A Questão da responsabilidade na Adolescência sob a ótica da Psicanálise e do Direito

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE MESTRADO Pesquisa e Clínica em Psicanálise

VALÉRIA CRISTINA CARDOSO GLIOCHE

A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE NA ADOLESCÊNCIA SOB A ÓTICA DA PSICANÁLISE E DO DIREITO

Dissertação de Mestrado

Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2007

iv


A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE NA ADOLESCÊNCIA SOB A ÓTICA DA PSICANÁLISE E DO DIREITO

VALÉRIA CRISTINA CARDOSO GLIOCHE

“DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM PSICANÁLISE”

ORIENTADOR: LUCIANO ELIA

RIO DE JANEIRO,

SETEMBRO DE 2007

ii


A meus falecidos av贸s Angelo Geraldo Glioche e Ondina Moreira Glioche por tudo o que foram na minha vida. A meus filhos amados Gabriella, Bernardo e Sofia. A meu marido Ronaldo Companheiro desta jornada...

iii


Agradecimentos: - a meu marido Ronaldo, pelo auxílio, pela paciência, pelo companheirismo, pelo amor; - a minhas primas Patrícia, Lucia e Angélica pelas dicas, orientações e indicações de livros na área do Direito; - a minhas amigas Patrícia Schmid e Patrícia Alves pelo constante incentivo e amizade; - a Paula Kleve, pela Vorstellungen; - a Luciano Elia, por ter aceitado me orientar; - a meus pais, pelos Züge.

Agradecimentos especiais a todo corpo docente do mestrado em Psicanálise da UERJ, pela disposição com a qual se dedicam à difícil tarefa da transmissão.

iv


RESUMO O

presente

trabalho

tem

como

objetivo

pesquisar

a

questão da responsabilidade na adolescência, tendo em vista que para o Direito o adolescente é penalmente irresponsável (inimputável). Buscamos compreender quem é este sujeito que transgride, utilizando os conceitos de Freud e Lacan. A partir do atendimento a adolescentes em conflito com a lei,

analisamos

os

efeitos

da

inimputabilidade

no

comportamento destes jovens. Por fim, apontamos a diferença existente entre punir e responsabilizar ressaltando que

a

punição não necessariamente implica na responsabilização do sujeito pelo ato cometido.

ABSTRACT

This study investigates the issue of responsibility in adolescence,

considering

the

fact

that

law

in

Brazil

conceives adolescents as not legally responsible for their criminal actions. Through the work developed directly with youth who had broken the law, the author discusses the impact of

not

being

legally

responsible

on

these

adolescents’

behaviors. The theoretical framework developed by Freud and Lacan is presented as the basis of this study. The

author

punishment

and

also

discusses

responsibility,

the

difference

highlighting

that

between to

be

punished not necessarily leads to take responsibility for your action.

v


SUMÁRIO

Introdução................................................... ................... 1 Capítulo 1: A responsabilidade Penal ........................................10 Capítulo 2: O sujeito da Psicanálise ........................................ 24 2.1 - O surgimento do sujeito na história .......................... 24 2.2 - A realidade é psíquica ......................................... 32 2.3 - O surgimento do sujeito ....................................... 35 2.4 - Para além do princípio de prazer ............................. 41 2.5 - O falo ........................................................ .. 46 2.6 - Uma nova ação psíquica ........................................ 50 2.7 – Começa a se delinear o eu ..................................... 55 2.8 - A agressividade .................................................59 Capítulo 3: Casos ............................................................. 62 3.1 – O marginal .......................................................62

vi


3.2 – A viciada .........................................................68 Considerações Finais ..........................................................73 Sobre a responsabilidade ..............................................81 Bibliografia................................................. ....................86

vii


INTRODUÇÃO

O

adolescente

transgressor

traz

grandes

dificuldades tanto para os profissionais do campo da Justiça quanto

para

os

do

“desenvolvimento

campo

mental

da

Saúde.

incompleto”,

1

Por

possuir

ainda

a

legislação

um

que

os

rege compreende particularidades que visam a garantia de um crescimento físico, mental e social adequado. É justamente na interseção entre o que a Justiça e a Saúde consideram um adequado desenvolvimento mental ou psíquico que os problemas se dão. É freqüente vermos adolescentes transgressores sendo tratados

pelo

deficiência

aparelho

qualquer

judiciário

que

precisa

como ser

portadores

de

uma

“consertada”;

com

medicação específica ou com terapêutica comportamental. Como se, fazendo os ajustes necessários em uma máquina que vem funcionando

mal

ou

ainda

extirpando

variáveis

exteriores2

àquele sujeito, garantimos uma “adequação” deste à vida em sociedade. O objetivo é “reformar” o sujeito, como se ele tivesse “erros” que podem ser consertados por nós. 1

Expressão utilizada em nosso “Código Penal” artigo 26. Exteriores como aquilo que o sujeito não pode controlar, alheio à sua vontade

2

viii


Eis aqui o grande desafio para o psicanalista que atende esses jovens, já que trabalhamos com um sujeito que comete um ato que é de sua autoria e não de outrem, e que pode se responsabilizar dizer,

pelo

agressivos,

por

seu

suas

escolhas,

sintoma.

infracionais

E e

é

ações

assim

e,

por

que

tomamos

transgressores

destes

que os

não atos

sujeitos

que, cada vez mais, chegam aos serviços de saúde mental: como um sintoma que fala sobre a verdade daquele sujeito. Apesar de no Estatuto da Criança e do Adolescente estar prevista a aplicação de medidas sócio-educativas caso tenha existido

a

acontecer

prática é

a

de

infracional,3

ato

existência

de

uma

o

lógica

que

observamos

confusa

entre

a

história pregressa daquele indivíduo, - por exemplo o estado de

pobreza

responder

destas

pelos

pessoas

seus

-,

atos.

com

Como

o

fato

se, por

de

necessitarem

aquele indivíduo

possuir história de abandono pelos pais, ou viver em precária situação

social,

ou

ainda

ser

órfão,

isto

por

si

“justificaria” seu ato, relevando-se assim o motivo de suas ações

e

sendo

encaminhados

para

tratamento.

Além

da

necessidade de questionarmos porque jovens que cometem atos infracionais indispensavelmente precisam de tratamento, não entendíamos porque não deviam prestar conta de seu ato. Assim podemos entender porque em 1999 as enfermarias do Hospital Vicente Resende4 adolescentes

em

viviam com seus 40 leitos destinados a grave

crise

psiquiátrica,

preenchidos

mês

após mês.5 3

As medidas sócio-educativas podem ser: advertência verbal, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi-liberdade, ou internação em estabelecimento educacional. 4 Este hospital faz parte do Instituto Municipal Nise da Silveira. 5 Após longo trabalho no sentido da desinstitucionalização de crianças e adolescentes que, muitas vezes, passavam meses internados em enfermaria psiquiátrica, conseguimos reduzir o número de leitos para 12 (doze) o que implicou em trabalho mais rigoroso nas indicações para internação e em

ix


Este hospital tem como principal característica ser o único recurso público de todo o Estado a possuir internação psiquiátrica para crianças e adolescentes em grave sofrimento psíquico. O hospital possui três modalidades de atendimento: (a) internação - para pacientes em grave crise psiquiátrica, onde o recurso da atenção diária não se mostra suficiente; (b) centro de atenção diária - tem como objetivo o trabalho intensivo

com

a

possibilitando

a

internações,

clientela queda

em

no

propiciando

grave

número

inclusive

sofrimento e

que

na

psíquico,

freqüência

muitos

de

adolescentes

não experimentem este recurso, já que funciona em caráter diário e integral no formato de oficinas terapêuticas; (c) o ambulatório

-

serviço

com

importante

papel

na

rede

de

serviços de saúde mental do Estado por realizar uma interface entre a alta da enfermaria e seu posterior encaminhamento para a rede de saúde do Estado/Município, além de ser a principal

referência

da

zona

norte

da

cidade

do

Rio

de

Janeiro. Minha função neste serviço consistia em coordenar e supervisionar psicólogos, funcionários

a

equipe

assistentes que

de

profissionais:

sociais,

faziam

a

técnicos

recepção

do

de

psiquiatras, enfermagem

serviço,

além

e de

possuir uma agenda com atendimento semanal neste ambulatório. Dos atendimentos realizados, alguns adolescentes encontravamse em conflito com a lei, tendo eles fornecido a semente que desencadeou este trabalho. Nestes últimos anos trabalhando com pacientes com grave sofrimento adolescentes

psíquico, sem

nos

espantava

sintomatologia

a

quantidade

psiquiátrica

que

de se

encontravam internados. É corriqueiro inclusive se dizer, nos

maior interlocução com as Varas da Infância e Juventude. Informações colhidas no Núcleo de Informações Gerenciais (NIG) do Instituto Municipal Nise da Silveira.

x


serviços de saúde mental, que este serviço – a enfermaria – era o “fim da linha”, devido a ser um recurso extremo que serviria

como

freio,

como

recurso

último

para

impedir

determinado comportamento. Tal situação se devia ao fato da Justiça

ordenar

infracionais”

a

internação

eram

motivo

por

de

interpretar

internação,

ou

que

“atos

melhor,

que

aqueles adolescentes por cometerem tais atos, não poderiam estar

“em

perfeito

juízo”.

Esta

atitude

por

parte

dos

representantes da Justiça nos aponta uma forma de concepção da infância e adolescência como uma etapa primorosa e sem problemas

da

vida

responsabilidade

e

é

qualquer do

desajuste

biológico

nesta

fase,

(deficiência

a

mental,

disfunções orgânicas, etc.), da deficiente educação dos pais ou da total falta dela. Outra constatação que pudemos fazer nas interlocuções que tais casos propiciaram era um grande sentimento estado

de

“culpa”

atual

daquele

impossibilidade

de

se

dos

representantes

adolescente, fazer

da

tendo

cumprir

o

Justiça em

que

pelo

vista

preconiza

a o

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Era como se a internação servisse como alternativa possível naqueles casos, uma forma de “compensação” não os tratando como infratores6, mas como doentes. Além de estas internações acontecerem por mandado

judicial,

equipe

do

ou seja,

hospital,7

não

tínhamos

passarem

por avaliação da

enorme

dificuldade

no

encaminhamento daqueles pacientes após a alta, já que muitos não

possuíam

mais

vínculos

familiares

ou

não

eram

mais

aceitos por estes. Os abrigos da rede de assistência social, alternativa

existente

justamente

para

estes

casos,

tinham

enorme dificuldade em receber esta clientela, alegando “falta 6

No sentido daquele que comete um ato infracional. O juiz assina uma determinação judicial para internação que não pode ser contestada, independente da concordância ou não da equipe de saúde mental.

7

xi


de vaga”, o que acarretava em meses de reclusão/internação. Mesmo

estando

com

alta

médica,

por

serem

adolescentes,

estavam sob “nossa responsabilidade” juridicamente, devendo nós,

como

instituição,

responder

pela

guarda

e

cuidados

daqueles jovens. Esta configuração, - lugar de tratar ser o mesmo lugar onde se prende - já trazia por si só muitos complicadores possíveis.8 Porém, a decisão de elaborar esta pesquisa só nasceu a partir de uma situação vivida com a Justiça em relação a uma paciente adolescente. Silvia, como vou chamála,9 era moradora de um município do Estado do Rio de Janeiro e

tinha

inúmeras

internações

em

nosso

hospital,

todas

ocasionadas por seu comportamento agressivo. Em sua primeira infância, foi retirada do convívio familiar por denúncia de maus-tratos feita pelos vizinhos. Sua mãe era alcoólatra e seu

padrasto

era

acusado

por

ela

de

abuso

sexual.

Esta

paciente era uma dos que passavam longos períodos de tempo internados, pela dificuldade de se encontrar um abrigo que a aceitasse. Nestes longos períodos que passava internada fez um forte vínculo com alguns membros da equipe. Era atendida por

uma

psicanalista,

mas

por

ser

muito

demandante,

“sem

limites” (expressão que já virou jargão em muitas equipes) e agressiva, também outros profissionais se dispunham a ouvila,

sendo

eu

uma

destas.

Silvia

não

desconhecia

a

responsabilidade do hospital perante ela e por isso, inúmeras vezes

ensaiava

fugas.

Numa

destas,

8

pulou

as

grades

do

O paciente estava em tratamento e deveria ter os profissionais de saúde como seus aliados, porém, como se encontravam com sua liberdade tolhida, passavam sua estadia ali dizendo já estarem melhores (independentes de estarem ou não) e solicitando insistentemente sua alta. Desta forma, tentavam mascarar seus sintomas e desconfiavam dos profissionais, receosos de que suas ações pudessem ser interpretadas como se devessem permanecer por mais tempo internados. 9 Os nomes deste trabalho foram trocados, com o intuito de preservar a privacidade das pessoas.

xii


hospital

sendo

seguida

por

um

guarda

e

pela

diretora

da

instituição e foi para o meio da rua, fazendo com que um ônibus parasse abruptamente a centímetros de seu corpo. Ria, olhando

para

os

técnicos

do

outro

lado

da

grade.

Este

acontecimento nos fez não mais tentar impedi-la de fugir. Poderia

ir

se

quisesse,

o

que,

é

claro,

ocasionou

a

interrupção das fugas, indo muitas vezes embora calmamente, mas

voltando

agressivos

algumas

com

os

horas

técnicos

depois. do

Após

hospital

inúmeros

e

com

as

atos outras

pacientes internadas (se aprazia em socar a barriga de uma adolescente grávida) e tendo quebrado o carro de uma das técnicas,

resolvemos,

encaminhá-la

para

a

após

muitas

delegacia

de

discussões menores,

em

equipe,

DPCA, para que

respondesse por seus atos. Visávamos a que a Lei, encarnada, pudesse produzir algum efeito para aquela paciente. Porém, os técnicos

da

justiça

(promotores,

assistentes

sociais

e

psicólogos) interpretaram nossa atitude como “irresponsável”, já que a adolescente era “inimputável”, não só por sua idade, mas também pelo fato de estar em tratamento. A promotora de justiça da Vara da Infância e Juventude, segundo sua própria avaliação, atendia

ou

Silvia,

encaminhou-a devendo

seja,

o

para

sem

aplicou uma

Município

escutar a

remissão

clínica

onde

nenhum

a

profissional

do

ato

particular

adolescente

praticado

fora

do

que e

Estado,

residia custear o

tratamento. Consultando um pouco mais o Estatuto da Criança e do Adolescente,

no

capítulo

V,

onde

se

trata

da

remissão,

encontramos o seguinte:

ART. 126 – Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a

xiii


remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. PARÁGRAFO ÚNICO – Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.10

Ou seja, os Promotores de Justiça em atuação na Vara de Infância e Juventude, em seu próprio arbítrio, interpretando o ocorrido como não suficiente para se chamar aquele sujeito a

responder

ocasionará

por na

ele,

podem

suspensão

ou

conceder

a

extinção

do

remissão

o

que

processo.

Foi

exatamente o que aconteceu no caso mencionado, não havendo a necessidade da parte que sofreu o dolo e promoveu a notícia do fato ser ouvida. Não é de se espantar o aumento assustador de crianças e adolescentes que vem sendo utilizados em crimes e no tráfico de entorpecentes... Foi então, a partir deste posicionamento dos técnicos da Justiça,

sobre

esta

“inimputabilidade”

na

infância

e

na

adolescência, que me vi convocada para este tema. Perguntavame

então,

como

conjugar

o

atendimento

psicanalítico

que,

dentre outras coisas, visa à implicação e a responsabilização do

sujeito

pelos

seus

atos,

com

a

afirmação

da

Justiça,

instituição que encarna a lei e determina direitos e deveres dos

cidadãos,

de

que

aquele

sujeito

não

pode

se

responsabilizar? O desafio que percebo é como incluí-los em uma lei, às restrições e renúncias que a vida civilizada impõe, quando todo ato jurídico, nesta etapa da vida, visa o não-encontro, a não-responsabilização, uma proteção que exclui o sujeito

10

Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990:46 (o grifo é meu).

xiv


enquanto aquele que age porque fez uma escolha (consciente ou não) e não por falta de “maturidade”. Qual então pode ser a direção de um trabalho com estes adolescentes,

sem

concebê-los

como

“defeituosos”,

tomando

suas ações como um posicionamento singular de um sujeito? Como

responsabilizá-los

quando

a

Justiça

os

toma

como

irresponsáveis? Qual seria a direção a tomar com adolescentes transgressores quando convocam com seus atos a aplicação da lei

e

esta

os

exclui

como

exceções?

Quando

a

suposta

benevolência em poupá-los de se responsabilizarem por seus atos se transforma em ato que os exclui como sujeitos? Uma explicação sobre o tema se faz necessária. Nossa intenção de compreender a responsabilidade na adolescência requer, no momento em que vivemos, um esclarecimento. Não desconhecemos

que

atualmente

vem

sendo

discutida

enfaticamente a redução da maioridade penal. Sabemos que os atos

criminosos

em

qualquer

faixa

etária

representam

um

perigo para a sociedade e seu maior interesse é torná-los inócuos, estabelecendo com o castigo, um exemplo intimidante. Também reconhecemos que toda sentença pressupõe a compreensão psicológica de quem a executou, ou seja, a justa ponderação de seus motivos. A pessoa que pratica o mesmo fato pode, segundo sua motivação, ser condenado ou absolvido. Matar um homem, se este é um inimigo de guerra, é digno de elogio; se a morte é de um agressor em defesa própria, considera-se legítima defesa; o crime passional é motivo de controvérsias, algumas vezes sendo perdoado; mas o assassinato para roubar é condenado unanimemente. Todos os casos citados são o mesmo fato, mas valorizamos de maneira distinta as diferentes metas do autor e suas diferentes motivações. Sem o conhecimento dos motivos que levam alguém a cometer um crime, não é possível avaliar com exatidão seu ato. xv


Sabemos também que um trabalho como este, em que se discute a responsabilidade na adolescência, deve instigar a sociedade,

visto

que,

amplamente

discutido

atualmente nos

meios

este

de

assunto

vem

comunicação.

