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A alexitimia em pequenas historias
Rafael Silveira
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A alexitimia em pequenas historias
Rafael Silveira
Copyright ® 2020 by Rafael de Jesus Silveira Livro-reportagem apresentado como trabalho de conclusão de curso, uma exigência para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo, do curso de Comunicação Social do FIAM FAAM - Centro Universitário. Coordenador do curso de Jornalismo Prof. Me. Benedito Aparecido Rodrigues Lisbano de Moraes Orientadora Profª Ma. Nadini de Almeida Lopes Diagramação Rafael de Jesus Silveira Capa e ilustrações Ana Caroline Rodrigues Bacelar Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada a fonte: SILVEIRA, Rafael. Ostras: A alexitimia em pequenas histórias. São Paulo: Edição do Autor, 2020 Todos os direitos desta edição são reservados à Rafael de Jesus Silveira | raffa.siilveira@gmail.com
Para a Thais, a maior apoiadora que alguĂŠm poderia ter. Para todos os amigos que fiz durante o curso de Jornalismo. Para a professora Nadini que me orientou. E para a Ana Tereza, a grande professora que me convenceu ser possĂvel escrever um livro.
Sumário 09
Explicando a alexitimia
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Breve contexto social brasileiro
18 Porta-voz 28
Em direção ao sol
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Cara, você perde; coroa, também
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As pérolas dentro das conchas
47 Percepções 55
A coletividade e a linguagem da sociedade
CapĂtulo 1
Explicando a alexitimia
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Alegria, felicidade, raiva, tristeza, frustração. Emoções comuns aos seres humanos que todos vivenciamos no nosso dia a dia. A frustração por mais um dia de transporte público lotado; a alegria de encontrar dois reais perdidos no bolso de uma calça; a felicidade de receber um bom-dia da pessoa amada; o ciúme ao vê-la ser desejada por outra pessoa. Os sentimentos são tão normais em nossa vida que, quando cogitamos uma pessoa que não os tenha, já a taxamos como psicopata. Entretanto, mais comum – e mais negligenciada – que a ausência de sentimentos é a incapacidade de expressá-los. Essa característica possui um nome: alexitimia. Embora seja um termo pouco conhecido, ele surgiu na década de 70 cunhado por um psiquiatra e pesquisador grego radicado nos Estados Unidos chamado Peter Sifneos em seu livro “Psychothérapie brève et crise émotionnelle” (Psicoterapia breve e crise emocional, em tradução livre). Mas o que seria exatamente essa incapacidade de se expressar emocionalmente? Existe uma disparidade conceitual da alexitimia entre psicólogos e neurocientistas fundamentada no conceito de alexitimia definido por Sifneos. Ele classificou a alexitimia em dois tipos: as com origem biológica e as com origem psicossocial. Os neurocientistas puxam o lado biológico e estudam as comunicações nervosas do cérebro. Eles buscam deficiências neurológicas que impedem os hemisférios cerebrais de conversarem adequadamente. Enquanto isso, os psicólogos e psiquiatras buscam o lado psicológico e suas causas e consequências, seja por desenvolvimento seja por condicionantes socioambientais. Segundo o psicólogo clínico paulistano Geraldo Pinto de Morais Jr., apesar de existirem esses dois parâmetros, não dá para dizer ao certo se a pessoa nasceu com alexitimia ou
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se adquiriu. “Pode ser que a pessoa nunca vá ter sintomas ou adquirir, mas é questão de resiliência. É questão de como isso foi desenvolvido dentro da pessoa”, explica. Ainda segundo ele, todas as pessoas possuem certo grau de alexitimia e por vezes não conseguem descrever aquilo que sentem. O que ocorre em casos mais sérios é que a pessoa não consegue descrever o próprio sentimento e também não consegue descrever o do outro. Ela sente, mas não reconhece em seu semelhante. Essa característica do alexitímico ou alextêmico (não há consenso entre os termos para se referir a quem desenvolve o transtorno) o difere profundamente do psicopata ou sociopata, que é alguém indiferente aos sentimentos alheios. O psicopata enxerga e sabe quais os sentimentos das pessoas, ele simplesmente não possui empatia. Ele não se importa em causar mal. O alexitímico não é indiferente, ele simplesmente não consegue traduzir. Mas por que é importante falar sobre a alexitimia? A APA (Associação de Psicologia Norte-americana, em tradução livre) estima que cerca de 80% da população masculina seja portadora do transtorno. Essa alta incidência se deve, principalmente, às características socioambientais em que esses homens estão inseridos, algo que o psicólogo norte-americano Robert F. Levant denomina “alexitimia normativa masculina”, que, embora não seja tão drástica quanto a alexitimia clínica, ainda provoca danos à qualidade de vida do paciente. De acordo com Morais Jr., “a cultura masculina tem uma cobrança um pouco maior. Essa cobrança faz com que o homem seja mais rígido, mais calado. Muitas vezes os próprios pais não querem que o filho sorria muito, que brinque muito. Tem aquele estereótipo [de que homem não chora] e isso pode ir desenvolvendo mais no homem do que na mulher. É uma
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questão mais sociocultural”. Essa cultura ocidental de virilidade masculina, de que demonstrar sentimentos significa demonstrar fraqueza, de que o homem necessita ser um pilar de estabilidade emocional e que é enraizada desde a mais tenra idade faz com que o menino cresça escondendo o que sente. Essa falta de verbalização acarreta um analfabetismo emocional e é aí que se manifesta a alexitimia masculina. Em artigo traduzido e publicado em Florianópolis na Revista de Estudos Feministas, em 2013, chamado “Masculinidade hegemônica: repensando o conceito”, os pesquisadores Robert Connell e James Masserschmidt relatam que esse conceito de masculinidade, embora seja visto como hegemônico, é adotado apenas por uma minoria dos homens. Em uma analogia simplista, é como o padrão de beleza do corpo feminino: irreal e quase inalcançável. Porém, mesmo assim, as pessoas ainda tentam atingi-lo por questões de convenções sociais e marketing comportamental. Esse culto à masculinidade se reflete, inclusive, na hora de um homem procurar ajuda psicológica. Freud, segundo Morais Jr., dizia que as mulheres eram mais suscetíveis aos transtornos psicológicos do que os homens. Entretanto, essa análise se dava por serem as mulheres que mais procuravam ajuda para problemas mentais. Em março de 2019, na trigésima edição da revista Psychotherapy, publicada pela APA, o psicólogo John Vessey, após a revisão de diversos levantamentos epidemiológicos, concluiu que duas em cada três consultas psicológicas e psiquiátricas foram realizadas por mulheres, ou seja, além de não falarem sobre, os homens também não procuram tratamento. E qual o impacto da alexitimia na vida de uma pessoa? A primeira coisa que precisa ser dita neste ponto é que a alexitimia é uma doença somatofórmica ou psicossomatizado-
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ra . Essa somatização1 pode ser interna ou externa. Uma pessoa pode sentir uma dor de cabeça ao sentir raiva e não saber que o sentimento é o motivo da enfermidade, em um exemplo simples de somatização internalizada. Entretanto, se for de forma externa, ela pode abusar de substâncias como álcool ou entorpecente. Isso se dá não apenas pelos efeitos dos químicos no corpo, mas também como sinal de aceitação de um grupo social de forma mais radical. Morais Jr. relata que a alexitimia causa um forte impacto na vida social da pessoa e cria um efeito bola de neve: “A pessoa não entende o que ela sente, então começa, muitas vezes, a entrar numa depressão. Começa a entrar numa tristeza profunda e perde a anomia2. Ela acha que não serve para essa sociedade, porque é uma sociedade feliz, risonha e ela não consegue ver graça nisso. Ela não entende o que está acontecendo e isso pode levar a pessoa a se entregar, morar na rua ou até mesmo o suicídio. Uma coisa que parece tão pequena, mas que pode se tornar muito grande se não for tratada. Imagine uma pessoa que está no meio de uma multidão e está em isolamento por não conseguir se expressar. É terrível”.
1 Somatizar é quando um conflito psicológico gera consequências físicas no corpo de uma pessoa. 2 O paciente passa a ter um comportamento desregrado que se separa dos modelos de grupos sociais.
