REVISTA No 3 - JUL/2018 ISSN: 2526-4354
WARAO REFUGIADOS NA CAMPINA
UFPA NO CONVENTO DOS MERCEDÁRIOS
FOTO: CLÁUDIO FERREIRA
CIRCULAR REALIZA 1O FÓRUM
ÍNDICE
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Os venezuelanos refugiados na Campina .................................................................................................. Um Fórum para o Centro Histórico de Belém .........................................................................................
Entrevista: Emmanuel Tourinho - A UFPA no Convento dos Mercedários ....................................
Ensaio Fotográfico: Paula Sampaio - Vestígios compartilhados ....................................................... Lugar de ensino e pesquisa para o restauro ............................................................................................. Perfil: Abel Lins - Enigmas no final de uma tarde pretérita ............................................................
Memória, Arquitetura e História: Do sobrado azul à sede da FUMBEL .........................................
Crônica da Cidade: Palacete Pinho – O destino que ele vai ter!......................................................... Iniciativas: BEC BLOCO – Um brinquedo de saúde ............................................................................... Artigo: Alguns sonhos possíveis - Ou sobre o que construímos juntos ........................................ Galeria Circular ..................................................................................................................................................
UM CENTRO HISTÓRICO POSSÍVEL
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ão podemos imaginar um centro histórico vivo sem pensar nas pessoas. O que seria dos museus, praças e outros espaços de convívio sem nós? É refletindo sobre isso que retomamos as atividades da Revista Circular em 2018. Abrimos a quarta edição com imagens e notícias dos indígenas presentes no cotidiano do centro histórico de Belém, além de conteúdos que revelam as preocupações de pessoas de várias esferas em cuidar desse território em sua forma ampla de existência e permanência. Temos novidades também no tratamento visual da publicação, e inauguramos sessões que discutem diversos assuntos ligados aos temas do patrimônio, política e cultura. Destacamos nesta edição uma situação que não pode se invisibilizar pela banalidade em que podem se transformar as mazelas do dia a dia. Há um ano convivemos dessa forma com os Warao, que estão vivendo nos bairros da Campina e Cidade Velha. O que estamos fazendo? Visitamos um dos espaços em que eles convivem, na trav. Campos Sales. O espaço revela muito do que os refugiados venezuelanos vêm vivenciando, após terem sido obrigados a deixarem suas terras. Este ano vamos discutir de forma mais enfática as diversas questões que afligem ou causam expectativas no centro histórico de Belém. O Circular realiza em setembro o seu primeiro fórum, a fim de reunir representantes da administração pública municipal, estadual e federal, sociedade civil e empresariado, para discutir de forma democrática temas como patrimônio, coleta de lixo, moradores de rua, violência, políticas públicas e demais temas que nos impactam enquanto cidadãos e agentes socioculturais que residem, trabalham ou simplesmente visitam a área. Uma boa noticia também é a chegada da UFPA mais perto da gente. A partir deste ano, o Convento dos Mercedários passa para sua gestão, que implantará no prédio histórico cursos de graduação e pós-graduação na área do restauro e conservação, e ainda espaços de convívio entre a academia e a comunidade que vive e trabalha no centro histórico de Belém. Na ENTREVISTA desta edição, o reitor Emmanuel Tourinho traz os detalhes do projeto. Conversamos também com Thais Sanjad, Roseane Norat e Flávia Palácios, que coordenam o Laboratório de Conservação, Restauração e Reabilitação (Lacore), que sairá do Campus do Guamá para atuar diretamente numa área histórica.
O Convento dos Mercedários também está presente nesta edição, pelo olhar de Paula Sampaio, no ENSAIO FOTOGRÁFICO. A fotógrafa capturou imagens que nos remetem a uma atmosfera outra, ao atravessar os portões que nos protegem da velocidade, nos para no tempo. Após esta parada para contemplar as fotografias da Paula, apresentamos as seções que este ano nortearão nossos conteúdos. Focando no protagonismo humano, o PERFIL abre com Abel Lins e seus grandes enigmas. Morador da Cidade Velha e um grande articulador em sua comunidade, ele é também um dos integrantes da Rede Sereia, que reúne vários outros moradores do bairro. Na seção MEMÓRIAS, ARQUITETURA E HISTÓRIA destacamos o levantamento histórico realizado pela Prefeitura de Belém na área em que está hoje situado o prédio sede da Fumbel. As informações estão no arquivo “Identificação e Conhecimento do Bem”, entregue ao IPHAN, como produto necessário ao processo de seu restauro com recursos do Programa de Aceleração das Cidades Históricas, do Governo Federal. A Prefeitura pediu recentemente ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional a prorrogação do prazo, para novembro deste ano, da entrega do espaço recuperado. Depois de ter passado por sete anos de reforma, outro prédio público também está sem uso no centro histórico, desde 2011, e já apresentando as consequências do abandono. Inspirado no descaso e também na beleza e história que traz consigo, o Palacete Pinho é o tema da seção CRÔNICAS DA CIDADE. Na seção INICIATIVAS, vamos destacar projetos e propostas sociais e econômicas inseridas no contexto do centro histórico de Belém. Estreamos com o Coletivo BEC Bloco, que atua no campo da cultura para interagir com pessoas em situações de sociovulnerabilidade. E para finalizar, na seção ARTIGO recebemos a pesquisadora e professora de arte Renata Aguiar. Ela aborda a questão das iniciativas culturais independentes, que estão na contramão do discurso midiático, como caminhos alternativos à falta de políticas públicas que as contemplem até o momento. Espero que gostem Luciana Medeiros Editora #vemcircularbelem
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PROJETO CIRCULAR
OS VENEZUELANOS REFUGIADOS NA CAMPINA COM A CRESCENTE CRISE SOCIAL E ECONÔMICA NA VENEZUELA, CENTENAS DE REFUGIADOS TÊM ESCOLHIDO BELÉM COMO ABRIGO
Por CAMILA BARROS Fotos CLÁUDIO FERREIRA
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les viviam em comunidades sobre as águas e tinham a subsistência baseada na agricultura, pesca e artesanato, mas a crise assola a Venezuela e as perseguições que passaram a sofrer os motivaram a migrar para países vizinhos, em busca de sobrevivência. Em grupos, eles entraram no Brasil por Boa Vista (Roraima), passaram por Manaus (Amazonas) e fizeram um grande percurso para chegar até Belém, na capital paraense, em meados de junho do ano passado. Constituído, principalmente de mulheres e crianças, o grupo não obteve inicialmente nenhum acolhimento humanitário e quando chegaram a Belém, se alojaram pelo Ver-o-Peso. Depois migraram, em parte, para Campina, dividindo espaços com as populações de rua, que inclui traficantes, usuários de drogas e prostitutas. Usando roupas coloridas, mulheres de saias longas, eles hoje são vistos facilmente transitando pelas ruas do centro comercial. São cerca de 110 indígenas que dependem de doações para se alimentar. E não é só isso, a situação agrava quando o assunto é a saúde e moradia.
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Muitos deles apresentam sinais de doenças de pele e doenças infectocontagiosas agravadas pela insalubridade dos locais em que residem, pensões localizadas na Trav. Campos Sales, na Rua General Gurjão e outra na Riachuelo. Além disso, para pagar as diárias de R$ 30, em média, mulheres e crianças, que se deslocam até os pontos de maior movimento da cidade e exercem a prática de mendicância.
CRISE E SOLIDARIEDADE Os Warao fugiram de uma grande crise na Venezuela. Caíram em outra, com o Brasil enfren-
tando seus problemas econômicos, sociais e políticos, mesmo assim, dizem que aqui está melhor para eles, do que em seu país, onde estavam sendo perseguidos. “Além da perseguição, não há comida, nem emprego para nós. Nossa única opção foi sair de lá”, diz Maurício, 23, segurando o filho no colo. Ele é um dos poucos indígenas que compreende a língua portuguesa. Veio com a mulher e o filho de 11 meses para Belém. “Viemos de barco e ficamos pouco tempo em Manaus, onde meu filho nasceu. Já estamos há oito meses aqui, mas ainda está sendo muito difícil”, comenta.
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O grupo passa por sérias dificuldades, mas a maior preocupação são as crianças, que totalizam a maioria do grupo de indígenas. Nos finais de tarde, elas brincam pelas ruas, driblando a vulnerabilidade a que estão expostas. Aos poucos, porém, os venezuelanos vêm ganhando apoio da comunidade. Foi criado, por exemplo, o projeto “Refúgio Warao”, uma iniciativa sem fins lucrativos, promovida por voluntários como Lorena Romão, psicóloga e consultora de Programas de Saúde Mental e Impacto Social, e o servidor público Thyago Rezende. “Buscamos promover os direitos dos refugiados indígenas Warao, fornecendo meios para melhorar sua qualidade de vida, promover a sua autogestão, além de ferramentas que facilitem a inclusão e o próprio processo de migração, com base nos princípios de mútuos de igualdade”, conta Lorena Romão.
ARTESANATO COMO SUSTENTO Outra maneira de sobrevivência para eles vem pela cultura do artesanato Warao. Tendo como matéria-prima a fibra do buriti, os indígenas tecem redes, constroem cestos, bolsas e adornos. Cada peça representa sua cultura, crença e história, transformando o artesanato em um instrumento de valorização de sua identidade e possibilidade de geração de subsistência para suas famílias. É das mãos das mulheres que nascem os produtos. As redes coloridas levam duas semanas para serem finalizadas e são tecidas a quatro mãos para agilizar o processo. Entre as artesãs está Janira Mata, mulher indígena de 18 anos, que veio com sua família, o marido e o filho ainda pequeno para Belém. Tecendo uma rede, ainda na fase inicial, ela mostra a matéria-prima que utiliza e conta com dificuldade a sua história, já que fala o dialeto Warao e conhece poucas palavras em português. “A gente vivia na nossa comunidade e já não tínhamos o que comer. Viemos para cá em busca de viver melhor, mas ainda enfrentamos dificuldades”, comenta Janira.