O

sendo estudo

teórico deste tema vem sendo recebido como um bálsamo que poderia vir a resolver os problemas relativos a adolescentes que se portam como inimigos da sociedade. Esclarecemos que nosso objetivo não é “proteger” o adolescente da sociedade, e nem

o

inverso,

mas

discutirmos

tema

tão

caro

para

a

psicanálise como a responsabilidade. Nosso estudo não tem como objetivo definir qual a idade adequada para que um jovem possa responder por seus atos, mas teorizar

e

apontar

quais

as

conseqüências,

positivas

ou

negativas, da impossibilidade de um sujeito poder responder por um ato seu, cometido em seu nome. Da mesma forma, não preconizamos com estas indagações o aumento da repressão, na forma simplória “fez, deve pagar”, mas sim o questionamento dos supostos benefícios e/ou malefícios que tal interpretação possa ocasionar aos jovens em conflito com a lei. Também sabemos que alguns setores da sociedade defendem a redução da maioridade penal como solução para a delinqüência juvenil, porém não nos iludimos que tal atitude não solucionaria o problema da transgressão, pelo contrário, atenderia apenas a interesses

políticos

retrógrados,

preconceituosos

e

maniqueístas. Para

dissertarmos

sobre

o

tema

pretendemos

uma

investigação sobre o porquê da irresponsabilidade da criança e do adolescente à luz do Direito, quais as para

esta

assertiva,

fazendo

um

bases teóricas

contra-ponto

com

a

necessidade da implicação dos menores e seu reconhecimento como sujeito.

xvi


No

primeiro

capítulo

visamos

estudar

o

conceito

de

inimputabilidade e responsabilidade para o Direito e quais as teorias que sustentam a inimputabilidade para os menores de 18 anos. Neste capítulo citaremos alguns autores do Direito e suas posições frente ao tema da inimputabilidade. No capítulo 2 desenvolveremos o conceito de sujeito para a psicanálise. Quem é este que nomeamos “eu”? Quem é este que age em nós? Pretendemos,

conhecendo

compreender capítulo,

a

assunção

buscaremos

como da

se

estrutura

responsabilidade.

estudar,

através

o

sujeito,

No

terceiro

do

exame

adolescentes em conflito com a lei atendidos por nós, importância

da

questão

da

responsabilidade

no

de

qual a

tratamento

destes jovens. No capítulo final, em posse do conceito de responsabilidade para o Direito e elaborada a questão de quem é

o

sujeito,

sinalizamos

reflexões

para

as

questões

levantadas. Adiantamos que o que será exposto aqui não esgota a questão. Este trabalho será complementado posteriormente com entrevistas a adolescentes em conflito com a lei, o que já nos foi disponibilizado por um contato no Ministério Público. Julgamos

que

tais

entrevistas

poderão

nos

fornecer

dados

importantes de como estes jovens lidam com a lei e com os ideais.

xvii


1 - A Responsabilidade Penal

Encontramos a seguinte definição de responsabilidade no dicionário: “obrigação de responder pelos seus atos ou de outrem”. Para responsável: “que responde pelos seus atos ou pelos

de

outrem;

que

tem

cumprir certas obrigações”. O

Direito

imputabilidade

12

Penal como

compromissos;

pessoa

que

deve

11

toma

a

responsabilidade

conceitos

indiferente o emprego de um ou outro.

similares, 13

e

tornando

Portanto, inimputável

é o indivíduo considerado não responsável pelos seus atos para

o

Direito

Penal.

Nelson

Hungria

conceitua

a

responsabilidade penal para o Direito da seguinte forma:

A responsabilidade pressupõe no agente, contemporaneamente à ação ou omissão, a capacidade de entender o caráter criminoso do fato e a capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento. Pode, então, definir-se a responsabilidade como a existência dos pressupostos psíquicos pelos quais alguém é chamado a responder penalmente pelo crime que praticou.14

Em nosso Código Penal encontramos nos artigos 26 e 27 os casos em que o sujeito é considerado irresponsável.

11

Bueno, F. S. - Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, MEC/FENAME, 1979, 11ª edição/2ª tiragem 12 Para a definição de imputabilidade, remeto o leitor à página 14. 13 Hungria, N. - Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro, Edição Revista Forense, 1955, 3ª edição, vol. I, tomo 2°, arts. 11 a 27, p. 314. 14 Idem, ibidem. O grifo é meu.

xviii


Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Art. 27. Os menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.

De acordo com o Código Penal, os menores de dezoito anos e

os

loucos

são,

previamente,

excluídos

de

qualquer

possibilidade de se responsabilizar por seus atos. No caso dos loucos o juiz deve solicitar laudo psiquiátrico para que se constate a existência da doença mental. Com os menores de dezoito anos a causa biológica (imaturidade) é suficiente para que não seja atribuída a responsabilidade penal, não havendo

necessidade

psiquiátrica.

de

Este

nenhuma

critério

é

indagação utilizado,

psicológica segundo

ou

Nelson

Hungria, por estar de acordo com uma política criminal e predomina dizia:

sobre

o

artigo

156

do

antigo

Código

Civil

que

“o menor entre 16 e 21 anos, equipara-se ao maior

quanto às obrigações resultantes de atos ilícitos, em que for culpado”. independe

O a

Novo

Código

idade

do

Civil menor:

traz todos

uma

inovação.

são

Nele

considerados

responsáveis como consta no artigo 928:

O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele 15 dependem.” 15

Novo Código Civil: Exposição de Motivos e Texto Sancionado. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002.

xix


Portanto independe se o menor é responsável civilmente, ainda assim, é considerado penalmente inimputável. A política criminal a que se refere Hungria contém os seguintes princípios:

Ao invés de assinalar o adolescente transviado com o ferrete de uma condenação penal, que arruinará, talvez irremediavelmente, sua existência inteira, é preferível, sem dúvida, tentar corrigi-lo por métodos pedagógicos, prevenindo a sua recaída no malefício. O delinqüente juvenil é, na grande maioria dos casos, um corolário do menor socialmente abandonado, e a sociedade, perdoando-o e procurando, no mesmo passo, reabilitá-lo para a vida, resgata o que é, em elevada proporção, sua própria culpa. (...) A defesa dos pequenos homens, notadamente contra o seu abandono moral, assumiu o mais alto relevo, desde que se compreendeu que estava aí, em grande parte, a solução de um dos mais graves problemas sociais, qual seja o da prevenção da delinqüência.16

Hungria17 afirma que “toda criança é boa por natureza” e se refere a Freud por suas descobertas sobre a sexualidade infantil como “denegridor da espécie humana”. Corrobora suas afirmações

citando

algumas

pesquisas

e

diversos

autores,

dentre eles um juiz de menores18 em Barcelona que afirma que a assistência material e moral do Estado tem o poder de anular a influência nociva adquirida no convívio familiar. Retomando “determinar-se

o de

artigo

26

acordo

do com

Código o

Penal,

entendimento

o

que do

seria

caráter

criminoso do fato?” (o grifo é meu) Alguns pensadores do

16

Hungria, N. - Comentários ao Código Penal , p. 353-354, grifo meu. Nelson Hungria foi ministro do Supremo Tribunal Federal, Membro da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal e da Comissão Elaboradora dos Anteprojetos da Lei das Contravenções Penais. 18 Cuello Calón. 17

xx


Direito19,

conscientes

do

embaraço

que

tal

frase

promove,

defendem a idéia de que a vontade psicológica não deve ter relevância jurídica. Argumentam:

O nexo de responsabilidade se estabelece porque assim o exige a norma jurídica, desde que não acontece o que ela mandava que acontecesse. Pouco importa que o agente tenha ou não capacidade de querer. Ao invés de dizer-se: há pena porque há culpa, deve-se dizer: há culpa porque há pena.20

De maior consenso porém no Direito Penal, o elemento “vontade”,

apesar

do

reconhecimento

diversas interpretações,

de

ser

suscetível

à

é de fundamental importância para a

imputação da responsabilidade, assim como a análise de todas as

variáveis

que

levaram

o

sujeito

ao

crime

e,

conseqüentemente, a imputação da pena, afinal, argumentam, “para atribuir-se a alguém uma obrigação como conseqüência de um ato ilícito, são indispensáveis requisitos ulteriores à disposição da norma, e precisamente eles é que constituem as condições fundamentalmente psicológicas da responsabilidade jurídica.”21

Desta forma o Direito Penal adota a posição que

todo o indivíduo é moralmente responsável (exceto aqueles citados no artigo 26 e 27), ou seja, capaz de escolher dentre as ações possíveis, aquela que julga mais adequada conforme os preceitos de sua cultura. Zaffaroni conceitua a culpabilidade como a reprovabilidade do injusto ao autor, que só é possível quando revela que o autor atuou com uma disposição interna contrária à norma violada. Ao não 19 20 21

Podemos citar Kelsen, Gareis e Scarano. Hungria, N. - Comentários ao Código Penal , n.r.p. 320. Idem, ibidem, n.r.p. 320.

xxi


ser motivado pela norma, quando podia e era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao Direito.22

O

conceito

de

culpabilidade

foi

também

amplamente

descrito por Álvaro Mayrink23 através de um estudo histórico onde analisa as diversas etapas que foram necessárias para a construção

do

conceito

até

chegarmos

ao

que

é

utilizado

atualmente: 1°) etapa psicológica; a culpabilidade tinha seu enfoque direcionado para a atribuição psicológica de uma ação. 2°)

etapa

psicológica

normativa;

a

culpabilidade

se

baseava sobre a reprovabilidade do autor por tal ação. 3°)

etapa

normativa

pura,

conceito

estritamente

normativo utilizada hoje (1984), considera a vontade separada da ação.24 Álvaro Mayrink defende a tese de que o cidadão não tem nenhuma outra obrigação senão a de obedecer as leis. O que passa a ser reprovável ao autor do ato ilícito, onde será averiguada a culpabilidade, é o fato dele ter realizado um ato “injusto”25 quando podia eximir-se de fazê-lo. O que está agora em questão não é mais o autor do ato e sim o ato do autor. Para

o

Direito

Penal

a

responsabilidade

não

prevê

variações: ou se é responsável ou se é irresponsável. O que varia

e

será

mensurável

caso

22

o

autor

do

crime

seja

Zaffaroni, Manual de Direito Penal Brasileiro, RT, 2ª ed., 1999, 345,601, apud Costa, A. M. - Direito Penal, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2005, parte geral, vol. II, p. 1092. 23 Advogado criminal, desembargador do Tribunal de Justiça do RJ, presidente do Fórum Permanente da Execução Penal. 24 Costa, A. M. Direito Penal, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2005, Parte Geral, vol. II, 7ª edição, p. 1103. 25 Expressão utilizada nos livros de Direito. Refere-se ao ato ilícito, contra as leis.

xxii


considerado responsável é a “culpabilidade”, como medida da gravidade

do

crime

e

para

a

imputação

da

pena.

A

imputabilidade seria “a capacidade psíquica de ser sujeito da reprovação de compreender o injusto do fato e de determinarse conforme esse entendimento”26. Para que possa ser atribuído ao

autor

“culpabilidade”

é

preciso

primeiro

que

seja

imputável. O conceito de inimputabilidade no caso do art. 26 é definido pela incapacidade psíquica de culpabilidade do autor do injusto penal.27 Passemos portanto à discussão sobre a inimputabilidade na infância e adolescência.

Em nosso Código Penal os menores

de 18 anos são penalmente inimputáveis e estão sujeitos à legislação específica28. O Código Penal francês de 1994 no art. 122-8 determina condições para que sejam aplicadas penas contra menores com mais de treze anos. O SGtB de 1998, § 19, prevê a isenção de responsabilidade a quem no momento da ação não tenha catorze anos. Nosso código de 1890, art. 27, § 1°, estabelecia a inimputabilidade até os nove anos de idade. Entre os nove anos e os 14, o juiz estaria incumbido de verificar

discernimento

infracional.

Somente

em

quando 1921

na esta

realização lei

foi

do

ato

revogada29,

substituindo-a pela que dispunha que qualquer menor de 14 anos, autor de fato punível, não seria submetido a qualquer ação penal. A Consolidação das Leis Penais, art. 27, § 1°, diz que “não são criminosos os menores de 14 anos” e de 14 a 18 anos deveriam ser submetidos a processo especial, podendo ser internados em escola de reforma, pelo prazo mínimo de três anos e máximo de sete anos. Será em 1940 e 1984 com o atual Código Penal que os menores de 18 anos se tornarão 26 27 28 29

Costa, A. M. - Direito Penal , p. 1120. Idem, ibidem, p.1123. Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Lei n° 4242 de 5 de janeiro de 1921, art. 16, § 3°.

xxiii


inimputáveis,

não

sendo

admitida

consideração em contrário30. O

Estatuto

específica

da

justificativa

ou

31

Criança

destinada

nenhuma

aos

e

do

Adolescente,

menores

de

18

legislação

anos,

prevê

a

“proteção integral à criança e ao adolescente”32, colocando a criança como prioridade absoluta, sendo dever da família, da sociedade

e

do

Estado,

protegê-la.

As

medidas

sócio-

educativas, que prevê o Estatuto, são aplicáveis apenas aos adolescentes que praticam atos infracionais33. O infrator com menos

de

12

anos

estará

sujeito

às

medidas

protetivas

estabelecidas pelo art. 101 do ECA. O

menor

infrator

de

12

a

18

anos,

após

seu

ato

infracional ter sido analisado quanto à gravidade, pode ser destinado a internação34 em local adequado. Tal medida não tem como

objetivo

a

punição,

como

é

o

sentido

da

pena

para

maiores de 18 anos, mas sim o de uma assistência educativa. As

unidades

de

internação

da

Funabem

e

Febens

foram

concebidas de acordo com o modelo desenvolvido por Winnicott35 para crianças órfãs em razão da Segunda Guerra Mundial. Após o

sistema

Doutrina

de

educacional

brasileiro

Segurança

Nacional,

ter estas

sido

afetado

unidades

pela

passam

a

adotar conceitos do militarismo, enfatizando a obediência, segurança e disciplina. Na segunda metade da década de 80, com

a

repúdio Federal

discussão ao de

regime 1988,

dos

direitos

militar, que

humanos, é

promulgada

objetivava

30

impulsionada

entre

a

pelo

Constituição

outras

coisas,

Hoje também na Constituição Federal, art. 228. Costa, A. – op. cit., p. 1125-6. 32 Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 1°. 33 Com idade entre 12 e 18 anos 34 Consiste em medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. ECA, art. 121. 35 Winnicott, D. W., Privação e Delinqüência, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2005, 4ª edição. 31

xxiv


assegurar ao cidadão que ele não seria vítima do Estado e dos Governos. Finalmente em 1990 é aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente, assegurando os direitos da criança e do adolescente. Passamos a compreender de forma diferenciada o ECA,

assim

conjuntura

como

a

Constituição,

histórica,

ou

seja,

após

analisá-los

tributários

de

um

em

sua

intenso

sentimento de rechaço ao regime militar. Desta forma, o ECA também

tinha

como

objetivo

colocar

limites

às

ações

dos

atores que circundam as crianças e adolescentes, como juízes, polícia, instituições e mesmo os próprios pais. Alguns

autores

do

Direito

discutem

36

a

questão

da

inimputabilidade na infância e adolescência. Heloísa Tavares, advogada e professora de Direito Penal, no texto Idade Penal (maioridade) na legislação brasileira desde a colonização até o código de 1969

após exposição da evolução do direito de

menores no Brasil, conclui dizendo: “... Os menores passaram por exaustivos sacrifícios, inclusive tendo que pagar com a própria

vida, até

alcançarem

a

garantia

de

seus direitos

fundamentais”.37 Francisco

de

Assis

Toledo,38

ressalta

que

o

fato

da

maioridade penal ser fixada em 18 anos não indica que essa idade seja o momento preciso que o sujeito possa discernir claramente entre o certo e o errado e se auto-determinar segundo sua compreensão. Considera, entretanto,

36

Silva, R. , 300 anos de construção das políticas públicas para crianças e adolescentes in Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, ano 8, n° 30 – abril-junho. 37 Tavares, H. G. M. Idade Penal (maioridade) na legislação brasileira desde a colonização até o código de 1969 (2004) in Boletim do IBCCRIM, São Paulo, Ameruso Artes Gráficas, ano 12, n° 144, grifo meu. 38 Foi ministro do Superior Tribunal de Justiça, Membro e coordenador das Comissões de Reforma Penal de 1984 e professor visitante da Universidade de Brasília.

xxv


um limite razoável de tolerância recomendado pelo Seminário Europeu de Assistência Social das Nações Unidas de 1949, em Paris, tanto que podemos afirmar ser o limite de 18 anos praticamente regra internacional, sendo adotado pela maioria dos países, ou com pequenas variações para mais ou para menos.39

No primeiro grifo observamos a visão romantizada dos menores que são classificados como exceções para o Direito. Viveram sacrifícios até obterem a garantia de seus direitos fundamentais.

Por

acaso

está

dentro

destes

direitos

excepcionais a possibilidade de matar ou ferir? Sabemos que não,

no

entanto,

para

tratarmos

de questão

tão complexa,

precisamos transpor tanto uma visão romântica da juventude quanto

a

posição

extrema:

de

rechaço,

rigidez

ou

simploriamente punitiva. A argumentação dos autores prevê que a

“não

responsabilização”

permitiria,

com

a

ajuda

nesta

educativa

etapa do

da

vida

Estado, uma

lhes

reforma

interna para que tivessem possibilidade de se ajustar. Para fundamentar

este

argumento

precisamos

entender

porque

o

adolescente teria esta possibilidade e um adulto não. Por que razão acredita-se que durante esta fase o menor tem mais chances

de

se

redimir

ou

não

cometer

o

mesmo

ato

posteriormente e outro indivíduo, maior de 18 anos, não teria esta possibilidade?

O que quer dizer o “limite razoável de

tolerância” que se refere o segundo artigo? Ter tolerância aos crimes nesta idade resultaria na diminuição ou extinção destes posteriormente? Percorrendo compreender

a

os

autores

relevância

do

do

Direito

artigo

27

na do

tentativa Código

de

Penal,

esbarramos em Karyna Sposato. A autora associa agressividade à

pobreza

maioridade

e

argumenta

penal”

que

teria

uma

como

39

suposta

“diminuição

conseqüência

apenas

da o

Toledo, F. A. - Princípios Básicos de Direito Penal, (1999), São Paulo, Editora Saraiva, 1999, 5ª edição, p.320, grifo meu.

xxvi


“incremento” do número de presos, em vez de se trabalhar no sentido contrário.

Parece-me que muitos dos dilemas nesta questão do jovem infrator reside nesse aspecto da responsabilidade e do objetivo da medida socioeducativa prevista pelo estatuto. (...) Em primeiro lugar, cabe uma reflexão mais apurada acerca do que significa responsabilizar diferentemente um jovem de 17 anos e outro de 18 anos por atos praticamente idênticos do ponto de vista da tipicidade penal. Trata-se, a meu ver, de uma opção de política criminal consistente, que ao estabelecer um limite para a imputação penal, oferece uma oportunidade diferenciada para a juventude delinqüente. O critério de 18 anos para a imputabilidade penal não se relaciona com a capacidade ou incapacidade de entendimento dos jovens abaixo dessa idade, e sim como uma opção acerca da conveniência em não submetê-los ao sistema reservado aos adultos como forma mais eficiente para prevenir essa modalidade de criminalidade.40

Neste texto, a autora aponta algumas justificativas para a não responsabilização dos adolescentes pelos seus atos. Cito alguns deles: 1) apenas 8,6% dos crimes praticados por adolescentes serem contra a vida; 2) a prisão ser um dos maiores

mecanismos

de

propulsão

da

criminalidade,

reproduzindo e aumentando a violência. 3) remeter os 10% de adolescentes infratores ao sistema penitenciário implicar no aumento da lista de presos que aguardam vaga nos presídios.41 Toda sua argumentação tem em vista o que estabelece o “Estatuto da Criança e do Adolescente”, apontando que o mesmo Sposato, K. - O jovem: conflitos com a lei. A lei: conflitos com a prática (2000) in Revista Brasileira e Ciências Criminais (Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, ano 8, n. 30, abril-junho, p. 110, grifo meu. 41 Idem, ibidem. 40

xxvii


ainda não pôde ser efetivamente colocado em prática. A autora discorda da prisão como medida socioeducativa, apontando que países que optaram por uma política de aprisionamento não só não resolveram o problema da violência, como a ampliaram. Esta

argumentação

discorda

da

merece

medida

nossa

aplicada

atenção,

àqueles

pois

que

a

autora

cometem

atos

infracionais, independente se são adultos ou adolescentes. Sua reflexão não está relacionada à categoria adolescente e na especificidade deste momento da vida. Seu argumento sobre os adolescentes infratores visa que eles possam ser poupados, pelo menos até a idade de 18 anos, deste modelo carcerário42, modelo este que defende não ser o mais adequado como pena, produtor inclusive, de aumento da criminalidade. Conclui dizendo:

Fica demonstrado que, muitas vezes no contexto da infração, o Estado terá a possibilidade de suprir e corrigir suas próprias falhas e omissões, do contrário estaremos e por que não dizer, estamos, diante da criminalização da pobreza, da prisionização e da formação de uma identidade criminosa nos jovens brasileiros.43

Esta jurídico,

argumentação, se

apóia

na

bastante

corriqueira

convicção

de

que

no o

meio

sistema

penitenciário não “reforma” ninguém e, na maioria das vezes, acaba por reforçar o sujeito no lugar de criminoso. Estas questões nos lançam a pergunta do porquê do crime. Terá o homem essencialmente

tendências ao crime? Lombroso vê o homem como mau

e

pronto

para

42

a

delinqüência, sendo a

Grifo meu. Sposato, K. - O jovem: conflitos com a lei. A lei: conflitos com a prática , op. cit.

