Rawpunkzine eDIÇÃO #01 Reflexões sobre “gênero” no punk
dez de 2023
editorial O zine (A/O)(E) pUNK surge da necessidade de nos manifestarmos apenas como punks! Por mais que isso pareça ser simplório à uma reflexão do senso comum ao se afirmar como punk, a concepção de gênero habitual influencia à forma como somos percebidAOEs - inclusive se, dentro da cultura social, você for um indivíduo reduzido à “mina”. Esta reflexão não se limitará <e nem é intenção> à pronomes: - até porque os modismos pronominais devem pertencer ao meio acadêmico e/ou de reivindicação social, apenas, sem o intuito de arrastá-los à cultura punk - nós queremos dar a devida atenção do que é a desconstrução de todo o gênero para o punk, e, nunca à reconstrução da ideia de gênero no punk (a/o/e). A ideia de mostrar a impassibilidade da concepção de gênero no Rawpunk, neste zine, surgiu a partir de um “start” de uma leitura minha do zine “Estéticamente Inviável” por Márcia [abro um parêntese para a relevante leitura do “Esteticamente Inviável”, por ser um zine que desmistifica e quebra com a condição sexista no movimento punk, e demonstra com muito sentimento, várias perspectivas a partir da própria vivência no punk nos anos 80 e 90 (e até hoje), do que é ser simplesmente punk sem ter que se submeter à viabilidade de perpetuar o feminino imposto pela cultura social]. Há muitas reflexões que rolam conosco na CasaPunk, na 99 Rawpunk, e também, no universo Hardcore que denotam uma impassibilidade e indiscriminação de gênero ou de sexo dentro da nossa contemplação filosófica da noção indivíduo punk. pág 2
A indiscriminação de gênero deve ser objeto da construção punk (que, no nosso caso, o “agenerismo” se manifesta até na vestimenta). O gênero sexual não deveria limitar a vivência de outro indivíduo enquanto punk. Entretanto, ainda é percebido que em diversos nichos punks que a ideia de “mina” não é resolvida quanto à percepção da indivíduo punk, levando-as sempre a se depararem na condição do feminino e da “feminilidade” imputada socio-culturalmente.
***O nome (A/O) punk foi idealizado por mim e pelo Zaká, no final de 2022, quando discutimos a ideia de não existir “mina” ou “cara” na nossa visão de punk, só existir o Punk. Além de outras discussões sobre androginia comportamental e agenerismo no punk com o Jaaka. Decidi pôr nesse contexto também o (E), num trocadilho da ideia social de gênero neutro “e”, para aproveitar e tirar do túmulo o pressuposto de “Equality”, presente na ideologia anarquista, ou em alguma capa de disco de bandas Hardcore esquecidas nos 80’s pros 90´s.
TodAOEs que tiveram uma “meia vida”/experiência dentro da esfera que classifica alguém do gênero feminino “à parte” da construção do punk, ou que querem se ressignificar no punk enquanto punk, independente do gênero e da classificação “mina”, poderão apreciar uma boa leitura neste zine.
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Contextualização do Agenerismo como Conceito Punk: Nota Introdutória A proposta de se falar da "ageneridade" do rawpunk, é unicamente tratar a dissolução da ideia de gênero a partir da nossa própria vivência enquanto grupo, e de como deveria se estender no ideal de punk, em todas as suas esferas. O "agênero" aqui, é referido como a/o punk em si, que no rompimento com a cultura social e a civilização traz consigo a ideia de que o gênero no humano, não cabe ao punk, assim como qualquer outra construção social. Não queria ter que fazer necessário aqui, porém, como as questões de gênero estão sendo discutidas em meios acadêmicos e didatizados <em sua superficialidade> para o consumo da cultura de massas - que em grande parte, difundido para os adolescentes - se faz necessário destacar alguns pontos para contextualizar a nossa discussão: O primeiro deles é que quando falamos do ´"a"gênero ´, falamos da perspectiva do agenerismo no punk, unicamente. A discussão sobre "binarismos" e "nãobinarismos" no dialeto reproduzido no senso comum, não entra aqui, porque aqui, essas questões (invenções sociais) inexistem: É a destruição da ideia de gênero que importa ao punk, e não na reconstrução da identidade do gênero nos moldes sociais, acadêmicos, ou de qualquer outra perversão burguesa (a fins de reconhecimentos da psicologia contemporânea). pág 4
O segundo ponto que irei destacar, unicamente para que eu não seja erroneamente e/ou de máfé má-interpretada é que não ponho aqui, o ponto de vista da transexualidade essa luta legítima deve ser discutida noutro campo de conhecimento, por quem tenha propriedade de vivência real para expressar - portanto, não é o objeto de estudo deste zine refletir sobre a transexualidade e não deve ser confundido com o propósito real da reflexão aqui proposta. Inclusive, indico o Zine “Inssurreição Kuir”. O terceiro, é que parto do proposta da destruição progressiva (e depois total) aos dogmas sociais da feminilidade serem submetidos às punks. Sugiro à não ser circunscrita a ser mina, enquanto punk. A proposta é de uma nova ética à não-feminilização social dentro da estrutura filosófica do punk. Entendido esses pontos introdutórios, entenderemos e refletiremos como a concepção de gênero é um desserviço para universo punk.
