O PAPEL DA ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA: as contradições e limites do projeto social-liberal

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O PAPEL DA ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA: as contradições e limites do projeto social-liberal Antonio Mota1 Vanda Souto2 (Militantes da Insurgência São Paulo)

Resumo: O artigo é uma contribuição ao debate sobre a situação atual na América Latina e tem como objetivo apontar alguns elementos de análise da conjuntura latinoamericana e, particularmente, brasileira. Parte-se de um panorama histórico da eleição de governos centro-esquerda na região e, a partir daí, busca-se compreender os limites sociais e econômicos do projeto político desses governos. O texto está organizado em três seções: na primeira apresentamos o contexto histórico da América Latina no fim do

século XX que foi o pano de fundo para a eleição dos referidos governos; em seguida, nos dedicamos à análise dos governos de Lula da Silva levantando as continuidades e

rupturas ocorridas ao longo de seus dois mandatos; por fim, discutimos os limites inerentes ao próprio modelo social-liberal desenvolvido no Brasil. É importante

ressaltar que esse texto foi escrito a duas mãos com tintas vermelhas. Com isso, o texto

também se propõe a instigar um amplo debate dentro da nossa organização acerca do Mestrando em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filho” – Campus de Marília/SP é pesquisadora sobre o Governo Lula da Silva e a política externa pra Bolívia (2003-2010). 1 2


possível fim de um bloco histórico e os desafios lançados às organizações que se afirmam socialistas. É preciso centrar a lupa no avanço das forças capitalistas na América Latina, sem perder de vista o horizonte de sua articulação desigual e combinada com a economia mundial e o cenário político que se forma. Palavras-chave: América Latina; Brasil; Social-liberalismo 1. Introdução A eleição do governo Macri na Argentina, a maioria parlamentar oposicionista na Venezuela e a derrota de Evo Morales no plebiscito sobre a reeleição presidencial

aprofundam a crise pela qual passam os governos ditos “populares” e de “esquerda” na América Latina. Essa crise também se expressa no Brasil com mais intensidade a partir

da reeleição de Dilma Rousseff em 2014. Podemos caracterizar essa crise em três

dimensões: econômica, política/ideológica e social. Do ponto de vista econômico, a

crise expressa-se na especialização de produção de mercadorias de baixo conteúdo tecnológico; o deslocamento do centro dinâmico da economia para o mercado internacional; revitalizou atividades típicas de uma economia colonial vigorando o

latifúndio, baseado na monocultura, na exploração de mão de obra barata e na depredação do meio ambiente (SAMPAIO, 2010, pág. 46). Com isso a região

aprofundou sua inserção na economia mundial como plataforma de valorização

financeira. A dimensão política e ideológica da crise se expressa no abandono do

socialismo como perspectiva estratégica pelo Partido dos Trabalhadores - PT e a despolitização decorrente do neoliberalismo que restringe a política a uma questão administrativa, de gestão da política econômica. Quanto à dimensão social, podemos caracterizar os governos do PT como social-liberal, baseada em uma política econômica

ortodoxa com nuances sociais como é caso da valorização do salário mínimo, transferência condicionada de renda (Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada), expansão do crédito, criação de novos postos de trabalho.

2. O avanço do neoliberalismo na América Latina e o “Consenso de Washington”

A partir da segunda metade década de 1970, o capitalismo entra num período de grave crise econômica, o que abre espaço para uma ampla crítica teórica e política à social-

democracia e à macroeconomia keynesiana. Eles seriam responsáveis por ampliar a


participação do Estado na economia, o que prejudicaria a iniciativa privada e os mecanismos de mercado. Esse é o contexto em que se desenvolve de forma mais clara o que chamamos de “neoliberalismo”.

No entanto, antes que o neoliberalismo ganhasse força com o governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, em 1973 o Chile se tornaria um dos primeiros laboratórios

do neoliberalismo. O golpe militar de 11 de setembro de 1973 leva os chamados

“Chicago Boys” – economistas formados na Universidade de Chicago, centro onde se

gestaram as principais teorias vinculadas ao neoliberalismo – ao comando da política econômica chilena. Pode-se ler no documento que serviria de base para a política econômica de Pinochet, que: “O funcionamento do mercado, a abertura ao comércio

exterior e o estabelecimento de políticas globais de ordenamento da economia tornarão possíveis um alto dinamismo e um rápido crescimento” (CEP, 1992, pág. 68).

O mesmo ocorre em 1976 na Argentina com o golpe militar e a subida do Ministro José Martínez Hoz. No livro que o ministro lançara pouco após sua saída do Ministério da

Economia, ele é enfático ao afirmar que “os dois pilares básicos dos quais derivaram os

grandes rumos da ação do programa econômico anunciado no dia 2 de abril de 1976 foram a função subsidiária do Estado e a abertura da economia” (HOZ, 1981, pág. 30)

Na década de 1980, com a crise da dívida, o aumento dos níveis de inflação e o esgotamento do “desenvolvimentismo”, o neoliberalismo ganha ainda mais força na região. O caso da Bolívia é paradigmático: o presidente Victor Paz Estenssoro – o

mesmo que nas décadas de 1950 e 1960 havia desenvolvido uma política nacionalista e

reformista – assina o Decreto Supremo de 29 de agosto de 1985, que impôs uma política de choque monetarista. No Brasil, após o fracasso dos planos Cruzado e Bresser, o neoliberalismo ganha força ao fim do governo Sarney.