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CapĂtulo 2
Breve contexto social brasileiro
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Os referenciais de masculinidade no Brasil possuem anos de construção e difusão. São diversos fatores que precisam ser analisados e levados em conta para entender como a sociedade brasileira chegou ao ponto atual no que diz respeito às características valorizadas nos corpos masculinos e também nos femininos. Entre esses fatores estão a lógica religiosa cristã e as metáforas incutidas nos povos colonizadores europeus a partir do final do século XV sobre o continente americano ser uma terra hostil que precisava ser colonizada por homens fortes e corajosos. Para Bernardo Fonseca Machado, mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) esses pontos são muito importantes na construção do Brasil como nação: “A orientação do processo de colonização e a tradição da formação cristã, cujos paradigmas eram paradigmas de divisão muito significativas das relações entre homens e mulheres e o que caberia a ambos, foram se atualizando, se constituindo e se formulando no país ao longo dos séculos”. Segundo Machado, entram nessa equação os processos de percepção sobre quais emoções eram ou não compatíveis com a masculinidade e com a feminilidade. Uma hierarquização em que, “o sentimento de conquistas e de vangloriação são muito mais desejados nos corpos masculinos e considerados superiores a outros, mas não se aplicam ao corpo feminino”. Essa hierarquização, que também é de certa forma uma fragmentação do espectro humano, criou diferenciações que acabam sendo paradoxalmente próximas. Quando é dito que o homem é o provedor e a mulher cuidadora, há um ponto inicial semelhante. Ambas são palavras que tem o zelo em seu cerne e, por essa razão, acabam se confundindo dependendo do ângulo de onde se enxergue. Pensando nos estereótipos: do homem se espera a provisão material e da mulher, o cuidado senti-
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mental, mas as funções desempenhadas se entrelaçam. A mulher também desempenha um papel de cuidado material quando lhe relegam as tarefas domésticas, assim como o homem também cuida do emocional impedindo que sua família sofra com a falta de algo necessário. O reducionismo e a simplificação, porém, mantêm os significados rasos no imaginário popular e as nuances acabam ficando escanteadas. “Essa divisão social vem da organização baseada em padrões religiosos, uma justificativa que a partir do século XVIII estendeu-se também para atributos biológicos, mas na verdade eram justificativas para manter um certo padrão de comportamento”, explica Machado. Esses conjuntos de aspectos comportamentais possuem ligação direta com a alexitimia normativa. A dificuldade de expressar e verbalizar suas emoções pode levar a pensarem que os homens são insensíveis, o que acaba sendo uma inverdade e esse ponto está intrinsecamente vinculado aos aspectos sociais vigentes. Machado explica que a forma de manifestação do afeto masculino acontece por uma gramática muito diferente. Segundo ele, “os homens entendem que uma das poucas formas de demonstrar amor para o seus filhos e esposa é por via do dinheiro, por via das condições materiais de sobrevivência”. No fim das contas, as possibilidades de expressão emocional masculinas acabam se revelando muito restritivas.
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Capítulo 3
Porta-voz Don Draper cai em lágrimas Peggy: O que houve? Don: Alguém muito importante para mim faleceu. Peggy: Quem? Don: A única pessoa que me conhecia de verdade. - Mad Men
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Iago Veras Monard é um jovem brasileiro como tantos outros. Nasceu em uma família modesta de Belém do Pará, completou a escola e procurou cursinhos comunitários para entrar em uma faculdade pública. Hoje, aos 27 anos, é formado em Farmácia e atuante na área. Esse breve resumo pode se encaixar em diferentes graus na vida de boa parte da população brasileira contemporânea e, ainda assim, é uma vida cheia de particularidades. A história dele começa antes mesmo de seu nascimento. Seus pais não estavam tendo o relacionamento dos sonhos e, como alternativa para impedir o rompimento precoce, sua mãe engravidou. Foi uma gravidez desejada, mas não pelos motivos mais nobres ou pelo desejo de ser mãe. O famigerado golpe da barriga, por assim dizer. Entretanto, isso não foi o suficiente para mantê-los juntos e seu pai foi embora sem olhar para trás. Tão logo houve a separação, a vida do ainda bebê Iago começou a colecionar seus percalços. Sua simples existência era, para sua mãe, uma lembrança constante do relacionamento fracassado e da dor de um término não desejado. A situação era de rejeição, e mesmo no início já se estava em seu ápice. Com o sentimento negativo de sua mãe sempre presente, ela não tolerava mais sua presença em casa. A sensação de ter uma vida para criar e ao mesmo tempo essa vida ser uma pela qual ela nutria emoções controversas foi um fardo que ela não quis carregar. Em uma atitude de semiabandono, ela o mandou morar, aos 3 anos de idade, com os avós, atitude que deixa marcas até hoje no homem que ele se tornou. Toda sua primeira infância se passou na casa dos avós, mesmo antes de morar no local. Foi lá que ele aprendeu a andar, a falar e a brincar. Também foi lá que ele descobriu o que era não ter um pai e uma mãe presentes. Os avós – e uma tia que morava com eles – sempre
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fizeram o que podiam para criá-lo bem e não se pode dizer que não obtiveram sucesso, apesar das dificuldades. Mesmo assim, uma criança crescer distante da mãe é uma situação complicada, não importa o contexto, e ele cresceu sem ambas as principais referências. É verdade que eles proviam ajuda financeira. O pai bancou sua educação até a maioridade e ele cresceu estudando em escolas particulares. A mãe ajudava com o básico na casa dos avós. O que faltou durante sua infância foi um contato próximo com eles que as simples conclusões das obrigações legais de um pai e uma mãe não conseguiam suprir. A maternidade, inclusive, passou a ser uma grande vilã quando sua mãe engravidou novamente. O nascimento de seu irmão mais novo é o segundo ponto de virada em sua vida, pois foi ali que sua personalidade atual começou a ser cultivada com muita dor, mas também com muita força de vontade para ser diferente. A chegada do novo bebê em sua família exacerbou as dores e dissabores de sua mãe para com ele. A atenção passou a ser voltada unicamente para seu irmãozinho que, inocente, não possuía culpa alguma no modo como a mãe diferenciava o tratamento que dava para seus dois filhos e era uma pessoa de quem ele muito gostava. A sensação de ciúme existia, mas era apenas pelo tratamento da mãe, o irmãozinho era alguém que ele sempre mencionava e dizia ter saudade, porém, infelizmente, via muito pouco. O tratamento desigual era visível mesmo para uma criança pequena. Enquanto o mais novo recebia todos os mimos com brinquedos novos, roupas caras, alimentação diferenciada, carinhos e cuidados de saúde, o mais velho era negligenciado e recebia roupas de segunda mão, brinquedos dados a contragosto e só o suficiente em ajuda para a alimentação para a mãe não
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se sentir culpada pela falta de zelo. A distância entre mãe e filho agravou ainda mais a relação de ambos. Sem o convívio diário e sem encarar a situação com os próprios olhos, a negligência aumentava a cada dia e com isso a frustração começou a gerar rancor. E como culpar uma criança deixada de lado pela mãe por guardar rancor contra ela? Mesmo uma pessoa adulta teria dificuldade para entender como uma mãe, com um bom salário, custeia um tratamento dentário completo para um de seus filhos enquanto o outro precisa arranjar dinheiro por conta própria para bancar uma consulta, mas não antes de perder dois dentes. Como, então, explicar para uma criança por que sua mãe nunca foi a seus eventos escolares de Dia das Mães, mas sempre comparecia aos do irmão? A falta de cuidados a que foi submetido moldou a forma como Iago enxerga o mundo. Independência é uma de suas principais características e foi aprendida diretamente da negligência de sua mãe. Ele precisava ser por ele, pois ninguém mais o faria; passou a ser mais reservado sobre o que sentia, pois, se ninguém se preocupava, não havia motivo para falar a respeito de seus problemas e sentimentos; e se tornou mais agressivo em suas demonstrações emocionais, já que essa era a única forma de receber alguma atenção em um paradoxo sem lógica racional, mas com uma passionalidade compreensiva. Tudo isso ainda antes da pré-adolescência. Quando relembra essa época, Iago diz pensar ter sido uma criança depressiva. Todas as noites, sofrendo pela falta da mãe e do irmão distantes, ele chorava e tinha pesadelos. Durante o dia, a saudade era suprimida já que os avós e a tia sempre tentaram compensar o afeto familiar Aos 12 anos, ele saiu da casa dos avós e voltou a morar com a mãe. Essa fase da pré-adolescência e adolescência, já
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caracterizadas como a fase dos questionamentos e da rebeldia em busca da própria personalidade e entendimento de mundo, potencializou as mágoas e as brigas. Aceitar a autoridade de uma pessoa que o abandonou na casa de parentes e o preteria sem nenhum tipo de fingimento era algo impensável. De coisas simples como uma refeição até a inserção de limites pela imposição de um horário para voltar para casa, tudo era motivo para que faíscas surgissem. Todo o desprezo e confronto se acumularam e seu primeiro namoro, aos 15, o fez ser suscetível a toxicidades para não perder o afeto conquistado. Brigas, desrespeito, cobranças, tudo era colocado de lado e o relacionamento seguia. Não que fosse algo unilateral, mas era, e ainda é, essa a sua visão. Esse período ainda mais atribulado o levou a desejar e se esforçar para se formar e ter uma profissão diplomada por conta do medo. Passou a pensar que, se não conseguisse se manter por conta própria, poderia nem mesmo ter um teto sobre sua cabeça. O cursinho comunitário foi uma alternativa para não depender do dinheiro dos pais ausentes e, após ingressar no curso de Farmácia da Universidade Federal do Pará (UFPA), sua única fonte de renda era a namorada, que, tendo melhores condições financeiras, o ajudava a se manter. Por ser uma graduação de período integral, havia dias em que passava fome por não ter dinheiro para se alimentar já que a mãe só pagava a condução e não se importava com o restante dos custos, além de o orgulho não permitir que ele dependesse sempre da namorada. Entrava em aula cedo pela manhã e só retornava para casa durante a noite com a barriga roncando. Disfarçava para os amigos e colegas a situação angustiante de sua vida universitária e a degradação cada vez maior de seu seio familiar. Durante anos, essa foi sua vida. Seu relacionamento
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durou sete anos. Sete anos de brigas com ela jogando em sua cara que o sustentava e com o tempo afogando o amor inicial pouco a pouco. O final não chegou com maior antecedência apenas pelo sentimento de gratidão que ele sentia por ela. Não fosse por ela ter passado por sua vida, ele não teria conseguido chegar aonde chegou. Faltando cerca de sete meses para a conclusão de seu curso, sua mãe perdeu o emprego. Diante da situação, Iago se inscreveu em um programa de auxílio da universidade que fornecia um valor simbólico para os custos da vida educacional: transporte, xerox, alimentação. Auxílio esse que ele nunca preenchera os requisitos para participar até aquele momento por conta do alto salário da mãe. Para se candidatar ao programa, era necessário possuir uma conta bancária. Ao providenciá-la, descobriu uma já existente em seu CPF na Caixa Econômica Federal, que fora aberta anos antes por seu avô. Os pequenos depósitos mensais realizados totalizaram ali quase 6 mil reais. Ele guarda rancor da mãe desde a infância, mas também nutre amor por ela e questiona o motivo de não receber afeto como o irmão recebe. Esse amor por ela o levou a pegar o dinheiro depositado pelo avô e utilizá-lo para manter a casa, a mãe perdera o emprego e a se manter estudando com dignidade. Todo o dinheiro teve essa finalidade e, no dia de sua solenidade obrigatória de colação de grau, tudo o que restava eram 200 reais. Apesar de toda a dificuldade e com a força do desespero o guiando até o final da faculdade, Iago chegou lá. Tendo de se concentrar apenas em sobreviver durante o curso e em manter seu lar em sua parte final, não sobrou tempo para pensar na formatura e isso não seria nada para ele em comparação a sua conquista se não fosse outra atitude de sua mãe. Desempregada, ela não poderia ajudar a custear a festa sem comprometer as
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poucas economias, ou ao menos foi isso o que ele imaginou. Na mesma época, o irmão mais novo ganhou um moderno Xbox. Essa indiferença gritante a que era submetido só começou a mudar dois meses após se formar, quando conseguiu um emprego e passou a ser oficialmente o mantenedor da casa. A necessidade e a possibilidade de não arcar com as despesas fizeram com que ela passasse a tratá-lo realmente como filho, um tratamento com carinho mesmo que fosse um disfarce para o interesse. Por conta da nitidez com a qual a situação se apresentava, ele nunca teve como fingir não a enxergar, até por não ser o suficiente para compensar uma vida de mágoas e ausência, e se enraivece. Porém, para quem nunca soube o que era o carinho materno é como avistar um oásis no meio do deserto: pode até ser uma miragem, mas é impossível não se apegar àquela esperança. Esses sentimentos diametralmente opostos são hoje a maior fonte de conflitos internos que ele possui e que se refletem em seu dia a dia. Em 2019 ele conheceu Amanda, sua atual namorada. Em pouco mais de cinco meses de relacionamento, eles passaram morar juntos com ela se mudando para a casa dele. Ela é pedagoga, trabalha com educação infantil e é a única pessoa com quem ele consegue se abrir e contar o que sente. Não é um relacionamento perfeito, Iago possui marcas muito profundas que pesam em sua personalidade. Todo o percurso até aqui o deixou inerte em relação a se expressar. As brigas com a mãe o deixavam transtornado e ele se tornava agressivo. Não com os outros, mas consigo mesmo e com objetos. Socava armários e paredes, chorava e se punia por gostar tanto de alguém que só o enxergava com interesse. Esses rompantes temperamentais assustavam Amanda e eram uma constante pedra no namoro.
