Revista Movimento (5ed - 2015)

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# questões sociais

# lúdico

# sincretismo

# valor da arte

# som

# representação

# percepção estética

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Revista discente do Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP DEZEMBRO 2015 [ISSN: 2238-8699]


NÚMERO 5 DEZEMBRO 2015

A Revista Movimento é um periódico científico semestral, organizado pelos alunos do Programa de Pósgraduação em Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP.

Universidade de São Paulo Reitor Marco Antonio Zago Vice-Reitor Vahan Agopyan ___

ISSN: 2238-8699

Escola de Comunicações e Artes Diretora Margarida Maria Krohling Kunsch Vice-Diretor Eduardo Henrique Soares Monteiro ___

___ Foto de capa: Frame do video Qi, de Carolina Berger Projeto editorial e diagramação: Raissa Araújo Revisão : Andréa C. Scansani e Edson Costa

Todos os artigos assinados são de responsabilidade de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista. A reprodução total ou parcial dos mesmos é autorizada, mediante apresentação de créditos. ___ Revista Movimento Escola de Comunicações e Artes ECA/USP Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais PPGMPA Av. Prof. Lúcio Martins Rodrigues, 443 - Prédio 4 Cidade Universitária - Butantã CEP 05508-020 São Paulo - SP - Brasil movimento@usp.br www.revistamovimento.net facebook.com/revimovi

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REVISTA MOVIMENTO | dez 2015

Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais Coordenador Rubens Machado Júnior Vice-Coordenador Eduardo Vicente Conselho Editorial Andréa C. Scansani, Carolina Berger, Damyler Cunha, Danilo Baraúna, Edson Costa, Marina Kerber, Raissa Araújo e Tainah Negreiros Conselho Científico Prof. Dr. Almir Antonio Rosa Prof. Dr. Cristian Borges Prof. Dr. Eduardo Morettin Prof. Dr. Eduardo Vicente Profa. Dra. Esther Hamburger Prof. Dr. Henri Gervaiseau Prof. Dr. Marcos Napolitano Profa. Dra. Mariana Villaça Profa. Dra. Marília Franco Profa. Dra. Patrícia Moran Prof. Dr. Ronaldo Entler Profa. Dra. Rosana Soares Prof. Dr. Rubens Machado Junior


Pluralidade audiovisual Conselho Editorial

A Revista Movimento chega à sua quinta edição dando continuidade ao debate acadêmico entre os discentes de alguns dos mais relevantes programas de pós-graduação do país que se dedicam aos estudos das audiovisualidades. Os artigos aqui selecionados demonstram caminhos das pesquisas contemporâneas que investem na complexa construção das especificidades do meio audiovisual e colocam em evidência a pluralidade de interesses e rumos a serem explorados. Iniciamos este número com Meios e Tempos Mistos: as realidades contidas em WeARinMoMA, onde Giovanna Casimiro discute o conceito de realidade a partir da análise da exposição clandestina WeARinMoMA (2010). A utilização de aplicativo de Realidade Aumentada para propor novas elaborações espaciais e temporais no espaço expositivo é a matriz da qual a autora parte para pensar uma mixagem de realidades na passagem da sociedade virtual para a pós-virtual. Já em Mise en scène, polifonia e formas de representação no documentário paraibano A Pedra da Riqueza, Riccardo Migliore apresenta os contrapontos do controle do realizador sobre a maneira de representar, lançando uma reflexão sobre a autorrepresentação dos atores sociais no cinema. Outros questionamentos sobre as formas

de retratar o universo que nos cerca podem ser acompanhados em O desigual no telejornal - O cidadão comum e suas apropriações dos mecanismos de produção e expressão audiovisuais sob a ótica da recirculação midiática. Em seu texto Jhonatan Mata discute a atuação e a incorporação do “cidadão comum” nos telejornais trazendo a reflexão sobre os filtros que a mídia tradicional utiliza para a escolha de vídeos, com foco nas configurações estéticas, representações e horizontes sociais que gravitam em torno do controle das formas de fazer, circular e ver imagens em emissoras. Em As imagens fotográficas como moldura cinematográfica Bettina, Wieth Gonçalves propõe o diálogo entre o pictórico e o fílmico nas obras Os Famosos e os Duendes da Morte (Esmir Filho) e Post Tenebras Lux (Carlos Reygadas) e esboça uma revisão crítica acerca do enquadramento cinematográfico a partir de Bazin, Aumont, Crary, Barthes e Dubois. Na sequência das abordagens estéticas como modo de aproximação e reflexão sobre a obra cinematográfica, Radael Rezende propõe pensar como o filme Transformers, de Michael Bay, mantém correspondências diretas com elementos neobarrocos. O autor de Optimus Prime e a visualidade neobarroca no filme Transformers demonstra a permanência na contem-

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poraneidade de traços culturais originalmente manifestos em momentos passados da história. Já O som ao redor - violência invisível, medo palpável propõe investigar o trabalho de Kleber Mendonça Filho a partir da decomposição analítico-Descritiva de sequências do filme com o intuito de identificar certos fenômenos sociais, como a violência urbana, o medo e a sensação de insegurança. Ana Carolina Chagas Marçal estrutura seu pensamento através do paralelo entre o entendimento de Zygmunt Bauman a respeito desses fenômenos e o conceito de poder disciplinar descrito por Michel Foucault na obra Vigiar e Punir. A fantasia é o que permeia o artigo Dramaturgias cinematográficas lúdicas - Os casos Um conto do tempo perdido e O fabuloso destino de Amélie Poulain, de Alexandre Martins Soares. O autor compara filmes realizados em épocas e sistemas sociais distintos dentro dos quais os elementos lúdicos são utilizados na condução de suas narrativas e desenvolvimento do universo de suas personagens. Após lermos De música a ícone: o caminho da trilha sonora através da ressignificação, de Raquel Vieira Fávaro Petronilho, talvez seja possível afirmar que quando uma música já existente passa a ser trilha sonora de uma relevante produção televisiva ou cinematográfica e é inserida na rotina do espectador passando a fazer parte de suas experiências e memórias-, a ressignificação a ela atribuída terá o poder de transformá-la em mais do que uma música, mais do que um trilha sonora, mas em um ícone. Encerramos a série de artigos na contextualização dos estudos do som no cinema a partir de um painel de sua produção bibliográfica com Sound studies no cinema - panorama da produção bibliográfica dos anos 1970 até o final do século XX. Bernardo Marquez Alves prioriza em sua pesquisa as publicações que desviamse da centralidade da trilha musical realizadas na França, Inglaterra, Estados Unidos, Rússia e Brasil. Abrindo a seção Poéticas, temos Energia vital em formas sem fim, de Carolina Berger, 4

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onde a artista multimídia e performer discute a harmonia e o sincretismo entre corpo e tecnologia. Através da elaboração de uma situação de improviso a autora demonstra como chega à poética da interdependência entre gesto e sonoridade em um vídeo performance. Finalizamos a edição com alguns textos do livro Angle of Yaw, de Ben Lerner. O escritor norte-americano compõe seus versos numa mescla de reflexão filosófica sobre a comercialização do espaço público e o valor da arte contemporânea em sequências líricas de poesia e prosa experimental. A seleção e tradução aqui propostas são de Ellen Maria Martins de Vasconcellos em seu Ângulo de Guinada. Para concluirmos este ano de 2015 com nosso segundo número publicado, contamos com uma equipe extremamente comprometida e sem a qual não poderíamos alcançar nossos objetivos. Gostaríamos de estender nossos agradecimentos à comunidade acadêmica dos diversos Programas de Pós-Graduação e deixar nosso convite à participação dos novos alunos do Programa em Meios e Processos Audiovisuais. Ao fim desta empreitada desejamos que todos possam desfrutar desta mais nova edição da Revista Movimento.


artigos 6

Meios e tempos mistos - as realidades contidas em WeARinMoMA | Gioavanna Graziosi Casimiro

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Mise en scène, polifonia e formas de representação no filme paraibano A Pedra da Riqueza | Riccardo Migliore

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O desigual no telejornal - O cidadão comum e suas apropriações dos mecanismos de produção e expressão audiovisuais sob a ótica da recirculação midiática | Jhonatan Mata

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As imagens fotográficas como moldura cinematográfica - opções estéticas de enquadramento em filmes contemporâneos | Bettina Wieth Gonçalves

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Optimus Prime e a visualidade neobarroca no filme Transformers | Radael Rezende Rodrigues Junior

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O som ao redor - violência invisível, medo palpável | Ana Carolina Chagas Marçal

103 Dramaturgias cinematográficas lúdicas - Os casos Um conto do tempo perdido e O fabuloso destino de Amélie Poulain | Alexandre Martins Soares

119 De música a ícone - o caminho da trilha sonora através da ressignificação | Raquel Vieira Fávaro Petronilho

128 Sound studies no cinema - panorama da

POÉTICAS 141 Energia vital em formas sem fim | Carolina Berger

tradução 154 Angle of Yaw, de Ben Lerner | por Ellen Maria Martins de Vasconcellos

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Sumário

produção bibliográfica dos anos 1970 até o final do século XX | Bernardo Marquez Alves

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Meios e Tempos Mistos

as realidades contidas em WeARinMoMA Giovanna Graziosi Casimiro1 Universidade Federal de Santa Maria

Resumo: No campo da arte, a emergência de realidades acarreta o surgimento do Meio Expositivo, em um contexto misto, que ultrapassa o conceito de híbrido. A exposição WeARinMoMA (2010) exemplifica modos de utilização da Realidade Mista, na arte contemporânea, fortalecendo as relações entre arte, ciência e tecnologia em uma nova elaboração espaçotemporal. Este artigo, no campo da História da Arte Contemporânea, propõe analisar tal episódio e sua configuração mista como ponto de partida para se pensar a transição do virtual para a pós-virtual, em que a mixagem de realidades, espaços e tempos é iminente . Palavras-chave: realidade mista, hibridação, arte e tecnologia, meio expositivo, tempo. Abstract: In the field of art, the emergence of these realities leads to the onset of Exhibition Medium, in a mixed context that goes beyond the concept of hybrid. The WeARinMoMA exposure (2010) exemplifies ways the of the Mixed Reality, in contemporary art, strengthening the relations between art, science and technology and providing a new spatial and temporal development. This article, in the field of History of Contemporary Art, aims to analyze this episode as mixed configuration mode as an starting point between virtual and post-virtual society, where the mix of realities, space and time is imminent. Key words: mixed reality, hybridization, art and technology, exhibition middle time.

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Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Arte Visuais - PPGART/UFSM, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Nara Cristina Santos (PPGART/CAL/UFSM). Bacharel em Artes Visuais pela Universidade Federal de Santa Maria. 1

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Introdução Este texto parte da exposição denominada WeARinMoMA, que ocorreu em 2010,. no Museu de Arte Moderna de Nova Iorque. A mostra tem características próprias, que permitem uma análise mais profunda de tendências tecnologias da atualidade. Aspectos sobre o papel da instituição, do artista e do público também são fundamentais, no entanto, as discussões apresentadas partem do conceito de misto, da Realidade Mista e de como ocorre uma passagem da hibridação para a mixagem completa entre os mundos físico e virtual. A percepção do tempo e do espaço é modificada pelos dispositivos interativos, caso do mobile e dos wearables, que se popularizam, na segunda década do século XXI, acelerando o tempo. Paulo Virilio (2012) aponta essa aceleração do tempo. Giselle Beiguelman (2013) afirma a existência e uma sociedade que avança do virtual para o pós-virtual, no qual não há dissociação entre físico e virtual, afinal, os estímulos se misturam, no cotidiano do usuário. Trata-se da Cultura da Interface, que Steven Johnson (2001) defende, na qual o homem e o dispositivo se relacionam livremente, de maneira cada vez mais intuitiva. Deste modo, surgem muitas realidades, resultantes da mixagem de tempos e espaços variados através da tecnologia digital. WeARinMoMA representa estes aspectos, no microcosmo expositivo, atualizando pontos de vista sobre arte contemporânea e tecnologia. A mostra permite avaliar a hibridação e a mixagem (a partir da tecnologia de Realidade Mista), a perceber o lado positivo e negativo da condição pós-virtual, e a compreender a existência de uma possível Realidade e Tempo Inconscientes, junto a outros que se desdobram dentro da consciência coletiva. O Híbrido e o Misto A sociedade do século XXI está marcada pelo regime de aceleração do tempo afirmado por Virilio (2012), devido aos avanços computacionais e científicos. Ele constata que existe uma realidade aumentada, e acima de tudo, uma aceleração da realidade que, em muitos casos, está embasada em situações de imposição e medo, que habitam o inconsciente da sociedade. A compressão temporal, segundo Virilio, é um evento que modifica o cotidiano e gera a aceleração da vida comum, a qual resulta em uma instabilidade e no medo gerado pelo excesso de estímulos frenéticos. Com o surgimento de máquinas cada vez mais inteligentes, redes amplas e eficazes, o homem da pós-virtualidade usufrui de tempo e espaço próprios da cibercultura, os quais fragmentam a construção de uma realidade comum constante, desdobrada em muitas realidades potenciais, em oscilação. Nesse contexto, a hibridação se torna um termo fundamental para a compreensão do estabelecimento da sociedade hiperconectada e da cultura contemporânea2.