Não há comida, nem emprego. Nossa única opção foi sair de lá. Viemos de barco e ficamos pouco tempo em Manaus, onde meu filho nasceu. Já estamos há oito meses aqui, mas ainda está sendo muito difícil”. — MAURÍCIO
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OS WARAO NO CIRCULAR E ainda há outra ação que surge vinda dos próprios moradores da Campina, que buscam sensibilizar a comunidade, em torno da situação. A Associação de Moradores, em parceria com a Cáritas Brasileira, em uma comissão ecumênica, realizará na 23ª edição do Circular Campina Cidade Velha, a “Feirinha da Solidariedade e Acolhida”. Na ação, haverá venda do artesanato feito pelos Warao na Pracinha da Igreja do Rosário, na Rua Presidente Pernambuco esquina da Aristides Lobo. E também será realizada uma roda de conversa sobre os indígenas, buscando respeito e a diminuição da xenofobia que eles vêm sofrendo também.
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“A feirinha foi discutida com as lideranças e terá venda direta sem interferência dos apoiadores”, diz Joana Lima, da Associação dos Moradores da Campina. Não será a primeira vez que eles participarão do Circular. Na 21ª edição, estavam presentes na feirinha montada em um dos espaços parceiros, iniciativa também de Lorena Romão e Thyago Rezende, que os representaram comercializando suas peças artesanais no Bar Ouriço, no Largo das Mercês. “É em busca justamente dessa forma de auto sustento que procuramos, junto a eles, promover um negócio social baseado em seu artesanato, que é cheio de características e simbologias próprias”, explica Lorena.
É em busca justamente dessa forma de auto sustento que procuramos, junto a eles, promover um negócio social baseado em seu artesanato que é cheio de características e simbologias próprias” — LORENA ROMÃO
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“Warao” significa “povo da água”, referência aos canais do Delta do Orinoco, no Parque Nacional Mariusa, onde habitaram há mais de 8000 anos.
APOIO EM SAÚDE E EDUCAÇÃO Diante da grave situação, os governos estaduais da região norte criaram ações nas áreas de saúde, educação e assistência social para lidar com os Warao. Em Belém, foi criado um plano conjunto entre prefeitura e governo do estado, envolvendo as secretarias de Estado de Trabalho, Emprego e Renda, de Justiça e Direitos Humanos, de Esporte e Lazer e Fundação Propaz. Das estratégias, até o momento, duas tiveram início, mas precisam ainda de desdobramentos. Na área da saúde, a Secretaria Municipal de Saúde (Sesma) realizou exames de testagem de HIV, sífilis e hepatites.
Incumbida de fazer o acompanhamento de saúde dos indígenas, a secretaria disponibilizou seu consultório de rua, no Ver-o-Peso. E a Fundação Papa João XXIII (Funpapa), de oferecer serviços de abordagem social do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas). Na área da educação, a Secretaria Municipal de Educação informou que abriu matrículas para atender as crianças na Unidade Pedagógica Santa Inês, localizada no bairro do Marco. E algumas crianças e adultos indígenas chegaram a participar de uma visita à Escola Bosque Professor Eidorfe Moreira (Funbosque), em Outeiro. Agora é aguardar a continuidade nas ações. n
DOAÇÕES PARA COLABORAR COM OS WARAO com doação de roupas, alimentos (perecíveis e não perecíveis), ou compra de artesanato, podem entrar em contato pelos telefones: (91) 984222207 (Thyago Rezende).
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UM FÓRUM PARA O CENTRO HISTÓRICO DE BELÉM EM SETEMBRO DESTE ANO, O PROJETO CIRCULAR REALIZA UM FÓRUM DE DISCUSSÕES PARA DEBATER TEMAS SENSÍVEIS PARA A REGIÃO. O EVENTO SERÁ ABERTO AO PÚBLICO, COM FOCO NOS MORADORES, PARTICIPANTES E COLABORADORES DO PROJETO, ALÉM DE PESQUISADORES E QUALQUER PESSOA INTERESSADA PELO ASSUNTO.
Por CAMILA BARROS Fotos OTÁVIO HENRIQUES
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“1º Fórum Circular: Patrimônio, cidadania e sustentabilidade” tem como objetivo trazer propostas que contribuam para organização e o ambiente do centro histórico como um território de sustentabilidade, tanto para os moradores, quanto para os pequenos empreendedores, artistas e pessoas que possam integrar esse universo. Tamara Saré diz que a visibilidade cultural e a responsabilidade social alcançadas pelo Circular, tornaram necessário que se ampliasse o diálogo com as esferas acadêmicas e públicas, para que fosse possível retornar às políticas de desenvolvimento, preservação e auto sustentabilidade na
área cultural e turística, dentro do Centro Histórico de Belém. “O Circular cresceu e hoje tem uma representatividade como projeto cultural dentro da cidade, com uma grande quantidade de parceiros. Sendo assim, é mais que necessário repensar como o projeto pode melhorar enquanto proposta de atuação sociocultural. Durante o Fórum, o próprio Circular vai estar em discussão juntamente com os apoiadores e todas as pessoas que queiram dar sua contribuição”, ressalta Tamara, a atual coordenadora do Circular Campina Cidade Velha, que iniciou em 2013 e teve até 2017 a coordenação da Makiko Akao, uma das idealizadoras do projeto, pela Kamara Kó – Galeria.
O Circular tem uma representatividade como projeto cultural dentro da cidade, com uma grande quantidade de parceiros. Sendo assim, já se torna necessário repensar como o projeto pode melhorar enquanto proposta de atuação sociocultural. Durante o Fórum, o próprio Circular vai estar em discussão juntamente com os apoiadores e todas as pessoas que queiram dar sua contribuição”.
— TAMARA SARÉ, COORDENADORA DO CIRCULAR
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PROJETO CIRCULAR
PATRIMÔNIO, COMUNIDADE E DESENVOLVIMENTO Haverá mesas de discussão e palestras para discutir grandes projetos de intervenção urbana, patrimônio, organização social e desenvolvimento socioeconômico da área histórica de Belém, com participação de representantes do poder público estadual e municipal, do empresariado e sociedade civil. Serão três dias de programação no Conjunto dos Mercedá - rios, prédio histórico, que a partir deste ano está sob a gestão da UFPA, no bairro da Campina. Além de colocar na mesa o próprio projeto Circular e suas conquistas, limitações e busca de soluções, também serão trazidos ao debate projetos desenvolvidos em outras cidades para uma troca de saberes e experiências. Entre os palestrantes estão Márcia Sant’Anna (UFBA) e Leonardo Castriota (UFMG), Mário Aloísio (Caso de Penedo - Alagoas), Felipa Bolotinha (LisboaPT), Goretti Tavares (UFPA) e Leonardo Guimarães (Porto Digital), entre outros. Após as palestras, serão realizados os grupos de trabalho para que, ao final de cada dia, seja feito um documento com uma síntese de tudo que for discutido. Por isso a importância da participação das pessoas mais diretamente envolvidas com as questões vividas no centro histórico, como violência, lixo, cuidado com patrimônio etc. “Queremos aproximar e trazer principalmente os moradores para o fórum, pois eles são os atores e motivadores dessa ação que é para eles. A participação é livre em um espaço democrático. O fórum é para a comunidade. Queremos que todos os envolvidos nesse processo participem”, finaliza Dorotéa de Lima, arquiteta e ex-superintende do IPHAN – PA, convidada para integrar a equipe do Circular Campina Cidade Velha, a partir deste ano, coordenando o Fórum.
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AGENDA: 1º FÓRUM CIRCULAR: PATRIMÔNIO, CIDADANIA E SUSTENTABILIDADE - De 26 a 29 de setembro, no Convento dos Mercedários, Praça das Mercês- Bairro da Campina. As inscrições iniciam em agosto, de forma gratuita e com vagas limitadas para 200 pessoas – pelo no site do www.projetocircular.com.br. Mais informações: circularcampina01@gmail.com.
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ENTREVISTA
EMMANUEL TOURINHO* 12
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A UFPA NO CONVENTO DOS MERCEDÁRIOS ERGUIDO EM 1640 PARA RECEBER OS PADRES MERCEDÁRIOS, O PRÉDIO VIVENCIOU MUITAS HISTÓRIAS: FOI CENÁRIO DA CABANAGEM, EM 1835, QUARTEL DE MILÍCIA... ARTILHARIA, O QUE, EM PARTE, EXPLICA OS CANHÕES QUE PERMANECEM AO AR LIVRE NA ÁREA INTERNA DO LOCAL, ENCONTRADOS DURANTE AS ESCAVAÇÕES DE RESTAURO E REFORMA DO PRÉDIO REALIZADAS APÓS O INCÊNDIO OCORRIDO EM 1978.
Por LUCIANA MEDEIROS Fotos OTÁVIO HENRIQUES
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a década de 1980, o Convento dos Mercedários foi tombado e reformado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, sendo reinaugurado em 1987, quando passou a abrigar a sede da Superintendência do Patrimônio da União, além da Alfândega de Belém e da sede regional da Escola de Administração Fazendária, do Ministério da Fazenda. Em 2014, uma portaria determinou que o Convento dos Mercedários fosse desocupado pelos órgãos fazendários, iniciando aí uma grande disputa. A UFPA enviou o pedido de ocupação do Convento à Secretaria do Patrimônio da União em 2015. Ao longo dos últimos anos, foram necessárias muitas conversas e negociações até que a liberação e cessão do prédio acontecessem, em 2018, com direito a uma disputa com outros interessados.
