UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE PSICOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE MESTRADO Pesquisa e Clínica em Psicanálise
VALÉRIA CRISTINA CARDOSO GLIOCHE
A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE NA ADOLESCÊNCIA SOB A ÓTICA DA PSICANÁLISE E DO DIREITO
Dissertação de Mestrado
Rio de Janeiro, 19 de setembro de 2007
iv
A QUESTÃO DA RESPONSABILIDADE NA ADOLESCÊNCIA SOB A ÓTICA DA PSICANÁLISE E DO DIREITO
VALÉRIA CRISTINA CARDOSO GLIOCHE
“DISSERTAÇÃO APRESENTADA AO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICANÁLISE DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO COMO REQUISITO PARCIAL PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE MESTRE EM PSICANÁLISE”
ORIENTADOR: LUCIANO ELIA
RIO DE JANEIRO,
SETEMBRO DE 2007
ii
A meus falecidos av贸s Angelo Geraldo Glioche e Ondina Moreira Glioche por tudo o que foram na minha vida. A meus filhos amados Gabriella, Bernardo e Sofia. A meu marido Ronaldo Companheiro desta jornada...
iii
Agradecimentos: - a meu marido Ronaldo, pelo auxílio, pela paciência, pelo companheirismo, pelo amor; - a minhas primas Patrícia, Lucia e Angélica pelas dicas, orientações e indicações de livros na área do Direito; - a minhas amigas Patrícia Schmid e Patrícia Alves pelo constante incentivo e amizade; - a Paula Kleve, pela Vorstellungen; - a Luciano Elia, por ter aceitado me orientar; - a meus pais, pelos Züge.
Agradecimentos especiais a todo corpo docente do mestrado em Psicanálise da UERJ, pela disposição com a qual se dedicam à difícil tarefa da transmissão.
iv
RESUMO O
presente
trabalho
tem
como
objetivo
pesquisar
a
questão da responsabilidade na adolescência, tendo em vista que para o Direito o adolescente é penalmente irresponsável (inimputável). Buscamos compreender quem é este sujeito que transgride, utilizando os conceitos de Freud e Lacan. A partir do atendimento a adolescentes em conflito com a lei,
analisamos
os
efeitos
da
inimputabilidade
no
comportamento destes jovens. Por fim, apontamos a diferença existente entre punir e responsabilizar ressaltando que
a
punição não necessariamente implica na responsabilização do sujeito pelo ato cometido.
ABSTRACT
This study investigates the issue of responsibility in adolescence,
considering
the
fact
that
law
in
Brazil
conceives adolescents as not legally responsible for their criminal actions. Through the work developed directly with youth who had broken the law, the author discusses the impact of
not
being
legally
responsible
on
these
adolescents’
behaviors. The theoretical framework developed by Freud and Lacan is presented as the basis of this study. The
author
punishment
and
also
discusses
responsibility,
the
difference
highlighting
that
between to
be
punished not necessarily leads to take responsibility for your action.
v
SUMÁRIO
Introdução................................................... ................... 1 Capítulo 1: A responsabilidade Penal ........................................10 Capítulo 2: O sujeito da Psicanálise ........................................ 24 2.1 - O surgimento do sujeito na história .......................... 24 2.2 - A realidade é psíquica ......................................... 32 2.3 - O surgimento do sujeito ....................................... 35 2.4 - Para além do princípio de prazer ............................. 41 2.5 - O falo ........................................................ .. 46 2.6 - Uma nova ação psíquica ........................................ 50 2.7 – Começa a se delinear o eu ..................................... 55 2.8 - A agressividade .................................................59 Capítulo 3: Casos ............................................................. 62 3.1 – O marginal .......................................................62
vi
3.2 – A viciada .........................................................68 Considerações Finais ..........................................................73 Sobre a responsabilidade ..............................................81 Bibliografia................................................. ....................86
vii
INTRODUÇÃO
O
adolescente
transgressor
traz
grandes
dificuldades tanto para os profissionais do campo da Justiça quanto
para
os
do
“desenvolvimento
campo
mental
da
Saúde.
incompleto”,
1
Por
possuir
ainda
a
legislação
um
que
os
rege compreende particularidades que visam a garantia de um crescimento físico, mental e social adequado. É justamente na interseção entre o que a Justiça e a Saúde consideram um adequado desenvolvimento mental ou psíquico que os problemas se dão. É freqüente vermos adolescentes transgressores sendo tratados
pelo
deficiência
aparelho
qualquer
judiciário
que
precisa
como ser
portadores
de
uma
“consertada”;
com
medicação específica ou com terapêutica comportamental. Como se, fazendo os ajustes necessários em uma máquina que vem funcionando
mal
ou
ainda
extirpando
variáveis
exteriores2
àquele sujeito, garantimos uma “adequação” deste à vida em sociedade. O objetivo é “reformar” o sujeito, como se ele tivesse “erros” que podem ser consertados por nós. 1
Expressão utilizada em nosso “Código Penal” artigo 26. Exteriores como aquilo que o sujeito não pode controlar, alheio à sua vontade
2
viii
Eis aqui o grande desafio para o psicanalista que atende esses jovens, já que trabalhamos com um sujeito que comete um ato que é de sua autoria e não de outrem, e que pode se responsabilizar dizer,
pelo
agressivos,
por
seu
suas
escolhas,
sintoma.
infracionais
E e
é
ações
assim
e,
por
que
tomamos
transgressores
destes
que os
não atos
sujeitos
que, cada vez mais, chegam aos serviços de saúde mental: como um sintoma que fala sobre a verdade daquele sujeito. Apesar de no Estatuto da Criança e do Adolescente estar prevista a aplicação de medidas sócio-educativas caso tenha existido
a
acontecer
prática é
a
de
infracional,3
ato
existência
de
uma
o
lógica
que
observamos
confusa
entre
a
história pregressa daquele indivíduo, - por exemplo o estado de
pobreza
responder
destas
pelos
pessoas
seus
-,
atos.
com
Como
o
fato
se, por
de
necessitarem
aquele indivíduo
possuir história de abandono pelos pais, ou viver em precária situação
social,
ou
ainda
ser
órfão,
isto
por
si
só
“justificaria” seu ato, relevando-se assim o motivo de suas ações
e
sendo
encaminhados
para
tratamento.
Além
da
necessidade de questionarmos porque jovens que cometem atos infracionais indispensavelmente precisam de tratamento, não entendíamos porque não deviam prestar conta de seu ato. Assim podemos entender porque em 1999 as enfermarias do Hospital Vicente Resende4 adolescentes
em
viviam com seus 40 leitos destinados a grave
crise
psiquiátrica,
preenchidos
mês
após mês.5 3
As medidas sócio-educativas podem ser: advertência verbal, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semi-liberdade, ou internação em estabelecimento educacional. 4 Este hospital faz parte do Instituto Municipal Nise da Silveira. 5 Após longo trabalho no sentido da desinstitucionalização de crianças e adolescentes que, muitas vezes, passavam meses internados em enfermaria psiquiátrica, conseguimos reduzir o número de leitos para 12 (doze) o que implicou em trabalho mais rigoroso nas indicações para internação e em
ix
Este hospital tem como principal característica ser o único recurso público de todo o Estado a possuir internação psiquiátrica para crianças e adolescentes em grave sofrimento psíquico. O hospital possui três modalidades de atendimento: (a) internação - para pacientes em grave crise psiquiátrica, onde o recurso da atenção diária não se mostra suficiente; (b) centro de atenção diária - tem como objetivo o trabalho intensivo
com
a
possibilitando
a
internações,
clientela queda
em
no
propiciando
grave
número
inclusive
sofrimento e
que
na
psíquico,
freqüência
muitos
de
adolescentes
não experimentem este recurso, já que funciona em caráter diário e integral no formato de oficinas terapêuticas; (c) o ambulatório
-
serviço
com
importante
papel
na
rede
de
serviços de saúde mental do Estado por realizar uma interface entre a alta da enfermaria e seu posterior encaminhamento para a rede de saúde do Estado/Município, além de ser a principal
referência
da
zona
norte
da
cidade
do
Rio
de
Janeiro. Minha função neste serviço consistia em coordenar e supervisionar psicólogos, funcionários
a
equipe
assistentes que
de
profissionais:
sociais,
faziam
a
técnicos
recepção
do
de
psiquiatras, enfermagem
serviço,
além
e de
possuir uma agenda com atendimento semanal neste ambulatório. Dos atendimentos realizados, alguns adolescentes encontravamse em conflito com a lei, tendo eles fornecido a semente que desencadeou este trabalho. Nestes últimos anos trabalhando com pacientes com grave sofrimento adolescentes
psíquico, sem
nos
espantava
sintomatologia
a
quantidade
psiquiátrica
que
de se
encontravam internados. É corriqueiro inclusive se dizer, nos
maior interlocução com as Varas da Infância e Juventude. Informações colhidas no Núcleo de Informações Gerenciais (NIG) do Instituto Municipal Nise da Silveira.
x
serviços de saúde mental, que este serviço – a enfermaria – era o “fim da linha”, devido a ser um recurso extremo que serviria
como
freio,
como
recurso
último
para
impedir
determinado comportamento. Tal situação se devia ao fato da Justiça
ordenar
infracionais”
a
internação
eram
motivo
por
de
interpretar
internação,
ou
que
“atos
melhor,
que
aqueles adolescentes por cometerem tais atos, não poderiam estar
“em
perfeito
juízo”.
Esta
atitude
por
parte
dos
representantes da Justiça nos aponta uma forma de concepção da infância e adolescência como uma etapa primorosa e sem problemas
da
vida
responsabilidade
e
é
qualquer do
desajuste
biológico
nesta
fase,
(deficiência
a
mental,
disfunções orgânicas, etc.), da deficiente educação dos pais ou da total falta dela. Outra constatação que pudemos fazer nas interlocuções que tais casos propiciaram era um grande sentimento estado
de
“culpa”
atual
daquele
impossibilidade
de
se
dos
representantes
adolescente, fazer
da
tendo
cumprir
o
Justiça em
que
pelo
vista
preconiza
a o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Era como se a internação servisse como alternativa possível naqueles casos, uma forma de “compensação” não os tratando como infratores6, mas como doentes. Além de estas internações acontecerem por mandado
judicial,
equipe
do
ou seja,
hospital,7
não
tínhamos
passarem
por avaliação da
enorme
dificuldade
no
encaminhamento daqueles pacientes após a alta, já que muitos não
possuíam
mais
vínculos
familiares
ou
não
eram
mais
aceitos por estes. Os abrigos da rede de assistência social, alternativa
existente
justamente
para
estes
casos,
tinham
enorme dificuldade em receber esta clientela, alegando “falta 6
No sentido daquele que comete um ato infracional. O juiz assina uma determinação judicial para internação que não pode ser contestada, independente da concordância ou não da equipe de saúde mental.
7
xi
de vaga”, o que acarretava em meses de reclusão/internação. Mesmo
estando
com
alta
médica,
por
serem
adolescentes,
estavam sob “nossa responsabilidade” juridicamente, devendo nós,
como
instituição,
responder
pela
guarda
e
cuidados
daqueles jovens. Esta configuração, - lugar de tratar ser o mesmo lugar onde se prende - já trazia por si só muitos complicadores possíveis.8 Porém, a decisão de elaborar esta pesquisa só nasceu a partir de uma situação vivida com a Justiça em relação a uma paciente adolescente. Silvia, como vou chamála,9 era moradora de um município do Estado do Rio de Janeiro e
tinha
inúmeras
internações
em
nosso
hospital,
todas
ocasionadas por seu comportamento agressivo. Em sua primeira infância, foi retirada do convívio familiar por denúncia de maus-tratos feita pelos vizinhos. Sua mãe era alcoólatra e seu
padrasto
era
acusado
por
ela
de
abuso
sexual.
Esta
paciente era uma dos que passavam longos períodos de tempo internados, pela dificuldade de se encontrar um abrigo que a aceitasse. Nestes longos períodos que passava internada fez um forte vínculo com alguns membros da equipe. Era atendida por
uma
psicanalista,
mas
por
ser
muito
demandante,
“sem
limites” (expressão que já virou jargão em muitas equipes) e agressiva, também outros profissionais se dispunham a ouvila,
sendo
eu
uma
destas.
Silvia
não
desconhecia
a
responsabilidade do hospital perante ela e por isso, inúmeras vezes
ensaiava
fugas.
Numa
destas,
8
pulou
as
grades
do
O paciente estava em tratamento e deveria ter os profissionais de saúde como seus aliados, porém, como se encontravam com sua liberdade tolhida, passavam sua estadia ali dizendo já estarem melhores (independentes de estarem ou não) e solicitando insistentemente sua alta. Desta forma, tentavam mascarar seus sintomas e desconfiavam dos profissionais, receosos de que suas ações pudessem ser interpretadas como se devessem permanecer por mais tempo internados. 9 Os nomes deste trabalho foram trocados, com o intuito de preservar a privacidade das pessoas.
xii
hospital
sendo
seguida
por
um
guarda
e
pela
diretora
da
instituição e foi para o meio da rua, fazendo com que um ônibus parasse abruptamente a centímetros de seu corpo. Ria, olhando
para
os
técnicos
do
outro
lado
da
grade.
Este
acontecimento nos fez não mais tentar impedi-la de fugir. Poderia
ir
se
quisesse,
o
que,
é
claro,
ocasionou
a
interrupção das fugas, indo muitas vezes embora calmamente, mas
voltando
agressivos
algumas
com
os
horas
técnicos
depois. do
Após
hospital
inúmeros
e
com
as
atos outras
pacientes internadas (se aprazia em socar a barriga de uma adolescente grávida) e tendo quebrado o carro de uma das técnicas,
resolvemos,
encaminhá-la
para
a
após
muitas
delegacia
de
discussões menores,
em
equipe,
DPCA, para que
respondesse por seus atos. Visávamos a que a Lei, encarnada, pudesse produzir algum efeito para aquela paciente. Porém, os técnicos
da
justiça
(promotores,
assistentes
sociais
e
psicólogos) interpretaram nossa atitude como “irresponsável”, já que a adolescente era “inimputável”, não só por sua idade, mas também pelo fato de estar em tratamento. A promotora de justiça da Vara da Infância e Juventude, segundo sua própria avaliação, atendia
ou
Silvia,
encaminhou-a devendo
seja,
o
para
sem
aplicou uma
Município
escutar a
remissão
clínica
onde
nenhum
a
profissional
do
ato
particular
adolescente
praticado
fora
do
que e
Estado,
residia custear o
tratamento. Consultando um pouco mais o Estatuto da Criança e do Adolescente,
no
capítulo
V,
onde
se
trata
da
remissão,
encontramos o seguinte:
ART. 126 – Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a
xiii
remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional. PARÁGRAFO ÚNICO – Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.10
Ou seja, os Promotores de Justiça em atuação na Vara de Infância e Juventude, em seu próprio arbítrio, interpretando o ocorrido como não suficiente para se chamar aquele sujeito a
responder
ocasionará
por na
ele,
podem
suspensão
ou
conceder
a
extinção
do
remissão
o
que
processo.
Foi
exatamente o que aconteceu no caso mencionado, não havendo a necessidade da parte que sofreu o dolo e promoveu a notícia do fato ser ouvida. Não é de se espantar o aumento assustador de crianças e adolescentes que vem sendo utilizados em crimes e no tráfico de entorpecentes... Foi então, a partir deste posicionamento dos técnicos da Justiça,
sobre
esta
“inimputabilidade”
na
infância
e
na
adolescência, que me vi convocada para este tema. Perguntavame
então,
como
conjugar
o
atendimento
psicanalítico
que,
dentre outras coisas, visa à implicação e a responsabilização do
sujeito
pelos
seus
atos,
com
a
afirmação
da
Justiça,
instituição que encarna a lei e determina direitos e deveres dos
cidadãos,
de
que
aquele
sujeito
não
pode
se
responsabilizar? O desafio que percebo é como incluí-los em uma lei, às restrições e renúncias que a vida civilizada impõe, quando todo ato jurídico, nesta etapa da vida, visa o não-encontro, a não-responsabilização, uma proteção que exclui o sujeito
10
Estatuto da Criança e do Adolescente, 1990:46 (o grifo é meu).
xiv
enquanto aquele que age porque fez uma escolha (consciente ou não) e não por falta de “maturidade”. Qual então pode ser a direção de um trabalho com estes adolescentes,
sem
concebê-los
como
“defeituosos”,
tomando
suas ações como um posicionamento singular de um sujeito? Como
responsabilizá-los
quando
a
Justiça
os
toma
como
irresponsáveis? Qual seria a direção a tomar com adolescentes transgressores quando convocam com seus atos a aplicação da lei
e
esta
os
exclui
como
exceções?
Quando
a
suposta
benevolência em poupá-los de se responsabilizarem por seus atos se transforma em ato que os exclui como sujeitos? Uma explicação sobre o tema se faz necessária. Nossa intenção de compreender a responsabilidade na adolescência requer, no momento em que vivemos, um esclarecimento. Não desconhecemos
que
atualmente
vem
sendo
discutida
enfaticamente a redução da maioridade penal. Sabemos que os atos
criminosos
em
qualquer
faixa
etária
representam
um
perigo para a sociedade e seu maior interesse é torná-los inócuos, estabelecendo com o castigo, um exemplo intimidante. Também reconhecemos que toda sentença pressupõe a compreensão psicológica de quem a executou, ou seja, a justa ponderação de seus motivos. A pessoa que pratica o mesmo fato pode, segundo sua motivação, ser condenado ou absolvido. Matar um homem, se este é um inimigo de guerra, é digno de elogio; se a morte é de um agressor em defesa própria, considera-se legítima defesa; o crime passional é motivo de controvérsias, algumas vezes sendo perdoado; mas o assassinato para roubar é condenado unanimemente. Todos os casos citados são o mesmo fato, mas valorizamos de maneira distinta as diferentes metas do autor e suas diferentes motivações. Sem o conhecimento dos motivos que levam alguém a cometer um crime, não é possível avaliar com exatidão seu ato. xv
Sabemos também que um trabalho como este, em que se discute a responsabilidade na adolescência, deve instigar a sociedade,
visto
que,
amplamente
discutido
atualmente nos
meios
este
de
assunto
vem
comunicação.
O
sendo estudo
teórico deste tema vem sendo recebido como um bálsamo que poderia vir a resolver os problemas relativos a adolescentes que se portam como inimigos da sociedade. Esclarecemos que nosso objetivo não é “proteger” o adolescente da sociedade, e nem
o
inverso,
mas
discutirmos
tema
tão
caro
para
a
psicanálise como a responsabilidade. Nosso estudo não tem como objetivo definir qual a idade adequada para que um jovem possa responder por seus atos, mas teorizar
e
apontar
quais
as
conseqüências,
positivas
ou
negativas, da impossibilidade de um sujeito poder responder por um ato seu, cometido em seu nome. Da mesma forma, não preconizamos com estas indagações o aumento da repressão, na forma simplória “fez, deve pagar”, mas sim o questionamento dos supostos benefícios e/ou malefícios que tal interpretação possa ocasionar aos jovens em conflito com a lei. Também sabemos que alguns setores da sociedade defendem a redução da maioridade penal como solução para a delinqüência juvenil, porém não nos iludimos que tal atitude não solucionaria o problema da transgressão, pelo contrário, atenderia apenas a interesses
políticos
retrógrados,
preconceituosos
e
maniqueístas. Para
dissertarmos
sobre
o
tema
pretendemos
uma
investigação sobre o porquê da irresponsabilidade da criança e do adolescente à luz do Direito, quais as para
esta
assertiva,
fazendo
um
bases teóricas
contra-ponto
com
a
necessidade da implicação dos menores e seu reconhecimento como sujeito.
xvi
No
primeiro
capítulo
visamos
estudar
o
conceito
de
inimputabilidade e responsabilidade para o Direito e quais as teorias que sustentam a inimputabilidade para os menores de 18 anos. Neste capítulo citaremos alguns autores do Direito e suas posições frente ao tema da inimputabilidade. No capítulo 2 desenvolveremos o conceito de sujeito para a psicanálise. Quem é este que nomeamos “eu”? Quem é este que age em nós? Pretendemos,
conhecendo
compreender capítulo,
a
assunção
buscaremos
como da
se
estrutura
responsabilidade.
estudar,
através
o
sujeito,
No
terceiro
do
exame
adolescentes em conflito com a lei atendidos por nós, importância
da
questão
da
responsabilidade
no
de
qual a
tratamento
destes jovens. No capítulo final, em posse do conceito de responsabilidade para o Direito e elaborada a questão de quem é
o
sujeito,
sinalizamos
reflexões
para
as
questões
levantadas. Adiantamos que o que será exposto aqui não esgota a questão. Este trabalho será complementado posteriormente com entrevistas a adolescentes em conflito com a lei, o que já nos foi disponibilizado por um contato no Ministério Público. Julgamos
que
tais
entrevistas
poderão
nos
fornecer
dados
importantes de como estes jovens lidam com a lei e com os ideais.
xvii
1 - A Responsabilidade Penal
Encontramos a seguinte definição de responsabilidade no dicionário: “obrigação de responder pelos seus atos ou de outrem”. Para responsável: “que responde pelos seus atos ou pelos
de
outrem;
que
tem
cumprir certas obrigações”. O
Direito
imputabilidade
12
Penal como
compromissos;
pessoa
que
deve
11
toma
a
responsabilidade
conceitos
indiferente o emprego de um ou outro.
similares, 13
e
tornando
Portanto, inimputável
é o indivíduo considerado não responsável pelos seus atos para
o
Direito
Penal.
