Palavras para que vos quero?

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Palavras para que vos quero?


Palavras para que vos quero?

Num tempo de paragem, a vontade de nos reinventarmos era urgente. De uma troca de ideias e impressões surgiu a vontade de dinamizarmos e divulgarmos uma outra forma de arte; a arte das palavras e do modo como as reinventamos quer através da forma como as escolhemos quer através da voz e sensibilidade tão particular de cada um. Espalhamos a nossa intenção e os poemas foram-nos chegando. E as vozes foram-se multiplicando. E as palavras, os poetas e os “diseurs” a desfilarem diante de nós! Um movimento inesperado, uma onda poética “que se alevantou” , um objetivo que ultrapassou as nossas expectativas. Foram todas as pessoas que se juntaram a nós, exatamente estas pessoas, que tornaram possível este projeto. Estas, e as que nos seguiram, ouviram os nossos poetas e nos ofereceram um pouco do seu tempo. Sem cada um de vocês este “Palavras para que vos quero?” não faria sentido. Reunimos aqui as palavras de todos os poemas escolhidos e o respetivo link para que os possam revisitar.


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Índice

Poemas 1 Poema XXVII | João Pedro Azul dito por Armando Dourado 2 Sísifo | Miguel Torga dito por Nuno Oliveira 3 Varanda da Imaginação | Joana Manarte dito por Ana Margarida Borges 4 Os Noivos | Ótavio Paz dito por Fernando Barbosa 5 ao Mário Cesariny | Rui de Noronha Ozório dito por Rui de Noronha Ozorio 6 Não posso adiar o amor | António Ramos Rosa dito por Ivo Manuel Machado 7 Bilhete para o amigo ausente | Natália Correia dito por Filomena Coutinho Almeida 8 Cansaço | Álvaro de Campos dito por Ângela Oliveira 9 Do que a vida podia ter sido | José Carlos Barros dito por Celeste Pereira 10 Bala de prata | Paulo Ferreira da Cunha dito por Paulo Ferreira da Cunha 11 Aos meus amigos de São Paulo | Olavo Bilac dito por Fátima Goulart


12 Palavras para que vos quero | Margarida Basaloco dito por Margarida Basaloco 13 Pedro lembrando Inês | Nuno Júdice dito por Vasco Silva 14 Gorjeios | Manoel de Barros dito por Gorete Almeida 15 Dixome nantronte o cura | Rosalía de Castro dito por Encarna de Béjar 16 Lhéngua Mirandesa | Leite de Vasconcelos dito por Nascimento Marques 17 Poema aos homens constipados | António Lobo Antunes dito por David Amorim 18 Covida 19 | Andreia Rafael dito por João Paulo Melro 19 Farol | Roberto Leandro dito por Argílio Amorim 20 Green God | Eugénio de Andrade dito por António Barros 21 Do amor | Fátima Alves dito por Fátima Alves 22 Os Campos, O dos Castelos | Fernando Pessoa dito por Filomena Cordeiro


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Poema XXVII | João Pedro Azul

Hoje foi um dia bom - pintei um frigorífico na parede da despensa Amanhã quem sabe talvez lhe faça um puxador e no dia seguinte talvez se arranje qualquer coisa para comer Ainda há quem diga que a arte não salva

https://youtu.be/FM344s5KTUU


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Sísifo | Miguel Torga

Recomeça...

Se puderes Sem angústia E s e m p r e s s a. E os passos que deres, Nesse caminho duro Do futuro Dá-os em liberdade. Enquanto não alcances Não descanses. De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado, Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar. Sempre a sonhar e vendo O logro da aventura. És homem, não te esqueças! Só é tua a loucura Onde, com lucidez, te reconheças...

https://youtu.be/EjZDwtFcbZs


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Varanda da Imaginação | Joana Manarte

haja varandas com vista para a imaginação. é tempo de restrição de movimento e no entanto coço o nariz para agarrar uma ideia levo a mão à boca para tirar a palavra da ponta da língua esfrego os olhos para mudar de paisagem e sem intenção infrinjo as normas à vista de toda a gente na varanda onde ninguém me vê com vista para a imaginação. este ano a primavera trouxe bandos de caixões e caixões e caixões em camiões que nem sabem para onde ir. que ideia mais absurda à beira de um pássaro que acabou de aqui passar decidido a furar a morte com uma melodia nova no bico largada de propósito na varanda onde ninguém me vê com vista para a imaginação. se me humedecem os olhos ao pensar nos que me são hábito antigo que agora não posso tocar por um instante acho que vejo o mar daqui e deslumbro-me por nunca ter dado conta disso antes na varanda onde ninguém me vê com vista para a imaginação.


não me critiquem por me encantar em tempo de trevas porque já que os amores e os amigos me inventaram o atlântico sem avisar estendo o braço até ao horizonte viro à esquerda ao chegar ao Algarve esquerda outra vez navego a mão pelos mares que nos unem e quando chego à ilha de Lesbos - ou ao terror do inferno em pleno olimpo e depois ao hemisfério onde estão sempre “os outros” fico ali à espera de agarrar o abandono de mil e um corpos e de os pôr em quarentena num só abraço sem pronomes pessoais que nos separem pelo sinal da santa cruz livre-nos deus nosso senhor dos nossos inimigos, ai cuidado que não se pode tocar na cara nem com a religião dos que não crêem mas não faz mal desobedecer sem má fé na varanda onde ninguém me vê com vista para a imaginação.


anoiteceu. desinfeto o céu, aponto o comando para o alto e carrego no botão para ver as notícias do mundo. pelos vistos há astronautas embriagados de movimento que mergulham num regresso a qualquer coisa nova, há semínimas fluorescentes alinhadas pelo globo como quem marca um compasso ancestral e indica a forma da revolução e levo as mãos à boca num espanto de entendimento já sei que não se pode mas porra não nos confisquem os rituais que nos fazem humanos não sei de repente usar máscara nas emoções muito menos quando vejo que se mexe luminoso e lento e lúcido o planisfério e suas terras interrompidas e a sair das bordas dos continentes vêem-se remos e nas pontas dos remos gente a remar continentes e com isso o prenúncio de um conto que adormece em pandemia e acorda em pangeia. pelo menos é o que se vê daqui da varanda onde ninguém me vê com vista para a imaginação.

https://youtu.be/p5rg2s4eMDQ


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Os Noivos | Ótavio Paz

Deitados na erva uma rapariga e um rapaz. Comem laranjas, trocam beijos como as ondas trocam suas espumas.

Deitados na praia uma rapariga e um rapaz. Comem limões, trocam beijos como as nuvens trocam suas espumas.

Deitados sob a terra uma rapariga e um rapaz. Não dizem nada, não se beijam, trocam silêncio por silêncio.

https://youtu.be/nTXoWD9G_RU


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ao Mário Cesariny | Rui de Noronha Ozório

Sigo-te pelo ecrã que tenho ao colo e surges assim como a infância de cabelos brancos à procura de tabaco Olhos cor de engate nas pestanas de uma Lisboa antiga Não te lembras do paraíso porque nele habitas

a cada dia Gosto de te ouvir ao piano aplaudido por um quinteto de gatos


e reparo subitamente que ainda trazes a timidez nas formas elásticas das mãos e a liberdade nas asas floridas

de um poema Ainda vais ao café? Ainda esperas magalas à porta dos mictórios subaquáticos? Onde andas tu senão atrás de um sorriso sinfónico ultraleve verdadeiramente

solar

https://youtu.be/vDDPNgC-zOc


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Não posso adiar o amor | António Ramos Rosa

Não posso adiar o amor para outro século não posso ainda que o grito sufoque na garganta ainda que o ódio estale e crepite e arda sob as montanhas cinzentas e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar ainda que a noite pese séculos sobre as costas e a aurora indecisa demore não posso adiar para outro século a minha vida

nem o meu amor

nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

https://youtu.be/thLPG1fAej0


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Bilhete para o amigo ausente | Natália Correia

Lembrar teus carinhos induz a ter existido um pomar intangíveis laranjas de luz laranjas que apetece roubar.