Havia interesses da esfera estadual, municipal e até da iniciativa privada, mas o pleito da UFPA foi mantido, pois tinha a proposta mais alinhada com os interesses da sociedade. E assim foi. Em abril deste ano, três anos depois, finalmente se comemorou a assinatura do contrato de cessão do prédio à Universidade. “Estávamos amparados em normas legais, que estabelecem que entes públicos federais e, dentre esses, instituições das áreas de educação e saúde têm prioridade para a ocupação de prédios da União. É importante dizer que a UFPA está ocupando o Mercedários não com ações já em andamento, mas para fazer algo novo, para executar um projeto voltado à pesquisa e à formação de profissionais nas áreas de conservação e restauro, algo que não teríamos como fazer sem um espaço amplo no centro de Belém”, diz Emmanuel Tourinho, reitor da UFPA.
Estávamos amparados em normas legais, que estabelecem que entes públicos federais e, dentre esses, instituições das áreas de educação e saúde têm prioridade para a ocupação de prédios da União. É importante dizer que a UFPA está ocupando o Mercedários não com ações já em andamento, mas para fazer algo novo, para executar um projeto voltado à pesquisa e à formação de profissionais nas áreas de conservação e restauro, algo que não teríamos como fazer sem um espaço amplo no centro de Belém”
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O prédio passa agora a abrigar o projeto do Laboratório de Conservação, Restauração e Reabilitação (LACORE/UFPA), além da Editora da UFPA. Também será aberto ao público, com espaços como um café, biblioteca e programações culturais. Na entrevista a seguir, Emmanuel Tourinho nos conta como vão funcionar os cursos e quais são os demais enlaces do projeto de ocupação com a sociedade civil e todo o centro histórico. Também falamos sobre o discurso feito na abertura do curso livre sobre o golpe de 2016, no Centro de Eventos Benedito Nunes, e das perspectivas para as universidades em meio aos atuais embates políticos. O projeto e implantação da UFPA no Convento dos Mercedários é uma das ações da gestão do reitor Emmanuel Tourinho na UFPA.
FOI UMA BELA CONQUISTA TRAZER ESTE ESPAÇO DE ENSINO E PESQUISA PARA O CONVENTO DOS MERCEDÁRIOS. AGORA, QUAIS OS PRIMEIROS PROCEDIMENTOS PARA A IMPLANTAÇÃO DO PROJETO? EMMANUEL TOURINHO: Aprovaremos, até agosto, no Conselho Superior da UFPA, a criação de um curso de graduação em Conservação e Restauro, voltado à formação de profissionais não disponíveis na região amazônica. Também enviamos à Coordenação de Aperfeicoamento de Pessoal de Nível Superior a proposta de criação de um curso de mestrado na área de Ciências do Patrimônio. Os dois cursos funcionarão no Mercedários. Também iniciamos o planejamento para uma galeria de arte, uma livraria da Editora da UFPA, um ambiente para formação em música, além de um auditório para atividades acadêmicas, artísticas e culturais, que acolherá a comunidade da UFPA e o público em geral, em particular os trabalhadores do entorno do Mercedários.
EMBORA ESTEJA EM ÓTIMAS CONDIÇÕES SE COMPARADO A MUITOS OUTROS ESPALHADOS PELO CENTRO HISTÓRICO DE BELÉM, O PRÉDIO DOS MERCEDÁRIOS VAI PRECISAR DE INTERVENÇÕES. O QUE SERÁ FEITO EM RELAÇÃO A ISSO? EMMANUEL TOURINHO: Quanto à estrutura física, iniciamos a avaliação do prédio e esperamos, no segundo semestre, colocar em funcionamento uma primeira ala. Depois, vamos
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A universidade será sempre o espaço da crítica e do debate suprapartidário. Nela, circulam todos os dias os mais diversos entendimentos sobre os grandes problemas do país. Os que a acusam de partidarismo reagem sempre às falas que contrariam as suas convicções, enquanto acolhem com conforto tudo o mais.”
gradualmente avançando para as outras áreas. Executaremos, neste momento, alguns serviços de recuperação das instalações, com destaque para a rede elétrica e refrigeração. Paralelamente, o LACORE/UFPA elaborará um projeto a ser enviado ao IPHAN, visando a uma intervenção mais abrangente de restauro. Vamos apenas recuperar o que é necessário para começar a ocupar o prédio, com limpeza, pintura interna e revisão das redes hidráulica e elétrica. A parte de refrigeração das salas demandará um sistema que opera com centrais, sem unidades condensadoras instaladas nas fachadas, e que permite menor gasto com energia. Não haverá mudanças na estrutura do prédio. Mais adiante, enviaremos o projeto de restauro de todo o prédio ao IPHAN.
O QUE O SENHOR IDENTIFICA COMO PONTOS CRÍTICOS DO PROJETO E BENEFÍCIOS DESSE CONTATO DIRETO ENTRE A UFPA E O CENTRO HISTÓRICO DE BELÉM? EMMANUEL TOURINHO: Teremos o desafio de buscar recursos financeiros adicionais para sustentar uma nova frente de trabalho, mas tenho a convicção de que os resultados serão muito positivos. Passaremos a ter uma interação mais intensa com setores cujos compromissos com o desenvolvimento social e cultural de Belém são os mesmos nossos. Nossa motivação é para colaborar com esses setores na construção de uma cidade mais eficiente na gestão e na valorização de seu patrimônio cultural.
O QUE JÁ VAI ESTAR EM FUNCIONAMENTO ESTE ANO? EMMANUEL TOURINHO: Pretendemos colocar em funcionamento parte da estrutura do LACORE, o auditório, a Livraria da Editora da UFPA e a Galeria de Arte. Ao longo do próximo ano, o projeto será executado em sua integralidade, inclusive acolhendo os discentes dos cursos novos.
OS CURSOS ESTARÃO COM OS PÉS FINCADOS NO OBJETO DE ESTUDO. ISSO PODE TRAZER MUITOS BENEFÍCIOS PARA A ÁREA. COMO A UFPA VISLUMBRA ISSO? EMMANUEL TOURINHO: Esse é o grande diferencial da nossa proposta. O projeto pedagógico do curso de graduação em Conservação e Restauro prevê atuação intensa dos discentes e docentes no centro histórico de Belém. Serão menos aulas tradicionais e mais atividades de campo e em laboratórios. Estão previstos laboratórios de materiais cerâmicos e vidros, de metais, de madeiras e tintas, de azulejos, de cimentos, argamassas, estuque e rochas, além de um laboratório de microscopia eletrônica de varredura. Por isso o curso não poderia ser criado se não tivéssemos sido atendidos com o Mercedários. Os alunos serão formados atuando diretamente nos prédios do centro histórico, elaborando diagnósticos e projetos de restauro. Em alguns casos, poderão colaborar na própria execução do restauro, inclusive utilizando os laboratórios que estarão instalados na sede do curso.
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QUAIS AS ESTRATÉGIAS PARA DIALOGAR E ESTREITAR RELAÇÕES COM MORADORES E TRABALHADORES DO CENTRO HISTÓRICO? EMMANUEL TOURINHO: Ao cuidar do patrimônio arquitetônico de Belém e ao agregar atividades culturais ao projeto de ocupação do Mercedários, estamos interessados em favorecer a interação da UFPA com aqueles que trabalham pela valorização do centro histórico da cidade. Muitos projetos inovadores, por exemplo, de extensão, envolvendo toda a comunidade do entorno, poderão ser concebidos e executados a partir dessa interação.
Nosso propósito é fazer da presença da UFPA no Mercedários uma oportunidade para incrementar as relações com atores sociais que buscam a valorização cultural da cidade, a exemplo do Projeto Circular, do qual a UFPA tem sido parceira.
O DISCURSO QUE O SENHOR FEZ NA ABERTURA DO CURSO LIVRE SOBRE O GOLPE DE 2016, NO CENTRO DE EVENTOS BENEDITO NUNES, FOI BASTANTE APLAUDIDO. PODERIA FALAR DESSE MOMENTO? EMMANUEL TOURINHO: Minha fala naquele momento foi uma reação à onda de histeria
A universidade é parte da sociedade e sofre as consequências da crise política e econômica enfrentada pelo país.” 15
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antiesquerda que está na moda e que está fazendo muito mal ao país, abrindo espaço para a propagação de ideias antidemocráticas e, em alguns casos, mesmo fascistas. Precisamos entender que não há saída para o país fora da política e da democracia. Os erros cometidos pelos governos de esquerda, como os dos demais governos, não anulam as suas realizações, inclusive na recuperação das universidades públicas, que são fundamentais para o desenvolvimento econômico e social do país e que haviam sido sucateadas nos anos noventa.
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A universidade será sempre o espaço da crítica e do debate suprapartidário. Nela, circulam todos os dias os mais diversos entendimentos sobre os grandes problemas do país. Os que a acusam de partidarismo reagem sempre às falas que contrariam as suas convicções, enquanto acolhem com conforto tudo o mais. Reagem como se estivéssemos perturbando o seu conforto intelectual e é isso mesmo que acontece. Ocorre que é nossa função provocar a reflexão crítica sobre as várias leituras da realidade em debate na nossa sociedade.
