gente GESTÃO DE PESSOAS | revista da Progesp | edição 03
A cada edição, temos a sensação de que é a primeira, porém, já editamos a revista edição (0) zero, sobre a história dos que passaram pela PROGESP e mais duas edições sobre assuntos a partir do nosso trabalho. Chegamos à terceira edição e procuramos ser mais pautados pelo que hoje guia nosso cotidiano de vida e de trabalho. Procuramos, antes de mais nada, o indivíduo por trás da ação, da pesquisa ou do assunto comentado, porque continuamos acreditando na liberdade de opinião, nos direitos humanos, na cidadania geral e no conjunto de valores éticos que religa pessoas. Mirian Dantas Pró-Reitora de Gestão de Pessoas - UFRN
E
sta edição começou na mesa de reunião
Natal. Convidamos a aluna de pós-graduação,
da Pró-Reitora Mirian Dantas. Como
Patricia Nunes, que acompanhou todas as dis-
ela vive a universidade quase em tempo
cussões sobre gênero, para escrever sobre esse
integral e conhece a UFRN como ninguém, os
assunto. Ouvimos também a psicóloga Angeli-
pontos de pauta foram rapidamente fechados. O assunto mais urgente foi o Projeto de Reforma da Previdência. Nesse sentido, Mirian já havia pedido ao coordenador de Projetos da PROGESP, Joade Cortez, e a Marcela Squires, para que eles elaborassem gráficos de forma a esclarecer melhor o projeto, ressaltando as questões mais polêmicas. Esse material busca apresentar para os servidores e para os leitores da revista as principais mudanças. Complementamos
entrevistando
a
Profa.
Luana Myrrha (Depto. de Demografia), que já desenvolve uma pesquisa sobre o assunto direcionando
as
questões
às
mulheres
ca Aires, do DAS, que lidera a campanha “zero discriminação” nesta universidade. Além disso, trazemos um texto singular da Profa. Dra. Rose Rocha (Pesquisadora, Profa. do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo-ESPM). Ficamos orgulhosas em entrevistar o pai da estrela gêmea do Sol, o prof. José Dias do Nascimento (Depto. de Física), além de também compartilhar com o prof. Vicente Vitoriano (DEART) sua trajetória de vida acadêmica e artística. A estética da revista está nas mãos de Rafael
trabalhadoras. Talvez na publicação da revista
Campos, que trabalha com uma coleção de arte
alguns dos números apresentados já estejam
urbana do Unsplash.
superados, porém, registramos a pesquisa
Complementando a revista, publicamos dois
como um todo como dado de memória.
poemas, um do prof. Muiarakytan Kennedy de
Como um assunto vai puxando outro, as mu-
Macedo (CERES – Caicó) e outro da poeta Ma-
lheres continuaram em pauta. Como o tempo
rize Castro.
não está para brincadeiras, as mulheres con-
Raquel Alves – Pró-Reitora Adjunta da PRO-
tinuam enfrentando assédio, discriminação,
GESP escreveu sobre o Seminário “Gestão de
baixos salários, jornada dupla de trabalho etc., apesar de alguns avanços conquistados por gerações passadas. No início do mês de abril, na UFRN, aconteceu o evento “Violência de gênero em contextos e políticas: dez anos da Lei Maria da Penha”, sob a coordenação da Profa. Rozeli Porto. A esse respeito, publicamos um
Pessoas por Competências nas IFES”, do qual participou em Florianópolis – Santa Catarina. Selecionamos um fragmento de um livro sobre a obra plástica do Prof. Erasmo Andrade (DEART) que está no prelo na Editora da UFRN.
fragmento de um texto que ela escreveu sobre a “Marcha das Vadias”, que aconteceu em
Boa leitura.
sumário 08 12 14 18 22 30 32 36
reforma da previdência e igualdade de gênero resumindo a reforma da previdência a progesp em floripa campus da ufrn: entrevista com nilberto gomes sobre o edifício da dass encontros de rua: a cidade como laboratório de experiências sensoriais
miradas afetivas para acolher e narrar a alma de natal
ambiente criativo
40 50 68 79 89 79 97 109
poema de wislawa szymborska
caene
poema de newton navarro ensaio fotográfico sobre a cegueira leopoldo nélson: uma fita enlaçando uma granada
poema de ana de santana ensaio fotográfico: redes sociais
mês do servidor
T
udo iniciou com o objetivo de entender melhor a proposta da PEC 287 e estreitar uma discussão com a comunidade universitária acerca do assunto. Nessa perspectiva, Mirian Dantas e Marcus Vinícius realizaram uma ampla leitura da PEC 287 e procuraram extrair os pontos mais relevantes, comparando com as regras atuais de aposentadoria, buscando evidenciar as alterações propostas e os impactos para os servidores. Viu-se, ao final desses encontros, que o conteúdo precisava ser traduzido para uma linguagem mais acessível, preferencialmente de forma esquemática. Então, a equipe da Assessoria Técnica, Joade Cortez e Marcela Fernandes, somaram-se ao time de discussão e transformaram o texto da lei em formato de fluxo de informações, contemplando todas as possibilidades de aposentadoria apresentadas pela PEC 287. O material foi validado por al-
guns servidores juristas da PROGESP, Rodrigo Otávio e Zaqueu Gurgel, além de outras pessoas envolvidas no processo. Ao final, a equipe de design da Editora, liderada por Rafael Campos, propôs o estilo gráfico do conteúdo e elaborou a arte final. Uma apresentação/debate sobre a PEC 287 foi realizada no auditório da reitoria no dia 20 de Março, e contou com a participação da reitora, de sindicatos e de servidores técnico-administrativos e docentes da instituição. Além disso, o material foi amplamente divulgado pelo portal da PROGESP e também por meio de banner distribuído na universidade.
Joade Cortez Gomes Engenheiro de Produção Assessoria Técnica, Progesp, UFRN Tel.: 3342-2296, ramal 111
Que avaliação a professora faz da proposta de equiparar as regras previdenciárias para homens e mulheres? Na sua opinião, qual o ponto mais grave dessa proposta? Eu considero que existem dois pontos graves nessa reforma. O primeiro, é que essa reforma desconsidera a histórica desigualdade de gênero no mercado de trabalho; e o segundo, é o não reconhecimento do papel da mulher na sociedade brasileira. É fato que a diferença salarial entre homens e mulheres vem se reduzindo com o tempo, mas essa redução tem sido lenta, menos de 1% ao ano, de acordo com os dados da
PNAD 1995 a 2014. Em 2014, as mulheres ainda recebiam em média 81% do rendimento dos homens, porque, em várias ocupações, os salários femininos são menores, mesmo quando as mulheres apresentam qualificação idêntica à dos homens, e parte significativa das mulheres assume trabalhos mais precários, geralmente ligados à prestação de serviços (trabalho doméstico, serviço social, saúde e alimentação), os quais têm baixa remuneração e/ou são informais. A opção pelos trabalhos informais, com baixa remuneração, por parte das mulheres, geralmente ocorre para ter
uma jornada de trabalho mais flexível, que lhes permita assumir as demandas familiares, como o cuidado com filhos e idosos. A sobrecarga da dupla jornada é uma realidade na vida das mulheres brasileiras. De acordo com o IBGE, entre 2004 e 2014, o tempo de dedicação da mulher aos afazeres domésticos passou de 22,3 horas semanais para 20,5 horas semanais, ao passo que para os homens se manteve em 10 horas semanais, correspondendo à metade do tempo de trabalho feminino dedicado ao lar. O argumento presente na PEC 287/2016 de que “os novos rearranjos familiares, com poucos filhos ou sem filhos, estão permitindo que a mulher se dedique mais ao mercado de trabalho, melhorando a sua estrutura salarial” desconsidera que a mulher se dedica, em média, o dobro do tempo do homem, fato que evidencia o papel da mulher na sociedade brasileira como cuidadora da família e do lar.
