REVISTA No 5 - AGO/2019 ISSN: 2526-4354
VOZES QUE HABITAM VISITAMOS A FAMÍLIA BOULHOSA VER-O-PESO DA POLÊMICA 5 ANOS DE HISTÓRIA HISTÓRIA, CAFÉ E BOLO RODAS DE CONVERSA COM MICHEL PINHO FOTO: CLÁUDIO FERREIRA
E MAIS: CIRCULAR REALIZA OFICINAS l NOVO ROTEIRO GEOTURÍSTICO l LANÇAMENTO DO LIVRO CASAS EXUMADAS l O PROJETO CIDADE EM F (R)ESTAS l ENTREVISTA COM FLÁVIO NASSAR l ACERVOS PARTICULARES E BIBLIOTECAS DE BELÉM
PROJETO CIRCULAR
SUMÁRIO
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CASARÃO BOULHOSA – VOZES QUE HABITAM E SIGNFICAM O LUGAR ....................................................................
CIDADE EM F(r)ESTAS – EM FOCO O PATRIÔNIO IMATERIAL ..................................................................................... HISTÓRIA, CAFÉ E BOLO – UM PAPO COM MICHEL PINHO ...................................................................................... CIRCULAR INICIA CICLO DE OFICINAS ............................................................................................................................. DO PÓLO JOALHEIRO AO IGARAPÉ DO PIRÍ – O NOVO PERCURSO DO ROTEIROS GEOTURÍSTICOS ............ VER-O-PESO DA POLÊMICA – 5 ANOS ........................................................................................................................... CASAS EXUMADAS – O LIVRO DE JEOVÁ BARROS ....................................................................................................... PELAS BIBLIOTECAS DE BELÉM – INVENTÁRIOS ....................................................................................................... ACERVOS BIBLIOGRÁFICOS SALVOS DO LIXO – ENTREVISTA COM FLÁVIO NASSAR ......................................
MEMORIAL DO LIVRO MORONGUETÁ – UM ESPAÇO DE HOMENAGEM E PESQUISA .....................................
GALERIAS DE FOTOS ..........................................................................................................................................................
HISTÓRIAS QUE ATRAVESSAM O TEMPO
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vida do homem, o registro sobre a imaterialidade e a conservação de edificações se confundem em uma viagem temporal tornando-se aquilo que chamamos de patrimônio. Um bom exemplo disso é a história de um casarão habitado há várias décadas pela Família Boulhosa, na Cidade Velha. Também acompanhamos a edição de aniversário de um ano do projeto o Cidade em F(r)estas, projeto desenvolvido por artistas e moradores do bairro mais antigo e Belém. Conversamos com o professor Michel Pinho, historiador. Ele coordena a equipe do projeto Circular na construção de um mapa afetivo do Centro Histórico de Belém, incluindo a História, Café e Bolo, que reúne moradores antigos, que nos trazem como patrimônio suas vivências e memórias. Em agosto, o Circular também inicia uma série de oficinas direcionadas aos moradores e trabalhadores dos bairros da Campina, Cidade Velha e Reduto, sem fechar as portas para quem vem de outros cantos da cidade. As inscrições podem ser feitas, de forma gratuita, pelo site www.projetocircular.com.br. E em setembro, o projeto Roteiros Geoturísticos estreia um novo percurso: Pela Estrada São José, atual Av. 16 de novembro. A professora Maria Goretti Tavares, que coordena o projeto da Faculdade de Geografia da UFPA, adiantou aqui alguns detalhes do levantamento e pesquisa realizados para contar a história desse novo roteiro. Outro assunto é o nosso Ver-o-Peso. Em 2014, o PAC das Cidades Históricas, do Governo Federal, disponibilizou um recurso de cerca de 14 milhões, hoje defasados, para a reforma da considerada maior feira livre da América Latina. Em 2016, o projeto de reforma chegou a ser divulgado por meio de maquete eletrônica, em meio às comemorações dos 400 anos de Belém. Não houve consulta pública e o IPHAN não aprovou o projeto, gerando, a partir daí, uma polêmica que segue sem desfecho, mas que este mês deve trazer novidades. Acompanhamos a reunião do Ministério Público Federal com os feirantes, surpresos com os novos desdobramentos junto à Prefeitura de Belém, que foi procurada pela nossa reportagem, mas se limitou a nos enviar uma nota de esclarecimento. Até
o fechamento da edição, estava em vista uma nova polêmica acerca da concessão de exploração do estacionamento, hoje em estado de abandono, sob a responsabilidade da administração municipal. Os fantasmas do patrimônio material também habitam este novo número da revista, no bate-papo com o professor e arquiteto Jeová Barros. Ele lança este mês, o livro “Casas Exumadas”, que traz desenhos arquitetônicos de edificações que sumiram no tempo, ou estão condenadas a desaparecer, por falta de manutenção e restauro. Um trabalho importante, histórico e repleto de afeto. E fizemos ainda um ‘tour’ pelas bibliotecas José Veríssimo, no Instituto Histórico e Geográfico do Pará, e pela Fran Paxeco, no Grêmio Literário Português, e visitamos também o Fórum Landi, onde estão quase 4 mil livros de bibliotecas que pertenceram a personalidades da cultura paraense. Os inventários estão sendo desenvolvidos com recursos de 400 mil reais, obtidos por meio de emenda parlamentar. O arquiteto e professor Flávio Nassar nos conta em entrevista como teve início o projeto e revela as características de cada acervo particular. Em breve, esperamos que sim, os livros das bibliotecas particulares irão compor os ambientes do Memorial do Livro Moronguetá, espaço previsto para funcionar no casario acoplado ao Museu de Arte Sacra, com vista para a Ladeira do Castelo, marco inicial de Belém. Desejamos uma boa leitura a todos! Luciana Medeiros Editora
N.E. Interessados em contribuir com a pauta de conteúdos da revista sobre o centro histórico de Belém, podem enviar sugestões para circular.comunica@gmail.com
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CASARÃO BOULHOSA – VOZES QUE HABITAM E SIGNFICAM O LUGAR ENTRAMOS NO CASARÃO BOULHOSA, UM DOS MAIS BONITOS DA CIDADE VELHA, E ENCONTRAMOS HISTÓRIAS QUE ESTÃO HÁ GERAÇÕES NA FAMÍLIA E AGORA, TAMBÉM, NA LITERATURA.
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Por WANDERSON LOBATO Fotos CLÁUDIO FERREIRA
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aminhando pela Cidade Velha é fácil ganhar tempo admirando a beleza dos casarões antigos, que são a característica do bairro. Para seus moradores, além da importância histórica para a cidade, o valor afetivo nascido ao longo dos anos de moradia é um sentimento que aflora quando o assunto é conhecer um pouco da história do local. No casarão localizado na Rua Dr. Malcher, n. 246 não é diferente. Conhecido no bairro como Casarão Boulhosa, a edificação ganhou o nome da família que vive no local desde 1962. Comprada em leilão, era a oportunidade que Francisco e Herundina, ribeirinhos da região do Rio da Fábrica, no município de Ponta de Pedras, viram para garantir a educação para os 13 filhos: Guilherme, Carivaldo, Edir, Maria Alice, Elizabeth, Margareth, Ernesto, Ivete, Edilson, Francisco, Georgeth, Joaquim e Humberto.
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Ernesto Boulhosa, memรณria registrada em livros
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PROJETO CIRCULAR
Os irmãos Ernesto e Margareth (nas extremidades da foto), com a tia Elizabeth Boulhosa
Espaço residencial atravessa os anos
Memórias com tábuas corridas
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“O plano era estudar. Nós viemos para essa casa para estudar. A mamãe que foi a grande incentivadora dessa história. Tinha essa preocupação de garantir a educação para os 13 filhos. Ela costumava dizer que ela era burra, mas que os filhos dela não seriam”, lembra Ernesto. Agrônomo por formação e escritor inquieto, Ernesto guarda ainda hoje o impacto que sentiu quando, aos 7 anos de idade, viu o prédio pela primeira vez. “Lembro que quando cheguei e vi aquele... aquele monumento! Uma casa grande! Lembro da entrada, de uma porta muito grossa de acapu. Uma escada, o corrimão, o corredor, os quartos, as salas, uma alcova. Depois o salão grande, onde hoje está a televisão. E depois mais os quartos”. No casarão, caminhando pelo piso de tábua corrida feito de madeira acapu, é natural voltar no tempo e passear pelo passado. Seja nos móveis antigos comprados junto com a casa – um relógio de parede, uma chapeleira, uma cristaleira e um piano. Ou nas fotos da família ao longo dos anos.
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ENTRE BRINCADEIRAS, LÁGRIMAS E CANÇÕES Numa manhã de junho, Maria Clara, 11 anos de idade, a terceira geração da família a viver no Casarão acompanha as lembranças de suas tias, Margareth e Elizabeth – as brincadeiras com os colegas na vizinhança, a casa como ponto de encontro dos colegas da escola. E a música que a mãe embalava os mais jovens: “Carneirinho, carneirão, neirão, neirão. Olha pro céu, olha pro chão, pro chão, pro chão. Peço a Deus, nosso Senhor. Para nos abençoar”. Maria Clara se emociona e, com lágrimas nos olhos, justifica, “saudades da minha avó (falecida em 2011)”. Logo mais, a menina participa da conversa e também compartilha de suas memórias afetivas, lembranças construídas com a vida na casa. “Minha avó costumava sentar nessa cadeira. Lembro das noites de Natal. Toda família reunida em torno da mesa de madeira”.
LITERATURA PARA NÃO ESQUECER Para Ernesto, quem não tem noção da importância do patrimônio histórico acaba descaracterizando todo o bairro. “Infelizmente, estamos nos deparando com a falta da memória, da preservação dela. O homem moderno está entrando tudo no imediatismo. Você não guarda mais a memória das coisas. É impressionante”.
FAMÍLIA MANTÉM TRADIÇÃO
Aos 64 anos de idade, Ernesto procura não esquecer de nada e guarda todas as lembranças em sua produção literária. Seu próximo livro, o 8º, deve homenagear a trajetória da mãe, contando um pouco da história da família de Ponta de Pedras a Belém. E, é claro, o casarão também é apresentado. Ernesto nos cedeu alguns dos trechos em que lembra de onde ele e os irmãos vieram, descrevendo uma Cidade Velha de outrora, mas presente ainda nos dias de hoje. Em sua narrativa, mergulhamos na cidade que conhecemos:
O Casarão Boulhosa possui 12 m de frente por 25 de comprimento, dividido em 12 compartimentos na parte de cima. Antes, não habitável, o porão foi modificado e hoje sobre o piso de cerâmica São Caetano, divide-se uma sala (onde funciona um consultório), quatro compartimentos, mais um espaço que abriga uma sala de jantar, uma cozinha e um chagão, que funciona como jardim e área de serviço. “Essa casa foi feita para nossa família. Sabe por quê? Nós éramos muitos. Tinha que ser uma casa realmente como essa. Tanto é que até hoje a gente se reúne pra manter essa tradição. Nós temos a tradição de todo o sábado estar aqui”, conta Margareth, professora de Enfermagem da Universidade Estadual do Pará. Para além do espaço físico, Margareth chama atenção para um traço importante do prédio que só pode ser percebido no dia a dia. “Essa casa só tem alegria se tiver fala. Ela precisa disso. Ela é uma casa que precisa da fala das pessoas. O motor dela é a fala. Acho que o movimento das pessoas faz com que ela fique mais alegre”. As irmãs lembram ainda que quando chegaram ali, a rua ainda não era coberta por asfalto, só por paralelepípedos. Elas contam que hoje nem a pedra sabão das calçadas está sendo preservada. “As pedras estão sendo retiradas sem autorização. Meu pai que veio do interior não fazia isso. Ele recuperou uma pedra aqui da frente. Não deixava retirar nenhuma”, lembra Margareth.