Teu luar de ontem na cintura é ainda o vestido que trago seda imaterial seda pura de criança afogada no lago.

Os motores que entre nós aceleram os vazios comboios do sonho das mulheres que estão à espera são o único luto que ponho.

https://youtu.be/Akrz8Z6ilQE


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Cansaço | Álvaro de Campos

O que há em mim é sobretudo cansaço — Não disto nem daquilo, Nem sequer de tudo ou de nada: Cansaço assim mesmo, ele mesmo, Cansaço. A subtileza das sensações inúteis, As paixões violentas por coisa nenhuma, Os amores intensos por o suposto em alguém, Essas coisas todas — Essas e o que falta nelas eternamente —; Tudo isso faz um cansaço, Este cansaço, Cansaço. Há sem dúvida quem ame o infinito, Há sem dúvida quem deseje o impossível, Há sem dúvida quem não queira nada — Três tipos de idealistas, e eu nenhum deles: Porque eu amo infinitamente o finito, Porque eu desejo impossivelmente o possível, Porque quero tudo, ou um pouco mais, se puder ser, Ou até se não puder ser...


E o resultado? Para eles a vida vivida ou sonhada, Para eles o sonho sonhado ou vivido, Para eles a média entre tudo e nada, isto é, isto... Para mim só um grande, um profundo, E, ah com que felicidade infecundo, cansaço, Um supremíssimo cansaço, Íssimno, íssimo, íssimo, Cansaço...

https://youtu.be/tusvVPdClJA


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Do que a vida podia ter sido | José Carlos Barros

Os amigos juntam-se e falam do passado, da música que já não se ouve na rádio, do inverno em que choveu semanas a fio e o rio saiu das margens para desenhar nos troncos das árvores os círculos imperfeitos da idade. Eles sabem para si mesmos que falam do que nunca existiu: das mulheres que se renderam para sempre às palavras do amor, das perdizes caindo de asa nas encostas iluminadas da urze, das corridas memoráveis do vinte e cinco de Abril, das tardes de domingo que haveriam de envergonhar a uefa se a televisão estivesse presente nas finais dos torneios dos bombeiros voluntários. É disso que os amigos falam: do que a vida poderia ter sido se não fosse a filha da puta de vida que foi.

https://youtu.be/T-ldVX0HtZk


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Bala de prata | Paulo Ferreia da Cunha

Quando a voragem fera dessa vida, Máquina infernal que nos tritura, Suspende por instante essa vã lida, Ressurge a Alma no que tem de pura: Tremula o ser, no que de si subsiste. Altera-se, intriga-se. Reminiscências Sopram. E o peito, agoniado e triste, Vacila confuso em suas ciências. Em vão se buscam velhas referências A dúvida é gigante que as abala Confunde-se superfície com essências Por tibieza ao sagrado se cala. Há, contudo, de prata, uma só bala Que acertando, cura essas demências.

https://youtu.be/OS-PMmYTyyI


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Aos meus amigos de São Paulo | Olavo Bilac

Se amo, padeço, e sonho, a recompensa É a melhor que me dais, neste agasalho: Desta ternura, sobre mim suspensa, Desce todo o valor do quanto valho. Não tenho aroma que vos não pertença: Vêm de vós a doçura e o bem que espalho; Valemos todos pela nossa crença, Na comunhão do amor e do trabalho. Operário modesto, abelha pobre, De vós e para vós o mel fabrico, E abençôo a colmeia que nos cobre. Só do labor geral me glorifico: Por ser da minha terra é que sou nobre, Por ser da minha gente é que sou rico.

https://youtu.be/WyxfiVbosIg


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Palavras para que vos quero | Margarida Basaloco

Como eu gostaria que da minha boca, Pudessem sair as palavras, Que assolam o pensamento. Que tão repetidamente se atropelam no cérebro, Numa ânsia incomensurável de sair, Não deixando ao tempo, O verdadeiro sentido de as dizer. São tão calculadas e sérias, As palavras que saem da razão. São tão perplexas e soltas, As que dizemos sem pensar. Contudo, as mais sinceras e verdadeiras, São as que saem do coração, São todas aquelas que são ditas, Pelos gestos e pelos afetos. São também as outras, Que saem em nosso auxílio, Sob a forma de um sorriso. Palavras tão reconfortantes… Que nos aquecem a alma, E nos acalmam a dor. Sim, dessas eu gosto! Tanto de as ouvir, como de as dizer. Todavia, de todas as palavras, A mais pura e bela, Se escreve com o sentimento amor.

https://youtu.be/Sonyx3o58fE


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Pedro lembrando Inês | Nuno Júdice

Pedro, lembrando Inês Em quem pensar, agora, senão em ti? Tu, que me esvaziaste de coisas incertas, e trouxeste a manhã da minha noite. É verdade que te podia dizer: ”Como é mais fácil deixar que as coisas não mudem, sermos o que sempre fomos, mudarmos apenas dentro de nós próprios?” Mas ensinaste-me a sermos dois; e a ser contigo aquilo que sou, até sermos um apenas no amor que nos une, contra a solidão que nos divide. Mas é isto o amor: ver-te mesmo quando te não vejo, ouvir a tua voz que abre as fontes de todos os rios, mesmo esse que mal corria quando por ele passámos, subindo a margem em que descobri o sentido de irmos contra o tempo, para ganhar o tempo que o tempo nos rouba. Como gosto,meu amor, de chegar antes de ti para te ver chegar: com a surpresa dos teus cabelos, e o teu rosto de água fresca que eu bebo, com esta sede que não passa. Tu: a primavera luminosa da minha expectativa, a mais certa certeza de que gosto de ti, como gostas de mim, até ao fundo do mundo que me deste. https://youtu.be/hHAZnsG2lxU


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Gorjeios | Manoel de Barros

Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se inclui a sedução. É quando a pássara está namorada que ela gorjeia. Ela se enfeita e bota novos meneios na voz. Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado. É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas. É por isso que as árvores deliram. Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram. E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto. As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.

https://youtu.be/QE7wzTb6Pl4


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fragmento: Dixome nantronte o cura | Rosalía de Castro

Diíxome nantronte o cura que é pecado... Máis aquél de tal fondura ¿cómo o facer desbotado? Dálle que dálle ó argadelo, noite e día, e pensa e pensa naquelo, porfía que te porfía... Sempre malla que te malla, enchendo a cunca, porque o que o diancre traballa din que acaba tarde ou nunca. Canto máis digo: ‘’¡Arrenegado! ¡Demo fora!’’, máis o demo endemoncrado, me atenta despóis i agora.

https://youtu.be/x4hOauo3-i8


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Lhéngua Mirandesa | Leite de Vasconcelos

Quien dirie qu’antre ls matos eiriçados Las ourriêtas i ls rius d’esta tiêrra, Bibie, cumo l chaugarço de la siêrra, Ua lhéngua de sons tan bariados? Mostre-se i fale-s’ essa lhéngua filha D’un pobo que ten neilha l choro i l canto! Nada por ciêrto mos cautiba tanto Cumo la form’an que l’eideia brilha. Zgraçiado d’aquel, qu’abandonando La patri’ an que naciu, la casa e l huôrto. Tamien se squeçe de la fala! Quando L furdes ber, talbéç que stéia muôrto!