Além disso, a proposta do governo não menciona que nos novos rearranjos familiares há o aumento da permanência dos filhos na casa dos pais e as novas demandas impostas pelos idosos, que mesmo não residindo no mesmo domicílio dos filhos, também necessitam de cuidados, em geral assumidos pelas mulheres. Apesar do trabalho com o cuidado da família e dos afazeres domésticos não ser remunerado e, por isso, não gerar contribuições ao INSS, são trabalhos que em parte deveriam ser assumidos pelo Estado, de acordo com nossa Constituição, como o cuidado com as crianças por meio de ofertas de creches. Além disso, esse trabalho, de acordo com a ONU Mulheres, representa de 10% a 39% do Produto Interno Bruto (PIB) dos países. Portanto, é um trabalho extremamente importante para nossa sociedade e deveria ser considerado dentro da previ-
dência. Analisando o tempo total de trabalho, correspondente à soma do tempo dedicado ao trabalho remunerado e ao trabalho com o cuidado da família e dos afazeres domésticos, em média, as mulheres trabalham 358 horas a mais por ano do que os homens. Portanto, assumindo o tempo de trabalho total masculino como sendo o padrão, se considerarmos o tempo total de trabalho dos homens por 30 anos, seria equivalente a 34,34 anos de trabalho para as mulheres. Portanto, o “bônus” de 5 anos a menos que as mulheres requerem para as suas aposentadorias me parece justificável”. Ainda reforçando essa questão, quando foi declarada por alguns políticos atualmente que essas medidas são de “igualdade social”, com afirmações do tipo: “Vocês, mulheres, querem igualdade, tomem essa medida”, na verdade, por trás do que “eles” chamam de igualdade, o que existe, de fato, é um aprofundamento de uma desigualdade. As mulheres, hoje, em sua maioria, são responsáveis pelo trabalho doméstico; há comumente uma dupla jornada; no mercado de trabalho ganham menos que os homens; se engravidarem, correm o risco de perder seu emprego; e uma série de situações não resolvidas que a balança da “igualdade” imposta nessa medida da aposentadoria só agravará. As medidas devem estar próximas de bom senso e de justiça. Só assim se pode pensar em medidas igualitárias, levando em conta as desigualdades e tentando resolvê-las.
Luana Myrrha possui graduação em Ciências Atuariais pela Universidade Federal de Minas Gerais (2006), mestrado e doutorado em Demografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (Cedeplar/UFMG).
A
Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (PROGESP), representada pela Pró-Reitora Adjunta de Gestão de Pessoas, Raquel Alves Santos ( eu), a convite da Coordenação Nacional do FORGEPE – Fórum Nacional dos Pró-Reitores de Gestão de Pessoas da Andifes, participei do Seminário “Gestão de Pessoas por Competências nas IFES - Desafios, oportunidades e compartilhamentos das melhores práticas de implantação do Decreto”, que foi realizado nos dias 28 a 30/03/2017 na Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis-SC e ainda, no dia 31/03, da 8ª Reunião Ordinária do FORGEPE/ANDIFES. O Seminário teve por objetivo discutir os limites e as oportunidades existentes para a implantação de um modelo de gestão de pessoas por competências na IFES, bem como proporcionar o compartilhamento de experiências exitosas na implementação dos princípios contidos no Decreto 5.707/2006, que instituiu a Política e as Diretrizes para o Desenvolvimento de Pessoal da administração pública federal, para
que se possa refletir sobre os desafios da implantação da Gestão por Competências. E a 8ª Reunião trouxe para a discussão assuntos como a Reforma da Previdência com as entidades sindicais, a experiência prática de um Projeto clima organizacional e bem-estar em IES brasileiras e Sistemas SIGEPE – módulos atuais e perspectivas futuras. Durante o evento, no dia 29/03, ainda participei de duas mesas redondas, apresentando primeiramente nossas experiências na implantação do Modelo de Gestão por Competências na UFRN, por meio do relato: Mapeamento de competências insti-
tucionais: experiência em uma instituição federal de ensino superior, como também socializando com as outras IFES, por meio do relato: Processo de Gamificação do Levantamento de Necessidade de Capacitação embasados pelas competências institucionais, as práticas e contribuição da UFRN em processo de inovação no levantamento de necessidades de capacitação, tendo por resultado a construção das trilhas de aprendizagem como estratégia para o desenvolvimento de competências. Raquel Alves Santos Pró-Reitora Adjunta da PROGESP
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bservar as transformações sociais que nos cercam e perceber as nuances de suas reverberações midiáticas céleres que os diversos temas sociais nos colocam é um desafio constante... Ficam sempre questões:passamos pelas informações ou elas têm nos transpassado? O que apreendemos com a velocidade informacional que nos afeta constantemente? Ou antes, como estas têm nos afetado? Essas são questões sobre as quais urgem algumas considerações (talvez não ainda respostas) por nos apelarem cotidianamente.A atenção ao tema ganha relevo ao perceber que até mesmo os espaços que, historicamente, têm reservado para si a primazia da relação ensino-aprendizado, tal como a escola, pouco têm demonstrado habilidade de acionar essa experiência no contemporâneo.
É a partir da compreensão de que a educação é uma prática social que se dá a partir da experiência da cultura (REZENDE, 1990), e que esta última tem sido profundamente acionada por uma revolução tecnológica voraz responsável por uma demanda educativarequerente de outros espaços, tempos, linguagens e saberes (MARTÍN-BARBERO, 2014), que o Laboratório de Estudos em Educação Física, Esporte e Mídia (LEFEM) tem buscado realizar experiências pedagógicas que articulem temas sociais, conteúdos disciplinares do currículo escolar e narrativas midiáticas para construir, com o aluno, um aprendizado que seja contemporâneo a seu tempo (AGAMBEN, 2009).
Tais experiências fizeram parte de dois momentos articulados, mas que tiveram suas especificidades, e que desde 2014 movimentam escolas da cidade de Natal com práticas pedagógicas. O primeiro momento foi oportunizado pelo Projeto “Mídia-Educação Física em tempos de Megaeventos Esportivos: impactos sociais e legados educacionais”, financiado pelo CNPq a partir do edital 091/2013. Neste, experimentamos estratégias de ensino que partiam das narrativas sobre megaeventos esportivos, privilegiando a visão dos alunos sobre a Copa do Mundo 2014, a fim de acionar compreensões sobre esporte, mídia e a própria cidade modificada para o evento. Foram três as escolas que tiveram intervenções durante um semestre e que apresentaram como produto final de suas
experiências 5 revistas digitais, 5 blogs, 1 jornal impresso da escola, 4 aplicativos, além de incontáveis videominutos e inúmeros registros fotográficos, como depoimentos de suas narrativas sobre os temas, sendo estas também lidas como sínteses de aprendizado dos alunos, de suas experiências com os fenômenos sociais e como narrativas midiáticas. O segundo momento do grupo foi operacionalizado com o projeto “Formação de professores(as) de Educação Física: dialogando os saberes disciplinares, escola e cultura midiática em tempos de Megaeventos Esportivos”, financiado pelo Edital Proext 2016.Esse foi o momento de pensar como os conceitos comunicacionais poderiam acionar nos professoresde Educação Física da Rede Municipal de Ensino de Natal, no contexto da formação continuada, buscando outras formas de perceber e dialogar com os alunos do Ensino Fundamental os conteúdos escolares. Ao discutir e experienciar os conceitos de narrativa, gamificação, comunicação e mediação com 80 professores da rede, aos poucos, foram surgindo
horizontes pouco explorados no ensino de esportes, jogos, danças, lutas e ginásticas. Os temas sociais, as linguagens visuais, as redes sociais e os conteúdos disciplinares foram criando uma experiência educativa que dialoga com a experiência contemporânea do aluno de Educação básica de nossa cidade. Os nossos aprendizados,a partir dessas experiências, têm seus registros em quatro obras publicadas pela Editora da UFRN, disponíveis no Repositório Institucional da UFRN, em que o coletivo dos pesquisadores do LEFEM narram suas impressões que implicam novas possibilidades. O movimento tem gerado outras consequências e impregnado outros professores do desafio de experimentar outra escola, fazendo diferente. Essa temática tem sido registrada em dissertações, monografias, artigos e outras produções. Allyson Carvalho de Araújo Marcio Romeu Ribas de Oliveira Referências: AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. REZENDE, A. M. Concepção fenomenológica de Educação. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990. MARTÍN-BARBERO, J.A comunicação na
educação. São Paulo: Contexto, 2014.
A
escritora Simone de Beauvoir (1908-1986) escreveu essa frase na abertura do seu livro “Segundo Sexo” (publicado em 1949). Essa frase ainda repercute até hoje e, quando foi escrita, aproximavase do sentido de que as características associadas tradicionalmente à condição feminina derivam menos de imposições da natureza e mais de mitos disseminados pela cultura. O livro fez muito sucesso na época e colocava em xeque a maneira como os homens olhavam as mulheres e como as próprias mulheres se enxergavam.