“Os meninos vão descobrindo os mistérios da cidade, passam a Travessa Dr. Assis, seguem adiante até chegar na Travessa Dr. Malcher, nº 246, a residência comprada pelos pais. Uma casa antiga, bem-cuidada, com suas paredes imensas, tabuado em acapu e travessas de massaranduba. Uma escada de madeira, e vários quartos, duas penteadeiras, piano, cadeiras estilo colonial, várias janelas. Pairava sobre aquela realidade, até então desconhecida, um sol amarelento que se harmonizava com as palhinhas douradas das cadeiras espalhadas. Em relação ao tamanho da peça os mobiliários não eram muitos. A mesa redonda de pernas finas, retas, negras sobressai pelo seu comprimento. Além das poltronas sóbrias, distribuídas ao longo das paredes regulares, via-se apenas, perto da janela, a máquina de costura de Dona Herundina e, em frente ao sofá, uma escrivaninha coberta de bibelôs. Através do corredor, tinha uma porta, fronteira da janela, enxergava-se um guarda-roupa, ao passo que, seguindo o corredor, vislumbra-se uma sala ampla, com duas janelas, alta e negra, era a sala de jantar. Noutra parede, num nicho semicircular de duas entradas laterais, artisticamente trabalhadas, visualizava um chagão.
(...)” “Volto para a janela, vejo a realidade com os carros passando. Uma realidade triste sem alegria e nem contemplação. Saio de novo, do meu torpor, com a chegada da tripulação trazendo as bagagens, trazem em carros de mão: sacos de roupas e redes, fechos de lenha, sacas de carvão, porco vivo, que faz muito barulho, galinhas, carneiro, bode, patos, peru, ovos. Paneiros de frutas: açaí, manga, cupuaçu, bacuri, goiaba, fruta-pão, piquiá, ingá, carambola, taperebá-do-sertão. Sinto saudade das estrelas em noite de luar. Os irmãos no pátio da casa, na fábrica. Amando a noite e cantando. Veio a lembrança da sonoridade aguda da cigarra, levantando um lamento. Na obstinada solidão, meu coração, segue cantando, com as chuvas, às noites agradáveis. Passado na infância, no lado dos meus familiares, moído pelo frio, sentindo o aroma da noite. A família sofre os primeiros preconceitos. O bairro da Cidade Velha, um bairro nobre, de pessoas que faziam parte de uma elite de Belém. Com professores de Universidade, empresários, comerciantes, secretários de Estado. Ficaram espantados, com essa vizinhança barulhenta, que chegara com esse kit de viagem. Veio para a família, as primeiras evidências, de uma cidade grande. A indiferença. O preconceito, evidenciado, com o passar do tempo. A cabeça erguida. O não cumprimento. As perguntas, que doíam na alma: Vocês não têm o que fazer? Era um recado duro para crianças, que ficavam na janela. Questionadas por algo que não entendiam. Mamãe não desanimava nas suas pretensões. Conversava com os filhos. Explicava sobre aquelas admoestações. Dizia que isso era passageiro. Que iriam superar. (...) O carrilhão do sino da Catedral de Belém iniciou um hino – blém...blom.... blém.... blom...blém.. blom.... Quase sem ritmo, de modo que mal se podia identificar a melodia, mas ainda assim com grande solenidade. Em seguida, o pequeno e o grande sino, anunciava alegre e dignamente que era meio-dia.” n
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PROJETO CIRCULAR
CIDADE EM F(R)ESTAS – EM FOCO O PATRIÔNIO IMATERIAL CRIADO POR UM COLETIVO DE ARTISTAS DE BELÉM, O PROJETO PROMOVE INTERVENÇÕES EM RUAS E CALÇADAS DO BAIRRO DA CIDADE VELHA.
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Por ALEXANDRE YURI Fotos OTÁVIO HENRIQUES
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xposição coletiva de Artes Visuais, Artes Cênicas e outras linguagens artísticas criam um espaço de convivência em que os moradores e público podem interagir com o centro histórico e compartilhar o sentimento de pertencimento em relação ao bairro. “Essa programação relembra aquela Cidade Velha antiga, em que a gente ficava sentado até tarde na rua conversando, contando causos. Quando eu entrei aqui hoje eu relembrei isso”, diz Sônia Sérgio, moradora do bairro da Cidade Velha há 30 anos, ao participar da programação do projeto Cidade em F(r)estas, realizado no último dia 6 de julho, no Mercado do Porto do Sal. Dona Sônia participou pela primeira vez do projeto e celebrou a oportunidade de interagir com outros moradores do bairro e conhecer novas produções artísticas da cidade. “É o desenvolvimento da nossa cultura aqui dentro do nosso bairro, onde existem artistas maravilhosos. Tem que ir pra rua mesmo mostrar o trabalho. Isso aproxima a população da cultura, do que está rolando na cidade”, comemorou a moradora. A interação entre os moradores, artistas e visitantes é o principal objetivo da ação de acordo com Roberta Mártires, uma das idealizadoras do projeto. “Quando se fala da Cidade Velha, normalmente se fala de prédios, de coisas que foram construídas, mas o que é mais importante em um bairro são as pessoas. Quem constrói as coisas são as pessoas, então, esse projeto é sobre as pessoas”, descreve Roberta. “Começamos (o projeto) no centro histórico porque eu moro aqui, tenho contato com muita gente. Temos um coletivo, que se chama Rede da Sereia, dos moradores que querem movimentar o bairro, então a gente tinha a facilitação de trabalhar aqui”, explica a artista sobre o início do Cidade em F(r)estas, inaugurado na Praça do Carmo.
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PROJETO CIRCULAR
Roberta Mártires, Galvanda Galvão, Josi Mendes e Yvana Crizanto, da organização
O audiovisual é presente nas programações
Moradores participam ativamente
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PORTO DO SAL
A importância desse projeto, além de criar um documento audiovisual acerca do tema, é eternizar essas histórias que se perdem com o tempo. Mostrar esses personagens e o passado maravilhoso que a Cidade Velha carrega”. — PAULO FAVACHO
A edição de julho marcou a comemoração do primeiro ano de realização do projeto. “A gente está pensando em várias conexões e possibilidades de pensar a cidade com todas as suas afluências e o Porto do Sal é um espaço desses”, explica Galvanda Galvão, uma das organizadoras do Cidade em F(r)estas. Animações, como “A Onda, Festa na Pororoca” e “Admirimiriti”, foram exibidas no início da programação, reunindo moradores e visitantes em frente à projeção na lateral do Mercado do Porto do Sal. A comerciante Rosiane Leão reuniu a família em frente a sua casa para assistir aos vídeos da mostra. “Podia ter mais programações do tipo. É bom para as crianças e para os adultos, a gente tem a oportunidade de conhecer as pessoas”, diz a comerciante. A iniciativa também foi prestigiada por moradores, como Ivaldo Martins, que mora há 10 anos no entorno do Porto do Sal, mas trabalha com metalurgia há 28 anos na área e atua na organização de eventos e festividades na comunidade. “É muito legal reunir a comunidade. Tem crianças que nunca foram num cinema e ver isso hoje é muito bom”, afirma Ivaldo. Raquel Rodrigues é moradora e proprietária de um restaurante no entorno do Mercado, além de também atuar em projetos culturais na comunidade, Raquel destaca as parcerias com o Coletivo Aparelho, o Projeto Circular e, mais recentemente, o Cidade em F(r)estas, para a realização de projetos que possam envolver a comunidade, principalmente as crianças. “O Cidade em F(r)estas vem agregar muitas coisas. Para quem nunca pôde ir num cinema é muito bom. Falta apoio, para ficar uma coisa bem maior, mas é um projeto muito importante, assim como outros projetos aqui da Cidade Velha”, declara a comerciante. Moradores de outros bairros e de outras regiões da Cidade Velha também prestigiaram a mostra, como Ana Alves, integrante do espaço Na Garupa, que também participa do Projeto Circular. Ana mora há 32 anos na Cidade Velha e destaca a importância da participação dos moradores no projeto. “A gente ainda sente muita resistência dos morado-
O desenhista Igor Diniz
res da Cidade Velha. Parece que, como eles não tinham esse movimento, se trancam em casa e não se sentem motivados a fazerem parte. Eu acho super importante, para que a gente possa se conhecer”, diz Ana. Para a organizadora do Cidade em F(r)estas, Roberta Mártires, a receptividade dos moradores vem crescendo com o projeto. “Os moradores da Cidade Velha não gostam muito de sair de casa, então temos um público maior de pessoas de outros bairros que vem para cá, mas cada vez mais moradores participam, inclusive os mais velhos”, comemora.
MEMÓRIAS REGISTRADAS Um dos principais vídeos exibidos nas exposições itinerantes do projeto Cidade em F(r)estas – e o preferido dos moradores da área, segundo as organizadoras – é o curta-documentário “A Gurupá”, de 2017, dirigido por Felipe Cortez. O filme registra depoimentos de moradores da rua que dá título à obra, construindo um relato conjunto sobre as transformações vividas na área. “A importância desse projeto, além de criar um documento audiovisual acerca do tema, é eternizar essas histórias que se perdem com o tempo. Mostrar esses personagens e o passado maravilhoso que a Cidade Velha carrega”, relembra Paulo Favacho, integrante da equipe de produção do documentário. Segundo a produtora da obra, Lissa de Alexandria, a ideia de eternizar as memórias dos moradores em um documentário foi sugerida por Marco Tuma, diretor de arte e gestor da Casa Velha 226, localizada na Rua Gurupá. “Escolhemos alguns personagens que pudessem ajudar a gente a contar a história da Cidade Velha através da própria história deles, como o próprio Marco. Eles ficaram emocionados em ver sua história inserida no contexto da história da Cidade Velha”, relata. “Quando a gente faz um filme contando histórias de pessoas que fazem parte da memória afetiva de um determinado lugar, a gente consegue eternizar não só o patrimônio material, mas também o humano, que é o mais importante”, finaliza a produtora.
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PROJETO CIRCULAR
HSTÓRIA, CAFÉ E BOLO – UM PAPO COM MICHEL PINHO MICHEL PINHO CONVIDA PESSOAS QUE MORAM, TRABALHAM E PASSEIAM NO MESMO BAIRRO PARA COMPARTILHAR MEMÓRIAS COMO ANTIGAMENTE.