*Quaisquer classificações de gêneros são dogmas, e todo dogma deve ser refletido, para ser quebrado, dissolvido e mandado pro caralho! pág 5
A proposta de A-generidade no punk Ageneridade é um termo já utilizado em algumas esferas de estudo e pesquisa. A partir de 2015, foi popularizado nos contextos de moda e eclodiu nos anos 20 deste século, neste milênio. Não me aprofundei nos significados que esse termo tem socialmente e quem são seus autores, porque não me cabe estudar e escrever sobre essa concepção no âmbito social. A discussão que eu trago aqui, é sobre o que é a ageneridade dentro da minha construção de universo no punk.
Defino “ageneridade”, como a negação do gênero, simplesmente de forma etimológica, para que a palavra se baste em si: “a” no prefixo vem como negação e gênero; e, o gênero, é a diferença entre “homem” e “mulher” criadas socialmente. Tudo criado socialmente deve ser rompido na construção Punk. Como já disse nas páginas deste editorial, dentro da vivência no nosso universo rawpunk, as diferenças de gênero são dissolvidas, para nós, enquanto grupo. O punk, a Punk, e Punk, são punx: responsabilidades iguais, esculachos iguais, sem paternalismos, sem mina de “fulano”(isso é bizarro), sem pág 6
apadrinhamentos ou o famoso tratar a punk como “café com leite”. Punk é punk. O que me fez ver a necessidade para afirmar “mina não, punk”, é que mesmo o punk sendo a ruptura com a sociedade, algumas esferas e grupos punks herdam a estrutura do machismo e o levam à cultura punk. Foram inúmeras vezes que ouvi repetirem discurso que “mina” nos grupos punks só traziam problemas, faziam os “home” brigar, “mina” não dava certo por “x”, “y” motivos (trazidos da cultura social machista) e, reduzindo sempre a punk à estereótipos misóginos primitivos. E muitas vezes, se fez necessário a criação de única e exclusivamente das punks (consideradas) “minas”, para terem voz em alguma esfera comunicativa. *Nesse momento quero chamar atenção para a pág. 5 do zine “Esteticamente Inviável”, que relata como tudo era mais escasso para as punks: registros, documentações, bandas das punks, zines das punks, etc. (vai lá conferir e volta aqui).
A categorização de gênero para nos referir enquanto “mina” punk, faz parte da herança social da construção do que é ser “mulher” na sociedade patriarcal e não deveria perpetuar no punk: Essa herança, traz consigo uma série de preconceitos que dificultam o desenvolvimento do indivíduo punk concebido como “mina”, na sua construção da subjetividade no punk, como na limitação dos seus campos de ação.
pág 7
Não existiria feminilidade se não houvesse uma forte cultura machista. A abstenção do feminino e do masculino, é a nossa ruptura fundamental com o gênero, enquanto punk. É romper com vestimentas, estereótipos herdados da cultura ocidental machista e ruptura comportamental, para ser quem verdadeiramente é, sem as influências externas do patriarcado. A proposta de negar o gênero na construção de indivíduo punk, é uma proposta de quebra com toda estrutura social-civilizatória da fêmea humana para que, simplesmente, a punk possa se desenvolver enquanto punk, em critério de equidade. Porque punk é punk e gênero é uma construção social limitante do indivíduo!