Entretanto, no início do século XX, em nossos rincões latinos e mais precisamente brasileiro e sertanejo, a situação da mulher ainda estava, para a grande maioria, em outro estágio. Essas mulheres, como diz o ditado popular, “de antigamente”, por aqui eram criadas em casa, que eram um verdadeiro sepulcro, ninguém ficava sabendo de nada. A mulher era escondida. No sertão, as visitas masculinas nem sequer tinham o direito de ver essas senhoras. Elas eram guardadas pelos seus maridos ou pelos pais. Mulheres invisíveis. Reprimidas e ainda sob suspeita.
Para o escritor Machado de Assis, essa mulher era o próprio “mistério”. Não podemos esquecer que ele criou a personagem Capitu, no livro “Dom Casmurro” (publicado em 1899). Uma personagem, diga-se de passagem, que penetrou no imaginário coletivo como tipo feminino, provocando estudos psicológicos e literários. Relembrando que o romance abre para nós, leitores, um grande espaço de opções a favor e contra o adultério, a favor e contra a mulher. A personagem era descrita com palavras assim: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, “olhos de ressaca”. Vale ressaltar que essa opinião dele (do personagem) era balizada por sua mãe. Então, não devemos esquecer que a mulher machista sempre foi tão perigosa quanto um homem inimigo. Por que será que algumas dessas mulheres são tão machistas, resultado do meio? É comum ouvir: A “mulher é o diabo!”. Isso se repete pelos tradicionais inimigos da mulher perseguida através dos séculos, no apogeu das fogueiras e até nossos dias. Talvez ela tenha desenvolvido mais agudamente esse sentido perceptivo, de quase vidência, para espreitar o inimigo. E esse “inimigo” continua aí, depois de vários séculos, embora não as joguem nas fogueiras literalmente, eles as espancam e as matam covardemente.
“
A slut ou vadia, coloca em questão o paradigma da mulher reservada e submissa, criticando o estereótipo daquela considerada “Bela, recatada e do lar”.
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Mesmo que o livro de Simone de Beauvoir tenha sido escrito há cinquenta e oito anos, ainda estamos, de certa forma e infelizmente, atrasadas nessas discussões humanas. Já se passaram também bastantes polêmicas e conotações ideológicas, acertos e desacertos, mortes e vidas. A geração de mulheres presas em casa já se modificou, até porque esses filhos dessa geração deixaram as cidades e fazendas e migraram para as cidades, estudaram e os tempos são outros, apesar de muito ainda para ser repensado. Não sei se poderíamos dizer que é aculturação ou que surgem novos tempos, porém, movimentos que acontecem em outras culturas e são disseminados pelas redes sociais se repetem em diversas outras culturas. Nesse caldeirão, destacamos “A marcha das Vadias”, que surgiu em Toronto (Canadá), em abril de 2011, quando algumas alunas de uma universidade local ouviram a palestra de um policial que su-
geria às estudantes, todas do sexo feminino, que elas deveriam evitar vestirem-se como “vagabundas/vadias/sluts”, para evitar serem vítimas de abuso sexual. Natal não ficou de fora e organizou duas marchas. A esse respeito, a profa. Dra. Rozeli Porto escreveu um artigo, “De Slutwalk A Marcha das Vadias: o Imperativo dos Feminismos em Natal-RN” (em parceria com Fabiana Damasceno Galvão), sobre o movimento, no qual se ressalta que o objetivo do artigo é: “[...] descrever como se configuram os campos políticos que atuam sobre a Marcha, dando visibilidade aos feminismos locais atuantes nessa cidade e no Estado. Das estruturas simbólicas que perpassam sua execução e legitimidade, estas envolvem ações de sujeitas e sujeitos políticos, imersos em correntes ideológicas; sindicais; queer; e dos feminismos do Brasil. A metodologia utilizada reflete sobre a Slutwalk e as premissas que envolvem sua construção, ou seja, pensar os campos políticos e educativos que atuam sobre ela localmente a partir de diferentes performatividades e discursos, por meio da coleta de materiais divulgados na internet, em blogs, redes sociais e artigos jornalísticos. Por fim, procura-se encontrar na literatura feminista, categorias analíticas e empíricas que elucidem o cenário desses eventos
e arranjos sociais que envolvem a Marcha das Vadias de Natal”. Continua: “A subversão do movimento parte daí, da ideia de que, sejam quais forem os papéis sociais assumidos na sociedade, ou a forma com que estejam vestidas, nenhuma mulher quer ou deve ser estuprada. Ser vadia para as que marcham também significa ter liberdade na escolha das roupas, na forma que querem assumir e se portar na sociedade. E por que não ser uma vadia? A slut ou vadia, coloca em questão o paradigma da mulher reservada e submissa, criticando o estereótipo daquela considerada “Bela, recatada e do lar”. Vadia é uma persona que subverte a moral conservadora, que vê as mulheres como “depósito de esperma” para procriação e manutenção da família mononuclear. Vadia é a mulher que vê o seu corpo como instrumento político, como um bem inalienável, que jamais deve ser violado. Dessa maneira, o assédio sexual e a violência sexual contra as mulheres se tornam os alvos desse movimento, os quais, sob tal perspectiva, devem ser combatidos. Nessa relutante guerra simbólica, a subversiva, ironicamente, é a mulher que luta por um direito civil básico. É ela que não quer ter seu corpo violentado sob nenhuma justificativa. As roupas provocativas, algumas
em estilo Lady Gaga, exibindo expressões de um transfeminismo, chamam a atenção para a luta pelo direito ao próprio corpo: ‘meu corpo é meu, não se maltrata, não se viola e não se mata’. Essa bandeira de luta do movimento feminista da década de 1970 foi um dos gritos de guerra da MDV de Natal em 2011 e 2012”. Ainda no artigo: “Naquele período, quase todas as integrantes desse Coletivo, cerca de oito mulheres, participaram da organização da marcha. Realizaram da confecção e impressão de cartazes para mobilização – para articulação de seu acontecimento – ao pagamento do carrinho de som, que percorreu o trajeto de cerca de dois quilômetros tocando repetidamente a música “Vai vadiar” do cantor brasileiro Zeca Pagodinho. Com horário de concentração marcado às 14 horas, houve inicialmente um momento lúdico de confecção de faixas e cartazes. Constituindo um evento político de bastante adesão de homens – heterossexuais não ortodoxos, gays, travestis, transexuais, a marcha de Natal de 2011 foi um sucesso em termos de mobilização e ativismo político, concretizando a reivindicação política comum aos movimentos feministas (no caso, a violência contra as mulheres) aglutinadas por uma potente expressão lúdica, irreverente e transfeminista. É interessante observar como, nesse processo local, os ‘novos feminismos’ se mesclam, sempre que possível, às trilhas clássicas da memória política alusivas ao feminismo da década de 1970, que tinha como principal bandeira o tema da violência contra as mulheres, fortalecendo-se também no âmbito das políticas públicas a partir dos anos 1980 (GROSSI,
1994). E no ano de 2012, essa chamada e irreverência não foram diferentes”. Em outra direção, porém com as mesmas causas humanitárias, também na UFRN, a psicóloga Maria Angelica Aires (servidora da UFRN, DASS) vem coordenando a campanha global “Zero Discriminação”, realizada pela UNAIDS, e que tem como objetivo a promoção de uma sociedade sem estigmas empenhada em promover o respeito ao próximo e aos direitos humanos. Foi lançada mundialmente em 2013, tendo como meta combater qualquer estigma que impeça o direito a uma vida plena, digna e produtiva – não importando origem, orientação sexual, identidade de gênero, idade, sorologia para o HIV, raça e etnia. Desde 2016 que a campanha vem sendo viabilizada dentro da UFRN, é mais uma ação do PAS (Programa de Aconselhamento em Saúde), projeto de extensão coordenado pela psicóloga e que também que vem sendo desenvolvido desde 2013 com o objetivo de trabalhar questões de prevenção sexual dentro da UFRN. No primeiro ano (2016), declara Angelica: “Sensibilizamos 314 pessoas e em 2017 resolvemos trabalhar a campanha em vários setores fora da DASS onde foram mobilizadas 653 pessoas”. O programa tem como objetivo oferecer orientação sexual e insumos de prevenção sexual (preservativos masculinos/femininos), testagem rápida de sífilis e HIV, no sentido de diminuir as DST/HIV/Aids na comunidade que faz a UFRN, possibilitando, dessa forma, atenuar a vulnerabilidade dessa população.
