A princesa Flutuante

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A PRINCESA FLUTUANTE George MacDonald Ilustrações de Mercè López Tradução de Luciano Vieira Machado

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·1· O quê? Sem filhos? Era uma vez, há tanto tempo que já nem me lembro mais, existiu um rei e uma rainha que não tinham filhos. Esse rei pensava consigo mesmo: “Todas as rainhas que conheço têm filhos. Algumas têm três; outras, sete. Algumas chegam a ter doze. E minha rainha não tem nenhum. Minha rainha está me prejudicando”. Então, por conta disso, acabava por humilhá-la com algumas grosserias. Mas, como a rainha era muito generosa, suportava tudo com paciência. O que fez o rei ficar furioso de verdade. A rainha, porém, aceitava aquilo como uma brincadeira, e até mesmo como uma brincadeira muito divertida. – Por que você pelo menos não tem filhas? – insistiu o rei. – Já não digo filhos, pois seria querer demais de você. – Sinto muitíssimo, meu querido rei – respondeu a rainha. 9


– E é para sentir mesmo – retrucou ele. – Certamente você não vai querer fazer disso uma virtude. Ele não era um rei mal-humorado e, se o caso não tivesse tanta importância para o reino, de bom grado teria deixado a rainha em paz. Mas era uma questão de Estado. A rainha então sorriu: – Como bem sabe, meu querido rei, você deve ter paciência com uma dama. Ela era de fato uma rainha muito boa, e sentia muito não poder atender prontamente aos desejos do rei. O rei bem que tentou se mostrar paciente, mas não se pode dizer que tenha conseguido. Assim sendo, ele recebeu bem mais do que merecia quando, finalmente, a rainha lhe deu a mais encantadora princesinha que jamais existira até então.

·2· Por que eu? Já estava próximo o dia do batizado da princesa. O rei resolveu escrever todos os convites de próprio punho, mas, como sempre pode acontecer, alguém foi esquecido. Normalmente não é tão importante assim 10


deixar alguém de fora, mas é preciso ter cuidado para não esquecer a pessoa errada. Infelizmente, o rei se esqueceu de certa pessoa, mas não de propósito; e essa pessoa foi justamente a Princesa Makemnoit, o que foi desastroso. Porque a princesa era nada mais nada menos que a irmã do rei, e dela ele não podia ter se esquecido. Principalmente porque a princesa Makemnoit havia se mostrado tão desagradável para com o velho rei, pai de ambos, que este se esquecera dela ao fazer seu testamento. Sendo assim, não é de estranhar que seu irmão a tenha esquecido também enquanto fazia os convites. Os parentes mais pobres nada fazem para que sejam lembrados. E deveriam fazer alguma coisa, não acham? Como o rei havia de se lembrar do endereço do pobre barraco em que a irmã vivia? Ela era uma criatura verdadeiramente rabugenta e maldosa. Em seu rosto, as rugas do desprezo se cruzavam com as do mau humor, e eram tantas que sua pele se mostrava toda pregueada. Se é que um rei podia ser desculpado por haver se esquecido de alguém, aquele rei tinha muitos motivos para esquecer a própria irmã, mesmo se tratando de um batizado. Além disso, sua irmã era esquisitíssima. A testa era tão grande quanto o resto do rosto, projetando-se para frente como um penhasco. Quando 11


ficava com raiva, seus olhos pequenos ganhavam um brilho azulado. Quando se enchia de ódio contra alguém, os reflexos se tornavam amarelo-esverdeados. Como seus olhos ficavam quando ela amava alguém eu não saberia dizer – isso porque nunca ouvi falar que a princesa tenha amado alguma pessoa, à exceção de si mesma; e acho que nem dela própria haveria de gostar caso não tivesse arrumado um jeito de se acostumar consigo mesma. Mas o que tornava o esquecimento do rei algo muito imprudente era o fato de sua irmã ser tremendamente esperta. Na verdade, ela era uma bruxa, e quando enfeitiçava alguém o coitado acabava ficando um trapo, porque ela superava todas as bruxas mais malvadas em malvadeza, e todas as bruxas mais espertas em esperteza. E ela tinha verdadeiro desprezo pelo modo como todas as fadas e bruxas, tal como lemos nos contos de fadas, se vingavam. Assim sendo, depois de esperar em vão ser convidada para o batizado da sobrinha, finalmente decidiu comparecer, mesmo sem convite, e fazer que toda a família se sentisse tão desgraçada quanto ela própria se sentia. Vestiu seu melhor vestido e dirigiu-se ao palácio, onde o feliz monarca, que havia se esquecido de que a esquecera, recebeu-a muito bem. A Princesa Makemnoit, então, juntou-se ao cortejo que se dirigia 12



à capela real. Quando todos estavam reunidos, ela deu um jeito de se aproximar da pia batismal e jogar alguma coisa na água; depois disso, comportou-se de forma muito respeitosa até o momento em que molharam a cabeça da criança. Naquele instante, ela girou o corpo três vezes e falou baixinho as seguintes palavras, mas alto o suficiente para que as pessoas mais próximas pudessem ouvir: Leve de espírito por meu encantamento, Leve de corpo em toda a extensão, Em braços humanos serás como o vento, E levarás a teus pais a destruição! Todos acharam que ela tinha enlouquecido e que repetia versos sem sentido. Apesar disso, ficaram intrigados. O bebê, ao contrário, começou a rir, soltando gritinhos de prazer; ao mesmo tempo que a ama, que o segurava, estremeceu e emitiu um grito abafado, porque pensou ter sofrido uma paralisia: de repente, já não sentia o peso da criança em seus braços. Ela, contudo, segurou a princesinha com força e não disse nada. Mas o mal estava feito.

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