https://youtu.be/t8K2aSIBIYA


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Poema aos homens constipados | António Lobo Antunes

Pachos na testa, terço na mão, Uma botija, chá de limão, Zaragatoas, vinho com mel, Três aspirinas, creme na pele Grito de medo, chamo a mulher. Ai Lurdes que vou morrer. Mede-me a febre, olha-me a goela, Cala os miúdos, fecha a janela, Não quero canja, nem a salada, Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada. Se tu sonhasses como me sinto, Já vejo a morte nunca te minto, Já vejo o inferno, chamas, diabos, Anjos estranhos, cornos e rabos, Vejo demónios nas suas danças Tigres sem listras, bodes sem tranças Choros de coruja, risos de grilo Ai Lurdes, Lurdes fica comigo Não é o pingo de uma torneira, Põe-me a Santinha à cabeceira, Compõe-me a colcha, Fala ao prior, Pousa o Jesus no cobertor. Chama o Doutor, passa a chamada, Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada. Faz-me tisana e pão de ló, Não te levantes que fico só, Aqui sozinho a apodrecer, Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer https://youtu.be/_fyTduGXtdg


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Covida 19 | Andreia Rafael

Nesta distopia dos mascarados há que adorar os bichos recolher as sombras elevar os ramos alcançar a água recuperar a pele e as folhas difundir todos os ecrãs perder todos os botões ficar, ficar ensaiar uma imortalidade, perigosamente, como quem ainda conspira o derradeiro encontro entre a respiração e a esperança de voltar a ir nem que seja a galope numa camélia de papel.

https://youtu.be/Yz-90tYwBrA


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Farol | Roberto Leandro

Se os lábios fossem asas inquietas E os gestos penas alvas e sedosas Se os olhos - quem dera - tivessem setas E a língua fosse fera entre prosas. Se os pés se convertessem em foguetões E os dedos raios de sol doirando auroras Os braços, laços entre corações E os sonhos fugitivos noite fora. Se as mãos estendessem cama à pele nua E a boca confessasse fome oculta Se as estrelas fossem chão da minha rua E tu a lua que meu peito exulta. Se fosses, tão-somente o pôr do sol Doirando o azul do mar na tarde calma Ou antes véu de luz de algum farol Varrendo a escuridão da minha alma.


Se fosses, e eu contigo fosse também Tudo o que o mundo de belo e raro tem Seríamos não mais do que hoje somos, Teríamos não mais do que dispomos. Que as asas voam alto, e sem cansaço E os olhos são cupidos infalíveis E os pés tocam planetas, galgam o espaço e os sonhos sonham verdades tangíveis. E as mãos são berço e termo do universo Estrelado como as ruas que cruzamos À luz da lua, ao sol dos versos Que amornam este amor de actos profanos...

https://youtu.be/uxU3MYZmIoQ


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Green God | Eugénio de Andrade Trazia consigo a graça das fontes, quando anoitece. Era o corpo como um rio em sereno desafio com as margens, quando desce. Andava como quem passa, sem ter tempo de parar. Ervas nasciam dos passos, cresciam troncos dos braços quando os erguia do ar. Sorria como quem dança. E desfolhava ao dançar o corpo, que lhe tremia num ritmo que ele sabia que os deuses devem usar. E seguia o seu caminho, porque era um deus que passava. Alheio a tudo o que via, enleado na melodia de uma flauta que tocava.

https://youtu.be/zbVbJQYWAI4


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Do amor | Fátima Alves

Um dia, quando estiver completa e cheia de amor por mim, Nesse dia, saio pelas ruas da minha cidade a oferecer pirilampos de sorrisos, balões de gargalhadas e serpentinas de olhares verdes. Um dia, sim, nesse mesmo dia, vou-te encontrar a ti, a ti e a ti também E vamo-nos rir de coisas disparatadas e sem nexo. Dançamos na praça com a música do telemóvel e convidamos quem passa a juntar-se a nós. Nesse dia, fazemos uma festa, com barraquinhas de abraços, ervas do amor, toucados de flores e água fresca com sabor a novidade. Nesse dia, tenho a certeza, que num passo de tango, os meus olhos verdes enlaçam-se nos teus. Nesse dia, falo-te de amor como quem fala de comida Da forma banal com que se escolhe entre uma empada e um rissol. O amor não se tornou uma banalidade, tornou-se uma solenidade no dia-a-dia!


Nesse dia, com a pele retesada de tão cheia de amor por mim, esvazio-me um pouco, num sopro, para ti. Nesse dia não preciso que me alimentes algum vazio, nem tu precisas que colmate alguma falta. Nesse dia, despimos as roupas, mostramo-nos por dentro, o amor anda em rodopio e sei que, mesmo que partas um dia, tenho todo este amor dentro de mim, por mim, e pelo mundo todo, que só sentirei a falta do teu amor durante o tempo que vai da inspiração até à próxima expiração. O Amor e a Vida, afinal, não são mais do que um sopro.

https://youtu.be/jDgnt0d8PVE


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Os Campos, O dos Castelos | Fernando Pessoa A Europa jaz, posta nos cotovelos: De Oriente a Ocidente jaz, fitando, E toldam-lhe românticos cabelos Olhos gregos, lembrando. O cotovelo esquerdo é recuado; O direito é em ângulo disposto. Aquele diz Itália onde é pousado; Este diz Inglaterra onde, afastado, A mão sustenta, em que se apoia o rosto. Fita, com olhar esfíngico e fatal, O Ocidente, futuro do passado. O rosto com que fita é Portugal.

https://youtu.be/jqcLj7CID2s



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Índice

Poemas 23 Anexo G | João Pedro Azul dito por Armando Dourado 24 Ser poeta | Florbela Espanca dito por Eliane Magalhães 25 A vida é fêmea | Nuno Novo dito por Nuno Oliveira 26 o voo dos pássaros | Ana Margarida Borges dito por Ana Margarida Borges 27 Vida obscura | Cruz de Sousa dito porFrederico Machado Porto 28 Aniversário | Álvaro de Campos dito por Rui de Noronha Ozório 29 Havemos de ir ao futuro | Filipa Leal dito por Celeste Pereira 30 Vozes comunicantes | José Alberto Mar dito por José Alberto Mar 31 Maresia | Mafalda Chaambel dito por Fernando Barbosa 32 Dizem que a paixão o conheceu | Al Berto dito por Vasco Silva


33 Dobrada à moda do Porto | Álvaro de Campos dito por Ivo Machado 34 A geada dos silêncios | Ana Briz dito por Vítor Rocha 35 Estou Tonto | Álvaro de Campos dito por Ângela Oliveira 36 Amar | Florbela Espanca dito por Margarida Basaloco 37 Ruínas | Roberto Leandro dito por Argílio Amorim 38 Às mulheres | Paula Salema dito por João Paulo Melro 39 Quando vier a Primavera | Alberto Caeiro dito por Fátima Alves 40 Uma certa memória | Rui de Noronha Ozorio dito por Rui de Noronha Ozorio 41 Fórmula | Paulo Ferreira da Cunha dito por Paulo Ferreira da Cunha 42 Legado | Miguel Torga dito por Fátima Goulart 43 Fora do Compasso | José Alberto Mar dito por José Alberto Mar