“ “
Vadia é a mulher que vê o seu corpo como instrumento político, como um bem inalienável, que jamais deve ser violado. Quanto ao público-alvo, o projeto contempla: servidores ativos; servidores aposentados; alunos da UFRN. O Atendimento é de apoio/acolhimento e testagem rápida. Nesse sentido, busca-se acolher servidores/ alunos que se encontram com necessidade de apoio em questões sexuais e reprodutivas a fim de auxiliá-los a reconhecer e utilizar seus recursos de enfrentamento e estratégias de autocuidado e fortalecimento, visando à melhora da sua qualidade de vida. De toda forma, estamos dentro de uma Universidade e as questões são colocadas e coordenadas com todo o cuidado e respeito. Sobre o humano, a profa. Conceição Almeida (UFRN) escreveu: “Paciência, tenacidade, partilha, compaixão, descomedimento, vigor, dor, alegria, coragem, excessos, solidão, incertezas e generosidade, talvez sejam, mais que palavras, sentimentos que juntos sussurram em coro às portas de nossa mente e de nossos corpos, em busca de uma ética da cumplicidade, da complexidade e da (com)paixão” (CARVALHO, 1998).
Rozeli Porto é Professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e do Departamento de Antropologia Social (PPGAS/ DAN/UFRN). rozeliporto@gmail.com Fabiana D. Galvão é Cientista Social (UFRN). Estudante do curso de Especialização em Ensino de Sociologia (UFRN). fabitagalvao@hotmail.com Maria Angélica Aires Gil é psicóloga DASS/ COAPS/CAS, Mestre em Gestão de Processos Institucionais/UFRN. Telefone para contato: 3342-2330 – Ramal 355/356, pas.ufrn@gmail.com
Referências: ASSIS, M. Dom casmurro. São Paulo: Moderna, 1999. (Coleção travessias). BEAUVOIR, S. O segundo sexo: fatos e mitos. São Paulo: Difusão Européia do livro, 1949. CARVALHO, E. A. et al. Ética, solidariedade e complexidade. São Paulo: Palas Athena, 1998. p. 19. PORTO, R.; GALVÃO, F. D. De Slutwalk A Marcha das Vadias: o Imperativo dos Feminismos em Natal-RN. Revista Tempos e Espaços em Educação, São Cristóvão, Sergipe, Brasil, v. 9, n. 19, p. 147-162, mai./ago. 2016.
Marize Castro (CASTRO, M. A mesma fome. Natal: Una, 2016.) Poeta, jornalista, editora, destaca-se não só na sua poesia que já quebrou fronteiras mas também na edição de livros. Produz as próprias obras, que saem pela Editora Una. Estreou em 1984 com “Marrons Crepons Marfins”. Depois vieram “Rito”, “poço. festim. mosaico”, “Esperado Ouro”, “Lábios-Espelhos” “Habitar Teu Nome” e, recentemente, “A Mesma Fome”.
Rosamaria Luiza (Rose) de Melo Rocha é doutora em Ciências da Comunicação pela ECA/USP com pós-doutorado em Ciências Sociais/Antropologia na PUCSP. É professora titular e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM/SP, onde também atuou como Coordenadora (janeiro de 2011 a fevereiro de 2015). Tem experiência no estudo e no ensino da relação entre imagens e imaginários, da história da interface comunicação e consumo, dos processos de comunicação urbanos, das teorias da comunicação e da mídia. Dedica-se à investigação das práticas e culturas juvenis brasileiras.
A
s várias formas de violência que sofremos, desde miúdas, ao adolescer, ao juvenescer, ao amadurecer. Em pequenos gestos, em abordagens abusivas, em relações opressivas, em palavras duras, em ironias sutis e descasos sorridentes, e, pra algumas, na faca que corta a carne, no tapa que tira a voz. Mas é também cruel a violência que tece entre nós, mulheres, laços de desconfiança, tramas de desagregar, berços de cindir. Quando escutei falar a primeira vez em sororidade meu coração floresceu. Porque as flores de meu jardim feminino são aquelas que acolhem e dão lucidez. Nenhuma a menos. E sempre juntas. Porque mulher é pra brilhar. E não pra se encolher em reificações fálicas. E quando eu sonho este sonho o faço com muitas outras mulheres e com alguns homens também. Com aqueles que não têm medo de ver flores. Com os que não esperam o carnaval, com os que podem ser, para além das medidas patriarcais, dos receios de perder o berço viril, tão vil. Os que não medem estatura, os que não se escondem nos subterfúgios do eu sou o que sou porque o mundo quis assim. Porque gente se inventa. E não tem receita pronta, nem caminho fácil. Mas é um tesão se aventurar. Olho no olho. Este é o solo. E não estaremos sós. Não sei com quem estarei. Mas sei que estas eu olharei no olho. E não duvidarei.
E
ssa pergunta foi o tema principal da palestra inaugural do Programa de Pós-graduação em Antropologia (PPGAS/UFRN), intitulado “Nuevas masculindades: contruyendo otras maneras de ser hombre”, ministrada pela profa. dra. Alejandra Salguero Velázquez, da Universidade Nacional Autónoma do México (UNAM). A palestra ocorreu no dia 06 de abril, no auditório da Biblioteca Central Zila Mamede (BCZM), como parte da programação do ciclo de debates sobre “Violência de gênero em contextos e políticas: dez anos da Lei Maria da Penha”, realizado de 06 a 11 de abril de 2017. Mexicana, a professora Alejandra Salguero Velázquez realizou toda a sua apresentação em espanhol. Sua palestra era uma das mais aguardadas pelos participantes que lotaram o auditório para prestigiar sua pesquisa sobre masculinidades no México. Ela iniciou explicando que, como pesquisadora e feminista, assumiu o compromisso de trabalhar relacionalmente com
homens e mulheres e que trabalha com as masculidades há muitos anos. Uma das questões feitas aos homens em sua pesquisa é: “cómo aprenden a ser hombres?” (“como aprendem a ser homens?”). Segundo ela, ser homem relaciona-se com um processo de construção social e é nesse sentido que construir-se como homem implica uma série de diferentes culturas e em cada uma se reconhecem certos atributos ou estereótipos nos quais a maioria dos homens procura se enquadrar. Parafraseando Simone de Beauvoir, “os homens não nasceram homens, mas aprenderam a ser”. Nesse sentido, ser homem não está no corpo (com pênis e testículos), ser homem tem a ver com uma posição e com a maneira de estar no mundo. Isso porque não somos somente biológicos, somos seres sociais. Em sua investigação, Alejandra identificou que os homens aprenderam as maneiras de ser homem por meio de pais, mães e esposas. Um exemplo, segundo a pesquisadora,
são os homens da própria academia que aprendem um discurso sobre igualdade de gênero, mas quando chegam em casa se recusam a lavar a louça e reclamam da roupa curta da esposa. Em sua pesquisa, a professora entrevistou vários trabalhadores e algumas crianças do nível fundamental. Quando perguntava para eles sobre como aprendem a ser homens, a maioria respondia que fazendo sexo com inúmeras mulheres, sem usar preservativos, afinal, homens não precisam, porque suas genitálias estão sempre limpas. Isso reflete, portanto, a maneira como os homens vivem suas sexualidades. Poucos procuram cuidar do corpo e da saúde; não fazem revisões médicas, porque acreditam que não precisam de cuidados e, quando vão, já é por causa de um problema grave de saúde. Não é por acaso que há, anualmente, o aumento de casos de câncer de próstata e outras doenças relacionados com a falta de prevenção. Alejandra Salguero Velázquez finalizou sua exposição relatando algumas entrevistas que realizou com um grupo de pescadores. Por meio delas, descobriu que eles passam cinco dias da semana, pelo menos, embarcados e, quando retornam, todos os seus ganhos são para festas e prostituição.
Ela ressalta que na sociedade pós-moderna não são apenas as mulheres que sofrem opressão mas também os homens, de certo modo. Assim como nós, mulheres, aprendemos a ser mulher, os homens também aprendem a ser homem. Aprendem a ser violentos com suas esposas, a ser os únicos responsáveis pelo sustento da casa, a ser machistas e a não realizar as atividades domésticas, bem como a não expressar seus sentimentos em público, como chorar, por exemplo, pois, caso ocorra, são taxados de “mulherzinha”. Exposto isso, considero que a palestra trouxe uma ótima discussão sobre o gênero masculino, que extrapola, por assim dizer, o contexto mexicano chegando até nós, no Brasil, uma vez que as imagens que temos construídas sobre as masculinidades são semelhantes, no que se refere às condutas que a sociedade “espera” dos homens: para mandar (chefe da família), para ser servido pelas mulheres, para trabalhar e alcançar o reconhecimento e para silenciar emoções e sentimentos.