O começo da década de 1990 representa a consolidação política e econômica na região, particularmente com os governos de Fernando Collor de Mello, no Brasil; Carlos

Menem, na Argentina; Alberto Fujimori, no Peru; Carlos Salinas, no México e Luis Alberto Lacalle, no Uruguai. Segue-se um longo período de privatizações,

contrarreformas trabalhistas e previdenciárias, desmantelamento de serviços públicos, “ajustes fiscais” e aumento da repressão aos movimentos populares e sindicatos.


Com isso, as economias latino-americanas iniciam um novo período de sua inserção na economia mundial, caracterizado por Paul Singer como uma “dependência desejada”

(SINGER, 1998). Ou seja, a política econômica neoliberal aprofunda a dependência econômica da região e busca inserir a América Latina de forma subordinada no capitalismo financeirizado.

A retórica neoliberal reafirmava que a região reencontraria a trajetória do crescimento

econômico sustentado assim que promovesse os ajustes fiscais e institucionais necessários a diminuir a atuação do Estado na economia, desmontar políticas

“desenvolvimentistas”, remover regulações e subsídios e “flexibilizar” as condições de

produção. No entanto, essa retórica logo mostrou-se falsa. Um primeiro sinal foi a crise financeira do México em 1995 e que rapidamente contaminou outros países como o

Brasil e a Coreia do Sul. De imediato, o governo mexicano recebeu um pacote de socorro da Reserva Federal e do FMI, pelo qual o governo mexicano se comprometeria a seguir realizando sua política de ajuste. Podemos notar que, àquela altura, os primeiros

sinais de fracasso das políticas neoliberais foram interpretadas antes como decorrentes de uma lenta implementação da “cartilha” neoliberal do que a expressão de suas contradições inerentes.

Em 1998 e 1999 novamente seguiram-se crises financeiras que afetaram diversos países: Tailândia, Coreia do Sul, Rússia e o Brasil. Seguiu-se uma nova rodada de

planos bilionários formulados pelo FMI, que exigiam como condicionante um novo aprofundamento das políticas neoliberais. Iniciava-se com isso a montagem institucional do chamado “tripé macroeconômico”: o câmbio passava a ser definido pelo

mercado; seria montado um sistema de metas de inflação como forma de sinalizar ao mercado o esforço do governo em manter o nível de preços; e o governo deveria se comprometer a realizar seguidos superávits primários de forma a estabilizar e diminuir a relação dívida/PIB.

Em 15 de janeiro de 1999, o Banco Central do Brasil permitiu a flutuação cambial; em

21 de junho foi editado o Decreto 3.088 que estabelecia o regime de metas de inflação.

A política monetária torna-se ainda mais contracionista com o aumento da taxa básica de juros da economia realizado pelo Conselho de Politica Monetária no dia 05 março de

1999: a Selic subiu de 25% a.a. para 45% a.a. Entre 1999 e 2001 o governo procedeu um “ajuste fiscal” aumentando a alíquota da Contribuição Provisória sobre


Movimentações Financeiras (CPMF), Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS), do Imposto de Renda e criando a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE).

As contradições do neoliberalismo fizeram-se notar também em outros países sulamericanos. No Equador, após uma grave crise econômica, o governo adotou a dolarização da sua economia em 9 de janeiro de 2000.

O caso mais grave das consequências do neoliberalismo na região foi a crise da Argentina em 2001. Em meio a uma grave crise financeira, fruto da política econômica

adotada pelo governo Menem e seu ministro da economia Domingo Caballo, o

presidente Fernando de la Rúa renuncia em 20 de dezembro de 2001. O vice-presidente

havia renunciado em outubro, o que abriu uma crise institucional, que piorou ainda mais a situação econômica.

Na Venezuela, o neoliberalismo iniciou-se de com o segundo mandato de Carlos Andrés Pérez (1989-1993). Curiosamente, no seu primeiro mandato (1974-1979) Andrés Pérez

havia assumido uma política econômica nacionalista e de esquerda, realizando a nacionalização das indústrias petrolífera de ferro. A resistência popular foi rápida e já

no fim de fevereiro de 1989 ocorreu o chamado “caracaço”, uma rebelião popular desencadeada pelo aumento do preço da tarifa de ônibus, ocorrido após o reajuste do

preço do petróleo. Nesse contexto ganhou força o movimento popular liderado pelo

tenente-coronel paraquedista Hugo Chavez, de cunho nacionalista e que se opunha radicalmente ao programa neoliberal desenvolvido por Andrés Pérez.

Mesmo após a implementação dos “ajustes estruturais” e das políticas neoliberais, as

economias da região mantiveram baixas taxas de crescimento, o que piorou a situação social da região piorando a concentração de renda, desemprego e subemprego.

Do ponto de vista da classe trabalhadora, o avanço do neoliberalismo na década de 1990

foi dramático, pois ele representou um aprofundamento da superexploração da força de trabalho, que historicamente caracteriza a estrutura do capitalismo dependente. Por

exemplo, no Brasil, o salário mínimo real, que já vinha de uma trajetória descendente desde o começo da década de 1980, atinge seu pior nível no começo da década de 1990.

O Plano Real também não alteraria essa situação: os ajustes salariais passaram a ter periodicidade anual, mas tinham pequena valorização real.