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Anexo G | João Pedro Azul

Mais-valias se tivesses tirado um curso dos sérios dos que dão emprego a sério útil para o PIB e para o NIB ter mulher séria um bom carro dos ecológicos uma boa casa aquecida no Inverno os vizinhos certos uma boa cara bronzeada no Verão um gato ou dois um filho ou dois um periquito na gaiola um abacaxi na futeira máquina de lavar e secar ferro a vapor camisas de algodão os vincos certos uma carteira em pele de crocodilo um relógio que nunca se atrasa


aquário de água doce férias no Algarve jantares de Natal cabrito na Páscoa fazer a barba todos os dias Levar o lixo Lavar a cara E sorrir Fazer reciclagem Pensar no futuro Mudar de carro Lavar os dentes Sorrir de novo Encher o peito Falar seguro Hesitar nunca Tropeçar nunca Chorar nunca Mais-valias Se pelo menos fosses Contabilista E declarasses insolvência

https://youtu.be/H2-Sfueabiw


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Ser poeta | Florbela Espanca

Ser poeta é ser mais alto, é ser maior Do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja Rei do Reino de Aquém e de Além Dor! É ter de mil desejos o esplendor E não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, É ter garras e asas de condor! É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim... É condensar o mundo num só grito! E é amar-te, assim, perdidamente... É seres alma, e sangue, e vida em mim E dizê-lo cantando a toda a gente!

https://youtu.be/B7u5RfPtb2o


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Homenagem à mulher| mulher| Nuno Novo

A A

A criação, a humanidade, E as crianças são fêmeas, A gravidez, onde tudo começa, é fêmea A beleza é fêmea, a paixão também. Todas as emoções são fêmeas! A primavera, as flores, e as sementes As florestas, e a natureza A luz, a força, e a energia… Todas fêmeas imprescindíveis! Como o são a coragem, E a saudade também… A felicidade, a harmonia, a liberdade A razão e a justiça de olhos vendados, E a sua balança, Todas fêmeas essenciais! A lua, a água, as marés e as brisas, A calma e a tranquilidade, Que seriam, senão fêmeas?! A antiguidade e a evolução, A sabedoria, a investigação e a saúde… todas fêmeas, pois então! As saias, as camisas, a lingerie, todas as roupas… E as calças, até as gravatas, que são? São fêmeas até mais não! A vaidade é fêmea, e assenta-lhe bem Afinal, Se a primeira letra é fêmea, A vida é fêmea, também!

https://youtu.be/dgVbzDRCat4


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o voo dos pássaros | Ana Margarida Borges

e tudo nas suas vidas proclama céus abertos Cuidam do nosso olhar e pedem que ele se espraie na mansidão dos dias claros. Devolvem-nos histórias já esquecidas, arrancam-nos sorrisos surripiados pela melancolia dos anos. Pintam outras estrelas com a luz remanescente nos recantos dos sábios e dos artistas. Eles são as nossas asas interiores . Com eles voamos de novo fazendo de cada instante um campo onde apetece entardecer costurando música prós pequenos gestos. É assim como se espreitássemos deste lado, a vida efervescente de outrora quando saíamos à rua vestindo vaidosamente os tons da primavera que acreditávamos ser eterna. E o seus rostos levam-nos a acreditar, por momentos, no infinitamente bom de um *deus desconhecido.*

https://youtu.be/7roVea0lCT0


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Vida obscura | Cruz de Sousa

Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro Ó ser humilde entre os humildes seres. Embriagado, tonto dos prazeres, O mundo para ti foi negro e duro. Atravessaste no silencio escuro A vida presa a trágicos deveres E chegaste ao saber de altos saberes Tornando-te mais simples e mais puro. Ninguém te viu o sentimento inquieto, Magoado, oculto e aterrador, secreto. Que o coração te apunhalou no mundo. Mas eu que sempre te segui os passos, Sei que cruz infernal prendeu-te os braços E o teu suspiro como foi profundo!

https://youtu.be/YBhdS4rN-3w


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Aniversário | Álvaro de Campos

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, De ser inteligente para entre a família, E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, O que fui de coração e parentesco. O que fui de serões de meia-província, O que fui de amarem-me e eu ser menino, O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... A que distância!... (Nem o acho... ) O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa, Pondo grelado nas paredes... O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), O que eu sou hoje é terem vendido a casa, É terem morrido todos, É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, Por uma viagem metafísica e carnal, Com uma dualidade de eu para mim... Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, O aparador com muitas coisas — doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na cabeça! Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! Hoje já não faço anos. Duro. Somam-se-me dias. Serei velho quando o for. Mais nada. Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

https://youtu.be/cTmYsK79Ccw


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O quadro do futuro | Filipa Leal

Havemos de ir ao futuro. Havemos de ir ao futuro e, quando lá chegarmos, hão-de estar no sofá os nossos pais a cuidar dos sonhos que nos deram, os nossos avós a encher de luzes a árvore de Natal, os nossos filhos e os filhos deles, espantados e atrevidos como nós. Havemos de ir ao futuro e, quando lá chegarmos, hão-de estar todos juntos numa festa à nossa espera, mesmo os amigos que perdemos no caminho. Hão-de lá estar todos com balões de várias cores, bolo-rei e, ao fundo da sala, um cartaz do tamanho da nossa idade, onde se lê:

ainda bem que vieram.

Havemos de ir juntos ao futuro ou, se não houver boleia para todos ao mesmo tempo, havemos de nos encontrar lá. Havemos de ir ao futuro e, no futuro, estará finalmente tudo como dantes.

https://youtu.be/6b9I9aGjgMs


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Vozes comunicantes | José Alberto Mar

Às pessoas nómadas nos corpos e nas almas um beijo indelével no rosto ausente intervalo onde tocamos juntos a íntima unidade no coração das coisas. Sobre as infindáveis ciências dos homens pousamos a luz urgente de outros olhos desce sobre nós a lucidez do Universo vivo.

https://youtu.be/yw-7IGTMuD8


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Maresia em busca do amor | Mafalda Chaambel

Como podemos invejar uma vida só de passagens, sem paragens? Como podemos velejar como marinheiros, sem ter um porto onde ficar? Como podemos querer a liberdade e ao mesmo tempo algemas? Como podemos quebrar em cada brisa a estabilidade, na fragância do fugaz? Dois pulsos duas almas entrelaçadas e nos braços os pesos das acções imponderadas.

https://youtu.be/wRzU86seoUM


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Dizem que a paixão o conheceu | Al Berto

dizem que a paixão o conheceu mas hoje vive escondido nuns óculos escuros senta-se no estremecer da noite enumera o que lhe sobejou do adolescente rosto turvo pela ligeira náusea da velhice conhece a solidão de quem permanece acordado quase sempre estendido ao lado do sono pressente o suave esvoaçar da idade ergue-se para o espelho que lhe devolve um sorriso tamanho do medo dizem que vive na transparência do sonho à beira-mar envelheceu vagarosamente sem que nenhuma ternura nenhuma alegria nenhum ofício cantante o tenha convencido a permanecer entre os vivos

https://youtu.be/EU3G-QjWbOE


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Dobrada à moda do Porto | Álvaro de Campos