43

xxviii


criança

um

criminoso.44

pequeno

Rousseau

“atribuía

à

sociedade a responsabilidade pela origem do mal” traçando em seu ensaio pedagógico “Emílio”, as condutas a serem seguidas para que a criança viesse a ser um adulto bom. Tal pensamento parte

da

premissa

fundamental

de

que

o

homem

é

um

ser

“naturalmente” bom. Este filósofo enfatizava que a educação era o elemento primordial para a prevenção dos crimes. Seus princípios sobre liberdade e igualdade política influenciaram o

regime

republicano

e

as

teorias

políticas do idealismo

alemão45 e seu pensamento de valorizar os sentimentos, - a parte mais “natural”46 do homem -,

deixando o intelecto em

segundo plano, vigora até os dias atuais sob a forma de um movimento romântico.47 E a finalidade da pena, qual seria? Para que o sujeito simplesmente pague pelo seu ato, não visando nenhum outro objetivo? Kant, filósofo do séc. XVIII, vê a obediência às leis como um princípio fundamental, única possibilidade de que todos os homens possam gozar de liberdade. Considera o agente de uma ação contrária à lei imputável, caso tenha tido conhecimento prévio daquela lei. Resume a lei universal de direito como: “age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade de todos, segundo uma lei universal”. Para que o Direito possa ser efetivo, não pode estar separado da faculdade de obrigar, de fazer valer seus preceitos. A pena jurídica deve ser aplicada contra

o

autor

delinqüiu”,

do

ato

que

a

injusto lei

“pela

penal

44

deve

única ser

razão um

de

que

imperativo

Garcia, J. A. – Psicopatologia Forense (1979), Rio de Janeiro, Editora Forense, 1979, 3ª edição. 45 Século XIX. 46 Ligada à natureza. 47 Rousseau, J. J., Do Contrato Social – Ensaio sobre a Origem das Línguas, 1999 in Coleção Os Pensadores, vol. I, São Paulo, Editora Nova Cultural.

xxix


categórico. Assim é o direito de talião, o mal que faço a outro, devo sofrer em mim mesmo.48 O imperativo Categórico de Kant é associado por Freud ao herdeiro

do

repressora

Complexo

de

nosso

Édipo49,

de

psiquismo,

o

cuja

supereu, “função

instância

consiste

em

manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las,

exercendo

sua

trabalhada

por

em

Freud

censura”.50 1913

quando

Essa

concepção

explica

a

origem

foi da

civilização a partir do assassinato do pai e a posterior instauração de sua lei, conseqüência do remorso e da culpa por sua morte. No texto Totem e Tabu do

nascimento

da

Freud constrói um mito que trata

civilização,

momento

verdadeiramente

inumano, onde a vontade do mais forte, de um pai tirânico, sempre preponderava sobre a do mais fraco. Esse pai primitivo “guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos na medida que crescem”.51 Impunha aos filhos uma lei sem estar submetido a ela. Os filhos banidos se revoltam e matam o pai. Curiosamente este ato não permite aos filhos o acesso ao gozo.52

“O

assassinato,

obstáculo nem

por

sendo isso

exterminado o

gozo

sob

deixa

a de

forma

do

permanecer

interditado, e ainda mais, essa interdição é reforçada”.53 Apenas

após

a

construção

das

leis

que

regem

a

vida

em

sociedade é permitido a todos o acesso ao gozo, desde que este não avance sobre os direitos dos outros, estabelecido pelas leis. A existência da lei se faz necessária porque 48

Kant, E. - Doutrina do Direito, São Paulo, Editora Ícone, 1993. Freud, S. - O Problema econômico do masoquismo (1924) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX, 1990, p. 209. 50 Freud, S. - O Mal Estar na Civilização, (1930), in ESB, vol. XXI, p.160. 51 Idem, Totem e Tabu (1913[1912]), ESB, vol. XIII, p. 169 52 Sobre o conceito de gozo remeto o leitor às págs. 42 a 45. 53 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, a Ética da Psicanálise (1959-60), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p. 216. O grifo é meu. 49

xxx


“apenas proíbe os homens de fazer aquilo a que seus instintos os inclinam”.54 interligados.

Desta forma, gozo e lei estão intimamente A

lei

impõe

limite

ao

gozo

e

aponta

que

transgredir é gozar.55 Freud é brilhante ao observar que “não há necessidade de se proibir algo que ninguém deseja fazer e uma coisa que é proibida com a maior ênfase deve ser algo que é desejado”.56 Esta citação nos permite dizer que a propensão ao crime, a transgressão, não é exclusiva de personalidades patológicas,57 de

camadas

classificação.

sociais O

desejo

inferiores de

ou

transgredir

qualquer existe

outra em

todo

sujeito. Tal observação é de importância fundamental em nosso estudo pois vários autores tentaram e ainda tentam encontrar a “fórmula” da criminalidade. Não desconhecemos por exemplo, o medo que os “loucos” provocam nas pessoas, particularmente por serem associados a pessoas agressivas e violentas. Entendemos, portanto, porque Freud em O Mal estar na Civilização diz que: “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo”.58 Porém, a existência da justiça, ou das leis, por si só, não implica que os atos transgressores do homem serão extirpados, mas sua existência se faz necessária justamente porque se reconhece

nele

este

desejo,

incompatível

com

a

vida

em

sociedade. Ainda, para acrescentar ao nosso estudo, Freud alerta em uma nota de rodapé que:

54

Freud, S. - Totem e Tabu (1913[1912]), op. cit., p. 150. Lacan, J. - O Seminário, livro 7. Op. cit., p. 217, grifo meu. 56 Freud, S. - Totem e Tabu (1913[1912]), op. cit., p. 91. 57 Nelson Hungria em Comentários ao Código Penal, cita algumas destas personalidades que tem mais propensão ao crime que outras. Op. cit. 58 Freud, S. - O Mal Estar na Civilização (1930), op. cit., p.116. 55

xxxi


É o ‘pai indevidamente fraco e indulgente’ que constitui a causa de as crianças formarem um superego excessivamente severo, porque, sob a impressão do amor que recebem, não possuem outro escoadouro para sua agressividade que não seja voltá-la para dentro.59

Vemos então, Freud nos mostrar que o permissivo também não é uma saída, e mais ainda: torna propensa a criação de um supereu ainda mais feroz. Voltaremos a estas questões no capítulo final de nosso trabalho.

59

Idem, ibidem. p.154.

xxxii


2. O SUJEITO DA PSICANÁLISE O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro eu? Acaso a descoberta de Freud representa a confirmação, no nível da experiência psicológica, do maniqueísmo? Nenhuma confusão é possível, com efeito: a investigação de Freud não nos introduziu a casos mais ou menos curiosos de uma segunda personalidade.60

2.1 – O SURGIMENTO DO SUJEITO NA HISTÓRIA

Para chegarmos ao conceito de responsabilidade para a psicanálise, precisamos, em princípio, saber quem é este que pensa,

age,

sofre,

se

emociona,

sonha,

transgride.

A

categoria de sujeito61 é trabalhada de forma diversa pelas diferentes disciplinas – Filosofia, Medicina, Psicologia que estudam e discutem o comportamento humano. A forma como cada

uma

concebe

e

define

o

sujeito

implicará,

conseqüentemente, em diferentes posturas e interpretações em relação aos atos daquele que age. A

teoria

do

sujeito

remonta

ao

século

XVII

com

62

Descartes . O século XVI foi vivido como um marco importante na história, onde as certezas, os alicerces e valores da Idade Média foram colocados em xeque. Pensadores como Agripa 60 Lacan, J. - A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 257-8. 61 Maior desenvolvimento sobre esse tema pode ser encontrado em Elia, L., O conceito de sujeito, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004. 62 Isso não quer dizer que os filósofos daquela época já falavam em “sujeito”. Esta designação encontramos em Lacan. Apesar de Freud também não a utilizar, não quer dizer que não trabalhava com esta categoria.

xxxiii


de Nettesheim, Francisco Sanchez e Michel de Montaigne passam a discutir a incerteza das ciências, o valor da dúvida como método

de

investigação

sustentação

racional.

e

o

Estas

fanatismo questões

das

opiniões

propiciarão

sem

terreno

profícuo para o pensamento moderno que caracterizará o século XVII. Será Descartes que,

utilizando a dúvida como recurso

metodológico, inaugurará o racionalismo moderno, ou seja, a ciência moderna.63 Toda

esta

mudança

não

ocorreu

de

forma

tranqüila.

Descartes elabora um tratado sobre a física o Traité du Monde et de la Lumière (Tratado do Mundo e da Luz), quando recebe a notícia de que Galileu havia sido condenado pela Igreja por sua tese sobre o movimento da Terra. Com prudência, desiste de

publicar

“filósofo

sua

obra

mascarado”,

e

passa

passando

a a

se

apresentar

escrever

de

como

um

forma que o

sentido de suas palavras pudessem ter várias interpretações, prevenindo-se desta forma, de um ataque por parte da Igreja. Em 1637, desiste da idéia de nada mais publicar e edita três

tratados

em

francês,

inovando

portanto,

já que

todo

tratado científico era escrito em latim até então. Sete anos depois,

época

em

que

seu

nome

era

reconhecido

internacionalmente, publica os Princípios da Filosofia, tendo como objetivo alicerçar as certezas científicas. Sua tese era a de que a ciência não poderia basear suas leis na metafísica ou

em

hipóteses

sem

sustentação

teórica.

Passa

então

a

rejeitar tudo que é da ordem da intuição para só aceitar o que

é

da

ordem

da

razão.

Tudo

o

que

encontramos

pelos

sentidos deveria ser descartado, pois estes são enganadores. Passa a colocar em dúvida tudo ao seu redor, o que sente, vê e

ouve.

Ao

duvidar

da

existência

63

Descartes – Descartes – Vida e Obra Paulo, Editora Nova Cultural, (1999).

xxxiv

in

de

tudo,

chega

a

Coleção Os Pensadores, São

uma


certeza. As dúvidas só existem porque existe o pensamento, e daí retira sua máxima “se duvido, penso”, pois só se duvida, se a dúvida puder ser pensada. Assim Descartes retira da mais completa incerteza, uma certeza

primeira:

“penso”.

Apesar

desta

certeza

estar

relacionada à subjetividade, não garantindo nada à respeito da

realidade

externa,

ela,

como

um

embrião,

permite

a

inauguração de uma cadeia de certezas a partir dela. Ora se o pensamento existe e posso afirmar que estou pensando, também posso afirmar minha existência. Esta certeza levará ao cogito cartesiano: “penso, logo sou” (cogito ergo sum). A certeza sobre

a

atividade

do

pensamento

leva,

para

Descartes,

à

conclusão da existência: “se deixasse de pensar, deixaria totalmente de existir”.64 A “atividade de pensamento” era o que deveria ser considerado de valor fundamental e não o que se pensa, pois o que pensamos, para ele, encontrava-se nas armadilhas da percepção, ou seja, da ilusão. Para Descartes o sujeito não existe fora do pensamento. Mas,

quem

pode

garantir

que

a

atividade

de

pensar

é

a

atividade de ser? Para Descartes, a resposta é Deus. “Só existindo

realmente

Deus

(causa)

pode-se

explicar

a

existência de um ser finito e imperfeito – o eu pensante – porém dotado da idéia de infinito e de perfeição (efeito)”.65 A idéia de Deus é a única de que não se poderia duvidar. Naquela época a Igreja, instituição que representava o poder divino, com mãos de ferro, bania qualquer explicação que não tivesse sua origem em Deus. Galileu, outro filósofo que contestava a explicação dos fenômenos da natureza pela Igreja,

ao

descobrir

manchas

no

Sol,

através

do

aperfeiçoamento do primeiro telescópio inventado, é duramente 64 65

Descartes – Descartes – Vida e Obra, op. cit., p.21. Idem, ibidem, p.23.

xxxv


criticado

e

descobertas

combatido a

negação

pela dos

Igreja,

textos

que

bíblicos

via que

em

suas

falavam da

perfeição dos céus e dos astros. Quando, em 1623 no Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas, rechaça as idéias de Ptolomeu sobre

o

fato

tribunal

do

da

Terra

Santo

ser

Ofício

estática,

em

junho

é

de

condenado 1633.

É

por

um

coagido

a

renunciar às suas teses ou então ser queimado por heresia, escolhendo viver.66 A

maior

contribuição

de

Galileu

está

relacionada

ao

método científico, a observação dos fenômenos, tal como se apresentam, religioso.

descartando Com

as

qualquer

demonstrações

pressuposto que

metafísico

revela

no

campo

ou da

física “põe de lado o finalismo aristotélico e escolástico, segundo o qual tudo aquilo que ocorre na natureza ocorre para cumprir

desígnios

superiores;

e

mostra

que

a

natureza

é

fundamentalmente um conjunto de fenômenos mecânicos, tal como afirmara

Demócrito

natureza,

segundo

na

Antiguidade”.67

Galileu,

podem

ser

Os

fenômenos

explicados

da pela

matemática. As observações destes pensadores, Descartes no campo da filosofia e Galileu no campo da física-matemática, propiciam que, pela primeira vez na história, a natureza possa ser pensada

de

uma

forma

diferente.

uma

ruptura,

um

distanciamento, entre sujeito e objeto. Até esse momento, teorizar era olhar para as coisas e revelá-las como marcas de Deus. A relação entre o sujeito que olha e o objeto que é olhado era direta, sem a marca subjetiva daquele que olha. A partir daqui temos uma nova forma de se pensar a ciência, o início da ciência moderna.

66

Galileu – Galileu – Vida e Obra in Editora Nova Cultural, 1999. 67 Idem, ibidem, p. 9.

Coleção Os Pensadores, São Paulo,

xxxvi


Lacan se refere à saída encontrada por Descartes para não entrar em choque com os valores da Igreja como “um dos mais extraordinários lances de esgrima que jamais foi trazido à história do espírito”.68 Ao separar o que é da ordem do divino, chamado por ele “verdades eternas”, do que é da ordem do humano, revela que não há como existir competição entre dois eixos completamente diferentes, pois a Deus cabem as verdades eternas e aos homens as verdades imperfeitas. Para o nascimento da ciência, Descartes precisou separar os dois campos: o de Deus, relacionado ao infinito, a tudo o que é perfeito, e o dos homens, que relaciona-se com tudo que é de segunda ordem, imperfeito. Portanto, seguindo seu pensamento, existindo um Deus perfeito, que sabe tudo, cabe aos homens pesquisarem o que a eles é possível saber, embora sabendo que este saber é finito. No século XVII tanto sujeito quanto objeto podem ser subjetivados, pensados, analisados. Passamos a ter o símbolo matemático, o discurso, a letra, a linguagem entre sujeito e objeto,

entre

o

sujeito

e

a

natureza.

Desta

forma

compreendemos a frase de Lacan em A Ciência e a Verdade “O sujeito sobre o qual a psicanálise opera, é o sujeito da ciência”69, pois só podemos pensar o sujeito da psicanálise a partir do aparecimento da ciência moderna, deste momento em que o sujeito só existe a partir do que ele pensa, a partir de Descartes. Portanto, não poderíamos pensar na psicanálise ou na teoria do sujeito na época de Sócrates ou na Idade Média. Dois

séculos

inconsciente, 68

Lacan, J. psicanálise 69 Lacan, J. Jorge Zahar

mais

revela

tarde,

outro

Freud,

cogito,

com

onde

a o

descoberta pensamento

do não

- O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da (1964), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p.213. A Ciência e a Verdade (1960) in Escritos, Rio de Janeiro, Editor, 1998.

xxxvii


garante nada a respeito do ser, pelo contrário, o pensar gera dúvida. Em A Interpretação dos Sonhos

percebe que os sonhos

são pensamentos e que, portanto, existem pensamentos que são estranhos à consciência de si, como também o são o chiste e os

atos

falhos.

Não

existem

pensamentos

que

são

inconscientes, mas estes são investidos pulsionalmente, fazem pressão

em

nosso

psiquismo,

irrompendo

alheios

à

nossa

vontade. Freud se dá conta também que o pensamento não é controlável

e

é

regido

inconsciente70.

pelo

Começa

a

se

delinear um sujeito desconhecido, que não se reconhece em seu sonho,

em

seu

ato

falho,

em

seu

sintoma,

porém,

estes

pensamentos inconscientes fazem parte do sujeito, o pressiona a cometer atos contra a sua vontade, faz com que acorde angustiado após um sonho, o impele a repetir incessantemente o mesmo ato que repele. Até Freud, o psiquismo, o “eu”, equivalia-se

à

consciência.

Porém,

com

a

descoberta

inconsciente, descobre-se que o “eu é um outro”.

71

do

“(...)

todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa”.72 Para a psicanálise, é exatamente aqui onde o sujeito se localiza, neste que ele não reconhece, mas que fala e age por ele.73 “Quanto

mais

concepção

procuramos

metapsicológica

encontrar da

vida

70

nosso

caminho

mental,

mais

para

uma

devemos

Não é a toa que numa análise se trabalha com a associação livre, ou seja, pede-se ao analisante que diga o que lhe vier à cabeça, independente da censura de que o que pensou é importante ou não. 71 Lacan, J. O Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954 -1955), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p.14. 72 Freud, O Inconsciente (1915), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIV, 1990, p.195. 73 O grifo é meu.

xxxviii


aprender a nos emancipar da importância do sistema de ‘ser consciente’”.74 Esta concepção não é a mesma compartilhada pelas outras disciplinas que estudam o sujeito, podemos dizer até mesmo que são incompatíveis, já que para a Psicanálise não é no pensamento que está o sujeito, pelo contrário, quando ele pensa, está fora de seu ser. Lacan aponta para a existência de dois lugares diferentes: o lugar do “penso” e o lugar do “sou”. Temos então o sujeito de um lado e pensamento de outro,

ou

o

consciência, estamos

sujeito o eu,

do

do

produzindo

inconsciente

outro.