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Segundo Santaella (2003) o teatro, a ópera, a performance são exemplos de artes híbridas, pois as linguagens e as técnicas se misturam, confirmando que, desde o final do século XIX, as artes abandonaram as estruturas de espaço e tempo tradicionais. Edmond Couchot (2003) apresenta o termo hibridação, no contexto da arte, através das tecnologias digitais, como uma forma de arte e uma tendência estética, cujo substrato são as tecnologias fundamentadas no cálculo computacional. O termo híbrido deriva do latim hibrida, que significa “bastardo, de sangue mestiço” (posteriormente, alterado para hybrida, proveniente do grego hybris que significa “ultraje, excesso, o que ultrapassa a medida”). Do ponto de vista da biologia, a partir do século XIX, o termo é empregado para designar o que é composto de elementos de natureza diferentes e resultado do cruzamento de espécies ou gêneros distintos. Na atualidade, significa principalmente “o que provém de duas espécies diferentes”, caracterizando o cruzamento genético de espécies distintas de plantas ou animais. O campo da Arte e Tecnologia é considerado, por Couchot, uma arte da hibridação, na qual as formas da imagem e o processo binário se misturam. Entende-se, neste texto, a hibridação como a união de técnicas e tecnologias, partindo da natureza do computador para produções interativas. A hibridação se torna muito próxima da materialidade das propostas artísticas digitais, de sua constituição maquínica e tecnológica, pois se relaciona com o modo como o dispositivo interage com o usuário. No entanto, destaca-se uma remodelação além da tecnicidade das obras interativas e híbridas. Percebe-se as distorções e mixagens sobre o tempo e o espaço, em modos revolucionários. O tempo e o espaço contemporâneos se constroem a partir de prismas completamente diferentes de outros momentos da história, pois a experiência se dá em um tempo cheio de realidades possíveis, que constituem muitos espaços e modos de percepção entre plano físico e o virtual. As escolhas de um usuário sobre um dispositivo móvel, por exemplo, podem levá-lo a diferentes resultados, sobretudo, às sensações específicas vivenciadas em rede. Com a onipotência, onisciência e onipresença online, a concepção espaço-temporal precisa ser estudada, especialmente, do ponto de vista da arte contemporânea, através das relações sensíveis geradas nas obras interativas. Sendo assim, a principal diferença percebida entre o híbrido e o misto reside nos objetos aos quais se referem. Enquanto o híbrido se refere à tecnica, tecnologia ou sistema utilizado em uma aplicação digital (determinando o que é do mundo físico e o que é do mundo virtual, em um mesmo sistema de funcionamento), o misto está ligado à existência de uma condição indissociável entre o físico o virtual, incluindo o tempo, o espaço a as realidades. Ele representa o tempo misto, no qual a pós-virtualidade se estabelece, confirmando a ideia de que a conexão entre as redes nunca acaba e que o campo virtual é uma continuidade do mundo físico. ___________________________________________________ 1

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http://www.itaucultural.org.br.

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Essa premissa pode ser observada no comportamento diário dos indivíduos, definido pelo regime de acessos na web, às redes sociais, aos aplicativos. Esse mundo misto, cheio de cruzamentos entre tempos, espaços e realidades, é, fortemente, evidenciado pelo uso da tecnologia mobile, pois ela revê a condição da presença e do deslocamento do usuário. Johnson (2001) atesta a existência de uma negociação na entrada e saída de dados e informações entre linguagem de máquina e signos das linguagens humanas. Segundo ele, a interface computacional é agente de diálogo com o usuário, propiciando a interatividade. Henry Jenkins (2014) apresenta a cultura da conexão, a qual se estabelece pela circulação e pelo fluxo (passagem da distribuição para a circulação). Segundo Falkheimer e Jansson (2006), a popularização dos telefones celulares e de serviços de localização, faz com que a sociedade viva uma realidade de no sense of place onde o lugar é superado pela comunicação massiva e pelo fluxo, gerando uma nova noção de lugar, presença, espaço, tempo e realidade. É através desse nível de envolvimento que determinadas tecnologias se fixam na cultura, promovendo mudanças pontuais na história, e destacando certos tipos de interface computacional. A mobilidade se popularizou principalmente pelo lançamento de handhelds (conhecidos como palm) e de telefones celulares. Considera-se que a computação móvel começou em meados de 1992, com a introdução de um handheld chamado Newton, pela Apple. A tecnologia de geolocalização viabiliza uma série de facilidades, e os wearables são uma variação técnica dos dispositivos móveis, os quais se adaptam ao corpo, em formas similares aos óculos e relógios, até o momento. Projetos como o Google Glass e Android Wear são desenvolvidos para se unir ao corpo humano, do modo mais natural possível. Porém, esse tipo de dispositivo ainda está em processo de aceitação, e caso se torne comum, potencializará a percepção do mundo misto, pois tecnologias de Realidade Mista serão comumente utilizadas, desde o campo publicitário até a medicina, introduzindo inúmeros objetos virtuais no plano físico, diária e ininterruptamente. A concepção do misto, aqui proposta, está diretamente ligada à utilização da tecnologia de Realidade Mista, pois ela determina a inserção de objetos virtuais sobre o plano físico. O termo Realidade Mista ou Realidade Misturada pode ser definido como a somatização de objetos virtuais gerados por computador com o ambiente físico, viabilizando a conexão de espaços físicos através de objetos e ambientes virtuais. Paul Milgram e Fumio Kishino (1994) definem o conceito de Realidade Misturada como "qualquer lugar entre os extremos de uma Contínua Virtualidade". Cláudio Kirner (2004) ratifica que a Realidade Mista permite ao usuário, ver, ouvir, sentir e interagir com informações e elementos virtuais inseridos no ambiente físico, através de algum dispositivo tecnológico. Segundo ele a Realidade Mista vai além da capacidade da Realidade Virtual de concretizar o imaginário

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ou simular, pois a Realidade Mista incorpora elementos virtuais ao ambiente físico. Não se trata de um ambiente puramente virtual, cuja dinâmica esquece o mundo físico do usuário, mas de um ambiente realista, no qual o usuário não percebe a diferença entre objetos virtuais e físicos. Trata-se de uma cena só, sem distinção de elementos. A Realidade Mista engloba categorias: a Realidade Aumentada e Virtualidade Aumentada. A primeira ocorre quando objetos virtuais são colocados no mundo físico, através de interfaces adaptadas para visualizar e manipular objetos virtuais. A segunda ocorre quando elementos físicos são inseridos no mundo virtual, por meio de interfaces que transportam o usuário, as quais permitem ver e manipular elementos físicos, ali inseridos. Segundo Kirner (2013), o termo Realidade Aumentada é muito confundido com o termo Realidade Mista. No entanto, o primeiro compõe o segundo, e cada qual possui especificidades técnicas. A Realidade Mista abrange tanto a Realidade Aumentada quanto a Virtualidade Aumentada, e como Paul Milgram (1994) delimita, pode ser classificada de acordo com seus diversos modos de visualização: a) realidade aumentada com monitor (não imersiva) que sobrepõe objetos virtuais no mundo físico; b) realidade aumentada com capacete (HMD) com visão óptica direta (seethough); c) realidade aumentada com capacete (HMD) com visão de câmera de vídeo montada no capacete; d) virtualidade aumentada com monitor, sobrepondo objetos reais obtidos por vídeo ou textura no mundo virtual; e) virtualidade aumentada imersiva ou parcialmente imersiva, baseada em capacete (HMD) ou telas grandes, sobrepondo objetos reais obtidos por vídeo ou textura no mundo virtual; d) virtualidade aumentada parcialmente imersiva com interação de objetos reais, como a mão, no mundo virtual. Ainda segundo Kirner (2013), um ambiente de Realidade Mista pode operar com a participação simultânea de várias pessoas, em processos colaborativos, usando interfaces computacionais específicas. Essa noção de Realidade Mista colaborativa é construída em espaços físicos e virtuais compartilhados, cujo acesso ocorre entre vários usuários em um mesmo local (o usuário visualiza e interage com os elementos reais e virtuais, através de capacete com câmera e rastreadores), ou remotamente (são gerados ambientes virtuais, em espaços compartilhados com objetos virtuais, interativos). Especialmente no campo da comunicação, a Realidade Mista pode funcionar como impulsionadora dos processos e assimilações de conhecimento. A Realidade Aumentada combina objetos físicos e virtuais no mundo físico e os executa interativamente em tempo real. Viabiliza o alinhamento de objetos físicos e virtuais entre si e, segundo Azuma (2001), aplica-se a todos os sentidos, incluindo audição, tato, força e cheiro. Kirner (2013) a caracteriza através dos seguintes pontos: a) é uma particularização de Realidade Mista, quando o ambiente principal é o físico ou há predominância do atual; b) é o enriquecimento do ambiente físico

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com objetos virtuais, usando algum dispositivo tecnológico, funcionando em tempo real; c) é uma melhoria do mundo físico com textos, imagens e objetos virtuais, gerados por computador; d) é a mistura de mundos físicos e virtuais em algum ponto da realidade/virtualidade contínua que conecta ambientes físicos a virtuais (Paul Milgran firma isso em 1994). São viabilizadas aplicações no campo do ensino, de treinamento e no campo da arte, enquanto obra ou dinâmica institucional/expositiva. Para sua execução é necessário: 1- um objeto físico com algum tipo de código/marca ou referência, possibilitando a interpretação pelo aplicativo, gerando o objeto virtual. 2- câmera ou dispositivo de captação e transmissão da imagem do objeto físico para que o software seja capaz de interpretar o código de referência. A construção do objeto virtual ocorre através da captura do objeto físico frente a um dispositivo específico (câmera), o qual interpreta e envia as imagens obtidas, em tempo real. Segundo Beiguelman (2013), o uso cada vez mais comum de etiquetas inteligentes baseadas em códigos de barra com grande capacidade de armazenamento de informações, caso dos QR-Code (Quick Response Code), indica o gradual processo de coisificação das redes (e nesse ponto, a discussão sobre a Internet das Coisas surge mais uma vez). Os QR-Codes são interpretados pela câmera do celular com programas específicos para a leitura de código. Sua principal função é a expansão de informações e dos dados do plano virtual para o plano físico, através da interface interativa. Para o desenvolvimento de aplicações de Realidade Aumentada são combinados softwares a equipamentos como câmeras digitais, smartphones, GPS. Há pesquisas que indicam, que no futuro, será possível expandir o monitor dos monitores para o ambiente físico, como em janelas ou superfícies onde os programas serão executáveis. De acordo com o campo da computação, o funcionamento da Realidade Aumentada dividido em sistemas, classificados pelo display utilizado, o qual pode variar em Óptica Direta, Vídeo ou Monitor e Projeção. A Virtualidade Aumentada é definida, segundo Kirner (2013), como uma particularização da Realidade Misturada quando o ambiente principal é virtual ou há predominância do virtual. Baseiase no enriquecimento do ambiente virtual com elementos físicos pré-capturados ou capturados em tempo real. Ou seja, seu funcionamento técnico é exatamente o oposto ao da Realidade Aumentada. No campo da arte, inúmeras obras definidas enquanto “Realidade Virtual” ou “Realidade Aumentada” são, de fato, Virtualidade Aumentada, na qual é possível inserir objetos físicos interativos no ambiente virtual. Essa captura é feita através de câmeras de vídeo ou sensores, em tempo real. Sendo assim, o potencial da Virtualidade Aumentada está nas simulações do mundo físico, manipuladas em tempo real.