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, Serviram-me o amor como dobrada fria. Disse delicadamente ao missionário da cozinha Que a preferia quente, Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria. Impacientaram-se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, E vim passear para toda a rua. Quem sabe o que isto quer dizer? Eu não sei, e foi comigo ... (Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim, Particular ou público, ou do vizinho. Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. E que a tristeza é de hoje). Sei isso muitas vezes, Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram Dobrada à moda do Porto fria? Não é prato que se possa comer frio, Mas trouxeram-mo frio. Não me queixei, mas estava frio, Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

https://youtu.be/49LZcp58R3A


34

A geada dos silêncios | Ana Briz

Pouco a pouco Vai o silêncio, de mansinho, Deslizando pela noite. Uma geada brilhante e álgida Cobre o chão Onde, vaidosa, a lua se reflete. Acorda então a madrugada, Despenteando raios de sol. Estes sorriem ao novo dia Tentam derreter a geada dos silêncios De mão dada Com o soprar da brisa O teu silêncio Não é ausência de palavras Timidez de amor Não é universo que habites Não é amante de instantes cúmplices O teu silêncio é um navio Sem rumo Por onde te perdes Em oceanos de praias O teu azul de desespero


É um circo Onde não há girandolas Nem risos Nem música. O teu silêncio É um abismo Onde dormes um sono Talvez para sonhar Mais alto Mais além. Vagueio pelas veredas Desse teu silêncio Em retiro sagrado Às lágrimas correm E a maresia seca trilhos No meu rosto. Estou atenta ao rumor do mar Se algum eco Despertar a solidão Virá das tuas ondas. Por que teimas Em silenciar A maré

https://youtu.be/vz9WlAP8e8Q


35

Estou Tonto | Álvaro de Campos

Estou tonto, Tonto de tanto dormir ou de tanto pensar, Ou de ambas as coisas. O que sei é que estou tonto E não sei bem se me devo levantar da cadeira Ou como me levantar dela. Fiquemos nisto: estou tonto. Afinal Que vida fiz eu da vida? Nada. Tudo interstícios, Tudo aproximações, Tudo função do irregular e do absurdo, Tudo nada. É por isso que estou tonto ... Agora Todas as manhãs me levanto Tonto ... Sim, verdadeiramente tonto... Sem saber em mim e meu nome, Sem saber onde estou, Sem saber o que fui, Sem saber nada.


Mas se isto é assim, é assim. Deixo-me estar na cadeira, Estou tonto. Bem, estou tonto. Fico sentado E tonto, Sim, tonto, Tonto... Tonto.

https://youtu.be/Ld_sS_LtHvE


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Amar | Florbela Espanca

Eu quero amar, amar perdidamente! Amar só por amar: Aqui... além... Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente... Amar! Amar! E não amar ninguém! Recordar? Esquecer? Indiferente!... Prender ou desprender? É mal? É bem? Quem disser que se pode amar alguém Durante a vida inteira é porque mente! Há uma Primavera em cada vida: É preciso cantá-la assim florida, Pois se Deus nos deu voz, foi pra cantar! E se um dia hei de ser pó, cinza e nada Que seja a minha noite uma alvorada, Que me saiba perder... pra me encontrar...

https://youtu.be/o1GPXjNJm24


37

Ruínas | Roberto Leandro

Teu esqueleto jaz em assombrosa quietude, Tudo em ti silêncio, paz e escombros amiúde. Muros te guardaram uma vida de vivências, muros que hoje tombaram à mercê das aparências Tua fachada ecoa vida, memória, abandono. Tua fachada é Lisboa, velha frágil, sem patrono... Mansa mansão em ruínas gigante podre, entravada, restam-te apenas esquinas do que antes foste morada Hoje és casa sem abrigo, pilares de vento e amargura restos mortais sem jazigo, desconstrução da figura Velha que esquece a pintura, mulher que perde a postura, matéria tosca, insegura; Lar doce lar, sepultura.

https://youtu.be/p3c0NdmUgIg


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Às mulheres | Paula Salema

As mulheres da terra onde nasci São de uma beleza dura, rara. Pariam na doçura da alvorada Ou na noite, pela madrugada fria, Descalças do medo da dor e da solidão. As mulheres da minha terra São corda de navios quiméricos Coreentes que cosem sentidos de vidas. Desfiam as horas Monótonas e carentes Cumprindo deveres Cumprindo o destino dos seus Esquecendo o seu destino. O seu olhar é luar pálido Mas de uma beleza gigante Exposta ao vento, à sorte. As suas palavras arrancam olhares São cinzentas, sem flores. A vida sugou-lhes o sangue, Os corpos definhados, Os cabelos sem brilho As rugas a marcarem sofrimentos... Faltou o toque, o desejo Faltou quem as trouxesse para a vida Falta a força de viver das paixões E entrega à perversidade da existência.


As mulheres da minha terra Não têm a beleza de Dulcineia de toboso Nem a silhueta feminina e graciosa das Julietas. E no entanto são de uma beleza provocadora. A sua única promiscuidade vem da terra E no silêncio de todas estas vidas Se reescreve a história da humanidade.

https://youtu.be/M-2Ejijoj8g


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Quando vier a Primavera | Alberto Caeiro

Quando vier a Primavera, Se eu já estiver morto, As flores florirão da mesma maneira E as árvores não serão menos verdes que na Primavera passada. A realidade não precisa de mim. Sinto uma alegria enorme Ao pensar que a minha morte não tem importância nenhuma Se soubesse que amanhã morria E a Primavera era depois de amanhã, Morreria contente, porque ela era depois de amanhã. Se esse é o seu tempo, quando havia ela de vir senão no seu tempo? Gosto que tudo seja real e que tudo esteja certo; E gosto porque assim seria, mesmo que eu não gostasse. Por isso, se morrer agora, morro contente, Porque tudo é real e tudo está certo. Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é.

https://youtu.be/R2eKEU0XxcU


40

Uma certa memória | Rui de Noronha Ozorio

Desmedir em força a altura do céu deixar ir seguir fazer viajar construir asas de madeira ultraleve verdadeiramente aerodinâmicas ligar os motores para que os olhos se abram além do horizonte depois do arco dos sonhos para lá das medidas sensoriais da distância plano sem tempo onde o espaço é passadeira rolante alimentada a fogo


E encontrar-me numa determinada memória lareira que crepita e as vozes sobrepostas que são gaivotas em bandos superlativos exaltados aproximados lá fora os sinos da igreja a dar forma ao corpo da infância o cheiro da terra molhada por gotículas de magia e a k7 dos roxette a vibrar it must have been love no encontro dos lábios...

https://youtu.be/hxa1OITW9uQ


41

Fórmula | Paulo Ferreira da Cunha

Se houvesse uma fórmula, um filtro, uma magia Se o encantamento durasse a vida inteira, Se se mantivesse a determinação E à porfia, essa ilusão se demonstrasse enfim, mui verdadeira, Se tudo fosse fácil! Um trovão! Se nas estrelas estivesse escrito, nítido e grácil Algoritmo simples, A simples equação, Tudo seria a suprema bênção, A alegria triunfante! A ode ao Infinito! Esculpirias em granito eterno E o rito cumpririas, secreto, forte, eterno! Mas não! Evanescência é contradição! E não tens ciência a que lances mão! Cegos, conduzem cegos Num tatear incerto e vão Confia apenas no teu coração E trespassa-o de dolorosos pregos Com o martelo fero da razão.

https://youtu.be/iENpDzt9DnE


42

Legado | Miguel Torga

O que eu espero, não vem. Mas ficas tu, leitor, encarregado De receber o sonho. Abre-lhe os braços, como se chegasse O teu pai, do Brasil, A tua mãe, do céu, O teu melhor amigo, da cadeia. Abre-lhe os braços como se quisesses Abraçar toda a luz que te rodeia.