Quando

significações,

de

um

lado

e

pensamos sobre

estamos

no

a

algo,

campo

do

sentido. Porém o sentido, o significante, é aquilo mesmo que eclipsa

o

sujeito,

irremediavelmente, afirmamos

algo

o

pois

congela

sobre

em

nossa

contigencialmente um

significado.

existência,

como

e

Quando

“eu

sou

toxicômano”, promove-se um apagamento, um “não querer saber” sobre aquilo que o causa. O “eu sou” implica em um “não penso”, pois fecha a questão sobre o que o determina. Lacan chama a esta operação, onde o sujeito desaparece sob um significante, de alienação.75 Esta operação merecerá nossa atenção especial no presente trabalho, pois ouvimos com freqüência adictos,

sujeitos deprimidos,

justificarem órfãos,

seus

etc.

atos

Esta

porque

forma

são

de

se

representar os impelem a não se responsabilizarem por seus atos. Voltaremos a discutir esta operação mais adiante.76 Lacan

aponta

que

se

foi

Descartes

quem

apresentou

o

sujeito ao mundo, foi Freud quem descobriu que o sujeito não

74 75 76

Idem, ibidem, p. 221. Lacan, J. - O Seminário, livro 11, op. cit., p. 200. Págs. 51 e 52 adiante.

xxxix


está na consciência de si e sim no inconsciente.77 Se para Descartes Psicanálise

o

sujeito o

sujeito

existe é

sem

pelo

pensamento,

substância,

não

para

pode

a ser

coisificado. Freud anuncia o sujeito em sua célebre frase Wo es war, soll Ich werden78, traduzida por Lacan “Lá onde o Isso estava, lá, como sujeito, devo [eu] advir”.79 Ali, onde para o sujeito existe o puro desconhecimento, a surpresa, o espanto, Freud

encontra

constituído

o

por

sujeito

do

pensamentos

inconsciente. que

foram

Reconhece-o

recusados

pela

consciência. Esta foi a inigualável e devastadora descoberta de Freud no campo do conhecimento do homem: o homem não tem controle sobre seus pensamentos, como afirmou Descartes. O próprio Freud propõe estar na linha daqueles que produziram uma quebra no chamado orgulho humano, se alinhando ao lado de Copérnico e Darwin.80 Copérnico quando descobriu que a Terra não era o centro do universo e Darwin quando encontrou no homem uma ascendência animal. O golpe de Freud refere-se a descoberta de que o homem não é senhor de sua própria mente. Há algo que escapa à representação, à consciência, ao mesmo tempo

em

que

clama

por

ela.

O

inconsciente,

este

desconhecido, é regido por suas próprias leis e estas não dependem e nem se subordinam à vontade humana. Encontramos um estranho entre o ato de pensar e a ação propriamente dita. Esta

concepção

é

que

norteará

a

clínica

ou

a

escuta

do

sujeito, pois se fundamenta na distinção entre o eu e o sujeito.

77

Idem, ibidem, p. 47. Freud, S. - Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise Conferência XXXI (1933[1932]), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XXII, 1990. 79 Lacan, J. - A Ciência e a Verdade, op. cit., p. 878. 80 Freud, S. - Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVII, 1990. 78

xl


O

sujeito

freudiano

não

tem

relação

com

qualquer

concepção do sujeito tomada pela psicologia, enfatiza Lacan em

1960

para

sua

platéia,

a

maior

parte

composta

por

filósofos. Não se trata de maneira alguma de um sujeito

uno,

de

pela

um

sujeito

filosofia,

e

do

conhecimento,

menos

ainda

tal

aquele

como que

elaborado

apareceria

pelas

experiências ditas profundas, tais como aquelas obtidas pelo uso

de

alucinógenos,

ou

de

experiências

místicas,

de

meditação transcendental, ou qualquer concepção do gênero. Entre

o

hipnotismo,

para

levar

a

histérica

ao

transe

e

acessar às ditas profundezas, Freud prefere o discurso, a fala

da

histérica.81

Não

é

preciso

procurar

pelo

sujeito

freudiano, ele pode ser apreendido no discurso, na fala do sujeito.

2.2 - A REALIDADE É PSÍQUICA Que uma coisa exista realmente ou não, pouco importa. Ela pode perfeitamente existir no sentido pleno do termo mesmo que não exista realmente. Toda existência tem, por definição, algo de tão improvável que, com efeito, a gente fica perpetuamente se interrogando sobre sua realidade.82

81

Lacan, J. - Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano (1960) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 810. 82 Lacan, J. - O Seminário, livro 2, op. cit., p. 288.

xli


Comumente, nos referimos a ‘realidade’ como aquilo que acontece em nossas vidas efetivamente.83 Acreditamos que tal ‘realidade’ é compartilhada por todos de forma única, sem equívocos.

Porém,

não

raro,

percebemos

que

aquilo

que

pensávamos ser de opinião geral, é colocado em discussão por outras pessoas e nos damos conta de que nossas certezas são mancas. Freud,

escutando

suas

histéricas,

descobre

que

a

realidade não é a mesma para cada sujeito. Chega a esta conclusão ao descobrir que as cenas infantis de sedução que ouvia de seus pacientes neuróticos, até então consideradas por ele como fatos que haviam acontecido na infância daqueles sujeitos,84 não passavam de fantasias e não tinham qualquer relação com a realidade externa.85 A esta nova concepção da realidade chamou de realidade psíquica. psíquica”.

“O 86

“As

inconsciente

é

a

fantasias

possuem

verdadeira realidade

realidade

psíquica,

em

contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva”.87 Freud

faz

a

desconcertante

descoberta

que

“no

inconsciente não há indicações de realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a imaginação que

83

No dicionário temos a seguinte definição para realidade: verdade; qualidade do que é real; o que existe efetivamente. (grifo meu) 84 No Rascunho K (vol. I, p. 307) Freud demonstra que as precondições da neurose estão vinculadas a sexualidade (enquanto traumática) e na Carta 46 (vol. I, p. 320) diz ocorrer na infância a cena traumática que acarreta a neurose. 85 Freud, S. - Um estudo autobiográfico (1925[1924]) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol XX, p. 48. 86 Idem, A Interpretação dos Sonhos (1900-01) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. V, p. 554. 87 Freud, S. - Os caminhos da formação dos sintomas – “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” (1915-1917), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVI, p. 430.

xlii


está catexizada com afeto”.88 Suas histéricas portanto, não objetivavam com seus relatos de sedução “mentir” para Freud, porém

não

lhes

era

possível

discernir

verdade

e fantasia

porque ambas haviam sido investidas com afeto. Este conceito, realidade psíquica, fundamental para o desenvolvimento da psicanálise, não é o mesmo que encontramos por exemplo, na filosofia. Após Freud vemos surgir um novo conceito

de

exterior

realidade,

se

modifica

onde

toda

a

noção

de

No

texto

completamente.

interior Sobre

e o

Narcisismo de 1914 faz uma revelação que até hoje produz inquietação,

discordância

parafrênicos

(psicóticos)

realidade,

89

e

mal-entendidos. perdem

sua

Não

relação

os

com

a

mas esta perda é constitutiva, está para todo

sujeito humano.90 O que nos permite a diferenciação entre as estruturas

clínicas

(neurose,

psicose

e

perversão)

é

a

modalidade de investimento libidinal. Na neurose ocorre a substituição (objetos

da

realidade

(objetos

reais)

pela

fantasia

imaginários fornecidos pela memória).

(...) também na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade.91

88

Idem, Carta 69 - Extratos dos documentos dirigidos a Fliess, 1950 (1892-1899) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. I, p. 358. 89 Maiores informações sobre a diferença entre a perda da realidade na neurose e psicose podem ser encontradas nos textos freudianos “Sobre o Narcisismo: uma Introdução” e “A perda da realidade na neurose e psicose”. 90 Idem, Sobre o Narcisismo: uma Introdução (1914) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIV, p. 90. 91 Freud, S. - A perda da realidade na neurose e na psicose (1924), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX.

xliii


Na psicose não há substituição da realidade por objetos na

esfera

da

fantasia,

restando

a

esses

sujeitos

o

investimento libidinal em seu próprio eu. Freud menciona que, quando

ocorre

alguma

substituição

nestes

casos,

constitui

“parte de uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a libido de volta a objetos”.92 O

interessante

psíquica

também

a

observarmos

não

podemos

é

que

afirmar

esta

ser

realidade

“subjetiva”,

“interna”, como se poderia conceber corriqueiramente. Interno e externo se mesclam por já não podermos diferenciar o que é de dentro daquilo que é de fora. Tal situação é consequência da clivagem daquilo que foi vivido pelo sujeito em sua tenra infância como hostil (da ordem do trauma), sem possibilidade de

simbolização

e

portanto

afastado,

daquilo

que

é

considerado interno. A noção de trauma, devemos compreender como a invasão de uma quantidade de excitação excessiva da qual o aparelho psíquico não tem recursos para se defender de forma eficiente. Sobre

o

pano

de

fundo

do

desamparo

e

do

próximo

(nebenmensch),93 se inscreve no ser falante uma marca, a marca mnêmica, a “vorstellung”, que instaura uma nova realidade, a realidade psíquica. Não menos material do que outras, esta nova

realidade

porém,

não

se reduz a critérios meramente

utilitaristas ou empíricos. Não se trata da marca mnêmica de um objeto da realidade, como pensado pela filosofia; mas esta marca, em si mesma, é objeto de desejo. Vejamos

que

marcas

são

estas

e

como

o

psiquismo

se

constitui a partir delas.

92

Idem, ibidem. Idem, Projeto para uma Psicologia Científica (1895) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol I., p. 448. 93

xliv


2.3 - O SURGIMENTO DO SUJEITO

O homem nasce em uma situação de desamparo fundamental. Sem a “ação específica”94 de um outro que o provê de cuidados, o bebê humano não tem como sobreviver. Ao nascer, o bebê é assaltado

com

uma

quantidade

de

tensão

desprazerosa

proveniente do interior de seu corpo (fome, frio, dor) que, elevada a um grau insuportável, o impele a uma tentativa de descarga (o choro, o grito). Esta solução é proveniente da função primária do aparelho psíquico que é a descarga de tensão, ou seja, manter a tensão dentro do organismo o mais baixo

possível,

prazer.

A

ação

interpretar

lei de

como

nomeada um

uma

por

Freud

como

ao

ouvir

aquele

outro,

mensagem,

95

ou

seja,

princípio grito

do e

atribuindo

o um

significado àquele grito é o que permite ao ser a entrada no mundo simbólico. A partir deste momento, o segundo grito do bebê já tem endereçamento pois houve a incidência de uma interpretação. A tradução que vem do outro como “Você tem fome”, permite ao bebê se reconhecer como aquele que tem fome. Freud salienta a importância que essa via de descarga adquire, “a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”.96 A

noção

freudiana

de

“desamparo

fundamental”

tem

importância primordial na obra de Freud, já que representa a construção de Lacan da mãe como Outro simbólico primordial. 94

Expressão Científica, 95 A criança 96 Freud, S.

utilizada por Freud no texto Projeto para uma Psicologia vol. I. “está com fome”, “está com cólica”, “está com frio”. - Projeto para uma Psicologia Científica, p. 431.

xlv


Neste

momento

mítico,

guiado

pelo

desamparo

que

o

constitui e imerso em um aumento de tensão insuportável no interior

de

seu

interpretado

pelo

momento,

o

que

organismo, outro

não

o

como

passava

grito

do

demanda,

de

e

descarga

”infans”

será

partir

deste

a

motora,

puro

ato

reflexo, sem nenhuma significação, será capturado pelo outro e

transformado

em

apelo.

O

que

era

da

ordem

da

pura

necessidade e que poderíamos remeter a uma relação “natural97” do

homem,

fica

irremediavelmente

perdido

e o pequeno ser

passa a habitar o simbólico. A relação do sujeito com aquele que o provê de cuidados98 não porta nenhuma característica instintual desviante.

como Neste

na

vida

animal,

sentido,

a

por

fala

isso tenta

o

seu

caráter

preencher

uma

distância entre o sujeito e o outro, tenta fazer suplência a uma relação instintual, natural, que não existe. Após a ação específica do Outro, o interior do organismo do pequeno ser retorna momentaneamente a um equilíbrio. O bebê vivencia sua primeira experiência de satisfação, que se inscreverá no seu psiquismo através de uma marca mnêmica. A satisfação obtida naquele encontro porém, fica perdida para sempre. O psiquismo poderá reativar a marca mnêmica quando um novo estado de urgência ou desejo acontecer.

O estado de desejo resulta numa atração positiva para o objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a atração de desejo primária e a defesa [repúdio] primária.99

97

No sentido do que ocorre na natureza, ou o instinto que rege a vida animal. 98 Denominado por Lacan como o Outro, escrito com letra maiúscula porque é aquele que introduz o sujeito na linguagem. 99 Freud, S. - Projeto para uma Psicologia Científica, p. 436.

xlvi


O interessante a ser observado é que esta marca só é possível porque, anteriormente a ela, existiu uma outra que apontava para a dor, para uma situação experimentada pelo sujeito como traumática (desamparo). O outro portanto, não é só um objeto que gerou prazer ao sujeito, também representa um objeto hostil, estranho ao sujeito,

não

perceptuais

assimilável. se

dividem

“Em

conseqüência,

em

uma

os

parte

complexos

constante

e

incompreendida — a coisa100 — e outra variável, compreensível — os atributos ou movimentos da coisa”.101 A invasão de excitação proveniente da parte hostil do próximo, não assimilável, é, como já foi descrito, definida por

Freud

como

trauma.

Esta

experiência

deixa

uma

marca

simbólica que Freud chamou de representação intolerável.102 Esta

representação

(recalque)

103

intolerável

é

expulsa

da

consciência

e irá compor o centro do qual o inconsciente

passará a se ordenar. Passamos a ter a marca do objeto de desejo,104 objeto este que será sempre buscado, sem jamais ser encontrado, e a construção do inconsciente, onde aquilo que foi experimentado como

desprazer,

dor,

da

ordem

100

do

trauma,

é

expulso

do

Coisa é a tradução em português para o termo alemão das Ding, utilizado por Lacan em seus textos e de valor fundamental dentro da teoria psicanalítica. 101 Idem, ibidem, p. 513. 102 Nos textos originais em alemão Freud utiliza as palavras “Unvertraeglich” (incompatível) e “Unertraeglich” (intolerável). Aqui preferimos a tradução como “intolerável”. 103 Devido aos problemas originados pela tradução da Edição Standard Brasileira para os termos verdrängung e trieb por “repressão” e “instinto”, decidimos utilizar automaticamente as traduções “recalque” e “pulsão” respectivamente. 104 Freud chama o objeto de desejo de “objeto perdido” e Lacan de “objeto causa de desejo”.

xlvii


recalcado.105

psiquismo,

Quando

o

organismo

não

consegue

defender-se ou livrar-se de uma determinada quantidade de excitação, “transforma-se em trauma psíquico toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora”.106 O fato deste Outro poder responder ou não aos apelos do sujeito

introduz

a

presença-ausência

do

Outro

como

fundamental e promove uma nova “necessidade”, tão exigente e imperiosa quanto a necessidade biológica: a demanda. Eis o efeito do significante sobre a necessidade. Aprisionado pela linguagem, o sujeito tem a necessidade transformada por este Outro, o que acarreta na perda da especificidade do objeto. A ação específica deste outro exterior ao sujeito produz uma marca que funda o sujeito como demandante, aquele a quem falta algo e esse outro, será aquele a quem o sujeito passará a dirigir seus apelos (Outro). Quando novamente se instalar uma situação de desprazer, o pequeno ser já terá em seu psiquismo a memória do traço que outrora o aliviou em sua tensão. memória,

Contudo, a

apenas

alucinação,

o

investimento

não

é

em

suficiente

um para

traço

de

suprir

a

necessidade do corpo vivo, algo mais é necessário. Freud em 1920 vai dizer que o aparelho psíquico não é dominado

pelo

princípio

de

prazer,

pois

frente

“às

dificuldades do mundo externo ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso”.107 A dominação absoluta do princípio do prazer levaria à

extinção absoluta do sujeito,

porque a modalidade de satisfação pulsional do princípio do 105

O recalcamento acontece na estrutura neurótica. Nas outras estruturas (psicose e perversão) o sujeito se utiliza de outros recursos para lidar com esta representação intolerável. Neste trabalho privilegiaremos o que acontece na neurose. 106 Freud, S. - Esboços para a Comunicação Preliminar de 1893 (1892) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol I, p. 222. 107 Idem, Mais Além do Princípio de Prazer (1920) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVIII, p. 20.

xlviii


prazer

é

a

alucinação

de

desejo,

não

sendo

necessário

a

presença real do objeto para a satisfação. “(...) o objeto não

é

real,

mas

imaginária”.108 realidade,

É

“sob

autopreservação substituído

está

aqui a do

pelo

presente

que

vai

aparecer

influência

dos

ego

o

[eu],

princípio

apenas

de

como

o

instintos princípio

princípio

de

[pulsão]

de

de

realidade”,109

idéia

prazer

é

obrigando

o

sujeito a buscar satisfação fora. Freud porém nos alerta que:

Contudo, o princípio de prazer persiste por longo tempo como o método de funcionamento empregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de ‘educar’, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego, com freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo.110

O sujeito precisa então buscar outros caminhos que o levem à satisfação. Por isso é que o Princípio de Realidade advém do fracasso do Princípio do Prazer, sem no entanto substituí-lo.

Essa

busca

que

o

Princípio

da

Realidade

introduz não se resume apenas em encontrar a representação na realidade e sim de reencontrá-la,111 ou seja, não se trata de simplesmente conferir o que está fora com o que está dentro para verificar a adequação do traço de memória (percepção) com a realidade, mas privilegiadamente, a tentativa de um reencontro que será sempre faltoso, pois o sujeito vai tentar reencontrar

aquilo

do objeto

de

108

satisfação

que não

houve

Freud, S. - Projeto para uma Psicologia Científica (1895), op. cit., p. 439. 109 Idem, Mais Além do Princípio de Prazer (1920),op. cit. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 110 Idem, ibidem. 111 Idem, A Negativa (1925) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX, p. 298.

xlix


possibilidade de ser representado e ficará buscando, tentando reencontrar aquilo que foi perdido112.113

O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta que é esse objeto, das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas coordenadas de prazer, é nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada, em nome do princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais nem percepção nem esforço.114

Este

movimento do sujeito de buscar um objeto que o

satisfez, está no âmago do que a psicanálise chama de desejo. O desejo é aquilo que resta do efeito do significante sobre a necessidade. Desta forma, o sujeito passa a buscar, de forma alienada, o objeto que o marcou e o fundou, em busca de uma satisfação

total

que

nunca

é

alcançada.

Porém

o

que

ele

desconhece, é que este objeto está perdido para sempre, assim como a satisfação obtida naquele encontro, o que é muito bom, pois caso contrário o organismo entraria no zero de tensão, que implicaria na morte do sujeito. Portanto, a condição para que o aparelho psíquico possa se constituir é que o objeto da satisfação esteja perdido, pois em cada reinvestimento, ele não é encontrado. O sujeito passa a procurar pelo objeto e nesta

busca,

significantes

vai que

o

privilegiando possam

levar

112

certos à

trilhamentos

satisfação

pulsional,

Este objeto vai ser conceituado por Lacan no Seminário 10, “A Angústia” como ‘objeto a’. 113 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit., p. 76. 114 Idem, ibidem, p. 69.

l


buscando uma semelhança entre o objeto que encontra e aquele que foi perdido.115 Lacan, no Seminário A Ética da Psicanálise, vai dizer que é a pulsão de morte que não se satisfaz na alucinação,116 fundando

o

simbólico

princípio de prazer,

e

levando

o

sujeito

para

além

do

criando novos caminhos que o levem à

satisfação.