Patrícia de Souza Nunes Mestranda Programa de Pós-graduação em Estudos da Mídia/UFRN
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Ser homem não está no corpo (com pênis e testículos), ser homem tem a ver com uma posição e com a maneira de estar no mundo. Isso porque não somos somente biológicos, somos seres sociais.
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“- O senhor precisa é casar e sossegar, doutor!” Essa é a frase de abertura e a que vai inspirar o nome do segundo romance do currais-novense José Bezerra Gomes. A afirmativa é feita por dona Eulália, dona de uma pensão familiar, e dirigida a um dos seus moradores a quem ela vê como um partido ideal para casar-se com sua filha Angélica. No entanto, muito mais do que isso, a leitura do romance de José Bezerra Gomes vai nos mostrar que essa afirmativa inicial, dita em tom de verdade irrevogável, tem uma abrangência bem maior do que a princípio se entende, como veremos mais adiante. Mas, de imediato, o que podemos ver é que ela é parte das exigências que são feitas a um homem adulto para que seja considerado um homem de verdade. A adequação ou não dos personagens masculinos a essas exigências do seu meio social é uma temática que atravessa os três romances de Bezerra Gomes. No primeiro desses, Os Brutos (1938), são jovens ainda muito imaturos que enfrentam essas exigências. O protagonista da história, o adolescente Sigismundo, é exposto a vários
modelos de masculinidade, indo de um tio subserviente à esposa dominadora ao seu próprio pai, modelo de homem dedicado à família e ao trabalho. Mas Sigismundo é apenas uma adolescente e como tal o que mais o fascina e deslumbra é o descobrimento da própria sexualidade. Assim é que ele naturalmente toma como modelo de homem a ser seguido o seu tio Lívio e posteriormente Cícero Cacheado, um trabalhador na fazenda de seu pai. O primeiro, levando uma vida sexual desregrada, montou casa para uma prostituta, desafiando e escandalizando a moral da Currais Novos dos anos 30. Seu triste fim, envolvendo assassinado, prisão e loucura, não levou e nem poderia ter levado Sigismundo a uma reflexão do que aquele modelo de homem poderia lhe causar. Levado ainda pelas força da sua florescente sexualidade, seu modelo passa, a seguir, a ser Cícero Cacheado. O que Sigismundo mais admira nele era as suas inúmeras aventuras sexuais. Cícero debochava de Sigismundo por ainda nunca ter “feito” com mulher. Inspirado pelo seu ídolo do momento, Sigismundo termina por estuprar uma das afilhadas de sua mãe.
Mas a seguir, a realidade se mostrar maior e mais temível do que as descobertas sexuais de um adolescente. Assim, a seca que assola o sertão do Seridó obrigado Sigismundo e sua família a abandonarem tudo e irem rumo ao sul do país em busca da própria sobrevivência. Em uma nova realidade, certamente novos problemas o ensinarão que ser homem de verdade está mais além de apenas “fazer” com uma mulher. Devido ao seu efêmero aparecimento no romance Os Brutos, não sabemos se o mesmo destino será futuramente experimentado pelo sacristão João. Esse é um personagem avulso na história sem nenhuma relação com o enredo principal. O sacristão João é um jovem profundamente religioso e assíduo frequentador da igreja de sua cidade. Seu maior prazer na vida são as atividades ligadas aos rituais da igreja. No entanto, João sofre o escárnio dos outros rapazes de sua idade, pois eles comentam que ele nunca tinha “feito” com mulher. Formando um contraste perfeito com Sigismundo, ele não sentia nenhuma vontade de manter relações sexuais. Ao mesmo tempo, porém, ele sentia que devia de alguma forma ter relação sexual com uma mulher para que os outros rapazes o respeitassem como um homem “normal”. E assim, de forma atabalhoada, ele se força a ir ao Aterro, zona de meretrício da Currais Novos do anos 30 onde, de forma desastrosa, ele tem, ou pensa que tem, sua primeira experiência com uma mulher.
No segundo romance de Bezerra Gomes, Por que não se casa, doutor? (1944), Flávio, seu personagem principal também está envolvido com o dilema de ser um homem de verdade. Desta vez, porém, esse protagonista não é um adolescente ou jovem rapaz, mas um funcionário público recém-formado, o que, embora não explicitado pelo narrador, o coloca entre os 25 e 30 anos de idade. Em sua condição de recém-doutor, Flávio se sente cobrado a seguir os demais passos para se tornar um homem de verdade. A cobrança mais direta vem de d. Eulália, como vimos acima. No entanto, seu dilema mais imediato é não conseguir manter relações sexuais com mulher. Posteriormente, esse problema é superado. No entanto, ele ainda não se sente realizado como um homem de verdade. Há mais cobranças que a sociedade lhe faz, mesmo que isso não lhe seja verbalizado. O fato de que seus amigos de turma estão avançando na vida profissional enquanto ele continua como um amanuense sem perspectivas de progresso o deixa perturbado. A isso, se junta o fato de que ele se sente na obrigação de ser o amparo para sua mãe, agora viúva e anciã. O fato de que seu pai, quando vivo, havia investido muito nos seus estudos como uma esperança para o futuro da família deixa-o ainda mais oprimido.
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A adequação ou não dos personagens masculinos Às exigências do seu meio social é uma temática que atravessa os três romances de Bezerra Gomes.
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Em seu último romance, A Porta e o Vento (1974), Bezerra Gomes volta novamente ao dilema da masculinidade que não chega a plenitude. Desta vez, no mosaico de personagens que é apresentado no romance, Santos é quem mais sofre com as exigências de cumprir as obrigações de ser homem. De certa forma seguindo uma continuidade cronológica dos personagens, Santos é um rapaz que já está passando da hora de casar. Sem ter que se preocupar muito com a própria sobrevivência, ele se vê pressionado a seguir a lógica de sua sociedade para um rapaz solteiro: providenciar o próprio casamento. Afinal de contas, todo homem tem que se casar. Com muitas insinuações e indiretas, essa cobrança lhe é feita mais diretamente pela sua primeira Laura que todos veem como a candidata natural a ser sua esposa. No entanto, ele sente que essa cobrança vem também do contexto maior. Face a sua incapacidade para ou se rebelar contra essa sina ou submetesse passivamente a ela, Santos termina dando sinais de estar perdendo por completo a lucidez.
Vemos assim que a temática do torna-se homem de verdade, do alcançar a plenitude da masculinidade, está presente em todos os romances de José Bezerra Gomes. Ela evolui da errônea ideia de que ser homem basta “fazer” com mulher para um entendimento de que a plena masculinidade vai muito além disso. E quando, por falta de firmeza de caráter ou visão, o homem não consegue impor sua individualidade, ele corre até mesmo o perigo de perder a sua lucidez.
E
m 2013, o astrofísico, prof. Dr. José Dias do Nascimento (UFRN), descobriu uma estrela (irmã gêmea do Sol). Ele é um reputado astrofísico na vanguarda das pesquisas na área da Astronomia e Astrofísica, com ênfase no estudo de estrelas do tipo solar, analisando seus sistemas planetários e as condições de habitabilidade. Desde 2015, é pesquisador convidado na Harvard University (CfA-Smithsonia), além de líder da base de pesquisa em Astrofísica e Cosmologia da UFRN.
Para entrevistá-lo, recorremos às ideias de cientistas como Michel Carré (1943), Edgar Morin (1921) e Ilya Prigogine (19172003). E começamos com as palavras do astrofísico francês Michel Carré: “O cosmo mudou de aspecto várias vezes e isso ocorreu de maneira radical. No começo de tudo, há muito tempo (14,7 bilhões de anos), ele era constituído por um campo muito puro que viveu de maneira fugaz, o Vazio quântico...
“No começo de tudo é a luz, o que restará no fim?”. Perguntamos ao Prof. José Dias o que quer dizer, “no começo de tudo é a luz, o que restará no final?” (1). José Dias: Na Física, de forma geral, e na Astrofísica não poderia ser diferente, nos preocupamos principalmente com os dois momentos singulares, o início e o final de tudo. A evolução do nosso sistema solar foi e é intrinsecamente ligada ao Sol e a sua evolução. A ciência demorou muito para perceber, no entanto, hoje sabemos que somos literalmente filhos do Sol e de sua energia. A luz, entre outras fontes, foi um dos fatores determinantes para sermos o que somos neste pálido ponto azul que orbita no espaço em torno do Sol, como descreveu Carl Sagan.