Nelson
Hungria
conceitua
a
responsabilidade penal para o Direito da seguinte forma:
A responsabilidade pressupõe no agente, contemporaneamente à ação ou omissão, a capacidade de entender o caráter criminoso do fato e a capacidade de determinar-se de acordo com esse entendimento. Pode, então, definir-se a responsabilidade como a existência dos pressupostos psíquicos pelos quais alguém é chamado a responder penalmente pelo crime que praticou.14
Em nosso Código Penal encontramos nos artigos 26 e 27 os casos em que o sujeito é considerado irresponsável.
11
Bueno, F. S. - Dicionário Escolar da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, MEC/FENAME, 1979, 11ª edição/2ª tiragem 12 Para a definição de imputabilidade, remeto o leitor à página 14. 13 Hungria, N. - Comentários ao Código Penal, Rio de Janeiro, Edição Revista Forense, 1955, 3ª edição, vol. I, tomo 2°, arts. 11 a 27, p. 314. 14 Idem, ibidem. O grifo é meu.
xviii
Art. 26. É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. Art. 27. Os menores de dezoito anos são penalmente irresponsáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial.
De acordo com o Código Penal, os menores de dezoito anos e
os
loucos
são,
previamente,
excluídos
de
qualquer
possibilidade de se responsabilizar por seus atos. No caso dos loucos o juiz deve solicitar laudo psiquiátrico para que se constate a existência da doença mental. Com os menores de dezoito anos a causa biológica (imaturidade) é suficiente para que não seja atribuída a responsabilidade penal, não havendo
necessidade
psiquiátrica.
de
Este
nenhuma
critério
é
indagação utilizado,
psicológica segundo
ou
Nelson
Hungria, por estar de acordo com uma política criminal e predomina dizia:
sobre
o
artigo
156
do
antigo
Código
Civil
que
“o menor entre 16 e 21 anos, equipara-se ao maior
quanto às obrigações resultantes de atos ilícitos, em que for culpado”. independe
O a
Novo
Código
idade
do
Civil menor:
traz todos
uma
inovação.
são
Nele
considerados
responsáveis como consta no artigo 928:
O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes. Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele 15 dependem.” 15
Novo Código Civil: Exposição de Motivos e Texto Sancionado. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2002.
xix
Portanto independe se o menor é responsável civilmente, ainda assim, é considerado penalmente inimputável. A política criminal a que se refere Hungria contém os seguintes princípios:
Ao invés de assinalar o adolescente transviado com o ferrete de uma condenação penal, que arruinará, talvez irremediavelmente, sua existência inteira, é preferível, sem dúvida, tentar corrigi-lo por métodos pedagógicos, prevenindo a sua recaída no malefício. O delinqüente juvenil é, na grande maioria dos casos, um corolário do menor socialmente abandonado, e a sociedade, perdoando-o e procurando, no mesmo passo, reabilitá-lo para a vida, resgata o que é, em elevada proporção, sua própria culpa. (...) A defesa dos pequenos homens, notadamente contra o seu abandono moral, assumiu o mais alto relevo, desde que se compreendeu que estava aí, em grande parte, a solução de um dos mais graves problemas sociais, qual seja o da prevenção da delinqüência.16
Hungria17 afirma que “toda criança é boa por natureza” e se refere a Freud por suas descobertas sobre a sexualidade infantil como “denegridor da espécie humana”. Corrobora suas afirmações
citando
algumas
pesquisas
e
diversos
autores,
dentre eles um juiz de menores18 em Barcelona que afirma que a assistência material e moral do Estado tem o poder de anular a influência nociva adquirida no convívio familiar. Retomando “determinar-se
o de
artigo
26
acordo
do com
Código o
Penal,
entendimento
o
que do
seria
caráter
criminoso do fato?” (o grifo é meu) Alguns pensadores do
16
Hungria, N. - Comentários ao Código Penal , p. 353-354, grifo meu. Nelson Hungria foi ministro do Supremo Tribunal Federal, Membro da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal e da Comissão Elaboradora dos Anteprojetos da Lei das Contravenções Penais. 18 Cuello Calón. 17
xx
Direito19,
conscientes
do
embaraço
que
tal
frase
promove,
defendem a idéia de que a vontade psicológica não deve ter relevância jurídica. Argumentam:
O nexo de responsabilidade se estabelece porque assim o exige a norma jurídica, desde que não acontece o que ela mandava que acontecesse. Pouco importa que o agente tenha ou não capacidade de querer. Ao invés de dizer-se: há pena porque há culpa, deve-se dizer: há culpa porque há pena.20
De maior consenso porém no Direito Penal, o elemento “vontade”,
apesar
do
reconhecimento
diversas interpretações,
de
ser
suscetível
à
é de fundamental importância para a
imputação da responsabilidade, assim como a análise de todas as
variáveis
que
levaram
o
sujeito
ao
crime
e,
conseqüentemente, a imputação da pena, afinal, argumentam, “para atribuir-se a alguém uma obrigação como conseqüência de um ato ilícito, são indispensáveis requisitos ulteriores à disposição da norma, e precisamente eles é que constituem as condições fundamentalmente psicológicas da responsabilidade jurídica.”21
Desta forma o Direito Penal adota a posição que
todo o indivíduo é moralmente responsável (exceto aqueles citados no artigo 26 e 27), ou seja, capaz de escolher dentre as ações possíveis, aquela que julga mais adequada conforme os preceitos de sua cultura. Zaffaroni conceitua a culpabilidade como a reprovabilidade do injusto ao autor, que só é possível quando revela que o autor atuou com uma disposição interna contrária à norma violada. Ao não 19 20 21
Podemos citar Kelsen, Gareis e Scarano. Hungria, N. - Comentários ao Código Penal , n.r.p. 320. Idem, ibidem, n.r.p. 320.
xxi
ser motivado pela norma, quando podia e era exigível que o fizesse, o autor mostra uma disposição interna contrária ao Direito.22
O
conceito
de
culpabilidade
foi
também
amplamente
descrito por Álvaro Mayrink23 através de um estudo histórico onde analisa as diversas etapas que foram necessárias para a construção
do
conceito
até
chegarmos
ao
que
é
utilizado
atualmente: 1°) etapa psicológica; a culpabilidade tinha seu enfoque direcionado para a atribuição psicológica de uma ação. 2°)
etapa
psicológica
normativa;
a
culpabilidade
se
baseava sobre a reprovabilidade do autor por tal ação. 3°)
etapa
normativa
pura,
conceito
estritamente
normativo utilizada hoje (1984), considera a vontade separada da ação.24 Álvaro Mayrink defende a tese de que o cidadão não tem nenhuma outra obrigação senão a de obedecer as leis. O que passa a ser reprovável ao autor do ato ilícito, onde será averiguada a culpabilidade, é o fato dele ter realizado um ato “injusto”25 quando podia eximir-se de fazê-lo. O que está agora em questão não é mais o autor do ato e sim o ato do autor. Para
o
Direito
Penal
a
responsabilidade
não
prevê
variações: ou se é responsável ou se é irresponsável. O que varia
e
será
mensurável
caso
22
o
autor
do
crime
seja
Zaffaroni, Manual de Direito Penal Brasileiro, RT, 2ª ed., 1999, 345,601, apud Costa, A. M. - Direito Penal, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2005, parte geral, vol. II, p. 1092. 23 Advogado criminal, desembargador do Tribunal de Justiça do RJ, presidente do Fórum Permanente da Execução Penal. 24 Costa, A. M. Direito Penal, Rio de Janeiro, Editora Forense, 2005, Parte Geral, vol. II, 7ª edição, p. 1103. 25 Expressão utilizada nos livros de Direito. Refere-se ao ato ilícito, contra as leis.
xxii
considerado responsável é a “culpabilidade”, como medida da gravidade
do
crime
e
para
a
imputação
da
pena.
A
imputabilidade seria “a capacidade psíquica de ser sujeito da reprovação de compreender o injusto do fato e de determinarse conforme esse entendimento”26. Para que possa ser atribuído ao
autor
“culpabilidade”
é
preciso
primeiro
que
seja
imputável. O conceito de inimputabilidade no caso do art. 26 é definido pela incapacidade psíquica de culpabilidade do autor do injusto penal.27 Passemos portanto à discussão sobre a inimputabilidade na infância e adolescência.
Em nosso Código Penal os menores
de 18 anos são penalmente inimputáveis e estão sujeitos à legislação específica28. O Código Penal francês de 1994 no art. 122-8 determina condições para que sejam aplicadas penas contra menores com mais de treze anos. O SGtB de 1998, § 19, prevê a isenção de responsabilidade a quem no momento da ação não tenha catorze anos. Nosso código de 1890, art. 27, § 1°, estabelecia a inimputabilidade até os nove anos de idade. Entre os nove anos e os 14, o juiz estaria incumbido de verificar
discernimento
infracional.
Somente
em
quando 1921
na esta
realização lei
foi
do
ato
revogada29,
substituindo-a pela que dispunha que qualquer menor de 14 anos, autor de fato punível, não seria submetido a qualquer ação penal. A Consolidação das Leis Penais, art. 27, § 1°, diz que “não são criminosos os menores de 14 anos” e de 14 a 18 anos deveriam ser submetidos a processo especial, podendo ser internados em escola de reforma, pelo prazo mínimo de três anos e máximo de sete anos. Será em 1940 e 1984 com o atual Código Penal que os menores de 18 anos se tornarão 26 27 28 29
Costa, A. M. - Direito Penal , p. 1120. Idem, ibidem, p.1123. Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). Lei n° 4242 de 5 de janeiro de 1921, art. 16, § 3°.
xxiii
inimputáveis,
não
sendo
admitida
consideração em contrário30. O
Estatuto
específica
da
justificativa
ou
31
Criança
destinada
nenhuma
aos
e
do
Adolescente,
menores
de
18
legislação
anos,
prevê
a
“proteção integral à criança e ao adolescente”32, colocando a criança como prioridade absoluta, sendo dever da família, da sociedade
e
do
Estado,
protegê-la.
As
medidas
sócio-
educativas, que prevê o Estatuto, são aplicáveis apenas aos adolescentes que praticam atos infracionais33. O infrator com menos
de
12
anos
estará
sujeito
às
medidas
protetivas
estabelecidas pelo art. 101 do ECA. O
menor
infrator
de
12
a
18
anos,
após
seu
ato
infracional ter sido analisado quanto à gravidade, pode ser destinado a internação34 em local adequado. Tal medida não tem como
objetivo
a
punição,
como
é
o
sentido
da
pena
para
maiores de 18 anos, mas sim o de uma assistência educativa. As
unidades
de
internação
da
Funabem
e
Febens
foram
concebidas de acordo com o modelo desenvolvido por Winnicott35 para crianças órfãs em razão da Segunda Guerra Mundial. Após o
sistema
Doutrina
de
educacional
brasileiro
Segurança
Nacional,
ter estas
sido
afetado
unidades
pela
passam
a
adotar conceitos do militarismo, enfatizando a obediência, segurança e disciplina. Na segunda metade da década de 80, com
a
repúdio Federal
discussão ao de
regime 1988,
dos
direitos
militar, que
humanos, é
promulgada
objetivava
30
impulsionada
entre
a
pelo
Constituição
outras
coisas,
Hoje também na Constituição Federal, art. 228. Costa, A. – op. cit., p. 1125-6. 32 Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 1°. 33 Com idade entre 12 e 18 anos 34 Consiste em medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento. ECA, art. 121. 35 Winnicott, D. W., Privação e Delinqüência, São Paulo, Editora Martins Fontes, 2005, 4ª edição. 31
xxiv
assegurar ao cidadão que ele não seria vítima do Estado e dos Governos. Finalmente em 1990 é aprovado o Estatuto da Criança e do Adolescente, assegurando os direitos da criança e do adolescente. Passamos a compreender de forma diferenciada o ECA,
assim
conjuntura
como
a
Constituição,
histórica,
ou
seja,
após
analisá-los
tributários
de
um
em
sua
intenso
sentimento de rechaço ao regime militar. Desta forma, o ECA também
tinha
como
objetivo
colocar
limites
às
ações
dos
atores que circundam as crianças e adolescentes, como juízes, polícia, instituições e mesmo os próprios pais. Alguns
autores
do
Direito
discutem
36
a
questão
da
inimputabilidade na infância e adolescência. Heloísa Tavares, advogada e professora de Direito Penal, no texto Idade Penal (maioridade) na legislação brasileira desde a colonização até o código de 1969
após exposição da evolução do direito de
menores no Brasil, conclui dizendo: “... Os menores passaram por exaustivos sacrifícios, inclusive tendo que pagar com a própria
vida, até
alcançarem
a
garantia
de
seus direitos
fundamentais”.37 Francisco
de
Assis
Toledo,38
ressalta
que
o
fato
da
maioridade penal ser fixada em 18 anos não indica que essa idade seja o momento preciso que o sujeito possa discernir claramente entre o certo e o errado e se auto-determinar segundo sua compreensão. Considera, entretanto,
36
Silva, R. , 300 anos de construção das políticas públicas para crianças e adolescentes in Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, ano 8, n° 30 – abril-junho. 37 Tavares, H. G. M. Idade Penal (maioridade) na legislação brasileira desde a colonização até o código de 1969 (2004) in Boletim do IBCCRIM, São Paulo, Ameruso Artes Gráficas, ano 12, n° 144, grifo meu. 38 Foi ministro do Superior Tribunal de Justiça, Membro e coordenador das Comissões de Reforma Penal de 1984 e professor visitante da Universidade de Brasília.
xxv
um limite razoável de tolerância recomendado pelo Seminário Europeu de Assistência Social das Nações Unidas de 1949, em Paris, tanto que podemos afirmar ser o limite de 18 anos praticamente regra internacional, sendo adotado pela maioria dos países, ou com pequenas variações para mais ou para menos.39
No primeiro grifo observamos a visão romantizada dos menores que são classificados como exceções para o Direito. Viveram sacrifícios até obterem a garantia de seus direitos fundamentais.
Por
acaso
está
dentro
destes
direitos
excepcionais a possibilidade de matar ou ferir? Sabemos que não,
no
entanto,
para
tratarmos
de questão
tão complexa,
precisamos transpor tanto uma visão romântica da juventude quanto
a
posição
extrema:
de
rechaço,
rigidez
ou
simploriamente punitiva. A argumentação dos autores prevê que a
“não
responsabilização”
permitiria,
com
a
ajuda
nesta
educativa
etapa do
da
vida
Estado, uma
lhes
reforma
interna para que tivessem possibilidade de se ajustar. Para fundamentar
este
argumento
precisamos
entender
porque
o
adolescente teria esta possibilidade e um adulto não. Por que razão acredita-se que durante esta fase o menor tem mais chances
de
se
redimir
ou
não
cometer
o
mesmo
ato
posteriormente e outro indivíduo, maior de 18 anos, não teria esta possibilidade?
O que quer dizer o “limite razoável de
tolerância” que se refere o segundo artigo? Ter tolerância aos crimes nesta idade resultaria na diminuição ou extinção destes posteriormente? Percorrendo compreender
a
os
autores
relevância
do
do
Direito
artigo
27
na do
tentativa Código
de
Penal,
esbarramos em Karyna Sposato. A autora associa agressividade à
pobreza
maioridade
e
argumenta
penal”
que
teria
uma
como
39
suposta
“diminuição
conseqüência
apenas
da o
Toledo, F. A. - Princípios Básicos de Direito Penal, (1999), São Paulo, Editora Saraiva, 1999, 5ª edição, p.320, grifo meu.
xxvi
“incremento” do número de presos, em vez de se trabalhar no sentido contrário.
Parece-me que muitos dos dilemas nesta questão do jovem infrator reside nesse aspecto da responsabilidade e do objetivo da medida socioeducativa prevista pelo estatuto. (...) Em primeiro lugar, cabe uma reflexão mais apurada acerca do que significa responsabilizar diferentemente um jovem de 17 anos e outro de 18 anos por atos praticamente idênticos do ponto de vista da tipicidade penal. Trata-se, a meu ver, de uma opção de política criminal consistente, que ao estabelecer um limite para a imputação penal, oferece uma oportunidade diferenciada para a juventude delinqüente. O critério de 18 anos para a imputabilidade penal não se relaciona com a capacidade ou incapacidade de entendimento dos jovens abaixo dessa idade, e sim como uma opção acerca da conveniência em não submetê-los ao sistema reservado aos adultos como forma mais eficiente para prevenir essa modalidade de criminalidade.40
Neste texto, a autora aponta algumas justificativas para a não responsabilização dos adolescentes pelos seus atos. Cito alguns deles: 1) apenas 8,6% dos crimes praticados por adolescentes serem contra a vida; 2) a prisão ser um dos maiores
mecanismos
de
propulsão
da
criminalidade,
reproduzindo e aumentando a violência. 3) remeter os 10% de adolescentes infratores ao sistema penitenciário implicar no aumento da lista de presos que aguardam vaga nos presídios.41 Toda sua argumentação tem em vista o que estabelece o “Estatuto da Criança e do Adolescente”, apontando que o mesmo Sposato, K. - O jovem: conflitos com a lei. A lei: conflitos com a prática (2000) in Revista Brasileira e Ciências Criminais (Publicação Oficial do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2000, ano 8, n. 30, abril-junho, p. 110, grifo meu. 41 Idem, ibidem. 40
xxvii
ainda não pôde ser efetivamente colocado em prática. A autora discorda da prisão como medida socioeducativa, apontando que países que optaram por uma política de aprisionamento não só não resolveram o problema da violência, como a ampliaram. Esta
argumentação
discorda
da
merece
medida
nossa
aplicada
atenção,
àqueles
pois
que
a
autora
cometem
atos
infracionais, independente se são adultos ou adolescentes. Sua reflexão não está relacionada à categoria adolescente e na especificidade deste momento da vida. Seu argumento sobre os adolescentes infratores visa que eles possam ser poupados, pelo menos até a idade de 18 anos, deste modelo carcerário42, modelo este que defende não ser o mais adequado como pena, produtor inclusive, de aumento da criminalidade. Conclui dizendo:
Fica demonstrado que, muitas vezes no contexto da infração, o Estado terá a possibilidade de suprir e corrigir suas próprias falhas e omissões, do contrário estaremos e por que não dizer, estamos, diante da criminalização da pobreza, da prisionização e da formação de uma identidade criminosa nos jovens brasileiros.43
Esta jurídico,
argumentação, se
apóia
na
bastante
corriqueira
convicção
de
que
no o
meio
sistema
penitenciário não “reforma” ninguém e, na maioria das vezes, acaba por reforçar o sujeito no lugar de criminoso. Estas questões nos lançam a pergunta do porquê do crime. Terá o homem essencialmente
tendências ao crime? Lombroso vê o homem como mau
e
pronto
para
42
a
delinqüência, sendo a
Grifo meu. Sposato, K. - O jovem: conflitos com a lei. A lei: conflitos com a prática , op. cit.