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A idade, porém, trouxe amadurecimento e lhe permitiu enxergar as nuances e possibilidades que se apresentavam. Passou a conversar com ela, contar sua história, o que sentia, o que pensava. Enxergou nela alguém com quem poderia se revelar por completo sem medo de represálias e se permitiu mudar para não perder a preciosidade que encontrou. Obviamente não é fácil mudar, mas ele tenta. Conseguiu em poucos meses, e com muita força de vontade, controlar as explosões raivosas, mas é sempre necessário canalizar os sentimentos que sentimos para que eles não nos sufoquem. Ele se tornou uma pessoa muito sensível que acaba deixando se afetar até pelo simples tom de voz de uma maneira mais exagerada do que seria o ideal, o que também acaba gerando problemas. Hoje, a vontade de mudar é sua guia. Seu desejo é ser uma pessoa em quem possam confiar e com quem possam contar. Alguém que não provoque nos outros os mesmos sentimentos negativos que sempre lhe provocaram. Suas cicatrizes não podem ser esquecidas e ignoradas porque são aquilo que o motiva a ser uma boa pessoa que ama e compreende a dor alheia. Apesar de se encontrar no caminho que deseja, sua vida continua atribulada. Seu avô, a pessoa que lhe proporcionou um dos momentos mais doces e ternos ao criar a poupança que lhe permitiu cuidar da casa e dos estudos, sofre de Alzheimer e não consegue mais se lembrar do neto, apenas de acontecimentos muito antigos; a mãe ainda o trata de maneira interesseira e dependente; e a namorada sofre com seus deslizes enquanto tenta se transformar em quem quer ser. Ele sabe que Amanda é, hoje, seu porto seguro, mas também enxerga que a sobrecarrega e que uma pessoa é incapaz de carregar os traumas dela e de outra. Em mais um passo em busca de ser alguém melhor, começou a fazer terapia.
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♦♦♦ Uma coisa precisa ser dita sobre o perfil de Iago: sua história não foi contada diretamente por ele mesmo. A dificuldade em se expressar e falar sobre os acontecimentos de sua vida e as sensações que o atingiam no momento permitiu que ele apenas contasse tudo para Amanda que, aqui, agiu como sua porta-voz. O descaso e a sua repressão sentimental voluntária acarretaram uma repressão subconsciente ainda maior. As perguntas para a confecção do perfil o abalaram, mas não por serem pesadas e incisivas, e sim por o forçarem a encarar seu interior e verbalizar aquilo que guarda a sete chaves dentro do peito. Mesmo com Amanda, houve uma demora para essa abertura. Uma confiança precisou ser estabelecida e o conforto precisou ser instalado em seu relacionamento. Ainda assim, toda sua história não foi contada em uma única torrente. Fragmentada e espaçada ao longo dos meses, o tempo foi seu aliado para a criação de uma voz que viesse de dentro. Com a entrevista foi igual. Dias de reflexão introspectiva se mostraram necessários para a elaboração de cada uma das respostas e, ainda assim, ela surgia de forma objetiva e prática, sem o aprofundamento que se insinuava. Como dito pelo psicólogo Morais Jr., o desenvolvimento da alexitimia depende da resiliência da pessoa diante das situações a que ela é submetida ao longo da vida e, uma vez que passa a fazer parte da vida da pessoa, o isolamento emocional que ela acarreta causa impactos em seu dia a dia. Com Iago, sua resiliência aparenta ter sido minada desde a infância com a ausência de demonstrações de afeto e, não conseguindo se expressar concretamente, os arroubos agressivos se tornaram sua
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ferramenta prioritária para extravasar o que guardava dentro de si. Capaz de falar abertamente apenas com a namorada, pode-se dizer que ele se encontra em um estado de isolamento emocional e a situação é difícil não apenas para ele, que possui essa mordaça invisível impedindo que seu coração fale, como também para quem convive com ele. Para Amanda, às vezes é muito difícil lidar com seu temperamento: “Se não fosse o diálogo que nós mantemos, seria impossível. Seria uma relação insustentável. Se com todas as conversas possíveis, já é uma situação complicada, imagina se a gente não falasse. São muitos pesos que ele carrega da vida, uma carga de estresse muito grande em relação a trabalho, em relação a família”. A questão da virilidade masculina também aparece em certo grau. Farmacêutico, ele trabalha o dia inteiro em pé, o que acaba sendo fisicamente desgastante, mas lhe é cobrado que não se canse, que sempre esteja disponível para ficar lá e sempre aguente a rotina já que o trabalho dignifica o homem. Muitas vezes, porém, ele diz estar no limite e que não aguenta mais. Chega perto de chorar e só não o faz por conta dessa romantização do sacrifício profissional e do estereótipo masculino, já que ele vê outros homens em seu ambiente de trabalho que passam pela mesma situação e se “mantêm firmes”. “Como ele não é uma pessoa que costuma se abrir e se expressar, quando acontece alguma reação mais passional a respeito de algum acontecimento, geralmente é uma reação mais explosiva. Quase nunca é algo controlável”, comenta Amanda sobre como é quando ele transborda.
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Capítulo 4
Em direção ao sol Hit me like a ray of sun Burning through my darkest night - Beyoncé
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Como saber o que você é? Desde que nascemos somos afetados por algo que o sociólogo francês Émile Durkheim chamou de fatos sociais: estruturas sociais, valores e normas culturais que se perpetuam na sociedade e transcendem o indivíduo. Essas “regras” incutidas nos indivíduos determinam quais são as formas ditas “corretas” de agir, sentir ou mesmo pensar. Aquilo que foge a essa norma acaba sendo marginalizado ou hostilizado. O ser humano é um ser social. Sua estrutura psicológica não lida bem com o isolamento e a adaptação para que não fique sozinho é um fato rotineiro. Muitas vezes, entretanto, é difícil se encaixar. O escritor estadunidense Patrick Rothfuss3 escreveu em sua obra “O nome do vento” uma analogia que exemplifica: “Pense em termos de sapatos. Você não precisa dos maiores que possa encontrar. Precisa do par que sirva”. Um par menor machuca os dedos, um par maior provocaria tropeços e é essa lógica que rege o conforto de uma pessoa consigo mesma. Durante dezoito de seus dezenove anos, Guilherme Xavier, um adolescente como tantos outros, utilizou “sapatos” menores do que deveria. Homossexual em uma sociedade preconceituosa e que preza a virilidade heteronormativa, cresceu ouvindo desde cedo de seu pai, apenas por ser carinhoso e gostar de abraçar e demonstrar afeto, frases como: “Para de ser exagerado”, “para que fazer isso?”, “se comporta”. Tudo para que suas atitudes que fugiam dessa norma imposta como ideal de masculinidade fossem suprimidas. Era a erva daninha no jardim da família. Sua personalidade se desenvolveu à parte dos fatos sociais. Ainda criança brincava dos clássicos esconde-esconde, 1
3 Autor norte-americano de livros de fantasia. Suas obras “O nome do vento” e “O temor do sábio” foram aclamadas pela crítica e, na época de seu lançamento, figuraram na lista de mais vendidos no jornal The New York Times .