GRÁFICO 01 - Salário mínimo real mensal (1980-2016.2) (R$)

Fonte: IPEA A sindicalização também diminuiu ao longo dos anos 1990, o que somado ao contexto de reestruturação produtiva, aumento do desemprego e crescente repressão aos

movimentos sociais diminuiu sensivelmente a quantidade de greves ocorridas no período. Em 1989, ocorreram aproximadamente 4000 greves, já em 1999 foram em torno de 500 greves.

GRÁFICO 02 – Estimativa de greves no Brasil (1978-1999)

Fonte: Pochmann (2001) Como podemos perceber, o longo período de avanço do neoliberalismo ampliou a dependência econômica dos países da América Latina tornando-os mais vulneráveis às

crises financeiras, aumentou o desemprego e exclusão social, promoveu uma inserção


passiva dos países da região na fase financeirizada do capitalismo, desmontou serviços

públicos por meio da privatização e retirou direitos sociais e trabalhistas. No entanto, não é correto compreender a história a partir de uma perspectiva unívoca: se o

neoliberalismo certamente representou um avanço da burguesia sobre a classe

trabalhadora latino-americana, também impulsionou a resistência popular. Com isso, jovens, estudantes, sem-terra, funcionários públicos, intelectuais, indígenas e outros setores se destacaram no combate ao neoliberalismo.

Diante de uma “crise orgânica”, para usar a expressão de Antonio Gramsci, abre-se

espaço para a ascensão de governos de centro-esquerda em diferentes países da América Latina: Chavez, na Venezuela em 1998; Lula em 2002; Nestor Kirchner, na Argentina

em 2003; Tabaré Vazquez, no Uruguai em 2005; Michelle Bachelet, no Chile em 2006; Evo Morales, na Bolívia em 2006 e Rafael Correa, em 2007.

Em seguida analisaremos um pouco mais detalhadamente aspectos do governo Lula da

Silva no Brasil de forma a compreender os limites e possibilidades desse ciclo político que se iniciava na América Latina.

3. Carta ao povo brasileiro e a montagem do social-liberalismo A eleição de Lula da Silva para o cargo de Presidente da República, no Brasil, em outubro de 2002, possui um caráter simbólico inegável: sua trajetória o transformou no

que podemos identificar como “síntese da miséria material”3 brasileira. Seu destino foi a cidade grande, sedução comum de milhares de trabalhadores que migram na esperança de dias melhores. Após a vitória eleitoral, Lula da Silva tomou posse na Presidência da

República em Janeiro de 2003, e iniciou o governo declarando que surpreenderia fundamentalmente tanto a direita quanto a esquerda.

Lula era a principal figura pública do Partido dos Trabalhadores e para muitos

incorporava o momento de ascensão política e sindical pelo qual o país passou a partir de 1977. Foi nesse crescente de mobilização política da classe trabalhadora que em 1979, durante o 9º Congresso dos Metalúrgicos do Estado de São Paulo, foi aprovada a

proposta de criação do Partido dos Trabalhadores. No dia 1º de maio de 1979 foi Filho de pequenos agricultores do sertão nordestino migrou com a família para fugir do flagelo da seca e da fome presentes na história do país. Em São Paulo, o jovem retirante nordestino encontrou a formação necessária, que o inseriu nas frações do proletariado industrial (DEO, 2011, p. 14). 3


lançada a Carta de Princípios, em que novamente pode-se comprovar a radicalidade

presente no início do partido: “o PT recusa-se a aceitar em seu interior, representantes

das classes exploradoras. Vale dizer, o Partido dos Trabalhadores é um partido sem

patrões!”4. Ainda em outubro de 1979 serão lançados outros documentos a Plataforma Política e a Declaração Política5.

O PT foi fundado no ano seguinte no Colégio Sion no aristocrático bairro paulista de Higienópolis no dia 10 de fevereiro. Naquela ocasião foi lançado o Manifesto de

Fundação, um documento pequeno, mas que expressa a radicalidade do movimento que deu origem ao PT. Pode-se ler no Manifesto que: “Somos um Partido dos

Trabalhadores, não um partido para iludir os trabalhadores. Queremos a política como atividade própria das massas que desejam participar, legal e legitimamente, de todas as decisões da sociedade”6.

Devido ao passado de grandes mobilizações sociais, o governo Lula da Silva representava a esperança por mudanças significativas, por parte da maioria do povo

brasileiro, do modelo econômico estabelecido pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) baseado nas reformas do “Consenso de Washington”.

No entanto, a administração de Lula da Silva não conseguiu superar o modelo de cunho liberal, que estabelece a criação de metas de superávit primário, câmbio flutuante e

metas de inflação adotado a partir do segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso (DEPORTE, 2011).

Pode-se notar que houve uma crescente moderação política no PT. Um marco dessa

moderação é a derrota para Fernando Collor nas eleições de 1989. Para Mauro Iasi, na própria campanha de 1989 podia-se notar uma certa moderação quando comparada com as diretrizes partidas anteriores (IASI, 2012, pág. 451). A partir daquele momento:

Disponível em: < http://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2014/03/cartadeprincipios.pdf>. Acessado no dia 02/04/2016. 4

Disponíveis em: < http://novo.fpabramo.org.br/content/encontros-nacionais-do-pt-resolucoes>. Acessado no dia 02/04/2016. 5

Disponível em: <https://www.pt.org.br/wp-content/uploads/2014/04/manifestodefundacaopt.pdf> Acessado no dia 02/04/2016. 6

.