43
xxviii
criança
um
criminoso.44
pequeno
Já
Rousseau
“atribuía
à
sociedade a responsabilidade pela origem do mal” traçando em seu ensaio pedagógico “Emílio”, as condutas a serem seguidas para que a criança viesse a ser um adulto bom. Tal pensamento parte
da
premissa
fundamental
de
que
o
homem
é
um
ser
“naturalmente” bom. Este filósofo enfatizava que a educação era o elemento primordial para a prevenção dos crimes. Seus princípios sobre liberdade e igualdade política influenciaram o
regime
republicano
e
as
teorias
políticas do idealismo
alemão45 e seu pensamento de valorizar os sentimentos, - a parte mais “natural”46 do homem -,
deixando o intelecto em
segundo plano, vigora até os dias atuais sob a forma de um movimento romântico.47 E a finalidade da pena, qual seria? Para que o sujeito simplesmente pague pelo seu ato, não visando nenhum outro objetivo? Kant, filósofo do séc. XVIII, vê a obediência às leis como um princípio fundamental, única possibilidade de que todos os homens possam gozar de liberdade. Considera o agente de uma ação contrária à lei imputável, caso tenha tido conhecimento prévio daquela lei. Resume a lei universal de direito como: “age exteriormente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa se conciliar com a liberdade de todos, segundo uma lei universal”. Para que o Direito possa ser efetivo, não pode estar separado da faculdade de obrigar, de fazer valer seus preceitos. A pena jurídica deve ser aplicada contra
o
autor
delinqüiu”,
já
do
ato
que
a
injusto lei
“pela
penal
44
deve
única ser
razão um
de
que
imperativo
Garcia, J. A. – Psicopatologia Forense (1979), Rio de Janeiro, Editora Forense, 1979, 3ª edição. 45 Século XIX. 46 Ligada à natureza. 47 Rousseau, J. J., Do Contrato Social – Ensaio sobre a Origem das Línguas, 1999 in Coleção Os Pensadores, vol. I, São Paulo, Editora Nova Cultural.
xxix
categórico. Assim é o direito de talião, o mal que faço a outro, devo sofrer em mim mesmo.48 O imperativo Categórico de Kant é associado por Freud ao herdeiro
do
repressora
Complexo
de
nosso
Édipo49,
de
psiquismo,
o
cuja
supereu, “função
instância
consiste
em
manter a vigilância sobre as ações e as intenções do ego e julgá-las,
exercendo
sua
trabalhada
por
em
Freud
censura”.50 1913
quando
Essa
concepção
explica
a
origem
foi da
civilização a partir do assassinato do pai e a posterior instauração de sua lei, conseqüência do remorso e da culpa por sua morte. No texto Totem e Tabu do
nascimento
da
Freud constrói um mito que trata
civilização,
momento
verdadeiramente
inumano, onde a vontade do mais forte, de um pai tirânico, sempre preponderava sobre a do mais fraco. Esse pai primitivo “guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos na medida que crescem”.51 Impunha aos filhos uma lei sem estar submetido a ela. Os filhos banidos se revoltam e matam o pai. Curiosamente este ato não permite aos filhos o acesso ao gozo.52
“O
assassinato,
obstáculo nem
por
sendo isso
exterminado o
gozo
sob
deixa
a de
forma
do
permanecer
interditado, e ainda mais, essa interdição é reforçada”.53 Apenas
após
a
construção
das
leis
que
regem
a
vida
em
sociedade é permitido a todos o acesso ao gozo, desde que este não avance sobre os direitos dos outros, estabelecido pelas leis. A existência da lei se faz necessária porque 48
Kant, E. - Doutrina do Direito, São Paulo, Editora Ícone, 1993. Freud, S. - O Problema econômico do masoquismo (1924) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX, 1990, p. 209. 50 Freud, S. - O Mal Estar na Civilização, (1930), in ESB, vol. XXI, p.160. 51 Idem, Totem e Tabu (1913[1912]), ESB, vol. XIII, p. 169 52 Sobre o conceito de gozo remeto o leitor às págs. 42 a 45. 53 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, a Ética da Psicanálise (1959-60), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p. 216. O grifo é meu. 49
xxx
“apenas proíbe os homens de fazer aquilo a que seus instintos os inclinam”.54 interligados.
Desta forma, gozo e lei estão intimamente A
lei
impõe
limite
ao
gozo
e
aponta
que
transgredir é gozar.55 Freud é brilhante ao observar que “não há necessidade de se proibir algo que ninguém deseja fazer e uma coisa que é proibida com a maior ênfase deve ser algo que é desejado”.56 Esta citação nos permite dizer que a propensão ao crime, a transgressão, não é exclusiva de personalidades patológicas,57 de
camadas
classificação.
sociais O
desejo
inferiores de
ou
transgredir
qualquer existe
outra em
todo
sujeito. Tal observação é de importância fundamental em nosso estudo pois vários autores tentaram e ainda tentam encontrar a “fórmula” da criminalidade. Não desconhecemos por exemplo, o medo que os “loucos” provocam nas pessoas, particularmente por serem associados a pessoas agressivas e violentas. Entendemos, portanto, porque Freud em O Mal estar na Civilização diz que: “A primeira exigência da civilização, portanto, é a da justiça, ou seja, a garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo”.58 Porém, a existência da justiça, ou das leis, por si só, não implica que os atos transgressores do homem serão extirpados, mas sua existência se faz necessária justamente porque se reconhece
nele
este
desejo,
incompatível
com
a
vida
em
sociedade. Ainda, para acrescentar ao nosso estudo, Freud alerta em uma nota de rodapé que:
54
Freud, S. - Totem e Tabu (1913[1912]), op. cit., p. 150. Lacan, J. - O Seminário, livro 7. Op. cit., p. 217, grifo meu. 56 Freud, S. - Totem e Tabu (1913[1912]), op. cit., p. 91. 57 Nelson Hungria em Comentários ao Código Penal, cita algumas destas personalidades que tem mais propensão ao crime que outras. Op. cit. 58 Freud, S. - O Mal Estar na Civilização (1930), op. cit., p.116. 55
xxxi
É o ‘pai indevidamente fraco e indulgente’ que constitui a causa de as crianças formarem um superego excessivamente severo, porque, sob a impressão do amor que recebem, não possuem outro escoadouro para sua agressividade que não seja voltá-la para dentro.59
Vemos então, Freud nos mostrar que o permissivo também não é uma saída, e mais ainda: torna propensa a criação de um supereu ainda mais feroz. Voltaremos a estas questões no capítulo final de nosso trabalho.
59
Idem, ibidem. p.154.
xxxii
2. O SUJEITO DA PSICANÁLISE O que assim pensa em meu lugar será, pois, um outro eu? Acaso a descoberta de Freud representa a confirmação, no nível da experiência psicológica, do maniqueísmo? Nenhuma confusão é possível, com efeito: a investigação de Freud não nos introduziu a casos mais ou menos curiosos de uma segunda personalidade.60
2.1 – O SURGIMENTO DO SUJEITO NA HISTÓRIA
Para chegarmos ao conceito de responsabilidade para a psicanálise, precisamos, em princípio, saber quem é este que pensa,
age,
sofre,
se
emociona,
sonha,
transgride.
A
categoria de sujeito61 é trabalhada de forma diversa pelas diferentes disciplinas – Filosofia, Medicina, Psicologia que estudam e discutem o comportamento humano. A forma como cada
uma
concebe
e
define
o
sujeito
implicará,
conseqüentemente, em diferentes posturas e interpretações em relação aos atos daquele que age. A
teoria
do
sujeito
remonta
ao
século
XVII
com
62
Descartes . O século XVI foi vivido como um marco importante na história, onde as certezas, os alicerces e valores da Idade Média foram colocados em xeque. Pensadores como Agripa 60 Lacan, J. - A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud (1957) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 257-8. 61 Maior desenvolvimento sobre esse tema pode ser encontrado em Elia, L., O conceito de sujeito, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004. 62 Isso não quer dizer que os filósofos daquela época já falavam em “sujeito”. Esta designação encontramos em Lacan. Apesar de Freud também não a utilizar, não quer dizer que não trabalhava com esta categoria.
xxxiii
de Nettesheim, Francisco Sanchez e Michel de Montaigne passam a discutir a incerteza das ciências, o valor da dúvida como método
de
investigação
sustentação
racional.
e
o
Estas
fanatismo questões
das
opiniões
propiciarão
sem
terreno
profícuo para o pensamento moderno que caracterizará o século XVII. Será Descartes que,
utilizando a dúvida como recurso
metodológico, inaugurará o racionalismo moderno, ou seja, a ciência moderna.63 Toda
esta
mudança
não
ocorreu
de
forma
tranqüila.
Descartes elabora um tratado sobre a física o Traité du Monde et de la Lumière (Tratado do Mundo e da Luz), quando recebe a notícia de que Galileu havia sido condenado pela Igreja por sua tese sobre o movimento da Terra. Com prudência, desiste de
publicar
“filósofo
sua
obra
mascarado”,
e
passa
passando
a a
se
apresentar
escrever
de
como
um
forma que o
sentido de suas palavras pudessem ter várias interpretações, prevenindo-se desta forma, de um ataque por parte da Igreja. Em 1637, desiste da idéia de nada mais publicar e edita três
tratados
em
francês,
inovando
portanto,
já que
todo
tratado científico era escrito em latim até então. Sete anos depois,
época
em
que
seu
nome
já
era
reconhecido
internacionalmente, publica os Princípios da Filosofia, tendo como objetivo alicerçar as certezas científicas. Sua tese era a de que a ciência não poderia basear suas leis na metafísica ou
em
hipóteses
sem
sustentação
teórica.
Passa
então
a
rejeitar tudo que é da ordem da intuição para só aceitar o que
é
da
ordem
da
razão.
Tudo
o
que
encontramos
pelos
sentidos deveria ser descartado, pois estes são enganadores. Passa a colocar em dúvida tudo ao seu redor, o que sente, vê e
ouve.
Ao
duvidar
da
existência
63
Descartes – Descartes – Vida e Obra Paulo, Editora Nova Cultural, (1999).
xxxiv
in
de
tudo,
chega
a
Coleção Os Pensadores, São
uma
certeza. As dúvidas só existem porque existe o pensamento, e daí retira sua máxima “se duvido, penso”, pois só se duvida, se a dúvida puder ser pensada. Assim Descartes retira da mais completa incerteza, uma certeza
primeira:
“penso”.
Apesar
desta
certeza
estar
relacionada à subjetividade, não garantindo nada à respeito da
realidade
externa,
ela,
como
um
embrião,
permite
a
inauguração de uma cadeia de certezas a partir dela. Ora se o pensamento existe e posso afirmar que estou pensando, também posso afirmar minha existência. Esta certeza levará ao cogito cartesiano: “penso, logo sou” (cogito ergo sum). A certeza sobre
a
atividade
do
pensamento
leva,
para
Descartes,
à
conclusão da existência: “se deixasse de pensar, deixaria totalmente de existir”.64 A “atividade de pensamento” era o que deveria ser considerado de valor fundamental e não o que se pensa, pois o que pensamos, para ele, encontrava-se nas armadilhas da percepção, ou seja, da ilusão. Para Descartes o sujeito não existe fora do pensamento. Mas,
quem
pode
garantir
que
a
atividade
de
pensar
é
a
atividade de ser? Para Descartes, a resposta é Deus. “Só existindo
realmente
Deus
(causa)
pode-se
explicar
a
existência de um ser finito e imperfeito – o eu pensante – porém dotado da idéia de infinito e de perfeição (efeito)”.65 A idéia de Deus é a única de que não se poderia duvidar. Naquela época a Igreja, instituição que representava o poder divino, com mãos de ferro, bania qualquer explicação que não tivesse sua origem em Deus. Galileu, outro filósofo que contestava a explicação dos fenômenos da natureza pela Igreja,
ao
descobrir
manchas
no
Sol,
através
do
aperfeiçoamento do primeiro telescópio inventado, é duramente 64 65
Descartes – Descartes – Vida e Obra, op. cit., p.21. Idem, ibidem, p.23.
xxxv
criticado
e
descobertas
combatido a
negação
pela dos
Igreja,
textos
que
bíblicos
via que
em
suas
falavam da
perfeição dos céus e dos astros. Quando, em 1623 no Diálogo sobre os Dois Maiores Sistemas, rechaça as idéias de Ptolomeu sobre
o
fato
tribunal
do
da
Terra
Santo
ser
Ofício
estática,
em
junho
é
de
condenado 1633.
É
por
um
coagido
a
renunciar às suas teses ou então ser queimado por heresia, escolhendo viver.66 A
maior
contribuição
de
Galileu
está
relacionada
ao
método científico, a observação dos fenômenos, tal como se apresentam, religioso.
descartando Com
as
qualquer
demonstrações
pressuposto que
metafísico
revela
no
campo
ou da
física “põe de lado o finalismo aristotélico e escolástico, segundo o qual tudo aquilo que ocorre na natureza ocorre para cumprir
desígnios
superiores;
e
mostra
que
a
natureza
é
fundamentalmente um conjunto de fenômenos mecânicos, tal como afirmara
Demócrito
natureza,
segundo
na
Antiguidade”.67
Galileu,
podem
ser
Os
fenômenos
explicados
da pela
matemática. As observações destes pensadores, Descartes no campo da filosofia e Galileu no campo da física-matemática, propiciam que, pela primeira vez na história, a natureza possa ser pensada
de
uma
forma
diferente.
Há
uma
ruptura,
um
distanciamento, entre sujeito e objeto. Até esse momento, teorizar era olhar para as coisas e revelá-las como marcas de Deus. A relação entre o sujeito que olha e o objeto que é olhado era direta, sem a marca subjetiva daquele que olha. A partir daqui temos uma nova forma de se pensar a ciência, o início da ciência moderna.
66
Galileu – Galileu – Vida e Obra in Editora Nova Cultural, 1999. 67 Idem, ibidem, p. 9.
Coleção Os Pensadores, São Paulo,
xxxvi
Lacan se refere à saída encontrada por Descartes para não entrar em choque com os valores da Igreja como “um dos mais extraordinários lances de esgrima que jamais foi trazido à história do espírito”.68 Ao separar o que é da ordem do divino, chamado por ele “verdades eternas”, do que é da ordem do humano, revela que não há como existir competição entre dois eixos completamente diferentes, pois a Deus cabem as verdades eternas e aos homens as verdades imperfeitas. Para o nascimento da ciência, Descartes precisou separar os dois campos: o de Deus, relacionado ao infinito, a tudo o que é perfeito, e o dos homens, que relaciona-se com tudo que é de segunda ordem, imperfeito. Portanto, seguindo seu pensamento, existindo um Deus perfeito, que sabe tudo, cabe aos homens pesquisarem o que a eles é possível saber, embora sabendo que este saber é finito. No século XVII tanto sujeito quanto objeto podem ser subjetivados, pensados, analisados. Passamos a ter o símbolo matemático, o discurso, a letra, a linguagem entre sujeito e objeto,
entre
o
sujeito
e
a
natureza.
Desta
forma
compreendemos a frase de Lacan em A Ciência e a Verdade “O sujeito sobre o qual a psicanálise opera, é o sujeito da ciência”69, pois só podemos pensar o sujeito da psicanálise a partir do aparecimento da ciência moderna, deste momento em que o sujeito só existe a partir do que ele pensa, a partir de Descartes. Portanto, não poderíamos pensar na psicanálise ou na teoria do sujeito na época de Sócrates ou na Idade Média. Dois
séculos
inconsciente, 68
Lacan, J. psicanálise 69 Lacan, J. Jorge Zahar
mais
revela
tarde,
outro
Freud,
cogito,
com
onde
a o
descoberta pensamento
do não
- O Seminário, livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da (1964), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p.213. A Ciência e a Verdade (1960) in Escritos, Rio de Janeiro, Editor, 1998.
xxxvii
garante nada a respeito do ser, pelo contrário, o pensar gera dúvida. Em A Interpretação dos Sonhos
percebe que os sonhos
são pensamentos e que, portanto, existem pensamentos que são estranhos à consciência de si, como também o são o chiste e os
atos
falhos.
Não
só
existem
pensamentos
que
são
inconscientes, mas estes são investidos pulsionalmente, fazem pressão
em
nosso
psiquismo,
irrompendo
alheios
à
nossa
vontade. Freud se dá conta também que o pensamento não é controlável
e
é
regido
inconsciente70.
pelo
Começa
a
se
delinear um sujeito desconhecido, que não se reconhece em seu sonho,
em
seu
ato
falho,
em
seu
sintoma,
porém,
estes
pensamentos inconscientes fazem parte do sujeito, o pressiona a cometer atos contra a sua vontade, faz com que acorde angustiado após um sonho, o impele a repetir incessantemente o mesmo ato que repele. Até Freud, o psiquismo, o “eu”, equivalia-se
à
consciência.
Porém,
com
a
descoberta
inconsciente, descobre-se que o “eu é um outro”.
71
do
“(...)
todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei como ligar ao resto de minha vida mental, devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa”.72 Para a psicanálise, é exatamente aqui onde o sujeito se localiza, neste que ele não reconhece, mas que fala e age por ele.73 “Quanto
mais
concepção
procuramos
metapsicológica
encontrar da
vida
70
nosso
caminho
mental,
mais
para
uma
devemos
Não é a toa que numa análise se trabalha com a associação livre, ou seja, pede-se ao analisante que diga o que lhe vier à cabeça, independente da censura de que o que pensou é importante ou não. 71 Lacan, J. O Seminário, livro 2, O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise (1954 -1955), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992, p.14. 72 Freud, O Inconsciente (1915), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIV, 1990, p.195. 73 O grifo é meu.
xxxviii
aprender a nos emancipar da importância do sistema de ‘ser consciente’”.74 Esta concepção não é a mesma compartilhada pelas outras disciplinas que estudam o sujeito, podemos dizer até mesmo que são incompatíveis, já que para a Psicanálise não é no pensamento que está o sujeito, pelo contrário, quando ele pensa, está fora de seu ser. Lacan aponta para a existência de dois lugares diferentes: o lugar do “penso” e o lugar do “sou”. Temos então o sujeito de um lado e pensamento de outro,
ou
o
consciência, estamos
sujeito o eu,
do
do
produzindo
inconsciente
outro.
Quando
significações,
de
um
lado
e
pensamos sobre
estamos
no
a
algo,
campo
do
sentido. Porém o sentido, o significante, é aquilo mesmo que eclipsa
o
sujeito,
irremediavelmente, afirmamos
algo
o
pois
congela
sobre
em
nossa
contigencialmente um
significado.
existência,
como
e
Quando
“eu
sou
toxicômano”, promove-se um apagamento, um “não querer saber” sobre aquilo que o causa. O “eu sou” implica em um “não penso”, pois fecha a questão sobre o que o determina. Lacan chama a esta operação, onde o sujeito desaparece sob um significante, de alienação.75 Esta operação merecerá nossa atenção especial no presente trabalho, pois ouvimos com freqüência adictos,
sujeitos deprimidos,
justificarem órfãos,
seus
etc.
atos
Esta
porque
forma
são
de
se
representar os impelem a não se responsabilizarem por seus atos. Voltaremos a discutir esta operação mais adiante.76 Lacan
aponta
que
se
foi
Descartes
quem
apresentou
o
sujeito ao mundo, foi Freud quem descobriu que o sujeito não
74 75 76
Idem, ibidem, p. 221. Lacan, J. - O Seminário, livro 11, op. cit., p. 200. Págs. 51 e 52 adiante.
xxxix
está na consciência de si e sim no inconsciente.77 Se para Descartes Psicanálise
o
sujeito o
só
sujeito
existe é
sem
pelo
pensamento,
substância,
não
para
pode
a ser
coisificado. Freud anuncia o sujeito em sua célebre frase Wo es war, soll Ich werden78, traduzida por Lacan “Lá onde o Isso estava, lá, como sujeito, devo [eu] advir”.79 Ali, onde para o sujeito existe o puro desconhecimento, a surpresa, o espanto, Freud
encontra
constituído
o
por
sujeito
do
pensamentos
inconsciente. que
foram
Reconhece-o
recusados
pela
consciência. Esta foi a inigualável e devastadora descoberta de Freud no campo do conhecimento do homem: o homem não tem controle sobre seus pensamentos, como afirmou Descartes. O próprio Freud propõe estar na linha daqueles que produziram uma quebra no chamado orgulho humano, se alinhando ao lado de Copérnico e Darwin.80 Copérnico quando descobriu que a Terra não era o centro do universo e Darwin quando encontrou no homem uma ascendência animal. O golpe de Freud refere-se a descoberta de que o homem não é senhor de sua própria mente. Há algo que escapa à representação, à consciência, ao mesmo tempo
em
que
clama
por
ela.