2.4 – PARA ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER

O que Freud será levado a apresentar, ao contrário do que escreveu em 1911? Não se trata de que o inconsciente não obedece ao princípio de prazer e passe a ser reprimido pelo princípio de realidade, mas ao contrário, o inconsciente é o que transgride fundamentalmente o princípio de prazer. Não é pela emergência de um prazer que se manifesta o inconsciente, mas antes pelo sofrimento. Somente em 1920 com o texto Mais Além do Princípio do Prazer, Freud encontra a compulsão à repetição e a descreve economicamente,

como

tensão

que

não

cessa,

o

resto

que

insiste.117 Vamos ter então que o inconsciente passa a ser visto como o que não consegue ser reabsorvido pela homeostase de prazer. Surge então uma face escura, formulada por Freud como pulsão de morte. Já não se trata mais da oposição entre as pulsões de auto-conservação e as pulsões eróticas, que foi o primeiro dualismo, nem tampouco como em Sobre o Narcisismo: 115

Freud, S. - Projeto para uma Psicologia Científica, op. cit., vol I. Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit. 117 Freud já havia se referido a esta tensão que não desaparece no texto do Projeto para uma psicologia Científica de 1895. 116

li


uma Introdução em que o dualismo é apresentado pela separação de libido do eu e libido do objeto, ou seja, em que ele vai fazer uma repartição em relação ao objeto no qual a pulsão é investida. Ele passa a marcar a oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte. Encontra um conceito totalmente diferente daquele encontrado no princípio de prazer. Freud vai dizer que o inconsciente desobedece aquilo que é a característica fundamental do princípio de prazer, já que sua constituição se dá pela via do sofrimento e não de um prazer. Descobre a existência de um resto que persiste no psiquismo,

levando

desprazerosa resto,

sua

o

sujeito

compulsivamente fonte

provém

a

repetir

(compulsão

da

pulsão

uma

a

de

experiência

repetição). morte.

O

Este

sujeito

portanto, só se liberta da tirania do princípio do prazer a partir de uma fusão de Eros, pulsões de vida, com a pulsão de morte. O que permite o ir e vir do sujeito, em um movimento dialético,

ampliando

ou

não

sua

própria

realidade,

é

a

mistura do sim e do não, de Eros e Tanatos, da pulsão de vida e pulsão de morte. Será a operação da Metáfora Paterna118 que permitirá que o sujeito tempere suas relações com a realidade na base do sim e do não. A

representação

inconsciente,

diz

intolerável,

respeito

à

traumática,

castração

do

que

outro

funda

o

materno,

portanto o que se trata de negar é o significante que aponta para essa castração. A dialética do sim e do não é fruto do recalque, que ao saber sobre a castração do outro, recalca este

significante,

porém

ele

continua

produzindo

efeitos,

embora banido para o inconsciente. A operação da Metáfora paterna promove, segundo Lacan, a “transformação

118

do

corpo

num

deserto

Veremos esta operação adiante.

lii

de

gozo”,

que

é

um


esvaziamento da pulsão de morte e a concentração da vida erótica do sujeito nas chamadas zonas erógenas reguladas pelo valor fálico. No Seminário A Ética da Psicanálise adverte que o gozo é um mal,119 pois se relaciona ao mal do próximo, criando

conseqüentemente,

a

total

desarmonia

nas

relações

sociais entre os homens, já apontada por Freud em O Mal-estar na Civilização. Este resto de gozo é o que sobra da operação da metáfora paterna, evidenciado na compulsão a repetição. Em outras palavras, esta operação é sempre falha, no intuito de mesclar a libido adequadamente à pulsão de morte. A noção de gozo permite uma conexão fundamental entre libido e pulsão de morte. Ao tratar da libido e da agressão relacionada à pulsão de morte, não como forças em oposição, mas como um nó que constitui uma clivagem interna, o conceito de gozo nos permite pensar um certo “arrastar” da libido para a

inércia

para

o

caminho

da

morte.

Entendido

como

um

conceito único, esta clivagem interna Lacan equivale ao que Freud descobriu na economia do masoquismo, quer dizer, uma patologia do prazer no desprazer.120 A operação da Metáfora Paterna é responsável pela junção do gozo ao significante, esvaziando esse gozo do excesso de pulsão de morte. O significante liga o gozo aos objetos para que o sujeito invista neles e goze deles. Aquilo que era pura inundação

de

dor,

de

pulsão

de

morte,

vai

ganhando

significado e se esvaziando. A

compulsão

psiquismo, objeto

e

como a

à

tensão

tentativa

repetição que de

portanto,

insiste, seu

movida

reencontro.

faz

parte

do

pela perda do A

operação

de

recalque não consegue fazer desaparecer por completo o resto traumático, deixando-nos a nu a própria divisão do sujeito. 119 120

Lacan, J., O Seminário, livro 7, op. cit., p. 225. Freud, S. - O Problema econômico do masoquismo (1924), op. cit.

liii


Eis

aqui

o

sujeito

da

psicanálise,

irremediavelmente

cindido em si mesmo. Aquilo que o perturba, aflige e lhe causa mal a nível de seu eu, é justamente aquilo que lhe traz prazer a nível inconsciente. O conceito de gozo portanto encontra-se intrinsicamente ligado ao conceito de repetição e nos fornece uma indicação fundamental para a clínica: aonde o sujeito diz sofrer, é onde ele mais goza.

É por isso que o freudismo, por mais incompreendido que tenha sido e por mais confusas que sejam suas conseqüências, afigura-se, ante qualquer olhar capaz de entrever as mudanças que vivemos em nossa própria vida, como constituindo uma revolução inapreensível, mas radical. Acumular os depoimentos é desnecessário: tudo o que interessa não apenas às ciências humanas, mas ao destino do homem, à política, à metafísica, à literatura, às artes, à publicidade, à propaganda e, através delas, à economia, foi afetado por ela.121

Enquanto Lacan instala a pulsão de morte no centro de sua teoria e faz do masoquismo um estatuto fundamental do sujeito,

o

que

vemos

nos

outros

tipos

de

pensamento,

psicológicos, psiquiátricos e até mesmo alguns que se dizem psicanalíticos, é uma não aceitação, um rechaço do conceito de pulsão de morte. Diversos autores consideravam que Freud estaria especulando ou se contradizendo. Outros atribuem a criação deste conceito, ao momento pelo qual Freud passava. Estaria doente, podendo estar deprimido, ligando a questão teórica a uma questão pessoal de Freud. Apostar numa harmonia possível, num bom encontro, na possibilidade de um sujeito vir a superar seus distúrbios e 121

Lacan, J. - A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, op. cit., p. 531.

liv


suprimir

as

neuroses,

implica

na

exclusão

do conceito de

pulsão de morte. Algo bem diferente de pensar que algo da ordem

interna

impede

o

sujeito

de

encontrá-la,

algo

fundamental que é seu próprio gozo. No caminho de seu gozo, necessariamente,

o

sujeito

esbarra

no

sofrimento.

Seu

imperativo opõe-se à propensão à felicidade. Encarado como aquilo que faz o sujeito destruir a si mesmo, o gozo é o que o afasta de toda moderação e bem-estar. Lacan menciona em seu seminário A Ética da Psicanálise, que o gozo prejudica não apenas a homeostase do sujeito mas também o laço social, resistindo à moderação do princípio de prazer.122

O erro é partir da idéia de que existem a linha e a agulha, a moça e o rapaz, e entre um e outro uma harmonia pré-estabelecida, primitiva, de tal maneira que se alguma dificuldade se manifesta, só pode ser por alguma desordem secundária, algum processo de defesa, algum acontecimento puramente acidental e contingente (...) Não se trata em absoluto de um encontro, a que fariam obstáculo apenas os acidentes que pudessem sobrevir na estrada . 123

Podemos dizer que a intuição primordial de Lacan foi marcar

a

divisão

do

sujeito

contra

ele

mesmo,

opondo-a

inclusive à filosofia que o vê como uno. Introduz-se então, uma questão ligada a ética: o que fazer a um sujeito que se agarra a um bem que não é, de modo algum, seu bem-estar? O que fazer frente a um sujeito marcado por um corte, uma divisão, que faz com o que diz sentir como um desprazer a nível do eu, a nível do inconsciente é o que o satisfaz? 122

Lacan, J., - O Seminário, livro 7, op. cit. Idem, O Seminário, livro 4 – A relação de objeto (1956-1957), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p. 48. 123

lv


Lacan descreve o gozo como o momento que não se pode dizer, um ponto que não se pode localizar. Talvez o gozo, ele mesmo, esteja bem próximo do horror. O gozo nada tem a ver com

o

prazer.

Afinal,

o

gozo,

isso

não

engana.

Enquanto

prazer e dor vão e vem sem que se encontre nada que seja de fato uma marca, o gozo é para cada um, mesmo que o ignore, uma certeza. 2.5 - O FALO

Os cuidados essenciais à preservação da vida do pequeno ser, comumente realizados pela mãe, são cuidados carregados de significação. A criança já nasce “banhada pela linguagem”, pois antes mesmo de nascer, já porta um significado para seus pais. Estas significações são denominadas de fálicas, porque exprimem que algo falta ao Outro. Naturalmente, para que o sujeito deste

sobreviva, Outro,

-

o

significar

algo

porque

incapaz

é

de

que

nasce

complexo valor, de

desamparado

Nebenmensch

pois

caso

sobreviver

e

-,

ele

contrário,

por

si

dependente precisa morrerá124

mesmo.

Esse

significado, fálico portanto, nos dado por aquele que nos toma em cuidados (Outro), só é possível porque para nossa mãe, nos constituímos como um significante (falo) que para ela representou o que lhe faltava. O falo, portanto, é um significante que tem como função tampar, recobrir, nomear a falta,

porém,

em

si,

ele

é

inominável.

Toda

vez

que

o

nomeamos: filho, dinheiro, saber, poder, família, ele desliza

124

Não é incomum ouvirmos falar de mães que jogam seus filhos fora, no lixo, no rio, enrolados em sacos plásticos, ou os deixam na porta de pessoas.

lvi


para

outro,

pois

não

se

prende

a

nenhum

significante.

Representa portanto, aquilo que o sujeito deseja.

A posição do falo está sempre velada. Ele apenas aparece em phanies, como relâmpagos, por seu reflexo a nível do objeto. Trata-se para o sujeito, bem entendido, de tê-lo ou não. Mas a posição radical do sujeito no nível da privação, do sujeito enquanto sujeito do desejo é de não sê-lo. O sujeito é ele mesmo, se posso dizer, um objeto negativo.125

Até aqui temos três elementos: a criança, a mãe e a significação que a mãe dá a criança, o falo. A mãe então ocupa esta função de introduzir o ser na linguagem, que em psicanálise chamamos o lugar do Outro. Contudo, Freud diz que o trauma diz respeito ao pai. É ele que marca a inexistência da complementaridade, da completude, entre mãe e filho. A significação que a criança vai ter para esta mulher está remetida ao pai, a um homem, já que nenhuma criança vem ao mundo sem a intervenção deste outro elemento. Portanto, na constituição do sujeito, temos quatro elementos: a criança, a mãe, o falo e o pai,126 que é o elemento que introduz no sujeito a questão do desejo.127 Eis a operação da metáfora paterna. Este sujeito veio ao mundo porque um homem desejou uma mulher. A criança dará a sua versão para este desejo de seu pai,

que

também

constituição

do

significações

mais

responde sujeito, infantis

aos ou de

mesmos

seja, sua

está

vida.

A

parâmetros

da

remetido

às

versão

que

o

sujeito dá ao desejo que o gerou também é o que lhe permite 125

Lacan, J., - Hamlet por Lacan, Campinas, Editora Escuta, 1986, p. 85. Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit. , p.85. 127 Novamente lembramos que esta equação é exclusiva da estrutura neurótica, não acontecendo desta forma na psicose e na perversão. 126

lvii


saber que o Outro é faltoso, que deseja para além dele, portanto,

que

não

é

ele

que

completa

o

Outro.

Esta

interpretação é fundamental porque permite que o sujeito não esteja na posição de objeto do Outro. De importância essencial a ser ressaltado é que esta interpretação é realizada pelo próprio sujeito e independe das vicissitudes de sua vida. Este ponto é crucial para o posterior desenvolvimento da noção de responsabilidade, pois se descartamos que esta interpretação de sua localização no desejo

do

Outro

necessariamente vítima

do

realizada

cairemos

Outro,

diversos

meios:

psíquica

dos

organização

é o

os

que

próprio

interpretação

vemos

pais

filhos.

familiar

na

pelo

caótica,

sujeito

como

freqüentemente acontecer em

como

Mesmo

do

sujeito,

determinantes

da

um

sujeito

imerso

ou

que

tenha

não

estrutura em tido

uma uma

significação fálica, ou seja, independente de como era sua mãe e seu pai, ainda assim a ele é possível fazer um jogo de positivo e negativo, oscilando entre o falo que seria e o falo que não é. Cada sujeito constrói uma história sobre o desejo que o gerou. Esta versão se torna sua verdade mais visceral, pois é ela que lhe diz como ser amado pelo Outro. Cada escolha sua, amorosa ou profissional, vai estar remetida a esta história, que chamamos de fantasia fundamental. Na Carta 71, Freud diz que a história construída por cada sujeito neurótico, tem uma estrutura

que

segue

coordenadas

simbólicas

imutáveis.

Ele

diz:

Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância, (...) Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus Rex,

lviii


apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua pressuposição do destino; (...) Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual.128

Esta

estrutura,

localizada

por

Freud

na

tragédia

de

Sófocles, Édipo-Rei, é encontrada na versão que todo sujeito neurótico dá, cada um com suas características peculiares, a sua novela familiar. A versão que o sujeito dá ao mistério de sua

existência

encontra-se

submetida

a

esta

estrutura

simbólica que Freud encontra com precisão no mito de Édipo. Édipo

é

considerado

um

herói

ao

contrário,

pois

sua

história não fala de grandes feitos ou de uma ascendência divina. O mito edipiano fala do homem cotidiano, um homem fragmentado,

“condenado

precária

nada

e

poderá

a

compreender fazer

para

que

sua

remediar

situação esse

é

dano

fundamental de sua existência”.129 Édipo, após ser proclamado rei de Tebas por desvendar o enigma da Esfinge, parte para descobrir o motivo de recair sobre sua cidade uma terrível peste. Descobre qual era o lugar dele no desejo do Outro através de uma pista, – marcas em seus tornozelos - fornecida pelo mensageiro que o recebeu de um pastor.130 O Outro queria sua morte. Sem saber, assassinara Laio, seu pai, e casara com sua mãe, Jocasta. Sua mãe, ao saber de tal tragédia, se enforca nua e Édipo fura seus próprios olhos com o broche de 128

Freud, S. - Carta 71 (1897) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol I. 129 Enciclopédia de Mitologia, São Paulo, Abril Cultural, vol. III, 1976. 130 Sófocles - A Trilogia Tebana, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p.72.

lix


sua mãe.131 Freud interpreta o autocegamento de Édipo como o equivalente da castração132.133 O preço a ser pago por se ter acesso ao gozo da mãe é a castração. Voltaremos a tragédia de Sófocles no último capítulo de nosso trabalho.

2.6 – UMA NOVA AÇÃO PSÍQUICA

A

subjetividade

vai

se

organizar

a

partir

da

identificação àquilo que falta ao Outro, como vimos, o falo. Esta

identificação

é

de

importância

fundamental

na

constituição do sujeito, pois esta marca, chamada por Lacan de traço unário é responsável pela entrada do sujeito no vasto universo das representações simbólicas.

Tomem apenas um significante como insígnia dessa onipotência, ou seja, desse nascimento da possibilidade, e vocês terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu.134

131

Idem, ibidem, p.86. A interdição ao gozo é representada pela castração. 133 Freud, S. - O Estranho (1919) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVII. 134 Lacan, J. - Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no inconsciente freudiano, op. cit., p.822. 132

lx


Este primeiro significante é o que permitirá ao sujeito se alienar no campo do Outro. “O sujeito nasce no que, no campo

do

Outro,

surge

o

significante.

Mas

por

este

fato

mesmo, isto – que antes não era nada senão sujeito por vir – se coagula em significante”.135 Freud

nos

chama

a

atenção

de

que

a

identificação

é

anterior a qualquer investimento objetal. O sujeito precisa se identificar a um significante para somente depois passar a investir nos objetos. Esta identificação primeira é o que possibilita o sujeito agrupar aquilo que era vivido por ele como

puro

caos.

A

fase

anterior,

desorganizada,

mais

primitiva do desenvolvimento sexual, é chamada por Freud de auto-erotismo

e

satisfação

seu

em

caracteriza-se próprio

corpo

domínio do princípio de prazer.

pelo e

indivíduo

estar

obter

subordinada

ao

136

A principal fonte de prazer sexual infantil é a excitação apropriada de determinadas partes do corpo particularmente excitáveis, além dos órgãos genitais, como sejam os orifícios da boca, ânus e uretra e também a pele e outras superfícies sensoriais. (...) Zonas erógenas denominam-se os lugares do corpo que proporcionam o prazer sexual. O prazer de chupar o dedo, o gozo da sucção, é um bom exemplo de tal satisfação auto-erótica partida de uma zona erógena.137

A operação que permite o atravessamento do auto-erotismo é chamada de identificação. Sem um significante que possa representá-lo, significante

o

para

sujeito se

precisa

identificar.

135

tomar Neste

do

momento

Outro ganha

um um

Idem, O Seminário, livro 11, op. cit., p.187. Freud, S. - Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol XII. 137 Idem, Cinco Lições de Psicanálise (1909) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol XI. 136

lxi


sentido,

porém

às

custas

do

seu

desaparecimento

sob

um

significante que veio do Outro. As pulsões parciais, autoeróticas,

desorganizadas,

se

dirigirão

a

um

objeto

privilegiado, o eu, a imagem do sujeito, que passará a ser constituído a partir da imagem do outro. O eu passa a ser o objeto

das

pulsões,

possibilitando

a

construção

de

uma

imagem. Essa imagem do eu será constituída pelas coordenadas dada pelo grande Outro e promove a entrada do sujeito no narcisismo. Esta operação que funda o sujeito não ocorre sem que ele pague um preço. Neste momento, identificado a um significante que

falta

ao

desaparecimento.

Outro, Todo

ele

sujeito

sofre

um

humano,

estrutura, vive esta operação, chamada

apagamento,

independente

um

de

sua

alienação.

Ora, mas o que é um significante?

(...) um significante é o que representa um sujeito para outro significante. Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito.138

Se, por um lado o significante o coloca dentro de um sentido,

por

apagamento.139

outro Na

lado

medida

este que

sentido o

também

sujeito

recebe

provoca seu

um

nome

próprio, é mortificado por este significante. O significante promove um apagamento, porém, por outro lado, nos eterniza.

138 139

Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit., p.197. Idem, ibidem, p. 199.

lxii


Essa é a margem para além da vida a que Lacan se refere em 1960 que nos é dada pelo significante.

140

O nosso sujeito então, sujeito do inconsciente, só vai aparecer

no

intervalo

entre

os

significantes,

na

sua

enunciação. A enunciação é justamente aquilo que não aparece nos ditos, no enunciado, na história bem organizada que o sujeito conta; vai aparecer no jeito, na forma que se diz, nos lapsos. “Bem, os lapsos, os buracos, as contensões, as repetições

do

sujeito,

espontaneamente,

exprimem

inocentemente,

a

também,

maneira

mas

pela

agora

qual

seu

discurso se organiza. E é o que temos que ler”.141 Esta é a diferença radical entre a clínica da psicanálise e a clínica da

psicologia

ou

psiquiatria.