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Figura 01 - (www.devmedia.com.br)

Nesse ponto Kirner (2013) esclarece as especificidades de cada tipo de Realidade: • Realidade Virtual (RV): está, unicamente, no mundo virtual. Transfere o usuário para o ambiente virtual e prioriza as características de interatividade do usuário; • Realidade Mista/Misturada (RM): está entre o mundo físico e o virtual, transitando através da interatividade entre as camadas de realidade. Divide­-se entre Realidade Aumentada e Virtualidade Aumentada; • Realidade Aumentada (RA): possui um mecanismo para combinar o mundo físico com o mundo virtual, no entanto, mantém o senso de presença do usuário no mundo físico e enfatiza a qualidade das imagens e a interação do usuário; • Virtualidade Aumentada (VA): possui mecanismo para combinar o mundo virtual com elementos trazidos do mundo físico, o que torna a interatividade do usuário um elemento inserido no ambiente virtual; Nesse ponto Kirner (2013) esclarece as especificidades de cada tipo de Realidade: Beiguelman (2013) entende o sucesso da Realidade Aumentada devido à aproximação gerada entre o plano virtual e percepção humana, ideia confirmada por Pranav Mistry3, que aponta que a integração de informações aos objetos físicos do cotidiano, contribuem na eliminação do abismo entre o plano virtual e o plano real, e confirmam a existência de um plano único que ainda nos mantêm humanos, porém mais conectados do que nunca. Sendo assim, a Realidade Mista funciona como uma soma contínua através do dispositivo/interface, onde objetos virtuais são adicionais ao ambiente físico e vice-versa. As categorias acima trabalham com um sistema interativo em rede local fixa, sem cone___________________________________________________

Disponível em: http://www.ted.com/talks/pranav_mistry_the_thrilling_potential_of_sixthsense_technology?language=en. Acesso em: 02/03/2015. 3

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xão com a nuvem de dados. Com o acesso wi-fi e a internet móvel (3G/4G), a aplicação de Realidade Mista pode ocorrer via mobile e em áreas externas, caso do espaço urbano. Surgem aplicativos específicos como o Aurasma, Layar e Junaio, destinados para a criação de objetos virtuais e implementação de Realidade e Virtualidade Aumentada, em qualquer local. Portanto, a afirmação de uma realidade mista constante é pertinente, e comprova a pósvirtualidade (proposta por Beiguelman) e justifica a existência de inúmero tempos, espaços e percepções. No campo da Arte e Tecnologia, artistas têm explorado as potencialidades da tecnologia de Realidade Mista há vários anos, no entanto, este texto apresenta um episódio em especial, no qual o mundo físico é diretamente alterado, gerando consequências que o modificam, em uma comprovação de que o mundo não é mais físico e virtual, e sim, constantemente, misto. WeARinMoMA: uma revisão das realidades e da percepção. Frieling (2014) defende a ação questionadora dos artistas em relação às instituições. Segundo ele, há um pedido de colaboração aos museus, para que participem formalmente como co-produtores das obras de arte contemporâneas. Tradicionalmente, os museus assumem uma estrutura, supostamente, neutra na organização de mostras e acervos. Gonçalves (2004) define o padrão do espaço apropriado para a arte moderna como aquele que apaga sua função social, no entanto, na atualidade, essa neutralidade é um equívoco, pois museus e instituições culturais são questionados quanto a sua relação com os artistas e o público. Enquanto o museu tenta manter seu espaço expositivo como lugar “neutro”, no século XXI, a idéia de lugar para os artistas contemporâneos assume importância como linguagem. Nesse aspecto, a arte assume a vocação de explorar a construção do espaço e, como sintaxe básica da criação artística, utiliza-se da dimensão espacial.4 O MoMA exemplifica essa tentativa de neutralização, ao oferecer uma sensação de privacidade, reforçada por Gonçalves (2014), pois suas salas são pintadas de branco, com mínima interferência sobre as obras. A distribuição das peças é feita com certo alinhamento à altura do olhar do visitante e simetria. No entanto, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque, é questionado por um grupo de artistas, em 2010. WeARinMoMA (outubro de 2010) é uma exposição clandestina realizada no MoMA por dois artistas, Sander Veenhof- Holanda e Mark Skwarek- EUA (participantes do Manifest.AR), que contesta a ação do museu, diante do avanço da tecnologia digital: À distância, via GPS, a dupla de artistas acionou comandos de informática e fez com que dezenas de peças tridimensionais produzidas por eles e por outros 30 artistas convidados surgissem na tela dos celulares e tablets de quem circulava pelo MoMA naquele dia. (...) Em vez de se ___________________________________________________ 4

GONÇALVES, 2004: 54.

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enfurecer com os artistas, a diretoria do museu aplaudiu o atrevimento e incorporou as peças virtuais à sua coleção. E, por conta disso, diversos museus dos Estados Unidos e da Europa pararam para repensar sua relação com a tecnologia. Desde então, muitos se debruçaram sobre a realidade aumentada e lançaram projetos vanguardistas 5.

A partir de então, diversas instituições, como o Museu de História Natural de Washington, o Brooklyn Museum de Nova Iorque, o Sukiennice Museum da Cracóvia, o Louvre de Paris, passaram a incorporar em suas dinâmicas espaciais e institucionais tais possibilidades tecnológicas. O Museum of London desenvolveu um aplicativo chamado Streetmuseum, que permite acessar, em meio ao espaço urbano, mais de 200 imagens de seu acervo através da realidade aumentada.

Figura 02: WeARinMoMA (www.sndrv.nl/moma)

Para seu funcionamento, utiliza-se a Realidade Aumentada, dispositivos móveis e o aplicativo desenvolvido pelo grupo. Através da estrutura física e das obras permanentes do acervo do MoMA, visualiza-se a exposição virtual, simultaneamente, às obras consagradas do modernismo. Trata-se de uma proposta de dissolução do espaço expositivo material e um convite para a instituição rever seu padrão. A interatividade ocorre via obra e o Meio Expositivo se estabelece no ambiente institucional, especificamente, pois depende da estrutura física do MoMA como desencadeadora da dinâmica interativa de Realidade Aumentada. Surge um ciclo de interatividade entre o público<>obra<>meio. Ele faz com que a obra visível por Realidade Aumentada não esteja no espaço de modo permanente, pois se apropria da realidade física pela ação do interator. Significa que a existência da ___________________________________________________

Disponível em: m.oglobo.globo.com/cultura/museus-dos-eua-europa-lancam-projetos-vanguardistas-de-realidade-aumentada-4961365 > Acesso em: 22/04/2014.

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obra é diretamente proporcional ao público, fato confirmado por Gonçalves (2004) ao avaliar que a exposição é um campo aberto para o visitante construir a sua história. Segundo ela, o espaço e o tempo são suporte do ato de visitação, que em cada instante de deslocamento gera uma vivência e seu esquecimento. As realidades construídas são resultado da interatividade, que engloba os métodos de visitação, exposição, os tipos de interfaces e o nível de sensibilização das aplicações. A imersão e inclusão fortalecem as relações entre público, obra e Meio. O caráter inclusivo está presente em WeARinMoMA, cujo acervo exposto não existiria sem o público ativo. Percebe-se como a relação tradicional de poder é abalada. Segundo Jenkins (20104), os colaboradores são cúmplices dos regimes dominantes de poder, ainda que, muitas vezes, usem sua incorporação para redirecionar energias e recursos. No contexto de WeARinMoMA, os colaboradores são os artistas, que utilizam a dinâmica interativa questionadora, ao mesmo tempo em que fortalecem a identidade da instituição. A mostra se torna uma afirmação da natureza experimental do museu, e o regime dominante de poder é revisto através do compartilhamento de funções com o público. O resultado é a inclusão da exposição clandestina no acervo do MoMA, fato que revisa o padrão estrutural diante da possibilidade de obsolescência. Esse conjunto de questionamentos evidencia a necessidade de rever modelos museais, o desejo de inclusão dos artistas em grandes acervos e a importância do público na ação institucional. Trata-se “do pressuposto de que a circulação se constitui como uma das forças-chave que dão forma”6 ao ambiente de mídia e de cultura contemporâneos. A exposição clandestina foi um sucesso devido à força das mídias sociais, ao poder de propagação e compartilhamento de informações, pois essa ação “parte de uma crença de que, se formos capazes de entender melhor os fatores institucionais e sociais que formataram a natureza da circulação, poderemos nos tornar mais eficazes com a colocação de mensagens alternativas em circulação”7. Realidades e tempos mistos Beiguelman faz pensar a contraposição da cultura impressa à computacional, e essa mesma relação pode ser feita entre os espaços de exposição analógicos e interativos, no campo da arte. Ela faz uma crítica à construção de um presente, cujas expectativas parecem se concentrar em um futuro, especialmente envolto no entorpecimento da tecnologia binária. A constante lógica da novidade aponta um regime característico de uma sociedade conectada em rede, a qual transita entre estágios de espaço e tempo. Antes da presença do mundo virtual, o homem trabalhava a partir do ___________________________________________________ 6 7

JENKINS, 2014: 241. JENKINS, 2014: 241.

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plano físico e desenvolvia planos ficcionais de tempo e espaço, no âmbito mental (imaginação). No mundo contemporâneo, percebe-se camadas de espaço e tempo, as quais criam um tempo único indissociável da percepção do passado e das expectativas do futuro. A hiperconexão e a virtualidade trazem experiências extra espaciais e temporais, que despertam uma consciência humana diferenciada. WeARinMoMA evidencia uma nova relação entre espaço, tempo e interator, no contexto da arte, pois estabelece uma série de realidades simultâneas, segundo as decisões do usuário sobre o dispositivo interativo. À medida que a tecnologia binária gera interfaces intuitivas e estreita relações com a sensibilidade, o espaço é elaborado, diferentemente, do conceito tradicional, pois expande seus limites. Essa nova relação com o espaço age sobre as formas do espaço expositivo, e gera padrões próprios de um ambiente conectado. A presença dos dispositivos, no campo da arte, remodela a presença no espaço de exposição, o tempo, a realidade, e a condição da autoria (questão pertinente a outros períodos da história da arte, mas que, nessa pesquisa, é pensada a partir da produção em arte e tecnologia). O espaço se torna um condutor de fluxos através de interatividade e da mobilidade, pois, devido ao nível de envolvimento oferecido pela interface, surgem relações específicas entre espaço, interator e dispositivo. Cada usuário tem uma determinada vivência, em potencial, qual desencadeia espaços, tempos e realidades diferentes. A existência de realidades latentes em espaços interativos, torna possível uma aproximação com a teoria dos mundos paralelos ou dos múltiplos universos do campo da física, na qual existem diferentes versões de um mesmo tempo e espaço, os quais são potências e surgem divergentes em suas próprias realidades. Trata-se de conceber os mundos potenciais existentes que geram uma teia de realidades possíveis, na qual o vínculo construído entre tecnologia binária e espaço físico é condicionado pela interatividade. O espaço permeado por dados pode ser entendido a partir da troca de conhecimentos entre usuário e computador, que segundo Daniela Kutschat Hanns (2014), gera um ambiente onipresente. Para ela, esse ambiente estimula habilidades cognitivas de criar empatia, de reconhecer e decifrar relações, de aprender a compartilhar. Johnson (2001) afirma que a paisagem da informação representa, simultaneamente, um avanço tecnológico e uma obra de criatividade sem precedentes, capaz de alterar o modo como as máquinas são utilizadas e, principalmente, imaginadas. Percebe-se a construção de um presente informacional e de um conceito diferenciado de espaço, definido pelas regras da computação sobre o mundo físico que se torna misto, tal qual a Realidade Mista, cuja dinâmica torna visível e crível as trocas estabelecidas entre mundo físico e virtual. As tecnologias de Realidade Virtual e Mista se popularizam a partir das interfaces móveis, e devido aos servidores velozes e à internet sem fio, a nuvem de dados é construída, modificando

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o espaço por fluxos imagéticos virtuais, pelo design de interface e pela transformação na natureza da imagem. A realidade é construída paralelamente ao ciberespaço e aos ambientes virtuais, e sua concepção vai além do mundo físico, pois se constrói por redes globais, através de comunidades, em uma noção de espaço e tempo particular. As múltiplas realidades são evidenciadas por meio das tecnologias de Realidade Virtual e da Realidade Mista. Segundo Grau (2003), ao longo da história da arte, percebe-se a construção de várias realidades, individual e coletivamente. Além do campo artístico, na neurobiologia há descobertas que questionam o que é entendido como realidade, pois ela não representa uma verdade absoluta, e sim, o que é possível ou não observar. Ela está diretamente ligada aos níveis da percepção humana, segundo a conduta mental e física, que limita a consciência da realidade, pois a existência de uma realidade leva a muitas outras.

Figura 03: Sistema insitu<>influxu (acervo próprio)

Percebe-se uma gradação da consciência das realidades que cercam a sociedade

atual,

oscilando entre as Realidades Mistas e as realidades conscientes/inconscientes. Beiguelman (2010) afirma a cultura híbrida, a qual reforça a ideia proposta da Realidade Inconsciente, que engloba todo o comportamento humano contemporâneo (e suas outras realidades). Nela, existe o mundo virtual e o mundo físico em constante estado de trocas, no entanto, não há uma consciência coletiva dessa condição. Dentro da Realidade Inconsciente existe a Realidade Mista, que torna perceptível as

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constantes trocas entre físico e virtual. A interatividade e a Realidade Mista, permitem ao interator acessar sua Realidade Consciente, na qual o mundo físico está no virtual, e vice-versa. Configura-se um desdobramento da Realidade Inconsciente sobre a Realidade Mista, e está sobre as Realidades Virtual e Aumentada. Considerações Há uma visível passagem da hibridação para a mixagem, do ponto de vista da tecnologia binária, que marca a existência de desdobramento mais complexos, no campo da arte, os quais ultrapassam as questões técnicas. À medida que a tecnologia computacional se torna intuitiva, móvel e geolocalizada, ela consolida uma série de novas percepções do tempo, do espaço e da realidade. O resultado é o surgimento de ações artísticas que exploram a hibridação de técnicas interativas e, sobretudo, a mixagem de realidades potenciais. A tecnologia de Realidade Mista é uma aliada na elaboração de propostas interativas contemporâneas, e permite a construção de obras de arte que exploram o espaço urbano, a movimentação do usuário, seu corpo, suas emoções. A pós-virtualidade vem à tona com a percepção de um mundo misto, determinado pelos fluxos de informações entre o suposto mundo físico e o virtual. Através de WeArinMoMA, percebe-se o quanto uma proposta expositiva pode ser inovadora ao utilizar tecnologias computacionais, pois a mostra também questiona o sistema tradicional e a gestão do museu, trazendo à discussão a real divisão de poderes no campo institucional. Desse modo, os seguintes aspectos são ressaltados para uma reflexão profunda deste texto: (a) a existência de um mundo e tempo mistos, condicionados em uma realidade inconsciente, a qual pode ser reelaborada, conscientemente, à medida que a sociedade percebe a constante inserção das redes e dos sistemas interativos; (b) a existência da hibridação e da mixagem, enquanto termos complementares, porém não equivalentes; (c) a utilização da Realidade Mista enquanto técnica crescente em elaborações artísticas, na última década; (d) os novos graus de construção de tempo e espaço, que se distorcem em instabilidades, a partir de sistemas interativos, nos quais cada nova decisão do usuário gera uma mudança espaço-temporal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZUMA, R.T. A. Survey of Augmented Reality. Presence: Teleoperators and Virtual Environments. 6 (4), Ago 1997. BEIGUELMAN, Giselle. Arte pós-virtual: criação e agenciamento no tempo da Internet das Coisas e da próxima natureza. Espírito Santo: Museu do Vale, 2013.