O
inconsciente,
este
desconhecido, é regido por suas próprias leis e estas não dependem e nem se subordinam à vontade humana. Encontramos um estranho entre o ato de pensar e a ação propriamente dita. Esta
concepção
é
que
norteará
a
clínica
ou
a
escuta
do
sujeito, pois se fundamenta na distinção entre o eu e o sujeito.
77
Idem, ibidem, p. 47. Freud, S. - Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise Conferência XXXI (1933[1932]), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XXII, 1990. 79 Lacan, J. - A Ciência e a Verdade, op. cit., p. 878. 80 Freud, S. - Uma dificuldade no caminho da psicanálise (1917) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVII, 1990. 78
xl
O
sujeito
freudiano
não
tem
relação
com
qualquer
concepção do sujeito tomada pela psicologia, enfatiza Lacan em
1960
para
sua
platéia,
a
maior
parte
composta
por
filósofos. Não se trata de maneira alguma de um sujeito
uno,
de
pela
um
sujeito
filosofia,
e
do
conhecimento,
menos
ainda
tal
aquele
como que
elaborado
apareceria
pelas
experiências ditas profundas, tais como aquelas obtidas pelo uso
de
alucinógenos,
ou
de
experiências
místicas,
de
meditação transcendental, ou qualquer concepção do gênero. Entre
o
hipnotismo,
para
levar
a
histérica
ao
transe
e
acessar às ditas profundezas, Freud prefere o discurso, a fala
da
histérica.81
Não
é
preciso
procurar
pelo
sujeito
freudiano, ele pode ser apreendido no discurso, na fala do sujeito.
2.2 - A REALIDADE É PSÍQUICA Que uma coisa exista realmente ou não, pouco importa. Ela pode perfeitamente existir no sentido pleno do termo mesmo que não exista realmente. Toda existência tem, por definição, algo de tão improvável que, com efeito, a gente fica perpetuamente se interrogando sobre sua realidade.82
81
Lacan, J. - Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano (1960) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 810. 82 Lacan, J. - O Seminário, livro 2, op. cit., p. 288.
xli
Comumente, nos referimos a ‘realidade’ como aquilo que acontece em nossas vidas efetivamente.83 Acreditamos que tal ‘realidade’ é compartilhada por todos de forma única, sem equívocos.
Porém,
não
raro,
percebemos
que
aquilo
que
pensávamos ser de opinião geral, é colocado em discussão por outras pessoas e nos damos conta de que nossas certezas são mancas. Freud,
escutando
suas
histéricas,
descobre
que
a
realidade não é a mesma para cada sujeito. Chega a esta conclusão ao descobrir que as cenas infantis de sedução que ouvia de seus pacientes neuróticos, até então consideradas por ele como fatos que haviam acontecido na infância daqueles sujeitos,84 não passavam de fantasias e não tinham qualquer relação com a realidade externa.85 A esta nova concepção da realidade chamou de realidade psíquica. psíquica”.
“O 86
“As
inconsciente
é
a
fantasias
possuem
verdadeira realidade
realidade
psíquica,
em
contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva”.87 Freud
faz
a
desconcertante
descoberta
que
“no
inconsciente não há indicações de realidade, de modo que não se consegue distinguir entre a verdade e a imaginação que
83
No dicionário temos a seguinte definição para realidade: verdade; qualidade do que é real; o que existe efetivamente. (grifo meu) 84 No Rascunho K (vol. I, p. 307) Freud demonstra que as precondições da neurose estão vinculadas a sexualidade (enquanto traumática) e na Carta 46 (vol. I, p. 320) diz ocorrer na infância a cena traumática que acarreta a neurose. 85 Freud, S. - Um estudo autobiográfico (1925[1924]) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol XX, p. 48. 86 Idem, A Interpretação dos Sonhos (1900-01) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. V, p. 554. 87 Freud, S. - Os caminhos da formação dos sintomas – “Conferências Introdutórias sobre Psicanálise” (1915-1917), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVI, p. 430.
xlii
está catexizada com afeto”.88 Suas histéricas portanto, não objetivavam com seus relatos de sedução “mentir” para Freud, porém
não
lhes
era
possível
discernir
verdade
e fantasia
porque ambas haviam sido investidas com afeto. Este conceito, realidade psíquica, fundamental para o desenvolvimento da psicanálise, não é o mesmo que encontramos por exemplo, na filosofia. Após Freud vemos surgir um novo conceito
de
exterior
realidade,
se
modifica
onde
toda
a
noção
de
No
texto
completamente.
interior Sobre
e o
Narcisismo de 1914 faz uma revelação que até hoje produz inquietação,
discordância
parafrênicos
(psicóticos)
realidade,
89
e
mal-entendidos. perdem
sua
Não
relação
só
os
com
a
mas esta perda é constitutiva, está para todo
sujeito humano.90 O que nos permite a diferenciação entre as estruturas
clínicas
(neurose,
psicose
e
perversão)
é
a
modalidade de investimento libidinal. Na neurose ocorre a substituição (objetos
da
realidade
(objetos
reais)
pela
fantasia
imaginários fornecidos pela memória).
(...) também na neurose não faltam tentativas de substituir uma realidade desagradável por outra que esteja mais de acordo com os desejos do indivíduo. Isso é possibilitado pela existência de um mundo de fantasia, de um domínio que ficou separado do mundo externo real na época da introdução do princípio de realidade.91
88
Idem, Carta 69 - Extratos dos documentos dirigidos a Fliess, 1950 (1892-1899) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. I, p. 358. 89 Maiores informações sobre a diferença entre a perda da realidade na neurose e psicose podem ser encontradas nos textos freudianos “Sobre o Narcisismo: uma Introdução” e “A perda da realidade na neurose e psicose”. 90 Idem, Sobre o Narcisismo: uma Introdução (1914) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIV, p. 90. 91 Freud, S. - A perda da realidade na neurose e na psicose (1924), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX.
xliii
Na psicose não há substituição da realidade por objetos na
esfera
da
fantasia,
restando
a
esses
sujeitos
o
investimento libidinal em seu próprio eu. Freud menciona que, quando
ocorre
alguma
substituição
nestes
casos,
constitui
“parte de uma tentativa de recuperação, destinada a conduzir a libido de volta a objetos”.92 O
interessante
psíquica
também
a
observarmos
não
podemos
é
que
afirmar
esta
ser
realidade
“subjetiva”,
“interna”, como se poderia conceber corriqueiramente. Interno e externo se mesclam por já não podermos diferenciar o que é de dentro daquilo que é de fora. Tal situação é consequência da clivagem daquilo que foi vivido pelo sujeito em sua tenra infância como hostil (da ordem do trauma), sem possibilidade de
simbolização
e
portanto
afastado,
daquilo
que
é
considerado interno. A noção de trauma, devemos compreender como a invasão de uma quantidade de excitação excessiva da qual o aparelho psíquico não tem recursos para se defender de forma eficiente. Sobre
o
pano
de
fundo
do
desamparo
e
do
próximo
(nebenmensch),93 se inscreve no ser falante uma marca, a marca mnêmica, a “vorstellung”, que instaura uma nova realidade, a realidade psíquica. Não menos material do que outras, esta nova
realidade
porém,
não
se reduz a critérios meramente
utilitaristas ou empíricos. Não se trata da marca mnêmica de um objeto da realidade, como pensado pela filosofia; mas esta marca, em si mesma, é objeto de desejo. Vejamos
que
marcas
são
estas
e
como
o
psiquismo
se
constitui a partir delas.
92
Idem, ibidem. Idem, Projeto para uma Psicologia Científica (1895) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol I., p. 448. 93
xliv
2.3 - O SURGIMENTO DO SUJEITO
O homem nasce em uma situação de desamparo fundamental. Sem a “ação específica”94 de um outro que o provê de cuidados, o bebê humano não tem como sobreviver. Ao nascer, o bebê é assaltado
com
uma
quantidade
de
tensão
desprazerosa
proveniente do interior de seu corpo (fome, frio, dor) que, elevada a um grau insuportável, o impele a uma tentativa de descarga (o choro, o grito). Esta solução é proveniente da função primária do aparelho psíquico que é a descarga de tensão, ou seja, manter a tensão dentro do organismo o mais baixo
possível,
prazer.
A
ação
interpretar
lei de
como
nomeada um
uma
por
Freud
como
ao
ouvir
aquele
outro,
mensagem,
95
ou
seja,
princípio grito
do e
atribuindo
o um
significado àquele grito é o que permite ao ser a entrada no mundo simbólico. A partir deste momento, o segundo grito do bebê já tem endereçamento pois houve a incidência de uma interpretação. A tradução que vem do outro como “Você tem fome”, permite ao bebê se reconhecer como aquele que tem fome. Freud salienta a importância que essa via de descarga adquire, “a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”.96 A
noção
freudiana
de
“desamparo
fundamental”
tem
importância primordial na obra de Freud, já que representa a construção de Lacan da mãe como Outro simbólico primordial. 94
Expressão Científica, 95 A criança 96 Freud, S.
utilizada por Freud no texto Projeto para uma Psicologia vol. I. “está com fome”, “está com cólica”, “está com frio”. - Projeto para uma Psicologia Científica, p. 431.
xlv
Neste
momento
mítico,
guiado
pelo
desamparo
que
o
constitui e imerso em um aumento de tensão insuportável no interior
de
seu
interpretado
pelo
momento,
o
que
organismo, outro
não
o
como
passava
grito
do
demanda,
de
e
descarga
”infans”
será
partir
deste
a
motora,
puro
ato
reflexo, sem nenhuma significação, será capturado pelo outro e
transformado
em
apelo.
O
que
era
da
ordem
da
pura
necessidade e que poderíamos remeter a uma relação “natural97” do
homem,
fica
irremediavelmente
perdido
e o pequeno ser
passa a habitar o simbólico. A relação do sujeito com aquele que o provê de cuidados98 não porta nenhuma característica instintual desviante.
como Neste
na
vida
animal,
sentido,
a
por
fala
isso tenta
o
seu
caráter
preencher
uma
distância entre o sujeito e o outro, tenta fazer suplência a uma relação instintual, natural, que não existe. Após a ação específica do Outro, o interior do organismo do pequeno ser retorna momentaneamente a um equilíbrio. O bebê vivencia sua primeira experiência de satisfação, que se inscreverá no seu psiquismo através de uma marca mnêmica. A satisfação obtida naquele encontro porém, fica perdida para sempre. O psiquismo poderá reativar a marca mnêmica quando um novo estado de urgência ou desejo acontecer.
O estado de desejo resulta numa atração positiva para o objeto desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor leva à repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a atração de desejo primária e a defesa [repúdio] primária.99
97
No sentido do que ocorre na natureza, ou o instinto que rege a vida animal. 98 Denominado por Lacan como o Outro, escrito com letra maiúscula porque é aquele que introduz o sujeito na linguagem. 99 Freud, S. - Projeto para uma Psicologia Científica, p. 436.
xlvi
O interessante a ser observado é que esta marca só é possível porque, anteriormente a ela, existiu uma outra que apontava para a dor, para uma situação experimentada pelo sujeito como traumática (desamparo). O outro portanto, não é só um objeto que gerou prazer ao sujeito, também representa um objeto hostil, estranho ao sujeito,
não
perceptuais
assimilável. se
dividem
“Em
conseqüência,
em
uma
os
parte
complexos
constante
e
incompreendida — a coisa100 — e outra variável, compreensível — os atributos ou movimentos da coisa”.101 A invasão de excitação proveniente da parte hostil do próximo, não assimilável, é, como já foi descrito, definida por
Freud
como
trauma.
Esta
experiência
deixa
uma
marca
simbólica que Freud chamou de representação intolerável.102 Esta
representação
(recalque)
103
intolerável
é
expulsa
da
consciência
e irá compor o centro do qual o inconsciente
passará a se ordenar. Passamos a ter a marca do objeto de desejo,104 objeto este que será sempre buscado, sem jamais ser encontrado, e a construção do inconsciente, onde aquilo que foi experimentado como
desprazer,
dor,
da
ordem
100
do
trauma,
é
expulso
do
Coisa é a tradução em português para o termo alemão das Ding, utilizado por Lacan em seus textos e de valor fundamental dentro da teoria psicanalítica. 101 Idem, ibidem, p. 513. 102 Nos textos originais em alemão Freud utiliza as palavras “Unvertraeglich” (incompatível) e “Unertraeglich” (intolerável). Aqui preferimos a tradução como “intolerável”. 103 Devido aos problemas originados pela tradução da Edição Standard Brasileira para os termos verdrängung e trieb por “repressão” e “instinto”, decidimos utilizar automaticamente as traduções “recalque” e “pulsão” respectivamente. 104 Freud chama o objeto de desejo de “objeto perdido” e Lacan de “objeto causa de desejo”.
xlvii
recalcado.105
psiquismo,
Quando
o
organismo
não
consegue
defender-se ou livrar-se de uma determinada quantidade de excitação, “transforma-se em trauma psíquico toda impressão que o sistema nervoso tem dificuldade em abolir por meio do pensamento associativo ou da reação motora”.106 O fato deste Outro poder responder ou não aos apelos do sujeito
introduz
a
presença-ausência
do
Outro
como
fundamental e promove uma nova “necessidade”, tão exigente e imperiosa quanto a necessidade biológica: a demanda. Eis o efeito do significante sobre a necessidade. Aprisionado pela linguagem, o sujeito tem a necessidade transformada por este Outro, o que acarreta na perda da especificidade do objeto. A ação específica deste outro exterior ao sujeito produz uma marca que funda o sujeito como demandante, aquele a quem falta algo e esse outro, será aquele a quem o sujeito passará a dirigir seus apelos (Outro). Quando novamente se instalar uma situação de desprazer, o pequeno ser já terá em seu psiquismo a memória do traço que outrora o aliviou em sua tensão. memória,
Contudo, a
apenas
alucinação,
o
investimento
não
é
em
suficiente
um para
traço
de
suprir
a
necessidade do corpo vivo, algo mais é necessário. Freud em 1920 vai dizer que o aparelho psíquico não é dominado
pelo
princípio
de
prazer,
pois
frente
“às
dificuldades do mundo externo ele é, desde o início, ineficaz e até mesmo altamente perigoso”.107 A dominação absoluta do princípio do prazer levaria à
extinção absoluta do sujeito,
porque a modalidade de satisfação pulsional do princípio do 105
O recalcamento acontece na estrutura neurótica. Nas outras estruturas (psicose e perversão) o sujeito se utiliza de outros recursos para lidar com esta representação intolerável. Neste trabalho privilegiaremos o que acontece na neurose. 106 Freud, S. - Esboços para a Comunicação Preliminar de 1893 (1892) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol I, p. 222. 107 Idem, Mais Além do Princípio de Prazer (1920) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVIII, p. 20.
xlviii
prazer
é
a
alucinação
de
desejo,
não
sendo
necessário
a
presença real do objeto para a satisfação. “(...) o objeto não
é
real,
mas
imaginária”.108 realidade,
É
“sob
autopreservação substituído
está
aqui a do
pelo
presente
que
vai
aparecer
influência
dos
ego
o
[eu],
princípio
apenas
de
como
o
instintos princípio
princípio
de
[pulsão]
de
de
realidade”,109
idéia
prazer
é
obrigando
o
sujeito a buscar satisfação fora. Freud porém nos alerta que:
Contudo, o princípio de prazer persiste por longo tempo como o método de funcionamento empregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de ‘educar’, e, partindo desses instintos, ou do próprio ego, com freqüência consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento do organismo como um todo.110
O sujeito precisa então buscar outros caminhos que o levem à satisfação. Por isso é que o Princípio de Realidade advém do fracasso do Princípio do Prazer, sem no entanto substituí-lo.
Essa
busca
que
o
Princípio
da
Realidade
introduz não se resume apenas em encontrar a representação na realidade e sim de reencontrá-la,111 ou seja, não se trata de simplesmente conferir o que está fora com o que está dentro para verificar a adequação do traço de memória (percepção) com a realidade, mas privilegiadamente, a tentativa de um reencontro que será sempre faltoso, pois o sujeito vai tentar reencontrar
aquilo
do objeto
de
108
satisfação
que não
houve
Freud, S. - Projeto para uma Psicologia Científica (1895), op. cit., p. 439. 109 Idem, Mais Além do Princípio de Prazer (1920),op. cit. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 110 Idem, ibidem. 111 Idem, A Negativa (1925) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX, p. 298.
xlix
possibilidade de ser representado e ficará buscando, tentando reencontrar aquilo que foi perdido112.113
O mundo freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta que é esse objeto, das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas coordenadas de prazer, é nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada, em nome do princípio do prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais nem percepção nem esforço.114
Este
movimento do sujeito de buscar um objeto que o
satisfez, está no âmago do que a psicanálise chama de desejo. O desejo é aquilo que resta do efeito do significante sobre a necessidade. Desta forma, o sujeito passa a buscar, de forma alienada, o objeto que o marcou e o fundou, em busca de uma satisfação
total
que
nunca
é
alcançada.
Porém
o
que
ele
desconhece, é que este objeto está perdido para sempre, assim como a satisfação obtida naquele encontro, o que é muito bom, pois caso contrário o organismo entraria no zero de tensão, que implicaria na morte do sujeito. Portanto, a condição para que o aparelho psíquico possa se constituir é que o objeto da satisfação esteja perdido, pois em cada reinvestimento, ele não é encontrado. O sujeito passa a procurar pelo objeto e nesta
busca,
significantes
vai que
o
privilegiando possam
levar
112
certos à
trilhamentos
satisfação
pulsional,
Este objeto vai ser conceituado por Lacan no Seminário 10, “A Angústia” como ‘objeto a’. 113 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit., p. 76. 114 Idem, ibidem, p. 69.
l
buscando uma semelhança entre o objeto que encontra e aquele que foi perdido.115 Lacan, no Seminário A Ética da Psicanálise, vai dizer que é a pulsão de morte que não se satisfaz na alucinação,116 fundando
o
simbólico
princípio de prazer,
e
levando
o
sujeito
para
além
do
criando novos caminhos que o levem à
satisfação.