A Astrofísica provoca em nós não cientistas, cidadãos comuns, certo fascínio, despertando uma série de incertezas e questionamentos. E continuamos olhando o céu, muitas vezes pela estética, pela teologia, pela filosofia ou pela literatura e principalmente pelas mitologias. Entretanto, como você, astrofísico descreve o nascimento do Sistema Solar? José Dias: O Sistema Solar evolui e acreditamos que as posições não eram as mesmas que se apresentam, nos dias de hoje. Marte é o único planeta que tinha condições para abrigar a vida assim como na Terra. A observação de meteoros (que são fragmentos dessa formação inicial do Sol) e de corpos do Sistema Solar, como rochas lunares entre outros, servem para reconstruir essa aventura. Já sobre o final da vida na Terra, pouco se sabe e, atualmente, nós colocamos um ponto importante: o Sol também será possivelmente um dos responsáveis pelo desaparecimento da Terra, além do próprio ser humano.
Provavelmente José Dias, quando criança, acostumou-se a observar o céu limpo e estrelado do sertão do Rio Grande do Norte. Assim, não foi difícil se apaixonar pelas estrelas e hoje ele pode até colocar metaforicamente a sua estrela (descoberta) no bolso e se reconhecer como filho do Céu, assim como Edgar Morin descreveu: “Desde os primórdios da História, o espírito humano preocupou-se, apaixonou-se, fascinou-se, encantou-se, enfeitiçou-se e inquietou-se pelo céu estrelado. A sociedade humana sempre buscou inscrever-se no cosmo e inscrever o cosmo em si mesma. Ainda mais: ao se reconhecerem como filhos do Céu, os chineses admitiram seu parentesco cósmico” (2).
Assim, perguntamos ao Prof. José Dias se temos o direito de reivindicar essa denominação também para nós, contemporâneos? José Dias: Sim e com muita propriedade podemos dizer. Nosso parentesco cósmico se dá diretamente por nossa relação quimicamente profunda com as estrelas. Os átomos que compõem nosso corpo foram fabricados no interior das estrelas por reações de nucleossíntese. Somos produtos dessa usina que, em seguida, espalhou a poeira cósmica que enriqueceu planetas como a Terra. A história do nosso Universo e de nossa genealogia se confunde e é regida pelo mesmo conjunto de forças que organizam as estruturas infinitamente grandes e infinitamente pequenas, sejam elas as células do nosso corpo sejam os gigantescos agrupamentos de galáxias. Essencialmente, nós, os seres humanos, somos todos poeira de estrelas e dotados desta fabulosa característica misteriosa que é a consciência”.
É simpático esse sentido que nós, os seres humanos, somos toda a poeira de estrelas. Buscando ainda as palavras de Edgar Morin, quando ele, em diálogo com Michel Carré, diz que: “[...] o desenvolvimento da astrofísica “desencantou” totalmente os astros. O Sol deixou de ser um deus e transformou-se num motor de explosão nuclear; a Lua não é mais a deusa, e sim um deserto desolado, crivado de crateras sem vida. O céu esvaziou-se de todos os mitos” (3). As respostas poéticas perderam lugar para as respostas racionais? Como você explica o Sol? José Dias: O Sol é o motor da vida na Terra e por si só um grande mito atemporal. Praticamente tudo que somos deve-se ao Sol. Desde o verde que nossos olhos se especializaram em ver, passando por todo o ciclo da vida biológica na Terra. O Sol é um deus para budistas e hindus e outras religiões e eles têm razão em pensar assim. Na Astrofísica, muitos cientistas descrevem o Sol como sendo o responsável pela origem da vida na Terra. O Sol tem uma responsabilidade grande nisso, mesmo que não seja a única. Sabemos hoje que os raios solares permitem o desenvolvimento de muitas formas de vida a partir da fotossíntese e do ciclo do carbono. Pensar nisso de forma integrada e coerente sempre me fascinou. Minha relação com o céu surgiu nesses pensamentos e nas indagações sobre a nossa existência. Minhas memórias apontam para os 12 anos de idade e até hoje nas minhas conferências sempre comento que a pergunta “de onde viemos?” e “será que estamos sozinhos no universo?” sejam talvez as mais ousadas questões que a humanida-
de poderia compor. Somos todos cientistas na nossa essência, mas alguns perdem isso com a chegada da idade adulta. Um cientista como você, com uma estrela no bolso, não poderia pensar diferente. Sinto em suas respostas sempre um equilíbrio entre a razão científica e a poesia das coisas. E isso me lembrou Pascal quando escreveu: “[...] o silêncio eterno desses espaços infinitos me assusta” (4). Pergunto: Quando você está mergulhado observando o cosmo, aflora em você esse silêncio que Pascal falou, de certa forma abstrato? José Dias: A abstração é fascinante e pensar como somos insignificantes diante do cosmos é algo que nos remete a nossa essência desprezível. Fazer ciência é muito mais que reunir informação e conhecimento, trata-se de enxergar de forma diferente. Somos apaixonados pelo que fazemos e na caminhada alguns de nós descobre que a Astronomia/Astrofísica não se limita a uma manipulação de conceitos abstratos com fórmulas. Usamos a abstração e a especulação para expandir nossa realidade e sondar o desconhecido de forma consciente e o mais próximo possível da realidade das coisas. Sabemos hoje que praticamente cada estrela do céu tem um planeta orbitando em torno dela e muitos podem abrigar vida. Há 400 anos ainda estávamos assassinando cientistas visionários como Giordano Bruno devido as suas conclusões tão realistas. A escuridão e a cegueira da desinformação me assustam muito mais que o abstrato.
Tão distante e ao mesmo tempo tão fascinante quanto o brilho de uma estrela. Para uma estrela, brilhar é uma necessidade absoluta? José Dias: Sim, é necessário. Uma estrela brilha e tem luz própria devido às suas propriedades físicas. Uma estrela queima elementos químicos transformando-os, esse processo gera energia e libera luz para animar nossas noites, entre outras coisas.
As descobertas e os estudos da Astrofísica sinalizam que o universo caminha para a expansão. Assim, é possível compreender a singularidade do universo? José Dias: É possível compreender muito das singularidades do início e do final do Universo. Muito já foi feito, mas sabemos quase nada. Atualmente, especulamos que cerca de 95% do Universo é formado por matéria escura e energia escura, nomes dados a um conjunto de partículas que ainda estamos por descobrir. Não sabemos o que é. A matéria ordinária que compõe tudo (planetas, estrelas, eu, você e tudo o que vemos) representa apenas 5% do Universo. E desses 5%, apenas metade foi encontrada, “vista” pelos astrofísicos. Saber se vamos expandir e durar pra sempre ou não é ainda uma grande incógnita para a ciência atual.
Você concorda com o físico Ilya Prigogine quando escreveu em sua “Carta para as futuras gerações” que: “Estamos apenas no começo da ciência, e muito distantes do tempo em que se acreditava possível descrever todo o universo em termos de algumas poucas leis fundamentais. Identificamos o complexo e o irreversível no domínio microscópio (associado às partículas elementares), no domínio microscópico que nos cerca e no domínio da astrofísica. Cabe às futuras gerações construir uma nova ciência que incorpore todos esses aspectos, porque, por enquanto, a ciência continua em sua infância”(5)? José Dias: Sim, concordo. Para dar um exemplo, podemos pensar na existência de outros mundos, em torno de outros planetas, em torno de outras estrelas da nossa galáxia, a Via Láctea. Pelo menos, deve existir um planeta em torno de cada estrela e com uma grande evidência de planetas parecidos com a Terra. Ao mesmo tempo, há 600 anos ainda não admitíamos a existência destes. É um começo. Agora imagine todos os ramos das ciências puras e aplicadas.
Falemos agora sobre a sua estrela, que tem o nome de batismo CoRoT Sol1. José Dias: A massa (quantidade de matéria) e composição química de uma estrela são as principais características que determinam a sua evolução. Estudar estrelas com a mesma massa e composição do Sol, as chamadas “estrelas gêmeas solares”, pode nos dar mais informação sobre o nosso Sol. Gêmeas solares de várias idades oferecem uma sequência fotográfica das diferentes fases evolutivas do Sol. É raro objetos assim e nossa descoberta colocou a UFRN no seleto grupo de instituições com expertise na área. Uma consequência imediata de nossa descoberta foi podermos propor alvos para a procura de planetas parecidos com a Terra. CoRoT Sol 1 foi a primeira estrela muito semelhante ao Sol e mais velha e com a incrível característica de ter uma idade que o Sol terá quando a água desaparecer na Terra”.
