dealbar do Século XXI: O Caso da Região Norte”, in Actas da IV Semana de Serviço Social, pp. 73-
77.
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O presente guia foi efectuado no âmbito do Projecto Sinergias Sinergias, nergias promovido pela Associação Famílias. Este Projecto é financiado pelo Programa Operacional Potencial Humano (POPH), eixo 7 (Igualdade de Género), tipologia 7.3 de Apoio Técnico e Financeiro às Organizações Não Governamentais. Dentro das três temáticas chave do Projecto Sinergias, Sinergias foram elaborados três guias pedagógicos, sobre: Igualdade de Género, Género Violência Doméstica e Tráfico de Seres Humanos. Humanos O presente guia incide sobre a temática da Violência Doméstica. Todos os guias são acompanhados por vídeos pedagógicos que poderão ser utilizados em acções de sensibilização sobre estas temáticas. A Associação Famílias disponibiliza os recursos pedagógicos às entidades que operam naquelas áreas, numa perspectiva de disseminação dos princípios orientadores do Projecto Sinergias. Para a aquisição de uma cópia deste exemplar deverá contactar: projectosinergias@gmail.com ou 253611609 VisiteVisite-nos onon -line em: www.projectosinergias.org www.projectowww.projecto-sinergias.blogspot.com
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