Não perguntes por que tardou tanto E não chegou a tempo de me ver

Uns têm a sina de sonhar a vida,

Outros a de a colher.

https://youtu.be/0M22vJn-wc0


43

Fora do compasso | José Alberto Mar

Dias abundantes na boca pelos segredos das mãos ao rebentarem magnéticas os nomes à-volta. Inspira-as a cegueira de uma luz sem fim, como que vencida pela eternidade. Não é carne nem é memória esta respiração. Por ela vivemos pendurados na pergunta que respira pelos orifícios da pele que sorve as queimaduras dos astros. Talvez só os deuses conheçam a intenção da água dentro dos corpos. A água fechada ao fazer um nó às portas dos olhos. Estrela ou paisagem, quanta claridade! em redor dos dedos a mexerem dentro as oficinas da Terra os lugares abraçados pelo tacto da fala. https://youtu.be/jKzjQvJlH_8


3


Índice

Poemas 44 Animais | Armando Dourado dito por Armando Dourado 45 Era feliz e não sabia | Ana Margarida Borges dito por Ana Margarida Borges 46 Com uma mão nas palavras | Nuno Novo dito por Nuno Oliveira 47 Sabes | Daniel Faria dito por Celeste Pereira 48 Fotógrafo | Manoel de Barros dito por Ivo Machado 49 Poema em linha reta | Álvaro de Campos dito por Rui Branco Silva 50 Campo de Girassóis | Fátima Alves dito por Fátima Alves 51 Olhar | Sofia Moraes dito por Sofia Moraes 52 Um pedaço de céu | Nuno Júdice dito por Vítor Rocha 53 Gato Sobrevivente | Renato Filipe Cardoso dito por Renato Filipe Cardoso 54 Pegasus | Paulo Ferreira da Cunha dito por Paulo Ferreira da Cunha


55 Presídio | David Mourão Ferreira dito por Luisa Carneiro 56 Nascido tarde | Ana Maria Fernandes dito por Ana Maria Fernandes 57 Tríptico às Imagens Nuas | José Alberto Mar dito por José Alberto Mar 58 Por todas as razões e mais uma | Joaquim Pessoa dito por Ângela Oliveira 59 Cântico Negro | José Régio dito por Nuno Oliveira 60 Poema do Homem Constipado | António Lobo Antunes dito por Rui Branco Silva 61 Música | Sofia Moraes dito por Sofia Moraes 62 Toma lá cinco | Alexandre O’neill dito por Vitor Rocha 63 E por vezes | David Mourão Ferreira dito por Vasco Silva 64 London Revisited | Álvaro de Campos dito por António Domingos


44

Animais | Armando Dourado

Os animais andam contentes os animais que temos os que habitam connosco nunca vi os cães tão felizes correm saltam recebem carícias distribuem lambidelas brincam para eles tudo mudou também agora o dono nunca nega uma saída um exagero até saídas inesperadas todos podem ficar em casa mas não querem nem o cão


Os gatos Também já sabem que a vida mudou já não são animais de companhia mas sim para todo o dia estranham a presença e o movimento tanta presença tanto movimento tanto tempo o tempo mudou o tempo desapareceu os gatos que vivem do tempo e do espaço estão agora atentos ainda mais atentos têm menos espaço mas muita companhia.

https://youtu.be/F467RnGvJLA


45

Era feliz e não sabia | Ana Margarida Borges

Também gosto do silêncio Que hoje me enfeita as horas Quebrando desassossegos Desarrumava sentidos Na pressa de ir-me embora Do mapa dos meus segredos. Era feliz sem saber No meu mundo descontente. Escrevo agora novo enredo Vestindo outras certezas. E se por momentos me perco Outra vez no desalinho Logo regresso a aventura De achar em mim o caminho. Creio nos deuses sedentos De dar à terra um sinal O regresso a um novo tempo De beleza, de verdade. Da pureza inicial.

https://youtu.be/pXXSUtaQDac


46

Com uma mão nas palavras | Nuno Novo

Dias há que não vislumbro luz, Tudo sombrio em redor… Da memória, apenas às coisas mortas desta vida, empresto a voz. Não as mesquinhas, (essas são defuntas de verdade), mas as outras… tantas... Todas as esperanças que a vida matou, por cansaço! Empresto a minha voz, sim, para que renasçam e voltem, para falar comigo, porque a vida matou-as mal… Preciso de companhia! Que sozinho nada sou, nada sei, preciso de coisas vivas, causas, desafios. Mas gravo também desejos… que apenas matam saudades. Com uma mão nas palavras, a outra na melodia vou cantando esses gravados desejos… sabendo que a luz virá, e as palavras que soltei, cantadas em pensamentos, não foram em vão, porque trouxeram uma nova Vida, às coisas que a vida matou.

https://youtu.be/8BoAA6eGW98


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Sabes, Leitor | Daniel Faria

Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página E aproveito o facto de teres chegado agora Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia. A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita, Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor, Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre Apesar de nós. Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo, Mesmo que a recuses Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame, A colherei. A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão

https://youtu.be/GgzYXxBroME


48

Fotógrafo | Manoel de Barros Difícil fotografar o silêncio. Entretanto tentei. Eu conto: Madrugada minha aldeia estava morta não se ouvia um barulho, ninguém passava entre as casas. Eu estava saindo de uma festa. Eram quase quatro da manhã. Ia o Silêncio pela rua carregando um bêbado. Preparei minha máquina. O silêncio era o carregador? Estava carregando o bêbado. Fotografei esse carregador. Tive outras visões naquela madrugada. Preparei minha máquina de novo. Tinha um perfume de jasmim no beiral de um sobrado. Fotografei o perfume. Vi uma lesma pregada na existência mais que na pedra. Fotografei a existência dela. Vi ainda um azul-perdão no olho de um mendigo. Fotografei o perdão. Olhei uma paisagem velha a desabar sobre uma casa. Fotografei o sobre. Foi difícil fotografar o sobre. Por fim eu enxerguei a Nuvem de calça. Representou para mim que ela andava na aldeia de braços com Maiakovski — seu criador. Fotografei a Nuvem de calça e o poeta. Ninguém outro poeta no mundo faria uma roupa mais justa para cobrir a sua noiva. A foto saiu legal. https://youtu.be/i6NU9GRIOOg


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Poema em linha reta | Álvaro de Campos

Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra? Poderão as mulheres não os terem amado, Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca! E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído, Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear? Eu, que venho sido vil, literalmente vil, Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

https://youtu.be/r_ornzN9NEg


50

Campo de Girassóis | Fátima Alves

Acho que todos vão notar que ainda te tenho dentro de mim. Estamos a jantar num café escuro mas os meus olhos iluminam toda a sala. A minha pele dá choque quando me tocas. Apetece-me cantar mas sei que não tenho voz, Dançar um tango, Eu de vestido negro com uma grande racha e tacão alto e tu de escuro e gel no cabelo. Tu estás calmo e olhas-me dentro dos olhos como só tu sabes fazer. Despes-me a alma como me despiste as roupas há pouco. Sabias a mar e cheiravas a terra molhada, Tinhas a Irlanda entranhada no corpo e eu viajava por ti, Eras, ora mar, ora floresta e eu um campo de girassóis em qualquer lugar.

https://youtu.be/CPPDyESDEHw


51

Olhar | Sofia Moraes

cabe a cada coisa seu lugar e a linha que traça no ar e merecer um olhar de criança longe do hábito de chamar-lhe verde azul terno vermelho maduro triste alegre indiferente cabe a cada inverno ser estação sem a clemência de uma queixa lá por ser difícil dizer a um olhar tu vai ser eterno e o vento procurar a fúria nas folhas que não estão

https://youtu.be/lZItcymP1wk


52

Um pedaço de céu | Nuno Júdice

Tu, que eu amo nesta manhã que trouxe a tua imagem com os ruídos da rua, vai até à janela, levanta as persianas do quarto, e olha o céu como se ele fosse um espelho. Diz-me, então, o que vês? As nuvens que passam pelos teus olhos? Um azul cuja sombra te desenha o contorno das pálpebras? A mancha rosa do nascente que o horizonte roubou ao teu rosto? Mas não te demores. Um espelho não se pode olhar muito tempo; e o céu da manhã é dos que mudam com as variações da alma. Pode ser que o céu roube um sorriso nos teus lábios: e mo traga, para que eu o ponha neste poema, onde te vejo, um instante, enquanto a manhã não acaba.