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pega-pega e polícia e ladrão, mas o que o divertia mesmo era dançar as músicas da banda paraense Calypso. Dançava, mas dançava escondido. “Quando não tinha ninguém, eu ia e dançava. Já tinha uma visão de que seria repreendido por conta disso. Que era errado”, relembra sem saber de onde havia surgido essa ideia. O fato social já era intrínseco em sua mente mesmo na mais tenra idade. Um misto de emoções tomava conta dele sempre que dançava. Quando com os primos, as únicas pessoas do ambiente familiar que o faziam se sentir seguro o suficiente para ser ele mesmo, sentia não só felicidade enquanto balançava o corpo ao som da música, mas também um grande medo de que alguém mais o visse. Foram essas duas emoções que o guiaram dali para frente. Em casa era retraído e tentava se adequar para evitar conflito. Longe dali, com os amigos, a coisa era completamente diferente: “Era bem gay. Afeminado. E era libertador ser quem eu sou sem medo e sem vergonha”. Em casa era a erva daninha, na rua era tal qual um antúrio que cresce na sombra. Sempre em contato com características consideradas femininas, pode-se pensar que a expressão emocional, uma vez que ele sempre gostou de demonstrar afeto, era uma de suas virtudes. O peso esmagador dos fatos sociais, infelizmente, suprimiu um lado dessa característica. Suas aflições e angústias ficaram entaladas em seu peito e sua garganta. “Tive que passar em psicólogo para pôr para fora. Eu guardava muito. Odiava chorar para as pessoas e até hoje tenho um pouco disso. Nem com amigos, nem com minha mãe. Com ninguém. Chorava sozinho. [Na minha cabeça] ninguém podia saber que eu tinha problemas.” Esse é um traço característico da alexitimia normativa
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masculina. Mesmo sabendo reconhecer os sentimentos, não se alcança um local seguro para que eles sejam verbalizados. O não expressar vem do medo do julgamento externo. Durante dezoito anos, mesmo que as pessoas soubessem, Guilherme não chegou a se assumir. Quando finalmente fez isso ao atingir sua maioridade, o intuito foi criar esse ambiente para si mesmo, um lugar em si que o fizesse se sentir seguro para falar as coisas que tinha para falar: “Quando me assumi, senti que precisava parar de seguir um padrão imposto por alguém. Que precisava seguir meus preceitos, minha mente e minha cabeça”. Ele não era a erva daninha nem o antúrio. Não era o que lhe diziam ser nem o que fingia ser. Mesmo com os amigos, que eram as pessoas que o apoiavam, ele sentia medo de mostrar um lado diferente que não fosse o animado ou o alegre. Esse descompasso o levou a lidar por quatro vezes com a depressão. Sem conseguir falar, sem sentir o paliativo do álcool ou das drogas, o autoflagelo passou a ser sua válvula de escape. A tentativa de suicídio que se encontrava no horizonte não demorou a chegar... Tal como o psicólogo Morais Jr. disse, uma pessoa que está sozinha mesmo em meio a uma multidão, passa por algo terrível. Guilherme, por sorte, não teve um fim trágico. A música e a dança aliadas à terapia psicológica acalmaram sua alma e possibilitaram uma recuperação. As cantoras Pabllo4 e Beyoncé5 se tornaram seu escape e salvam diariamente sua vida. Hoje, apenas um ano depois de ter mostrado ao mundo quem realmente é, Guilherme fala sobre todas as questões que 2
4 Cantora drag queen brasileira e ícone do ativismo LGBT 5 Cantora, compositora, atriz e produtora norte-americana. Símbolo da cultura negra e dos movimentos sociais feministas e LGBT.
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passou em sua vida, mas seu movimento de abertura ainda é tímido. Existe um acanhamento para se aprofundar em cada um dos aspectos. Uma característica natural, afinal, dezoito anos guardando as dores e aflições dentro de si não mudariam completamente tão rápido. Seu desejo por uma mudança completa, no entanto, norteia seu pensamento. Em um resumo rápido sobre a maneira como ele enxerga o antes e o depois desse momento de abertura, ele diz: “Antes de me assumir eu era retraído e vivia com medo e aflito. Depois disso passei a me sentir livre, feliz e de bem com a vida. Sem medos e sem receios, só sendo eu mesmo. Linda e com muito glitter! A única Beyoncé desse Destiny Child”. Halo, uma das músicas de maior sucesso da carreira de Beyoncé, possui um trecho que diz:
Atingiu-me como um raio de sol Queimando na minha noite escura
Nem erva daninha nem antúrio. Resistente e sobrevivente de uma pressão psicoemocional gigantesca, Guilherme talvez seja uma babosa. Além de sobreviver às intempéries, ela deixa o cabelo brilhante e sedoso, tal qual o da sua musa.
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Capítulo 5
Cara, você perde; coroa, também With downcast eyes There’s more to living than being alive - Anberlin
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E se alguém não houvesse nascido da maneira como se enxerga? Mais do que sua personalidade se encaixando em um dos lados da moeda da feminilidade e da masculinidade, o seu corpo se identificando com seu oposto e a estrutura social o limitasse? Corpo e mente com o dobro de uma carga que já é naturalmente pesada. Crescer tendo uma construção de gênero forçada em si apenas por ter nascido com determinado sexo biológico, não se identificar com essa construção e ainda possuir uma orientação sexual que não se encaixa no gênero imposto é exatamente a situação em que se encontra o jornalista paulistano, de 25 anos, Nicolas Carvalho. Desde bem cedo, ainda criança, por ser biologicamente mulher, as imposições de roupas, brinquedos e modos de agir foram sendo feitas na vida do jornalista. Era necessário estar sempre de vestidinho, brincar com bonecas e se portar com delicadeza, porque é assim que a sociedade enxerga como sendo a maneira correta de uma mulher se apresentar. Essas imposições, entretanto, nunca caíram muito bem em Nicolas. Nada disso era o que ele desejava para si, nada era o que ele gostava. A única coisa que toda essa imposição acarretava era sofrimento. A dor de não poder ser quem considerava ser e de não ter os limites do próprio corpo respeitados pelas opiniões de fora. “Eu sabia que tinha algo diferente comigo, porque sempre odiei tudo que é imposto pela sociedade como sendo de menina, principalmente as roupas. Sempre odiei saias e vestidos, e toda vez que me obrigavam a usar eu chorava bastante. Na adolescência isso permaneceu, apesar de eu tentar mudar minhas vestimentas para não sofrer bullying e me encaixar com as demais pessoas da escola, por exemplo”, relembra Nicolas. “Eu só entendi o que era ser trans na faculdade, quan-
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do abri minha mente e tive mais contato com uma diversidade maior de pessoas. Ali ficou mais claro para mim e comecei a conversar com as pessoas sobre isso”, completa. A idade limitava. De nada adiantava não gostar e externar isso se a autonomia para as decisões não existia. Os pais cuidavam e os pais decidiam. Foi aí que a voz começou a ser emudecida. Externar e não conseguir resultados faz com que a economia de energia passe a vigorar em primeiro plano ou então o estresse pelo bate-boca impera. E foi dessa maneira que ele chegou à adolescência que, além de toda a carga já preexistente, trouxe junto a cobrança dos relacionamentos amorosos. Talvez as pessoas não saibam a força do golpe que desferem com a clássica pergunta “e os namoradinhos?” feita pelos tios e tias nos almoços de família. “Era bem difícil, porque ninguém sabia que eu não sentia atração por homens e muito menos que era um homem trans e, naquele momento, eu não podia me abrir.” Mas por que a abertura não era uma opção se ele era visto como uma mulher e é esse emocional mais apurado que a sociedade espera delas? Apesar de não saber ainda ser, era como um homem que ele sempre se sentiu: “Diversas vezes eu me imaginei com barba na frente do espelho. Sempre tive sentimentos assim”. A pressão pela introspecção emocional masculina que gera uma certa atrofia, já o havia atingido. É algo socialmente intrínseco. Assim como Guilherme sabia que a dança lhe traria problemas, os exemplos ao redor de Nicolas lhe serviam como espelho e ele absorvia aquela informação: homem não chora e não reclama. Se ele se sentia assim, era assim que deveria agir. “[Não podia me abrir] primeiro porque não me sentia confortável e segundo porque morria de medo de ser expulso de casa ou sofrer alguma agressão.” Esse sentimento de desconforto não era algo exclusivo
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para o ambiente familiar. Mesmo com amigos isso era rotineiro e só fazia a atrofia se agravar mais e mais: “Nunca senti confiança em ninguém para falar sobre como me sentia em relação às críticas que sofria pelo modo de ser ou de me vestir, tinha medo de ser julgado da mesma forma que eu era pelos meus parentes”. Esse ponto em específico exemplifica bem a alexitimia normativa masculina atrelada ao que se compreende como masculinidade. Mesmo tendo crescido e sido criado sob uma perspectiva diferente, o ambiente lhe mostrava como era o outro lado e mostrava outro padrão a ser seguido, um que não lhe causasse tanto desconforto quanto aquele que já lhe era imposto. A palavra-chave, inclusive, é desconforto. Porque ainda assim não um local receptivo e aconchegante: “A partir do momento que você diz que é homem, as pessoas sempre vão esperar que você tenha uma masculinidade padronizada, mas não me apego a isso. Eu tento ser diferente dos homens cis héteros que, em sua maioria, carregam o estereótipo de machistas, preconceituosos e etc. Acho que a partir do momento que faço parte de uma minoria que sofre diariamente, preciso ter consciência que não posso fazer parte de uma massa que age fora dos meus princípios”. Durante toda sua vida até aqui, mesmo se identificando como tal, a figura do homem e dessa masculinidade vigente provocam esse desconforto em Nicolas. Suas amizades, por exemplo, são predominantemente compostas por mulheres. A quantidade de homens com quem ele possui algum relacionamento é contada nos dedos. Muito dessa maior interação com mulheres tem relação com os princípios ditos anteriormente: “Eu sempre tive muito mais amigas do que amigos. A maioria dos homens carrega em si estereótipos de machismo muito evidentes e isso me incomoda, eu prefiro evitar esse tipo de amizade, apesar de
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ter amigos homens”. A masculinidade hegemônica e, consequentemente, o machismo, criaram o medo de sofrer represálias por parte dos homens. Esse é outro dos motivos pelos quais os relacionamentos pessoais de Nicolas são mais presentes com mulheres. E mesmo que não chegue a algum tipo de agressão física, o machismo gera um preconceito inerente ao seu tipo de masculinidade. Apesar de se ver e ser cobrado como homem por se identificar assim, a sociedade não o trata da mesma maneira que o cobra. Ela engole a seco e não destina os mesmos privilégios que o homem cis hétero possui. Riscos e discriminação são parte da rotina. Embora não julgue ter mudado a forma com que se relaciona com as pessoas por conta de sua transição de gênero, é perceptível que o ambiente influenciou inconscientemente, e em certo grau, sua forma de agir e de pensar, assim como ocorre com os homens cisgênero. No fim, mesmo que existam outros fatores além do estereótipo masculino, Nicolas é mais um homem com dificuldades de verbalizar o que sente: “Eu tenho dificuldade para me relacionar tanto profissionalmente, amigavelmente ou amorosamente, por medo. Tenho receio de passar por situações que me deixem constrangido, ofendido e que me permitam ter crises, já que sofro de ansiedade e depressão. Eu me fechei muito no meu mundo”. Se fosse possível Nicolas jogar cara ou coroa com a sociedade e de um lado da moeda estivesse a feminilidade e do outro a masculinidade, não importaria o que ele escolhesse, ele perderia mesmo se ganhasse. É uma estrutura brutal.