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Mise en scène no documentário, polifonia e formas de representação no filme paraibano A pedra da riqueza Riccardo Migliore

Mise en scène, polifonia e formas de representação no filme paraibano A Pedra da Riqueza Riccardo Migliore1 Universidade Federal da Paraíba

Resumo: Através deste paper apresentamos os resultados da análise fílmica de A Pedra da Riqueza (Vladimir Carvalho, 1975), com ênfase na problemática e complexa questão da mise en scène em sua(s) vertente(s) peculiar(es) do domínio cinematográfico documental. A análise foi efetuada de acordo com o método sugerido por Manuela Penafria (2009). O filme de Carvalho é particularmente útil para o estudo da mise en scène no documentário devido às múltiplas esferas de representação e à polifonia de "vozes" que conduzem a narração. Palavras-chave: cinema; documentário; estética; mise en scène; representação Abstract: Through this paper we present the results of the film analysis of A Pedra da Riqueza (Vladimir Carvalho, 1975), emphasizing the complex topic of the mise en scène in the plural modalities peculiar to non-fiction films. The analysis was made according to the method suggested by Manuela Penafria (2009). Carvalho's film is particularly useful to study the mise en scène in documentary films due to the multiple spheres of representation and the polyphony of "voices" conducing the narration. Key words: cinema; documentary; aestethics; mise en scène; representation

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Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Midiáticas da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisa sobre cinema, documentário, mise en scène, representação, fotografia. É membro do Grupo de pesquisa em cinema (GECINE) do PPGC/UFPB, coordenado pelo Prof. Dr. Bertrand de Souza Lira, que foi também seu orientador durante o mestrado. Além de pesquisador, Riccardo é realizador audiovisual (de orçamento zero) e foi parecerista credenciado pela SAv/MinC ao longo de cinco anos. 1

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Da pesquisa prévia, do método, do objeto e da adequação do mesmo visando à discussão sobre mise en scène no documentário Neste artigo apresentamos os resultados de nosso estudo inerente à encenação no documentário de Vladimir Carvalho, no contexto da dissertação de mestrado intitulada Formas de representação no cinema: uma reflexão sobre o uso da mise en scène nos filmes documentários paraibanos (MIGLIORE, 2015), trabalho acadêmico no qual ponderamos acerca das possibilidades e problemáticas ligadas ao cinema documental e nele, abordamos a aplicação da mise en scène no cinema paraibano, ao analisarmos cinco filmes, sendo eles: Aruanda (Linduarte Noronha, 1960), A pedra da riqueza (Vladimir Carvalho, 1975), Imagens do declínio, ou Beba Coca Babe Cola (Bertrand Lira, Torquato Joel, 1981), Passadouro (Torquato Joel, 1999) e Oferenda (Ana Bárbara Ramos, 2009). No presente paper, especificamente, refletimos acerca da encenação documental no filme A pedra da riqueza. Os critérios de análise foram ditados pela aplicação, quase que integral, do método introduzido por Manuela Penafria em Análise de Filmes – conceitos e metodologia(s) (PENAFRIA, 2009). A autora orienta a efetuar a análise considerando a seguinte estrutura: introdução, dinâmica da narrativa (análise plano-a-plano de pelo menos uma sequência do filme), eleição de uma cena principal, ponto de vista, e conclusão. Dos parâmetros de análise fílmica sugeridos pela autora omitimos a busca por uma “cena principal”, devido ao fato da presença e relevância de uma cena assim chamada não ser necessariamente uma constante no cinema, entendido em toda sua abrangência e complexidade. Há filmes nos quais não faz sentido eleger uma cena como a principal: filmes experimentais, algumas modalidades de documentários, filmes ficcionais não comerciais, filmes realizados em planosequência, apenas para mencionar algumas categorias. A escolha deste documentário de Vladimir Carvalho, sem dúvida o mais assíduo e produtivo documentarista paraibano de todos os tempos, deve-se à adequação do filme no que se refere ao estudo da mise en scène documental, a que de fato é uma aparelhagem (fílmica) polissêmica, complexa e composta. Neste sentido, aposta-se na busca de auxílio em noções outras capazes de render menos obscura a compreensão das encenações documentais, aqui em sua forma plural devido à multiplicidade de aplicações desta ferramenta por parte dos realizadores de não-ficção. Trata-se de conceitos complementares, como aquele de representação, sobre os quais a mise en scène está fundamentada e adquire toda sua consistência de aparelhagem híbrida. O estudo da representação é um elemento essencial para uma compreensão mais profunda da encenação no âmbito do filme documentário, na medida em que a representação pré-existe à filmagem e independe dela, quer dizer, ela é onipresente e permeia as relações sociais (AUMONT, 2008) (GOFFMAN, 1967). Desta maneira, é possível afirmar que a encenação documental comporta pelo menos três

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níveis: técnico, estilístico e ideológico-moral. O nível técnico se refere à utilização da linguagem audiovisual (por exemplo: os planos, as transições entre cenas ou sequências, os movimentos de câmera etc.); o nível estilístico conduz inexoravelmente à questão da oposição dicotômica entre significante e significado, à qual se prefere o conceito sintético de significação (METZ, 1995) já que é através do estilo que sobressai o conteúdo (BORDWELL, 2008), mas vale também o contrário, como se verá mais adiante; e o nível ideológico-moral está associado ao conceito de voz (autoral) e se pode manifestar tanto de maneira explícita, como é o caso do cinema de Ken Loach ou do documentário A ilha das flores (Jorge Furtado, 1989), como também de maneira implícita, inclusive inconsciente. A análise da encenação, a este respeito, representa uma chave de acesso à asserção e visão de mundo, política inclusive, do realizador. Da análise plano-a-plano de uma sequência do filme A sequência escolhida para análise é aquela da explosão da dinamite na mineração, e abrese com um plano médio de conjunto no qual dois trabalhadores cooperam para furar o chão com o fim de posicionarem a dinamite com o respectivo estopim. A imagem vem a adquirir relevo pela posição dos homens: o primeiro, enquadrado até à linha da cintura em posição inferior, segura uma espécie de ponteira e o outro, de pé, em posição superior, de costas para a câmera, bate na ponteira com uma marreta segurada com ambas as mãos. A cabeça do homem em pé, próxima da margem superior direita do quadro, forma uma linha diagonal com o ombro do colega, o qual está situado em posição aberta, ou seja, em favor de câmera.

Segue um corte no mesmo eixo visual para propor um detalhe da batida da marreta, até que o homem que segurava a ponteira deixá-la no chão para pegar o estopim e enfiá-lo no buraco que acabou de ser criado, o que é mostrado num corte sucessivo, sempre em plano-detalhe. A locução de Barra Limpa destaca o fato do estopim ter que ser bastante comprido, para que haja tempo para os trabalhadores correrem, já que a dinamite joga a pedra para longe. O próximo é um plano geral da parte de morro explorada pela extração de xelita.

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Com o corte a seguir volta-se ao detalhe da mão enfiando o estopim no buraco escavado no chão, com sua sombra projetada pelo sol na margem inferior do quadro. Na sequência, há um plano geral do garimpo, filmado de cima do morro para baixo. Corta-se novamente num plano detalhe, desta vez enfatizando o gesto através do qual o pó explosivo é espalhado dentro do buraco. Mantendo certa continuidade de movimento com o detalhe, segue o close de um homem de chapéu e bigode, enquanto o outro continua a preparar a explosão. Em seguida, um plano em movimento, no caso, um zoom out a abrir para um plano geral que só em parte enquadra o garimpo, e em parte a paisagem sertaneja em profundidade. Nota-se certo dinamismo devido à sobreposição de planos distintos. Novamente, Carvalho corta num plano-detalhe, provocando certo suspense, ao dilatar a cena da preparação da explosão em termos temporais. Enxergamos os dedos do trabalhador manuseando algo como um fósforo enquanto acende o estopim. Temos um plano de reação do mesmo trabalhador, no close já visto anteriormente, e de novo, o detalhe do estopim, desta vez queimando, como resulta pela fumaça. Na montagem, o realizador insere inteligentemente um plano detalhe de uma lagartixa enquanto ela some de cima de uma pedra, o que permite estender a temporalidade da ação. Note-se que a voz de Barra Limpa está narrando a preparação da explosão até o grito: “ó o fogo!”. É neste momento que, na montagem, resolve-se inserir o plano da lagartixa fugindo, como se tratasse de ações conseqüentes. Em realidade, a imagem serve para aumentar a tensão dramática. Corta-se, pois, para um plano de conjunto no qual, em primeiro plano visual encontra-se um trabalhador segurando uma pá, que em decorrência do grito de alerta é jogada fora do quadro (pela margem inferior esquerda). O homem corre rumo ao fundo (background), cuja perspectiva em profundidade é destacada pela presença de árvores, tanto do lado esquerdo como do direito. A corrida do homem é separada em dois planos, também com o intuito de dilatar o tempo da cena, sendo que nesta junção em movimento aparece o trabalhador de perfil. Ou seja, se no plano anterior a câmera o enquadrava inicialmente em posição frontal e em seguida ele virava-se de costas e corria rumo ao segundo plano visual, neste plano a continuação do movimento do homem se dá num sentido esquerda/direita, com o sujeito de perfil. Este plano, apesar de começar fixo, em realidade é uma panorâmica horizontal que acompanha a corrida do homem que, ao sair do quadro (para direita), é substituído por outro trabalhador o qual vem a se tornar o novo centro de interesse. Também, o colega do primeiro trabalhador corre para direita, e também é enquadrado de perfil. Ao segui-lo, enquanto o homem muda de direção, a câmera reencontra o trabalhador que anteriormente tinha saído do quadro. Eles pulam entre os arbustos que formam a caatinga. Segue um plano-detalhe de uma enxada, usado aqui como pausa

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visual, e em seguida, corta-se num novo plano-detalhe do estopim queimando. O dinamismo da cena novamente é ressaltado pelo contraste detalhe/conjunto, na medida em que o plano sucessivo é um plano geral no qual aparecem máquinas rudimentares, trabalhadores e pequenas montanhas de terra. Todo mundo corre para se amparar, a maioria sai do quadro para a margem direita. O corte seguinte pode ser tido como uma nova junção em movimento, ao se ver um homem pulando um buraco, também de esquerda para direita. Segue um plano médio no qual dois trabalhadores se levantam de suas respectivas posições e se afastam para o segundo plano visual, definido em termos de perspectiva pela composição do quadro, onde ainda enxerga-se uma árvore no fundo. Novamente, o detalhe de uma enxada, seguido por outro plano aproximado de uma pedra jogada na água marrenta, e através da montagem, volta-se ao plano geral do lugar anteriormente descrito, onde outros trabalhadores também correm para se amparar. A sequência termina com a explosão, sendo que esta é apenas ouvida, fora do quadro, enquanto as imagens mostram o detalhe dos espinhos de uma planta, entre os quais filtra a luz do sol. Da pluralidade de vozes, ou da abordagem polifônica Neste filme, finalizado em 1975, Carvalho utiliza uma abordagem que, pedindo o termo emprestado ao domínio antropológico, podemos chamar de polifônica, a partir do conceito de autoria etnográfica (CLIFFORD, 1998). Entende-se que esta pluralidade de vozes tem fortes repercussões no âmbito da encenação. Em que sentido se pode falar aqui em polifonia? A pedra da riqueza retrata a exploração à qual, na década de 1970, os garimpeiros eram submetidos no sertão da Paraíba, quanto à extração de xelita, minério utilizado no estrangeiro pela sofisticada indústria nuclear. Voltando à questão da polifonia, vê-se que este conceito antropológico pode ser utilizado neste contexto na medida em que remete para duas noções fundamentais no âmbito da teoria do documentário: a primeira está associada à voz (NICHOLS, 2005), e a segunda se refere ao problema da autoria neste domínio cinematográfico, considerando a assimetria das relações realizador/personagem social (FREIRE, 2012). Ambas as noções repercutem na mise en scène propriamente dita, como também, na auto-mise en scène. No que diz respeito ao encontro documental e antropológico entre realizador e atores sociais, neste documentário existe um dúplice relacionamento: primeiramente, aquele entre Carvalho e os garimpeiros do Vale do Sabugi, encontro do qual surgem as imagens, as quais, porém, foram esquecidas ao longo de cinco anos, isto é, por si só, elas não teriam permitido a Carvalho de montar seu filme, pelo menos, não da maneira escolhida pelo realizador para finalizar esta produção, de

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acordo com o resultado aqui analisado. Foi, portanto, o segundo encontro, quer dizer, aquele entre o realizador de Itabaiana e o ex-garimpeiro Dos Santos (vulgo Barra Limpa), que sugeriu a Carvalho a estrutura narrativa do filme. As memórias e as considerações do ex-minerador que se tornou servidor da UnB iriam permitir aquele grau de subjetivação ou individuação que, comumente, rende mais inteligível a recepção de um documentário por parte do espectador, devido ao princípio de identificação, segundo o qual é humanamente mais fácil se identificar com um sujeito do que com um grupo de pessoas, mesmo quando o tema da narração abarca uma pluralidade de indivíduos, entre os quais, o personagem (social) escolhido torna-se um mero representante, ou dito de outra forma, ele vem a ser utilizado como elo de ligação entre a esfera individual e aquela social (extra-individual). A este propósito, no artigo A Pedra da riqueza e seus espectadores (OU, 2011)2 se lê que o filme revela uma forte componente reflexiva, a qual é veiculada pela participação de Barra Limpa, na medida em que O filme materializa e incorpora um espectador incomum, um espectador sentado à mesa de montagem. O início do documentário já apresenta um outro filme dentro dele, o retângulo iluminado com imagens da mina, numa construção que pode ser considerada como mise-en-abyme. Podese afirmar que a Pedra da riqueza é, em parte, um documentário sobre um homem assistindo a um documentário (OU, 2011, p. 5).