QUAIS AS PERSPECTIVAS PARA AS UNIVERSIDADES EM MEIO AOS EMBATES POLÍTICOS QUE ESTAMOS PASSANDO? EMMANUEL TOURINHO: A universidade é parte da sociedade e sofre as consequências da crise política e econômica enfrentada pelo país. O acirramento dos conflitos sociais, a supressão de direitos, a redução da renda dos mais pobres, o desinvestimento em políticas sociais, tudo isso tem repercussão nos nossos campi. Como cultivamos um ambiente democrático, conseguimos
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bastante. Até agora, temos conseguido manter o funcionamento regular da instituição e realizar muitos projetos, mas é preciso registrar que poderíamos estar fazendo muito mais, avançando muito mais rapidamente no atendimento das demandas da nossa população.
ESSA É UMA DAS AÇÕES DE SUA GESTÃO NA REITORIA DA UFPA. QUAL O SEU PROJETO A DESENVOLVER ATÉ 2020? EMMANUEL TOURINHO: Nossa gestão é guiada por dois propósitos muito simples e, ao mesmo tempo, fundamentais para o cumprimento da nossa função: excelência acadêmica e sintonia com os grandes problemas da nossa sociedade. Na área acadêmica, estamos revisando o nosso modelo de formação na graduação e investindo fortemente na recuperação e criação de laboratórios de ensino. Na pós-graduação, intensificamos o esforço para elevar o nosso sistema ao padrão das melhores universidades brasileiras e já estamos colhendo excelentes resultados, inclusive na cooperação internacional. Na interação com a nossa realidade social, fortalecemos os programas de assistência estudantil para consolidar o processo de inclusão iniciado há alguns anos; estabelecemos novas parcerias com instituições que atuam na área social, a exemplo da República de Emaús, com quem publicamos um edital para o apoio a projetos de extensão; temos vários projetos nas áreas de saúde, regularização fundiária e promoção da cidadania. Temos dialogado intensamente com os movimentos sociais e com o setor empresarial, visando criar novas condições para transferir para a sociedade o conhecimento produzido na UFPA. n
debater essas questões de um modo que fortalece a instituição. Na parte financeira, a situação é muito grave. Temos realizado um enorme esforço de gestão, priorizando ações que geram um impacto acadêmico e social mais abrangente e imediato. Também temos cultivado o diálogo com potenciais parceiros, incluindo órgãos dos governos e parlamentares, buscando soluções. Este ano, conseguimos uma emenda parlamentar da bancada do Pará que vai nos ajudar
Nossa gestão é guiada por dois propósitos muito simples e, ao mesmo tempo, fundamentais para o cumprimento da nossa função: excelência acadêmica e sintonia com os grandes problemas da nossa sociedade.”
*Emmanuel Zagury Tourinho Tem 55 anos. É o 13o reitor da Universidade Federal do Pará, o 7o eleito diretamente pela comunidade acadêmica, e atual presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES). Atua em ensino e pesquisa em Psicologia, com produção científica na área de processos comportamentais culturais.
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ENSAIO FOTOGRÁFICO PAULA SAMPAIO
VESTÍGIOS COMPARTILHADOS
MERCEDÁRIOS: UMA EXPERIÊNCIA. Por PAULA SAMPAIO*
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unho de 2018. O trânsito estava pesado naquela manhã na Boulevard Castilhos França. O Ver- o -Peso e o comércio já fervilhavam, e ainda não eram nem 8h. Mas, ao entrar no pátio central do Conjunto dos Mercedários, fui envolvida por uma atmosfera reconfortante. Raízes, folhas e sombras cobriam de silêncio as portas, os arcos, os resquícios de canhões que um dia viram batalhas e a placa sugestiva de “Saída de emergência”, fixada aos pés de uma cruz. As cicatrizes deixadas pelo tempo eram visíveis naquele lugar: a natureza invadindo as fendas das paredes centenárias, as ausências, as águas infiltradas, as teias de aranha e muitos esquecimentos. No entanto, uma força genuína exalava daquele ambiente, daquela casa que atravessou séculos e está no presente. Esse
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tempo que abriga nossos corpos e urgências. Precisei, então, me deter neste presente. Fiz mais duas breves visitas aos Mercedários e em uma delas conheci o senhor Carlos Magno (funcionário antigo, guardião de memórias), que abriu portas e janelas para mim e contou histórias para Lu. Rodei pelo entorno tentando traduzir em imagens o sentimento que esse lugar me provocou. Eu pretendia fazer um ensaio fotográfico. Mas essa ideia acabou reduzida a algumas poucas fotinhas, vestígios somente, aqui compartilhados. Entendi que as fotografias - naquele momento para mim, estavam no canto furtivo dos pássaros, no cheiro da madeira das escadas, nas lembranças do senhor Magno, na simpatia de Renausto Cabral e Antônio Júnior, da equipe de segurança que me recebeu. As fotografias ficaram, enfim, nas sensações e na minha imaginação. n
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*Paula Sampaio Nasceu em 1965, em Minas Gerais, mas escolheu Belém para viver e trabalhar. É fotógrafa e estudante de História Social/PPHISTUFPa. Mais detalhes sobre a fotógrafa e seus trabalhos no site www. paulasampaio.com.br
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LUGAR DE ENSINO E PESQUISA PARA O RESTAURO O PRÉDIO HISTÓRICO DOS MERCEDÁRIOS ABRIGARÁ A PARTIR DESTE ANO O LABORATÓRIO DE CONSERVAÇÃO, RESTAURAÇÃO E REABILITAÇÃO (LACORE – UFPA) QUE DESENVOLVERÁ UM TRABALHO ÚNICO, INOVADOR E PIONEIRO NA REGIÃO NORTE, NA ÁREA DO ENSINO DO RESTAURO E CONSERVAÇÃO.
Por LUCIANA MEDEIROS Fotos OTÁVIO HENRIQUES
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m abril, a UFPA assinou o contrato de cessão do prédio e ocupará, ainda este ano, o Convento dos Mercedários. O local se tornará a nova sede do Lacore, para instalação de cursos de graduação e pós-graduação multidisciplinar em Conservação e Restauro, bem como cursos de capacitação técnica para profissionais que já atuam em projetos de restauro. O prédio é monumental, histórico, data de 1640, e está cravado no bairro da Campina em pleno Centro Histórico de Belém, o que para o Lacore não poderia ser melhor, uma vez que atua diretamente com projetos de pesquisa em restauração do patrimônio arquitetônico e bens culturais inerentes ao patrimônio histórico. Referência na região Norte, o Lacore surgiu com objetivo de estudar os materiais e técnicas tradicionais do restauro, avaliar o processo de degradação químico, físico e biológico das edificações históricas e dos materiais. Desenvolve novas tecnologias de restauração apropriadas à realidade amazônica, além de aplicar o conhe-
cimento das diversas ciências na salvaguarda do patrimônio edificado, urbanístico e arqueológico e estudar estratégias de reabilitação urbana. Inaugurado em 2011 pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da UFPA, o Lacore vem funcionando como apoio a disciplinas afins na graduação e pós-graduação de Arquitetura e Urbanismo e de Geologia e Geoquímica, voltado
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▲ à produção de conhecimento técnico-científico para a conservação, restauração e reabilitação de bens culturais, móveis e imóveis, em áreas e sítios históricos urbanos e rurais. Em oito anos de atuação, o espaço de funcionamento no campus ficou pequeno pela demanda de alunos e projetos, por isso as coordenadoras do Laboratório, as professoras e arquitetas cientistas da conservação Thais Sanjad, Roseane Norat e Flávia Palácios vinham procurando, desde 2015, um espaço mais adequado. Em contato com a arquiteta Dorotéa Lima, então superintendente do IPHAN, souberam do Convento dos Mercedários. O próprio IPHAN já vinha cogitando de ocupá-lo também. “Num primeiro momento iríamos dividir os espaços entre IPHAN e UFPA, mas com a desistência do IPHAN, nós reformulamos o projeto que além do que já estava previsto, com a implantação do novo curso de Conservação e Restauro e a instalação do Laboratório LACORE e outros laboratórios parceiros, também incorporou outras ações e instalações da universidade”, explica Roseane Norat. Núcleo da universidade dentro do centro histórico de Belém, o Lacore trará benefícios relacionados ao patrimônio histórico, mas também
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sociais. Espera-se aperfeiçoar a questão da educação patrimonial, por exemplo, junto à população, oferecendo espaços de convivência e atividades culturais para quem transita naquela área, como biblioteca, café e livraria.
PROPOSTA PIONEIRA NA REGIÃO NORTE A proposta de implantação do Curso de Conservação e Restauro da UFPA é pioneira na região norte neste tipo de concepção. “Na verdade nem no nordeste ou centro oeste existe um curso específico de graduação bacharel para isso”, diz Thais Sanjad. As primeiras turmas da graduação já começarão a ser formadas no próximo vestibular, em 2019, mas a ideia é que a se inicie logo os cursos com nível de extensão para formar auxiliares, mão de obra com conhecimento adequado e que possa ajudar os restauradores. A ideia é trabalhar a questão do patrimônio de forma multidisciplinar, atuando em áreas da Arqueologia, das Engenharias, Física, Geologia, Mineralogia, Química e Biologia, e ainda em correlações específicas com História, Artes Visuais, Geografia, entre outras.
FLÁVIA PALÁCIOS, THAIS SANJAD E ROSEANE NORAT, COORDENADORAS DO LACORE
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A interação com a sociedade também será provocada pela própria dinâmica dos cursos, que terão aulas ao ar livre em pleno centro histórico, proporcionando troca maior entre o que se produz de conhecimento na universidade e a sociedade que deve ser beneficiada por estas pesquisas. “O centro histórico é rico de informações e em termos de demandas. Será uma troca permanente. Vamos formar alunos que poderão entrar em contato com um local onde existe uma demanda enorme de preservação desse patrimônio. E queremos mudar o quanto antes”, diz Thais Sanjad. “Essa proximidade deixa tudo mais fácil, nos fortalece muito mais. É muito importante para universidade estar aqui no centro histórico, foi uma grande conquista”, diz Flávia Palácios.