https://youtu.be/247aEWh_NXM


53

Gato Sobrevivente | Renato Filipe Cardoso

Os filhos ao jantar perguntam quanto tempo falta para o mundo acabar Os filhos perguntam quanto tempo falta para o pai acabar perguntam quanto tempo lhes falta para acabarem em resposta faço-lhes o prato com vegetais e peixe e hidratos de imprecisão Dou-lhes palavras que nunca mais acabam palavras oleosas emaranhadas nas facas e nos garfos que deixam marca nos copos e nos guardanapos digo-lhes que se despachem que já falta pouco para fecharem os olhos e poder mergulhar em cada um dos peitos minúsculos para lhes polir o coração que nunca acaba Os filhos perguntam qual é o rating da vida perguntam qual é o spread do amor em que clube joga o FMI quando entrará o primeiro ministro em erupção porque é que os vulcões não entram em erupção de que lado é que fica o máximo e o mínimo do Oriente Médio se algum dia as estrelas serão condenadas por trazerem cancro para às almas dos meninos condenados e que investigador descobrirá uma cura a sério ou que cura descobrirá um investigador a sério


porque os filhos gostam de brincar com as palavras que nunca acabam perguntam se algum dia lhes comprarei as possibilidades que viram anunciadas no intervalo de certezas ao jantar as crianças perguntam se o destino também é corrupto se aceita subornos Cercados pela imagem de uma ambulância incandescente debruçado sobre um curioso gato que não morreu Os filhos perguntam depois da morte, o que há de sobremesa?

https://youtu.be/P5mPdjylAzg


54

Pegasus | Paulo Ferreira da Cunha

mil

cavalos

azuis

Refletem no céu doirado Nem

imaginam

pauis

O que é um corcel alado Deles fica o sol coalhado Fazem nuvem ao brilhar Mil cavalos a teu lado Prontos para por ti olhar Mil cavalos são mil anjos Ou mais de mil, se calhar Tens mil cavalos no ar Capazes de mil arranjos São mil cavalos alados Mil anjos neles a voar Chegam a todos os lados No ar, na terra e no mar.

https://youtu.be/IDmaL3X9UXw


55

Presídio | David Mourão Ferreira

Nem todo o corpo é carne... Não, nem todo Que dizer do pescoço, às vezes mármore, às vezes linho, lago, tronco de árvore, nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco...? E o ventre, inconsistente como o lodo?... E o morno gradeamento dos teus braços? Não, meu amor... Nem todo o corpo é carne: é também água, terra, vento, fogo... É sobretudo sombra à despedida;onda de pedra em cada reencontro; no parque da memória o fugidio vulto da Primavera em pleno Outono... Nem só de carne é feito este presídio, pois no teu corpo existe o mundo todo!

https://youtu.be/yJR3LP2pNGc


56

Nascido tarde | Ana Maria Fernandes

Q Quando nasci tinha trinta e nove anos de idade. Poesia é o nome da minha mãe que me teve numa idade avançada. Como sabem, em idades avançadas não se devia ter filhos porque se corre o risco de malformações nos fetos. A minha mãe foi avisada pelos médicos, mesmo assim correu o risco e eu nasci. Agora tenho mais dois anos. Quando passeio no jardim escuto as pombas que param para beber no lago do livro de histórias que leem, enquanto eu me escondo dos meus vizinhos que atiram pedras de papel branco, a mando das mães. Escondo-me porque nasci tarde, com trinta e nove anos, e sinto vergonha dos outros que nasceram antes de mim. Os pedúnculos das flores que tenho pelo corpo nasceram ocos. Um dia, cheia de curiosidade, quis saber se os das árvores também seriam iguais. Foi quando me acusaram de ter cortado as veias às árvores do parque e elas morreram. Tentei explicar-lhes que só as queria ver como eram por dentro, e depois ia cozê-las com linhas de costura da minha mãe. Mas ninguém me entendeu e consideraram o acto como um defeito de ter nascido tarde. Agora escondo-me por baixo da capa do livro, cheia de ervas, e fico ali até à noite quando sigo as estrelas dos lençóis da minha cama. Também não poderei frequentar as escolas porque tenho idade avançada. A minha mãe ralha-me por eu ter nascido tarde mas eu não tenho culpa e ela sabe. Um dia tentei agradar-lhe e arranquei uma flor do meu corpo e dei-a para ela ficar feliz, mas ela pisou-a com o pé.


Os médicos dizem que não tenho cura, serei assim toda a vida: o ter nascido tarde. Um Médico escreveu à minha mãe que eu podia fazer um tratamento intensivo para aprender a fazer poesia, que assim ia aliviar as minhas dores. Disse à minha mãe para me levar a uma clínica de livros e de leituras para fazer fisioterapia aos músculos das minhas flores; ao mesmo tempo que lia, levava choques eléctricos nos olhos e raios infra – vermelhos, por baixo da pele, no sangue. Nunca mais fui ao tratamento! Mentia à minha mãe e fugia para o mar. Atirava areias à água com as gaivotas. Um dia a minha mãe desconfiou que não fazia os tratamentos e bateu-me, aqui nas costas, com uma pena, onde tenho a marca nas costelas. Gostava de ter outra mãe que não fosse tão má. Esta, quando mamo nos bicos das suas letras. Diz que já não tenho idade para mamar. Ela tem razão mas eu não tenho culpa de ter nascido tarde. Com trinta e nove anos tenho mais fome de cores e imagens. É por isso que lhe trinco os bicos, para ir buscar o que ela tem dentro dela. Sei que lhe dói quando faço isso porque ela grita e não me dá mais. Gostaria de ter nascido como os outros poetas, com sete ou com nove anos de idade, não mais nem menos. A minha mãe não teve culpa de eu ter nascido tarde. Foi a bruxa que vive no monte, na casa dos partos que adormeceu durante trinta e nove anos. A minha mãe não queria acordá-la mas teve que o fazer porque já não podia estar grávida, mais tempo, porque o mar se soltou rebentado pelas pernas abaixo. Foi por isso que eu só nasci aos trinta e nove anos.

Q

https://youtu.be/l5aHmHoOaAU


57

Tríptico às Imagens Nuas | José Alberto Mar

1 Por vezes alguém põe um dedo na ferida. Quero dizer alguém acorda a sombra geral dos seus nomes e os nomes mergulham nos ritmos do sangue e logo as mãos crescem para os lugares e os lugares crescem com elas e depois, fica tudo mais alto. Há quem passe, olhe de lado e continue a sua vida. Outros há, que passam e se detêm por um pormenor mais chamativo.


2 Claro que todos os lados, todos os nomes são pretextos. E os lugares também. Nascemos e morremos por uma graça indomável perdida no tempo. Andamos às voltas disto tudo enquanto por dentro acordam e adormecem as sementes povoadas pelos estranhos frutos de uma sede sem fim.