A pesquisadora associa o papel de Barra Limpa àquele de um espectador de cinema, imerso na escuridão de uma sala, frente às imagens inerentes à mineração paraibana. Ele é ao mesmo tempo espectador, narrador e elemento de ligação entre o filme e o espectador efetivo. Ainda, ele apresenta um contraponto informal-popular à exposição didática, isto é, formal, de Carvalho. Mirian Ou resume as noções acima com as seguintes palavras As imagens de Barra Limpa são como um ícone da sua condição espectatorial, o corpo da voz over – que não se caracterizaria, assim, como uma voz-de-Deus acorpórea. É a voz de um representante dos trabalhadores, mas representa o corpo e mente de um espectador. É a narração dada ao diretor que indica o seu desejo de acionamento pela mise-en-scène do filme (OU, op. cit., p. 6).

Da relação entre polifonia, ponto de vista e mise en scène Nossa leitura analítica do filme de Carvalho foi orientada por algumas questões, entre as quais: Por qual razão, neste documentário de Vladimir Carvalho, pode-se falar numa perspectiva ___________________________________________________ 2

http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2011/resumos/R24-0461-1.pdf

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polifônica? De qual tipo de vozes se trata? De que maneira se manifestam no filme? E ainda, como esta pluralidade de vozes incide na encenação? Quanto à primeira questão, vê-se que neste filme, o realizador recorre a um sujeito-narrador, o qual se insere no contexto filmado e adquire, portanto, um papel que, adotando um termo comumente utilizado no cinema ficcional, podemos chamar de diegético, isto é, ele está inserido na situação retratada (sendo um ex-garimpeiro que, inclusive, trabalhou na mesma mina filmada por Carvalho em 1970) e, ao mesmo tempo, coloca-se por fora deste contexto, devido à migração e fixação de sua nova residência em Brasília, assim como o diretor do filme. O ex-garimpeiro se chama José Laurentino dos Santos (Barra Limpa). Assim como foi ressaltado por Mirian Ou no artigo acima mencionado, Carvalho e Dos Santos teriam se encontrado em Brasília cinco anos depois que o realizador, ao atravessar a região sertaneja do Sabugi paraibano, juntamente com a equipe, para terminar o documentário O país de São Saruê (Vladimir Carvalho, 1971), se deparou com um garimpo de extração de xelita: “Durante dois dias, fizeram imagens dos trabalhadores e do local, que acabaram não sendo incorporadas no corte final de São Saruê. Essas imagens foram transformadas num curta-metragem, A Pedra da Riqueza, finalizado em 1975” (OU, op. cit., p. 1). Conforme foi colocado pela autora, que se apoia na biografia de Carvalho, José Laurentino dos Santos (Barra Limpa) aproximou o realizador na UnB, onde o cineasta paraibano lecionava, e o informou que 14 anos antes trabalhara naquele mesmo garimpo junto com o irmão. A partir deste encontro deslocado, do ponto de vista geográfico e temporal, Carvalho resolveu atribuir a Dos Santos o papel de narrador do filme nunca concluído, sobre à extração de tungstênio (ou xelita) no vale do Sabugi. Desta maneira, vemos que há uma contraposição inicial entre a voz do realizador e aquela do narrador, cuja participação efetiva na extração do minério naquele mesmo garimpo que foi filmado pelo documentarista, lhe atribui a competência necessária para retratar o assunto e expô-lo para o espectador através de lembranças. Do ponto de vista narrativo, estas memórias seriam as únicas vozes presentes no filme, porém é conveniente lembrar que entre as duas há uma disparidade bastante consistente em termos de relação de poder, isto é, Carvalho utiliza a voz do ex-garimpeiro, baseada na sua memória biográfica, para construir seu filme e, de certa maneira, sustentar sua própria voz, mesmo que em termos antagônicos. Isto por que, como bem realçado por Ou, a cartela final do filme contrasta e de certa forma, evidencia a natureza parcial, limitada e a falha da exposição do ex-minerador, inconsciente, por exemplo, da real finalidade da extração, no que diz respeito ao uso do minério. A cartela final, como foi devidamente colocado pela autora, contrasta com o tom informal-popular da narração de

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Dos Santos, embora não haja alguma intenção, por parte de Carvalho, de ludibriar o linguajar e o conhecimento “limitado” (em termos de educação formal) do ex-garimpeiro. Vemos, portanto, que a cartela final representa o ápice da modalidade documental expositiva, através da qual Carvalho pretende explicar, de maneira bastante didática, qual a efetiva finalidade da exploração do minério no sertão paraibano, em contraste com a forma rudimentar de extração por parte dos garimpeiros, desprovidos de qualquer direito trabalhista, assistência médica etc. Pelo que concerne à encenação, contudo, o documentário apresenta uma terceira voz, devido ao fato que os garimpeiros filmados em 1970 auto-representam os respectivos ofícios cotidianos no âmbito da mineração. Entende-se, neste sentido, que o conceito de voz mistura-se com aquele de autoria (e co-autoria) e ainda, com aquele de representação e auto-representação. Em suma, a mise en scène num documentário como A riqueza da pedra transcende seu sentido limitado à marcação de cena (assim como era entendido por Sergej Ejzenstejn3), ou direção das movimentações dos atores enquanto mera coreografia de corpos no espaço e alcança maior complexidade, repercutindo na questão ideológica e moral, que por sua vez caracteriza a problemática da autoria. A mise en scène enquanto mera marcação de cena era a concepção de encenação mais tipicamente teatral, a qual foi ao mesmo tempo absorvida e reinventada pelo cinema. No documentário, enfim, a mise en scène adquire formas de representação peculiares, que surgem do encontro, ao mesmo tempo um confronto (representação x auto-representação), entre realizador e atores sociais. Ou seja, mesmo se fosse possível para o pesquisador se deslocar até Brasília e entrevistar Vladimir Carvalho acerca da aplicação deste tipo de encenação (enquanto disposição espacial de elementos cênicos, seja humanos ou não), esta seria apenas a versão do diretor, o qual parte sempre de uma posição avantajada em termos de relações de poder junto aos demais personagens sociais. Significa que faltaria a versão dos sujeitos filmados, que no âmbito desta concepção mais “teatral” da encenação seria igualmente importante para se alcançar uma compreensão profunda dos mecanismos que regem a chamada encenação. Vê-se, porém, que a complexidade da mise en scène no domínio documental ultrapassa sua noção ancestral oriunda do teatro para adquirir um sentido mais amplo, proporcionado por toda uma série de nuances que vão da auto-representação à colocação em situação à profilmía, abrangendo também conceitos outros, como aqueles de representação, autoria e voz. É a suma destes conceitos e ao mesmo tempo, sua aplicação prática nos filmes, que permite refletir sobre o uso da encenação sem a necessidade de interpelar o realizador e os atores sociais. A questão da mera disposição espacial dos personagens, em A pedra da riqueza por si só não seria suficiente para se aprofundar a ___________________________________________________ 3

Citado por Aumont (2008).

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análise da mise en scène, embora haja partes nas quais é possível perceber certo grau (e necessidade) de dirigir, no sentido de reconstituir momentos da práxis extrativista, como aquele que precede a explosão de dinamite. E a este respeito vemos que há uma diferença substancial entre a reconstituição documental e a reconstrução ficcional (GAUTHIER, 2011), lembrando, porém, da sutil fronteira existente entre ficção e documentário e das interseções e influências mútuas que permeiam estes grandes regimes cinematográficos (METZ, 1995). Considerando o filme pelo viés da representação, pode-se destacar que existem quatro esferas de (represent)ação, isto é: a maneira como Carvalho, realizador do filme, se põe em relação aos personagens sociais e à temática da profunda exploração humana (e ambiental) proporcionada pelo dono do garimpo (que por sinal, não aparece no filme); permanecendo no âmbito da representação (dos personagens) operada pelo realizador, há aquela inerente à construção do produto fílmico, em termos de estrutura narrativa e ao mesmo tempo, de estilo utilizado, que como foi apontado pela pesquisadora Mirian Ou, mantém certo grau de coerência com obras anteriores de Carvalho, como A Bolandeira (1969); aquela através da qual os personagens sociais se auto-representam, quer dizer, o jeito como eles se colocam em função da câmera do documentarista paraibano e enfatizam ou omitem traços da própria personalidade individual e social; e ainda, a maneira como Barra Limpa, narrador não-profissional do filme, e ao mesmo tempo, ator social, expõe acerca da prática do garimpo através de sua experiência, ponto de vista e linguagem pessoal. Poder-se-ia, também, comentar acerca da auto-representação do realizador, já que ele em certo momento aparece na frente da câmera, contudo, se trata de uma aparição muito breve para ser analisada. Em realidade, o nível de representação promovido por Barra Limpa adquire um dúplice sentido, enquanto representação (verbal, oral) de algo que ele vivenciou na própria pele, e ao mesmo tempo, não deixa de haver certo grau de auto-representação, na medida em que, como foi sugerido pela pesquisadora Mirian Ou, ele não é narrador no estilo mais tipicamente expositivo da “voz de Deus”, quer dizer, um narrador onisciente que não aparece nas imagens. Aqui ele é narrador, personagem e ainda, testemunha, pelo fato de ser filmado na frente da moviola, assistindo às imagens do mesmo garimpo no qual, coincidentemente, tinha trabalhado no passado. As imagens escuras às quais Ou se refere em seu artigo, ainda, podem ter sido pensadas por Carvalho para isolar o sujeitonarrador na frente daquilo que, além de tudo, é um reencontro com a própria terra, da qual migrou em busca de melhores condições de vida, assim como muitos outros paraibanos. Concorda-se com Ou quanto à função mediadora deste narrador, que se interpõe entre o realizador e o espectador e ao mesmo tempo, lê o filme e nele inscreve seu comentário, baseado principalmente em recordações. E vê-se como uma leitura do filme por meio do conceito de repre-

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sentação dialoga com uma leitura baseada no conceito de voz. As três vozes acima mencionadas, ora contrapõem-se, ora complementam-se, numa estrutura narrativa complexa, baseada na assincronia da narração, segundo o conceito de som indireto que como Ou faz questão de relembrar, foi criado pelo próprio realizador paraibano. Outro elemento de contraponto é a presença de uma música que, utilizando um termo mais utilizado no âmbito da teoria do cinema ficcional, pode ser chamada de extra-diegética, ou seja, distante do contexto interiorano do estado nordestino e do âmbito sóciocultural específico no qual se inserem os personagens sociais deste filme. Voltando à mise en scène documental aqui empregada, entende-se que A pedra da riqueza apresenta, em momentos distintos, os três tipos de encenação introduzidos e teorizados no texto Mas afinal...o que é mesmo documentário? (RAMOS, 2008). Basicamente, se as filmagens gravadas por Carvalho e sua equipe em 1970 apontam para uma encenação-locação, na medida em que foram registradas no local onde surgia o garimpo, há certo grau de encenação-atitude no que se refere à auto-encenação dos personagens sociais, quando não estão sendo dirigidos pelo realizador, como acontece na já mencionada cena que antecede a explosão, quando todos os garimpeiros correm para procurar amparo dos estilhaços e fragmentos de pedra, numa reconstituição na qual a ação é dilatada do ponto de vista de sua extensão temporal. Mas se for considerada a participação de Barra Limpa, pode-se falar em algo que beira a fronteira entre encenação-construída e encenação locação, já que a circunstância da tomada não coincide com a circunstância do mundo cotidiano ao qual o filme se refere, muito embora não haja uma reconstrução no molde do documentário clássico inglês da década de 1930. A circunstância da tomada é o estúdio de montagem da UnB, enquanto a circunstância do mundo cotidiano (representado no filme, ao qual o documentário se refere) é o garimpo do Sertão paraibano. Quer dizer, o estúdio de montagem encontra-se em Brasília, cidade na qual, cinco anos após as filmagens do garimpo, Barra Limpa vem sendo colocado perante as imagens de sua terra natal, que coincidentemente, também é aquela do realizador. Há portanto, certo grau de heterogeneidade entre os espaços que Ramos chama de dentro-de-campo e fora-de-campo, o que ressalta a natureza reflexiva do filme conforme foi destacado por Mirian Ou, na medida em que há um filme dentro do filme, ou um personagem (ao mesmo tempo narrador em off), filmado enquanto assiste ao material imagético que com sua voz (over, e dessincronizada), ele está comentando. Trata-se aqui de metalinguagem. Carvalho, portanto, faz um uso da mise en scène que pode ser chamada de parcial, enquanto os momentos de reconstituição, nos quais é mostrada a heterogeneidade acima mencionada, alternam partes de representação meramente observacionais. Do ponto de vista da mise en scène, existe certo grau de hibridismo, devido à aplicação de encenações distintas e contrapontos imagéti-