O jogo institucional já era complexo o suficiente para produzir um distanciamento

interno entre as direções e a base partidária. A participação nos espaços de decisão e

direção já é necessariamente medida pela participação e algum agrupamento, tendência ou bloco político e cada vez menos vinculada a uma real inserção em

algum movimento social. Consagra-se a figura do militante profissional, e as

possibilidades de “liberação” são disputadas segundo uma correlação de forças definida nos processos de encontros cada vez mais massivos e despolitizados. O

controle de postos na máquina burocrática partidária pode ser decisivo para almejar uma vaga na disputa eleitoral, que, por sua vez, abre o acesso à maquina burocrática das administrações municipais ou mandatos parlamentares que, pouco a pouco, se convertem nas bases reais da ação partidária (IASI, 2012, pág. 454).

Aos poucos, palavras como “socialismo”, “transição” e “revolução” vão sumindo de resoluções e documentos do Partido. O contraponto ao capitalismo passa a ser a

“democracia”. Seguramente a defesa da democracia sempre esteve presente nos documentos do PT desde seu início, mas o que se altera é o centro estratégico: antes, a

democracia aparecia como um dos atributos do socialismo que o PT (ou pelo menos várias de suas correntes) buscava; com o tempo “a democracia é o centro e o aspecto socialista aparece para qualificar a democracia que queremos” (IASI, 2012, pág. 455).

Após três derrotas eleitorais consecutivas, a direção política da campanha de Lula procurou procura moderar o discurso por mudanças a ponto de emitir um comunicado

formal por meio da denominada “Carta ao povo brasileiro”. O documento, datado de 22 de Julho de 2002, sinalizava claramente um conjunto de compromissos junto à grande finança e setores das classes dominantes brasileiras e internacionais. Na Carta, o

candidato Lula se comprometia a manter o superávit primário, com o ordenamento e o controle das contas públicas, manutenção das metas de inflação e o próprio câmbio

flutuante. Ou seja, uma proposta que se afastava por completo das diretrizes apresentadas em 1989, quando defendia a imediata suspensão de qualquer pagamento relacionado à dívida externa (DEPORTE, 2011).

Ressalta-se que, para viabilizar a vitória, Lula da Silva constituiu um conjunto de alianças políticas com partidos e frações das classes dominantes anteriormente combatidas pelo PT. A chapa tem como candidato a vice - presidente da república José de Alencar – Partido Liberal (PL), um dos maiores empresários do setor têxtil do Brasil, proprietário da COTEMINAS.


As alianças operadas pelo PT com os setores dominantes para chegar ao Governo Federal dizem muito sobre quão distante já estava o PT daqueles ideais que

impulsionaram sua criação. Montar um governo com um patrão já não era um problema

em 2002. Com isso é possível notar mais uma moderação da prática e do discurso petista: a rejeição aos patrões presente na Carta de Princípios de 1979 dá lugar à rejeição da burguesia parasitária (latifundiários e a grande finança). Os empresários

“produtivos” estariam convidados a apoiar e participar ativamente do governo. Com isso há mais uma inflexão: da defesa do “socialismo” petista passa-se ao anticapitalismo e desse ao anti-neoliberalismo.

De acordo com Marx e Engels é a partir desse nexo de alianças que se pode demonstrar

como os diversos partidos são expressões políticas mais ou menos adequadas das

referidas classes dominantes e suas frações, que operam em consonância com os interesses de classes, e, portanto, com aceitação das restrições impostas pelo capital, nacional e internacional e em particular pela grande finança (MARX, ENGELS, 1978, p.94).

A condução da política econômica receberá especial atenção no governo de Lula. Os ministérios que compõem a chamada “equipe econômica” do governo tiravam poucas

substituições, ao contrário do que ocorreria com os diversos outros ministérios, que

recorrentemente serviram como instrumento de barganha do governo com sua base aliada. O Ministério da Fazenda teve somente uma alteração: a queda de Antonio

Palocci – médico que havia sido militante da famosa organização Liberdade e Luta

(Libelu) – e a ascensão de Guido Mantega; o do Planejamento, duas: a substituição de Guido Mantega – que assumira a presidência do BNDES antes de assumir a Fazenda –

por Nelson Machado e sua troca por Paulo Bernardo. Já o Banco Central não teve

nenhuma mudança: o banqueiro Henrique Meirelles permaneceu à frente da instituição durante os dois mandatos de Lula. Nem mesmo as acusações de remessa ilegal de

divisas levantadas contra Meirelles pelo então Procurador-Geral da República afetaram

seu cargo. Temendo possíveis nervosismos do mercado quanto a uma possível mudança no comando do Banco Central, Lula deu ao presidente do BC status de ministro, o que lhe garantia foro privilegiado.


O governo também contornou a luta de classes ao internalizar os conflitos sociais no aparelho de Estado, alocando nos ministérios tanto os representantes do capital, como representantes do trabalho.

A manutenção dos pilares da política macroeconômica gerou grandes tensões já nos

primeiros momentos do governo, algumas delas originadas de fora do PT – vinda

intelectuais e movimentos sociais outrora aliados ao petismo – e outras, de militantes trotskistas de dentro do próprio partido, como foi o caso de Heloisa Helena (AL),

Luciana Genro (RS), Babá (PA) e outros parlamentares que foram expulsos do PT e deram início a construção e fundação do PSOL (SECCO, 2015, p. 207).