Por ALEXANDRE YURI Fotos OTÁVIO HENRIQUES
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afé?, oferece o historiador, fotógrafo e professor Michel Pinho, assim que a gente entra pela sala do apartamento dele. A cortesia também é um convite para uma conversa sobre a memória, o patrimônio e a identidade cultural do centro histórico de Belém, remontando a um velho hábito dos moradores da cidade: o cafezinho compartilhado entre vizinhos na porta das casas. Michel conta que o hábito inspirou a criação de uma ação educativa para o Projeto Circular, discutida com a equipe gestora, como forma de agregar os moradores do centro histórico à programação. “A gente pensou na forma mais simples possível (de agregar pessoas), lembrando como se faziam as conversas há alguns tempos atrás em Belém, que era na porta das casas. Quando vinha alguém mais especial, trazia-se café e oferecia-se bolo”, explica ele. Assim nasceu a atividade ‘História, Café e Bolo’, em um amistoso final de tarde regado a café e bolo. A primeira edição foi realizada no Largo da Igreja de São João Batista e coordenada pelo próprio Michel Pinho, contando com a presença de cerca de 30 pessoas, entre moradores e visitantes da área.
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Uma nova ação de Michel está marcada para o sábado, 17 de agosto, a partir das 17h, na pracinha da Igreja do Rosário dos Homens Pretos, um lugar muito simbólico para moradores que já ocupam aquela área há, pelo menos, 30 anos. As rodas de conversa são também fontes preciosas para um outro trabalho que está sendo desenvolvido este ano no Circular e que, junto com as oficinas, integram o ciclo de ações educativas do Circular.
MAPA DO AFETO “Será que a percepção da Cidade Velha para o morador é a mesma de quem apenas circula pela região?”, questiona o coordenador do projeto, valorizando a necessidade de ouvir os moradores afetados de alguma forma pelo projeto. “Há práticas sociais importantes para serem ouvidas, como a dos moradores do Beco do Carmo, por exemplo, ou a comunidade que vai à missa na capela de São João”, detalha. Nosso bate-papo compartilhando um café na sala de Michel Pinho tem um objetivo: traçar a estratégia de realização de mais uma ação educativa do Circular que ele vai coordenar durante o segundo semestre: o Mapa do Afeto da Cidade Velha. A expectativa é mapear a relação dos moradores com seus lugares mais significativos no bairro.
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Será que a percepção da Cidade Velha para o morador é a mesma de quem apenas circula pela região?” — MICHEL PINHO
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PROJETO CIRCULAR
“Mapas afetivos são instrumentos de interação entre determinadas populações com o seu território, que pode ser um bairro, a vizinhança ou mesmo uma cidade. São feitos para visualizarmos como as relações sociais e afetivas se desenvolvem, inserindo elementos gráficos em objetos bidimensionais, como os mapas, para que possamos entender quais memórias, imagens, fotografias e narrativas surgem nos relatos dos moradores da região”, explica o historiador. “O mais instigante é a prospecção. Ir a campo e construir essa relação no dia a dia”. O trabalho de pesquisa e sondagem começou no mês de julho, mas como os rumos do projeto vão depender quase que exclusivamente dos relatos colhidos, os resultados da ação ainda são imprevisíveis. “Só sabemos que, independente do resultado, vai ser muito bom”, comemora Michel com a equipe do projeto, celebrando a nova oportunidade de conhecer e compartilhar mais memórias e cafés pelo centro histórico de Belém.
PASSEIOS As duas ações educativas coordenadas pelo historiador diferem dos já tradicionais passeios conduzidos por ele por bairros do centro histórico da cidade, um trabalho que surgiu a partir do encantamento com o patrimônio de Belém. “Esse projeto teve início em Marabá, em 1999, quando morava lá. Sempre que falava da história de Belém para os meus alunos, percebia que eles não conheciam a cidade. Dois anos depois, voltei para Belém e comecei a fazer os roteiros”, relembra. Michel ressalta o caráter não acadêmico desses roteiros. “Sempre construo a narrativa a partir de relatos que levem em consideração como era viver no passado. Para isso, sempre começo com as dissertações e teses apresentadas sobre aquelas temáticas. Depois vou atrás das fontes primárias sobre o tema: a narrativa dos viajantes, os jornais da época, códigos de postura, testamento de irmandades e, por último, os livros. Sempre fico muito empolgado quando descubro uma coisa nova e já quero fazer um passeio sobre a descoberta”. A possibilidade de expandir o projeto para outros públicos e locais de Belém motiva o professor: “Fico estimulado a pensar o inusitado, por exemplo, já fizemos um roteiro à noite, com mais de 150 pessoas. Já fizemos um só para as crianças. Um dos que mais me emocionou foi o que realizei com cegos e surdos. Foi lindo ver o público interagindo”.
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O centro histórico não faz parte do cotidiano da maior parte das pessoas. Essa constatação só reforça nosso trabalho: a de lutar pela sua permanência e de fazer como que ele seja valorizado e incorporado como um valor para os cidadãos. Em média, 60% das pessoas que vão aos meus passeios não conhecem essa região da cidade. E fico muito feliz em ver isso, reforça nosso papel”. — MICHEL PINHO Mesmo com a expansão do projeto, o centro histórico ainda abriga as versões mais recorrentes dos roteiros. “Hoje, ele (centro histórico) ocupa um lugar central na discussão sobre que cidade queremos ter. Ocupar as praças com lazer e arte, ocupar as ruas com educação faz parte de um movimento renovador. Belém é muito maior que seus dois bairros históricos (Cidade Velha e Campina), falo isso por ter nascido em Belém e depois ter vivido até os meus 22 anos em Marituba”, relata. n
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PROJETO CIRCULAR
CIRCULAR INICIA CICLO DE OFICINAS Irmã Maria de Menezes, filha do escritor Bruno de Menezes
PARA ATIVAR MEMÓRIAS, IDENTIDADE E COMPARTILHAMENTO DE IDEIAS, SABERES E CONHECIMENTOS TRADICIONAIS.
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ste ano, a meta mais ousada do projeto Circular Campina Cidade Velha é alcançar as pessoas, não apenas durante suas programações, mas no dia a dia, ampliando o diálogo, fortalecendo as relações de vizinhança no centro histórico de Belém e buscando ativar os sentimentos de pertencimento das pessoas com o seu lugar. A partir de agosto, uma das iniciativas neste sentido será a realização de sete oficinas que têm como público-alvo aqueles que moram e trabalham no centro histórico de Belém, sem fechar as portas para quem mora nos demais bairros da cidade. “Estamos fazendo uma mobilização presencial, pois queremos que essas pessoas participem espontaneamente e compreendam que o Circular não se resume às edições. O projeto agora alcança outros patamares de relacionamento e de representação social dentro do centro histórico, e é importante sensibilizar as pessoas, despertar nelas esse sentimento de pertencimento ao lugar e a sua história”, explica Tamara Saré, da coordenação do projeto.
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A meta é reunir as pessoas, repassar conhecimento, mexer com a memória e despertar ideias criativas. Qualquer pessoa pode se inscrever e passar pela seleção, mas, para quem vem de outros bairros, é necessário preencher dados em um formulário eletrônico disponível no site www.projetocircular.com.br, além de escrever uma carta de interesse em participar de uma das oficinas.
O Ciclo de Ações Educativas do Circular iniciou no mês de maio e vai até novembro. Além das oficinas, inclui a roda de conversa “História, Café e Bolo”, conduzida pelo professor Michel Pinho, que também coordena este ano, a pesquisa para a elaboração de um mapa afetivo do centro histórico de Belém. A segunda ação será agora em agosto. n
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SAIBA QUAIS SÃO AS OFICINAS: O BORDADO E A CIDADE COM NANAN FALCÃO 17, 18 e 24 e 25/08 l É a primeira oficina do ciclo. A figurinista, atriz e costureira Nanan Falcão convida os participantes a se reencontrarem com o patrimônio da cidade e com suas memórias, transportando suas experiências para o bordado. Serão seis encontros, no mês de agosto, alguns em ambientes fechados, com apresentação e práticas das técnicas básicas do bordado, e outros externos, em que o participante é convidado a observar e ocupar a cidade. Haverá incursões no Ver-o-Peso, Praça das Mercês e Praça da República, no bairro da Campina.
DIREITOS CULTURAIS E PATRIMÔNIO NA FEIRA DO VER-O-PESO COM TAINÁ MARAJOARA 28 a 31/08 l Tem como público-alvo os trabalhadores e trabalhadoras da feira do Ver-o-Peso. A proposta do Instituto Iacitatá Amazônia Viva tem como objetivo dar início à construção coletiva de um Mapa dos Alimentos comercializados na feira, identificando suas origens e as cadeias produtivas e de valor envolvidas. Ministrada por Tainá Marajoara, do Iacitatá, a oficina será espaço de debates sobre Direitos Culturais, Patrimônio Cultural Material e Imaterial, Cultura Alimentar, Meio Ambiente, Cultura Popular, Economia Criativa e Turismo de Base Comunitária.
VELHA MEMÓRIA, VELHA SAUDADE COM COLETIVO NA GARUPA 02 a 6/09 l A proposta do Espaço Na Garupa tem como objetivo
central recuperar, registrar e (re)ativar memórias associadas ao bairro da Cidade Velha, a partir da captura de relatos de antigos moradores, ressignificando essas narrativas em formas lúdicas e simbólicas de representação desse passado. Além de reunir as narrativas daqueles que são, por excelência, portadores e construtores das memórias e identidades sociais da comunidade em questão. O projeto propõe como produto final da oficina, seu desdobramento nas seguintes ações práticas:
VIVÊNCIA TEATRAL COM LEONEL FERREIRA 9, 10, 12, 16, 17 e 19/09 l Leonel Ferreira, ator, contador de histórias, diretor, pesquisador, sociólogo e educador visa elaborar com os participantes, experimentos cênicos para espaços não convencionais do centro histórico, promovendo uma reflexão sobre suas utilizações. A oficina prevê jogos teatrais e cantados como disparador da memória coletiva, buscando reflexões sobre passado e presente, ressignificações e representações simbólicas sobre a Cidade Velha e intervenção teatral pelas ruas do bairro.
CROCHÊ CRIATIVO COM ROBERTA MÁRTIRES 23/09 a 30/09 l Trabalhando com crochê desde muito jovem, a empreendedora Roberta Mártires, criadora da Marca Multifário Arte, compartilhará vivências e saberes tradicionais do crochê. Em sua experiên-
cia, criou pontos novos mais alargados, que lembram rios irregulares, como a paisagem ribeirinha. A ideia é estimular que os participantes produzam peças criativas, que no final da atividade, comporão um mosaico exercendo o trabalho coletivo, a criatividade, a identidade individual de cada um e as memórias.