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co-sonoros, mas principalmente, este documentário está fundamentado na contraposição de vozes distintas (formais e informais), o que confirma a utilização de uma perspectiva polifônica, como foi discutido acima. Havendo polifonia, numa alternância de diversas vozes, de quem seria a autoria do filme? Afinal, as colocações de Barra Limpa são fruto de experiências e recordações pessoais, pelo que poder-se-ia sugerir que, num documentário deste feitio, a autoria deveria ser partilhada entre Carvalho e Dos Santos (Barra Limpa). Contudo, é o uso final do material gravado que reforça a autoria propriamente dita e neste caso, na medida em que o personagem-social/narrador-informal não foi convidado a opinar e participar ativamente nem das filmagens e nem mesmo da montagem do filme, então a autoria deveria ser atribuída apenas ao realizador. Mas a questão da autoria documental é bastante delicada, já que o limiar entre as duas contribuições autorais nem sempre é tão nítido como pode parecer após uma primeira leitura. A análise aqui conduzida do filme A pedra da riqueza, sugere se tratar de um documentário híbrido e polifônico. Consequentemente, vê-se que este hibridismo, no que diz respeito especificamente à mise en scène, demonstra que, além da encenação (enquanto conceito) mudar de significação ao longo da história (AUMONT, 2008), as próprias categorias ou modalidades de mise en scène sistematizadas por Ramos (acima) podem vir a coexistir dentre de uma mesma obra não-ficcional. No caso deste filme, enfim, isso acontece em momentos distintos. Uma proposta de sistematização dos aspectos formais e temáticos da mise en scène, ou da ênfase em sua polissemia e complexidade conceitual No âmbito deste artigo e com ênfase no cinema documentário, detectamos sete aspectos da mise en scène, três inerentes ao aspecto formal do filme e quatro ao conteúdo. Os elementos formais são representados respectivamente pela direção coreográfica dos atores (sociais), pela direção emocional (colocação em situação, no caso do documentário), e pelo conjunto de intervenções imagético-sonoras propriamente ligadas ao estilo do filme. Quanto ao aspecto relativo ao conteúdo da mise en scène documental, esta se divide em quatro elementos de análise: o conteúdo narrativo propriamente chamado; o ponto de vista político/ideológico/moral do realizador que é canalizado no filme através da encenação; a auto-mise en scène operada pelos personagens sociais e que aponta para formas de auto-representação; e a eventual auto-mise en scène promovida pelo realizador de documentários quando decide se colocar em cena, isto é, se tornar um personagem de seu próprio filme não-ficcional. Ao aplicarmos esta sistematização da mise en scène ao filme A Pedra da Riqueza, vemos que,

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pelo que se refere aos aspectos ditos “formais” (reiterando que os elementos formais e aqueles peculiares do conteúdo são interativos), e entre eles, a direção coreográfica, há momentos nos quais há evidências de marcação de cena, como quando se prepara a explosão. Como resulta da análise plano-a-plano, a ação é dilatada em termos temporais, e ocorre certa fragmentação do ponto de vista (do detalhe do estopim ao plano geral). Neste momento, os atores sociais presumivelmente foram dirigidos por Vladimir Carvalho, enquanto estavam encenando uma prática cotidiana na mineração, quer dizer, o momento em que, após ter sido acendido o estopim que vai deflagrar a explosão por meio de dinamite, os demais operários correm para se amparar. Quanto à direção emocional, ou colocação em situação (assim como ocorre em Aruanda) aqui constatamos ocorrer algo parecido do notório “e se...” à la Stanislavski (criação de circunstâncias), contudo, neste caso, não se pede a atores para interpretar uma prática alheia, e sim, pede-se a operários da mineração para que interpretem o papel de si mesmos ao representar uma ação cotidiana. Nisso há também graus de profilmía. Ou seja, a colocação em situação é aqui estruturada de uma maneira que o ator social atue “em função da câmera”, de maneira a render a “interpretação” mais fluida e verossímil. Outra forma de colocação em situação, dos fortes impactos emocionais, é aquela de Barra Limpa, ao qual Carvalho pede para ser filmado ao assistir e comentar o material bruto do que se tornará o documentário aqui considerado. Já pelo que concerne à conjuntura imagético-sonora referente ao estilo, vê-se com Ou (acima) que o realizador mantém coerência com suas obras anteriores, como A Bolandeira (1969), o que reforça a identidade estilística dos documentários de Vladimir Carvalho (desta época, pelo menos). E é útil frisar que A pedra da riqueza foi filmado paralelamente ao filme O país de São Sarué (1971). Passemos, pois aos aspectos inerentes ao “conteúdo”: quanto à temática do filme, trata-se de um documentário de denúncia social inerente à condição dos trabalhadores do minério de xelita (tungstênio) no sertão paraibano, os quais estavam desprovidos de quaisquer direitos trabalhistas, costumavam morrer por causa das explosões e, sem carteira assinada, as respectivas famílias não recebiam sequer uma indenização digna deste nome. Definida a temática, entende-se, porém, que A pedra da riqueza também apresenta um lado reflexivo, na medida em que, ao pedir a Barra Mansa para comentar as imagens da mineração na qual tinha trabalhado anos antes do encontro com Carvalho, em Brasília, reflete-se sobre o ofício de se fazer um filme documentário e, principalmente, sobre a questão da voz (NICHOLS, 2005); O ponto de vista ideológico-político-moral manifesta-se a partir da escolha do tema e do contexto a ser representado, sendo que, ao ressaltar as interações existentes entre forma e conteúdo, percebemos o quanto as escolhas formais de Carvalho sustentem sua posição ideológica. Neste sentido, o fato do realizador chamar Barra Limpa para comentar o filme na sala de montagem da UnB, além das referidas implicações reflexivas, é uma escolha mera-

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mente política, visando literalmente dar voz aos personagens do filme, aos trabalhadores do minério, aqui representados por este ator social com função de "narrador”. Com relação à auto-encenação dos personagens sociais, A pedra da riqueza é um filme bastante emblemático, na medida em que detectamos variações de intensidade e consistência da direção cinematográfica, a qual passa de uma rígida marcação de cena (no molde de Aruanda, lembrando que Vladimir Carvalho foi assistente de Noronha) na sequência que antecede a explosão, para momentos de auto-encenação mais explicita. Ou seja, o grau de controle do realizador sobre a maneira de representar, varia ao longo do filme e, desta forma, se abrem brechas para a auto-representação dos atores sociais. Já, Barra Limpa, no estúdio de montagem da UnB, aparenta ter sido deixado bastante à vontade quanto à sua auto-representação e também, quanto ao conteúdo da sua locução, de fato natural e fluida, enquanto Vladimir Carvalho, diretor do filme, só aparece uma vez e por um breve instante, sendo que não é suficiente para se analisar a auto-encenação dele enquanto realizador. Concluindo, pode-se afirmar que a encenação neste documentário foi cogitada, por parte de Carvalho, para denunciar uma situação de fato desumana, e ao mesmo tempo, para refletir sobre o ofício da produção documental com ênfase na questão da polifonia ligada ao conceito do voz, através do encontro/contraponto entre a voz de Barra Limpa enquanto narrador do filme (e ao mesmo tempo testemunha do contexto representado) e a voz autoral do realizador, para além das auto-representações (as quais também apontam para uma voz) dos demais personagens sociais. Referências bibliográficas AUMONT, Jaques. O cinema e a encenação. Edições Texto e Grafia: Lisboa, 2008 BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. Campinas: Papirus, 2008. CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1998. EJZENSTEJN, Sergej M. Stili di regia. Venezia: Marsilio editori, 1993. ____________________. Lezioni di regia. Torino: Einaudi, 2000. FREIRE, Marcius. Documentário: ética, estética e formas de representação. São Paulo: Annablume, 2012. GAUTHIER, Guy. O Documentário: um outro cinema. Campinas: Papirus, 2011. GOFFMAN, Erwig. Interaction rituals: essays in face to face behavior. New

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Brunswick, NJ: Transaction publishers, 1967. METZ, Christian. La significazione nel cinema: semiotica dell’immagine, semiótica del film. Milano: Bompiani, 1995. MIGLIORE, Riccardo. Formas de representação no cinema: uma reflexão sobre o uso da mise en scène nos filmes documentários paraibanos. João Pessoa: Universidade Federal da Paraíba, Dissertação de Mestrado, 2015. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005. OU, Mirian. A Pedra da riqueza e seus espectadores. In: XVI Congresso de Comunicação na Região Sudeste, 2011, São Paulo. Anais, 2011. PENAFRIA, Manuela. Em busca do perfeito realismo. In: Revista Tecnologia e Sociedade no 1, UTFPR, 2005, pp.177-196. __________________. Análise de Filmes – conceitos e metodologia(s). VI Congresso SOPCOM, Abril 2009. Http://www.bocc.ubi.pt/pag/bocc-penafria- analise.pdf RAMOS, Fernão. Mas afinal...o que é mesmo documentário? São Paulo: Editora Senac, 2008. ______________. O que é documentário? In: Ramos, Fernão Pessoa e Catani, Afrânio (orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Alegre, Editora Sulina, 2001, pp. 192/207. Http://www.bocc.ubi.pt/ pag/pessoa-fernao-ramos-o-que-documentario.pdf ______________. Teoria contemporânea do cinema: Pós estruturalismo e filosofia analítica. São Paulo: SENAC, 2005. ________________. A mise-en-scène do documentário. Revista Cine Documental. , v.5, p.11, 2011. STANISLAVSKI, Konstantin. Il lavoro dell’attore su se stesso. Bari: Editori La Terza, 2008.

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O desigual no telejornal Jhonatan Mata

O desigual no telejornal

O cidadão comum e suas apropriações dos mecanismos de produção e expressão audiovisuais sob a ótica da recirculação midiática Jhonatan Mata1 Universidade Federal do Rio de Janeiro- Ecopós/UFRJ

Resumo: Por meio de celulares e câmeras (profissionais ou não) a geração de conteúdos por “não-jornalistas” é a realidade atual nos telejornais locais e nacionais. E instaura um tipo de relação com as emissoras que denominamos por “recirculação midiática”. Importa-nos, desse modo, focalizar as configurações estéticas, representações e horizontes sociais que gravitam em torno do controle das formas de fazer, circular e ver imagens, em emissoras públicas e privadas. Os objetos audiovisuais analisados neste trabalho são os quadros “Outro Olhar”, da TV Brasil e “Parceiro do RJ”, (Rede Globo/Rio de Janeiro). Palavras-chave: audiovisual; telejornal; recirculação; representação. Abstract: Through mobile phones and cameras (professional or not) the generation of content by "non-journalists" is the current reality in local and national news. And introducing a kind of relationship with the stations that could be call for "media recirculation”. Our interest here is to focus on the aesthetic settings, representations and social horizons, which are centered on the control of ways to make, spread and view images, in public and private broadcasters. Audiovisual objects analyzed are the frames "Outro olhar", TV Brasil and "Parceiro do RJ" (Rede Globo / Rio de Janeiro). Key words: audiovisual; news; recirculation; representation. ___________________________________________________

Jornalista. Doutorando em Comunicação (Ecopos/UFRJ), na linha “Mídia e Mediações Socioculturais”, orientadora: profa. Dra. Beatriz Becker. Mestre em Comunicação (UFJF). É professor da Especialização em “Televisão, Cinema e Mídias Digitais” da Faculdade de Comunicação da UFJF. Atua, ainda, na especialização em Mídias na Educação (Capes/UAB). Autor do livro “Um telejornal pra chamar de seu: identidade, representação e inserção popular no telejornalismo local” (Insular, 2013). Integrante dos grupos de pesquisa “Mídia, Jornalismo Audiovisual e Educação: diálogos possíveis” (UFRJ), Telejornalismo UFJF-Intercom e do grupo Comunicação, Identidade e Cidadania. Email: jhonatanmata@yahoo.com.br