As primeiras medidas do governo trataram rapidamente de afirmar que os termos

afirmados na Carta ao Povo Brasileiro eram críveis. Uma das primeiras propostas de

emenda constitucional remetida pelo governo ao Congresso dizia respeito à reforma da previdência dos servidores públicos federais. Curiosamente, o ex-presidente FHC,

pouco tempo antes do fim do seu mandato afirmara que: “Eu gostaria de ter feito a reforma da previdência, porque hoje o maior problema da taxa de juros é que o estado

é obrigado a gastar mais do que ele arrecada. Principalmente porque nós gastamos R$ 75 bilhões, que corresponde a 25% do orçamento, pra manter três milhões de pessoas, só de funcionários públicos. Eu tentei muito. Eu lamento não ter conseguido”. Esse feito seria conseguido pelo governo Lula e regulamentado pelo governo Dilma.

Para além da reforma da previdência, o ministro Antonio Palocci tratou de aprofundar o

“tripé macroeconômico” herdado do governo FHC: em 2003, sua meta passou de 3,75% do PIB para 4,25% e, em 2004, para 4,5%. A política monetária também seguiu

alinhada ao tripé, com o a elevação da taxa de juros logo nos primeiros meses do governo.

Uma importante fonte de demanda para a economia brasileira, principalmente seu setor de commodities, foi o crescimento acelerado da China que em 2009 se torna o principal

parceiro comercial do Brasil. Se por um lado o crescente comércio sino-brasileiro contribuiu para aumentar as reservas internacionais, também fez com que as exportações brasileiras passassem a se concentrar em produtos primários, o que aprofunda a vulnerabilidade externa da economia (GONÇALVES, 2013, pág. 93).


Do ponto de vista da política social, o governo lança logo em 2003 o Programa Fome

Zero, um programa que tinha por objetivo estabelecer “a superação da dicotomia entre política econômica e políticas sociais, integrando políticas estruturais e emergenciais

no combate à fome e à pobreza” (GRACIANO, GROSSI, FRANÇA, 2010, pág. 8).

Tratava-se de um programa ambicioso, mas que logo teve seu escopo centrado no Programa Bolsa Família, criado também 2003 por meio da Medida Provisória 132. O

salário mínimo teve uma queda em seu valor real em 2003, mas já em 2004 apresenta uma tímida valorização de 3,7% e, em 2005, uma valorização de 7%. Um aspecto

importante da valorização do salário mínimo é que ele também valoriza benefícios

sociais, bem como outras formas de rendimento que o tomam por base. Também a

partir de 2004 o crédito para pessoas físicas e jurídicas começa a se expandir (BARBOSA, SOUZA, 2010, pág. 65).

Em 2006, a condução da política econômica sofre uma mudança parcial com a

substituição de Antonio Palocci por Guido Mantega. Mantega, um economista de história tradição dentro do PT, aprofunda a estratégia de valorização real do salário mínimo e de transferências diretas de renda, principalmente por meio do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC).

No entanto, a política econômica só sofreria uma maior alteração no contexto da crise de 2008, quando o governo brasileiro desenvolveu uma política anti-cíclica, mas ainda

sem romper com o tripé macroeconômico. A política econômica, por meio da redução de impostos, centra-se ainda mais na ampliação da demanda por bens de consumo

duráveis: automóveis (redução de IPI para carros populares e motos); utensílios da chamada “linha branca”. Também é lançado o Programa “Minha Casa, Minha Vida”, que impacta na geração de empregos seja diretamente (na construção civil) ou indiretamente em setores que lhe fornecem insumos.

O crédito segue se expandindo, o que nos leva a apontar que a estratégia de crescimento

montada durante o período pós-crise está fortemente baseada no endividamento. Um problema central dessa estratégia é seu rápido esgotamento porque o aumento da dívida

não segue indefinidamente. Em algum momento, os empréstimos tem que ser pagos. Há que se notar que a taxa de investimento da economia não cresce, ou seja, mesmo com as medidas de expansão de crédito e maior consumo por parte do mercado interno, a classe


dominante não expandiu seu investimento. Assim, a partir de 2013, a economia dá sinais de desaceleração.

Com o esgotamento o ciclo de crescimento impulsionado pelo consumo doméstico e com o aprofundamento dos efeitos da crise internacional sobre o país, o espaço para a

execução de uma política econômica expansionista também mingua. A tentativa fracassada do governo Rousseff de impulsionar um novo ciclo de crescimento a partir de um maior ativismo do Estado burguês esbarra nos limites estruturais do capitalismo dependente e financeirizado, em que nem a autocracia das classes dominantes nacionais

combina-se com as exigências de ajuste fiscal permanente do grande capital internacional. Para superar os impasses inerentes a uma economia dependente na atual conjuntura do capitalismo teria sido necessário um processo de ruptura radical com as

classes dominantes nacionais e internacionais e o fortalecimento da classe trabalhadora. Seria necessário, portanto, que o governo assumisse o lado da classe trabalhadora contra as burguesias. No entanto, a estratégia dos governos petistas seria a da conciliação de classes fortalecendo aspectos da ação estatal que pudessem soldar essa conciliação.