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Capítulo 6
As pérolas dentro das conchas I can’t hold back these tears Let me cry They say a man ain’t supposed to cry So I’ma let the song cry I’ma let my soul cry through these words - August Alsina
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Cavaleiros medievais são personagens muito presentes no imaginário popular contemporâneo. Os filmes os retratam com personalidades honradas e cobertos por uma armadura da cabeça aos pés. Como quase tudo que é levado para as telas do cinema, essa maneira de retratá-los é distorcida. Armaduras completas eram itens caríssimos que apenas os nobres mais abastados poderiam pagar. A maioria dos combatentes nas guerras medievais se valia apenas da roupa do corpo. Um ou outro utilizava couro curtido e alguns se valiam de uma cota de malha. As armaduras eram itens que, mais do que protetores, serviam para a exibição de riqueza. Essa ostentação aliada à sensação de segurança provida pelo conjunto de elmo, grevas e manopla, pode ter se diluído com o passar do tempo e incorporado outros aspectos da vida cotidiana do homem. Não é à toa que em tempos de redes sociais, os homens compartilhem sua imagem com a ostentação de bens materiais e um pressuposto de que nada os atinge. Resiliência física e mental. Uma armadura – embora frágil – construída através da imagem que ele reflete no mundo. Na Idade Média, apesar da proteção e da demonstração de poder e riqueza, as armaduras não eram nada práticas. Lutar com uma era tarefa quase impossível, uma vez que a mobilidade ficava muito comprometida. O mesmo princípio também transpôs o tempo. Essas armaduras construídas pelo homem de hoje comprometem o desenvolvimento natural do psicológico e do emocional ao se preocupar com o que os outros vão pensar e não com o que se precisa de verdade. Treinar a mente e o coração são passos importantes que se perdem ao utilizar uma armadura externa. Talvez o mais eficiente fosse aquilo que o boxeador norte-americano Floyd
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Mayweather6, um dos símbolos da virilidade masculina atuais, desenvolveu em seu estilo de pugilista, o philly shell. Ao cruzar um braço na frente de seu dorso, ele se fecha em torno de si mesmo e aguenta as pancadas por si só. Transforma a sua vulnerabilidade em sua defesa. Falar sobre o que se sente é um exercício de abertura emocional, mas mexer em algo rígido pode ser doloroso. É como subir em uma montanha russa e segurar firme na barra de proteção. Ao final do passeio, os dedos brancos de tanto esforço ficam rígidos e doloridos ao movimento de soltura. Abrir a mão, mesmo no chão firme, gera um reflexo para fechá-la novamente, como se aquilo fosse trazer uma segurança que não é mais necessária no momento. Treinar esse movimento ao longo da vida e refiná-lo com o passar do tempo pode ser uma solução, mesmo que seja contraintuitivo ao olhar o ambiente que cerca o homem desde que ele nasce. Os esportes liberam tensão, aliviam e divertem. Fazem bem para a mente e também para o corpo e por essa razão são tão praticados. Pecam, entretanto, nessa abertura emocional. Por mais que surjam durante a prática, principalmente nos esportes de grupo, aqueles xingamentos que lavam a alma, eles atingem somente a ponta do iceberg. A conversa e as artes são o ponto que ajudam a expressão daquilo que se guarda no fundo da alma. As artes, particularmente, demonstram um paradoxo social interessante: as mulheres são as ditas “emotivas”, mas quem mais produz arte são os homens. A União Brasileira dos Compositores (UBC), maior administradora de direitos autorais do país, em um levantamento sobre seus associados constatou que 86% deles são homens con1
6 Ex-pugilista norte-americano doze vezes campeão mundial por cinco categorias de peso diferentes. Encerrou a carreira invicto.
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tra apenas 14% de mulheres. Na Academia Brasileira de Letras (ABL), das 40 cadeiras, apenas quatro são ocupadas por mulheres. Uma pesquisa da Universidade de Brasília (UnB), aponta que entre 1965 e 2014 mais de 70% das obras literárias publicadas por grandes editoras foram escritas por homens. Em que pese o machismo inerente que envolve a questão da produção cultural no Brasil, é interessante notar como ele é antropofágico. Se de um lado temos a não expressão masculina, do outro temos aquelas que são incumbidas do lado emotivo de nossa sociedade sendo podadas daquele que lhe designaram como seu local de destaque. Essa disparidade numérica com todos os seus inúmeros defeitos a serem corrigidos, gera ao menos um ponto positivo: acaba sendo um local seguro para a expressão masculina. E a arte ensina. Em um futuro, esperemos que não um muito distante, a consciência sobre si e sobre o mundo que ela gera pode vir a alterar o estado das coisas. Alan Giassi Soares, conhecido como o rapper Apolo, importante nome da cena rap nacional compondo canções interpretadas por figuras como Rael da Rima7, Rashid8 e Emicida9, é um nome que representa essa mudança que a autopercepção pode causar em um homem que aprende a se expressar. Ainda moleque, no sul paulista, cresceu escutando os discos de gêneros variados dos pais: do samba ao rock setentista; música gringa à MPB. Brincava de gravar tapes com as antigas fitas cassete até que conheceu o skate e com ele o hardcore, o 2
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7 Um dos principais nomes da cena do hip hop brasileiro. Antigo membro do coletivo Pentágono. 8 Rapper e produtor musical paulista. 9 Cantor, compositor e empresário brasileiro. Suas marcas são conhecidas por darem representatividade para a comunidade negra.
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rap, o reggae e diversas outras influências. Foi aí que sua veia compositora começou a surgir: “Eu comecei a escutar e a me identificar muito. Lembrei que na escola eu era bom de fazer poesia e me identifiquei com o rap, porque falava das coisas que eu vivia, e comecei a escrever umas letras assim”, relembra. O rap trouxe mais do que a identificação da realidade na qual estava inserido, ele abriu as portas para que ele pudesse mudar e tornou possível a fuga dessa armadura silenciosa que envolve a masculinidade. O primeiro ponto atacado pelo estilo foi a timidez: “Comecei a compor na adolescência e eu sempre fui uma criança tímida. Eu retraía um pouco as emoções, guardava para mim”, conta Apolo. Apesar de ainda se considerar uma pessoa tímida, ela não é mais um limitante em sua vida. Em seus shows, quando está no palco rimando, mesmo com toda a atenção voltada para si naquele momento, é ali que quase toda essa timidez o abandona e isso porque o reconhecimento de seu trabalho e sua mensagem, aquilo tudo que ele tem em si e quer transmitir, viram seu foco e seu apoio: “A partir do momento que eu comecei a escrever e comecei a, de certa forma, ser reconhecido por isso, foi uma injeção de autoestima e de confiança. Então eu passei a ser um pouco menos tímido”, completa o paulista de Iporanga. A música colocou uma pedra na pessoa retraída que ele era na infância, não apenas por personalidade, mas também por ambiente: “Eu comecei a pôr para fora minhas emoções, minhas aspirações, meus ideais e a defender esses ideais através da música”, conta Apolo. Ele ainda vai além: “Compor para mim sempre me ajudou bastante até a tentar me entender um pouco. Depois que a música já está pronta e lançada, às vezes você revisita ela após uns anos e ela serve para você mesmo”. Um dos tabus da masculinidade hegemônica que é cultuada hoje é o de homens não se abrirem com outros homens.