MUDANÇAS POR ETAPAS Desde abril que as visitas das coordenadoras do Lacore são constantes ao prédio. Thais, Roseane e Flávia observam que ele está bem conservado. Dentro do que se tem em Belém em termos de edificações sem uso, não há dúvida que isso possibilita que a UFPA inicie a ocupação já neste segundo semestre de 2018.
Somos um grupo interdisciplinar, transdisciplinar, em que várias pessoas diferentes trabalham com o patrimônio, em várias frentes, até porque o patrimônio permeia varias área do conhecimento.”
— FLÁVIA PALÁCIOS
Uma joia da arquitetura na Amazônia, no térreo o prédio possui uma espécie de jardim de inverno, com açaizeiros, jambeiro e seringueiras. É possível ouvir passarinhos ali, rodeado por paredes que de tão espessas nos protegem do calor tórrido de Belém do Pará. É um espaço privilegiado. Entramos num outro clima, literalmente. Antes de chegarmos ao auditório, há um memorial dos Mercedários, com painés de fotos e informações sobre o prédio. Foi feito por alguns professores da Universidade Federal do Pará anos atrás. Ali a gente fica sabendo que depois do incêndio em 1978, ele foi restaurado e algumas coisas do edifico já não são mais originais, principalmente nos pavimentos superiores. Foi preciso restauro e reconstrução para se recuperar o Mercedários, cuja cobertura foi perdida em sua totalidade. Depois da reforma o prédio ganhou área de estacionamento interno, casa de máquinas, houve reconstrução do telhado e há áreas que ganharam reforço com placas de aço. Atualmente as paredes do auditório, com argamassa, estão com salinização e há problemas de umidade no prédio. No entanto, ainda há pedras de liós de origem possivelmente portuguesa, piso de ladrilho e um pedaço da escadaria, também originais. Também são originais os gradios, como o portão de ferro, possivelmente inglês, que abre para a rua Gaspar Vianna em frente à Praça Barão do Rio Branco ou simplesmente Praça das Mercês, como é mais conhecida. “Vamos iniciar a intervenção no prédio de forma que o Convento Mercedários seja o foco de uma escola oficina. Ou seja, ao mesmo tempo em que a gente inicia a recuperação do patrimônio, a gente também começa a formar mão de obra especializada. Na graduação vamos formar conservadores e em nível de pós-graduação desenvolveremos pesquisas especificas para nossa realidade amazônica”, diz Thais Sanjad. A proposta de mudança completa, porém, prevê várias etapas. “A inicial prevê algumas adaptações não descaracterizantes, a parte elétrica e outras coisas mais pontuais. Depois uma segunda etapa de preparação para a instalação dos cursos e uma terceira etapa, bem maior, que é a restauração de todo o complexo”, finaliza Roseane Norat. n
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PERFIL
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ABEL LINS
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ENIGMAS NO FINAL DE UMA TARDE PRETÉRITA É DOMINGO. A TARDE ESTÁ NO FIM QUANDO DOBRO O LARGO DA SÉ E CAMINHO EM DIREÇÃO A UM PRÉDIO NA ESQUINA COM A SIQUEIRA MENDES, E QUE FICA DEFRONTE À SEDE NÁUTICA DO REMO E TAMBÉM DO BAR PALAFITA. A QUANTIDADE DE CARROS ESTACIONADOS PELOS ARREDORES É IMPRESSIONANTE.
Por MARCO TUMA Fotos: OTÁVIO HENRIQUES
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s duas sedes parecem ter se unido em um evento comum, e o entre e sai delas não para. Além da festa que acontece nos fundos, há um DJ no salão da frente do Palafita, que tem as janelas abertas para a rua. O som é muito alto, batidão e techno-brega que se misturam ao badalar dos sinos da Catedral chamando para a missa das cinco. Sou atendido por uma menina de uns 13 anos. Ela aproveita e desce os curtos degraus que levam de dentro de sua casa para a calçada, que tem um aspecto desmazelado, porém limpo. Há um gatinho parado no último degrau e ela o acaricia. Pergunto pela mãe dela, e ela me responde que a mãe saiu. O pai me aguarda lá dentro. A casa é simples. Suas janelas também estão abertas, para espantar o calor. As da sala da frente recebem o impacto direto da festa que acontece do outro lado da rua. Também dá para ver a Baía do Guajará. O Dj está trocando de música quando de trás de uma cortina que separa o cômodo em que estou da parte mais íntima da casa, sai um senhor esguio, de olhos azuis, dono de uma calvície que tomou o lugar de uma cabeleira loira. Ele me cumprimenta e me aponta uma mesa sobre a qual um café quentinho está esperando, acompanhado por
açúcar de coco. Uma delícia. O senhor se queixa da barulheira que lhe invade a privacidade. Conta que essas festas se tornaram mais constantes, e que geralmente vão até de manhã. Na última ele não pôde dormir a noite toda e nem no dia seguinte. Há um pesar quando ele comenta que aquele público é apenas flutuante, nenhuma delas parece gastar um pouco do seu tempo pensando na Cidade Velha. O senhor com quem vim conversar se chama Abel Jáder Ferreira de Almeida Lins. Ele tem 59 anos, e eu o conheci durante as reuniões da Rede da Sereia, um grupo formado por moradores da Cidade Velha para pensar inciativas culturais para o bairro. Vejo no Abel qualquer coisa de enigma. Ironicamente ele é como a sala em que nos sentamos para conversar, ou seja, bem no encontro entre os sinos de uma catedral e a discotecagem de um DJ, ainda que isso não responda nada realmente sobre ele. Afinal eu o convido para que fale, e é como em todas as vezes. Ouço uma voz de fala franca, calma e cadenciada, pontuada por sorrisos, e cheia da disposição própria de quem tem a intenção de clarear o ouvinte, convencê-lo do que é justo. Chego a pensar que se a civilização, esta ideia que também é realidade que é dificuldade, ganhasse uma voz ela teria que soar igual à do Abel.
— As pessoas custam a acreditar que fui nascido e criado na beira do rio, do Rio Parauaú, estreito de Breves. Eu fui criado sem energia elétrica até os dez anos de idade. Tenho hábitos de índio e de caboclo, e não sabia que existia diferença entre mim e as crianças mestiças com quem convivia até vir para a cidade e ver que as pessoas estabeleciam esta diferença. Belém é uma cidade que vive no futuro do pretérito. Era para ter sido a Nova Lusitânia do Marques de Pombal, mas ele venceu a luta com a Inquisição e ficou por Portugal mesmo; era para ter sido a Paris na América do Lemos, mas houve a falência da borracha amazônica; era pra ter sido a metrópole da Amazônia, mas os grandes projetos de desenvolvimento do regime militar esvaziaram a cidade. O problema é que essas ideias de transformação sempre esbarram numa ideia maior, de que Belém foi feita para que os caboclos não entrassem na cidade. Os Igarapés que cortavam toda a cidade foram eliminados porque eram vias de trânsito de tapuios e caboclos dentro de uma cidade de brancos, e era mandatório dos governantes que eles não se misturassem. O rio e a cidade. A festa e a missa. Mas não é tão simples assim definir as coisas nas suas aparentes contradições. Que dirá das pessoas. Ainda assim é o que tendemos a fazer na maior parte dos nossos relacionamentos. Lembro que o Abel é um seguidor, e mesmo um divulgador, da comunicação não-violenta, em que um relacionamento deve ocorrer no entendimento que há uma distinção entre observações e juízos de valor que deve ser superada, como as diferenças que as pessoas estabelecem entre esta e aquela pele. Mas não é essa distinção mesma que devemos superar que é a marca da civilização como a entendemos. O enigma continua difícil.
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Abel foi incapaz de se resignar a essas “diferenças” e à praticagem que as conduziam, quem sabe, como ele próprio palpita, devido a uma herança de família: o avô, patriarca da família Lins, há mais de cem anos era jornalista em Alagoas, além de advogado de Direitos Humanos, exercendo o Direito como deve ser exercido. Isso os coronéis de lá não admitiram, e ele teve que abandonar o nordeste sob ameaça de morte. Aqui no Pará se tornou juiz, e continuou tendo problemas, desta vez com os políticos locais da época, que queriam lhe impor aquilo que o direito não lhe impunha. — Sou inquieto, nem tanto fisicamente, mas mentalmente. Sempre fui crítico. Vim para Belém estudar pra trabalhar como torneiro mecânico, mas nos anos 80, com a ditadura ainda existindo, entrei na Faculdade de Ciências Agrárias, onde não me formei. Eu era em certa medida um agitador, porque estava muito descontente que enquanto a Universidade Federal do Pará estivesse se democratizando, ali fosse um reduto direitista, conservador, onde os professores prendiam os alunos em sala de aula, além de serem todos informantes do SNI. Depois passei por Letras, até que finalmente me formei em Turismo, já depois de três filhos criados, e apesar dos professores me detestarem, porque eu afirmava que o turismólogo tinha que ser um guardião do patrimônio histórico, artístico e cultural. Assumir esse papel não cabia na concepção deles. Sou surpreendido com o que ele continua me contando, entre um gole e outro de café. Tanto o ativismo quanto as represálias o seguiram pelas várias ocupações que exerceu, ao seu Abel, sumano, sem carça, sempre batendo mata fechada, abrindo estrada pra que a vida pudesse passar, ainda que nunca sozinho, continuamente articulando projetos que amparassem o bem social e coletivo nas comunidades que teve chance de conhecer, mas evitando os perigos do partidarismo, que, ainda que finja o contrário,
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pouco pode fazer por esta ideia mínima de civilização que o Abel representa, e que peço para que me explique. — O ser humano que é ser humano não coaduna com os muros que as ciências levantaram, estes paredões do convencionalismo que separam Hamlet de sua tigela de açaí. Passo a entender um pouco mais. O enigma ganha algum contorno. O que o Abel tomou como rumo de vida foi acreditar que a superação vem com valores universais, capazes de reabrirem as veias de uma cidade, do sino e do batidão encontrarem alguma canção que possam tocar juntos.