2.4 – PARA ALÉM DO PRINCÍPIO DE PRAZER
O que Freud será levado a apresentar, ao contrário do que escreveu em 1911? Não se trata de que o inconsciente não obedece ao princípio de prazer e passe a ser reprimido pelo princípio de realidade, mas ao contrário, o inconsciente é o que transgride fundamentalmente o princípio de prazer. Não é pela emergência de um prazer que se manifesta o inconsciente, mas antes pelo sofrimento. Somente em 1920 com o texto Mais Além do Princípio do Prazer, Freud encontra a compulsão à repetição e a descreve economicamente,
como
tensão
que
não
cessa,
o
resto
que
insiste.117 Vamos ter então que o inconsciente passa a ser visto como o que não consegue ser reabsorvido pela homeostase de prazer. Surge então uma face escura, formulada por Freud como pulsão de morte. Já não se trata mais da oposição entre as pulsões de auto-conservação e as pulsões eróticas, que foi o primeiro dualismo, nem tampouco como em Sobre o Narcisismo: 115
Freud, S. - Projeto para uma Psicologia Científica, op. cit., vol I. Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit. 117 Freud já havia se referido a esta tensão que não desaparece no texto do Projeto para uma psicologia Científica de 1895. 116
li
uma Introdução em que o dualismo é apresentado pela separação de libido do eu e libido do objeto, ou seja, em que ele vai fazer uma repartição em relação ao objeto no qual a pulsão é investida. Ele passa a marcar a oposição entre pulsão de vida e pulsão de morte. Encontra um conceito totalmente diferente daquele encontrado no princípio de prazer. Freud vai dizer que o inconsciente desobedece aquilo que é a característica fundamental do princípio de prazer, já que sua constituição se dá pela via do sofrimento e não de um prazer. Descobre a existência de um resto que persiste no psiquismo,
levando
desprazerosa resto,
sua
o
sujeito
compulsivamente fonte
provém
a
repetir
(compulsão
da
pulsão
uma
a
de
experiência
repetição). morte.
O
Este
sujeito
portanto, só se liberta da tirania do princípio do prazer a partir de uma fusão de Eros, pulsões de vida, com a pulsão de morte. O que permite o ir e vir do sujeito, em um movimento dialético,
ampliando
ou
não
sua
própria
realidade,
é
a
mistura do sim e do não, de Eros e Tanatos, da pulsão de vida e pulsão de morte. Será a operação da Metáfora Paterna118 que permitirá que o sujeito tempere suas relações com a realidade na base do sim e do não. A
representação
inconsciente,
diz
intolerável,
respeito
à
traumática,
castração
do
que
outro
funda
o
materno,
portanto o que se trata de negar é o significante que aponta para essa castração. A dialética do sim e do não é fruto do recalque, que ao saber sobre a castração do outro, recalca este
significante,
porém
ele
continua
produzindo
efeitos,
embora banido para o inconsciente. A operação da Metáfora paterna promove, segundo Lacan, a “transformação
118
do
corpo
num
deserto
Veremos esta operação adiante.
lii
de
gozo”,
que
é
um
esvaziamento da pulsão de morte e a concentração da vida erótica do sujeito nas chamadas zonas erógenas reguladas pelo valor fálico. No Seminário A Ética da Psicanálise adverte que o gozo é um mal,119 pois se relaciona ao mal do próximo, criando
conseqüentemente,
a
total
desarmonia
nas
relações
sociais entre os homens, já apontada por Freud em O Mal-estar na Civilização. Este resto de gozo é o que sobra da operação da metáfora paterna, evidenciado na compulsão a repetição. Em outras palavras, esta operação é sempre falha, no intuito de mesclar a libido adequadamente à pulsão de morte. A noção de gozo permite uma conexão fundamental entre libido e pulsão de morte. Ao tratar da libido e da agressão relacionada à pulsão de morte, não como forças em oposição, mas como um nó que constitui uma clivagem interna, o conceito de gozo nos permite pensar um certo “arrastar” da libido para a
inércia
–
para
o
caminho
da
morte.
Entendido
como
um
conceito único, esta clivagem interna Lacan equivale ao que Freud descobriu na economia do masoquismo, quer dizer, uma patologia do prazer no desprazer.120 A operação da Metáfora Paterna é responsável pela junção do gozo ao significante, esvaziando esse gozo do excesso de pulsão de morte. O significante liga o gozo aos objetos para que o sujeito invista neles e goze deles. Aquilo que era pura inundação
de
dor,
de
pulsão
de
morte,
vai
ganhando
significado e se esvaziando. A
compulsão
psiquismo, objeto
e
como a
à
tensão
tentativa
repetição que de
portanto,
insiste, seu
movida
reencontro.
faz
parte
do
pela perda do A
operação
de
recalque não consegue fazer desaparecer por completo o resto traumático, deixando-nos a nu a própria divisão do sujeito. 119 120
Lacan, J., O Seminário, livro 7, op. cit., p. 225. Freud, S. - O Problema econômico do masoquismo (1924), op. cit.
liii
Eis
aqui
o
sujeito
da
psicanálise,
irremediavelmente
cindido em si mesmo. Aquilo que o perturba, aflige e lhe causa mal a nível de seu eu, é justamente aquilo que lhe traz prazer a nível inconsciente. O conceito de gozo portanto encontra-se intrinsicamente ligado ao conceito de repetição e nos fornece uma indicação fundamental para a clínica: aonde o sujeito diz sofrer, é onde ele mais goza.
É por isso que o freudismo, por mais incompreendido que tenha sido e por mais confusas que sejam suas conseqüências, afigura-se, ante qualquer olhar capaz de entrever as mudanças que vivemos em nossa própria vida, como constituindo uma revolução inapreensível, mas radical. Acumular os depoimentos é desnecessário: tudo o que interessa não apenas às ciências humanas, mas ao destino do homem, à política, à metafísica, à literatura, às artes, à publicidade, à propaganda e, através delas, à economia, foi afetado por ela.121
Enquanto Lacan instala a pulsão de morte no centro de sua teoria e faz do masoquismo um estatuto fundamental do sujeito,
o
que
vemos
nos
outros
tipos
de
pensamento,
psicológicos, psiquiátricos e até mesmo alguns que se dizem psicanalíticos, é uma não aceitação, um rechaço do conceito de pulsão de morte. Diversos autores consideravam que Freud estaria especulando ou se contradizendo. Outros atribuem a criação deste conceito, ao momento pelo qual Freud passava. Estaria doente, podendo estar deprimido, ligando a questão teórica a uma questão pessoal de Freud. Apostar numa harmonia possível, num bom encontro, na possibilidade de um sujeito vir a superar seus distúrbios e 121
Lacan, J. - A Instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud, op. cit., p. 531.
liv
suprimir
as
neuroses,
implica
na
exclusão
do conceito de
pulsão de morte. Algo bem diferente de pensar que algo da ordem
interna
impede
o
sujeito
de
encontrá-la,
algo
fundamental que é seu próprio gozo. No caminho de seu gozo, necessariamente,
o
sujeito
esbarra
no
sofrimento.
Seu
imperativo opõe-se à propensão à felicidade. Encarado como aquilo que faz o sujeito destruir a si mesmo, o gozo é o que o afasta de toda moderação e bem-estar. Lacan menciona em seu seminário A Ética da Psicanálise, que o gozo prejudica não apenas a homeostase do sujeito mas também o laço social, resistindo à moderação do princípio de prazer.122
O erro é partir da idéia de que existem a linha e a agulha, a moça e o rapaz, e entre um e outro uma harmonia pré-estabelecida, primitiva, de tal maneira que se alguma dificuldade se manifesta, só pode ser por alguma desordem secundária, algum processo de defesa, algum acontecimento puramente acidental e contingente (...) Não se trata em absoluto de um encontro, a que fariam obstáculo apenas os acidentes que pudessem sobrevir na estrada . 123
Podemos dizer que a intuição primordial de Lacan foi marcar
a
divisão
do
sujeito
contra
ele
mesmo,
opondo-a
inclusive à filosofia que o vê como uno. Introduz-se então, uma questão ligada a ética: o que fazer a um sujeito que se agarra a um bem que não é, de modo algum, seu bem-estar? O que fazer frente a um sujeito marcado por um corte, uma divisão, que faz com o que diz sentir como um desprazer a nível do eu, a nível do inconsciente é o que o satisfaz? 122
Lacan, J., - O Seminário, livro 7, op. cit. Idem, O Seminário, livro 4 – A relação de objeto (1956-1957), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1995, p. 48. 123
lv
Lacan descreve o gozo como o momento que não se pode dizer, um ponto que não se pode localizar. Talvez o gozo, ele mesmo, esteja bem próximo do horror. O gozo nada tem a ver com
o
prazer.
Afinal,
o
gozo,
isso
não
engana.
Enquanto
prazer e dor vão e vem sem que se encontre nada que seja de fato uma marca, o gozo é para cada um, mesmo que o ignore, uma certeza. 2.5 - O FALO
Os cuidados essenciais à preservação da vida do pequeno ser, comumente realizados pela mãe, são cuidados carregados de significação. A criança já nasce “banhada pela linguagem”, pois antes mesmo de nascer, já porta um significado para seus pais. Estas significações são denominadas de fálicas, porque exprimem que algo falta ao Outro. Naturalmente, para que o sujeito deste
sobreviva, Outro,
-
o
significar
algo
porque
incapaz
é
já
de
que
nasce
complexo valor, de
desamparado
Nebenmensch
pois
caso
sobreviver
e
-,
ele
contrário,
por
si
dependente precisa morrerá124
mesmo.
Esse
significado, fálico portanto, nos dado por aquele que nos toma em cuidados (Outro), só é possível porque para nossa mãe, nos constituímos como um significante (falo) que para ela representou o que lhe faltava. O falo, portanto, é um significante que tem como função tampar, recobrir, nomear a falta,
porém,
em
si,
ele
é
inominável.
Toda
vez
que
o
nomeamos: filho, dinheiro, saber, poder, família, ele desliza
124
Não é incomum ouvirmos falar de mães que jogam seus filhos fora, no lixo, no rio, enrolados em sacos plásticos, ou os deixam na porta de pessoas.
lvi
para
outro,
pois
não
se
prende
a
nenhum
significante.
Representa portanto, aquilo que o sujeito deseja.
A posição do falo está sempre velada. Ele apenas aparece em phanies, como relâmpagos, por seu reflexo a nível do objeto. Trata-se para o sujeito, bem entendido, de tê-lo ou não. Mas a posição radical do sujeito no nível da privação, do sujeito enquanto sujeito do desejo é de não sê-lo. O sujeito é ele mesmo, se posso dizer, um objeto negativo.125
Até aqui temos três elementos: a criança, a mãe e a significação que a mãe dá a criança, o falo. A mãe então ocupa esta função de introduzir o ser na linguagem, que em psicanálise chamamos o lugar do Outro. Contudo, Freud diz que o trauma diz respeito ao pai. É ele que marca a inexistência da complementaridade, da completude, entre mãe e filho. A significação que a criança vai ter para esta mulher está remetida ao pai, a um homem, já que nenhuma criança vem ao mundo sem a intervenção deste outro elemento. Portanto, na constituição do sujeito, temos quatro elementos: a criança, a mãe, o falo e o pai,126 que é o elemento que introduz no sujeito a questão do desejo.127 Eis a operação da metáfora paterna. Este sujeito veio ao mundo porque um homem desejou uma mulher. A criança dará a sua versão para este desejo de seu pai,
que
também
constituição
do
significações
mais
responde sujeito, infantis
aos ou de
mesmos
seja, sua
está
vida.
A
parâmetros
da
remetido
às
versão
que
o
sujeito dá ao desejo que o gerou também é o que lhe permite 125
Lacan, J., - Hamlet por Lacan, Campinas, Editora Escuta, 1986, p. 85. Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit. , p.85. 127 Novamente lembramos que esta equação é exclusiva da estrutura neurótica, não acontecendo desta forma na psicose e na perversão. 126
lvii
saber que o Outro é faltoso, que deseja para além dele, portanto,
que
não
é
ele
que
completa
o
Outro.
Esta
interpretação é fundamental porque permite que o sujeito não esteja na posição de objeto do Outro. De importância essencial a ser ressaltado é que esta interpretação é realizada pelo próprio sujeito e independe das vicissitudes de sua vida. Este ponto é crucial para o posterior desenvolvimento da noção de responsabilidade, pois se descartamos que esta interpretação de sua localização no desejo
do
Outro
necessariamente vítima
do
realizada
cairemos
Outro,
diversos
meios:
psíquica
dos
organização
é o
os
que
próprio
interpretação
vemos
pais
filhos.
familiar
na
pelo
caótica,
sujeito
como
freqüentemente acontecer em
como
Mesmo
do
sujeito,
determinantes
da
um
sujeito
imerso
ou
que
tenha
não
estrutura em tido
uma uma
significação fálica, ou seja, independente de como era sua mãe e seu pai, ainda assim a ele é possível fazer um jogo de positivo e negativo, oscilando entre o falo que seria e o falo que não é. Cada sujeito constrói uma história sobre o desejo que o gerou. Esta versão se torna sua verdade mais visceral, pois é ela que lhe diz como ser amado pelo Outro. Cada escolha sua, amorosa ou profissional, vai estar remetida a esta história, que chamamos de fantasia fundamental. Na Carta 71, Freud diz que a história construída por cada sujeito neurótico, tem uma estrutura
que
segue
coordenadas
simbólicas
imutáveis.
Ele
diz:
Verifiquei, também no meu caso, a paixão pela mãe e o ciúme do pai, e agora considero isso como um evento universal do início da infância, (...) Sendo assim, podemos entender a força avassaladora de Oedipus Rex,
lviii
apesar de todas as objeções levantadas pela razão contra a sua pressuposição do destino; (...) Mas a lenda grega capta uma compulsão que toda pessoa reconhece porque sente sua presença dentro de si mesma. Cada pessoa da platéia foi, um dia, em germe ou na fantasia, exatamente um Édipo como esse, e cada qual recua, horrorizada, diante da realização de sonho aqui transposta para a realidade, com toda a carga de recalcamento que separa seu estado infantil do seu estado atual.128
Esta
estrutura,
localizada
por
Freud
na
tragédia
de
Sófocles, Édipo-Rei, é encontrada na versão que todo sujeito neurótico dá, cada um com suas características peculiares, a sua novela familiar. A versão que o sujeito dá ao mistério de sua
existência
encontra-se
submetida
a
esta
estrutura
simbólica que Freud encontra com precisão no mito de Édipo. Édipo
é
considerado
um
herói
ao
contrário,
pois
sua
história não fala de grandes feitos ou de uma ascendência divina. O mito edipiano fala do homem cotidiano, um homem fragmentado,
“condenado
precária
nada
e
poderá
a
compreender fazer
para
que
sua
remediar
situação esse
é
dano
fundamental de sua existência”.129 Édipo, após ser proclamado rei de Tebas por desvendar o enigma da Esfinge, parte para descobrir o motivo de recair sobre sua cidade uma terrível peste. Descobre qual era o lugar dele no desejo do Outro através de uma pista, – marcas em seus tornozelos - fornecida pelo mensageiro que o recebeu de um pastor.130 O Outro queria sua morte. Sem saber, assassinara Laio, seu pai, e casara com sua mãe, Jocasta. Sua mãe, ao saber de tal tragédia, se enforca nua e Édipo fura seus próprios olhos com o broche de 128
Freud, S. - Carta 71 (1897) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol I. 129 Enciclopédia de Mitologia, São Paulo, Abril Cultural, vol. III, 1976. 130 Sófocles - A Trilogia Tebana, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p.72.
lix
sua mãe.131 Freud interpreta o autocegamento de Édipo como o equivalente da castração132.133 O preço a ser pago por se ter acesso ao gozo da mãe é a castração. Voltaremos a tragédia de Sófocles no último capítulo de nosso trabalho.
2.6 – UMA NOVA AÇÃO PSÍQUICA
A
subjetividade
vai
se
organizar
a
partir
da
identificação àquilo que falta ao Outro, como vimos, o falo. Esta
identificação
é
de
importância
fundamental
na
constituição do sujeito, pois esta marca, chamada por Lacan de traço unário é responsável pela entrada do sujeito no vasto universo das representações simbólicas.
Tomem apenas um significante como insígnia dessa onipotência, ou seja, desse nascimento da possibilidade, e vocês terão o traço unário, que, por preencher a marca invisível que o sujeito recebe do significante, aliena esse sujeito na identificação primeira que forma o ideal do eu.134
131
Idem, ibidem, p.86. A interdição ao gozo é representada pela castração. 133 Freud, S. - O Estranho (1919) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVII. 134 Lacan, J. - Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no inconsciente freudiano, op. cit., p.822. 132
lx
Este primeiro significante é o que permitirá ao sujeito se alienar no campo do Outro. “O sujeito nasce no que, no campo
do
Outro,
surge
o
significante.
Mas
por
este
fato
mesmo, isto – que antes não era nada senão sujeito por vir – se coagula em significante”.135 Freud
nos
chama
a
atenção
de
que
a
identificação
é
anterior a qualquer investimento objetal. O sujeito precisa se identificar a um significante para somente depois passar a investir nos objetos. Esta identificação primeira é o que possibilita o sujeito agrupar aquilo que era vivido por ele como
puro
caos.
A
fase
anterior,
desorganizada,
mais
primitiva do desenvolvimento sexual, é chamada por Freud de auto-erotismo
e
satisfação
seu
em
caracteriza-se próprio
corpo
domínio do princípio de prazer.
pelo e
indivíduo
estar
obter
subordinada
ao
136
A principal fonte de prazer sexual infantil é a excitação apropriada de determinadas partes do corpo particularmente excitáveis, além dos órgãos genitais, como sejam os orifícios da boca, ânus e uretra e também a pele e outras superfícies sensoriais. (...) Zonas erógenas denominam-se os lugares do corpo que proporcionam o prazer sexual. O prazer de chupar o dedo, o gozo da sucção, é um bom exemplo de tal satisfação auto-erótica partida de uma zona erógena.137
A operação que permite o atravessamento do auto-erotismo é chamada de identificação. Sem um significante que possa representá-lo, significante
o
para
sujeito se
precisa
identificar.
135
tomar Neste
do
momento
Outro ganha
um um
Idem, O Seminário, livro 11, op. cit., p.187. Freud, S. - Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol XII. 137 Idem, Cinco Lições de Psicanálise (1909) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol XI. 136
lxi
sentido,
porém
às
custas
do
seu
desaparecimento
sob
um
significante que veio do Outro. As pulsões parciais, autoeróticas,
desorganizadas,
se
dirigirão
a
um
objeto
privilegiado, o eu, a imagem do sujeito, que passará a ser constituído a partir da imagem do outro. O eu passa a ser o objeto
das
pulsões,
possibilitando
a
construção
de
uma
imagem. Essa imagem do eu será constituída pelas coordenadas dada pelo grande Outro e promove a entrada do sujeito no narcisismo. Esta operação que funda o sujeito não ocorre sem que ele pague um preço. Neste momento, identificado a um significante que
falta
ao
desaparecimento.
Outro, Todo
ele
sujeito
sofre
um
humano,
estrutura, vive esta operação, chamada
apagamento,
independente
um
de
sua
alienação.
Ora, mas o que é um significante?
(...) um significante é o que representa um sujeito para outro significante. Mas ele só funciona como significante reduzindo o sujeito em instância a não ser mais do que um significante, petrificando-o pelo mesmo movimento com que o chama a funcionar, a falar, como sujeito.138
Se, por um lado o significante o coloca dentro de um sentido,
por
apagamento.139
outro Na
lado
medida
este que
sentido o
também
sujeito
recebe
provoca seu
um
nome
próprio, é mortificado por este significante. O significante promove um apagamento, porém, por outro lado, nos eterniza.
138 139
Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit., p.197. Idem, ibidem, p. 199.
lxii
Essa é a margem para além da vida a que Lacan se refere em 1960 que nos é dada pelo significante.
140
O nosso sujeito então, sujeito do inconsciente, só vai aparecer
no
intervalo
entre
os
significantes,
na
sua
enunciação. A enunciação é justamente aquilo que não aparece nos ditos, no enunciado, na história bem organizada que o sujeito conta; vai aparecer no jeito, na forma que se diz, nos lapsos. “Bem, os lapsos, os buracos, as contensões, as repetições
do
sujeito,
espontaneamente,
exprimem
inocentemente,
a
também,
maneira
mas
pela
agora
qual
seu
discurso se organiza. E é o que temos que ler”.141 Esta é a diferença radical entre a clínica da psicanálise e a clínica da
psicologia
ou
psiquiatria.
O
sujeito
não
está
no
significante que o representa, mas quando ele aparece fora desta
determinação.