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“Um morador flagrou a ação de traficantes em seu bairro”. “Outro Olhar mostra a vida de quem mora debaixo de pontes”. “Nossos parceiros cobram conclusão de obra em praça”. As chamadas de vídeos produzidos por não jornalistas, lidas em estúdio por jornalistas em nossos telejornais-recorte remetem a uma articulação específica e complexa que se configura entre formas “tradicionais” de cultura (profissional inclusive) e novas tecnologias da comunicação. Os verbos flagrar, mostrar e cobrar - antes proferidos preferencialmente por profissionais da imprensa -, por si já fornecem um fértil terreno para análise da atuação do cidadão comum nas supostas “novas formas de socialização midiática”. Neste contexto, a produção da informação - para além de seu consumo - esbarra inevitavelmente no compromisso com a verdade e a crítica, independentemente se consideramos a produção de jornalistas ou de cidadãos comuns. De acordo com nossa hipótese, enfraquece - ou ao menos experimenta contracorrentes- o “fardo da representação” do “popular” na televisão, exclusivamente ancorado nas ideias de povo-fala ou de preenchimento de espaços demarcados nos VT’s. Neste sentido, a própria representação do “telespectador” enfrenta turbulências terminológicas, desprendendo-se de sua definição enquanto “aquele que assiste ao espetáculo da televisão” para o sujeito que “testemunha ou observa” na/a televisão e seu(s) público(s). Longe da arriscada pretensão de definir esse público, interlocutor, cidadão, interessa ressaltar seu desejo, manifesto nas respostas percebidas/editadas a diferentes convocações midiáticas de "participação" em telejornais, de se ver na tela do televisor ou do computador. Nesse sentido, compreendemos que o cidadão (telespectador, internauta, usuário) desejaria assumir a produção/autoria de espaços e produtos nos quais antes figurava, na melhor das hipóteses, como audiência e/ou público. No que tange especificamente ao papel da televisão enquanto possibilidade de visibilidade a uma experiência coletiva e cotidiana de nação e de mundo, a pesquisadora Beatriz Becker aponta que os noticiários podem funcionar como elementos fundamentais da ampliação ou restrição do interesse e da expressão públicos. Becker, para quem o “jornalismo audiovisual de qualidade é um conceito em construção” (BECKER, 2009, p.1), cita Giddens (GIDDENS, 2003, p.16) para ressaltar que a emergência de uma sociedade global da informação impõe processos de democratização em diferentes países. Por outro lado, a televisão e os outros meios de comunicação tendem a destruir o próprio espaço público que abrem, servindo como testemunho e produtos das negociações políticas. Nesta direção, acreditamos que ainda persiste como desafio de compreensão e apropriação efetiva pela sociedade as relações tecidas entre uma emissora de televisão pública e uma emissora de televisão comercial, quando ambas (ainda que de formas distintas) tentam inserir a “participação popular” em suas produções.

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Na tentativa de avançar nossas análises nesta suposta oferta de informação diferenciada nos canais de comunicação, nossa proposta consiste em refletir sobre a atuação e/ou incorporação do “cidadão comum” nos telejornais veiculados na TV Brasil e na Rede Globo de Televisão. Na TV Pública, trazemos o quadro “Outro olhar2”, que integra o telejornal “Repórter Brasil”, edição noturna, veiculado de segunda a sábado pela TV Brasil3. Da televisão comercial, temos o quadro “Parceiro do RJ”4 veiculado no telejornal RJTV (1ª. Edição). Em comum, as produções operam, basicamente, no sentido de colocar os populares nas funções de jornalista (repórter, pauteiro, cinegrafista, assistente de edição, etc). Recorrendo aos celulares multimídias e outras câmeras - profissionais ou não - a população registra seu dia a dia e também aquilo que se apresenta como extraordinário em seu cotidiano, instaurando a modalidade de comunicação que denominamos como “recirculação midiática”. Antes da análise das edições dos quadros e de seus breves históricos, retomaremos as relações entre recirculação, mídia e representação. Sobre mídia e representação O historiador Francisco Santiago Júnior aponta que o estudo das identidades e suas flutuações é tema central da chamada “nova história cultural”. E que, nesta plataforma de observação, o estudo das imagens ocupa uma parte importante, sendo a representação um conceito-chave utilizado. Para o autor , a noção de representação surge inadvertidamente pelo caráter figurativo que a imagem cinematográfica assume em sua aparição social padrão, já que os filmes, em alguma medida, ‘representam’ algo. Embora a análise de Santiago privilegie o cinema e sua utilização nas pesquisas em história, julgamos relevante a relação que o autor tece entre representações coletivas e o papel das representações, quando observa que: Em história, o representar não é somente uma questão de ‘ocupar um lugar do ausente’, uma vez que a representação se tornou um dos temas principais da pesquisa histórica. Nessa perspectiva, o filme além (e antes) de representar o que mostra (o presente ocupando o ausente), con___________________________________________________

O quadro “Outro Olhar” é exibido pela EBC desde abril de 2008, data da estreia do próprio telenoticiário Repórter Brasil. Com cerca de 2 minutos, o quadro vai ar no telejornal Repórter Brasil, às 21 horas. Os vídeos são de produtores independentes, pontos de cultura, cooperativas, cidadãos não organizados, grupos e movimentos sociais. 3 A Empresa Brasileira de Comunicação – EBC surge em 2007. A favor da criação de uma televisão pública, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva comprometeu-se com sua implantação, ao editar a Medida Provisória 398, depois convertida pelo Congresso na Lei 11 652/2008. A EBC ficou encarregada de unificar e gerir, sob controle social, as emissoras federais de televisão e rádio já existentes, instituindo o Sistema Público de Comunicação, também com a criação da Agência Brasil. 4 No site g1.globo.com, o quadro “Parceiro do RJ”, lançado em janeiro de 2011 no RJTV, é descrito da seguinte maneira: “Em comum, os integrantes querem mostrar não só as mazelas, mas as coisas boas dos bairros onde moram, no Rio de Janeiro.Mais de 2.200 pessoas se inscreveram no projeto. Destes, 16 jovens escolhidos vão mostrar o cotidiano de locais como Rocinha, Copacabana, Tijuca, Campo Grande, Complexo do Alemão, dentre outros". 2

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têm, em si, os sistemas classificatórios formados a partir das hierarquias e jogos de poderes que constituem as práticas sociais, ou seja, as representações coletivas. Estas são matrizes do sentido coletivo, para retomar uma expressão de Roger Chartier (SANTIAGO JUNIOR, 2009, p.2).

Reflexão parecida é feita por Jean-Claude Bernardet em “Cineastas e imagens do povo” (2003). Quando aborda a representação das mazelas do povo feita no documentário, o professor elucida que o que vai às telas não é o povo, mas sim as imagens do povo, “uma interpretação do povo feita por cineastas” (BERNARDET, 2002, p.49). A questão nos leva a repensar o papel da representação do povo pelo próprio povo, como é o caso de nosso objeto. “Estereótipo, Realismo e luta por representação” é o quinto capítulo da obra “Crítica da imagem eurocêntrica: Multiculturalismo e Representação”. Nele, os autores Ella Shohat e Robert Stam ressaltam que as análises sobre distorções e estereótipos nos meios de comunicação lidam com o tema de maneira “corretiva”, de modo a apontar erros e acertos nas representações. Enfoque plausível, mas que deixa exposta uma “obsessão com o ‘realismo’, como se a “verdade de uma comunidade fosse simples, transparente e facilmente acessível, e “mentiras” fossem facilmente desmascaradas ( STAM e SHOHAT, 2006, p.261). A representação é definida por Goffman da seguinte maneira : “toda atividade de um indivíduo que se passa num período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores e que tem sobre estes alguma influência”. (GOFFMAN, 2008, p.29). Lutar para manter expressões sociáveis diante dos outros, projetar definições de atuação ou montar o palco para o jogo da informação são atitudes presentes na vida cotidiana, ou “vida real” e que, portanto, não poderiam ficar de fora, de acordo com nossos estudos, da “vida real da televisão”. Definir os níveis de representação num telejornal, torna-se algo ainda mais complicado se levarmos em conta seu compromisso com a “verdade” e a “realidade”, sejam estas locais, regionais, nacionais ou mundiais. Embora a existência do noticiário prescinda de “pessoas e situações reais”, não nos parece forçoso admitir que, por meio da edição, do tempo de fala de cada integrante da narrativa, das posições de sujeito que são demarcadas, dentre outros muitos fatores, haveria uma espécie de montagem de palco para o jogo de atuações que se descortina a cada edição. Em sintonia com as reivindicações libertárias dos anos 1960 numa Europa Pós-Guerra, Guy Debord relaciona a noção de representação diretamente ao conceito de espetáculo, num contexto em que se “prefere a imagem à coisa, a representação à realidade, a aparência ao ser. Tudo o que era vivido diretamente tornou-se representação, se fundindo num “fluxo” comum” (DEBORD, 1967, p.12). Para a pesquisadora Esther Hamburguer, a noção de espetáculo da “sociedade do espetáculo”

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sugerida por Debord naquele momento pode ser transposta para a sociedade contemporânea menos em seu caráter totalizante, que bane qualquer outra fala e mais em sua apreensão da imagem de maneira substantiva. E, de certa maneira, numa visão foucaultiana, onde o imagético não é menos real que a realidade e mais ligado ao poder. (HAMBURGUER, 2014). Nos argumentos de Hamburguer, o audiovisual não representa - ele é. Para além da noção de espelho, mediação, representação, a imagem é a própria vida cabendo ao pesquisador, mais do que perguntar se determinada expressão audiovisual é mais ou menos acurada, exercitar o enfrentamento em relação aos discursos opressivos, perceber as interlocuções entre as expressões, em filmes, documentários, etc.

Raquel Paiva e Muniz Sodré (PAIVA e SODRÉ, 2004, p.34), ao analisarem a mídia contemporânea como fator (ou não) de democratização e representação, salientam que, embora num contexto de crise generalizada do Estado, que faz com que o indivíduo autônomo e a representação popular sejam esmagados pelas grandes empresas e oligarquias, é “enganoso supor que a mídia extermine a política, como pretendem alguns arautos europeus da pós modernidade”. Para os autores, a ação política pode irromper na mutação dos costumes e nas estratégias comunitárias. Sodré, em sua obra-solo “As estratégias sensíveis” (SODRÉ, 2006, p.59) aponta, ainda, que os efeitos de convencimento da mídia não seguem a “razoabilidade tradicional”, de modo que a forma de vida instituída pela mídia, especialmente a TV, torna-se um outro meio vital, fonte específica de razoabilidade e afeto. A mídia aqui é vista como um forte dispositivo de fixação dos sujeitos, enquanto comunidade afetiva. E daí viria, para o autor, a necessidade de “se determinar que intensificação é essa e a serviço do que se põe”. Os resultados parciais da pesquisa realizada pelo Observatório da Radiodifusão pública da América Latina sobre as mudanças em curso nos sistemas de rádios e TV’s públicas em 10 países da América Latina colocam a participação social como um dos elementos centrais de análise. Para Moreira, Esch e Del Bianco (2012, p. 155) a radiodifusão pública é um desafio conceitual (semântico, político e cultural) na América Latina. Para além desta questão, que muito nos interessa, os autores apontam para a estreita relação entre a ascensão dos governos de esquerda e o estabelecimento de políticas de comunicação que visam aproximar emissoras tradicionalmente estatais da noção de público considerando os princípios que caracterizam a atuação desta mídia prescritos pela UNESCO (2001): universalidade, diversidade, independência e diferenciação de conteúdo da programação. Neste panorama, a “renovação da programação com abertura para produção independente”, caso do quadro “Outro Olhar”, é uma das 5 tendências5 de mudanças apontada pelos estudos. ___________________________________________________

Modelo de funcionamento, gestão e financiamento são os outros aspectos abordados na pesquisa, divulgada na Revista Estudos em Comunicação n.12, no artigo “Radiodifusão pública: um desafio conceitual”. 5

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No caso da televisão comercial- onde encontramos o quadro “Parceiro do RJ”, o compromisso com o interesse público também deve se fazer presente, mesmo que diante de proprietários e patrocinadores que influenciam no produto final. Isto se levamos em conta que os canais são concessões públicas, portanto, não isentos de responsabilidade social. Nesse sentido, nos é valioso o olhar de Becker (2009, p.2) quando atenta para a necessidade de fuga de uma perspectiva funcionalista, que sugere que o jornalismo tem se desenvolvido para atender às demandas de um volume enorme de informações da sociedade capitalista, reproduzindo valores dominantes da sociedade. Em contraste, temos, segundo a autora, um jornalismo que escapa dos interesses hegemônicos, com características próprias como forma de conhecimento social, ultrapassando, “por sua potencialidade histórica, a mera funcionalidade ao sistema capitalista, num processo que implica num saber e fazer específicos”. A própria busca por audiência também pode nortear, sem culpa, segundo nossas hipóteses, a inserção da população na produção de conteúdo para o RJTV, o que não inviabiliza nossa análise conjunta com a televisão pública. Pelo contrário, a estratégia reforça e justifica a necessidade de pesquisas voltadas para este panorama atual, bem como de comparações entre produções locais/ regionais e produtos nacionais. Para Alejandro Frigério, que aborda a construção de problemas sociais, as rotinas de produção do jornalismo estariam ofertando temas e eventos em condições desproporcionais. Aquilo que “vira notícia” poderia não ser relevante para determinados atores sociais, enquanto outros problemas seriam mascarados com a omissão dos meios de comunicação. Sendo assim torna-se necessário questionar se a imagem de um problema “em pauta” na sociedade se ajusta a sua verdadeira dimensão, num universo discursivo onde “as imagens dos problemas criam imagens das soluções” (FRIGERIO, 1993, p. 147), e afetam as políticas “concretas” de resolução dos problemas tal como estão definidos, para além da representação. E mais: como trabalhar a questão, em termos de recirculação midiática, cenário no qual emissora e público se (con-) fundem? Nesse sentido torna-se particularmente importante refletir sobre a forma de inserção da população nas narrativas televisivas, expostas quase sempre como simbólicas desse julgamento social, e também sobre as vantagens que as organizações de mídia estão tirando ao incorporar o conteúdo de não-jornalistas a seu conteúdo jornalístico. Embora nem todos os conteúdos de nossos objetos de análise possam ser categorizados como jornalísticos, podemos tomar emprestadas as reflexões de Targino e Gomes (TARGINO e GOMES, 2008, p.202) para elucidar tal impasse. Os pesquisadores apontam, em estudo sobre a comunicação para mudança social, que é nítida a configuração de um “grupo” de autores (BARBOSA, 2007; BARDOEL; DEUZE, 2001; BRAMBILLA, 2006; HYDE, 2002; PRYOR, 2002) que denomina este novo fazer de open source journalism ou jornalismo de fonte aberta