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Essa é outra armadura da qual Apolo se despiu graças à música. Algumas de suas obras mais conhecidas foram produzidas em parcerias com outros expoentes do rap nacional. A letra de Uma Chance, interpretada por Rashid, foi criada por um trio composto por Apolo, Rashid e Rael. Três homens que falam: Repensa o plano, a função Pergunta se haverá outra chance ou não, pelo amor Quando vê, seus melhores dias ficaram no retrovisor Sua vida no liquidificador, e talvez seja tarde demais Pra pensar Que é tarde demais pra voltar, covarde demais pra Aceitar Uma letra que expressa a admissão do caos, quem sabe até do fracasso. Três homens que não tiveram vergonha em exibir medos e temores um na frente do outro nem para uma multidão de rostos desconhecidos. “[Quando você compõe] é pessoal, lógico, mas acaba sendo meio impessoal porque você traduz ali”, reflete o rapper. A arte, então, age como um haltere, como os que Mayweather usa para fortalecer o braço. No caso, aqui, ela fortalece não um músculo, mas a alma: “Não querendo separar a obra do autor, mas, pelo menos para mim, você acaba se sentindo um pouco protegido pela obra, pela arte, para poder dizer coisas que você não diria numa conversa ou numa troca de ideias”, completa Apolo. “Eu vejo que vários amigos meus da minha geração, que não fazem música e não viveram esse universo da arte, são, com certeza, bem mais retraídos do que eu nessa questão emocional, de não deixar transparecer a emoção. A gente vive numa sociedade machista em que o ho-
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mem tem que ser forte, viril e não pode chorar, tá ligado? Então isso com certeza me desconstruiu e os meus amigos que fazem música, que faziam música da adolescência para a idade adulta, também. A música com certeza ajudou a gente a construir uma personalidade menos ligada a esses estereótipos de machismo, racismo, xenofobia, preconceito e todas essas paradas. Com certeza me fez ter a mente um pouco mais aberta. Mais do que a galera da minha geração.” ♦♦♦ “Não tem conversa mais gostosa do que aquela em que você se coloca vulnerável.” É assim que o escritor Jader Pires, oriundo de Santo André, no ABC paulista, resume a posição em que se coloca em seus textos. Escrever pode ter finalidades diferentes. Para Apolo era se expressar, para Jader é observar. Juntas, essas duas características são os principais pontos afetados pela alexitimia. Não entender o que se sente também desloca a percepção sobre o que o outro sente. Vulnerável não como se a armadura fosse completamente despida e ele se tornasse o rei nu de Andersen10 no meio da multidão. Vulnerável por permitir que vejam o que ele pensa sobre outros e as percepções que faz sobre as coisas que lê, mais do que sobre as coisas que sente. O rei da fábula dinamarquesa fingia inteligência cognitiva para enxergar uma roupa que só os sábios seriam capazes de ver. Jader não pode fingir inteligência emocional para interpretar os objetos de sua observação. Autor dos livros de contos “Ela prefere uvas verdes” e “Do Amor”, um compilado de tex5
10 Hans Christian Andersen, autor da fábula “A roupa nova do rei”, publicada em 1837.
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tos publicados em sua coluna quinzenal homônima (antigamente publicadas no site Papo de Homem e hoje em seu site pessoal), e do romance “Deserto Negro”, sua escrita se vale muito do que ele capta ao seu redor. Fingir a emoção não causaria a sensação, que por sua vez é o objetivo de seus textos. Há uma forma curiosa que envolve os contos de sua coluna. Apesar do nome Do Amor, o foco não é esse sentimento. O amor é uma emoção idealizada e vista com certa nobreza. Um grande amor é arrebatador. Ele tira o fôlego, deixa sem chão, entorpece a mente e dispara o coração. Ou pelo menos é isso o que boa parte da cultura tenta ensinar, mesmo quando ele sai do âmbito do amor romântico. Jader usa o amor como pano de fundo e o pincela com camadas de sujeira e toques de realismo. Faz do mais nobre dos sentimentos apenas o background e o permeia com detalhes rotineiros da vida de qualquer pessoa. Se a alexitimia impede que a pessoa reconheça o que sente e impossibilita que ela fale sobre o que assola seu peito, a obra de Jader faz o percurso inverso. É necessário muita compreensão emocional para sair do macro e enxergar os detalhes. Achar o amor em um plano de saúde como no conto: “Portanto, o que o plano de saúde uniu, ninguém separa”, ou na vontade de organizar uma casa pós-festa como em: “É amor só quando ajuda na ressaca”, exige conhecimento. É preciso saber exatamente o que é o amor ou, pelo impossível da causa, ter ao menos uma ideia própria muito concreta sobre o assunto. Hoje com 36 anos, Jader cresceu envolto em arte. A literatura presente em sua vida desde os primórdios, aprendendo a ler com um gibi da Turma da Mônica e crescendo desejando ser músico: “Queria ser compositor, queria ser músico, queria fazer grandes letras”, relembra o escritor. A vida, entretanto, o levou por outros caminhos durante alguns bons anos. Foram sete anos como bancário, com a burocracia atacando sua cria-
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tividade, que por sua vez tentava se esquivar escrevendo aqui e ali. Durante quatro anos conciliou textos em blogs com o trabalho formal. Hoje, com suas publicações, ele possui uma ideia muito clara do que quer transmitir. Embora diga que apenas uma pequena parcela do que escreve são experiências pessoais e quase tudo se baseia no seu olhar, ele tem uma mensagem clara, pois sua escrita lhe permite uma abertura para contar que existem caminhos: “Não quero falar: ‘Olha, vai por esse caminho’. Não, eu quero mostrar que existem caminhos diferentes, inclusive ser o homem machão, o esportista, o testosterona. Existem outras possibilidades, então você pode ser outros homens”. Se a armadura transmite uma sensação de segurança, a vulnerabilidade pode vir a ser positiva e transmitir acolhimento: “Acho muito bom estar vulnerável. É um privilégio. Infelizmente muitas pessoas não podem, não têm a possibilidade e a abertura de se colocarem [nessa posição]. Quando você se coloca vulnerável, a pessoa sente esse ímpeto de se aproximar. Ela vê que ela não está conversando com alguém que está acima ou com mais razão ou com mais potência de absolutamente qualquer coisa. Então eu acho que os meus textos se aproximam mais das pessoas justamente por serem textos escritos por alguém que se coloca numa posição vulnerável. As pessoas se aproximam, sabe?”
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Capítulo 7
Percepções O que é, o que é? Clara e salgada Cabe em um olho e pesa uma tonelada - Racionais MC’s
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Mesmo que os homens sejam mais afetados pela alexitimia por conta do ambiente social em que se encontram, é sempre necessário lembrar que esse culto à masculinidade hegemônica não afeta única e exclusivamente o homem, muito pelo contrário. A principal válvula de escape emocional masculina é a mulher, seja ela uma amiga, mãe ou irmã. Isso se dá por conta também dessa visão social de que a mulher é mais frágil, sensível e ligada ao emocional. A intimidade conquistada entre um homem e uma mulher permite que o relacionamento de ambos sirva, em certo grau, como uma muleta emocional para ele. Essa estrutura social tão abertamente explicitada até aqui torna as mulheres suscetíveis a uma insatisfação diferente. Mesmo sendo ensinadas a entenderem as emoções, lidar com a bagagem emocional de outra pessoa pode vir a ser um fardo que nem sempre estão dispostas a carregar. É importante enxergar a alexitimia masculina também pela ótica feminina, até mesmo para entender se os temores dos homens, de serem vistos como fracos e vulneráveis, condizem com a visão de mundo delas. ♦♦♦ Aos 24 anos, a paraibana radicada em São Paulo Myrelle Torres da Silva, ou Myh, como ela prefere ser chamada, é formada em Letras e trabalha como atendente de telemarketing e em pequenos projetos de tradução e revisão de textos enquanto desenvolve seu verdadeiro projeto de vida: escrever um livro. Quem a olha pela primeira vez pode acabar tendo uma visão distorcida de sua real personalidade. O cabelo longo, as roupas escuras, as tatuagens, o gosto por maquiagens que remetem ao gótico e o rock pesado que escuta e demonstra com suas
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camisetas de banda passam uma imagem agressiva e sombria. Entretanto, nada poderia estar mais distante da realidade. Apesar de seu estilo forte, a verdade é que Myh é uma daquelas almas sensíveis que leem o mundo de maneira mais passional, porém esconde essa personalidade atrás dessa fachada mais pesada. Romântica e emotiva – chorona até –, ela cresceu sem o pai e com a mãe sendo a maior referência dentro de casa. Em seu seio familiar, as figuras masculinas que lhe serviram de exemplo foram o tio, irmão de sua mãe, e seu irmão mais novo. O tio tem grande influência nos gostos que ela desenvolveu ao longo da vida. Foi ele o incentivador de sua caminhada pelo lado geek da sociedade e a gostar de HQs, animes e mangás – como as tatuagens dos personagens Naruto11, da obra homônima, e Guts, de Berserk12, bem revelam – e são esses gostos que movimentam seus círculos sociais hoje em dia. Suas preferências, por sua vez, influenciaram seu irmão que cresceu tendo ela como referência maior dentro do lar. Essas imagens e referências próximas possuem um poder influenciador bem forte em sua história de vida, entretanto, o papel social presente em tais influências se apresenta de maneira tão ou mais sólida. Mesmo tendo ajudado na criação do irmão e sendo seu espelho, suas personalidades são diferentes quando se trata de emoções e sentimento. Enquanto ela é aberta e só esconde isso das primeiras impressões de quem a conhece, seu irmão acaba sendo mais fechado. “Homens têm tendência a reprimir o que sentem, a 1
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11 Mangá japonês escrito e ilustrado por Masashi Kishimoto que aborda um mundo fantástico povoado por ninjas. 12 Mangá japonês para maiores de idade escrito e ilustrado por Kentaro Miura sobre um mundo de fantasia obscuro fortemente inspirado em uma Europa medieval.