Mas eis a demanda: com todas as partições políticas, culturais, sociais, sexuais, enfim, com tanta diferença, não deve ser possível mais um humanismo secular, se é que em Belém já foi um dia. Abel pausa um instante. O DJ não. Abel cruza os dedos. O DJ os balança no ar chamando para a pista. Um casal sai gargalhando da festa. Num arroubo, Abel me diz: — Quem é que devem ser as estrelas de um evento cultural gastronômico em Belém? É o Mestre Vavá, é o Mestre Bené, pessoas que não sabem ler, ou escrever, mas são os fazedores de farinha, de carimã, de mandioca, são tratadores de peixes.
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▲ São com essas pessoas que eu uso o termo elite cultural, porque eles nos ensinaram a dançar, a comer, a dormir em rede, a dormir na hora mais quente do dia, entre meio dia e três da tarde, que afinal não é um ato de vagabundagem, mas um ato de saúde pra não pegarmos câncer de pele. Nós podemos ser caboclos morando na cidade, com os hábitos, trejeitos, roupas de caboclo sem que nos diminuam por isso. E a Cidade Velha pode entender isto? Este bairro que são na verdade várias Cidades Velhas? Enquanto pergunto olho pela janela, e já é noite. O rio está escondido no escuro.
ALIMENTOS SEM AGROTÓXICOS, NA PORTA DA CASA DE ABEL
Belém não se conhece, não se respeita, não se impõe”.
— Eu nunca havia morado na Cidade Velha. Meus primos e irmãos sim, e eu os frequentava, quase todos com casa ali na rua da Vigia, atrás da Sé. — Rua da Vigia? Qual é essa rua Abel? — Rua da Vigia. Ah, a Felix Rocque. Aliás é uma agressão mudar nome de rua. Mas enfim. Eu e minha companheira atual, com quem tenho uma filha adolescente, decidimos nos mudar para a Cidade Velha, por vários motivos mas com um objetivo: trabalhar com a comunidade o seu pertencimento a este lugar, o território que lhe dá identidade. Belém não se conhece, não se respeita, não se impõe, e eu vejo que o único lugar que as pessoas buscam identidade em Belém é no Ver-o-Peso. Eu me incluo entre elas. Gosto de andar pela Cidade Velha, porque tento sentir o seu espírito. Hoje eu o sinto deprimido, perante uma percepção dele de decadência, com casas abandonadas, muitas casas à venda. Mas também noto que algumas pessoas, como as que põe plantas nas portas de casa ou agitam culturalmente, socialmente, estão dizendo que a gente pode se reinventar, pode voltar a ter uma vida de bairro. Eu não posso fazer sozinho, mas com elas posso. Os sinos tocam anunciando o fim da missa. A festa não dá sinais de parar tão cedo. Despeço-me do Abel, agradecido, mas ainda não tão certo do que ele representa, se humanismo, se utopia. Talvez contradição, mas esta não pertencerá mais a mim do que a ele? Abel me leva até a porta — Eu não tenho receio da velhice, mas devo ser sábio na velhice. Eu não queria que resolvessem. Eu queria resolver, mas aprendi que não vou mudar o mundo sozinho. Eu nasci num barco, e cresci num barco. Eu andei nos piores barcos da Amazônia, mas quando tive meu primeiro filho, quando o levei pra viajar comigo eu temi pela segurança dele, e aí aprendi que eu não era corajoso, mas inconsequente. O que temo é que esses prédios da Cidade Velha desabem antes que a gente aprenda a ser sábio. Dou adeus novamente, e já ia uns quinze passos no rumo de casa quando pensei numa pergunta, a última, e ia voltar para fazê-la quando senti uma mão segurar meu ombro. Abel tinha vindo atrás de mim. — E eu quero ser reconhecido como um paraora. Ele deu um sorriso e uma boa noite. Ali perto, as pessoas saiam da catedral parecendo cheias de ânimo, parecendo cheias de festa. n
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MEMÓRIA, ARQUITETURA E HISTÓRIA
DO SOBRADO AZUL À SEDE DA FUMBEL JÁ NÃO HÁ VESTÍGIO, MAS É CERTO DE QUE HAVIA UM SOBRADO AZUL DE DOIS PAVIMENTOS SITUADO ALI NA RUA PADRE CHAMPAGNAT S/Nº, ESQUINA DA RUA DR. ASSIS, NA CIDADE VELHA, BAIRRO HISTÓRICO DE BELÉM. DO SÉCULO XIX, APÓS UMA CHUVA DEMORADA E DEVIDO AO PÉSSIMO ESTADO DE PRESERVAÇÃO ELE FOI AO CHÃO, DANDO LUGAR A OUTRO PRÉDIO, QUE ATUALMENTE, EM ESTADO AVANÇADO DE DEGRADAÇÃO, AGUARDA PELO RESTAURO, TEMENDO QUE TENHA O MESMO DESTINO. LITOGRAFIA DE JOSEPH LEONE RIGHINI (1867)
Por LUCIANA MEDEIROS Foto CLÁUDIO FERREIRA
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existência do sobrado pode ser confirmada numa litografia de 1867, onde vemos uma edificação na cor azul, estilo colonial de dois pavimentos, localizado na antiga Rua do Espírito Santo (atual Dr. Assis), esquina com o Largo da Sé. Assinada pelo artista italiano Joseph Leone Righini, está publicada por Conrad Wiegandt, no álbum Belém do Pará: Panorama do Pará em Doze Vistas (RIGHINI, 1867). A imagem da obra está anexada a um documento de identificação histórica sobre a sede da FUMBEL, que foi construída no mesmo lugar, e é um dos prédios selecionados pelo Governo Federal, para receber recursos de restauro do PAC - Cidades Históricas, de acordo com a Portaria nº 383 de 20 de agosto de 2013, publicada no Diário Oficial da União – Seção 1, página 6, no dia 22 de agosto do mesmo ano. A pesquisa, realizada em 2015, também localizou uma foto do Largo da Sé no livro American Consul in Amazônia de John Orton Kerbey (1911), identificando um conjunto de casas de vãos que em toda a sua extensão iam até a Rua Siqueira Mendes. Um casario lindo, mas que como muitos outros em Belém também já desapareceram ou foram modificados. De acordo com relatos de
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antigos moradores, o sobrado foi o único que permaneceu em pé até 1960, mantendo suas características originais. “A entrada principal era pela Dr. Assis com esta fachada apresentando no térreo, cinco vãos em arco pleno incluindo a porta central, com acesso direto para este pavimento e para o pavimento superior por meio de ampla escada...”. Há informação de que após uma chuva torrencial, parte dele ruiu e de que assim foi deixado pelos últimos inquilinos, Maria Violeta Vasconcelos Souza Filho e Ernestino Souza Filho, jornalista e advogado, proprietário da Revista A Semana. Os donos moravam em Portugal e não fizeram questão de restaurar o enigmático sobrado azul,
que logo foi reduzido a ruínas, desaparecendo completamente daquela paisagem. O terreno também ficou vazio por muitos anos até que foi concedido à Prefeitura de Belém. Ficando sob a responsabilidade da Companhia de Desenvolvimento e Administração de Belém – CODEM, em 1988 foi criado o projeto arquitetônico que ergueu o novo prédio em estilo contemporâneo, mas com elementos que remetem ao passado. Inaugurado em 1992, foi primeiro sede da Nossa Oficina, uma unidade da Fundação Papa João XXIII. Passou nesse período pela primeira reforma e foi reinaugurado em 1999, com a mesma função, até que em poucos anos recebeu novas intervenções e, em 31 de janeiro de 2003, passou a ser a sede da FUMBEL.
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SEDE DA FUMBEL, EM BELÉM DO PARÁ
CHUVAS, TROVOADAS E PRAZO PRORROGADO O descaso ou a triste coincidência com a história do sobrado azul dos proprietários portugueses, é que foi também após uma forte chuva, em 2014, que se deu o processo da desocupação e consequente abandono do prédio que se sobrepôs às ruínas da antiga edificação. Em estado de degradação avançada, a sede da FUMBEL aguarda o desenrolar de um longo processo que garante seu restauro com os recursos do PAC Cidades Históricas. É urgente a restauração do prédio, e isso quem passa pelo Feliz Lusitânia, não pode deixar de notar, mas para ter os recursos liberados pelo PAC, a prefeitura precisa cumprir etapas de apresentação de documentos e projetos necessários à execução da obra, aprovando-os mediante as leis de patrimônio. Já foram entregues e aprovados pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN, o documento de Identificação e Conhecimento do Bem, onde está o levantamento geral sobre o prédio e seus antecedentes históricos, daí o achado do sobrado azul, e o Anteprojeto, que foi entregue em 20117, trazendo informações do projeto de restauro.