O

sujeito

não

está

no

significante que o representa, mas quando ele aparece fora desta

determinação.

A

alienação

que

se

refere

Lacan

é

portanto a alienação ao significante, que confunde o sujeito quanto a seu ser.

A alienação consiste nesse vel que – se a palavra condenado não suscita objeções da parte de vocês, eu a retomo – condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise.142

Porém, esta é a única forma de se estar no mundo, não importa a estrutura: neurótico, psicótico ou perverso. Lacan vai dizer que ser representado por um significante é uma 140

Idem, Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no inconsciente freudiano, op. cit., p. 817. 141 Idem, O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1954), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, p. 278. 142 Lacan, J. - O Seminário, livro 11, op. cit., p.199.

lxiii


escolha forçada. Ou o sujeito se representa assim, ou não é sujeito. Ele nos exemplifica essa escolha com o exemplo da “bolsa ou a vida”.143 Entregamos a bolsa ou a vida? Ora, se precisarmos

escolher

entre

um

ou

outro,

é

óbvio

que

poderemos escolher entregar a bolsa, já que se escolhemos a vida, perdemos a bolsa e a vida, não tem saída. Essa é a escolha

forçada

significante,

do

assim

sujeito, é

não

porque

somos

como todos

não

escolher

condenados.

o No

entanto, Lacan adverte que a escolha pela vida carrega um fator letal ,144 pois o significante traz consigo a morte, pois só morre aquele que está vivo. Também nesta escolha, a morte está presente. Em um segundo momento, chamado por Lacan de operação de separação, o sujeito tenta dar um significado para o objeto que foi o desejo do Outro. “É no que seu desejo está para além ou para aquém no que ela [mãe] diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido,

é

nesse

ponto

de

falta

que

se

constitui

o

desejo do sujeito”.145 O sujeito precisa encontrar um novo lugar

para

ocupar,

pois

tanto

o

Outro

quanto

ele

estão

descompletados, falta-lhes um objeto que os completaria. A operação

de

significante

separação

(Nome-do-pai)

se possa

apresenta

se

substituir

um aquele

outro que

promovia o desaparecimento do sujeito (Desejo da mãe) e o colava no lugar de objeto do desejo do Outro. Ao reconhecer que algo falta ao Outro, o sujeito tenta com a fantasia fundamental recuperar o objeto, que supostamente uniria o sujeito ao Outro, porém este objeto está perdido para sempre. 143

Idem, ibidem, p.201. Idem, ibidem. 145 Lacan, J. - O Seminário livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit. p. 207. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 144

lxiv


Lacan então vai dizer: “O primeiro objeto que ele propõe a esse

desejo

parental

cujo

objeto

é

desconhecido,

é

sua

própria perda – Pode ele me perder”?146 O sujeito, em sua fantasia, acredita que o Outro não pode viver sem ele, que ele completa o Outro, daí a pergunta sobre sua perda. Elucidadas as duas operações de causação do sujeito, passemos a construção do eu.

2.7 – COMEÇA A SE DELINEAR O EU147 O sujeito não sabe o que diz, e pelas mais válidas razões, porque não sabe o que é.148

Freud, em sua obra original escrita no alemão, ao falar do eu, utiliza a palavra Ich que possui dupla tradução,149 o que provoca grandes mal-entendidos, pois esta palavra foi utilizada para falar do sujeito do inconsciente, como também para

falar

do

eu,

como

objeto

de

amor

narcísico.

Lacan,

utilizando o fato de na língua francesa existir duas palavras 146

Idem, ibidem, p. 203. Na tradução em português das obras de Freud é utilizada a palavra ego. Neste trabalho, contudo, optamos por utilizar “eu”. 148 Lacan, J. - O Seminário, livro 2, op. cit., p.309. 149 Da mesma forma que a palavra manga pode significar tanto uma fruta quanto a parte de uma roupa. 147

lxv


para

traduzir

o

eu:

o

Je

e

o

Moi,

propõe

a

seguinte

utilização: o Je é aquele que fala, o sujeito da enunciação, sujeito

do

inconsciente

e

o

Moi

é

aquele

que

é

falado,

sujeito do enunciado, objeto. Quando lemos a palavra “ego”150 na

tradução

em

português

Freud está se referindo ao

portanto

temos

que discernir se

sujeito do inconsciente ou a essa

instância imaginária, o eu, já que ambos foram traduzidos pela mesma palavra em português, ego. A

distinção

essencial,

pois

entre

o

designa

eu que

e

sujeito

sujeito

do

inconsciente

devemos

escutar

é

numa

análise, já que, para a psicanálise, o sujeito propriamente dito,

o

sujeito

inconsciente.

que

Esta

devemos

escutar,

concepção

implica

é

em

o

sujeito

do

uma

ruptura

da

psicanálise com todas as outras disciplinas que estudam o sujeito humano, na medida que estas confundem o sujeito com o eu. Esta é a diferença fundamental entre as psicoterapias, psicologias

e

a

psiquiatria

que

cuidam

das

patologias

psíquicas do homem, pois em uma psicanálise, interessa-se escutar o sujeito do inconsciente e este, manifesta-se nas lacunas, nos sonhos, nos lapsos, no sintoma, nas interrupções da fala do sujeito e não prioritariamente na história que o sujeito

descreve

sujeito?,

na

freudiano

do

com

medida termo,

meticulosidade.151 em

que o

é,

sujeito

“(...)

tecnicamente,

o no

inconsciente,

que

é

o

sentido e

daí,

essencialmente o sujeito que fala. (...) o sujeito que fala está para além do ego”.152 Mas que distinção é essa? Onde está a disjunção entre sujeito e eu? Passemos a entender como surge o eu.

150

Optamos por utilizar a palavra “eu”, ao invés da palavra “ego”. O “blá, blá, blá” do sujeito é o discurso do eu, que resiste e faz barreira à verdade do sujeito. 152 Lacan, J. - O Seminário, livro 2, op. cit., p.221. 151

lxvi


Quando

lemos

o

“Projeto”

o

eu

(ego)

é

o

sujeito

primitivo, sem nenhum traço de ego, de imaginário e dirigido pelo princípio de prazer. É o eu-prazer, sujeito de prazer, chamado por Freud de Lust-Ich. Como este eu não dá conta das exigências do organismo, instala-se o eu-realidade153, sujeito realidade,

Real-Ich, que possibilita a sobrevivência do eu-

prazer. Na vigência do Lust-Ich e do Real-Ich, anteriores

à

instauração do Moi, do eu, temos as pulsões desorganizadas. Com

a

instalação

do

Ich,

eu,

Moi,

essas

pulsões

vão

se

dirigir todas para a imagem, promovendo a constituição do eu como imagem especular e objeto de amor para o sujeito. Lacan espelho’

se

154

refere

a

este

momento

como

‘estádio

do

que é a releitura que ele faz de "Introdução ao

Narcisismo",

quando

aponta

para

o

descompasso

que

da

experiência física da criança, em relação ao seu corpo. A criança motoras,

não

tem

porém,

totalidade”.155

ainda “já

o

domínio

toma

Neste

efetivo

consciência

momento

ainda

do

se

de seu

suas

funções

corpo

confunde

com

como seu

semelhante. Freud em seu texto de 1914, estabelece que toda relação do sujeito com o mundo se dá através do amor, do investimento libidinal,

da

capacidade

do

sujeito

investir

nos

objetos

(amar) e ser investido por eles (ser amado). Expõe as duas formas possíveis para o sujeito eleger um objeto de amor: a anaclítica, daqueles

onde

que

o

sujeito

cuidaram

dele

busca e

o

no outro as referências protegeram;

e

a

forma

narcisista, onde o sujeito procura no outro aquilo que ele é, 153

Concomitante a instauração do princípio de realidade, já falado anteriormente. 154 Maiores detalhes sobre este momento no Seminário 1 “Os escritos técnicos de Freud”. Lacan explica de forma pormenorizada o reconhecimento desta imagem nos capítulos A Tópica do Imaginário, com o experimento do buquê invertido, e Ideal do eu e eu-ideal, com o esquema simplificado dos dois espelhos. 155 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit., p.96.

lxvii


foi ou gostaria de ser.156 Temos portanto, que as escolhas realizadas pelo sujeito estão sempre relacionadas ao ‘eu’ do sujeito aos outros. “A imagem da forma do outro é assumida pelo sujeito”,157 constituindo o eu ideal, instância puramente imaginária. Esse eu ideal provém

do

amor dos

pais, “nada mais

é senão

o

narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente, revela a sua natureza anterior”.158

O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo eu ideal, o qual, como o eu infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma do ideal do eu (Ich Ideal). O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal.159

A criança toma do outro, daquele que cuida e a auxilia em

seu

desamparo,

os

traços

que

irão

constituí-la.

Uma

escolha forçada que promove a organização de um ser – um ser que

existe

sempre

relativo

a

outro

ser.

Daqui

surge

as

experiências tanto de amor, quanto de ódio.

156

Freud, S. - Sobre o Narcisismo: uma Introdução, op. cit., vol. XIV, p. 107. 157 Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p.197. 158 Freud, S. - Sobre o Narcisismo: uma Introdução, op. cit., p. 108. 159 Idem, ibidem.

lxviii


O Outro reconhece o pequeno ser como imagem no espelho e este reconhecimento160 propiciará a constituição de uma imagem integrada. Este reconhecimento de si como imagem unificada está um passo à frente do sujeito e provoca um pulo para outro registro, o simbólico. O reconhecimento de sua própria imagem como objeto de amor vai estar na dependência da relação do sujeito com os significantes proveniente do Outro. A imagem, passa a ser reconhecida

como

significante

que

digna

de

amor,

na

medida

veio

do

Outro

sustente

em esta

que

um

imagem.

Portanto, a estabilidade da imagem está na dependência da operação da metáfora paterna. Contudo, desestabiliza

como o

vimos,

ser.

algo

Daquilo

que

resta

desta

imaginávamos

operação “ser”

e (eu

ideal), passamos a querer ser (ideal do eu). Lacan vai dizer que o ideal do eu (registro simbólico) é que vai propiciar que o sujeito possa se ver amado pelo outro, aquele que tem aquilo que é preciso para ser amado. Este significante sustentará a imagem do próprio eu, enquanto eu ideal (imaginário). “É o seu próprio eu que se ama no amor, o seu próprio eu realizado ao nível imaginário”.161 Freud no último parágrafo de seu texto de 1914 aponta a importância do ideal do eu para o desenvolvimento de nosso tema.

O ideal do eu desvenda um importante panorama para a compreensão da psicologia de grupo. Além do seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação. (...) A falta de satisfação que brota da não realização desse ideal libera a libido 160 161

Lugar no desejo familiar Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p.167.

lxix


homossexual, sendo esta transformada em sentimento de culpa (ansiedade social). Originalmente esse sentimento de culpa era o temor de punição pelos pais, ou, mais corretamente, o medo de perder o seu amor; mais tarde, os pais são substituídos por um número indefinido de pessoas.162

2.8 - A AGRESSIVIDADE

O sujeito se reconhece como imagem integrada a partir da imagem do outro e também seu desejo só é encontrado no outro.

Na origem, antes da linguagem, o desejo só existe no plano da relação imaginária do estado especular, projetado, alienado no outro. A tensão que ele provoca é então desprovida de saída. Quer dizer não tem outra saída – Hegel no-lo ensina – senão a destruição do outro. O desejo do sujeito só pode, nesta relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende. E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade – o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.163

Hegel na Dialética do Senhor e do Escravo é citado por Lacan para ilustrar como a agressividade está inserida na própria constituição do sujeito. Hegel afirmava que “o ser e o

nada

são

consciência

uma de

só si,

e ou

mesma seja,

coisa”.164 só

Se

existe

o como

homem

tem

entidade

reconhecida, isso só acontece na sua relação com o outro. 162

Freud, S. - Sobre o Narcisismo: uma Introdução, op. cit., p. 119. Idem, ibidem, p.197-8. 164 Hegel, F. – Hegel – Vida e Obra in Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1999, p.15. 163

lxx


Para saber de si ele precisa do outro. Quando cada um quer o reconhecimento há uma luta mortal, uma rivalidade imaginária até o momento em que um cede e o outro não. Ocorre então uma dissimetria, ou seja, o senhor tem uma consciência de si, ou reconhecimento de si, mas o escravo fica numa posição de coisa, sem reconhecimento de si. Em Hegel, meu desejo depende do outro como desejante e há uma luta de prestígio, ou seja, o outro é um rival imaginário. Essa dialética vai servir a Lacan quando ele diz que o desejo do homem é o desejo do Outro. O meu desejo precisa ser primeiramente reconhecido pelo Outro para que possa então ser nomeado.

Mas, graças a Deus, o sujeito está no mundo do símbolo, quer dizer, num mundo de outros que falam. É por isso que seu desejo é suscetível da mediação do reconhecimento. Sem o que toda função humana só poderia esgotar-se na aspiração indefinida da destruição do outro como tal.165

Temos ainda o exemplo de Lacan de uma menininha que se aprazia em jogar uma pedra na cabeça de uma outra criança, que certamente, era alvo de identificação por parte dela. Esta cena, marca a estrutura de todo ser humano que implica em destruir aquele que, tomado na identificação do sujeito, acaba

promovendo

agressividade,

que

a

alienação faz

parte da

deste.166 própria

Eis

o

cerne

estrutura

da

do eu.

“(...) os desejos da criança passam inicialmente pelo outro especular. É aí que são aprovados ou reprovados, aceitos ou

165 166

Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p.198. Idem, ibidem, p.199.

lxxi


recusados. E é por aí que a criança faz o aprendizado da ordem simbólica e acede ao seu fundamento, que é a lei”.167 Freud

no

texto

Totem

e

Tabu,

descreve

que,

após

o

assassinato do pai, resta aos irmãos a rivalidade entre eles, fazendo-se necessário uma ação que anule o conflito. Ocorre então a identificação edipiana, que possibilitará ao sujeito “transcender

a

agressividade

individuação

subjetiva”168

e

constitutiva a

construção

da de

primeira um

lugar

simbólico, o ideal do eu, instância que permite a ligação com o que é da ordem do cultural. Passam então a construir leis (simbólico) com fins a reger a relação entre eles e superar a agressividade que pertence a todo sujeito. Portanto, as leis servem para frear a agressividade inerente a todo sujeito humano. O entendimento da agressividade dentro da constituição do sujeito se faz necessário, tendo em vista a existência da correlação

corriqueira

entre

agressividade

e

fatores

relacionados à vida social e/ou econômica das pessoas.

167

Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p. 207. Lacan, J. - A agressividade em psicanálise (1948) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p.120.

168

lxxii


3 - CASOS

Mas será que a não responsabilização na adolescência realmente

os

beneficia

de

alguma

forma?

Foi

a

pergunta

necessária a ser feita no caso que passaremos a discutir.

3.1 - O MARGINAL

Carlos, adolescente de 13 anos, já era conhecido por seus atos agressivos tanto em nossa instituição quanto nas Varas da Infância e Juventude. Em espaços curtos de tempo era trazido

por

policiais

com

determinação

judicial

para

internação, apesar de não notarmos sintomatologia para isto. Como alguns outros casos, por já ter sido internado uma vez, parecia que os técnicos da justiça já consideravam o caminho da internação como o caminho correto e inevitável naquele caso. aquele

Não

raras

deveriam

vezes

tentavam

permanecer

argumentar

dentro

do

que

casos

hospício

e

como

não

em

abrigos.169 Comecei a atendê-lo após já ter sido internado inúmeras vezes. Carlos só havia sido atendido por psiquiatras até

então,

sendo

seu

tratamento

(quando

reaparecia)

até

aquele momento, apenas medicamentoso. Havia, por parte dos técnicos,

um

repúdio

explícito

a

ele,

sendo

visto

na

instituição como “psicopata”. Porém, o fato de algumas vezes “pular

para

dentro”

do

pronto-socorro

169

daquele

hospital

Os abrigos são destinados a crianças e adolescentes sem família, ou com os laços familiares fragilizados, em vias de rompimento. No caso do paciente em questão, seu pai não o aceitava em casa e ameaçava “desaparecer” caso fosse obrigado a recebê-lo.

lxxiii


suscitou uma pergunta acerca do que ele queria ali. Assim comecei a atendê-lo. Apesar de possuir um currículo invejável170 nas Varas de Infância

e

descrente

Juventude na

e

a

equipe

possibilidade

comportamento

do

de

adolescente,

do

hospital

ocorrer Carlos

estar

modificações faz

um

no

vínculo

importante com sua analista. Após conseguirmos um abrigo que o

recebesse171

continuava

e

ele

evadir

comparecendo

aos

apenas

alguns

atendimentos,

dias apesar

depois,172 de

estar

dormindo na rua. Era visível sua dificuldade no convívio com outros adolescentes. Tinha história de evasão após permanecer por poucos dias na grande maioria dos abrigos. Também quando se encontrava internado em nossa enfermaria, arrumava brigas, incitava uns contra os outros e provocava os técnicos da instituição. cometia

Sua

atos

história

infracionais

se

repetia

(quebrava

da

seguinte

objetos

de

forma:

diferentes

instituições, agredia seriamente técnicos) e era, quase que automaticamente, encaminhado para internação. Carlos, com seus atos, desenrolar

dos

parecia desafiar a morte. Com o

atendimentos,

pudemos

perceber

que

não

conseguia se sustentar de forma diferente daquela designada por seu pai, que o considerava “um nada, sem futuro”. Seu pai não havia o registrado como filho, possuindo apenas o nome da mulher que o criou, que foi a mesma que criou seu pai.173 Esta senhora o abandonou aos nove anos, enquanto encontrava-se internado, mudando de endereço para que não pudesse ser mais localizada. Passa então a viver nas ruas, o que o levava, 170

Vários processos. Era um desses jovens que passavam longos períodos internados por não haver abrigo que o recebesse, justamente por já ser conhecido no município. 172 Após 24 horas de evasão, o menor não pode retornar para o mesmo abrigo. 173 Também o pai de Carlos havia sido abandonado na infância. 171

lxxiv


inúmeras vezes a ser internado, sempre por agressões. Seu pai, por sua vez, afirmava que se assim era chamado por Carlos,

o

permitia

verdadeiramente,

por

caridade,

mas

negando

inclusive

a

que

não

o

semelhança

era

física

incontestável que existia entre os dois. Não poupava esforços em dizer ao filho que ele era uma nulidade e que não tinha mais jeito. O jovem por sua vez, narrava repetidamente as lembranças

dos

espancamentos

que

sofria

e

da

total

arbitrariedade destes. Este pai era para ele a única pessoa que respeitava e temia. Sua agressividade parecia ser o elo que

o

unia

a

seu

pai.

Identificado

ao

significante

‘marginal’, permanecia alienado ao discurso do Outro, de que ele

nada

valia.