LUZES DO AFETO SOBRE A CAMPINA COM ASSOCIAÇÃO FOTOATIVA 18, 19, 25 e 26/10 l Em um ambiente de encontro na Praça das Mercês, a oficina da Associação Fotoativa tem como finalidade despertar narrativas e memórias sobre o bairro da Campina a partir de experimentos com a luz e técnicas fotográficas para a formação de imagens, desenvolvendo nos participantes um olhar mais atento e reflexivo sobre o local.
VER A MEMÓRIA COM VANDILÉA FORO Data: 4, 6, 8 e 11/11 l A oficina da Olaria Mundiar encerra o primeiro ciclo de oficinas do Circular, em novembro. Nesta ação, os participantes são convidados a compartilhar memórias do bairro da Cidade Velha, exercitando princípios da contação de histórias e promovendo uma criação coletiva das memórias dos habitantes do bairro. A proposta pretende agir sobre um hábito que se perdeu em nossa cidade: as conversas na porta de casa e as conversas em vizinhança.
OFICINAS Como participar Inscrições: www.projetocircular.com.br
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PROJETO CIRCULAR
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REVISTA REVISTA N Noo54 -- AGO/2019 FEV/2019
DO PÓLO JOALHEIRO AO IGARAPÉ DO PIRI “ROTEIROS GEOTURÍSTICOS” INAUGURA PERCURSO INÉDITO PELA ANTIGA ESTRADA DE SÃO JOSÉ, ATUAL AVENIDA 16 DE NOVEMBRO. Por ALEXANDRE YURI Fotos OTÁVIO HERIQUES
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o Jurunas à Cidade Velha. Da verticalização dos edifícios ao centro histórico. Do primeiro jardim botânico do Brasil Colônia às palmeiras imperiais. Da metrópole da Amazônia à Belle Époque. Marcos históricos e geográficos interligados por uma das vias mais importantes para a compreensão da história de Belém, a Estrada de São José, hoje rebatizada em homenagem à data de adesão do Pará à República: Avenida 16 de Novembro. A avenida é o foco da mais recente edição do projeto Roteiros GeoTurísticos, criado em 2011 com o objetivo de traçar percursos a pé pela cidade, apresentando aspectos históricos, culturais e sociais de determinadas localidades. O projeto, contemplado pelo Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade, do IPHAN, em 2016, já conta com doze roteiros realizados de forma alternada ao longo do ano, e agora prepara o inédito “Estrada de São José” para o mês de setembro. “Esse roteiro é importante pra entender a expansão da cidade, principalmente, depois que o Igarapé do Piri foi aterrado no início do século XIX, foi possível criar novas vias de expansão da cidade, entre elas, a Padre Eutíquio, que é a antiga São Mateus, e outra via que ligasse o Ver-o-Peso ao Convento de São José. E aí surge a Estrada de São José”, descreve a professora Maria Goretti Tavares, coordenadora do projeto.
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PROJETO CIRCULAR
Nesses quase nove anos, temos uma estimativa de que nove mil pessoas já participaram. Dessas nove mil, 95% são moradores da cidade. Aí se revela a importância do projeto para os moradores”. — MARIA GORETTI TAVARES, COORDENADORA DO PROJETO
Goretti explica que a importância da avenida para a compreensão da ocupação de Belém foi a principal motivação para a escolha do roteiro. A história da via atravessa momentos históricos, como o Período Colonial, marcado pela fundação do Convento de São José e do primeiro jardim botânico do Brasil, onde hoje está localizada a Praça Amazonas. O prédio foi escolhido para ser o ponto de partida do roteiro devido a sua importância histórica. Depois de ser um convento, o prédio ganhou destaque na época da Cabanagem, quando se transformou em um hospital que cuidava dos cabanos feridos e, para aprisioná-los, foi transformado em uma cadeia e, posteriormente, em um presídio por mais de 150 anos. Hoje, o prédio foi revitalizado para funcionar como um polo cultural que reúne artesanato, joalherias, anfiteatro, capela, entre outros, recebendo os nomes de São José Liberto e Polo Joalheiro.
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OCUPAÇÃO URBANA Processos de ocupação urbana mais modernos também serão discutidos durante o roteiro na área, que hoje é tombada. “De uns cinco anos pra cá, não se permite mais fazer prédio acima de quatro pavimentos nesta área, mas antes disso fizeram vários prédios altos ao longo da 16 de novembro. A gente vai ver esse processo de verticalização”, antecipa a coordenadora do projeto. O roteiro termina no entorno da Praça da Bandeira, onde prédios significativos para a história da cidade estão localizados. “O prédio dos Bombeiros, o Museu da Assembleia de Deus, o prédio que funciona a Academia Paraense de Letras. O Paes de Carvalho, que é um dos colégios mais antigos do Brasil, que atende ao ensino médio. O prédio do Batalhão do Exército também”, enumera a professora.
HERANÇAS DA BELLE ÉPOQUE Arte e cultura ganham destaque nesta edição do roteiro com a visita ao “Casarão do Boneco”, espaço cultural que recebe ensaios, apresentações, oficinas, exposições, entre outras atividades promovidas por diversos coletivos artísticos e culturais da cidade. Construído no início do século XX, o prédio passou por algumas modificações, mas ainda preserva seu conjunto arquitetônico original.
De acordo com a professora Goretti, o casarão foi escolhido para integrar o roteiro porque ele é um dos exemplos de propriedade da avenida 16 de Novembro que remetem à Belle Époque, período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX, quando Belém viveu o auge da economia da borracha e passou por um significativo aumento populacional. A Belle Époque é citada em várias edições do projeto Roteiros GeoTurísticos, recebendo inclusive uma edição especial sobre o tema devido a sua importância e impacto na história da cidade. O roteiro da Belle Époque será reeditado pelo projeto no dia 4 de agosto, na programação da 27ª edição do Projeto Circular.
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL X REALIDADE O projeto surgiu com o objetivo de pensar a Educação Patrimonial e discutir sobre a cidade, mas também trazer à tona temas de interesse público. “A gente não fala só do que é bonito, a gente fala dos problemas da cidade, como o lixo, da violência, da degradação do patrimônio. Qualquer projeto ligado ao patrimônio turístico precisa pensar nos problemas que nós enfrentamos. A gente discute tudo isso, tanto o patrimônio material, que é o patrimônio edificado, como também o imaterial”, explica Goretti.
Características imateriais, como a cultura alimentar, costumes específicos, modos de falar e até o jeito como as chuvas afetam determinadas localidades são destaque durante os roteiros. “Isso tudo ajuda a gente a entender como a cidade vai se formando desde a fundação e, mesmo antes, já com a presença e importância dos indígenas que aqui estavam, e como elementos do processo histórico, além de entendermos elementos da arquitetura e da cultura em geral”, enumera. Atualmente, os roteiros são realizados nos bairros da Cidade Velha, Campina, Reduto, Batista Campos e Umarizal, além de roteiros com temas específicos, como o passeio por obras do arquiteto Antonio Landi, e edições especiais, como os passeios pela feira do Ver-o-Peso e pela avenida Nazaré. “Nesses quase nove anos, temos uma estimativa de que nove mil pessoas já participaram. Dessas nove mil, 95% são moradores da cidade. Aí se revela a importância do projeto para os moradores”, afirma Goretti sobre o projeto, que é realizado pelo Grupo de Pesquisa de Geografia do Turismo, da Faculdade de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Geografia (GGEOTUR), da Universidade Federal do Pará (UFPA). n
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PROJETO CIRCULAR
VER-O-PESO DA POLÊMICA: 5 ANOS OBRAS EMERGENCIAIS, NOVO PROJETO DE EXECUÇÃO, ENTRAVES JUNTO AO IPHAN, EM BRASÍLIA, E AOS TRABALHADORES DA FEIRA. A HISTÓRIA DA REFORMA QUE INICIARIA EM 2016, AINDA NÃO TEM DATA CERTA PARA ENCERRAR. Por WANDERSON LOBATO Fotos CLÁUDIO FERREIRA
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ma nova audiência pública deve ser realizada para apresentar os detalhes da reforma emergencial no Ver-o-Peso, anunciada este ano pela Prefeitura de Belém. A decisão foi fechada entre os feirantes e a procuradora Nathalia Mariel, do Ministério Público Federal, em reunião realizada no Mercado de Carne, no mês de julho. Também foi definido que um comitê de acompanhamento das obras vai ser criado com representantes dos feirantes e da sociedade civil. Segundo o Prefeito Zenaldo Coutinho, serão necessários R$ 6 milhões para as obras de recuperação – troca das lonas de cobertura, reforma no piso, drenagem de alguns pontos do Complexo e a revisão e troca de todo o sistema elétrico. A decisão da Prefeitura veio após uma série de atropelos para a realização da obra de revitalização do Ver-o-Peso com recursos aprovados no PAC Cidades Históricas em 2014. “Nós temos agora duas frentes: a Prefeitura apresentou a documentação, vai fazer o Projeto Executivo após o diálogo com os feirantes. Nós vamos observar se, de fato, houve esse diálogo, avaliar como está esse projeto e repassar para os órgãos competentes avaliarem. E o outro ponto é a reforma emergencial. Ela também vai exigir um acompanhamento dos feirantes. O MPF vai estar em cima cobrando, inclusive para convocar essa nova audiência pública para discutir a reforma emergencial. Cronograma, etapas, valores custeados, de onde estão vindo esses recursos,” completa a Procuradora Nathalia Mariel.
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Nossa preocupação é com a qualidade do material que vão utilizar na obra, a lona foi comprada no exterior. Como vai ser agora? Também precisamos ter a isenção das taxas”. — DALCIR DA SILVA
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POVOS TRADICIONAIS E VIVEIROS Na reunião, a procuradora informou também que o projeto executivo referente às obras do PAC Cidades Históricas deve ser entregue pela Prefeitura ao MPF e ao IPHAN em agosto. Na conversa, surgiram duas questões que ainda precisam ser resolvidas: o setor de animais vivos, talvez esteja de fora do projeto do PAC, o que contraria a Nota Técnica 06/2016 do IPHAN, que é taxativa: “Manter o setor de venda de animais vivos, que são fornecidos pelas comunidades ribeirinhas e quilombolas do entorno de Belém e são importantíssimos na cultura alimentar dos Povos Tradicionais de Matriz Africana.” Na reunião, os feirantes chamaram a atenção para o comércio dos produtores de agricultura familiar que trabalham com tabuleiros no entorno do Solar da Beira e que também não estão contemplados no projeto da Prefeitura. As duas questões serão levantadas em uma audiência pública a ser realizada em agosto, quando toda a documentação sobre as interferências já deve ter sido disponibilizada pela Prefeitura e será debatida por feirantes e usuários. Além disso, os feirantes denunciaram que a Prefeitura já iniciou parte das obras nas instalações elétricas com a possível cobrança do consumo de energia e manifestaram preocupação com a transparência e aplicação dos recursos. “Nossa preocupação é com a qualidade do material que vão utilizar na obra, a lona foi comprada no exterior. Como vai ser agora? Também precisamos ter a isenção das taxas”, apontou Dalcir da Silva, vendedor de calçados de couro. No Sistema Eletrônico de Informação (SEI) do IPHAN, em http://portal.iphan.gov.br/pagina/ detalhes/1564, já podem ser conferidos os detalhes do projeto da Prefeitura, identificado como Reforma do Ver-o-Peso – Plano B, sob a responsabilidade técnica do engenheiro civil Reinaldo Mendes Leite (CREA - 6599 D /PA). Logo no início do memorial descritivo da obra, uma informação contradiz o Prefeito Zenaldo Coutinho, que afirmou que as obras não afetariam o dia a dia dos feirantes e que não haveria remanejamento dos trabalhadores. “Os permissionários serão remanejados parcialmente “por setor” para barracas provisórias que serão montadas no estacionamento do referido espaço, dotadas de pequena infraestrutura para atender as necessidades dos feirantes”, afirma o documento.