O Projeto Básico, que está em análise, reúne um conjunto de informações técnicas, estabelecendo diretrizes para os projetos complementares do restauro, e precisa ser aprovado para que seja dado início ao último documento, o Projeto Executivo, que consiste no desenvolvimento e detalhamento das informações prestadas na etapa de Projeto Básico. Após essa revisão é que se chega à execução, com definição de orçamento e fixação de prazo de finalização e entrega do prédio restaurado. O prazo para a contratação desses dois últimos projetos de restauração estava previsto para 11 de junho de 2018, mas alegando que só agora o Projeto Básico está sendo aprovado e que não haveria tempo hábil para a apresentação do Projeto de Execução, na referida data, a prefeitura pediu, e obteve do IPHAN, a prorrogação do prazo, mediante a um Termo Aditivo ao Termo de Compromisso PAC CH nº 274, assinado pelo prefeito Zenaldo Coutinho (SEI nº 0529099). “O processo para a contratação de projetos para a Restauração da Sede da Fundação Cultural do Município de Belém está sendo retomado pela prefeitura, que assinou entre maio e junho deste ano esse termo de aditamento que prorroga até oito de novembro deste ano, o prazo para entrega dos pro-
jetos de restauração, em acordo com as diretrizes estabelecidas nos instrumentos legais pertinentes”, confirmou a Superintendência do IPHAN - Pará. O prédio da FUMBEL não é tombado, mas fica no entorno da Praça Frei Caetano Brandão, que aí sim, é tombada pelo IPHAN desde 1964, e é vizinho de monumentos igualmente tombados, de valor histórico e arquitetônico, como a Catedral Metropolitana de Belém, a Igreja de Santo Alexandre, o Museu de Arte Sacra, o Forte do Presépio e o Museu da Casa das Onze Janelas. A localização privilegiada lhe deixa protegido por lei, em nível Federal (Decreto Lei Nº 25/37), que organiza a proteção do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, quanto em nível Municipal (Lei Nº 7.709/94), de Preservação e Proteção do Patrimônio Histórico Artístico, Ambiental e Cultural do Município de Belém. Enquanto não é restaurado o prédio, a sede da FUMBEL continuará sendo o Memorial dos Povos, que nestes quatro anos deixou de ser um espaço cultural da cidade. Nem anfiteatro para apresentações musicais, de teatro e dança, nem Sala Vicente Salles, onde havia a exposição em homenagem aos povos étnicos que ajudaram a formar a cultura do povo paraense. FONTE: IPHAN
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CRÔNICA DA CIDADE
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PALACETE PINHO O DESTINO QUE ELE VAI TER! COISA DO FAMIGERADO ETERNO RETORNO, DA SUSPEITA TEORIA DOS VÁRIOS AGORA, DA VELHA PÓS-MODERNIDADE SUPERMARKET, ENFIM, FOSSE DE QUEM FOSSE A CULPA, PARA ALGUNS BELEMITAS, A SUA BELÉM DO GRÃO-PARÁ ABRIA MÃO OUTRA VEZ NA HISTÓRIA DE SER O QUINTO IMPÉRIO, PARA PERMANECER COLÔNIA DE PORTUGAL, AINDA QUE TENHA QUEM PREFIRA A FRANÇA. POUCA NOVIDADE, ATALHARAM OS MAIS CÍNICOS, MAS QUE NÃO PASSARIA SEM PROTESTO, GESTO TAMBÉM LÁ NÃO MUITO ORIGINAL. MAS O QUE ERA AFINAL?
Por MARCO TUMA Fotos OTÁVIO HENRIQUES
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que a prefeitura atual, de 2018 para maior acuidade histórica e prevendo arrogantemente o nascimento de futuros leitores desta peça, ofereceu, sem lançar consulta pública e desrespeitando acordos do poder público com a sociedade, nada menos que o Palacete Pinho, prédio histórico no bairro da(s) Cidade(s) Velha(s), para ser fatiado entre empresários portugueses como se estes estivessem comprando na boca do açougue, que não passa afinal de um balcão de negócios, tais quais os que encontramos em um banco como o Banpará, por exemplo, apenas talvez menos sofisticado.
Então era isso? Lemos aplaudiria, se não lhe fosse partir os ossos com certeza, ainda que preferisse ver servido um Bordeaux nos prometidos restaurantes que abririam no Pinho ao invés do inevitável Porto. O propósito em torno da restauração do palacete lá nos anos 90 do século passado, que era o de servir à comunidade levando cultura aos filhos da baixa renda, era substituído pelo governo do momento por um outro mais afinado com o desejo descontrolado que ele tem de levar Belém pra frente de qualquer jeito e a sua maneira. Mas ora, Belém só anda quando o mundo gira, é o dito popular, mas talvez a triste verdade é que o mundo gire sem esperar por Belém. Que seja. Foi dado o alarme.
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Moradores vizinhos ao Palacete Pinho, alguns que estavam envolvidos nas políticas que cercaram o outrora acordo sobre o destino a ser dado ao prédio centenário após sua reforma, organizaram a oposição, que foi pública porque foi para a rua e publicada em jornais e numa petição para abertura de Ação Civil Pública junto ao Ministério Público exigindo revisão da tal ideia da prefeitura chamada Casa de Portugal (ainda que a bem da verdade o Palacete Pinho fosse mesmo casa de português, a lembrar do Comendador Antônio José de Pinho, que em 1897 pagou pelas telhas, os azulejos, os ferros de onde foi morar).
PROTESTO DOS MORADORES Houve ato defronte ao prédio na manhã do dia 4 de abril, para chamar a atenção dos belemitas para tamanho despudor dos governantes e para a coleta de assinaturas na citada petição. Houve faixas, biquesom, três PMs de vigia e moradores na sua maioria na casa dos quarenta e mais, batidos por uma luta vida afora por uma cidade que os satisfaça, ainda que vez ou outra quem os ouve falar tem a impressão do cansaço de lutarem realmente é contra a cidade, contra uma característica do espírito belemita que se pode desconfiar que seja preponderante, a de não conhecer a própria cidade, e no fundo não estar nem aí. Dizem uns que isso daí resulta de raízes históricas profundas, de termos sido sempre os
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quase-lá, mas que fracassamos nas armas, nas canetas e nas borrachas. Por isso uma postura do tipo que se nega a lutar porque a glória já está perdida de antemão, subjugada pela história, a dita e a não-dita. Mas o que se há de fazer? Pecaminoso mesmo seria deixar o Pinho vir abaixo. Os debates e desacertos entre gente e governo sobre o Pinho devem ainda durar muito. Enquanto isso, vamos assistindo às adições que o arquiteto original do Pinho não previu: um mato que se cola na fachada em estilo italiano e lhe dá aquela sensação tropical, um par de janelas que não só os cupins, mas o próprio vento parecem ter devorado, rachaduras que decoram com um quê de exótico, senão mesmo obsceno, os muros e paredes do prédio. Isso faz pensar se vale mesmo à pena discutir o Pinho, ou qualquer outro prédio ou monumento belemita. Talvez o que tenha que ser discutido, e pra valer, é o próprio belemita. Escrevendo esta peça me vi muitas vezes refletindo fortemente sem ir a lugar algum em termos de esclarecimento. Por medo? Afinal, sou eu também um belemita e, neste caso, partilho erros e defeitos, e virtudes vá lá. Mas pensar nesta questão de belemitas e Belém impõe tantas outras questões, que a cabeça exige um pouco de ar fresco se quiser continuar lidando com elas, e acabou que abandonei este texto no meio da noite para perambular um pouco pelas ruas desertas, naquele tipo de madrugada que é a chuva quem faz.
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OS DONOS DA CASA... E foi caminhando a esmo e meditando que acabei surpreendido pelo próprio Palacete Pinho, pois que numa curva e outra acabei sem querer emendando na Dr. Assis. E lá estava ele, cheio da imponência que combina com o escuro da noite e da decadência que cai bem a um burgo que não se decide entre a margem e o fundo do rio. Estava ali parado para a minha admiração solitária, meu desdém cansativo. Mas, de repente, ouvi um barulho de tranca sendo retirada, de chave girando pesadamente, e não é que abriam as portas do palacete. De dentro saiu uma pessoa, que veio caminhando vagarosamente pelo pátio sombreado. Vinha vestido de sobrecasaca cinza, usava cartola, e um ou outro brilho na sua aparência revelavam algum ouro. Não lhe vi bem o rosto, mas entendi que era um velho, de barba grisalha e farta. Chegou-se ao cadeado do portão, desfez a corrente e puxou uma das folhas de ferro, que reagiu com um langor que parecia misturar o tempo com a matéria. A tal figura ficou parada ali no vão, e percebi o esforço que fez, talvez porque eu estava na calçada do outro lado da rua, para que sua voz me alcançasse. Era uma voz perfeitamente normal. Os donos da casa vão recebê-lo agora, ele disse, vão tentar responder suas dúvidas. Mas como ele sabia no que eu andava pensando? Olhei para cima, para o segundo andar do palacete.