Desfazer-se

desta

imagem

implicaria

em

abdicar na crença do pai que tudo podia. Passa

a

investir

muito

em

seus

atendimentos,

comparecendo rigorosamente nos horários marcados, reclamando dos

atrasos

de

sua

analista,

mesmo

fazendo

da

rua

sua

moradia. Certa vez, após ter ensaiado atear fogo nos cabelos da mãe de um paciente do ambulatório, foi encaminhado para o diretor geral daquele hospital que lhe disse que na próxima vez seria expulso, suspendendo-o de toda atividade naquela instituição,

exceto

seu

atendimento

individual.

O

que

se

verificou foram os efeitos deste ato para aquele paciente, ou seja, como a introdução de alguém em função de Lei barrou a repetição e possibilitou uma virada nos atendimentos. Carlos dizia: “- Dr. Sérgio174 gosta de mim, por isso me repreende e me impõe castigo, coisa que meu pai nunca fez, todos os motivos eram iguais para ele me espancar”, passando a nutrir um

profundo

respeito

e

admiração

hospital.

174

Diretor-geral daquele Instituto.

lxxv

pelo

diretor

daquele


Em seus atendimentos fala de numerosas perdas: sua mãe biológica

que

o

abandonou

aos

dois

anos,

seu

pai

que

o

entregou para ser cuidado por uma mulher, que ele passou a chamar

de

mãe.

Carlos,

ao

contar

sua

história,

passa,

paulatinamente, a sair da posição de criança abandonada para a de responsável por ela. Diz ter sido uma criança muito “revoltada”, que sua mãe era uma excelente pessoa, mas que a afrontava diariamente. Lembra ter uma vez a enganado, fazendo com que bebesse sua urina, ou quando quebrou toda a sua casa. Conta que passou a receber presentes para que se comportasse adequadamente, o que acabou acarretando o efeito inverso: passa a chantagear, dizendo que se não ganhasse o que queria, quebraria os objetos. Pede à analista que o ajude a escrever sua história, ditando-a. Diz que quando acabar irá vendê-la naquele mesmo hospital.

Relata

as

lembranças

dos

momentos

muito

angustiantes que viveu, quando ficava pelas ruas, o medo que sentia, o que durou anos. Vez ou outra a analista era chamada a comparecer em diversos

lugares

para

discutir

o

comportamento

do

rapaz.

Havia ateado fogo em um dos pacientes do setor de moradia, o que

acarretou

em

novamente

longo

tempo

suspenso

do

hospital.175 Outra vez tentou agredir um dos vigilantes da instituição acarretando em nova suspensão. Todas as vezes era ouvido pelo diretor geral do hospital sobre os motivos de seus atos. O vigilante, segundo ele, já vinha lhe provocando há algum tempo. No caso do paciente queimado,176 este havia colocado álcool em seu próprio corpo e pago uma quantia a Carlos para que ele apenas riscasse o fósforo. Justificativas

175

Carlos almoçava e lanchava no hospital, o que também foi suspenso nesta época. 176 Paciente psicótico grave daquele hospital.

lxxvi


tomadas

como

insuficientes,

necessitava

então

pagar

pelos

seus danos, o que o deixava inconsolável e revoltado em um primeiro momento. Nestas situações, pedia que a analista o atendesse mais vezes pois precisava falar sobre o que sentia. Os

atendimentos

assim

decorriam.

Passava

algum

tempo

tranqüilo e de repente novas denúncias: Carlos havia invadido um setor da instituição no horário noturno para pernoitar! Deveria consertar a porta danificada. Carlos quebrou um dos ventiladores do serviço! Deveria comprar outro para repor o danificado.177 Todos estes episódios acarretavam em pedidos de atendimentos “extra” onde Carlos precisava falar sobre o que lhe acontecia. Sempre inicialmente com muita raiva e depois, paulatinamente,

passava

a

reconhecer

seu

erro

e

suas

dificuldades. Todos

estes

contornados.

As

momentos equipes

eram

dos

muito

diversos

difíceis setores

de

do

serem

hospital

encontravam-se extremamente desgastadas com o comportamento de Carlos, duvidando de qualquer possibilidade de melhora e, muitas vezes, colocando em xeque o trabalho que vinha sendo realizado

com

o

rapaz.

Uma

vez,

logo

no

início

dos

atendimentos, três profissionais se reuniram e redigiram um laudo sobre Carlos dizendo que todos os esforços já haviam sido

realizados

internado

como

naquele medida

caso

e

que

o

socioeducativa.178

jovem Nesta

deveria

ser

época,

sua

analista precisou entrar em contato com o juiz do município onde o pai de Carlos residia e, após exposição do caso, conseguimos frear a ida de Carlos para aquela instituição, nos comprometendo a enviar relatórios sobre a evolução do caso.

177

Nesta época Carlos já trabalhava em uma ONG que funcionava naquele hospital. 178 Encaminhado para o Educandário Padre Severino.

lxxvii


Houve um episódio marcante em seus atendimentos. Em um desses dias, final de expediente, entrou na recepção do ambulatório e abriu a geladeira. Olhou o que tinha dentro e achou um pão doce e fez que ia comê-lo. Disse-lhe que aquilo não o pertencia e que por isso ele não poderia pegá-lo. Insisti com ele e tentei impedi-lo que comesse, porém ele quis usar de força, me afastando, o que fiz, pois senão precisaria entrar em luta corporal com ele. Apenas o olhei e disse que estava bastante irritada e que iria embora.

Ficou

gritando o meu nome, pedindo que retornasse. Reafirmei minha irritação

e

disse

que

não

falaria

mais

com ele

naquele

momento e fui embora. Depois desse episódio, Carlos não mais burlou as regras. No dia seguinte, disse-me que eu tinha brigado com ele por causa de apenas um pão doce. Respondilhe que ele é que havia me desrespeitado apenas por causa de um pão doce. Tentou ainda se explicar dizendo que por estar dormindo na rua, estava ficando sem jantar, então sentia fome,

por

isso

tinha

feito

aquilo.

Não

aceitei

sua

explicação dizendo que havia outras formas de se conseguir alimento que não aquela que ele usou. Acaba por reconhecer seu erro e me diz que temeu muito que eu não quisesse mais atendê-lo. Este e outros atos semelhantes vão, pouco a pouco, sendo substituídos.

O

tratamento

possibilita

que

Carlos

possa

substituir os atos impulsivos por palavras que dirige a sua analista. Carlos

prossegue

história, ora criando

construindo,

ora

escrevendo

sua

batalhas de deuses poderosos que lutam

entre o bem e o mal. A esperança de amor que a relação com sua analista propiciava fazia com que Carlos retornasse todos os dias.

lxxviii


Aos poucos, sai do lugar de vítima, de excluído, para tentar

se

situar

como

desejante.

Do

lugar

de

resto,

sem

valor, passa a se importar com seu nome, que era o mesmo de um

famoso

escritor.

Ditava

suas

histórias

e

passa

a

se

orgulhar de seu nome no final delas. Resolve retornar aos estudos, quer um dia comprar uma moto e ter uma namorada. Começa a fazer planos de como será sua vida e como criará seu filho. Passa a freqüentar a igreja assiduamente, transferindo para Jesus sua paternidade. Através do hospital faz um curso de informática (era apaixonado por computadores) e consegue um emprego. Na igreja que freqüenta, oferecem-lhe um quarto para morar, deixando de dormir pelas ruas. Depois de anos de análise,179 Carlos ri de seu jeito “esquentado” do passado, impressionando-se de como era. Ter se responsabilizado por sua vida, por sua história, trouxelhe frutos que desconhecia poder usufruir. Porém, o mesmo não acontece

com

todos

que

experimentam

um

tratamento

como

apontaremos com o caso de Vera.

3.2 - A VICIADA

Quando Vera, 15 anos, chegou para ser avaliada por mim, o pedido da equipe e dos técnicos da Justiça era o de saber se tinha diagnóstico de psicose. Essa suspeita existia pela postura

de

Vera

diante

dos

técnicos:

diante

de

qualquer

pergunta, apenas ria. Inicialmente, assim também se comportou em

179

minha

presença,

porém

depois

de

Até o momento foram seis anos de tratamento.

lxxix

algum

tempo

resolveu


contar-me

sua

história,

fato

fundamental

para

que

fosse

tomada em atendimento. Conta-me que seus pais morreram de overdose. Sua mãe, em seu colo, quando tinha apenas 6 anos. Lembra-se que sua mãe chegou em casa, pediu-lhe que lhe trouxesse um copo com água e depois deitou em seu colo, morrendo nesta posição. Após três meses, a mesma morte trágica acontece com seu pai. Vera e seus três irmãos são criados por sua avó paterna, de origem espanhola. Esta senhora me conta que seu filho, pai de Vera, era desenhista formado e que passou a se envolver com drogas quando conheceu a mãe de Vera. Repetidamente me relata nas entrevistas que Vera é igual à mãe. Vera se irrita quando sua avó diz que sua mãe não prestava e era culpada pelo uso de drogas e morte de seu filho. O que traz Vera a atendimento é o

abuso

de

drogas,

tendo

sido

internada

com

parada

cardíaca após o uso. A

jovem,

analista,

a

apesar

cada

de

nitidamente

atendimento

se

afeiçoar-se

despede,

a

sua

dizendo que não

voltará mais. A mesma cena se repete a cada atendimento: Vera se despede sorrindo, dizendo não mais voltar. E retorna no próximo

atendimento.

Aos

poucos

percebo

que

este

era

um

movimento necessário a Vera: dizia-me que não mais voltaria, que fugiria, que a analista era ‘chata’, que não queria mais viver, mas fazia tudo ao contrário. Certa vez, em um dos atendimentos digo-lhe que já aprendi que quando dizia não, queria dizer sim, o que faz a jovem gargalhar alto, como que flagrada em uma peraltice. Vera

me

conta

que

teve

inúmeros

psicólogos,

de

diversas instituições diferentes mas que a analista não era igual a nenhum dos que já tivera, o que marcava sem dúvidas a relação transferencial. Apesar de suas repetidas despedidas, comparecia

regularmente

aos

atendimentos, lxxx

não

necessitando


que ninguém a levasse. Porém, meses após o tratamento se iniciar, a analista tira férias, já marcadas com bastante antecedência. Sabendo quão delicado seria aquele afastamento para Vera, insiste em lhe dizer que retornará após um mês e que

os

atendimentos

continuarão.

Após

o

término

de

suas

férias, tenta marcar com Vera seu retorno, mas a jovem havia desaparecido. Sua avó conta que a neta tentou agredi-la após uma discussão entre as duas e que chamou a polícia para ela. É encaminhada para um abrigo, depois para outro e evade do último. Após vários meses de afastamento recebo um telefonema de que Vera encontra-se em atendimento no CAPSad180, porém que pedia incessantemente para retornar os atendimentos comigo. Havia sido encaminhada a este CAPS para atendimento pela 1ª Vara

da

Infância

e

Juventude

com

muitas

recomendações,

demonstrando ser uma adolescente “especial”. Apesar de seus pedidos para retornar para sua analista,181 os profissionais daquele serviço insistem em atendê-la, culminando em Vera cortar seus braços com vidro. Após este incidente, resolvem ouvir a adolescente e entram em contato com sua analista, que retoma os atendimentos de Vera. Acontece

que

completamente

o

panorama

modificado.

que

Os

ronda

Vera

profissionais

está

que

se

encarregaram do caso da jovem decidem não investir mais em um trabalho com sua avó, o que acarreta em que Vera passe agora a

morar

em

abrigos.

Também

dirigem

a

Vera

um

olhar

diferenciado ao de outras adolescentes. De fato, a jovem era muito escola

bonita,

pele

bastante

diferenciado

das

alva, tempo)

outras

muito e

inteligente de

adolescentes

180

nível

(freqüentou

a

sócio-econômico

abrigadas,

a

maioria

CAPSad é a sigla para Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e drogas. Este serviço é fisicamente vizinho ao serviço infanto-juvenil, no qual trabalho.

181

lxxxi


pobres e negras. Além do que, recebia mensalmente pensão de seu pai, o que a fazia portar celulares modernos e utilizar boas roupas. O tratamento dado a Vera se diferenciava a tal ponto

nos

abrigos

que

muitas

jovens

a

odiavam,

o

que

acarretava em repetidas brigas, enquanto outras buscavam sua amizade para também poderem usufruir de suas vantagens. Por sua vez, o que rondava a cabeça dos profissionais responsáveis por seu caso era um afã incontrolável de lhe ajudar. Não raras vezes ouvíamos a frase “Ela podia ser minha filha”, além do que, sua história verdadeiramente trágica, impulsionava

os

técnicos

a

lhe

cobrirem

de

mimos,

interpretando que a “falta de amor” era o motivo pelo qual Vera

se

grande

drogava.

Uma

posicionamento

passear

nos

finais

destas na

profissionais

instituição,

de

semana

e

inclusive,

levava

lhe

Vera

dava

de

para

presentes

constantemente. Tal nova configuração acarretava que Vera passava a ter todos

os

cuidados:

médicos,

psiquiatras

(passa

a

tomar

medicação), assistentes sociais e técnicos que a levavam e a buscavam do tratamento. Tantos cuidados passam a sufocá-la em relação ao saber sobre si mesma, o que se refletia em seus atendimentos, onde a jovem passa a não ter mais nada a dizer sobre

si,

passando

apenas

a

desenhar.

Seus

desenhos

se

repetiam de forma rotineira: ou desenhava uma casa, sol, uma árvore com frutos e algumas flores, ou um coração para a analista sempre com as seguintes palavras: “Vc é d+. Nunca mais vou te abandonar.”

Importante salientar que Vera passa

da posição de alguém que no início de seu tratamento não ia mais voltar (e voltava!), ou em outras palavras, podia

abandonar

o

outro

para

alguém

abandonar (e como veremos abandona).

lxxxii

que

não

alguém que podia

mais


Tantos

cuidados

especiais

no

intuito

de

lhe

prover

aquilo que interpretavam ser o que lhe faltava, acarretou na mudança desastrosa do rumo do caso. O olhar que debruçavam sobre Vera a impossibilitava de qualquer saber. De imediato podemos perceber que tomando o sujeito pelo viés do déficit, de algo que lhe falta, automaticamente nos posicionamos de forma

a

ter

que

atender

suas

demandas,

de

supri-los,

compensá-los: da falta de amor, da falta de dinheiro, da falta

de

um

lar,

etc.

Esta

forma

de

conceber

o

sujeito

acarreta tanto em uma posição assistencialista, quanto no seu oposto: a segregação.182 Em

um

dos

atendimentos,

explica

de

forma

mecânica

e

questionada repetida

por

que

seus

não

atos,

podia

ser

responsável pelo que fazia. Ensinava-me, - como tentando me fazer

entender

algo

que

lhe

foi

explicado

e

que

eu

desconhecia -, que por ser adolescente não tinha ainda como entender

certas

atitudes

que tomava.

Em

outro momento me

dizia, apesar de sua fala não demonstrar nenhuma emoção ou convicção, que o acontecimento com seus pais acabou deixandoa daquela forma. Tal situação tinha como conseqüência impelir Vera

a

determinados

comportamentos,

pois

acabava

se

identificando a este lugar. Durante os atendimentos, não quer mais falar, querendo apenas desenhar. Satisfeita em seu gozo, atendida em suas demandas, não necessita mais se interrogar, o que inviabiliza qualquer tratamento clínico. Passa a se colocar sempre no sentido de uma recusa a saber algo sobre si. Dizia: “Não sei porque faço isso”, “Não sei porque me corto”, “Não sei porque agrido as pessoas”, “Não sei responder estas suas perguntas”. Certa vez contoume, categoricamente: “Sabe, os doutores me disseram que eu 182

Como vimos acontecer durante anos com os pacientes psiquiátricos, os “loucos”.

lxxxiii


sofri muito, por isso sou assim. Você devia conversar com eles. Eles entendem bem porque sou assim.” Vera, desta forma, atribuía aos “doutores” um saber sobre si. “Liga para eles, eles sabem sobre mim”. Identificada e acorrentada ao lugar que lhe supunham, perde sua palavra e o sentido que ela pode produzir. Repetidamente utilizava o significante “viciada”, como se

ele

sobre

pudesse o

porquê

explicar do

toda

vício,

sua

nada

existência.

tinha

a

Questionada

dizer,

como

que

assolada por um desígnio alheio à sua vontade. A jovem não consegue perceber o que seus atos possuem de relação com seu ser, mostrando compreendê-los como desvinculados de sua vida, sem sentido, como vítima de um capricho do acaso. Sobre sua posição no mundo (“viciada”), o tempo todo era-lhe ensinado como deveria se comportar, o que deveria fazer e não fazer, como se sentia, etc. Não é à toa que passa a me dizer que não mais me abandonaria, o contrário do que fazia na fase inicial de

seu

tratamento,

quando

dizia

que não

mais retornaria.

Quando pensa estar sabendo fazer183 é quando está no maior desconhecimento

de

seu

ser.184

Quando

nada

sabia,

podia

avançar e questionar seus atos. Vera passa a faltar seus atendimentos com freqüência cada vez maior, até sumir por completo.

183

De acordo com o que lhe diziam que devia fazer. Remeto o leitor as págs. 29 e 30 onde Lacan discute a existência de dois lugares: o lugar do pensamento e o lugar do ser. “Penso, onde não sou” e “sou, onde não penso”.

184

lxxxiv


CONSIDERAÇÕES FINAIS (...) a crença na ‘bondade’ da natureza humana é uma dessas perniciosas ilusões com as quais a humanidade espera seja sua vida embelezada e facilitada, enquanto, na realidade, só causam prejuízo.185

Aprendemos, natureza

e

que

com

Freud,

isto

não

que

tem

o

homem

nenhuma

não

relação

é

bom

com

por

credo,

cultura ou classe social. O preço a se pagar para viver na civilização é a renúncia às pulsões e esta renúncia nunca é plena

e

sem

conseqüências,

daí

o

mal-estar,

título

domesticar

a

da

surpreendente obra de Freud de 1930.186 Qual Segundo

seria

Freud

a

possibilidade

“(...)

Não

é

de

fácil

entender

como

pulsão? pode

ser

possível privar de satisfação um instinto [pulsão]. Não se faz

isso

impunemente.

compensada,

pode-se

decorrerão disso”.