LAUDO ATESTA URGÊNCIA NAS REFORMAS Programada para acontecer em 4 meses, a reforma vai ao encontro do laudo técnico do IPHAN, resultado de vistoria feita em janeiro e que constatou o que feirantes e usuários já vêm denunciando há meses: o principal cartão-postal da cidade está abandonado e precisa de reparos urgentes. “Desde a última reforma, realizada nos anos 1990, não foram realizadas ações de manutenção e conservação, o que resultou no estado de degradação atual da feira”, aponta do laudo. O trabalho também é baseado em vistoria da Defesa Civil do município, que atestou “que o sistema elétrico encontra-se com suas instalações com risco de incêndio o que podem (sic) provocar danos irremediáveis à população e ao complexo histórico”.
LINHA DO TEMPO O anúncio da realização de obras emergenciais no Ver-o-Peso, este ano, é mais um capítulo de uma novela que se arrasta desde 2014, há cinco anos, quando a reforma da Feira foi aprovada no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC Cidades Históricas), do governo federal, no valor de R$ 14,5 milhões .
Em janeiro de 2016, uma maquete eletrônica começou a circular nas redes sociais e levantou a polêmica sobre o projeto que a Prefeitura de Belém pretendia para o espaço. A troca da atual cobertura de lona por telhas termo-acústicas era um dos pontos polêmicos, pois descaracterizava o espaço como feira e o aproximava de um grande galpão, ferindo o complexo arquitetônico e paisagístico da área tombados como patrimônio histórico, em 1977. Depois da repercussão negativa, o IPHAN se pronunciou informando que o projeto divulgado pela Prefeitura ainda não havia sido aprovado. “O Iphan não pode aprovar projetos com pendências de documentos ou de etapas processuais, principalmente em se tratando de verbas públicas, como é o caso do projeto para a Feira Ver-o-Peso”, dizia a nota do Instituto. As reclamações também vieram dos feirantes e usuários, descontentes com o projeto, mas principalmente com o fato de estarem fora do processo de discussão das mudanças propostas. O Ministério Público Federal foi acionado por representantes da sociedade civil e uma audiência foi realizada em abril, depois que o IPHAN abriu uma consulta pública na internet para receber propostas da sociedade sobre a reforma.
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PRAZOS ESTENDIDOS Em 2017 e 2018, o projeto de execução da obra teve prazos prorrogados seguindo as solicitações da Prefeitura, que vinha reunindo com os técnicos do Instituto para avançar na realização de um novo projeto. O que não ocorreu. O resultado é que por conta das dificuldades em fazer com que o escritório de arquitetura contratado pela Prefeitura seguisse orientações e recomendações resultantes da Consulta e das Audiências Públicas, foi feita a recomendação para que o trabalho fosse conduzido pela sede do IPHAN, em Brasília. “Além dos itens acima citados, a empresa contatada solicita mais esclarecimento sobre como manter e enfatizar o caráter de feira livre; como preservar as relações de escala entre os diversos elementos – mercados, casario e feira – que compõem o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico do Ver-o-Peso; e sobre como deverá considerar as relações de proximidade entre público e feirantes. Todas essas solicitações foram explicadas no Parecer nº 084/2016 – documento claro e suficiente para orientar as adequações necessárias ao projeto – em diversas reuniões realizadas posteriormente e, por último, resumidas no Ofício nº 146/2018/IPHAN-PA. De modo que
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as tratativas desse projeto foram esgotadas nesta Superintendência”, enfatizava o documento. “Chegou num determinado momento em que não estávamos conseguindo avançar com o escritório contratado e solicitamos uma interlocução direta com o Departamento de Patrimônio Material e Fiscalização, que apresentou uma proposta alternativa considerando os aspectos que o IPHAN achava importante. E que a partir desta proposta, a Prefeitura pudesse desenvolver o projeto básico e o executivo, o que foi feito. A maior parte das indicações foi acatada de forma que se considerou aceitável e pertinente aprovar o básico e autorizar o desenvolvimento do projeto executivo. Mas ainda foram feitas algumas indicações para serem resolvidas quando da entrega do projeto executivo”, explica Cyro Lins, superintendente do IPHAN-PA.
NOVO PROJETO SURPREENDE FEIRANTES Após a aprovação de mais esta etapa do projeto, a Prefeitura voltou a agir com açodamento e anunciou para os feirantes que a obra em breve deveria iniciar, o que pegou todos de surpresa, já que ninguém conhecia o novo projeto. Acionado
pelo grupo “Amigos do Ver-o-Peso”, formado por frequentadores do local, o Ministério Público Federal, por meio da procuradora Nathalia Mariel, realizou uma reunião com as lideranças da Feira para tomar conhecimento da situação. Em seguida, em abril, organizou uma audiência pública em que se cobrou da Prefeitura os detalhes técnicos da obra e exigiu-se que o projeto fosse apresentado não só aos feirantes e à sociedade civil, mas também para aqueles que dependem da Feira para sobreviver ou com ela se relacionam cotidianamente, como camelôs, ribeirinhos e lojistas do comércio.
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FIQUE SABENDO:
NOTA DA SEURB Tentamos uma entrevista com a Prefeitura de Belém que, por meio da Secretaria de Urbanismo, nos enviou nota para esta publicação, a respeito da reunião do Ministério Público com os feirantes, que resultará em nova audiência para discutir a reforma emergencial: “A Prefeitura ressalta que enquanto o grande projeto passa pela avaliação do IPHAN, os trabalhos para a reforma simplificada continuam para que a obra seja iniciada o mais breve possível. O cronograma atual está mantido e prevê a troca das lonas da cobertura, recuperação de trechos dos diversos tipos de piso e substituição das instalações elétricas,” informa a nota. Quanto ao remanejamento, a nota afirma que “a Prefeitura fará o possível para que não tenha remanejamento de trabalhadores, mas, considerando as peculiaridades climáticas da capital e possíveis intercorrências de obras, optou por fazer um planejamento para caso haja a necessidade desta mudança, o que será repassado com antecedência para os interessados, minimizando prejuízos aos trabalhadores.” Quanto à manutenção do setor de animais vivos, a Secretaria de Urbanismo garante que as vendas continuarão no Ver-o-Peso. “O setor está sim contemplado na reforma, inclusive o projeto para esta área já foi aprovado pelos permissionários”. n
O cronograma atual está mantido e prevê a troca das lonas da cobertura, recuperação de trechos dos diversos tipos de piso e substituição das instalações elétricas.” — NOTA DA PREFEITURA DE BELÉM
Em uso pelo IPHAN desde 2012, o SEI foi escolhido como a solução de processo eletrônico no âmbito do projeto Processo Eletrônico Nacional (PEN), iniciativa conjunta de órgãos e entidades de diversas esferas da administração pública, com o intuito de construir uma infraestrutura pública de processos e documentos administrativos eletrônicos. Desenvolvido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), o SEI é uma plataforma que engloba um conjunto de módulos e funcionalidades com eficiência administrativa. Caracterizado pelo fim do papel como suporte físico para documentos institucionais e o compartilhamento do conhecimento com atualização e comunicação de novos eventos em tempo real. Qualquer cidadão pode fazer uma pesquisa usando palavras-chave, estabelecendo um recorte temporal ou pelo número de um processo específico. A pesquisa pode ser realizada a partir do link: https://sei.iphan.gov. br/pesquisapublica.
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CASAS EXUMADAS, O LIVRO DE JEOVÁ DE BARROS 28
HISTÓRIAS DE PRÉDIOS QUE JÁ SE FORAM OU SOBREVIVEM ABANDONADOS EM BELÉM, MAS CONTINUAM NA MEMÓRIA AFETIVA E NA ORALIDADE DA CIDADE.
Jeová Barros, livro feito com financiamento coletivo
Por WANDERSON LOBATO Fotos CLÁUDIO FERREIRA
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s casas de Belém vão ganhar um obituário, um registro necrológico que, reunidos em um livro, nos faz lembrar e refletir sobre a “morte” de nosso patrimônio arquitetônico. Reconhecido como um dos nobres produtos do chamado Jornalismo Literário, o obituário foi o caminho encontrado por Jeová Barros para falar de nossa herança arquitetônica por meio de um mapeamento dos imóveis que não resistiram e sucumbiram ao descaso. Todos somos testemunhas da degradação dos imóveis seculares que ainda resistem em Belém. Casarões abandonados, alguns com azulejos furtados ou portas e janelas substituídas por paredes de tijolo e cimento. “É um processo degradante lento. Como se fosse a velocidade de rotação da terra, você não sente, mas quando você passa e olha, já perdeu. A casa já não existe mais”, completa Jeová Barros, arquiteto e urbanista.
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Um dos quiosques que ficavam espalhados pelas avenidas, travessas e praças mais movimentadas de Belém. Eram concessões do poder público exploradas por Francisco Bolonha. Ainda há um exemplo deles na Praça da República, próximo ao Bar do Parque
Casa Antônio Lemos, que jaz na Av. Gentil Bittencourt, entre Dr. Moraes e Benjamin Constant, onde hoje funciona o IBGE. Tinha a fachada de ferro e o restante de madeira. Pegou fogo e desapareceu A ideia surgiu em 2012, durante a disciplina Pesquisa Orientada, cursada no Mestrado em Arquitetura e Urbanismo (UFPA). A proposta da disciplina era inventariar bens arquitetônicos da cidade localizados na Região Metropolitana de Belém, principalmente, do primeiro núcleo urbano, compreendido pelo Ver-o-Peso, Campina, Reduto, avançando para a área da antiga Estrada Tito Franco, hoje Av. Almirante Barroso. O trabalho era identificar o estilo, a localização, autorias, áreas construídas e outras características do prédio. “De repente, das 50 casas elencadas, 33 já não existiam mais. Então, percebi que não era só o inventário, mas na verdade, tinha o caráter de obituário, de levantar os mortos. Ou seja, o trabalho não era só inventariar, de elencar o que se tem, mas também o que já se perdeu. Do que a
cidade se desfez completamente, imóveis que não tem alicerce, autoria, nem de quando caiu telhado, ou virou ruína, nada”, completa. A pesquisa se estendeu por três anos, quando Jeová defendeu sua dissertação. No período, decidiu fazer os desenhos das casas que já não existem mais. “Existem muitas fotografias sobre as edificações, mas muito poucas são de frente. Decidi fazer os desenhos como se elas fossem novamente ser construídas. Ou como um grande sonho, pois eu estava tão envolvido com a ideia que sonhei que eu estava com uma equipe de Arqueologia da Cidade Velha, a gente estava cavando por lá e encontrávamos um baú velho todo enferrujado. A gente arrastava o baú pra fora. Estavam lá as pranchas, os desenhos, os objetos”, lembra. A ideia do baú e os desenhos devem compor uma exposição que, por enquanto, ainda está só nos planos do arquiteto. Afinal, para conseguir dinheiro para a impressão do livro foram muitas as dificuldades superadas. “Fui de porta em porta procurando patrocínio. Ouvia que devia deixar isso pra lá, que não estavam patrocinando isso, ouvi muito não. Aquilo foi me esmorecendo, mas ao mesmo tempo não me deixava levar”, conta. A solução foi levar para o financiamento coletivo na internet. O dinheiro arrecadado somou com uma poupança que Jeová tinha feito e o livro deve ser lançado em agosto.