3 Vozes e vozes que cantam a vida e o exemplo dos milhares de sóis mesmo sabendo-se que para outros olhares há um abismo memorial nas cabeças uma outra idade, outra boca menos cercada pelos dons dos dias na transformação dos corpos.

https://youtu.be/R2XTztEwDFU


58

Por todas as razões e mais uma | Joaquim Pessoa

Por todas as razões e mais uma. Esta é a resposta que costumo dar-te quando me perguntas por que razão te amo. Porque nunca existe apenas uma razão para amar alguém. Porque não pode haver nem há só uma razão para te amar. Amo-te porque me fascinas e porque me libertas e porque fazes sentir-me bem. E porque me surpreendes e porque me sufocas e porque enches a minha alma de mar e o meu espírito de sol e o meu corpo de fadiga. E porque me confundes e porque me enfureces e porque me iluminas e porque me deslumbras. Amo-te porque quero amar-te e porque tenho necessidade de te amar e porque amar-te é uma aventura. Amo-te porque sim mas também porque não e, quem sabe, porque talvez. E por todas as razões que sei e pelas que não sei e por aquelas que nunca virei a conhecer. E porque te conheço e porque me conheço. E porque te adivinho. Estas são todas as razões.

Mas há mais uma: porque não pode existir outra como tu.

https://youtu.be/AoEix9tgNKA


59

Cântico Negro | José Régio

“Vem por aqui” — dizem-me alguns com os olhos doces Estendendo-me os braços, e seguros De que seria bom que eu os ouvisse Quando me dizem: “vem por aqui!” Eu olho-os com olhos lassos, (Há, nos olhos meus, ironias e cansaços) E cruzo os braços, E nunca vou por ali... A minha glória é esta: Criar desumanidades! Não acompanhar ninguém. — Que eu vivo com o mesmo sem-vontade Com que rasguei o ventre à minha mãe Não, não vou por aí! Só vou por onde Me levam meus próprios passos... Se ao que busco saber nenhum de vós responde Por que me repetis: “vem por aqui!”? Prefiro escorregar nos becos lamacentos, Redemoinhar aos ventos, Como farrapos, arrastar os pés sangrentos, A ir por aí... Se vim ao mundo, foi Só para desflorar florestas virgens, E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada! O mais que faço não vale nada.


Como, pois, sereis vós Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem Para eu derrubar os meus obstáculos?... Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós, E vós amais o que é fácil! Eu amo o Longe e a Miragem, Amo os abismos, as torrentes, os desertos... Ide! Tendes estradas, Tendes jardins, tendes canteiros, Tendes pátria, tendes tetos, E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios... Eu tenho a minha Loucura! Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura, E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios... Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém! Todos tiveram pai, todos tiveram mãe; Mas eu, que nunca principio nem acabo, Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo. Ah, que ninguém me dê piedosas intenções, Ninguém me peça definições! Ninguém me diga: “vem por aqui”! A minha vida é um vendaval que se soltou, É uma onda que se alevantou, É um átomo a mais que se animou... Não sei por onde vou, Não sei para onde vou Sei que não vou por aí!

https://youtu.be/3iglcBWiLOI


60

Poema do Homem Constipado | António Lobo Antunes Pachos na testa, terço na mão, Uma botija, chá de limão, Zaragatoas, vinho com mel, Três aspirinas, creme na pele Grito de medo, chamo a mulher. Ai Lurdes que vou morrer. Mede-me a febre, olha-me a goela, Cala os miúdos, fecha a janela, Não quero canja, nem a salada, Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada. Se tu sonhasses como me sinto, Já vejo a morte nunca te minto, Já vejo o inferno, chamas, diabos, Anjos estranhos, cornos e rabos, Vejo demónios nas suas danças Tigres sem listras, bodes sem tranças Choros de coruja, risos de grilo Ai Lurdes, Lurdes fica comigo Não é o pingo de uma torneira, Põe-me a Santinha à cabeceira, Compõe-me a colcha, Fala ao prior, Pousa o Jesus no cobertor. Chama o Doutor, passa a chamada, Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada. Faz-me tisana e pão de ló, Não te levantes que fico só, Aqui sozinho a apodrecer, Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer https://youtu.be/REORTmCn6EQ


61

Música | Sofia Moraes

e o que sobra de nós será música música será a cinza e serão os ossos nossos m ú s i c a serão as cabeças reclinadas sobre os braços cruzados sobre a areia leve m ú s i c a os acenos e os abraços a sobrarem de nós como ramos de plátano ao vento e o que sobrar de nós será tanto

https://youtu.be/NwnnhiXtT3w


62

Toma lá cinco | Alexandre O’neill Encolhes os ombros, mas o tempo passa... Ai, afinal, rapaz, o tempo passa! Um dente que estava são e agora não, Um cabelo que ainda ontem preto era, Dentro do peito um outro, sempre mais velho coração. E na cara uma ruga que não espera, que não espera... No andar de cima, uma nova criança Vai bater no teu crânio os pequeninos pés. Mas deixa lá, rapaz, tem esperança: Este ano talvez venhas a ser o que não és... Talvez sejas de enredos fácil presa, Eterno marido, amante de um só dia... Com clorofila ficam os teus dentes que é uma beleza! Mas não rias, rapaz, que o ano só agora principia... Talvez lances de amor um foguetão sincero Para algum coração a milhões de anos-dor Ou desesperado te resolvas por um mero Tiro na boca, mas de alcance maior... Grande asneira, rapaz, grande asneira seria Errar a vida e não errar a pontaria... Talvez te deixes por uma vez de fitas, De versos de mau hálito e mau sestro, E acalmes nas feias o ardor pelas bonitas (Como mulheres são mais fiéis, de resto...)

https://youtu.be/qdUTrZByKRw


63 E por vezes | David Mourão Ferreira

E por vezes a s n o i t e s d u r a m m e s e s E por vezes o s m e s e s o c e a n o s E por vezes o s b r a ç o s q u e a p e r t a m o s n u n c a m a i s s ã o o s m e s m o s E por vezes encontramos de nós em poucos meses o que a noite nos fez em muitos anos E por vezes f i n g i m o s q u e l e m b r a m o s E por vezes l e m b r a m o s que por vezes ao tomarmos o gosto aos oceanos só o sarro das noites não dos meses lá no fundo dos copos encontramos E por vezes s o r r i m o s o u c h o r a m o s E por vezes por vezes ah por vezes num segundo se evolam tantos anos

https://youtu.be/szlUjIldeAI


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Lisbon Revisited | Álvaro de Campos

NÃO: Não quero nada. Já disse que não quero nada. Não me venham com conclusões! A única conclusão é morrer. Não me tragam estéticas! Não me falem em moral! Tirem-me daqui a metafísica! Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) — Das ciências, das artes, da civilização moderna! Que mal fiz eu aos deuses todos? Se têm a verdade, guardem-na! Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica. Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo. Com todo o direito a sê-lo, ouviram? Não me macem, por amor de Deus!


Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável? Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa? Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade. Assim, como sou, tenham paciência! Vão para o diabo sem mim, Ou deixem-me ir sozinho para o diabo! Para que havemos de ir juntos? Não me peguem no braço! Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho. Já disse que sou sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja da companhia! Ó céu azul — o mesmo da minha infância — Eterna verdade vazia e perfeita! Ó macio Tejo ancestral e mudo, Pequena verdade onde o céu se reflete! Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje! Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta. Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo... E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

https://youtu.be/DsAxw1w-cD4


Palavras para que vos quero? Coordenação e gestão de redes sociais | Ângela Oliveira Gestão de redes sociais e edição de vídeos | Catarina Santos Paginação, design e edição | Rita Pedroso Porto, 2021 QuadraSoltas – Associação Cultural


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