PhD na Univ. Paul Sabatier, França em Astrofísica e Técnicas Espaciais, José Dias é atualmente professor associado da UFRN (Dep. De Física) e bolsista de produtividade em Pesquisa, PQ 1D do CNPq. Professor convidado da Université d’Orsay, Université de Grenoble e Université de Toulouse, atuou como pesquisador visitante de set. 2013 a ago. 2015 na Harvard University (CfA-Smithsonia) onde atualmente continua como “Harvard Scholar” e pesquisador convidado. Tem experiência na área de Astronomia e Astrofísica, com ênfase no estudo de estrelas do tipo solar e seus sistemas planetários e habitabilidade. Líder da base de pesquisa GCB074-90 em Astrofísica e Cosmologia da UFRN, é também responsável pelo Grupo de Estudos em Astrofísica, Estrutura e Evolução Estelar da UFRN. Publicou dezenas de artigos em revistas de grande impacto científico e com menção em grandes jornais e revistas de circulação mundial (Washington post, Los Angeles Times, O Globo, Folha de São Paulo). Em 2014, recebeu a medalha “Câmara Cascudo” de Mérito Cultural e Científico por destaque dos resultados e da internacionalização do conhecimento produzido no nosso estado no campo da Astronomia e da Astrofísica.
Referências: MATSUURA, S. Radiação e ventos solares transformaram Marte num planeta frio e seco. O Globo, Rio de Janeiro, 31 mar. 2017. Disponível em: <http:// o g l ob o. g l ob o. c om / s o c i e d a d e / c i e nc i a / radiacao-ventos-solares-transformaram -marte-num-planeta-frio-seco-21138873#ixzz4eLV8rgE5>. Acesso em: 15 abr. 2017. TV TRIBUNA. Segundo sol explica vida na Terra. Disponível em: <htt p s : / / w w w. y o u t u b e . c o m / w a t c h ? v = v vPD8ajp6cs>. Acesso em: 15 abr. 2017. BAIMA, C. Sol jovem destruiu atmosfera de Marte e quase acabou com a da Terra. O Globo, Rio de Janeiro, 16 mar. 2016. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/sol-jovem-destruiu-atmosfera-de-marte-quase-acabou-com-da-terra-18884944#ixzz4eLXdWcni>. Acesso em: 15 abr. 2017. Notas: 1. CASSÉ, M.; MORIN, E. Filhos do céu: entre vazio, luz e matéria. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 122-123. 2. CASSÉ, M.; MORIN, E. Filhos do céu: entre vazio, luz e matéria. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 11. 3. CASSÉ, M.; MORIN, E. Filhos do céu: entre vazio, luz e matéria. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 11-12.
4. CASSÉ, M.; MORIN, E. Filhos do céu: entre vazio, luz e matéria. Tradução de Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008. p. 12. 5. Prigogine, I. Ciência, razão e paixão. Organização de Edgard de Assis Carvalho e Maria Conceição Almeida. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Livraria da Física, 2009. p. 17.
O
mente trazem traços do humano. Nelas, parece também que não há uma precisão sobre sexo, idade ou condição, elas se movimentam num terreno de abstrações em cores lavadas pela técnica aquarela. Será que Vicente as criou em gestação e suspeita? Não importa, elas estão aí, despojadas, em cores abertas, prontas para nos Na obra de Vicente Vitoriano, esse “impacto” arrastar à experiência da vida. de inquietação misturado com beleza acontece Vicente é professor da UFRN, lotado no Dede forma comumente, principalmente quando partamento de Artes(Deart). Numa manhã, nos deparamos com suas “figuras”, que talvez nós nos encontramos no jardim do Deart, eram representem “criaturas” na acepção do termo, quase nove horas, ele já fumava alegremente. ou quem sabe exuberantes formulações plásti- Pergunto: desde quando você fuma? Numa rescas da noção de figura. São figuras singulares, posta rápida, diz: “desde sempre”. Desviamos que parecem acatar um exotismo e simultanea- a nossa conversa para o objetivo da entrevista, grande artista catalão Antoni Tàpies (1923-2012) um dia escreveu: “Onde não houver verdadeiro impacto, não haverá arte. Quando a forma artística não é capaz de provocar o desconserto no espírito do espectador e não o obriga a mudar a forma de pensar, não é atual”.
isto é, falar, sobre sua arte e sua carreira acadêmica: “Entrei na universidade em 1980, na época, chamava professor auxiliar, que hoje equivale à categoria de professor substituto, para a disciplina de desenho publicitário. Na época, a publicidade do RN estava começando e eu tinha tido uma experiência numa house, só havia na cidade a agência Dumbo e essa house que funcionava dentro da loja “A Sertaneja”, que era uma agência da própria empresa. Eu acompanhei por um tempo o trabalho dessahouse, com Gilson Nascimento. Assim, nesse período, fiz o concurso para a UFRN e passei. Dois anos depois, próximo de acabar o contrato de professor auxiliar, escrevi uma monografia que foi avaliada e a partir daí fui contratado em definitivo para o quadro de professores da UFRN”. Pergunto a Vicente se nesse período ele começou a estruturar ou elaborar alguma pesquisa: “No Departamento de Artes, nessa época,ninguém ainda fazia pesquisa. Acredito que eu fui um dos primeiros professores no Departamento a fazer pesquisa. A escrita da monografia me levou à pesquisa, me deu um impulso. Então comecei a pesquisar sobre a crítica de arte em Natal. Muito desse assunto ainda estava para ser escrito. A partir de 1984, comecei a fazer pósgraduação. Fiz três especializações na área do ensino da Arte. Depois, na minha dissertação de mestrado, mudei o foco da minha pesquisa para a “História do Ensino da Arte” que, de certa forma, continuou até o doutorado”. Vicente fez mestrado (entrou em 1986)pesquisando sobre o professor com habilitação em teatro, como eles lidavam com as outras áreas de conhecimento, principalmente desenho, já que ele era requisitado a trabalhar em diversas áreas. Ele conclui: “Eu gosto desse trabalho até hoje, ele ainda se sustenta atual”. Continua: “O
doutorado eu fiz dez anos depois, também no Departamento de Educação da UFRN e continuei o que eu já vinha estudando que era a História do Ensino da Arte. Coincidiu que estava sendo criada uma base de pesquisa em História da Educação sob a coordenação da professora Marta Araújo e o assunto tinha uma abrangência nacional. Então, fui pesquisar as “escolinhas de arte”, que aqui era a escolinha do artista Newton Navarro (1928-1992). Como eu também já havia escrito algo sobre Newton, então tomei a decisão de pesquisar a escolinha de arte criada por ele. Isso se tornou um trabalho bem híbrido, dialogando com a história da arte, a história da educação e o assunto específico da escolinha de Newton Navarro e a fundamentação foram métodos de ensino”. Então, a pesquisa continua na sua trajetória e hoje Vicente faz parte de um grupo de pesquisa chamado Matizes (Grupo de Pesquisa em Cultura Visual), que congrega professores, pesquisadores e alunos da UFRN em torno de pesquisas que estimulam a investigação, a reflexão, o debate, a produção, a aplicação e a valorização de conhecimentos no campo das Artes Visuais, em suas diversas modalidades (meios tradicionais e novos meios, design, arquitetura, fotografia, artes decorativas), em suas diferentes categorias (público/privado, erudito/popular, antigo/contemporâneo, local/universal, material/conceitual) e nas suas múltiplas interações com outros campos da atividade humana (1). Ele se debruça atualmente sobre a História da Arte do Rio Grande do Norte, não mais especificamente no que se refere apenas ao ensino. Declara: “Estou bem focado na década de 70 aqui no estado, organizei ultimamente um encontro com artistas que tiveram atuação nesse período. Caracterizo alguns grupos, que compunham o
cenário quando eu cheguei aqui em Natal, em 1974. Nessa época, eram três grupos que se destacavam: os medalhões, os de vanguardas e os novos. O que observo é que os ‘novos’, tinham como traço comum, o surrealismo. Porque esse surrealismo? Até que ponto era tardio? Até que ponto era Modernismo? Já tenho material que torna possível escrever um artigo. Outro ponto interessante dessa época eram ‘as patronesses’, pessoas que financiavam exposições dos artistas, apoiavam a venda das obras. Hoje isso já não existe, o artista submete seu projeto a instituições ou a empresas privadas com projeto culturais de âmbito nacional. Também tenho visto outro desdobramento da pesquisa, que são as ‘coleções’ ou o colecionismo, que são os colecionadores de arte de Natal”. E a sua obra plástica? Como começou? “Eu comecei a me entender como artista nessa virada de sair de Mossoró para vir para cá, na década de 70. No início, eu comecei a sistematizar mais uma produção. Embora eu não pensasse na condição de ser artista, era uma questão de satisfação pessoal”. Pergunto sobre um trabalho anterior à época em que estava em Natal, lá em Mossoró, quando ele era bem jovem: “Lá em Mossoró eu conto até sobre esse período numa memória que eu escrevi, também fiz essa pesquisa que foi autobiográfica, que ainda está incompleta e aconteceu por consequência de que eu fui convidado para fazer um material visual num congresso de autobiografia aqui no Departamento de Educação e estimulado pela coordenação do evento na época para escrever, então escrevi. Depois participei de outro congresso dessa natureza em São Paulo e dei continuidade à escrita, já sobre a minha estadia em Natal, a sistematização do ensi-