Estava totalmente às escuras, e não se ouvia nem via movimento de vivalma que fosse. Fiquei confuso e minha pergunta saiu quase murmurada. - Quem? O Pinho? A figura ficou muda um instante. Pareceu desorientada, e apesar de seus olhos estarem ocultos no escuro, eu sabia que ele me encarava, porém como se me enxergasse e não-enxergasse ao mesmo tempo, como se fossem os olhos que engasgassem nele ao invés da garganta. - Os donos da casa, repetiu. - Os donos dessa casa aí, e apontei para o prédio atrás da figura. Notei um nervosismo incipiente na minha voz, e sabia que ele tinha ouvido também. - Os donos das casas, completou e sua voz tinha um pouco mais de vitalidade, ainda que forçada, como se achasse esta a maneira correta de aliviar um desconforto que estava se tornando palpável não só na minha voz como também no meu corpo. Mas o efeito daquele plural repentino passou longe de me acalmar, e sem tirar os olhos da figura e nem lhe falar mais nada fui devagar tomando o rumo de casa, da minha no caso. Eles vão falar contigo, foi a última coisa que
ouvi a figura dizer, já quando o espanto cedia a um sentimento vago de qualquer coisa errada e perigosa que eu tinha que evitar. Apressei o passo, sempre olhando para a figura, que também me olhava com um porte um tanto desamparado nos ombros e o brilho intenso de ouro sob a luz do poste. Quando achei estar longe o bastante, parei e me virei. A figura tinha sumido. O portão estava trancado. O Palacete Pinho jazia no escuro, quieto esperando pelo futuro. n
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INICIATIVAS NO CENTRO HISTÓRICO
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BEC BLOCO UM BRINQUEDO DE SAÚDE O BEC BLOCO RETOMOU SUAS ATIVIDADES NO CENTRO HISTÓRICO NO MÊS DE JUNHO, PROMOVENDO AÇÕES NO ENTORNO DO PORTO DO SAL, NA CIDADE VELHA. ALÉM DISSO, OUTRAS ATIVIDADES JÁ ESTÃO PREVISTAS PARA SEREM REALIZADAS DURANTE ESTE ANO. TENDO COMO FOCO A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA, A INICIATIVA É VOLUNTÁRIA FEITA POR SERVIDORES DA REDE DE SAÚDE MENTAL, EDUCADORES, ESTUDANTES, FAZEDORES DE CULTURA E SIMPATIZANTES.
Por CAMILA BARROS Fotos GILBERTO GUIMARÃES FILHO
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BEC Bloco surgiu em janeiro de 2017, a partir do Coletivo Casarão Viramundo em parceria com o Dirigível Coletivo de Teatro. O Brinquedo de Encontro na Cidade (BEC BLOCO) é um cortejo percussivo e cênico, um bloco de carnaval para todas as épocas, buscando reduzir danos, um trabalho que pode ser feito tocando instrumentos e também como brincante. A atuação no bloco é rotativa, mas sempre priorizando as pessoas em situação de rua. “Um dos principais objetivos do BEC BLOCO é provocar o debate sobre a redução de danos e da luta contra as drogas, usando como método a ocupação artística da cidade, que é um dispositivo poético e político de reconstrução social, simbólico e afetivo”, ressalta a integrante do grupo Samara Milhomem, estudante de psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA);
Nos cortejos do BEC BLOCO há a presença de múltiplas linguagens artísticas, como canto, dança, literatura e performance de rua, ressaltando o espaço público enquanto um território de inclusão e de sustentação das diferenças, de manifestação livre a que todos têm direito. Por fim, o BEC BLOCO é uma rede heterogênea de variadas crenças e desejos. Do ponto de vista da atenção à saúde, as atividades do BEC BLOCO são uma forma de se criar uma forma de terapia, onde as pessoas de situação de rua recebem atenção e orientação. As atividades são feitas a partir de contribuições coletivas nos finais dos cortejos. O bloco não conta com apoio financeiro de nenhuma organização. n
CONTATO COM O GRUPO: https://www.facebook.com/casaraoviramundo/
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ARTIGO
ALGUNS SONHOS POSSÍVEIS
OU SOBRE O QUE CONSTRUÍMOS JUNTOS
Por RENATA AGUIAR* Fotos DIVULGAÇÃO
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a busca pelo lugar de pertencimento – desse que não é qualquer outro senão o que se apresenta na cotidianidade, íntimo, particular e imenso, dilatado pela contiguidade das águas, ruas, becos e estradas, caminhos, que meus modos de desvendar e falar sobre Belém e suas particularidades nunca deixaram de ser um olhar sobre o mundo vivenciado, um mundo no qual a Amazônia se faz presente por ser o ponto de encontro e de partida comum dos trabalhos desenvolvidos. A partir desse olhar surge um discurso sobre as especificidades amazônicas e a sua representação não estereotipada, em contraposição à imagem amplamente aceita e bem quista pela mídia, que trata a Amazônia como exótica ou selvagem, lugar sobre o qual se fala, mas que não fala de si. Assim é preciso perceber os cantos obscuros e pouco visitados da construção do discurso, espaço debilmente iluminado pela chama midiática, tentando construir para além do lugar comum do mercado e das padronizações das identidades com seus discursos homogeneizantes, uma arte que realize um universo social diverso e constitutivo de subjetivações não programadas. Foi pela fotografia que adentrei à arte, esse coexistir de mundos, que me permitiu circular em diversos ambientes, foi ela que me possibilitou viver também a cidade efervescente de espaços culturais de arte independente e “autopoiéticos”1, muitos deles organizados em circuitos interconectados de ações colaborativas como o
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projeto circular Campina-Cidade Velha. Espaços que surgiram como alternativa à falta de incentivo do governo e suas instituições oficiais à arte e cultura locais. Por falta de espaços suficientes, ou suficientemente abrangentes para abarcar toda uma geração crescente de criativos, artistas e produtores culturais, que não se enquadram ou não desejam se enquadrar nas possibilidades dos espaços institucionais, patrocínios e editais púbicos, de multinacionais ou bancos.
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Nesse contexto vivi o Casulo Cultural – casa de artista e galeria/estúdio experimental – entre espaços independentes que se mantêm em posição de resistência frente as dificuldades de viver de arte e de cultura no Brasil, principalmente no Norte e mais especificamente no Pará, espaços e coletivos que tem construído uma cena organizada e declaradamente política na cidade de Belém, mostrando a potência da arte em “coletivos, iniciativas coletivas e espaços autogestionados”2. É no Centro Histórico de Belém que artistas e produtores, pertencendo ou não a espaços físicos nômades ou sedentários, tem praticado um dos mais importantes papeis da arte: incomodar, questionar, ocupar. Revelando, narrando e criando realidades, na ebulição dos conflitos por muito tempo subcutâneos da cidade em abandono. Nos bairros da Cidade Velha e principalmente da campina, prostituição, venda e consumo de drogas, contrastam com os tradicionais moradores remanescente da Belle Époque3, artistas, coletivos e galerias de arte, atraídos pelos casarões históricos e alugueis baratos, se misturando e tencionando constantemente. O que resta da presença? Quais vestígios permanecem? Que importam as coisas que, se permanecem, são memória? Restam ruinas e esqueletos, pó; documentos e fotografias são vestígios, como uma antiga carta de amor dentro de livro comprado em um sebo na República, que carrega o indício da mão, já morta, que a escreveu. No entanto, memória é identidade para quem a possui e identidade é pertencimento. São experiências de um lugar praticado que para Michel de Certeau4 constituem um espaço, que passa a existir a partir da conexão e movimento de pessoas, fazendo emergir um novo mundo. Se os casarões são ruinas, ocupemos antes que caiam. Se o centro é decadente, que tudo que cai sirva de alicerce para o que virá. Façamos juntos então um mapa para “acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas”5 para aqueles que desejem caminhar por nossa geografia, para nos mesmos possamos. Criamos nesse lugar uma prática na forma de nos articular como artistas, coletivos e produtores, um fazer artístico que carrega um discurso de resistência as formas tradicionais de arte e vida na pequena província de Belém do Grão-Pará, um discurso poético-político que fizemos emergir a partir do trabalho colaborativo, um pequeno levante para além do constante indivi-
MATURANA, Humberto & VARELA, Francisco. A arvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana. São Paulo: Palas Athenas, 2001, p. 31.
1
PAIM, Claudia. Táticas de Artistas na América Latina: coletivos, iniciativas coletivas e espaços autogestionados. Porto Alegre: Panorama Crítico Ed., 2012.
2
Ocorreu na Amazônia no final do século XIX e início do século XX nas cidades de Belém e Manaus, o período foi marcado por intensa modernização de infraestrutura urbana financiada pelo Látex.
3
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1996.
4
PASSOS, Eduard; KASTRUP, Virginia e ESCÓSSIA, Liliane da. (Org.). Pistas do Método da Cartografia. Pesquisa- intervenção e produção de subjetividade. 2 ed. Porto Alegre: Editora Sulina, 2009, v. 1, p. 10
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dualismo do capital e do Estado, representantes do poder que se reforçam. Ser independente, fazer juntos e poder contar uns com os outros, confiar, nos construir na prática, nos reconstruir nas ruínas, lançar nossos corpos na liberdade de errar, ocupar a cidade, fazer de um lugar espaço de arte; eis alguns sonhos possíveis. n
*Renata Aguiar Graduada em Artes Visuais e Tecnologia da Imagem pela Universidade da Amazônia (UNAMA, 2011), Mestre em Artes pela Universidade Federal do Pará (UFPA, 2013). Manteve como artista, fotógrafa e produtora o Casulo Cultural, casa de artista e galeria/estúdio experimental onde desenvolveu trabalhos de criação e autogestão colaborativa e coletiva em arte (2014-2017). Atualmente vive em Belém, onde é professora na Fundação Escola Bosque e artista/ diretora do selo editorial independente Casulo Cultural.
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PROJETO CIRCULAR
GALERIA
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CLÁUDIO FERREIRA
REVISTA No 3 - JUL/2018
OTÁVIO HENRIQUES
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EXPEDIENTE REVISTA CIRCULAR
CONSELHO EDITORIAL
Edição 3
Alberto Bitar Makiko Akao
ISSN
Maria Dorotéa de Lima
2526-4354
Regina Alves Tamara Saré
EDIÇÃO
Luciana Medeiros Revista Circular https://issuu.com/projetocircular/docs
DESIGN
Márcio Alvarenga
E-mail: circular.comunica@gmail.com
FOTOGRAFIA
Cláudio Ferreira Otávio Henriques
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REVISÃO
E-mail circularcampina01@gmail.com
Yorranna Oliveira TEXTOS
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Camila Barros Luciana Medeiros Marco Tuma Renata Aguiar
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