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não demonstrar muito, seja sentimento de tristeza, de dor ou até mesmo amor”, é a conclusão à qual ela chegou. Sua definição para a relação que possui hoje com o irmão é de companheirismo. Assuntos profissionais e o universo geek são os principais tópicos de conversa entre eles. Os assuntos sentimentais não entram em pauta mesmo que em certas ocasiões ela o olhe e reconheça a necessidade de alguma ajuda que ele não externa. Nessas horas, o que ela faz é avisar a mãe e “terceirizar” o apoio: “Até hoje ele se sente mais confortável em conversar com a minha mãe sobre diversas coisas. Coisas da vida, coisas da escola, até mesmo os assuntos amorosos”. Com o tio, a relação foi se tornando distante com o passar do tempo e com a chegada da adolescência. Questões mais íntimas e emocionais não eram o forte dele, então os assuntos nesse sentido, da mesma forma que aconteceu com seu irmão, eram tratados com a mãe. Hoje, a figura masculina mais próxima que possui é o namorado, Erik Alan, de 29 anos. A dinâmica da relação sempre precisa de uma iniciativa dela, desde o início do namoro, quando ele achou que a simples rotina já havia definido o início de um comprometimento mais sério, mas que ela precisou intimá-lo a pedi-la em namoro e iniciar oficialmente, até as questões rotineiras: “Ele é muito falante. Ele fala pelos cotovelos, fala muito sobre qualquer coisa, com qualquer pessoa. Quando ele está chateado ou quando ele está para baixo, cansado, estressado, ele fica calado, não puxa muito assunto. É assim que eu percebo que ele está mal e aí eu vou e pergunto o que está acontecendo”. Sobre as questões sentimentais dele sendo abordadas nas conversas do casal, ela é sincera: “Eu sempre tenho que perguntar as coisas. Geralmente ele fala. Se você perguntar, ele fala, mas ele não é muito de ficar contando sobre as coisas que ele sente, as chateações. Isso é uma coisa predominante em
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homens, realmente”. Em se tratando das diferenças de comportamento nos seus relacionamentos com homens e mulheres, Myh enxerga claramente a repressão emocional da parcela masculina. Na faculdade, seu grupo de amigos era composto por cinco pessoas, contando consigo mesma, sendo ela a única mulher. Fora desse ambiente, entretanto, suas amizades são predominantemente femininas. Com os amigos da faculdade, ela é como se fosse o ponto de apoio. Os assuntos sempre foram os mais diversos: como foi o final de semana de cada um, conselhos sobre relacionamento, papos acadêmicos e profissionais. Entretanto sempre houve um aprofundamento diferente entre eles. Os assuntos mais íntimos não eram abordados em grupo da mesma forma que os mais superficiais, ela era a âncora deles. “Entre eles eram sempre assuntos em torno de futebol, jogos, essas coisas. Comigo sobrava o assunto amoroso ou algo do tipo”, relata. A estrutura social se apropriava da dinâmica de grupo. Por ser a figura feminina, ela era o porto emocional deles, enquanto a superficialidade tomava conta dos assuntos de homem para homem, de modo a disfarçar a vulnerabilidade e exacerbar a virilidade. “Da maneira como falavam comigo, acredito que só [consigam falar] com mulheres. Eles podiam até falar sobre o assunto entre eles, mas era em um linguajar diferente”, explica e em seguida completa: “Comigo eles contavam mais detalhes, às vezes porque eu perguntava e insistia, mas no final das contas acabou sendo normal e eles falavam por si sós. Entre eles, se acontecia algo parecido era bem simples: ‘Ah, no final de semana peguei tal pessoa no carro’, era assim. Comigo não. Se eles fossem contar para mim, contavam mais detalhadamente, falavam do antes e do depois. Era diferente entre eles e eu”. Mesmo tendo essa característica mais aprofundada na
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relação com eles, algumas coisas ainda permaneceram envoltas por barreiras. Algum tempo antes de iniciar seu relacionamento com o namorado Erik, ela teve um affair rápido com um dos amigos da faculdade. Como sempre haviam sido próximos e carinhosos um com o outro, a coisa evoluiu, porém, houve um final abrupto. A primeira vez em que foram ter relações sexuais, a situação não se desenvolveu. Um trauma que ele possuía impediu que o momento fosse em frente. Seu órgão sexual, segundo ela, era pequeno e no momento em que ela percebeu, ele travou. Nada aconteceu ali e eles não tentaram outra vez. A questão da virilidade, ou da falta dela, se tornou intransponível e nunca tocaram no assunto. Já com suas amigas, mesmo as situações sexualmente constrangedoras sempre entram em pauta. “Essa história mesmo eu contei para as amigas, até porque eu queria saber como elas reagiriam se estivessem no meu lugar. A maioria delas concordou que era melhor deixar o assunto morrer e não tocar nele nunca mais”, explica. Seu círculo de amizades femininas lhe permite total abertura e compartilhamento de experiências, sejam elas positivas ou negativas, seja um relato individual ou para o grupo. É uma dinâmica contrastante da existente com as amizades masculinas que se policiam mais e precisam de incentivo e privacidade. Outro ponto contrastante que ela enxerga entre as realidades masculina e feminina são as lágrimas. Capaz de chorar por conta de um arroz queimado quando os hormônios atingem o clímax, Myh também vê constantemente as amigas se debulhando em lágrimas. Já com os homens: “[Ao ver um homem chorando] eu penso que ele deve estar no fundo do poço. Para ele chorar, o negócio deve ser muito sério. É essa a primeira impressão que eu tenho, mas depois, se você tem intimidade com
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a pessoa e consegue conversar com ela, você vê que às vezes é uma coisa bem simples. Eu já vi meu irmão chorar, por exemplo, depois de uma briga familiar. Ele ficou chateado e chorou de raiva, de intolerância”. Com o namorado, entretanto, embora já o tenha visto derrubado, ao puxar pela memória, ela só foi capaz de dar uma resposta: “Eu nunca vi ele chorando”.
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CapĂtulo 8
A coletividade e a linguagem da sociedade
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No trailer para o especial de stand up do humorista estadunidense Dave Chappelle, Morgan Freeman, em uma narração com sua icônica voz em uma quase reinterpretação de seu papel de Deus em Todo Poderoso13, se refere ao humor e ao julgamento que as pessoas fazem a respeito das piadas com a frase: “Se você disser alguma coisa, estará arriscando tudo”. Embora o contexto seja diferente, essa frase pode ser encaixada com precisão no modo de expressão que reverbera na masculinidade atual. Falar é arriscar mostrar ao mundo que a sua fachada não é, necessariamente, aquilo que você carrega do lado de dentro. Não falamos porque a sociedade julga e massacra o diferente. A masculinidade é questionada toda vez em que o homem se aproxima da feminilidade ou de características rotuladas como femininas. A série documental Move: O mundo da dança14, escrita e dirigida pelos franceses Thierry Demaizière e Alban Teurlai, possui uma passagem muito marcante a esse respeito. Nela, o dançarino Charles Riley, conhecido como Lil’ Buck, que já figurou entre os 25 maiores dançarinos do mundo, conta que na infância, ao se matricular em uma escola de balé para aperfeiçoar seus movimentos, recusou veementemente utilizar as calças de bailarino. Por mais que os professores explicassem que ela permitia que enxergassem as linhas corporais e corrigissem seus erros, a recusa surgia pela imagem que ele passaria na comunidade em que vivia. A aproximação da figura do feminino é um tabu na masculinidade porque, como diz o psicoterapeuta pós-graduado em neurolinguística Diego Santos Gonçalves, a figura do 1
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13 Bruce Almight, no original. Filme de 2003 estrelado por Jim Carrey e Morgan Freeman. 14 Série documental de 2020 produzida pela Netflix que aborda o mundo da dança.