A OBRA O livro reúne 50 fotografias de época que serviram de fonte na pesquisa, com mais 50 fotos recentes dos lotes que os casarões ocupavam antes da demolição e os respectivos desenhos, feitos em sépia, das fachadas dos imóveis exumados. Além
disso, cada imagem de imóvel vem acompanhada de uma ficha técnica, com denominação, categoria de uso, função primária, estilo Casas Exumadas arquitetônico, situa100 páginas ção física, ocupação em Valor: R$ 50,00 2015, proprietário, viziLançamento nhança do entorno e em agosto localização. Compra: “O papel da histoLink: https://pag. ae/7UU6NL5uq riografia é ir atrás disso. A casa também tem um enredo: quem construiu, os materiais foram produzidos aqui? Então é esse enredo que a historiografia vai atrás com uma pegada que passa bem junto de patrimônio, restauro, mas o foco é a exumação da história daquela casa”, explica. Além das casas que já se foram, o livro reúne também desenhos de construções em ruínas e outras com parte de sua arquitetura modificada ou perdida. “A gente vê muita subtração: retiram um pedaço da fachada, uma estátua, uma pinha, uma lanterna. Ou seja, fica a casa, mas ela fica cheia de ausência. Você vai para uma foto mais antiga e vai vendo os elementos que não existem mais”. Infelizmente, o processo de degradação não dá sinais de parar. Desde que terminou a pesquisa e começou a fazer o desenho das construções quatro anos se passaram. “Eu pensei que ia parar nas 50, mas quando você vai pra coleta, surgiram mais casas. E então, já está pronto o segundo volume do livro com mais 50 casas e ainda com mais 50 pra serem feitas”, revela. n
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ACERVO
PELAS BIBLIOTECAS DE BELÉM ACERVOS PRECIOSOS ESTÃO SENDO INVENTARIADOS E ORGANIZADOS PARA O ACESSO À PESQUISA. Por LUCIANA MEDEIROS Fotos CLÁUDIO FERREIRA
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untando tudo, somaria quase 60 mil obras, além de cartas, documentos, revistas, jornais e outros achados dentro de um livro e outro. Produção científica na José Veríssimo, obras raras na Fran Paxeco, Literatura e temas diversos em abundância em várias bibliotecas particulares destinadas ao Memorial do Livro. Em março deste ano, estas bibliotecas receberam recursos financeiros, oriundos do MEC, via emenda parlamentar no valor total de 400 mil reais, para inventariar e organizar seus acervos sob a coordenação da Universidade Federal do Pará (UFPA). Ainda que o acesso a estas bibliotecas permaneça restrito, por meio de agendamentos, a notícia é ótima para quem se debruça sobre a pesquisa histórica, científica e cultural paraense, principalmente. E não bastasse a riqueza de seus acervos, elas também estão situadas em prédios históricos. A Biblioteca José Veríssimo pertence ao Instituto Histórico e Geográfico do Pará (IHGP), fundado em 1900, situado atualmente no Solar Barão do Guajará. O prédio azulejado do século XIX fica no coração da Cidade Velha. É o mesmo bairro em que estão os acervos das bibliotecas particulares do Memorial do Livro Moronguetá, no Fórum Landi/UFPA, um prédio tombado, na charmosa Praça do Carmo. Já a Fran Paxeco está no terceiro piso do prédio monumental do Grêmio Literário Português, no bairro da Campina. Uma relíquia de 1906 muito bem-conservada.
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verdadeira mina de ouro para os pesquisadores. A segunda visita foi ao Fórum Landi, o professor e arquiteto Flávio Nassar nos conduziu por um universo particular de preciosidades encontradas no acervo de bibliotecas doados por familiares de pessoas notórias do pensamento crítico, político e artístico paraense. A terceira imersão foi na biblioteca monumental do Grêmio Literário Português, com um acervo de quase 40 mil livros. Fomos recebidos por Ethel Valentina Soares, preservadora de livros e arquivos, e sua equipe, que nos apresentou o projeto de higienização e organização de 460 livros da Seção de Obras Raras, fechada há 10 anos.
MAIS DE UM SÉCULO DE PRODUÇÃO CIENTÍFICA
UM CENÁRIO HOSPITALAR E HOSPITALEIRO Visitamos cada uma delas e acompanhamos um pouco o trabalho dos restauradores, conservadores, bibliotecárias e preservadores. O visual nas bibliotecas é parecido com o de um hospital, mas ao invés de pessoas, temos livros sendo vistoriados, higienizados, catalogados. Ao invés de camas, estantes e em cada uma delas, um universo. São livros recebendo identificação e sendo acomodados da forma correta, preservando e prorrogando seu tempo de vida útil. Também não há enfermeiros, e o que vemos são guardiões que usam máscaras para respirar melhor em meio ao mofo e os fungos, em alguns casos. Há também caixas cheias de livros. A visão é essa no Fórum Landi. No térreo, uma sala enorme
com estantes e mesas cheias de livros, como no terceiro piso, no corredor e em dois ambientes. A instituição está trabalhando com cerca de 3 mil livros que pertenceram a intelectuais da cultura paraense e vive o drama da falta de espaço para arrumar tudo depois de desencaixotados. Essa foi a principal demanda para o surgimento do projeto “Memorial do Livro Moronguetá”, que cria o espaço físico para onde serão levadas essas coleções particulares que hoje estão sob a guarda da UFPA. Essa e outras histórias estão nas próximas páginas dessa reportagem. Na José Veríssimo, fomos recebidos pelo especialista em conservação e restauro Antônio Neto, que nos falou sobre o acervo da biblioteca, onde está uma produção secular do pensamento científico, em livros, revistas, periódicos, uma
A Biblioteca José Veríssimo, do Instituto Histórico e Geográfico do Pará, fica no andar térreo do IHGP, no Solar Barão do Guajará. Aparentemente, um espaço menor do que o que deve ser necessário para a organização dos livros que passam pelo processo de higienização e catalogação, algo entre 10 e 12 mil títulos. “Não é a primeira vez que se faz um inventário deste acervo, pois a biblioteca do IHGP funcionou durante várias décadas do séc. XX, sendo que durante muito tempo até mesmo recebeu doações de outras instituições do Brasil e do mundo”, diz Antonio Neto, especialista em conservação e restauro, que coordena a equipe no Instituto. Neto revela que durante o trabalho foram descobertas as fichas e os catálogos antigos da biblioteca, e que o serviço agora começa do zero. “Desde o fechamento do prédio do IHGP para a reforma nos anos 2000, este acervo ficou encaixotado em uma das salas e passou por todas as atribulações da reforma, então, com certeza, há material que foi perdido ou extraviado durante esse período, mesmo com todos os esforços de preservação que a Diretoria do IHGP dispendeu durante esses anos”. Depois de inventariada, ainda não se sabe quando a Biblioteca poderá funcionar de forma pública. “Isso é uma definição da Diretoria. O que posso dizer é que no final do projeto, a biblioteca estará minimamente apta para receber consulentes”, diz Neto. O IHGP está redescobrindo seu acervo bibliográfico, indisponível desde o final da década de 1990. “Como coordenador do projeto e restaurador de acervos em papel, também vejo este trabalho como o primeiro passo para um trabalho maior de conservação desta biblioteca, pois
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é agora que a estamos conhecendo, descobrindo suas características e o que é necessário para a sua preservação a longo prazo”. Não está contemplada neste projeto a biblioteca pessoal do Barão de Guajará, que também pertence ao IHGP, e nem o inventário dos periódicos presentes no acervo da Biblioteca José Veríssimo. Uma coleção gigantesca de jornais e revistas. “Gostaríamos de englobar, pelo menos, uma parte deste acervo, se sobrar algum tempo, após o inventário do acervo bibliográfico”, comenta.
DESCOBERTAS, OBRAS RARAS E CURIOSIDADES Desde que iniciou o processo de catalogação no IHGP, a equipe vem se deparando com algumas raridades. “Descobrimos o primeiro livro que temos certeza é considerado um ‘livro raro’, ou seja, uma obra que existem poucos exemplares no mundo. O livro é uma terceira edição de “Primeiras linhas sobre o processo civil”, de Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, editado em Lisboa em 1825”. Neto conta que o exemplar que existe na biblioteca é o terceiro tomo de uma coleção de 4 livros que foram editados entre 1824 e 1829. A equipe só conseguiu localizar mais 3 exemplares deste livro: na Biblioteca do Senado, em Brasília; na Biblioteca Jurídica da Corte de Los Angeles e na Biblioteca Nacional de Portugal. “Até o momento é o mais antigo que já encontramos. Existe um livro que me parece mais antigo, mas ele está sem capa e não tem nenhuma informação que o identifique”, continua. Também foram encontradas obras do poeta Bruno de Menezes, com dedicatória do próprio na folha de rosto. “Há vários documentos que foram encontrados no meio do acervo bibliográfico e que por suas naturezas distintas, são encaminhados para o Arquivo Palma Muniz, que também faz parte do IHGP”, explica Neto. Além das raridades, algumas curiosidades. Uma boneca do livro “Idealismo em Holocausto”, de José Marcos dos Santos, editado em 1944 pelo próprio Instituto Histórico e Geográfico do Pará e que fala sobre a vida de Assis de Vasconcelos. “Esta boneca traz as fotos originais que foram reproduzidas no livro, incluindo fotos de itens que fazem parte do acervo museológico do IHGP até hoje, além de assinatura e notas do autor. É uma excelente forma de ver o processo de construção de uma obra há mais de 60 anos atrás”.