Se

ficar

a

perda

certo

de

não que

for

economicamente

sérios

distúrbios

187

A agressividade precisa ser inibida para que não destrua com a civilização. Esta dominação acontece na infância com a instauração do superego [supereu], instância que herda os imperativos parentais.188

A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, 185

Freud,S. - Ansiedade e Vida instintual – Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise - Conferência XXXII (1933[1932]) in Imago Editora, vol. XXII, p. 130. 186 Idem, O Mal estar na Civilização (1930 [1929]), op. cit.. 187 Idem, ibidem, p. 118. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 188 A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade.

lxxxv

ESB,


desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele [supereu], como uma guarnição numa cidade conquistada.189

Porém, há algo que escapa ao controle, insistindo na satisfação da pulsão, ocasionando as transgressões. O sujeito quer mais do que pode ter acesso – ir na direção de uma satisfação que se liga à pulsão: ao gozo.190 É um paradoxo, o homem querer buscar o gozo e este ser um mal,191 porém a Psicanálise nos mostra que é impossível não ir ao gozo. “Nada força ninguém a gozar, senão o superego [supereu]. O superego [supereu] é o imperativo do gozo – Goza!”192 Ocorre que o supereu193 é um imperativo que age a favor da lei, mas que, devido a ser cego e tirano, acaba por lhe ser contrário.194 É assim que “todo aquele que se aplica em submeter-se à lei moral

sempre

minuciosas,

reforçarem-se

mais

cruéis

de

as

seu

exigências, supereu”.195

sempre E,

se

mais “todo

exercício de gozo comporta algo que se inscreve no livro da dívida

na

Lei”,196

o

supereu

permanece

cobrando

pela

sua

todo

ser

transgressão.197 Deste

modo,

a

transgressão

faz

parte

de

humano.198 Mesmo a criança não é um ser bom. O livro O senhor

189

Freud,S., O Mal estar na Civilização (1930 [1929]), op. cit., p. 146. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 190 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit. 191 Ver ps. 43, 44 e 45 acima. 192 Idem, O Seminário, livro 20, Mais Ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro RJ, Jorge Zahar Editor, p. 11. As palavras entre colchetes são de minha responsabilidade. 193 Observamos que o supereu da lei e do gozo não são o mesmo. Maiores informações sobre esta questão podem ser encontradas em Gerez-Ambertín (2003). 194 Idem, O Seminário, livro 1, op. cit. 195 Idem, O Seminário, livro 7, op. cit., p. 216. 196 Idem, ibidem. 197 Para um exame mais detalhado desta questão ver Dóris Rinaldi (1996). 198 Não podemos esquecer que sonegar impostos, avançar sinal, fazer cópia “pirata” de cd ou dvd, etc., também constituem transgressões.

lxxxvi


das moscas199 nos dá um excelente exemplo da agressividade do homem, presente desde a infância. A história gira em torno de um

grupo

de

crianças

que,

após

um

acidente

de

avião,

encontram-se sozinhas numa ilha e precisam buscar formas para sobreviver. Elegem um líder entre eles, regras que devem ser cumpridas por todos e estabelecem tarefas para o grupo. Uma das crianças do grupo porém rebela-se e passa a impor sua própria lei, mediante grande agressividade. Neste momento, as regras passam a deixar de valer e o que prevalece é a lei do mais forte. O interessante a destacar neste livro para nosso estudo é que, não estando as crianças sob a coerção dos adultos, aflora a agressividade existente nelas. O grupo, identificado ao líder agressivo e necessitando de sua proteção, matam, humilham, segregam. O que dizer sobre a crença em encontrar “personalidades degeneradas”, tentativa

que

ou

“disposições

vemos

persistir

hereditárias” tanto em

para

o

crime,

alguns setores da

Psicologia quanto do Direito? Os “criminosos” não são seres inferiores, criaturas brutais e que perderam sua dimensão humana, necessitando da piedade, compaixão e investimento dos homens de bem. Aqueles que cometem crimes não são diferentes de nós, apesar do desejo narcísico daqueles que insistem em querer se diferenciar destas pessoas, como que acreditando fazerem parte de uma raça distinta e superior. Os chamados “criminosos” estrutura

não

são,

psicológica,

nem

biologicamente

distintos

do

homem

e

nem

honrado

em

sua

normal.

Todo homem é estruturalmente capaz de ser um criminoso, um inadaptado e conserva em sua plenitude esta tendência durante os primeiros anos de sua vida. A adaptação do sujeito às 199

Golding, W., O senhor das Moscas, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2006.

lxxxvii


renúncias impostas pela vida em sociedade começa apenas após o período de latência,200 descrito por Freud,

e termina na

adolescência.

durante

período,

Acontece

reprimem

as

que

algumas

genuínas

pessoas,

tendências

este

agressivas

e

dirigem-nas em um sentido socialmente aceito, quando outras pessoas conseguiu

parecem

fracassar

reprimir

sua

neste

momento.

agressividade

O

porém,

homem

que

continua

manifestando-a nos sonhos, no sintoma e também as satisfaz em atividades como: lutas, disputas, jogos agressivos, filmes violentos e, por último, as terríveis guerras. Podemos agora compreender a instigante frase de Lacan em seu seminário O avesso da Psicanálise: “Só conheço uma única origem da fraternidade (...), é a segregação”.201 Interessante Lacan apontar que a fraternidade só pode existir ao preço de que alguns, - aqueles que não consideramos como nossos irmãos – sejam excluídos. É o mesmo que Freud já nos havia apontado em O Mal estar na Civilização quando diz: “É sempre possível unir

um

considerável

número

de

pessoas

no amor, enquanto

sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade”.202 Essa necessidade de segregação se torna evidente quando vemos a comoção que acontece na sociedade contra aqueles que cometeram crimes. O homem passa a dirigir seu ódio (e, como vimos, ele precisa deste escoadouro) para aqueles que julga diferente dele. Vemos estas cenas acontecerem diariamente nos jornais: policiais batendo de forma covarde em traficantes, os crimes cometidos nas guerras, a disputa existente entre times e gangues rivais, o desejo da população de linchar 200

Freud S. - Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol VII. 201 Lacan, J. - O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (1969 1970), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, p. 107. 202 Freud, S. - O Mal estar na Civilização, op. cit., p. 136.

lxxxviii


aqueles

que

cometeram

crimes

hediondos,

etc.

“Espera-se

impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos (...)”.203 Cada pessoa isoladamente sente como uma ofensa própria o mal

infligido

injustamente

a

qualquer

outra

pessoa,

principalmente se esta for do seu mesmo nível social. Este efeito psicológico, o sentimento de injustiça vivido pelas massas

se

funda

no

conceito

de

identificação que

podemos

formular da seguinte forma: A cada um de nós, poderia ocorrer o mesmo. Já aprendemos que a renúncia à satisfação da pulsão se baseia no temor do desprazer ou na esperança do prazer e significa a adaptação das exigências da pulsão aos dados da realidade. Portanto, renuncia-se a determinadas satisfações da

pulsão

porque

a

satisfação

não

é

possível

ou

porque

resultaria em mais desprazer do que a renúncia representa. Freud chamou a isto “a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade”.204 Toda

a

educação

se

representa

uma

exigências

primitivamente

castigo

promove

baseia

adaptação na

neste

dirigida

princípio,

que

sistematicamente

às

anti-sociais

criança

uma

das

vivência

crianças. de

O

desprazer,

enquanto o carinho das pessoas amadas a auxiliam na inibição das pulsões. O temor do castigo e a esperança do carinho representam deste modo, os centros de atração que regulam a vida das crianças.205 Esta troca entre amor e renúncia começa no período da infância mais remota. Posteriormente, o eu, que penosamente 203

Idem, ibidem, p. 134. Ver págs. 39 e 40 acima. 205 Para um exame mais detalhado desta questão ver os textos de Freud, O ego e o Id (vol. XIX) e Inibições, Sintoma e Ansiedade (vol. XIX). 204

lxxxix


inibe suas exigências pulsionais, oferece este sacrifício à sociedade,

na

espera

de

prestações

recíprocas,

segundo

o

mecanismo que já conhecemos, a mesma que o sujeito tinha com seus

entes

lugar

das

queridos. pessoas

Neste

que

momento,

foram

a

sociedade entra no

importantes

na

infância

do

sujeito e suas emanações são o reconhecimento, o respeito e todas as escalas de liberdade que se concede ao cidadão, desde as garantias individuais até outras mais elevadas, que são verdadeiras prestações que ajudam o sujeito a suportar as limitações que lhe são infligidas. A Psicanálise mostra como uma pessoa pode ser querida conscientemente e odiada inconscientemente, ou vice-versa. Da mesma forma, pode se assassinar por ódio e por amor ao mesmo tempo; cometer um furto por razões lucrativas e ao mesmo tempo,

por

impulsos

inconscientes

de

prazer,

que não tem

nenhuma relação com o lucro. Tais fatos não são privativos de ações criminosas. Esta diversidade de motivações se dá também com ações perfeitamente lícitas. O capataz sádico que nas colônias

açoita

os

índios,

tem,

para

sua

conduta,

um

fundamento racional, de que para transformar o selvagem em civilizado é necessário uma severa disciplina. Nas pessoas dedicadas a ensinar se pode dar um fenômeno semelhante, a de concorrerem

tendências

opostas:

uma

consciente,

a

função

social do educador, e outra inconsciente, o impulso agressivo de

dominação.

cirurgião,

ou

A

dureza

do

a

obediência

carcereiro, ao

dever

do

a

destreza

policial,

do

todas

possuem as duas tendências contrárias, das quais somente uma, a

que

representa

permanece

um

obscurecida

fator no

social

transparece.

inconsciente,

A

outra,

produzindo

seus

efeitos de forma clandestina. Quanto

à

educação,

Freud

não

é

otimista

em

sua

utilização na prevenção dos crimes. Relata que a tarefa de xc


educar, é uma das profissões impossíveis.206 Impossível por que? Porque a pulsão de morte não é passível de educação. E os educadores estão sempre esbarrando com essa parte de gozo que

insiste

alunos,

a

no

sujeito.

transmissão

Na

relação

possível

é

entre

apenas

professores

aquela

que

e

está

ligada à pulsão de vida, Eros. Tanto a educação quanto a civilização renunciar

trabalham

a

seus

transgressões,

no

sentido

impulsos

contra

o

que

egoístas.

gozo

os As

sujeitos lutas

desmedido,

possam

contra

precisarão

as ser

constantemente repudiadas, para que a civilização permaneça. Os homens, segundo Freud, (...) não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é para ele, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de sua posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. O homem é o lobo do homem.207

A

agressividade

outro,

momento

faz

que,

parte

como

deste

desejo

estudamos,

de

faz

posse

do

parte

da

constituição do sujeito. Este é o motivo pelo qual Freud não concordava com a posição dos comunistas de que abolindo a propriedade privada, a agressividade deixaria de existir.208 Além do que, que dizermos sobre as injustiças provenientes da própria

natureza

“...

natureza,

a

(defeitos por

físicos,

dotar

os

206

inteligência,

indivíduos

com

beleza)? atributos

Idem, Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn (1925), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol. XIX, p. 341. 207 Idem, O Mal estar na Civilização, op. cit., p. 133. 208 Idem, ibidem, p. 135.

xci


físicos

e

capacidades

mentais

extremamente

desiguais,

introduziu injustiças contra as quais não há remédio”.209 De acordo com o que desenvolvemos até aqui, estaríamos afirmando que qualquer tipo de organização social acarretaria as mesmas conseqüências? Tanto faz vivermos numa ditadura ou em

um

modelo

democrático?

que

a

agressividade

é

de

estrutura e não há como preveni-la, uma vida miserável e oprimida seria equivalente à outra com oportunidades? Obviamente

que

não!

Necessitamos

de

um

Estado

que

propicie crescimento e desenvolvimento para todos para que cada pessoa possa despertar toda sua potencialidade. Freud em um de seus textos, faz uma crítica ao fato da psicanálise ser exclusiva das classes mais abastadas e que o Estado deveria poder disponibilizá-la também para as classes populares.

(...) mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, (...) e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, (...) de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornarse capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres210.

Dessa existência

forma, da

não

miséria,

desconsideramos da

pobreza,

do

os

efeitos

abandono

e

da das

precárias condições de vida que vive uma grande parte da

209

Idem, ibidem, n.r. p.135. Idem, Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica (1919[1918]) in ESB, Imago Editora, vol. XVII. 210

xcii


população. Porém, nosso trabalho visa discutir qual a origem das transgressões sem transformá-la em uma visão simplista do problema, como por exemplo, reduzi-la ao contexto social do sujeito. O que a psicanálise tem a contribuir na interlocução com a Justiça é que existe outro registro, inconsciente, que impele o sujeito ao ato. Este reconhecimento pelo sujeito do que nele o impele a algo independente de sua vontade é um passo importante para que o sujeito se responsabilize e, a partir daí, possa escolher outra forma de se expressar. Caso contrário, estaríamos dizendo que os atos infracionais, as transgressões

são

decorrentes

da

falta

de

alimentação

adequada, educação ou precárias condições de vida (baixos salários). Os crimes seriam exclusividade apenas das classes populares. Quando sabemos a enorme incidência de crimes nas classes média e alta, porém que, muitas vezes, não chegam até os bancos dos réus.

SOBRE A RESPONSABILIDADE

Vimos, com Descartes, que ao homem é possível arcar com sua própria sorte, sem se reconhecer apenas como marionete de um destino impiedoso e inexorável. Este é o sentido do que Lacan

chamou

de

“momento

inaugural

do

surgimento

do

sujeito”,211 ou seja, o surgimento da idéia de que o homem pode se responsabilizar pelo que lhe ocorre. Com

Édipo,212

perguntamos

que

“culpa”

tinha

ele,

efetivamente? Poderia não ser considerado responsável por ter matado seu pai e casado com sua mãe, já que não sabia quem 211 212

Idem, O Seminário, livro 11, op. cit., p. 211. Ver págs. 48 e 49 acima.

xciii


eram? Se, para ter culpa, é necessário aderir conscientemente à prática do mal, Édipo não era culpado. Poderíamos atribuir a responsabilidade ao destino ou a uma vontade caprichosa dos deuses? Não é o que Sófocles pretende nos fazer entender quando

diz:

‘Tu

estás

lutando

em

vão

contra

a

tua

responsabilidade, e estás declarando em vão o que fizeste em oposição a essas intenções criminosas. És culpado por não teres conseguido destruí-las; elas ainda persistem em ti, inconscientemente’.213 A

responsabilidade

sujeito,

deste

conseqüentemente,

supõe

desejo

então

o

“desconhecido”

também

os

atos

que

reconhecimento que

o

comete.

habita No

caso

do e, de

Carlos podemos verificar que o jovem passa a modificar suas atitudes após se responsabilizar por seus atos, o que não ocorre no caso de Vera. Nos perguntamos então: existindo este “estranho” em nós, que não controlamos, isso pode nos servir para que não nos responsabilizemos inconsciente,

esse

por

nossos

“louco”

em

atos? nós?

Seríamos Ou

vítimas

melhor,

seria

do o

sujeito, vítima de si mesmo? Segundo Freud o homem é responsável por seus sonhos, referindo-se aos desejos inconscientes que o habitam. Ante a dúvida sobre a responsabilidade do que sonhamos ele diz:

Obviamente, temos de nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos. Que mais se pode fazer com eles? A menos que o conteúdo do sonho (corretamente entendido) seja inspirado por espíritos estranhos, ele faz parte de seu próprio ser. (...) o

213

Freud S. - Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise Conferência XXI, (1916-1917[1915-1917]) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVI, p. 387.

xciv


que estou repudiando não apenas ‘está’ em mim, mas vez e outra ‘age’ também desde mim para fora.214

Aquilo que desconheço em mim e, mesmo assim, em mim produz efeitos, é chamado por Freud de “desejo inconsciente”. Porém, ser responsável por seu desejo inconsciente não quer dizer que devemos ser “castigados” por eles. Freud cita, como exemplo, o erro cometido por um imperador romano que mandou matar

seu

súdito

por

este

ter

sonhado

que

matava

o

governador.215 São os atos, e não os pensamentos ou desejos, que devem ser considerados nestes casos. Se

somos

responsáveis

pelos

nossos

desejos

inconscientes, que dizermos de um ato criminal? Freud deixando

inclusive

claro

que

aponta o

217

estrutura subjetiva,

sujeito

a é

“escolha

da

responsável

neurose”,216 até

por

sua

pois caso contrário, só resta-lhe ser

joguete do Outro. Apesar de sabermos que os significantes que o sujeito recebe vem do Outro, não podemos esquecer que é o sujeito que interpreta. O sujeito é determinado inconscientemente em relação às suas

escolhas

e

ações

no

mundo.

A

diferença

crucial entre a determinação inconsciente em

que

a

acredita218

ciência

principal

e

e a determinação

(questões

genéticas

ou

hereditárias, por exemplo) é que a última exclui por completo a

responsabilidade

do

sujeito.

214

Como

citado

no

segundo

Idem, Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo (1925) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX, p. 165. 215 Idem, A Interpretação dos Sonhos, op. cit., p. 560. 216 Idem, A disposição à neurose obsessiva - Uma contribuição ao problema da escolha da neurose (1913) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XII. 217 As estruturas subjetivas em psicanálise são: neurose, psicose e perversão. 218 Por exemplo, a crença que os psicofármacos podem responder e resolver o mal-estar do sujeito.

xcv


capítulo de nosso trabalho,219 algumas nomeações como: “eu sou toxicômano”

ou

“eu

sou

deprimido”,

tendem

a

desresponsabilizar o sujeito por sua posição, - que foi sua escolha [inconsciente] - no mundo. Nos casos citados percebemos que apenas quando o sujeito reconhece em seus atos algo que se relaciona com seu ser podemos

pensar

em

alguma

modificação

posterior

de

suas

atitudes. É quando o sujeito se torna capaz de dizer “Eu devo de

alguma

forma,

ser responsável

por

isso”. Essa

virada,

promove no sujeito uma responsabilização do que lhe ocorre, deixando de queixar-se dos outros e passando a reconhecer em si

a

responsabilidade

retificação

subjetiva

por

220

o

sua

vida.

Lacan

numa

análise

momento

chamou em

de

que

o

sujeito se implica em seu sintoma. Podemos aferir então que ser responsável não é, de forma alguma,

equivalente

a

ser

punido,

equivalência

que

vemos

existir para o Direito Penal. Estaria aí a chave para nosso problema? Punir, não necessariamente promove no sujeito a responsabilização por seu ato. Muitas vezes inclusive, punir é

atender

a

demanda

do

sujeito,

dando-lhe

um

objeto:

a

punição, a carceragem. O sujeito pode até acreditar que seu ato está “quitado”, sem contudo, obter alguma implicação ou responsabilidade no mesmo. Uma punição pode até mesmo ser justa, mas isso não implica na responsabilização do sujeito pelo seu ato. Como responsabilizar o sujeito por seu ato? Esta

pergunta,

se

respondida,

resolveria

muitos

dos

problemas que vivemos atualmente, contudo, sabê-la de antemão seria excluir o conceito de pulsão de morte e tornar o mundo

219

Pág. 30 acima. Miller, J-A. - Introdução ao Inconsciente in Lacan Elucidado, Rio de Janeiro, 1997, p. 255.

220

xcvi


um lugar bem previsível. Esta é a pretensão da ciência, não a da psicanálise. Qual seria então a diferença entre um adolescente e um adulto? O sujeito é outro na adolescência? Para a psicanálise não.

Tanto

“criança”,

sociológicas.

São

quanto

conceitos

“adolescente”

muito

são

recentes,

categorias

remontando

ao

Século das Luzes.221 A diferença entre adulto e adolescente não é estrutural, visto que todos são sujeitos. Se o adolescente não é responsável por seu ato, quem o seria?

Em

A única forma de concebermos o sujeito como responsável, na contramão que a psicanálise impôs à ideologia psicojurídica do século XIX, é atribuirmos a ele a responsabilidade, exemplarmente pleiteada por Althusser, pela escolha de seu pathos.222

contrapartida,

não

se

trata

de

acreditar

que

o

adolescente se responsabilizando por seus atos significa a solução para a criminalidade infanto-juvenil. Novamente, os problemas são do humano e não da idade. Este repúdio ao que há de agressivo no homem deverá exercer sua pressão de forma constante pois não há como existir satisfação da pulsão e vida em sociedade concomitantemente.

221

Para um exame mais detalhado desta questão ver o livro de Philippe Áries “História Social da Criança e da Família”. 222 Alberti, S. - O adolescente, o discurso do mestre e o discurso do analista in Revista Marraio 1- Da infância à adolescência - Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro, 2001, p. 49.

xcvii


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