Enquanto houve algum crescimento econômico, foi possível para o Estado estabelecer

uma espécie de conciliação entre capital e trabalho em que ambos obtiveram ganhos. No

entanto, é importante ressaltar que esses ganhos se deram dentro de um marco estrutural definido: a submissão aos marcos do capitalismo financeirizado e da democracia burguesa. Transcender esses limites já não fazia parte do horizonte político do governo.

Assim, podemos apontar um aspecto central que articula os elementos econômicos,

políticos e sociais dos governos petistas: a aceitação do modelo social-liberal converge com a paulatina perda de radicalidade do PT e seu enquadramento dentro dos marcos da institucionalidade da democracia burguesa.

Superar o neoliberalismo em sua totalidade teria exigido dos governos do PT romper com as classes dominantes, fortalecer a classe trabalhadora e lançar as bases para um

conjunto de reformas que levassem à crescente politização e radicalização da

democracia. Ou seja, o governo teria de ter aprofundar uma estratégia de poder que se mantivesse vivamente calcada nos movimentos sociais e nas disputas da classe

trabalhadora contra as classes dominantes. No entanto, a via de menor resistência, ou seja, aquela completamente delimitada pelos marcos da institucionalidade, definida a


priori pelas classes dominantes, tolheu os governos petistas de assumirem uma política radical e lançarem as bases para uma possível transição socialista. A esperança pelo

socialismo brasileiro, um socialismo novo, marcadamente democrático, ecossocialista,

feminista e contrário a qualquer tipo de opressão novamente foi novamente posta de lado.

Assim, por um lado, é bem verdade que a classe trabalhadora conseguiu melhorias materiais. No entanto, essas melhorias não lhe permitiram superar o quadro de

superexploração da força de trabalho, ampliar direitos, aprofundar a consciência de classe e radicalizar a política (LUCE, 2013). Um exemplo disso são os empregos gerados de 2000 a 2010: cerca de 95% das vagas de emprego abertas pagava até 1,5

salário mínimo, o que nos permite afirmar que se tratam de vagas mal remuneradas em que provavelmente predomina a precarização da força de trabalho (POCHMANN, 2010,

pág. 19). Essas melhorias foram possibilitadas por um crescimento econômico de bases

frágeis, que ampliou a vulnerabilidade externa e consolidou o Brasil como uma plataforma de valorização do capital fictício (PAULANI, 2008). Para além do que,

“desconectados de postura anticapitalista, os ganhos materiais conquistados levam

água para o moinho do estilo individualista de ascensão social, embutindo valores de competição e sucesso no lulismo” (SINGER, 2012, pág. 119).

A fragilidade dessas melhorias fica mais evidente no atual momento de crise econômica. Recentemente, o Banco Bradesco apresentou estimativas de que cerca de 4

milhões de pessoas que haviam ingressado na chamada “nova classe média” retornaram

às classes D e E7. Fundamentalmente isso se deve ao aumento do desemprego e a queda dos salários reais. De acordo com a Pesquisa Mensal de Empregos do IBGE, a massa de rendimento real dos trabalhadores (ou seja, a soma de todas as remunerações pagas aos trabalhadores) tem caído mês após mês a partir de janeiro de 2015.

Disponível em: <http://www.valor.com.br/brasil/4385346/crise-devolve-quase-4-milhoes-classes-d-ee>. Acessado em 02/04/2016. 7


Enquanto isso, os lucros dos grandes bancos nacionais aumentaram. O lucro do Itaú

teve em 2015 o maior lucro da história do sistema bancário brasileiro, a bagatela de R$23,35 bilhões de reais. O Bradesco, por sua vez, teve um lucro de R$17,19 bilhões8

A prioridade do governo fica mais claro quando analisamos o volume de gastos

destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública e aquele destinado ao Bolsa Família. A título de ilustração do nosso argumento, em 2015 o pagamento de

juros e amortizações foi 35 vezes maior do que aquele destinado ao Bolsa Família. A menor relação entre eles ocorreu em 2013, quando o total gasto com juros e amortizações foi cerca de 29 vezes maior do que o total do Bolsa Família. Os valores estão compilados na tabela abaixo: Amortização e Juros da Dívida

Variação Anual

Bolsa Família

Variação Anual

R$ 5.533.257.937,91 R$ 636.804.746.610,41 25% 24% 6.873.978.415,00 R$ 648.546.210.711,01 2% 18% 8.145.378.044,07 R$ 611.818.042.183,76 -6% 13% 9.222.092.911,00 R$ 559.030.230.104,78 -9% 17% 10.811.168.987,00 R$ 641.839.146.481,79 15% 15% 12.417.041.638,00 R$ 598.968.638.860,04 -7% 16% 14.366.015.610,00 R$ 708.142.636.125,93 18% 20% 17.283.104.720,00 R$ 753.246.932.087,21 6% 17% 20.288.877.787,33 R$ 718.822.143.294,27 -5% 23% 24.890.107.091,00 R$ 978.673.195.583,85 36% 9% 27.189.725.615,00 R$ 962.233.306.763,02 -2% 2% 27.650.301.339,00 Fonte: Elaboração própria com dados do Portal da Transparência

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Disponível em:< http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2016/02/lucro-do-itau-unibancoatinge-r-2335-bilhoes-em-2015.html> e <http://g1.globo.com/economia/negocios/noticia/2016/01/lucrodo-bradesco-cresce-para-r-1719-bilhoes-em-2015.html>. Acessado em 02/04/2016 8


Houvesse o governo optado por fortalecer a classe trabalhadora, o cenário econômico

teria sido diferente. Em vez de o peso da crise econômica ter sido jogado sobre as costas da classe trabalhadora, o grande capital teria de abrir mão de seus grandes lucros.