A
alienação
que
se
refere
Lacan
é
portanto a alienação ao significante, que confunde o sujeito quanto a seu ser.
A alienação consiste nesse vel que – se a palavra condenado não suscita objeções da parte de vocês, eu a retomo – condena o sujeito a só aparecer nessa divisão que venho, me parece, de articular suficientemente ao dizer que se ele aparece de um lado como sentido, produzido pelo significante, do outro ele aparece como afânise.142
Porém, esta é a única forma de se estar no mundo, não importa a estrutura: neurótico, psicótico ou perverso. Lacan vai dizer que ser representado por um significante é uma 140
Idem, Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no inconsciente freudiano, op. cit., p. 817. 141 Idem, O Seminário, livro 1, Os escritos técnicos de Freud (1954), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, p. 278. 142 Lacan, J. - O Seminário, livro 11, op. cit., p.199.
lxiii
escolha forçada. Ou o sujeito se representa assim, ou não é sujeito. Ele nos exemplifica essa escolha com o exemplo da “bolsa ou a vida”.143 Entregamos a bolsa ou a vida? Ora, se precisarmos
escolher
entre
um
ou
outro,
é
óbvio
que
só
poderemos escolher entregar a bolsa, já que se escolhemos a vida, perdemos a bolsa e a vida, não tem saída. Essa é a escolha
forçada
significante,
do
assim
sujeito, é
não
porque
há
somos
como todos
não
escolher
condenados.
o No
entanto, Lacan adverte que a escolha pela vida carrega um fator letal ,144 pois o significante traz consigo a morte, pois só morre aquele que está vivo. Também nesta escolha, a morte está presente. Em um segundo momento, chamado por Lacan de operação de separação, o sujeito tenta dar um significado para o objeto que foi o desejo do Outro. “É no que seu desejo está para além ou para aquém no que ela [mãe] diz, do que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que seu desejo é desconhecido,
é
nesse
ponto
de
falta
que
se
constitui
o
desejo do sujeito”.145 O sujeito precisa encontrar um novo lugar
para
ocupar,
pois
tanto
o
Outro
quanto
ele
estão
descompletados, falta-lhes um objeto que os completaria. A operação
de
significante
separação
só
(Nome-do-pai)
se possa
apresenta
se
substituir
um aquele
outro que
promovia o desaparecimento do sujeito (Desejo da mãe) e o colava no lugar de objeto do desejo do Outro. Ao reconhecer que algo falta ao Outro, o sujeito tenta com a fantasia fundamental recuperar o objeto, que supostamente uniria o sujeito ao Outro, porém este objeto está perdido para sempre. 143
Idem, ibidem, p.201. Idem, ibidem. 145 Lacan, J. - O Seminário livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, op. cit. p. 207. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 144
lxiv
Lacan então vai dizer: “O primeiro objeto que ele propõe a esse
desejo
parental
cujo
objeto
é
desconhecido,
é
sua
própria perda – Pode ele me perder”?146 O sujeito, em sua fantasia, acredita que o Outro não pode viver sem ele, que ele completa o Outro, daí a pergunta sobre sua perda. Elucidadas as duas operações de causação do sujeito, passemos a construção do eu.
2.7 – COMEÇA A SE DELINEAR O EU147 O sujeito não sabe o que diz, e pelas mais válidas razões, porque não sabe o que é.148
Freud, em sua obra original escrita no alemão, ao falar do eu, utiliza a palavra Ich que possui dupla tradução,149 o que provoca grandes mal-entendidos, pois esta palavra foi utilizada para falar do sujeito do inconsciente, como também para
falar
do
eu,
como
objeto
de
amor
narcísico.
Lacan,
utilizando o fato de na língua francesa existir duas palavras 146
Idem, ibidem, p. 203. Na tradução em português das obras de Freud é utilizada a palavra ego. Neste trabalho, contudo, optamos por utilizar “eu”. 148 Lacan, J. - O Seminário, livro 2, op. cit., p.309. 149 Da mesma forma que a palavra manga pode significar tanto uma fruta quanto a parte de uma roupa. 147
lxv
para
traduzir
o
eu:
o
Je
e
o
Moi,
propõe
a
seguinte
utilização: o Je é aquele que fala, o sujeito da enunciação, sujeito
do
inconsciente
e
o
Moi
é
aquele
que
é
falado,
sujeito do enunciado, objeto. Quando lemos a palavra “ego”150 na
tradução
em
português
Freud está se referindo ao
portanto
temos
que discernir se
sujeito do inconsciente ou a essa
instância imaginária, o eu, já que ambos foram traduzidos pela mesma palavra em português, ego. A
distinção
essencial,
pois
entre
o
designa
eu que
e
sujeito
sujeito
do
inconsciente
devemos
escutar
é
numa
análise, já que, para a psicanálise, o sujeito propriamente dito,
o
sujeito
inconsciente.
que
Esta
devemos
escutar,
concepção
implica
é
em
o
sujeito
do
uma
ruptura
da
psicanálise com todas as outras disciplinas que estudam o sujeito humano, na medida que estas confundem o sujeito com o eu. Esta é a diferença fundamental entre as psicoterapias, psicologias
e
a
psiquiatria
que
cuidam
das
patologias
psíquicas do homem, pois em uma psicanálise, interessa-se escutar o sujeito do inconsciente e este, manifesta-se nas lacunas, nos sonhos, nos lapsos, no sintoma, nas interrupções da fala do sujeito e não prioritariamente na história que o sujeito
descreve
sujeito?,
na
freudiano
do
com
medida termo,
meticulosidade.151 em
que o
é,
sujeito
“(...)
tecnicamente,
o no
inconsciente,
que
é
o
sentido e
daí,
essencialmente o sujeito que fala. (...) o sujeito que fala está para além do ego”.152 Mas que distinção é essa? Onde está a disjunção entre sujeito e eu? Passemos a entender como surge o eu.
150
Optamos por utilizar a palavra “eu”, ao invés da palavra “ego”. O “blá, blá, blá” do sujeito é o discurso do eu, que resiste e faz barreira à verdade do sujeito. 152 Lacan, J. - O Seminário, livro 2, op. cit., p.221. 151
lxvi
Quando
lemos
o
“Projeto”
o
eu
(ego)
é
o
sujeito
primitivo, sem nenhum traço de ego, de imaginário e dirigido pelo princípio de prazer. É o eu-prazer, sujeito de prazer, chamado por Freud de Lust-Ich. Como este eu não dá conta das exigências do organismo, instala-se o eu-realidade153, sujeito realidade,
Real-Ich, que possibilita a sobrevivência do eu-
prazer. Na vigência do Lust-Ich e do Real-Ich, anteriores
à
instauração do Moi, do eu, temos as pulsões desorganizadas. Com
a
instalação
do
Ich,
eu,
Moi,
essas
pulsões
vão
se
dirigir todas para a imagem, promovendo a constituição do eu como imagem especular e objeto de amor para o sujeito. Lacan espelho’
se
154
refere
a
este
momento
como
‘estádio
do
que é a releitura que ele faz de "Introdução ao
Narcisismo",
quando
aponta
para
o
descompasso
que
há
da
experiência física da criança, em relação ao seu corpo. A criança motoras,
não
tem
porém,
totalidade”.155
ainda “já
o
domínio
toma
Neste
efetivo
consciência
momento
ainda
do
se
de seu
suas
funções
corpo
confunde
com
como seu
semelhante. Freud em seu texto de 1914, estabelece que toda relação do sujeito com o mundo se dá através do amor, do investimento libidinal,
da
capacidade
do
sujeito
investir
nos
objetos
(amar) e ser investido por eles (ser amado). Expõe as duas formas possíveis para o sujeito eleger um objeto de amor: a anaclítica, daqueles
onde
que
o
sujeito
cuidaram
dele
busca e
o
no outro as referências protegeram;
e
a
forma
narcisista, onde o sujeito procura no outro aquilo que ele é, 153
Concomitante a instauração do princípio de realidade, já falado anteriormente. 154 Maiores detalhes sobre este momento no Seminário 1 “Os escritos técnicos de Freud”. Lacan explica de forma pormenorizada o reconhecimento desta imagem nos capítulos A Tópica do Imaginário, com o experimento do buquê invertido, e Ideal do eu e eu-ideal, com o esquema simplificado dos dois espelhos. 155 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit., p.96.
lxvii
foi ou gostaria de ser.156 Temos portanto, que as escolhas realizadas pelo sujeito estão sempre relacionadas ao ‘eu’ do sujeito aos outros. “A imagem da forma do outro é assumida pelo sujeito”,157 constituindo o eu ideal, instância puramente imaginária. Esse eu ideal provém
do
amor dos
pais, “nada mais
é senão
o
narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente, revela a sua natureza anterior”.158
O narcisismo do indivíduo surge deslocado em direção a esse novo eu ideal, o qual, como o eu infantil, se acha possuído de toda perfeição de valor. Como acontece sempre que a libido está envolvida, mais uma vez aqui o homem se mostra incapaz de abrir mão de uma satisfação de que outrora desfrutou. Ele não está disposto a renunciar à perfeição narcisista de sua infância; e quando, ao crescer, se vê perturbado pelas admoestações de terceiros e pelo despertar de seu próprio julgamento crítico, de modo a não mais poder reter aquela perfeição, procura recuperá-la sob a nova forma do ideal do eu (Ich Ideal). O que ele projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal.159
A criança toma do outro, daquele que cuida e a auxilia em
seu
desamparo,
os
traços
que
irão
constituí-la.
Uma
escolha forçada que promove a organização de um ser – um ser que
existe
sempre
relativo
a
outro
ser.
Daqui
surge
as
experiências tanto de amor, quanto de ódio.
156
Freud, S. - Sobre o Narcisismo: uma Introdução, op. cit., vol. XIV, p. 107. 157 Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p.197. 158 Freud, S. - Sobre o Narcisismo: uma Introdução, op. cit., p. 108. 159 Idem, ibidem.
lxviii
O Outro reconhece o pequeno ser como imagem no espelho e este reconhecimento160 propiciará a constituição de uma imagem integrada. Este reconhecimento de si como imagem unificada está um passo à frente do sujeito e provoca um pulo para outro registro, o simbólico. O reconhecimento de sua própria imagem como objeto de amor vai estar na dependência da relação do sujeito com os significantes proveniente do Outro. A imagem, passa a ser reconhecida
como
significante
que
digna
de
amor,
na
medida
veio
do
Outro
sustente
em esta
que
um
imagem.
Portanto, a estabilidade da imagem está na dependência da operação da metáfora paterna. Contudo, desestabiliza
como o
vimos,
ser.
algo
Daquilo
que
resta
desta
imaginávamos
operação “ser”
e (eu
ideal), passamos a querer ser (ideal do eu). Lacan vai dizer que o ideal do eu (registro simbólico) é que vai propiciar que o sujeito possa se ver amado pelo outro, aquele que tem aquilo que é preciso para ser amado. Este significante sustentará a imagem do próprio eu, enquanto eu ideal (imaginário). “É o seu próprio eu que se ama no amor, o seu próprio eu realizado ao nível imaginário”.161 Freud no último parágrafo de seu texto de 1914 aponta a importância do ideal do eu para o desenvolvimento de nosso tema.
O ideal do eu desvenda um importante panorama para a compreensão da psicologia de grupo. Além do seu aspecto individual, esse ideal tem seu aspecto social; constitui também o ideal comum de uma família, uma classe ou uma nação. (...) A falta de satisfação que brota da não realização desse ideal libera a libido 160 161
Lugar no desejo familiar Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p.167.
lxix
homossexual, sendo esta transformada em sentimento de culpa (ansiedade social). Originalmente esse sentimento de culpa era o temor de punição pelos pais, ou, mais corretamente, o medo de perder o seu amor; mais tarde, os pais são substituídos por um número indefinido de pessoas.162
2.8 - A AGRESSIVIDADE
O sujeito se reconhece como imagem integrada a partir da imagem do outro e também seu desejo só é encontrado no outro.
Na origem, antes da linguagem, o desejo só existe no plano da relação imaginária do estado especular, projetado, alienado no outro. A tensão que ele provoca é então desprovida de saída. Quer dizer não tem outra saída – Hegel no-lo ensina – senão a destruição do outro. O desejo do sujeito só pode, nesta relação, se confirmar através de uma concorrência, de uma rivalidade absoluta com o outro, quanto ao objeto para o qual tende. E cada vez que nos aproximamos, num sujeito, dessa alienação primordial, se engendra a mais radical agressividade – o desejo do desaparecimento do outro enquanto suporte do desejo do sujeito.163
Hegel na Dialética do Senhor e do Escravo é citado por Lacan para ilustrar como a agressividade está inserida na própria constituição do sujeito. Hegel afirmava que “o ser e o
nada
são
consciência
uma de
só si,
e ou
mesma seja,
coisa”.164 só
Se
existe
o como
homem
tem
entidade
reconhecida, isso só acontece na sua relação com o outro. 162
Freud, S. - Sobre o Narcisismo: uma Introdução, op. cit., p. 119. Idem, ibidem, p.197-8. 164 Hegel, F. – Hegel – Vida e Obra in Coleção Os Pensadores, São Paulo, Editora Nova Cultural, 1999, p.15. 163
lxx
Para saber de si ele precisa do outro. Quando cada um quer o reconhecimento há uma luta mortal, uma rivalidade imaginária até o momento em que um cede e o outro não. Ocorre então uma dissimetria, ou seja, o senhor tem uma consciência de si, ou reconhecimento de si, mas o escravo fica numa posição de coisa, sem reconhecimento de si. Em Hegel, meu desejo depende do outro como desejante e há uma luta de prestígio, ou seja, o outro é um rival imaginário. Essa dialética vai servir a Lacan quando ele diz que o desejo do homem é o desejo do Outro. O meu desejo precisa ser primeiramente reconhecido pelo Outro para que possa então ser nomeado.
Mas, graças a Deus, o sujeito está no mundo do símbolo, quer dizer, num mundo de outros que falam. É por isso que seu desejo é suscetível da mediação do reconhecimento. Sem o que toda função humana só poderia esgotar-se na aspiração indefinida da destruição do outro como tal.165
Temos ainda o exemplo de Lacan de uma menininha que se aprazia em jogar uma pedra na cabeça de uma outra criança, que certamente, era alvo de identificação por parte dela. Esta cena, marca a estrutura de todo ser humano que implica em destruir aquele que, tomado na identificação do sujeito, acaba
promovendo
agressividade,
que
a
alienação faz
parte da
deste.166 própria
Eis
o
cerne
estrutura
da
do eu.
“(...) os desejos da criança passam inicialmente pelo outro especular. É aí que são aprovados ou reprovados, aceitos ou
165 166
Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p.198. Idem, ibidem, p.199.
lxxi
recusados. E é por aí que a criança faz o aprendizado da ordem simbólica e acede ao seu fundamento, que é a lei”.167 Freud
no
texto
Totem
e
Tabu,
descreve
que,
após
o
assassinato do pai, resta aos irmãos a rivalidade entre eles, fazendo-se necessário uma ação que anule o conflito. Ocorre então a identificação edipiana, que possibilitará ao sujeito “transcender
a
agressividade
individuação
subjetiva”168
e
constitutiva a
construção
da de
primeira um
lugar
simbólico, o ideal do eu, instância que permite a ligação com o que é da ordem do cultural. Passam então a construir leis (simbólico) com fins a reger a relação entre eles e superar a agressividade que pertence a todo sujeito. Portanto, as leis servem para frear a agressividade inerente a todo sujeito humano. O entendimento da agressividade dentro da constituição do sujeito se faz necessário, tendo em vista a existência da correlação
corriqueira
entre
agressividade
e
fatores
relacionados à vida social e/ou econômica das pessoas.
167
Lacan, J. - O Seminário, livro 1, op. cit., p. 207. Lacan, J. - A agressividade em psicanálise (1948) in Escritos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p.120.
168
lxxii
3 - CASOS
Mas será que a não responsabilização na adolescência realmente
os
beneficia
de
alguma
forma?
Foi
a
pergunta
necessária a ser feita no caso que passaremos a discutir.
3.1 - O MARGINAL
Carlos, adolescente de 13 anos, já era conhecido por seus atos agressivos tanto em nossa instituição quanto nas Varas da Infância e Juventude. Em espaços curtos de tempo era trazido
por
policiais
com
determinação
judicial
para
internação, apesar de não notarmos sintomatologia para isto. Como alguns outros casos, por já ter sido internado uma vez, parecia que os técnicos da justiça já consideravam o caminho da internação como o caminho correto e inevitável naquele caso. aquele
Não
raras
deveriam
vezes
tentavam
permanecer
argumentar
dentro
do
que
casos
hospício
e
como
não
em
abrigos.169 Comecei a atendê-lo após já ter sido internado inúmeras vezes. Carlos só havia sido atendido por psiquiatras até
então,
sendo
seu
tratamento
(quando
reaparecia)
até
aquele momento, apenas medicamentoso. Havia, por parte dos técnicos,
um
repúdio
explícito
a
ele,
sendo
visto
na
instituição como “psicopata”. Porém, o fato de algumas vezes “pular
para
dentro”
do
pronto-socorro
169
daquele
hospital
Os abrigos são destinados a crianças e adolescentes sem família, ou com os laços familiares fragilizados, em vias de rompimento. No caso do paciente em questão, seu pai não o aceitava em casa e ameaçava “desaparecer” caso fosse obrigado a recebê-lo.
lxxiii
suscitou uma pergunta acerca do que ele queria ali. Assim comecei a atendê-lo. Apesar de possuir um currículo invejável170 nas Varas de Infância
e
descrente
Juventude na
e
a
equipe
possibilidade
comportamento
do
de
adolescente,
do
hospital
ocorrer Carlos
já
estar
modificações faz
um
no
vínculo
importante com sua analista. Após conseguirmos um abrigo que o
recebesse171
continuava
e
ele
evadir
comparecendo
aos
apenas
alguns
atendimentos,
dias apesar
depois,172 de
estar
dormindo na rua. Era visível sua dificuldade no convívio com outros adolescentes. Tinha história de evasão após permanecer por poucos dias na grande maioria dos abrigos. Também quando se encontrava internado em nossa enfermaria, arrumava brigas, incitava uns contra os outros e provocava os técnicos da instituição. cometia
Sua
atos
história
infracionais
se
repetia
(quebrava
da
seguinte
objetos
de
forma:
diferentes
instituições, agredia seriamente técnicos) e era, quase que automaticamente, encaminhado para internação. Carlos, com seus atos, desenrolar
dos
parecia desafiar a morte. Com o
atendimentos,
pudemos
perceber
que
não
conseguia se sustentar de forma diferente daquela designada por seu pai, que o considerava “um nada, sem futuro”. Seu pai não havia o registrado como filho, possuindo apenas o nome da mulher que o criou, que foi a mesma que criou seu pai.173 Esta senhora o abandonou aos nove anos, enquanto encontrava-se internado, mudando de endereço para que não pudesse ser mais localizada. Passa então a viver nas ruas, o que o levava, 170
Vários processos. Era um desses jovens que passavam longos períodos internados por não haver abrigo que o recebesse, justamente por já ser conhecido no município. 172 Após 24 horas de evasão, o menor não pode retornar para o mesmo abrigo. 173 Também o pai de Carlos havia sido abandonado na infância. 171
lxxiv
inúmeras vezes a ser internado, sempre por agressões. Seu pai, por sua vez, afirmava que se assim era chamado por Carlos,
o
permitia
verdadeiramente,
por
caridade,
mas
negando
inclusive
a
que
não
o
semelhança
era
física
incontestável que existia entre os dois. Não poupava esforços em dizer ao filho que ele era uma nulidade e que não tinha mais jeito. O jovem por sua vez, narrava repetidamente as lembranças
dos
espancamentos
que
sofria
e
da
total
arbitrariedade destes. Este pai era para ele a única pessoa que respeitava e temia. Sua agressividade parecia ser o elo que
o
unia
a
seu
pai.
Identificado
ao
significante
‘marginal’, permanecia alienado ao discurso do Outro, de que ele
nada
valia.