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feminino é vista como inferior. Para ele, a abertura emocional maior que os homens possuem com suas companheiras ou com alguém do sexo feminino se dá por só ser possível demonstrar vulnerabilidade em frente a alguém que a pessoa não considere uma ameaça. Homens não se abrem com outros homens por medo de alguém lhe tomar aquela posição. Vista como inferior, que mal a mulher poderia lhe causar? Mesmo que ela explane para o mundo aquilo que ele lhe confidencia, a sociedade tende a desacreditar as mulheres ou a não marginalizar os homens da mesma forma que as marginalizaria em suas punições ético-morais. É desse local que surgem as frases como “virar mulherzinha na cadeia”. Ser violentado sexualmente é ser colocado em uma posição inferior, tal qual uma mulher. Isso também se deve a uma característica mamífera de dominância através do sexo. Um cachorro demonstra sua superioridade em relação a outro quando o monta. É a mesma lógica aplicada ao ser humano. Daniel Welzer-Lang, professor e pesquisador da Universidade de Toulouse, na França, em seu artigo “A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia”, criou um termo denominado “casa dos homens”. Aqui, ele explica que, após se agruparem em grupos de meninos e iniciarem o que ele chama de homossociabilização, os homens entram em contato com a homossexualidade ao terem experiências eróticas coletivas que ocorrem longe dos olhares das mulheres e dos homens mais velhos. O tamanho da genitália, a apreciação de revistas pornográficas em grupos ou as competições ligadas ao tempo de masturbação criam um laço afetivo masculino que, em um resumo grosseiro, gera uma significação em que os homens amam seus iguais e transam com as mulheres. Desse ponto da estrutura social surgem iniciativas individuais ou de pequenos grupos que visam debater e tentar trans-
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formar o status quo vigente a partir de diminutas transformações plantadas para serem colhidas lá na frente como o portal Papo de Homem, no qual o escritor Jader Pires trabalhou por alguns anos ou o coletivo Ressignificando Masculinidades, que atua na capital paulista. Fundado pelo psicoterapeuta Fabio Sousa e administrado em conjunto com o psicólogo Danrley Pereira e com o ex-militar e atual florista Rafael Rios, o coletivo tem como objetivos a promoção da equidade de gênero, a desconstrução do padrão hegemônico de masculinidade e ser um local seguro para a expressividade emocional masculina. Quando Danrley passou a integrar e mediar o coletivo Ressignificando Masculinidades, ele possuía duas visões paralelas que se encontraram em uma intersecção e o impulsionaram. A primeira, de cunho pessoal, foi a questão do pertencimento: tendo crescido ajudando com as tarefas domésticas de casa, encontrou preconceito dentro da estrutura em que vivia – amigos e família – por desempenhar uma atividade vista como pouco masculina (uma atividade considerada feminina, em português claro). A questão da expressividade também estava intrínseca, uma vez que ele não possuía um local seguro onde pudesse verbalizar o que sentia. A segunda dizia respeito a questões profissionais. Ainda na faculdade de psicologia, ao se deparar com os índices de suicídio e a taxa deles entre homens, desenvolveu uma curiosidade a respeito do tema que, por sua vez, se relaciona com a inexpressividade emocional. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 76% dos suicídios ocorridos no Brasil têm como vítimas os homens. A junção dessas duas características que gostaria de investigar e desenvolver, levaram Danrley a participar desse trabalho de mudança. Mudança essa que requer tempo.
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O rapper Apolo diz que, de certa forma, a obra, a arte, protege o artista. Ao falar sobre o que sente em suas composições, há a possibilidade de, caso alguém o questione, ele dizer que é apenas uma música. Ou, levando ainda mais longe, ele poderia dizer que é fruto da sua persona, o Apolo, não algo que o Alan pensa, apesar de ser. A utilização de personas e pseudônimos é recorrente na arte: Nelson Rodrigues já escreveu sob o nome de Suzana Flag, Marshall Mathers, além de seu nome original também compõe músicas como Eminem e Slim Shady. Diego corrobora essa visão. Para o psicoterapeuta, o pseudônimo “afasta a pessoa da identidade dela mesma, ele é um personagem”. Com a persona, o artista passa a ser outro ser. “A persona permite essa liberdade. A prática cotidiana exige de você uma interação muito mais desgastante do que a prática da persona. Na persona há muito mais confiança do que na pessoa real”, complementa. É visando a ruptura dessas máscaras que grupos como o gerido por Danrley atuam. No espaço que ele medeia, há a segurança de que, ao se despir de amarras e escancarar a vulnerabilidade, haverá receptividade para com as dores e aflições tanto por parte dos anfitriões quanto dos outros participantes. Como diz o antropólogo Bernardo Machado: “Conhecemos muitas formas de ser homem. Há o afetuoso, o piadista, o agressivo, o não agressivo e etc. A ideia dessa forma hegemônica acaba sendo irreal com as práticas da existência humana”. O grupo se apresenta como local seguro para que essas outras maneiras de ser homem possam ser vividas e desenvolvidas. Muito embora a linguagem artística seja uma importante ferramenta expressiva e transformadora do indivíduo, é importante também que o homem rompa com outros estereótipos da masculinidade de uma maneira mais orgânica quando em perspectiva com a rotina diária. O grupo Ressignificando
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Masculinidades chega a receber cerca de 80 homens em alguns dos eventos, a maioria tendo sido apresentado ao grupo por suas companheiras que descobriram o projeto nas redes sociais e lhes indicaram. São homens de várias idades diferentes, com visões de mundo singulares e diversas outras características únicas, que debatem temas que os próprios participantes trazem. Das relações com o pai à pornografia; do desenvolvimento da paternidade à competição masculina. Todos eles assuntos inerentes ao que se enxerga como masculinidade nos dias atuais, mas que não são conversados abertamente entre o lado masculino da sociedade. Abrindo um pequeno parêntese, nesse ponto é interessante notar a influência das mulheres nessa busca por ajuda e na evolução pessoal dos homens, uma vez que a inferiorização delas é um dos sintomas. Esse é um olhar que Bernardo também possui quando afirma: “São os movimentos feministas e as pautas LGBT que indicam que é possível outras formas de masculinidade. Que é preciso mudar a postura para possibilitar um mundo um pouco mais democrático”. Ao se ter 80 homens em um ambiente voltado para a expressividade, é possível que ocorram travamentos por parte dos participantes. Como um homem que cresceu não se abrindo nem para o próprio pai vai se sentir confortável em se abrir na frente de 80 estranhos? A empatia para com a situação do outro é a chave para o funcionamento do grupo. Quem já está lá há mais tempo se propõe a falar e evoca uma sensação de segurança para o recém-chegado. Ele mostra que ali é um local em que, se alguém quiser falar, vai ser ouvido. E há pessoas que só escutam, uma característica que também faz falta ao homem contemporâneo que não pode admitir suas falhas. Alguns dos frequentadores do grupo batem ponto no local, mas nunca falam, apenas escutam e absorvem.
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Diego diz que é necessário desmistificar algumas características da masculinidade hegemônica: “Não é um privilégio ser forte sempre; não é um privilégio ser provedor. Esse falso poder que o machismo empodera o homem, na verdade, é uma cobrança da performance de uma perfeição que nunca vai ser alcançada”. E analisa: “É por isso que a taxa de suicídios é maior entre homens do que entre mulheres. Elas são educadas a lidarem com a imperfeição delas. Se errarem, elas já são vistas como pecadoras. O homem é a imagem e semelhança de Deus”. Quando o grupo se reúne e esses diversos homens se propõem a mostrar sua imagem falha, existe ali uma normalização e uma aceitação da imperfeição. Por que uma cobrança tão forte, tão pesada consigo mesmo se todos os homens ao seu redor demonstram ser tão falhos quanto você? O reconhecimento da própria limitação permite empatia. Danrley conta que por diversas vezes homens caem nas lágrimas nas reuniões. Seja por estarem se abrindo ou por conseguirem se identificar com a situação ou a dor de seu colega. E que nessas situações, o afeto através de um abraço do grupo e de uma palavra de conforto é o que faz a diferença. Geralmente quando o choro acontece, eles sempre se desculpam, como se fosse errado eles se mostrarem vulneráveis, mas é apenas um dos passos em busca da normalização dessa situação, porque, querendo ou não, humanos sentem e se emocionam, mesmo que a sociedade diga o oposto. “O grande ponto da masculinidade hoje, é lidar com a vulnerabilidade”, ressalta Diego. Grupos como o Ressignificando são ferramentas para lidar com essa questão. De acordo com Danrley, é perceptível a mudança dos frequentadores do grupo: “De não conseguirem se expressar no começo, ou se expressarem meio ansiosos, eles se transformam em pessoas que trazem assuntos semanalmente agora e pensam sobre como as
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coisas funcionam no dia a dia”. E são mudanças não apenas na verbalização, mas também em relação a atitudes deles e dos outros: “Se eles têm uma atitude machista, eles se percebem e se criticam antes mesmo de ter que ouvir a crítica de uma mulher, mas, se ela precisar falar, ele vai ouvir, não vai invalidar a fala dela”, completa Danrley. Há casos até de homens que não conseguiram manter o grupo de amigos antigo por identificar neles as atitudes nocivas da masculinidade e não estarem mais dispostos a retornar para aquele local. O próprio Danrley relata sua mudança desde que começou a organizar e mediar as reuniões do grupo: “Eu era muito tímido. Ainda sou, mas hoje me sinto mais seguro. Tenho mais humildade para ouvir as outras pessoas, de não ficar competindo com outros homens. Consigo também me expressar um pouco mais. Compartilhar as minhas emoções e pedir ajuda para os outros”. O coreógrafo israelense Ohad Naharin15 ao falar sobre se expressar através da dança disse: “Não nos olhamos enquanto vivemos”. Talvez isso seja ainda mais verdade no caso dos homens. Ao nos conhecermos e nos aceitarmos, ao nos revelarmos para o mundo com nossas falhas deixando de lado as convenções sociais, desenvolvemos empatia para com os erros, nossos e dos outros, e não raiva. Falar sobre o que se sente é importante não só para o indivíduo, mas para a sociedade. Ser racional é importante, mas só tendo contato com as emoções é que se vive de verdade. 3
15 Considerado um dos mais importantes coreógrafos contemporâneos do mundo e idealizador do método Gaga.
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Com quem os homens falam? Para quem eles se abrem e expressam seus medos, seus desejos, suas aflições e suas alegrias? A ideia de que eles não falam sobre o que sentem, principalmente os sentimentos negativos, é intrínseca na sociedade brasileira. Virilidade, força e resiliência, tanto física quanto emocional, são atributos esperados na masculinidade. Mas o que essa supressão causa? O que não falar sobre o emocional provoca na mente dos homens e em suas rotinas? “Ostras” aborda a alexitimia normativa nos homens – condição psicológica provocada pela estrutura social, em que eles não verbalizam suas emoções – e traz um vislumbre do que a abertura de suas conchas pode oferecer.