O professor André Singer, caracteriza bem como foi possível a conciliação de classes promovida pela política dos governos do PT e caracteriza-a como um “reformismo

fraco”, em oposição ao “reformismo forte” que teria predominado no PT em sua origem. De acordo com Singer:

A proposta de auto-organização para a luta política de classes, que estava no âmago

dos grupos que formaram o PT na década democrática (1978-1988), não foi assumida pelo governo Lula.

As condições para o programa de combate à pobreza viriam da neutralização do

capital por meio das concessões, não do confronto. A manutenção da tríade juros

altos, superávits primários e câmbio flutuante faria o papel de acalmar o capital. De outro lado, a simpatia passiva dos trabalhadores, para quem a ativação do mercando interno e a recuperação do mercado de trabalho representavam benefícios reais,

garantiu a paz necessária para não haver radicalização (...) (SINGER, 2012, pág. 188.

Trata-se, portanto, de um reformismo que teve um efeito duplo sobre a capacidade de

ação da classe trabalhadora: se por um lado permitiu um maior acesso a bens e serviços

até então restritos à classe média tradicional e às classes dominantes, por outro, limitou a possibilidade de sua radicalização política.

Trata-se do avesso do que importantes teóricos marxistas tinham em mente quando apontaram a ligação existente entre reformas sociais e revolução socialista. É o caso,

por exemplo, de Rosa Luxemburgo que, em sua polêmica com Eduard Bernstein, afirma categoricamente que é impossível contrapor mecanicamente reformas e revolução. Para

Luxemburgo, caberia ao partido social-democrata desenvolver a passagem dessas

reformas para a superação radical do modo de produção capitalista por meio da revolução socialista. De acordo com Luxemburgo:

Para a social-democracia, a luta prática cotidiana por reformas sociais, pela melhoria da condição do povo trabalhador dentro da ordem social existente, em favor de instituições democráticas, constitui... o único caminho capaz de guiar a luta de classe

proletária e de trabalhar rumo ao objetivo final, à tomada do poder político e a superação do trabalho assalariado. Para a social-democracia, há um nexo inseparável


entre a reforma social e a revolução social, na medida em que a luta pela reforma

social é um meio, enquanto a transformação social é um fim (LUXEMBURGO, 2011 [1899], pág. 2).

Se hoje o governo petista debate-se para se salvar de uma grave crise econômica e política que deixa às claras o caráter autocrático das classes dominantes brasileiras, que torce o nariz até mesmo para o “reformismo fraco” desenvolvido nos governos petistas, é porque o próprio PT, ao longo de seus governos, garantiu às classes dominantes as condições materiais de desenvolver-se e aprofundar sua hegemonia. No entanto, essa constatação ainda deixa em aberto uma pergunta que teima em manterse viva e atual: frente a esse cenário desafiador, que fazer? 4. À guisa de conclusão: Os limites do social – liberalismo na América Latina e as tarefas da esquerda Ao longo desse artigo buscamos apontar elementos da história recente da América Latina que marcaram a ascensão e queda de dois “ciclos” mais ou menos definidos: o do neoliberalismo, que até a metade da década de 1990 mostra-se avassalador, mas que no

fim do século XX passa por intensa crítica; e o ciclo do que chamamos de “social-

liberalismo”, que se inicia com a eleição de Chavez em 1998 e que, a nosso ver, atualmente estertora.

O risco que a região corre de que novos governos de direita se proliferem é real. O

possível programa que seria executado por esses governos já é conhecido por nós: contrarreformas sociais, repressão estatal e arrocho fiscal e salarial. O documento do PMDB deixa clara a alternativa da burguesia brasileira para a crise do social-

liberalismo: “é necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação” (pág. 9); “Outro elemento para o novo orçamento tem que ser o fim de todas as

indexações, seja para salários, benefícios previdenciários e tudo o mais” (pág. 10); “é

preciso ampliar a idade mínima para a aposentadoria” (pág. 11); “permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais” (pág. 19).

A movimentação da burguesia em torno desse programa já existe: o projeto de lei que regulamente as terceirizações e as expande inclusive para o serviço público; a anunciada

“reforma fiscal” do governo, que prevê fim de reajustes salariais caso necessário para


que se cumpra a meta fiscal; o Projeto de Lei Complementar 257/16, que estimula a privatização de estatais; os ataques à Petrobrás, dentre outras medidas.

O acirramento das contradições do capitalismo dependente impulsiona a luta de classes

na região entre as frações da burguesia e a classe trabalhadora. Com isso, a disputa concentra-se em torno das vias de superação da crise. Do ponto de vista do capital, a solução passa pela reestruturação das condições para retomada da acumulação. Já a

solução do ponto de vista da classe trabalhadora organiza-se em torno das resistências, dos levantes populares, das rebeliões e da ocupação das cisões e fragilidades do regime burguês de forma a superar o modo de produção capitalista.

Urge, portanto, a formação de uma alternativa de esquerda radical para o próximo

período, que seguramente será de maior polarização e de grandes embates entre os projetos das classes dominantes e os da classe trabalhadora.

Não temos nenhum tipo de pretensão de formular nesse trabalho algum tipo de “receituário” a ser seguido pela esquerda latino-americana. Nosso objetivo é mais apontar elementos de uma saída à esquerda para o período pelo qual Nuestra América passa.