Desfazer-se
desta
imagem
implicaria
em
abdicar na crença do pai que tudo podia. Passa
a
investir
muito
em
seus
atendimentos,
comparecendo rigorosamente nos horários marcados, reclamando dos
atrasos
de
sua
analista,
mesmo
fazendo
da
rua
sua
moradia. Certa vez, após ter ensaiado atear fogo nos cabelos da mãe de um paciente do ambulatório, foi encaminhado para o diretor geral daquele hospital que lhe disse que na próxima vez seria expulso, suspendendo-o de toda atividade naquela instituição,
exceto
seu
atendimento
individual.
O
que
se
verificou foram os efeitos deste ato para aquele paciente, ou seja, como a introdução de alguém em função de Lei barrou a repetição e possibilitou uma virada nos atendimentos. Carlos dizia: “- Dr. Sérgio174 gosta de mim, por isso me repreende e me impõe castigo, coisa que meu pai nunca fez, todos os motivos eram iguais para ele me espancar”, passando a nutrir um
profundo
respeito
e
admiração
hospital.
174
Diretor-geral daquele Instituto.
lxxv
pelo
diretor
daquele
Em seus atendimentos fala de numerosas perdas: sua mãe biológica
que
o
abandonou
aos
dois
anos,
seu
pai
que
o
entregou para ser cuidado por uma mulher, que ele passou a chamar
de
mãe.
Carlos,
ao
contar
sua
história,
passa,
paulatinamente, a sair da posição de criança abandonada para a de responsável por ela. Diz ter sido uma criança muito “revoltada”, que sua mãe era uma excelente pessoa, mas que a afrontava diariamente. Lembra ter uma vez a enganado, fazendo com que bebesse sua urina, ou quando quebrou toda a sua casa. Conta que passou a receber presentes para que se comportasse adequadamente, o que acabou acarretando o efeito inverso: passa a chantagear, dizendo que se não ganhasse o que queria, quebraria os objetos. Pede à analista que o ajude a escrever sua história, ditando-a. Diz que quando acabar irá vendê-la naquele mesmo hospital.
Relata
as
lembranças
dos
momentos
muito
angustiantes que viveu, quando ficava pelas ruas, o medo que sentia, o que durou anos. Vez ou outra a analista era chamada a comparecer em diversos
lugares
para
discutir
o
comportamento
do
rapaz.
Havia ateado fogo em um dos pacientes do setor de moradia, o que
acarretou
em
novamente
longo
tempo
suspenso
do
hospital.175 Outra vez tentou agredir um dos vigilantes da instituição acarretando em nova suspensão. Todas as vezes era ouvido pelo diretor geral do hospital sobre os motivos de seus atos. O vigilante, segundo ele, já vinha lhe provocando há algum tempo. No caso do paciente queimado,176 este havia colocado álcool em seu próprio corpo e pago uma quantia a Carlos para que ele apenas riscasse o fósforo. Justificativas
175
Carlos almoçava e lanchava no hospital, o que também foi suspenso nesta época. 176 Paciente psicótico grave daquele hospital.
lxxvi
tomadas
como
insuficientes,
necessitava
então
pagar
pelos
seus danos, o que o deixava inconsolável e revoltado em um primeiro momento. Nestas situações, pedia que a analista o atendesse mais vezes pois precisava falar sobre o que sentia. Os
atendimentos
assim
decorriam.
Passava
algum
tempo
tranqüilo e de repente novas denúncias: Carlos havia invadido um setor da instituição no horário noturno para pernoitar! Deveria consertar a porta danificada. Carlos quebrou um dos ventiladores do serviço! Deveria comprar outro para repor o danificado.177 Todos estes episódios acarretavam em pedidos de atendimentos “extra” onde Carlos precisava falar sobre o que lhe acontecia. Sempre inicialmente com muita raiva e depois, paulatinamente,
passava
a
reconhecer
seu
erro
e
suas
dificuldades. Todos
estes
contornados.
As
momentos equipes
eram
dos
muito
diversos
difíceis setores
de
do
serem
hospital
encontravam-se extremamente desgastadas com o comportamento de Carlos, duvidando de qualquer possibilidade de melhora e, muitas vezes, colocando em xeque o trabalho que vinha sendo realizado
com
o
rapaz.
Uma
vez,
logo
no
início
dos
atendimentos, três profissionais se reuniram e redigiram um laudo sobre Carlos dizendo que todos os esforços já haviam sido
realizados
internado
como
naquele medida
caso
e
que
o
socioeducativa.178
jovem Nesta
deveria
ser
época,
sua
analista precisou entrar em contato com o juiz do município onde o pai de Carlos residia e, após exposição do caso, conseguimos frear a ida de Carlos para aquela instituição, nos comprometendo a enviar relatórios sobre a evolução do caso.
177
Nesta época Carlos já trabalhava em uma ONG que funcionava naquele hospital. 178 Encaminhado para o Educandário Padre Severino.
lxxvii
Houve um episódio marcante em seus atendimentos. Em um desses dias, final de expediente, entrou na recepção do ambulatório e abriu a geladeira. Olhou o que tinha dentro e achou um pão doce e fez que ia comê-lo. Disse-lhe que aquilo não o pertencia e que por isso ele não poderia pegá-lo. Insisti com ele e tentei impedi-lo que comesse, porém ele quis usar de força, me afastando, o que fiz, pois senão precisaria entrar em luta corporal com ele. Apenas o olhei e disse que estava bastante irritada e que iria embora.
Ficou
gritando o meu nome, pedindo que retornasse. Reafirmei minha irritação
e
disse
que
não
falaria
mais
com ele
naquele
momento e fui embora. Depois desse episódio, Carlos não mais burlou as regras. No dia seguinte, disse-me que eu tinha brigado com ele por causa de apenas um pão doce. Respondilhe que ele é que havia me desrespeitado apenas por causa de um pão doce. Tentou ainda se explicar dizendo que por estar dormindo na rua, estava ficando sem jantar, então sentia fome,
por
isso
tinha
feito
aquilo.
Não
aceitei
sua
explicação dizendo que havia outras formas de se conseguir alimento que não aquela que ele usou. Acaba por reconhecer seu erro e me diz que temeu muito que eu não quisesse mais atendê-lo. Este e outros atos semelhantes vão, pouco a pouco, sendo substituídos.
O
tratamento
possibilita
que
Carlos
possa
substituir os atos impulsivos por palavras que dirige a sua analista. Carlos
prossegue
história, ora criando
construindo,
ora
escrevendo
sua
batalhas de deuses poderosos que lutam
entre o bem e o mal. A esperança de amor que a relação com sua analista propiciava fazia com que Carlos retornasse todos os dias.
lxxviii
Aos poucos, sai do lugar de vítima, de excluído, para tentar
se
situar
como
desejante.
Do
lugar
de
resto,
sem
valor, passa a se importar com seu nome, que era o mesmo de um
famoso
escritor.
Ditava
suas
histórias
e
passa
a
se
orgulhar de seu nome no final delas. Resolve retornar aos estudos, quer um dia comprar uma moto e ter uma namorada. Começa a fazer planos de como será sua vida e como criará seu filho. Passa a freqüentar a igreja assiduamente, transferindo para Jesus sua paternidade. Através do hospital faz um curso de informática (era apaixonado por computadores) e consegue um emprego. Na igreja que freqüenta, oferecem-lhe um quarto para morar, deixando de dormir pelas ruas. Depois de anos de análise,179 Carlos ri de seu jeito “esquentado” do passado, impressionando-se de como era. Ter se responsabilizado por sua vida, por sua história, trouxelhe frutos que desconhecia poder usufruir. Porém, o mesmo não acontece
com
todos
que
experimentam
um
tratamento
como
apontaremos com o caso de Vera.
3.2 - A VICIADA
Quando Vera, 15 anos, chegou para ser avaliada por mim, o pedido da equipe e dos técnicos da Justiça era o de saber se tinha diagnóstico de psicose. Essa suspeita existia pela postura
de
Vera
diante
dos
técnicos:
diante
de
qualquer
pergunta, apenas ria. Inicialmente, assim também se comportou em
179
minha
presença,
porém
depois
de
Até o momento foram seis anos de tratamento.
lxxix
algum
tempo
resolveu
contar-me
sua
história,
fato
fundamental
para
que
fosse
tomada em atendimento. Conta-me que seus pais morreram de overdose. Sua mãe, em seu colo, quando tinha apenas 6 anos. Lembra-se que sua mãe chegou em casa, pediu-lhe que lhe trouxesse um copo com água e depois deitou em seu colo, morrendo nesta posição. Após três meses, a mesma morte trágica acontece com seu pai. Vera e seus três irmãos são criados por sua avó paterna, de origem espanhola. Esta senhora me conta que seu filho, pai de Vera, era desenhista formado e que passou a se envolver com drogas quando conheceu a mãe de Vera. Repetidamente me relata nas entrevistas que Vera é igual à mãe. Vera se irrita quando sua avó diz que sua mãe não prestava e era culpada pelo uso de drogas e morte de seu filho. O que traz Vera a atendimento é o
abuso
de
drogas,
já
tendo
sido
internada
com
parada
cardíaca após o uso. A
jovem,
analista,
a
apesar
cada
de
nitidamente
atendimento
se
afeiçoar-se
despede,
a
sua
dizendo que não
voltará mais. A mesma cena se repete a cada atendimento: Vera se despede sorrindo, dizendo não mais voltar. E retorna no próximo
atendimento.
Aos
poucos
percebo
que
este
era
um
movimento necessário a Vera: dizia-me que não mais voltaria, que fugiria, que a analista era ‘chata’, que não queria mais viver, mas fazia tudo ao contrário. Certa vez, em um dos atendimentos digo-lhe que já aprendi que quando dizia não, queria dizer sim, o que faz a jovem gargalhar alto, como que flagrada em uma peraltice. Vera
me
conta
que
já
teve
inúmeros
psicólogos,
de
diversas instituições diferentes mas que a analista não era igual a nenhum dos que já tivera, o que marcava sem dúvidas a relação transferencial. Apesar de suas repetidas despedidas, comparecia
regularmente
aos
atendimentos, lxxx
não
necessitando
que ninguém a levasse. Porém, meses após o tratamento se iniciar, a analista tira férias, já marcadas com bastante antecedência. Sabendo quão delicado seria aquele afastamento para Vera, insiste em lhe dizer que retornará após um mês e que
os
atendimentos
continuarão.
Após
o
término
de
suas
férias, tenta marcar com Vera seu retorno, mas a jovem havia desaparecido. Sua avó conta que a neta tentou agredi-la após uma discussão entre as duas e que chamou a polícia para ela. É encaminhada para um abrigo, depois para outro e evade do último. Após vários meses de afastamento recebo um telefonema de que Vera encontra-se em atendimento no CAPSad180, porém que pedia incessantemente para retornar os atendimentos comigo. Havia sido encaminhada a este CAPS para atendimento pela 1ª Vara
da
Infância
e
Juventude
com
muitas
recomendações,
demonstrando ser uma adolescente “especial”. Apesar de seus pedidos para retornar para sua analista,181 os profissionais daquele serviço insistem em atendê-la, culminando em Vera cortar seus braços com vidro. Após este incidente, resolvem ouvir a adolescente e entram em contato com sua analista, que retoma os atendimentos de Vera. Acontece
que
completamente
o
panorama
modificado.
que
Os
ronda
Vera
profissionais
está
que
se
encarregaram do caso da jovem decidem não investir mais em um trabalho com sua avó, o que acarreta em que Vera passe agora a
morar
em
abrigos.
Também
dirigem
a
Vera
um
olhar
diferenciado ao de outras adolescentes. De fato, a jovem era muito escola
bonita,
pele
bastante
diferenciado
das
alva, tempo)
outras
muito e
inteligente de
adolescentes
180
nível
(freqüentou
a
sócio-econômico
abrigadas,
a
maioria
CAPSad é a sigla para Centro de Atenção Psicossocial para usuários de álcool e drogas. Este serviço é fisicamente vizinho ao serviço infanto-juvenil, no qual trabalho.
181
lxxxi
pobres e negras. Além do que, recebia mensalmente pensão de seu pai, o que a fazia portar celulares modernos e utilizar boas roupas. O tratamento dado a Vera se diferenciava a tal ponto
nos
abrigos
que
muitas
jovens
a
odiavam,
o
que
acarretava em repetidas brigas, enquanto outras buscavam sua amizade para também poderem usufruir de suas vantagens. Por sua vez, o que rondava a cabeça dos profissionais responsáveis por seu caso era um afã incontrolável de lhe ajudar. Não raras vezes ouvíamos a frase “Ela podia ser minha filha”, além do que, sua história verdadeiramente trágica, impulsionava
os
técnicos
a
lhe
cobrirem
de
mimos,
interpretando que a “falta de amor” era o motivo pelo qual Vera
se
grande
drogava.
Uma
posicionamento
passear
nos
finais
destas na
profissionais
instituição,
de
semana
e
inclusive,
levava
lhe
Vera
dava
de
para
presentes
constantemente. Tal nova configuração acarretava que Vera passava a ter todos
os
cuidados:
médicos,
psiquiatras
(passa
a
tomar
medicação), assistentes sociais e técnicos que a levavam e a buscavam do tratamento. Tantos cuidados passam a sufocá-la em relação ao saber sobre si mesma, o que se refletia em seus atendimentos, onde a jovem passa a não ter mais nada a dizer sobre
si,
passando
apenas
a
desenhar.
Seus
desenhos
se
repetiam de forma rotineira: ou desenhava uma casa, sol, uma árvore com frutos e algumas flores, ou um coração para a analista sempre com as seguintes palavras: “Vc é d+. Nunca mais vou te abandonar.”
Importante salientar que Vera passa
da posição de alguém que no início de seu tratamento não ia mais voltar (e voltava!), ou em outras palavras, podia
abandonar
o
outro
para
alguém
abandonar (e como veremos abandona).
lxxxii
que
não
alguém que podia
mais
Tantos
cuidados
especiais
no
intuito
de
lhe
prover
aquilo que interpretavam ser o que lhe faltava, acarretou na mudança desastrosa do rumo do caso. O olhar que debruçavam sobre Vera a impossibilitava de qualquer saber. De imediato podemos perceber que tomando o sujeito pelo viés do déficit, de algo que lhe falta, automaticamente nos posicionamos de forma
a
ter
que
atender
suas
demandas,
de
supri-los,
compensá-los: da falta de amor, da falta de dinheiro, da falta
de
um
lar,
etc.
Esta
forma
de
conceber
o
sujeito
acarreta tanto em uma posição assistencialista, quanto no seu oposto: a segregação.182 Em
um
dos
atendimentos,
explica
de
forma
mecânica
e
questionada repetida
por
que
seus
não
atos,
podia
ser
responsável pelo que fazia. Ensinava-me, - como tentando me fazer
entender
algo
que
lhe
foi
explicado
e
que
eu
desconhecia -, que por ser adolescente não tinha ainda como entender
certas
atitudes
que tomava.
Em
outro momento me
dizia, apesar de sua fala não demonstrar nenhuma emoção ou convicção, que o acontecimento com seus pais acabou deixandoa daquela forma. Tal situação tinha como conseqüência impelir Vera
a
determinados
comportamentos,
pois
acabava
se
identificando a este lugar. Durante os atendimentos, não quer mais falar, querendo apenas desenhar. Satisfeita em seu gozo, atendida em suas demandas, não necessita mais se interrogar, o que inviabiliza qualquer tratamento clínico. Passa a se colocar sempre no sentido de uma recusa a saber algo sobre si. Dizia: “Não sei porque faço isso”, “Não sei porque me corto”, “Não sei porque agrido as pessoas”, “Não sei responder estas suas perguntas”. Certa vez contoume, categoricamente: “Sabe, os doutores me disseram que eu 182
Como vimos acontecer durante anos com os pacientes psiquiátricos, os “loucos”.
lxxxiii
sofri muito, por isso sou assim. Você devia conversar com eles. Eles entendem bem porque sou assim.” Vera, desta forma, atribuía aos “doutores” um saber sobre si. “Liga para eles, eles sabem sobre mim”. Identificada e acorrentada ao lugar que lhe supunham, perde sua palavra e o sentido que ela pode produzir. Repetidamente utilizava o significante “viciada”, como se
ele
sobre
pudesse o
porquê
explicar do
toda
vício,
sua
nada
existência.
tinha
a
Questionada
dizer,
como
que
assolada por um desígnio alheio à sua vontade. A jovem não consegue perceber o que seus atos possuem de relação com seu ser, mostrando compreendê-los como desvinculados de sua vida, sem sentido, como vítima de um capricho do acaso. Sobre sua posição no mundo (“viciada”), o tempo todo era-lhe ensinado como deveria se comportar, o que deveria fazer e não fazer, como se sentia, etc. Não é à toa que passa a me dizer que não mais me abandonaria, o contrário do que fazia na fase inicial de
seu
tratamento,
quando
dizia
que não
mais retornaria.
Quando pensa estar sabendo fazer183 é quando está no maior desconhecimento
de
seu
ser.184
Quando
nada
sabia,
podia
avançar e questionar seus atos. Vera passa a faltar seus atendimentos com freqüência cada vez maior, até sumir por completo.
183
De acordo com o que lhe diziam que devia fazer. Remeto o leitor as págs. 29 e 30 onde Lacan discute a existência de dois lugares: o lugar do pensamento e o lugar do ser. “Penso, onde não sou” e “sou, onde não penso”.
184
lxxxiv
CONSIDERAÇÕES FINAIS (...) a crença na ‘bondade’ da natureza humana é uma dessas perniciosas ilusões com as quais a humanidade espera seja sua vida embelezada e facilitada, enquanto, na realidade, só causam prejuízo.185
Aprendemos, natureza
e
que
com
Freud,
isto
não
que
tem
o
homem
nenhuma
não
relação
é
bom
com
por
credo,
cultura ou classe social. O preço a se pagar para viver na civilização é a renúncia às pulsões e esta renúncia nunca é plena
e
sem
conseqüências,
daí
o
mal-estar,
título
domesticar
a
da
surpreendente obra de Freud de 1930.186 Qual Segundo
seria
Freud
a
possibilidade
“(...)
Não
é
de
fácil
entender
como
pulsão? pode
ser
possível privar de satisfação um instinto [pulsão]. Não se faz
isso
impunemente.
compensada,
pode-se
decorrerão disso”.