As classificações por gêneros só prejudicam as capacidades do indivíduo punk. Tanto nas masculinidades quanto nas feminilidades herdadas da cultura ocidental. Não se deve procurar uma reafirmação do gênero no punk, pois o gênero faz parte de uma construção civilizatória que para nós, punx, não nos pertence!
pág 8
A feminilidade quanto a masculinidade são extremamente nocivas na construção da identidade punk Numa ausência de interpretação de como o gênero pode ser nocivo, muitas punks reivindicam o “mina” para a reafirmação identitária dentro da cultura punk.
Se de um lado há um machismo trazido à cultura punk, de outro, é natural que haja a reivindicação do feminino imposta à cultura, porém, esse modelo traz a herança da construção civilizatória de gênero, essa identificação com o feminino é uma identificação meramente social, não sendo imanente à punk como indivíduo. A feminilização dentro da cultura proposta social do que é ser mulher.
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Em sua estrutura, a feminilidade narra o machismo, por ser aquilo que é viável ao universo masculino. Um exemplo disso, é quando a ruptura moral desaba para um âmbito fetichista, tendendo à hipersexualização da punk (tanto em imagens, gravuras, artes, até se transformar em um visual extremamente degradante que traduz a mulher como mercadoria à cultura punk). Há uma grande indústria que se apropria dos corpos em formato de “empoderamento”, que traça erroneamente à ruptura moral com o ser “imoral” somente se for viável ao fetiche escroto de alguém. Daí, reproduzem os estereótipos femininos e põem o tal do “empoderamento” na disposição sexual dos corpos femininos às vestimentas, ao lado comportamental que são viáveis ao consumo masculino. pág 9
Não deve haver pretensão fetichista em ser punk! Não há reparação sexual/generista, sequer devem buscar algum agrado, cortesia daquilo que só emana ódio à um mundo masculinizado em que a posição da indivídua vale mais quando é submetida aos fetiches provenientes da indústria do corpo, do que quando exerce as suas capacidades criativas, cognitivas ou produtivas.
A reprodução da feminilidade é uma reprodução do machismo interiorizado, uma vez que ela não é própria/intrínseca do indivíduo, não deve ser trazida à cultura punk.. Já as masculinidades trazem consigo valores sociais do comportamento machista naturalizado em sua própria feiúra: a posição de machinho e suas “hombridades” impedem que o cara enquanto indivíduo punk não enxergue e nem se emancipe da condição de sua própria tosquice dentro dos valores de “ser homem”. Assim, herdam para a cultura os vícios sociais do tipo “peguei tantas muié”, “bati em tantos maluco”, afirmando “hombridades” que pouco interessam à cultura punk e rebaixam ao lodo toda estrutura filosófica e ideológica de ser punk (isso quando também não imputam o papel da feminilidade à sujeita punk, para serem viáveis à apreciação de espaços predominantemente machistas que eles ocupam). pág 10
Romper com a masculinidade é um campo mais utópico, porque ela é confortável ao indivíduo que não deseja a abstenção de seu comodismo numa cultura humana que o favorece. É conveniente ao indivíduo homem punk viver com os resquícios da sociedade que o aconchega de atitudes equívocas e injustas. O gênero na construção de universo punk é nocivo e atrapalha os indivíduos em abster as características sociais que são prejudiciais ao indivíduo punk em sua essência. Reproduzir os elementos da sociedade na criação de universo próprio e retrógrado e impede o indivíduo punk de estar em liberdade com o seu próprio sujeito.