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Inventário encontra a Boneca do livro que aborda a trajetória de Assis de Vasconcelos
Uma equipe pequena trabalha na José Veríssimo (IHGP)
REVISTA REVISTA N Noo54 -- AGO/2019 FEV/2019
Antônio Neto, especialista em conservação e restauro
Descobrimos o primeiro livro que temos certeza é considerado um ‘livro raro’, ou seja, uma obra que existem poucos exemplares no mundo. O livro é uma terceira edição de “Primeiras linhas sobre o processo civil”, de Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, editado em Lisboa em 1825”. — NETO
ONDE FICA: IHGP – BIBLIOTECA JOSÉ VERÍSSIMO Rua Tomázia Perdigão, 64, em frente à Praça D. Pedro II, Cidade Velha FÓRUM LANDI – MEMORIAL DO LIVRO Rua Siqueira Mendes, 160, Cidade Velha GRÊMIO LITERÁRIO PORTUGUÊS – BIBLIOTECA FRAN PAXECO Rua Manoel Barata, 477/48, Campina
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PROJETO CIRCULAR
AS OBRAS RARAS DO GRÊMIO LITERÁRIO PORTUGUÊS Elas são o foco de atenção no projeto de preservação e conservação da Biblioteca Fran Paxeco, no Grêmio Literário Português, em sua sede da Rua Manoel Barata com a Trav. Frutuoso Guimarães, no coração da Campina. A biblioteca possui 35 mil obras no total, mas começou pela urgência, cuidando de 460 obras raras. “Desde que vim pra cá, venho elaborando projetos para preservar o acervo e melhorar o acesso a esta biblioteca”, diz Ethel Valentina Soares, que é Preservadora de Patrimônio Histórico Bibliográfico Documental. “É muito difícil captar recursos e quase não se vê editais voltados para arquivos e bibliotecas” comenta. A Biblioteca do Grêmio Literário Português tem ainda documentos e livros de registros que contam parte da vida social da instituição. “Com a emenda parlamentar que saiu agora, após uns dois anos que estamos buscando o recurso, a gente vai conseguir, ao menos, fechar essa etapa que é muito importante”, diz Ethel, idealizadora e orientadora do projeto. Paralelamente, também se está atualizando o inventário completo da Fran Paxeco. Dora Lúcia Ribeiro Lourenço, professora de Artes e formada em assistência de conservação e restauro em
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Aqui neste núcleo, o projeto foca em restaurar e fazer higienização mecânica, a limpeza e o acondicionamento dessas 460 obras raras e também vamos atualizar o inventário dos 35 mil livros da Fran Paxeco. Fazia anos que a biblioteca não passava por um inventário, sofreu uma catalogação nos anos 1980 e de lá pra cá não houve mais atualização. Estamos recontando os livros para saber quantos exemplares e cópias temos, enfim, ver o que existe e o que não existe. São obras dos séculos 16, 17 e 18 e precisavam de muita atenção”. — DORA LÚCIA papel, também integra o projeto do núcleo do Grêmio Literário Português. O processo iniciou pela limpeza, pois há 30 anos foi aplicado um veneno com eficácia de 60 anos, para prevenir a deterioração dos papéis por insetos, uma prática antiga, que não se usa mais. Somente após isso é que se iniciou a catalogação, com digitalização de algumas das obras mais raras, a fim de imediatamente protegê-las da destruição do tempo. A digitalização completa, porém, somente em outra etapa será possível. Uma das obras mais raras da Fran Paxeco é o livro “Avisos Spirituales que enseñan como el sueño corporal sea provechoso al spíritu”, de Francisco Monzón, datado de 1563. O autor nasceu em Madri, em 1500, e morreu em Lisboa, em 1575. O Cônego, pregador e capelão real, ficou famoso em Madri como pregador e pedagogo, em seguida foi enviado para a Corte de D. João III, de Portugal, em 1535.
Além da edição que está em Belém há apenas mais dois exemplares disponíveis, como verificou a historiadora Milena Moraes, que está trabalhando no projeto de preservação e acondicionamento dos livros. “Este livro só foi encontrado na Biblioteca Nacional de Espanha (BNE) e na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). Sendo que o livro que está na nossa biblioteca apresenta uma marca tipográfica diferente na sua folha de rosto, e uma dedicatória à Leonor Mascarenhas, filha do Príncipe de Portugal, diferentemente do livro encontrado na BNP”, explica Milena. Já mais conhecidas do público, no acervo do Grêmio, está a coleção completa de Camilo Castelo Branco, escritor português do século XIX. Além de todas as obras dele, estão ainda edições traduzidas para o espanhol, francês e inglês. Há livros sobre Medicina Natural, do italiano
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Equipe que atua na biblioteca Fran Paxeco
Giovanni Mathiolli, do século XIX; uma edição antiga de “Os Lusíadas”, de Camões, do século XVIII; livros da Escola de Navegação de Portugal com mapas; livros da Santa Inquisição, sobre Heliocentrismo, o livro mais antigo de pesquisa de música do Brasil, do século XVII etc. Outra raridade é o registro da vida da comunidade portuguesa no Pará de 1819 a 1820, um dos períodos da Cabanagem, como cartas da comunidade pedindo socorro e o envio de esquadras de guerra para guerrear com os cabanos, entre outros. Tudo lá.
Muito cuidado no manuseio das obras
UMA PEQUENA RELÍQUIA Não é que seja raro, mas foi um achado o livro “A Arte de Cosinha”, que traz receitas de João da Matta, chef português que trabalhava para a família real lusitana. A direção do Grêmio conseguiu as autorizações e mandou imprimir exemplares que são vendidos, como forma de arrecadar fundos também para os serviços na biblioteca. n
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ENTREVISTA
FLÁVIO NASSAR, O ARQUITETO E PROFESSOR, QUE COORDENA O PROJETO DO FÓRUM LANDI 36
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ACERVOS BIBLIOGRÁFICOS SALVOS DO LIXO – ENTREVISTA COM FLÁVIO NASSAR FOI POR UM TRIZ QUE UMA BIBLIOTECA PARTICULAR INTEIRINHA NÃO ACABOU NA LIXEIRA. A PROFESSORA MARIA ANUNCIADA CHAVES (1915 – 2006) NÃO TINHA HERDEIROS DIRETOS, MAS DEIXOU UM ACERVO PRECIOSO PARA A MEMÓRIA E A PESQUISA.
Por LUCIANA MEDEIROS Fotos CLÁUDIO FERREIRA
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evistas, obras de referências, relatórios, teses, folhetos e livros de temáticas diversas, alguns deles com recortes de jornal anexados ou anotações esquecidas entre capítulos, que estavam na casa em que viveu a professora Maria Anunciada Chaves, na Trav. Ruy Barbosa, bairro do Reduto. Tudo ia para o lixo. “Soubemos que os livros estavam sendo jogados em um caminhão-baú e seriam despachados em algum lugar, então nos mobilizamos e conseguimos articular com outras associações de preservação da memória, o resgate desse acervo. Correspondências e acervos fotográficos estavam sendo jogados fora”, conta o professor Flávio Nassar, coordenador do Fórum Landi. A partir do episódio da coleção do acervo de Maria Anunciada Chaves, em 2012 surgiu o projeto “Memorial do Livro Moronguetá”, desencadeando uma onda de doações, feitas de forma espontânea, mas também negociadas, por interesse próprio, como foi o caso da mais
recente aquisição: Documentos, fotografias, postais e manuscritos, incluindo cartas do acervo do escritor e romancista Dalcídio Jurandir. A ação foi considerada pelo Fórum Landi, uma conquista. “Finalmente, em Belém, temos um acervo do escritor, exclusivo para pesquisa na região que o inspirou e nasceu o autor”, comemora Flávio, lembrando que “A maior parte de acervo de livros dele estão na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro”. O inventário do projeto do Fórum Landi inclui, ainda, acervo das bibliotecas de Célia Bassalo (1940–2015), mestre em Teoria Literária e professora aposentada da UFPA; Raimundo Jinkings, jornalista, militante do PCdoB e livreiro-fundador da Livraria Jinkings; Aldebaro Klautau Filho, o Baim (1936–2009), ex-presidente da OAB-PA; Clóvis Moraes Rêgo (1925–2006), escritor, professor, pesquisador, historiógrafo e político, e de Francisco Paulo Mendes (1910-1999), célebre escritor e professor de Literatura.
A maioria dos livro pertence a intelectuais autodidatas que formaram suas bibliotecas por amarem o livro, por serem bibliógrafos e por interessarem pela cultura que se dava nas agremiações, associações culturais, no IHGP, na Academia e assim por diante.” 37
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DEPOIS DO EPISÓDIO COM OS LIVROS DA BIBLIOTECA DA PROFESSORA ANUNCIADA, COMO OS OUTROS ACERVOS CHEGARAM ATÉ VOCÊS? Flávio Nassar: A partir do momento em essa história se espalhou, chegando à imprensa, várias pessoas começaram a nos ligar, como foi o caso da família do Jinkings, que já havia doado essa biblioteca para a UFPA, e pediu que a doação fosse encaminhada para nós. Foi o segundo acervo que recebemos. Em alguns casos, como a do Machado Coelho, nós procuramos a família, porque sabíamos que a casa onde estava biblioteca seria posta à venda. A família aceitou doar esta biblioteca, que é uma biblioteca belíssima, que abrigava raridades, além de ter uma grande quantidade de livros publicados no Pará, tanto de literatura, quanto de assuntos variados. A maioria das bibliotecas são de intelectuais autodidatas, que formaram suas bibliotecas por amarem o livro, por serem bibliógrafos, e também por se interessarem pela cultura, que se dava nas agremiações, associações culturais, no IHGP, na Academia e assim por diante.
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PODE DESTACAR ALGUNS? A professora Anunciada Chaves é precursora na participação das mulheres na vida cultural, intelectual. Ela foi membro e presidiu o Conselho Estadual de Cultura por muito tempo. Foi professora do Colégio Moderno, e de História da UFPA, onde depois foi Pró-Reitora de Ensino. Roberto Santos foi professor da Universidade Federal do Pará, juiz, Desembargador do Trabalho e publicou uma obra histórica chamada “A Evolução Econômica da Amazônia”, um clássico. A biblioteca dele tem um grande acervo voltado para as questões da economia da Amazônia, depois surgem, evidentemente, as questões das relações de trabalho”, continua Flávio. Clóvis Ferro Costa se destacou como político aqui no Pará. Integrava a ala “Bossa Nova” da UDN, grupo oposto ao “Baratismo”. Ele foi cassado pelo golpe de 64, morou no RJ, onde exerceu a advocacia e montou um escritório de sucesso. Era um bibliófilo, uma pessoa que tem uma grande biblioteca. A parte jurídica não veio, mas ele tem uma biblioteca muito interessante, que acompanha muito a questão das revoluções nacionais dos anos 60, 70, e
internacionais de Cuba, Nicarágua, outros países da Europa.