Se
ficar
a
perda
certo
de
não que
for
economicamente
sérios
distúrbios
187
A agressividade precisa ser inibida para que não destrua com a civilização. Esta dominação acontece na infância com a instauração do superego [supereu], instância que herda os imperativos parentais.188
A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, 185
Freud,S. - Ansiedade e Vida instintual – Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise - Conferência XXXII (1933[1932]) in Imago Editora, vol. XXII, p. 130. 186 Idem, O Mal estar na Civilização (1930 [1929]), op. cit.. 187 Idem, ibidem, p. 118. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 188 A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade.
lxxxv
ESB,
desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele [supereu], como uma guarnição numa cidade conquistada.189
Porém, há algo que escapa ao controle, insistindo na satisfação da pulsão, ocasionando as transgressões. O sujeito quer mais do que pode ter acesso – ir na direção de uma satisfação que se liga à pulsão: ao gozo.190 É um paradoxo, o homem querer buscar o gozo e este ser um mal,191 porém a Psicanálise nos mostra que é impossível não ir ao gozo. “Nada força ninguém a gozar, senão o superego [supereu]. O superego [supereu] é o imperativo do gozo – Goza!”192 Ocorre que o supereu193 é um imperativo que age a favor da lei, mas que, devido a ser cego e tirano, acaba por lhe ser contrário.194 É assim que “todo aquele que se aplica em submeter-se à lei moral
sempre
minuciosas,
vê
reforçarem-se
mais
cruéis
de
as
seu
exigências, supereu”.195
sempre E,
se
mais “todo
exercício de gozo comporta algo que se inscreve no livro da dívida
na
Lei”,196
o
supereu
permanece
cobrando
pela
sua
todo
ser
transgressão.197 Deste
modo,
a
transgressão
faz
parte
de
humano.198 Mesmo a criança não é um ser bom. O livro O senhor
189
Freud,S., O Mal estar na Civilização (1930 [1929]), op. cit., p. 146. A palavra entre colchetes é de minha responsabilidade. 190 Lacan, J. - O Seminário, livro 7, op. cit. 191 Ver ps. 43, 44 e 45 acima. 192 Idem, O Seminário, livro 20, Mais Ainda, 1972-1973. Rio de Janeiro RJ, Jorge Zahar Editor, p. 11. As palavras entre colchetes são de minha responsabilidade. 193 Observamos que o supereu da lei e do gozo não são o mesmo. Maiores informações sobre esta questão podem ser encontradas em Gerez-Ambertín (2003). 194 Idem, O Seminário, livro 1, op. cit. 195 Idem, O Seminário, livro 7, op. cit., p. 216. 196 Idem, ibidem. 197 Para um exame mais detalhado desta questão ver Dóris Rinaldi (1996). 198 Não podemos esquecer que sonegar impostos, avançar sinal, fazer cópia “pirata” de cd ou dvd, etc., também constituem transgressões.
lxxxvi
das moscas199 nos dá um excelente exemplo da agressividade do homem, presente desde a infância. A história gira em torno de um
grupo
de
crianças
que,
após
um
acidente
de
avião,
encontram-se sozinhas numa ilha e precisam buscar formas para sobreviver. Elegem um líder entre eles, regras que devem ser cumpridas por todos e estabelecem tarefas para o grupo. Uma das crianças do grupo porém rebela-se e passa a impor sua própria lei, mediante grande agressividade. Neste momento, as regras passam a deixar de valer e o que prevalece é a lei do mais forte. O interessante a destacar neste livro para nosso estudo é que, não estando as crianças sob a coerção dos adultos, aflora a agressividade existente nelas. O grupo, identificado ao líder agressivo e necessitando de sua proteção, matam, humilham, segregam. O que dizer sobre a crença em encontrar “personalidades degeneradas”, tentativa
que
ou
“disposições
vemos
persistir
hereditárias” tanto em
para
o
crime,
alguns setores da
Psicologia quanto do Direito? Os “criminosos” não são seres inferiores, criaturas brutais e que perderam sua dimensão humana, necessitando da piedade, compaixão e investimento dos homens de bem. Aqueles que cometem crimes não são diferentes de nós, apesar do desejo narcísico daqueles que insistem em querer se diferenciar destas pessoas, como que acreditando fazerem parte de uma raça distinta e superior. Os chamados “criminosos” estrutura
não
são,
psicológica,
nem
biologicamente
distintos
do
homem
e
nem
honrado
em
sua
normal.
Todo homem é estruturalmente capaz de ser um criminoso, um inadaptado e conserva em sua plenitude esta tendência durante os primeiros anos de sua vida. A adaptação do sujeito às 199
Golding, W., O senhor das Moscas, Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 2006.
lxxxvii
renúncias impostas pela vida em sociedade começa apenas após o período de latência,200 descrito por Freud,
e termina na
adolescência.
durante
período,
Acontece
reprimem
as
que
algumas
genuínas
pessoas,
tendências
este
agressivas
e
dirigem-nas em um sentido socialmente aceito, quando outras pessoas conseguiu
parecem
fracassar
reprimir
sua
neste
momento.
agressividade
O
porém,
homem
que
continua
manifestando-a nos sonhos, no sintoma e também as satisfaz em atividades como: lutas, disputas, jogos agressivos, filmes violentos e, por último, as terríveis guerras. Podemos agora compreender a instigante frase de Lacan em seu seminário O avesso da Psicanálise: “Só conheço uma única origem da fraternidade (...), é a segregação”.201 Interessante Lacan apontar que a fraternidade só pode existir ao preço de que alguns, - aqueles que não consideramos como nossos irmãos – sejam excluídos. É o mesmo que Freud já nos havia apontado em O Mal estar na Civilização quando diz: “É sempre possível unir
um
considerável
número
de
pessoas
no amor, enquanto
sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade”.202 Essa necessidade de segregação se torna evidente quando vemos a comoção que acontece na sociedade contra aqueles que cometeram crimes. O homem passa a dirigir seu ódio (e, como vimos, ele precisa deste escoadouro) para aqueles que julga diferente dele. Vemos estas cenas acontecerem diariamente nos jornais: policiais batendo de forma covarde em traficantes, os crimes cometidos nas guerras, a disputa existente entre times e gangues rivais, o desejo da população de linchar 200
Freud S. - Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol VII. 201 Lacan, J. - O Seminário, livro 17, O avesso da psicanálise (1969 1970), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1994, p. 107. 202 Freud, S. - O Mal estar na Civilização, op. cit., p. 136.
lxxxviii
aqueles
que
cometeram
crimes
hediondos,
etc.
“Espera-se
impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos (...)”.203 Cada pessoa isoladamente sente como uma ofensa própria o mal
infligido
injustamente
a
qualquer
outra
pessoa,
principalmente se esta for do seu mesmo nível social. Este efeito psicológico, o sentimento de injustiça vivido pelas massas
se
funda
no
conceito
de
identificação que
podemos
formular da seguinte forma: A cada um de nós, poderia ocorrer o mesmo. Já aprendemos que a renúncia à satisfação da pulsão se baseia no temor do desprazer ou na esperança do prazer e significa a adaptação das exigências da pulsão aos dados da realidade. Portanto, renuncia-se a determinadas satisfações da
pulsão
porque
a
satisfação
não
é
possível
ou
porque
resultaria em mais desprazer do que a renúncia representa. Freud chamou a isto “a substituição do princípio de prazer pelo princípio de realidade”.204 Toda
a
educação
se
representa
uma
exigências
primitivamente
castigo
promove
baseia
adaptação na
neste
dirigida
princípio,
já
que
sistematicamente
às
anti-sociais
criança
uma
das
vivência
crianças. de
O
desprazer,
enquanto o carinho das pessoas amadas a auxiliam na inibição das pulsões. O temor do castigo e a esperança do carinho representam deste modo, os centros de atração que regulam a vida das crianças.205 Esta troca entre amor e renúncia começa no período da infância mais remota. Posteriormente, o eu, que penosamente 203
Idem, ibidem, p. 134. Ver págs. 39 e 40 acima. 205 Para um exame mais detalhado desta questão ver os textos de Freud, O ego e o Id (vol. XIX) e Inibições, Sintoma e Ansiedade (vol. XIX). 204
lxxxix
inibe suas exigências pulsionais, oferece este sacrifício à sociedade,
na
espera
de
prestações
recíprocas,
segundo
o
mecanismo que já conhecemos, a mesma que o sujeito tinha com seus
entes
lugar
das
queridos. pessoas
Neste
que
momento,
foram
a
sociedade entra no
importantes
na
infância
do
sujeito e suas emanações são o reconhecimento, o respeito e todas as escalas de liberdade que se concede ao cidadão, desde as garantias individuais até outras mais elevadas, que são verdadeiras prestações que ajudam o sujeito a suportar as limitações que lhe são infligidas. A Psicanálise mostra como uma pessoa pode ser querida conscientemente e odiada inconscientemente, ou vice-versa. Da mesma forma, pode se assassinar por ódio e por amor ao mesmo tempo; cometer um furto por razões lucrativas e ao mesmo tempo,
por
impulsos
inconscientes
de
prazer,
que não tem
nenhuma relação com o lucro. Tais fatos não são privativos de ações criminosas. Esta diversidade de motivações se dá também com ações perfeitamente lícitas. O capataz sádico que nas colônias
açoita
os
índios,
tem,
para
sua
conduta,
um
fundamento racional, de que para transformar o selvagem em civilizado é necessário uma severa disciplina. Nas pessoas dedicadas a ensinar se pode dar um fenômeno semelhante, a de concorrerem
tendências
opostas:
uma
consciente,
a
função
social do educador, e outra inconsciente, o impulso agressivo de
dominação.
cirurgião,
ou
A
dureza
do
a
obediência
carcereiro, ao
dever
do
a
destreza
policial,
do
todas
possuem as duas tendências contrárias, das quais somente uma, a
que
representa
permanece
um
obscurecida
fator no
social
transparece.
inconsciente,
A
outra,
produzindo
seus
efeitos de forma clandestina. Quanto
à
educação,
Freud
não
é
otimista
em
sua
utilização na prevenção dos crimes. Relata que a tarefa de xc
educar, é uma das profissões impossíveis.206 Impossível por que? Porque a pulsão de morte não é passível de educação. E os educadores estão sempre esbarrando com essa parte de gozo que
insiste
alunos,
a
no
sujeito.
transmissão
Na
relação
possível
é
entre
apenas
professores
aquela
que
e
está
ligada à pulsão de vida, Eros. Tanto a educação quanto a civilização renunciar
trabalham
a
seus
transgressões,
no
sentido
impulsos
contra
o
que
egoístas.
gozo
os As
sujeitos lutas
desmedido,
possam
contra
precisarão
as ser
constantemente repudiadas, para que a civilização permaneça. Os homens, segundo Freud, (...) não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é para ele, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de sua posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. O homem é o lobo do homem.207
A
agressividade
outro,
momento
faz
que,
parte
como
já
deste
desejo
estudamos,
de
faz
posse
do
parte
da
constituição do sujeito. Este é o motivo pelo qual Freud não concordava com a posição dos comunistas de que abolindo a propriedade privada, a agressividade deixaria de existir.208 Além do que, que dizermos sobre as injustiças provenientes da própria
natureza
“...
natureza,
a
(defeitos por
físicos,
dotar
os
206
inteligência,
indivíduos
com
beleza)? atributos
Idem, Prefácio a Juventude Desorientada, de Aichhorn (1925), in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1990, vol. XIX, p. 341. 207 Idem, O Mal estar na Civilização, op. cit., p. 133. 208 Idem, ibidem, p. 135.
xci
físicos
e
capacidades
mentais
extremamente
desiguais,
introduziu injustiças contra as quais não há remédio”.209 De acordo com o que desenvolvemos até aqui, estaríamos afirmando que qualquer tipo de organização social acarretaria as mesmas conseqüências? Tanto faz vivermos numa ditadura ou em
um
modelo
democrático?
Já
que
a
agressividade
é
de
estrutura e não há como preveni-la, uma vida miserável e oprimida seria equivalente à outra com oportunidades? Obviamente
que
não!
Necessitamos
de
um
Estado
que
propicie crescimento e desenvolvimento para todos para que cada pessoa possa despertar toda sua potencialidade. Freud em um de seus textos, faz uma crítica ao fato da psicanálise ser exclusiva das classes mais abastadas e que o Estado deveria poder disponibilizá-la também para as classes populares.
(...) mais cedo ou mais tarde, a consciência da sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto direito a uma assistência à sua mente, (...) e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do que a tuberculose, (...) de modo que homens que de outra forma cederiam à bebida, mulheres que praticamente sucumbiriam ao seu fardo de privações, crianças para as quais não existe escolha a não ser o embrutecimento ou a neurose, possam tornarse capazes, pela análise, de resistência e de trabalho eficiente. Tais tratamentos serão gratuitos. Pode ser que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como são urgentes esses deveres210.
Dessa existência
forma, da
não
miséria,
desconsideramos da
pobreza,
do
os
efeitos
abandono
e
da das
precárias condições de vida que vive uma grande parte da
209
Idem, ibidem, n.r. p.135. Idem, Linhas de Progresso na Terapia Psicanalítica (1919[1918]) in ESB, Imago Editora, vol. XVII. 210
xcii
população. Porém, nosso trabalho visa discutir qual a origem das transgressões sem transformá-la em uma visão simplista do problema, como por exemplo, reduzi-la ao contexto social do sujeito. O que a psicanálise tem a contribuir na interlocução com a Justiça é que existe outro registro, inconsciente, que impele o sujeito ao ato. Este reconhecimento pelo sujeito do que nele o impele a algo independente de sua vontade é um passo importante para que o sujeito se responsabilize e, a partir daí, possa escolher outra forma de se expressar. Caso contrário, estaríamos dizendo que os atos infracionais, as transgressões
são
decorrentes
da
falta
de
alimentação
adequada, educação ou precárias condições de vida (baixos salários). Os crimes seriam exclusividade apenas das classes populares. Quando sabemos a enorme incidência de crimes nas classes média e alta, porém que, muitas vezes, não chegam até os bancos dos réus.
SOBRE A RESPONSABILIDADE
Vimos, com Descartes, que ao homem é possível arcar com sua própria sorte, sem se reconhecer apenas como marionete de um destino impiedoso e inexorável. Este é o sentido do que Lacan
chamou
de
“momento
inaugural
do
surgimento
do
sujeito”,211 ou seja, o surgimento da idéia de que o homem pode se responsabilizar pelo que lhe ocorre. Com
Édipo,212
perguntamos
que
“culpa”
tinha
ele,
efetivamente? Poderia não ser considerado responsável por ter matado seu pai e casado com sua mãe, já que não sabia quem 211 212
Idem, O Seminário, livro 11, op. cit., p. 211. Ver págs. 48 e 49 acima.
xciii
eram? Se, para ter culpa, é necessário aderir conscientemente à prática do mal, Édipo não era culpado. Poderíamos atribuir a responsabilidade ao destino ou a uma vontade caprichosa dos deuses? Não é o que Sófocles pretende nos fazer entender quando
diz:
‘Tu
estás
lutando
em
vão
contra
a
tua
responsabilidade, e estás declarando em vão o que fizeste em oposição a essas intenções criminosas. És culpado por não teres conseguido destruí-las; elas ainda persistem em ti, inconscientemente’.213 A
responsabilidade
sujeito,
deste
conseqüentemente,
supõe
desejo
então
o
“desconhecido”
também
os
atos
que
reconhecimento que
o
comete.
habita No
caso
do e, de
Carlos podemos verificar que o jovem passa a modificar suas atitudes após se responsabilizar por seus atos, o que não ocorre no caso de Vera. Nos perguntamos então: existindo este “estranho” em nós, que não controlamos, isso pode nos servir para que não nos responsabilizemos inconsciente,
esse
por
nossos
“louco”
em
atos? nós?
Seríamos Ou
vítimas
melhor,
seria
do o
sujeito, vítima de si mesmo? Segundo Freud o homem é responsável por seus sonhos, referindo-se aos desejos inconscientes que o habitam. Ante a dúvida sobre a responsabilidade do que sonhamos ele diz:
Obviamente, temos de nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos. Que mais se pode fazer com eles? A menos que o conteúdo do sonho (corretamente entendido) seja inspirado por espíritos estranhos, ele faz parte de seu próprio ser. (...) o
213
Freud S. - Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise Conferência XXI, (1916-1917[1915-1917]) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XVI, p. 387.
xciv
que estou repudiando não apenas ‘está’ em mim, mas vez e outra ‘age’ também desde mim para fora.214
Aquilo que desconheço em mim e, mesmo assim, em mim produz efeitos, é chamado por Freud de “desejo inconsciente”. Porém, ser responsável por seu desejo inconsciente não quer dizer que devemos ser “castigados” por eles. Freud cita, como exemplo, o erro cometido por um imperador romano que mandou matar
seu
súdito
por
este
ter
sonhado
que
matava
o
governador.215 São os atos, e não os pensamentos ou desejos, que devem ser considerados nestes casos. Se
somos
responsáveis
pelos
nossos
desejos
inconscientes, que dizermos de um ato criminal? Freud deixando
inclusive
claro
que
aponta o
217
estrutura subjetiva,
sujeito
a é
“escolha
da
responsável
neurose”,216 até
por
sua
pois caso contrário, só resta-lhe ser
joguete do Outro. Apesar de sabermos que os significantes que o sujeito recebe vem do Outro, não podemos esquecer que é o sujeito que interpreta. O sujeito é determinado inconscientemente em relação às suas
escolhas
e
ações
no
mundo.
A
diferença
crucial entre a determinação inconsciente em
que
a
acredita218
ciência
principal
e
e a determinação
(questões
genéticas
ou
hereditárias, por exemplo) é que a última exclui por completo a
responsabilidade
do
sujeito.
214
Como
citado
no
segundo
Idem, Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo (1925) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XIX, p. 165. 215 Idem, A Interpretação dos Sonhos, op. cit., p. 560. 216 Idem, A disposição à neurose obsessiva - Uma contribuição ao problema da escolha da neurose (1913) in ESB, Rio de Janeiro, Imago Editora, vol. XII. 217 As estruturas subjetivas em psicanálise são: neurose, psicose e perversão. 218 Por exemplo, a crença que os psicofármacos podem responder e resolver o mal-estar do sujeito.
xcv
capítulo de nosso trabalho,219 algumas nomeações como: “eu sou toxicômano”
ou
“eu
sou
deprimido”,
tendem
a
desresponsabilizar o sujeito por sua posição, - que foi sua escolha [inconsciente] - no mundo. Nos casos citados percebemos que apenas quando o sujeito reconhece em seus atos algo que se relaciona com seu ser podemos
pensar
em
alguma
modificação
posterior
de
suas
atitudes. É quando o sujeito se torna capaz de dizer “Eu devo de
alguma
forma,
ser responsável
por
isso”. Essa
virada,
promove no sujeito uma responsabilização do que lhe ocorre, deixando de queixar-se dos outros e passando a reconhecer em si
a
responsabilidade
retificação
subjetiva
por
220
o
sua
vida.
Lacan
numa
análise
momento
chamou em
de
que
o
sujeito se implica em seu sintoma. Podemos aferir então que ser responsável não é, de forma alguma,
equivalente
a
ser
punido,
equivalência
que
vemos
existir para o Direito Penal. Estaria aí a chave para nosso problema? Punir, não necessariamente promove no sujeito a responsabilização por seu ato. Muitas vezes inclusive, punir é
atender
a
demanda
do
sujeito,
dando-lhe
um
objeto:
a
punição, a carceragem. O sujeito pode até acreditar que seu ato está “quitado”, sem contudo, obter alguma implicação ou responsabilidade no mesmo. Uma punição pode até mesmo ser justa, mas isso não implica na responsabilização do sujeito pelo seu ato. Como responsabilizar o sujeito por seu ato? Esta
pergunta,
se
respondida,
resolveria
muitos
dos
problemas que vivemos atualmente, contudo, sabê-la de antemão seria excluir o conceito de pulsão de morte e tornar o mundo
219
Pág. 30 acima. Miller, J-A. - Introdução ao Inconsciente in Lacan Elucidado, Rio de Janeiro, 1997, p. 255.
220
xcvi
um lugar bem previsível. Esta é a pretensão da ciência, não a da psicanálise. Qual seria então a diferença entre um adolescente e um adulto? O sujeito é outro na adolescência? Para a psicanálise não.
Tanto
“criança”,
sociológicas.
São
quanto
conceitos
“adolescente”
muito
são
recentes,
categorias
remontando
ao
Século das Luzes.221 A diferença entre adulto e adolescente não é estrutural, visto que todos são sujeitos. Se o adolescente não é responsável por seu ato, quem o seria?
Em
A única forma de concebermos o sujeito como responsável, na contramão que a psicanálise impôs à ideologia psicojurídica do século XIX, é atribuirmos a ele a responsabilidade, exemplarmente pleiteada por Althusser, pela escolha de seu pathos.222
contrapartida,
não
se
trata
de
acreditar
que
o
adolescente se responsabilizando por seus atos significa a solução para a criminalidade infanto-juvenil. Novamente, os problemas são do humano e não da idade. Este repúdio ao que há de agressivo no homem deverá exercer sua pressão de forma constante pois não há como existir satisfação da pulsão e vida em sociedade concomitantemente.
221
Para um exame mais detalhado desta questão ver o livro de Philippe Áries “História Social da Criança e da Família”. 222 Alberti, S. - O adolescente, o discurso do mestre e o discurso do analista in Revista Marraio 1- Da infância à adolescência - Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rio de Janeiro, 2001, p. 49.
xcvii
BIBLIOGRAFIA
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