LUTAS FEMININAS E aoe PUNK O Feminismo tem uma enorme importância social, e, nos escritos punks, a reivindicação ainda “tretava” com a noção de universo machista dentro e fora da cultura punk. Nas manifestações dos protestos feministas, encontramos a luta pelas garantias sociais da mulher, a luta pelo direito e descriminalização ao aborto, a ocupação de mulheres na política, o direito de escolha de como se vestir e se portar, violência contra a mulher, violência doméstica, violência obstétrica e libertação feminina dos corpos. Esse apelo surge pela urgência de um mundo menos patriarcal e machista, pela desigualdade escancarada entre indivíduos homens com indivíduos mulheres. O contexto das lutas femininas estavam tão à margem, e era visto com tão “maus olhos” sociais, que logo pág 11
fora apropriado como uma das principais reivindicações das mulheres que pertenciam ao movimento punk anarquista. Era uma luta que estava absolutamente às margens, pela época, onde o machismo vigorava dentro e fora das esferas punks. A reivindicação ia do punk ao social, pois não existia uma distinção clara das lutas que eram para as ocupações dos espaços sociais pelo nicho feminino e também do que era a própria luta identitária das ações da mulher na esfera comunicativa no punk. As lutas pelas vozes ativas e do reconhecimento da mulher como parte construtora da política, do mundo e da própria cultura punk foram necessárias como contestação ao machismo e ao patriarcado. A ala anarquista do punk, era sem dúvidas, a mais politizada, argumentativa, das cenas. [Vê-se muito a diferença ideológica e embasamento teórico entre os punx mais velhos que tiveram uma vivência efetiva no MAP, dentre os que não participavam dessas reuniões]. Os principais problemas civilizatórios relativo às origens das desigualdades entre os seres humanos foram pág 12
amplamente discutidas no movimento punk, principalmente nos anos 90. Tais como o racismo, machismo, sexismo, homofobia, desigualdades sociais, pobreza, a fome, o Estado, o Capitalismo e até mesmo o veganismo (pela ala mais hardcore), antes de serem reduzidos à conceitos apropriados pela elite burguesa acadêmica.
**Destaco ao falar de elite burguesa acadêmica, pelos diversos desserviços que ela traz às legítimas contestações sociais marginalizadas. O academicismo fetichiza as ações “do fundão”, a fim de transformá-las em conceitos para serem propagados massivamente para jovens mimados, imputando suas “verdades absolutas”, propagando um modelo único de reflexão, castrando o livre pensamento. (Esse parêntese foi aberto pela necessidade da distinção das coisas, mas não irei me aprofundar muito sobre isso neste texto, talvez em outro voltado à essa questão). Acontece que, quando algo é popularizado e disseminado pelas elites, se torna ilegítimo àqueles que participam do real significado das coisas e à quem elas pertencem. A partir do momento em que a ideia/idealização/ideologia é expropriado do outro, e, dominado pelas elites, criam-se falsos consumos fantasiados de conceitos. Um grande exemplo disso é a farsa do “empoderamento feminino” pág 13
O “tal do” “empoderamento feminino” é uma das mais escancaradas farsas sociais para manter os esteriótipos da fêmea humana, repetindo os padrões da civilização para um novo modelo de fêmea, que seja acessível aos desejos e à fetichização masculina. Tomar a liberdade dos corpos, dando margens ao “agir” da indústria é uma alienação de si enquanto sujeito, e não contribui para a emancipação da condição de mulher social.
A noção de fêmea humana não deveria ser repetida nos esteriótipos sociais/moldes civilizatórios e conduzidos à cultura punk. Porém, a desconstrução da sujeição civilizatória do indivíduo fêmea, é uma imposição diária que precisa ser rompida à todo instante. Afirmar “mina não, punk!” é uma resistência que pretende dar fim à esteriotipação da fêmea ao punk!
A reivindicação do padrão feminino e da feminilidade, atrapalham a construção da subjetividade e a desconstrução com a sociedade para viver-se o punk. A libertação do gênero, impede a castração do pensamento da punk sobre a infinidade de assuntos que também pertencem à elAOE.
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MINA NÃO! PUNK!
agradecimentos À Márcia, principalmente, por ser uma figura no punk que influenciou várias gerações no punk, tanto no visual, quanto na forma de agir, sendo o referencial mais forte de punk ativo, produtivo, independente de gênero que temos no nosso universo hardcore. Ao Gaianais que está sempre presente na revisão e leitura dos meus textos, no apoio e contribuição com arte. À 99 RawPunk, Casa Punk e toda a nossa construção de universo que diverge da concepção comum! À todaoes punx que lêem, refletem, filosofam e vivem e fazem o punk sua realidade!
Num certo momento, algo injusto na minha vida aconteceu, e a primeira coisa que uma dona fez,me culpando pelo acontecido perguntou onde estava a minha feminilidade. Fico feliz por ter mandado minha feminilidade pro C4r4lh0, se eu ficasse presa nela, seria mulher de um cara, e não escreveria zine. FODA-SE O FEMININO IMPOSTO!
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Idealização : Rafa Edição: RAFA desenhos rafa: CAPA, CONTRA-CAPA, PÁG 3, 10, 12, 13, 15 DESENHOS GAIANAIS: PÁG 5, 6, 8, 14 textos: RAFA