AQUILO QUE GUARDAMOS EM NOSSAS ESTANTES DIZEM UM TANTO A NOSSO RESPEITO. A PARTIR DESSE PONTO DE VISTA, QUAIS SERIAM OS INTERESSES EVIDENCIADOS NESSAS BIBLIOTECAS? PODE DESTACAR ALGUNS CASOS? A biblioteca do Clóvis Moraes Rêgo é uma biblioteca rica, sobretudo, na coleção de revistas que eram publicadas no Pará no início do século 20, final do século 19, revistas de costumes, literatura, comportamento, que relatavam a vida social das classes bem aquinhoadas de recursos, e a vida cultural da cidade, então, revistas como “A Semana”, “Pará Nova”, e assim por diante, são importantes repositórios de informações sobre essas questões. A biblioteca do Francisco Paulo Mendes tem muitas informações sobre Literatura, não apenas paraense, como brasileira e mundial. Ele dava aula de Literatura e de História da Arte. Fui aluno dele, então tem muita coisa de Arte. A biblioteca do Raimundo Jinkings tem literatura comunista
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A biblioteca do Raimundo Jinkings tem literatura comunista ligada à produção das editoras da União Soviética e tem uma grande coleção de livros do processo de redemocratização do país, então é interessantíssima.”
ligada à produção das editoras da União Soviética e tem uma grande coleção de livros do processo de redemocratização do país, então é interessantíssima. A biblioteca do Machado Coelho é de Literatura, Literatura Francesa, ele era um francófilo, tem muitos livros em francês. A Célia Bassalo é filha do Machado Coelho. Foi diretora do Centro de Letras e Artes da UFPA, pesquisadora na área. Tem um trabalho também que é marcante, o livro “Belém e a Belle Époque”. A biblioteca dela tem muito conteúdo de Arte, não apenas de Literatura, mas das Artes Visuais, é uma biblioteca bastante rica.
Estamos aguardando ainda as bibliotecas de José da Silveira Netto e coisas de Roberto Santos e Clóvis Ferro. Mas todas são bibliotecas relevantes, cada uma com seu enfoque, sua peculiaridade.
NÃO PODEMOS DEIXAR DE FALAR DO ACERVO DO ESCRITOR DALCÍDIO JURANDIR. NESTE CASO, VOCÊS FORAM ATRÁS DA DOAÇÃO. COMO FOI A NEGOCIAÇÃO COM A FAMÍLIA? Como é sabido, Dalcídio Jurandir era militante do PCB (Partido Comunista Brasileiro), foi para o Rio de Janeiro, e lá fez uma carreira de jorna-
lista, intelectual orgânico do partido e inicia sua carreira literária. Como ele viveu a maior parte da vida no RJ, depois que faleceu, a família doou à biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, a biblioteca particular dele e parte das suas correspondências, as anotações e, assim por diante, mas reservou uma parte. A família guardou o que achava que tinha um conteúdo mais pessoal e criou uma fundação, a Casa Dalcídio Jurandir, para divulgar e preservar a memória e os trabalhos do autor, mas com a dificuldade de manutenção, eles estavam novamente pensando em doar tudo isso à Fundação Casa de Rui Barbosa.
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Foi quando eu soube disso e entrei em contato direto, mas depois soube do vínculo do Paulo Nunes com a família do Dalcídio. Paulo Nunes é um dos maiores, senão, o maior estudioso da obra do Dalcídio aqui em Belém. Falei com o Paulo, que “comprou a briga”, e foi, negociou com a família, que por fim se convenceu de que o melhor lugar para esse acervo era Belém.
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O QUE EXATAMENTE CONTÉM ESTE ACERVO? Estão aqui agora a correspondência pessoal dele com outros intelectuais, com outros líderes do Partido Comunista, e assim por diante. Temos os cadernos de anotação dele, aquele famoso “caderno do poeta”, no caso do romancista, em que você vai anotando as coisas. Há ainda car-
tões-postais, fotos, entrevistas nos jornais, caricaturas, isso tudo são coisas que estão lá, que são interessantes, que são únicas, e que nós esperamos que, em breve, depois de serem digitalizadas, sejam colocadas à disposição do público, dos pesquisadores e assim por diante É como eu dizia à família: Dalcídio é identificado com Belém do Pará, a obra dele toda é focada
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QUAL DOS ACERVOS VOCÊS CONSIDERAM MAIS RICO E ROBUSTO? Em termos de tamanho, o acervo do Machado Coelho é maior, mas o acervo da Anunciada Chaves contém muito material de anotações, pesquisas. No resgate dos livros, a gente saiu limpando, tirando tudo de dentro das gavetas que iam ser jogadas fora e conseguiu um grande material que um dia, se for estudado, vai revelar muita coisa da vida cultural paraense. Há correspondência e documentos de estudo também, tanto no acervo do Clóvis Ferro Costa, como no acervo do Roberto Santos, que ainda estamos aguardando chegar. Essa parte dos acervos é muito rica, as vezes é considerada mais rica até do que os próprios livros, porque estes como ainda são recentes, você pode encontrá-los, agora a correspondência, as pesquisas, as anotações, essas são realmente únicas.
QUANDO ISSO TUDO ESTARÁ DISPONÍVEL PARA O PÚBLICO?
em Belém, mas se você quiser saber alguma coisa a mais do Dalcídio, você tem que ir para o Rio de Janeiro, então vamos reservar (risos). O fato é que agora temos aqui alguma coisa inédita do Dalcídio. Isso deve atrair as pessoas que queiram estudar o escritor, nacionalmente ou internacionalmente, a virem a Belém, conhecer a geografia onde foi produzida a obra dele.
O objeto final desse projeto, porém, só será alcançado quando estivermos num espaço definitivo, que é o que esperamos ter com o a criação do Memorial do Livro Moronguetá.”
Ainda há muito o que ser feito, mas a expectativa é que em setembro deva estar concluída esta parte do projeto, e que em outubro esteja disponível a pesquisadores, alunos de doutorado, de mestrado, que devem agendar a visita para as consultas. O objeto final desse projeto, porém, só será alcançado quando estivermos num espaço definitivo, que é o que esperamos ter com o a criação do Memorial do Livro Moronguetá. n
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MEMORIAL DO LIVRO MORONGUETÁ – UM ESPAÇO DE HOMENAGEM E PESQUISA MORONGUETÁ, NA LÍNGUA INDÍGENA NHEENGATU, SIGNIFICA FALAR DE COISAS BOAS. ASSIM, O MEMORIAL DO LIVRO PRETENDE REVERENCIAR A MEMÓRIA DE PESSOAS IMPORTANTES DA CULTURA PARAENSE, POR MEIO DOS LIVROS E DOCUMENTOS QUE ELAS GUARDARAM EM SUAS BIBLIOTECAS. Por LUCIANA MEDEIROS Fotos CLÁUDIO FERREIRA
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nome ao Memorial foi ideia de Vicente Salles, mas o projeto foi idealizado dentro da UFPA pelo arquiteto e Pró-Reitor de Relações Internacionais, Prof. Flávio Nassar, pela geóloga Glória Martins, pela estudante de Biblioteconomia, Geisa Dias e pela bibliotecária Elisangela Costa. O projeto vai ocupar o conjunto arquitetônico localizado na Ladeira do Castelo, que já abrigou a biblioteca do Colégio dos Jesuítas do Grão-Pará, no período de 1663- 1753. Já viu? Ladeado pelo Museu de Arte Sacra e pelo Forte do Castelo, amarga décadas de descaso e abandono. “Conseguimos, via Fórum Landi-UFPA, um
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financiamento pelo programa PAC das Cidades Históricas para a recuperação de um conjunto arquitetônico para onde queremos levar essas bibliotecas”, diz Flávio Nassar. O valor é de R$ 4.800.000,00. O Forum Landi fez o projeto arquitetônico da reforma e vai acompanhar a execução. A contratante é a UFPA, que já recebeu o recurso. “Só falta licitar”, afirma Nassar. Na adaptação, o prédio ganhará três ambientes documentais – um museu com objetos pessoais dos intelectuais, um arquivo onde ficarão armazenados documentos como cartas, prêmios, relatórios, portarias etc., e a Biblioteca, espaço reservado a reunir os livros que pertenceram aos homenageados.
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Casario onde ficará o memorial está em estado de degradação
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ADMINISTRAÇÃO
BOLSISTA
ÁREA DE DIGITALIZAÇÃO
CALÇADA DE PROTEÇÃO
LEGENDA DE SETORIZAÇÃO ÁREA PÚBLICA ÁREA TÉCNICA/ADMINISTRATIVA ÁREA PÚBLICA DE ACESSO RESTRITO ÁREA DE ACESSO RESTRITO ÁREA DE RECUPERAÇÃO DE LIVROS
CIRCULAÇÃO
CIRCULAÇÃO
BANHEIROS
ACESSO AUDITÓRIO
W.C. FEM. W.C. PCD W.C. MASC.
CAFETERIA
RECEPÇÃO
ÁREA DE EXPOSIÇÕES
ALBERGUE DO ESTUDANTE
LADEIRA DO CASTELO
MEMORIAL DO LIVRO
PLANTA BAIXA ESC. 1:200
BOLSISTA/ AUXILIAR
BOLSISTA/ AUXILIAR
LEGENDA DE SETORIZAÇÃO ÁREA PÚBLICA ÁREA TÉCNICA/ADMINISTRATIVA
ACERVO
ACERVO
ÁREA PÚBLICA DE ACESSO RESTRITO ÁREA DE ACESSO RESTRITO CIRCULAÇÃO BANHEIROS CIRCULAÇÃO
CIRCULAÇÃO
W.C. FEM.
W.C. MASC. W.C. FEM.
W.C. MASC.
W.C. PCD
DEP.
COPA
SOLICITAÇÃO E DEVOLUÇÃO DE LIVROS
SALA DE LEITURA / PERIÓDICOS
MEMORIAL DO LIVRO
PLANTA BAIXA ESC. 1:200
Projeto de execução da obra de reforma e restauro está pronto!
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PROJETO MUSEOLÓGICO O projeto prevê ainda a disponibilização museológica de objetos e documentos que foram encontrados ou doados junto aos acervos. Em fase de execução, já realizou a coleta dos materiais bibliográficos e dos objetos pessoais doados, além das obras, verificando o estado de conservação e a tipologia documental de cada uma. Flávio Nassar conta que, antigamente, quando se fazia uma doação de um acervo particular para uma biblioteca no Brasil, os livros entravam na catalogação geral, mas hoje o tratamento dado é outro, organizando e evidenciando a particularidade de cada um deles. “A nova tendência de quando as universidades recebem essas coleções, é manter esses
livros agrupados de tal forma que você possa acompanhar e entender, digamos assim, a formação intelectual desses proprietários, de modo que cada biblioteca tem uma característica que reflete os interesses, a formação de cada um deles”, explica. O projeto surgiu em 2012, após a aquisição do acervo da professora Maria Anunciada Chaves pelo Fórum Landi, uma vez que a Biblioteca da UFPA não pôde receber o material por falta de espaço. Hoje, já são dezenas de bibliotecas com milhares de livros e o Memorial ainda vai receber a biblioteca do escritor e pesquisador Vicente Salles, da escritora Eneida de Moraes, do advogado Clóvis Ferro Costa e a do advogado, economista e juiz Roberto Santos. n
Acompanhe o projeto pelo blog criado em 2013 https://moronguetaufpa. blogspot.com/
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GALERIA OTÁVIO HENRIQUES
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CLÁUDIO FERREIRA
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REVISTA CIRCULAR Edição 5
ISSN
2526-4354
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Luciana Medeiros TEXTOS
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REVISTA No 4 - FEV/2019
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