Primeiramente, o tema da “corrupção” que se abate sobre os governos “populares” deve

ser visto com cautela pela esquerda. O papel das organizações socialistas deveria ser o

de politizar o debate entre a classe trabalhadora e escapar e julgamentos morais sobre quão corrupto ou cândido é o governo. A corrupção sempre esteve emaranha ao funcionamento do capitalismo. Assim, a superação da corrupção só se faz com a superação do capitalismo.

Em segundo lugar, frente à complexa conjuntura pela qual passamos, as organizações

devem estar mais dispostas a escutar o clamor das ruas, do que buscar impor sobre a

massa suas palavras de ordem e leituras prontas de conjuntura. Trata-se de recuperar

uma antiga reflexão sobre quão pernicioso é o vanguardismo cego e autoritário. Como diria Rosa Luxemburgo em sua dura crítica ao bolchevismo: “não existe um conjunto

detalhado de táticas, já pronto, preestabelecido, que um comitê central possa ensinar aos membros da social-democracia, como se estes fossem recrutas” (LUXEMBURGO, 2011 [1904], pág. 158).


Em terceiro lugar, nos parece que a esquerda latino-americana deve debruçar-se sobre um projeto de socialismo. Não se trata mais do vago “pós-neoliberalismo” ou

“desenvolvimentismo”, mas um projeto aberta e assumidamente socialista. Com isso, não temos em mente uma vaga ideia de algo mais “social”. Temos em mente a construção de um modo de produção sem propriedade privada, sem Estado, sem classes, sem opressões e ecologicamente viável.

Por fim, gostaríamos de retomar um escrito do saudoso companheiro Daniel Bensaïd

que esse ano completaria 70 anos. Num de seus últimos livros publicados no Brasil, Os

irredutíveis, Bensaid buscava levantar alguns “teoremas” que ajudassem a reconstrução da esquerda revolucionária após o stalinismo, o avanço do neoliberalismo e da “pósmodernidade”. A palavra de Bensaid é dura como o tempo pelo qual passamos: “Eis que

embarcamos em uma transição incerta, em que o velho agoniza sem ser abolido, o novo pena para eclodir, entre um passado não ultrapassado e a descoberta balbuciante de um novo mundo em gestação” (BENSAID, 2010, pág. 22). 5. Referências BARBOSA, Nelson; SOUZA, José Antonio. A inflexão do governo Lula: política econômica, crescimento e distribuição de renda. in: SADER, Emir; GARCIA, Marco Aurélio. Brasil entre o Passado e o Futuro. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo e Boitempo Editorial, 2010. BENSAID, Daniel. Os irredutíveis. São Paulo: Boitempo, 2010. CENTRO DE ESTUDIOS PUBLICOS (CEP). El ladrillo: Bases de la Política Económica del Gobierno Militar Chileno. Santiago, 1992. GRAZIANO, José; GROSSI, Mauro; FRANÇA, Galvão (org.). Fome Zero: a experiência brasileira. Ministério do Desenvolvimento Social. Brasília: MDA, 2010. DEO, Anderson. A consolidação da social democracia no Brasil: forma tardia de dominação burguesa nos marcos do capitalismo de extração prussiano-colonial. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Faculdade de Filosofia e Ciências, Universidade Estadual de São Paulo, Marília, 2011. DEPORTE, Henrique Fernando Suini. A política de crescimento econômico do governo Lula: O Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. Dissertação (Mestrado em Economia Política), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. GONÇALVES, Reinaldo. Desenvolvimento às avessas. Rio de Janeiro: LTC, 2013.


HOZ, José Martínez. Bases para uma Argentina moderna 1976-1980. Buenos Aires, 1981. IASI, Mauro. As metamorfoses da consciência de classe. São Paulo: Expressão Popular 2012. LUCE, Mathias Seibel. Brasil: nova classe média ou novas formas de superexploração da classe trabalhadora?. In: Trab. educ. saúde, Rio de Janeiro, v. 11, n. 1, p. 169-190, Abr. 2013. LUXEMBURGO, Rosa. Reforma ou revolução [1899]. In: LOUREIRO, Isabel (org.). Rosa Luxemburgo: textos escolhidos. São Paulo: UNESP, 2011. V.1 ______. Questões de organização da social-democraia russa [1904]. In: LOUREIRO, Isabel (org.). Rosa Luxemburgo: textos escolhidos. São Paulo: UNESP, 2011. V.1 MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Textos. São Paulo: Alfa – Omega, 1978. v. 3. PAULANI, Leda Maria. Brasil delivery. São Paulo: 2008. PMDB. Uma ponte para o futuro. Brasília: Fundação Ulysses Guimarães, 2015. SAMPAIO JR., Plinio de Arruda. Etapa Superior do Imperialismo, Reversão Neocolonial e Revolução Brasileira. In: CASTELO BRANCO, Rodrigo. (Org.). Encruzilhadas da América Latina no Século XXI. Rio de Janeiro: Editora Pão e Rosas, 2010. SECCO, Lincoln. História do PT. São Paulo: Ateliê, 2015. SINGER, André. Os sentidos do lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. SINGER, Paul. De dependência em dependência: consentida, tolerada e desejada. In: Estudos avançados, São Paulo, v. 12, n. 33, p. 119-130, Ago. 1998


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