no etc. O conceito é a aprendizagem autodidata. Escrevi sobre até que ponto sou autodidata, eu discuto o autodidatismo especificamente no Rio Grande do Norte, comparo com Navarro, com Manet, vou fazendo uma comparação. Sobre o meu trabalho em si, eu comecei com colagem. No início, eu não tinha confiança de mostrar um desenho meu. Na década de 60, era muito comum a colagem. A primeira exibição dos meus trabalhos foi na praça lá de Mossoró, com as colagens.Havia muito do aspecto político da época e a cabeça jovem, e eu era duplamente influenciado pelo pensamento da igreja católica. De toda forma, eu resolvi exercitar o desenho não a partir de um modelo e assim surgiu o que chamo de ‘estilização da figura humana’. Essa figura já é identificada, quando dizem‘foi Vicente que fez’. E as figuras são recorrentes. Essa exposição que acabei de fazer agora, ela é praticamente toda abstrata, porém, eu sempre volto para as figuras. Ou ela é feita de forma bem espontânea, quase expressionista e depois eu vou retocando, porque eu gosto das coisas com linhas muito puras, ou eu trabalho a partir de fotos. Eu trabalho com modelos fotográficos, eu escolho, nas revistas ou na internet, fotos de modelos, publicidade, moda; evito atores, gente conhecida. Da foto até o meu desenho eu já carrego para a minha expressão, faço o meu olho e assim vai se construindo uma outra forma. A foto é mais referência para a proporção ou mesmo para negar também, trazer um rosto muito comprido, cabeção”. Dando um salto para hoje, como foi construída essa recente exposição? “Em princípio, foi pensada para um espaço pequeno, para a Aliança Francesa. Foi desenvolvida em duas séries, uma
mais abstrata, com fragmentos da natureza, produzida com canetas e ainda misturo com aquarela, com tintas, com gel. A segunda série tem aquarela, nanquim, colagens, são vários materiais. Uma coisa que tem pautado a minha produção é a experimentação de materiais”. Em entrevista com outro artista, Carlos Vergara, este declara que o artista Iberê Camargo (19141994) tinha uma frase maravilhosa para um professor de arte. Ele dizia assim: “Eu sou um semeador louco. Eu atiro sementes. Quem determina se vai brotar ou não é o solo”(2).Podemos dizer que Vicente Vitoriano, a partir do ensino, da música, da obra, dos grupos de pintura que forma, lucidamente atira sementes de arte. Vicente Vitorianoé Professor do DEART-UFRN, além de artista visual, cantor, crítico de arte, curador e escritor, coordena oGuap – Grupo Universitário de Aquarela e Pastel. Nasceu em Mossoró, reside em Natal desde a década de 1970. (1) Matizes –Coordenador Prof. Dr. Everardo Araújo Ramos, vice-coordenadoraProfa. Dra. Nivaldete Ferreira da Costa e demais professores pesquisadores:Prof. Dr. Fábio Oliveira Nunes,Prof. Me. Luciano César Barbosa,Profa. Dra. Luiza Helena Boueri Rebelo, Prof. Dr. Marcos Alberto Andruchak,Prof. Dr. Tassos Lycurgo, Profa. Dra. Laurita Ricardo de Sallese o Prof. Dr. Vicente Vitoriano Marques de Carvalho. (2) Rodapé: sobre Iberê: SCOVINO, F. (Org.). Arquivo contemporâneo. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 236.
Titia Samsa veio para o café. Encolhe-se dentro da casca e quando levanta a cabeça escuta-se uma tia seca e partida. Pois, ao esfregar as garras nas antenas, sibila pelas guelras. Não usa mais o frasqueiro para guardar as escamas. Mas conduz uma pasta com recortes de revistas, nos quais esconde as recém-antigas lâminas de unhas e membranas. Cada dia fica mais tratável. Ri de sua desgraça e da que ela diz ser a minha. E sobre a toalha da mesa, desenha com uma pata bem molhada na xícara, pares de caralhos voadores. Adora Bjork mas engasga quando pensa cantá-la em falsete. Creio que ela nunca gritará esses sons de novo mesmo que sua voz ridícula, tente. Melhor não, melhor não, tia. Pede para informar que vai “Mui bem, obrigado, meu bem”. Está corada, apesar da surdez, da calosidade entre as asas e da impaciência em explicar o óbvio, ou seja, tudo e todos. Agora levanta-se da cadeira, quer agitar-se para voar, mas solta uns peidos imundos e, dando o dedo, despede-se. Sobe na bicicleta monark azul cobalto, barra circular e, alucinada, embaixo do céu pedala o lombo da avenida assobiando “light myfire”.
Historiador, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte , mestre e doutor em Ciências Sociais pela mesma universidade, Pós-Doutorado em Educação (UFRN). Atua como professor do Departamento de História do Ceres (UFRN) e do Mestrado em História da UFRN. Atualmente é Editor da Mneme - Revista de Humanidades. Publicou os seguintes livros: Rústicos Cabedais: patrimônio e cotidiano familiar nos sertões da pecuária (SeridóSéc. XVIII); A Penúltima Versão do Seridó - espaço e história no regionalismo seridoense; Caicó - uma viagem pela memória seridoense; Organizou os livros: Tronco, ramos e raízes!:história e patrimônio cultural do Seridó negro; Acari; Mestres do Seridó - Memória; Colégio Diocesano Seridoense: imagens do tempo e do espaço escolares. Com ênfase em História do Brasil Colônia e do Império, atua principalmente nos seguintes temas: História do Rio Grande do Norte, História da Escravidão, História da Família, História da Cultura Material, História do Corpo, Educação Patrimonial, Seridó, Caicó.
A
o observar a obra de Erasmo Andrade, mesmo que seja um olhar furtuito, é inevitável a sensação simultânea de desconcerto, deslumbramento, encantamento. Lembrando o que o artista catalão, Antoni Tàpies (1923-2012), escreveu se referindo à arte: “[...] quando o grande público encontra plena satisfação em determinadas formas artísticas, é porque essas formas já perderam toda a sua virulência. Onde não houver verdadeiro impacto, não haverá arte. Quando a forma artística não é capaz de provocar o desconcerto no espírito do espectador e não o obriga a mudar de forma de pensar, não é atual”.
Nesse sentido, a obra de Erasmo já nasceu atual, seu mundo plástico nos obriga a mover-se de um lugar de conforto ou de razão cartesiana. Somos arrastados por seus anjos bizantinos em ouro luz, corpos de homens/ animais/mitos, cabeças femininas, masculinas, andróginas ou não, santas com vestes exóticas, enterros entre jogos de luz e sombra, jarros com flores de forma complexa, torres de igreja, bules sobre mesas, provocando em nós suaves desconcertos. A atividade criadora de Erasmo compreende sempre obra e pensamento amalgamados, ele se coloca no mundo da mesma forma como se coloca na obra, num estético transborda-
mento da arte para a vida, da vida para a arte. Atitude essa que lembra o que um dia Duchamp escreveu: “Estou convicto que, tal como Alice no País das Maravilhas, o artista terá que atravessar o espelho da retina para alcançar uma expressão mais profunda”. A sensação que tenho é que Erasmo já o fez em pleno voo estético tragado por seus anjos, porém com os pés fincados na terra de São Tomé. Por mais que eu me esforce aqui para interpretar a obra, sabendo de antemão que toda interpretação é redutora e uma obra em si guarda recursos irredutíveis, não chegarei tão perto dos sentidos quanto à escrita do próprio artista. Por essa razão, toda escrita, que acompanha as imagens aqui no livro, eu a selecionei de um texto de uma dissertação de mestrado, defendida em 2005, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), pelo próprio artista. Assim, Erasmo nos guia – às vezes com estrelas nas mãos, às vezes com luzes, mesmo que às vezes com pedras, não importa as formas – à sua obra. E todas as formas nos levam as cores e assim podemos ouvi-las subitamente dentro das imagens.