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ou participativo ou cidadão ou cívico. Embora reconheça que a participação do telespectador se alicerce, na maioria das vezes, à emissão de opinião, via internet, sobre determinados quadros, Becker (2009, p.235) adianta que a convocação do telespectador também torna-se uma preocupação das emissoras “por causa das tendências de um jornalismo mais interativo, que procura despertar na audiência a ideia de participação na construção das notícias. Desse modo, o telespectador é convidado a contar suas histórias através de fotos, vídeos ou visitas a blogs”. A recirculação midiática O termo recirculação midiática surge como uma adaptação do conceito de retroalimentação, que é um procedimento existente em diversos tipos de sistemas, sejam eles biológicos, econômicos, elétricos (circuitos), sociais ou outros. Sua utilização mais corriqueira (que também conta com o sinônimo feedback), se dá na endocrinologia6, onde determinadas glândulas produzem hormônios, que, por sua vez, estimulam a produção de outros hormônios, mantendo um complexo sistema em funcionamento. Embora o conceito de retroalimentação, num sentido restrito, refira-se simplesmente ao retorno de informações do efeito para a causa de um fenômeno, no âmbito da comunicação e das interações humanas ele não se refere a uma proposta tão simplificada. Assim, para evitar ruídos no seu (re)conhecimento, optamos por inseri-lo na dinâmica de circulação midiática, ainda que contando com os pedágios da edição televisiva. Na recirculação midiática, audiovisualmente discursiva, seriam diluídas as distinções formais entre emissor e receptor. Neste contexto, para além dos enquadramentos da emissora, os vídeos se (des)organizam em torno de questões significativas para o público (ou ao menos parte dele), expondo “outros olhares” na busca de maior diálogo com a sociedade, seja para a solução de problemas diários ou anunciação de toda a sorte de temáticas que, recolhidas em nichos específicos, dificilmente seriam “apresentadas” na grande mídia sem soar como algo “caricato” ou como “souvenir de alteridade”. Ao propor o conceito de recirculação midiática, deixamos claro que a mesma, em nossa análise, sugere a incorporação de “modos de fazer” do telejornalismo “padrão” que são utilizados pelos cidadãos quando estes deixam de ser personagens (ou apenas personagens) e passam a ser sujeitos das histórias relatadas em vídeo. Análise dos quadros “Outro olhar” e “Parceiro do RJ” O quadro “Outro Olhar” é exibido pela EBC desde abril de 2008, data da estreia do próprio ___________________________________________________

Para se falar em retroalimentação teremos antes que falar em homeostasia. O termo foi cunhado pelo fisiologista americano W.B. Cannon. É utilizado para expressar a manutenção do equilíbrio do meio interno.Este equilíbrio se refere a manutenção constante ou estática do valor fisiológico das variáveis corporais, manutenção a qual é desempenhada por todos os órgãos e tecidos dos corpos. 6

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telenoticiário Repórter Brasil. Já o quadro “Parceiro do RJ” foi lançado em janeiro de 2011, no telejornal RJTV 1ª. Edição. Até o mês de maio de 2014, (ano em que concentramos nossas análises de VT’s) foram exibidos via TV e, posteriormente postados nos sites dos respectivos canais, cerca de 590 vídeos do quadro da TV pública e 300 vídeos do canal comercial. Para a consecução desta reflexão, de caráter qualitativo, recorremos à análise dos 10 VT’S mais recentes de cada produção, exibidos via TV e disponibilizados nos sites no ano de 2014. (11/03 a 29/05 no Outro Olhar e 02/05 a 29/05 no Parceiro RJ). Foi ofertada especial atenção aos aspectos como “formatação” do vídeo, formas de fazer, potencial desarticulador de discriminações, estilo da narrativa, recursos audiovisuais utilizados, função dos “personagens” na história contada. Julgamos importante relatar ainda que, embora nosso recorte seja contemporâneo, diversas edições anteriores foram observadas em pesquisas e artigos já publicados, no intuito de se agrupar possíveis modificações nos quadros ao longo destes anos, bem como minimizar possíveis impressões “ocasionais”, exclusivas do ano privilegiado em recorte. Significativo observarmos também que cabe aos âncoras das emissoras a tarefa de “anunciar” as produções “independentes” nas cabeças de cada “matéria”, como mostram o quadros e textos da chamadas abaixo, em que os atuais apresentadores Guilherme Menezes e Katiuscia Neri (EBC-fig.1) E Mariana Gross (Rede Globo-fig.2), no papel de “arautos"7, em estúdio, sentenciam ao telespectador/internauta o tema que será exibido, além de legitimar, de antemão, sua posição “socializadora” na narrativa que será ofertada:

Figura 01: Estúdio R.Brasil

Figura 02: Estúdio RJTV

Brasília é conhecida pela arquitetura, tem prédios e pontes modernas que chamam a atenção de quem visita a cidade. Mas nos subterrâneos dessas obras de arte a vida é dura e muitas vezes inclui as drogas. É o que você vai ver no “Outro Olhar” de hoje. A direção é de Eron de Andrade. (GUILHERME MENEZES E KATIUSCIA NERI-REPORTER BRASIL, 11/04/14) Chegou a hora dos nossos parceiros. Hoje o Leonardo e o Luís Gustavo foram até o Bairro do Grajaú, pra mostrar que virou ali um depósito de carros velhos abandonados. Essas carcaças podem causar doenças. Veja só! (MARIANA GROSS, RJTV- 29/05/14) ___________________________________________________

O arauto (do francês antigo: heralt) pode ser compreendido como o mensageiro oficial na Idade Média, uma pré-forma do diplomata. O arauto fazia as proclamações solenes, verificava títulos de nobreza, transmitia mensagens, anunciava a guerra e proclamava a paz. 7

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Em pesquisas anteriores8, foi possível perceber que, no telejornalismo (nacional e regional), repórteres, cinegrafistas e âncoras colocam-se na posição de proclamadores de boas (ou não tão boas) novas e as ofertam/negociam com seu público ao longo de cada matéria que “anunciam”. E, nesses casos, como acontece na apresentação dos quadros analisados, a função de jornalista como fiscal ou mediador de determinada sociedade cede espaço para seu papel enquanto mantenedor da tessitura da trama. Ele passa a ser – ou ao menos presume isso - um indivíduo aceito e autorizado pela comunidade ou audiência para coordenar e realizar a anunciação, contar a história, ser “o arauto dos fatos”. A utilização da vinheta também é típica e recorrente no telejornalismo atual, sobretudo se falamos em quadros específicos. No caso dos dois objetos analisados, cumpre salientar a semelhança entre as vinhetas de abertura dos quadros, pautadas num discurso de tecnologia e inovação, com a presença de “avatares”, que representam de maneira cibernética/futurista os repórteres-cidadãosem contraponto com o caráter “orgânico” das produções. (figuras 3 e 4).

Figura 03: vinheta Parceiro do RJ

Figura 04: vinheta Outro Olhar

As vinhetas analisadas configuram arranjos específicos de imagem e som em cada um dos programas. Nelas, imagens e sons em movimento estabelecem representações fílmicas pautadas na ausência de humanos e colocam em destaque a presença de câmeras e microfones. A pesquisadora Esther Haburguer problematiza a questão das vinhetas dos quadros em questão, ao pontuar que No game o jogador assume a primeira pessoa do singular no comando de protagonistas movidos por controle remoto. No jornalismo proposto nesses programas são pessoas de carne e osso, cidadãos comuns, não profissionais e/ou militantes de movimentos sociais que fazem a notícia. Por que então essa associação entre a pessoa comum e o avatar? (HAMBURGUER, 2014)

Nossa hipótese neste caso - e que aqui se destaque o caráter embrionário e ao mesmo ___________________________________________________

Para aprofundamento nas questões referentes à inserção de personagens no telejornalismo consultar as obras “Dramaturgia do telejornalismo brasileiro” (COUTINHO, 2012) e “Um telejornal pra chamar de seu: identidade, inserção e representação popular no telejornalismo local” (MATA, 2013). 42

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tempo relevante do estudo das vinhetas dos quadros nesta “macropesquisa” que abarca a representação do cidadão comum na TV brasileira - parte do princípio de que o destaque ofertado aos “avatares” atua no sentido de “envernizar” a linguagem “alternativa”, “não-profissional”, “amadora” dos vídeos que vêm em sequência. Como uma espécie de tentativa de demarcar (já que as vinhetas são elaboradas pelas emissoras e não pelos “amadores”) uma “ilha de domínio técnico” cercada por bricolagens e produções “artesanais” por todos os lados. Para Flávio Lins Rodrigues, as vinhetas cumprem um importante papel nas representações audiovisuais Devido a enorme variedade de temas, muitas vezes mostrados em recortes rápidos, por meios de pequenas unidades de áudio e vídeo identificadas como chamadas, ela convida os telespectadores para sua programação e outros eventos. Assim também ela presta serviços, destaca os principais assuntos do dia e oferta as mais diversas mensagens (RODRIGUES, 2007, p.19).

Lins Rodrigues aponta outra função das vinhetas que julgamos ter sido priorizada nas produções aqui apresentadas. Assim, além de auxiliar operacionalmente as emissoras, dividindo de forma organizada os materiais, elas também “têm a função de consolidar a imagem da emissora, estética e simbolicamente”. (RODRIGUES, 2007, p.22). Mais do que anunciar e identificar os quadros de nosso recorte, as vinhetas forjam e demarcam o lugar “sacralizado” da técnica na narrativa ofertada. Convém destacar que as vinhetas são parecidas, mas não são iguais – a produção do quadro “Parceiro do RJ” é mais colorida e dinâmica. Nela, os “avatares”, em tons de azul, apontam a câmera e o microfone para quem está fora de quadro. E, de modo omnidirecional, sugerem postura de abertura em relação a dimensões desconhecidas - transformar o que não era notícia em notícia. Ao contrário da outra vinheta (Quadro Outro Olhar), de cores mais pálidas, em que os dois personagens, um masculino e uma feminina, interagem entre si, estão voltados para dentro do quadro, em um espaço que mimetiza ambientes urbanos como posto de gasolina, sempre vazios. A vinheta da produção da Rede Globo, ao contrário, apresenta a silhueta de “avatares cidadãos” ao fundo, embora tais avatares (que sugerem a população a quem os “repórteres-não-repórteres” representam) figurem como sombras, em tamanho reduzido se comparados aos “avatares de primeiro plano”, que seguram microfones e câmeras. Estas últimas semelhanças e diferenças apontadas podem ser associadas a uma postura de hierarquização que coloca o cidadão comum na base da pirâmide, os geradores de conteúdo não-jornalistas no meio e na ponta da mesma os jornalistas. Representação que se solidifica pela ausência do “cidadão comum” para além do entrevistado, no

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caso da vinheta de “Outro Olhar” (como na cena atípica das ruas vazias, sugerindo um espaço urbano “asséptico”) ou nas reduções de medidas e sombreamentos do cidadão comum na vinheta do Parceiro do RJ. Levando adiante nossa análise, merece atenção a identidade sonora das vinhetas, já que, conforme aponta Lins Rodrigues (2007) pode inclusive se sobrepor à identidade visual e se tornar a identidade de um produto9. No quadro “Parceiro do RJ”, a ligação com o “universo do popular” se estabelece por meio do ritmo hip hop10, numa inserção de 5 segundos, cuja letra é “Parceiro do RJ no ar, rapá”. A expressão coloquial “rapá” (rapaz), ao mesmo tempo que contrasta com a linguagem tecnológica e “fria” dos avatares, tenta se relacionar com a linguagem da rua, do povo, com a informalidade. No “Outro Olhar”, os treze segundos de aúdio sem letra, trazem o ritmo lounge11. Conhecida como “música de sala de estar”, que pode ser ouvida sem interferir nas conversas, o lounge da vinheta contrasta com o vazio das ruas. Som ambiente, que permite às pessoas interagirem sem serem perturbadas pelo áudio, o longe aqui não se justifica tendo-se em vista que o espaço urbano é composto apenas de um entrevistador, um entrevistado ou um câmera e mais ninguém. A tradução de lounge para lugar reforça ainda mais os contrastes áudio/vídeo apontados. No caso específico representa mais um “não-lugar” do que um lugar de fato, já que as ruas acabam não sendo nem ruas e nem salas de estar. Para além das vinhetas, a relação entre a forma com que cada programa é narrado e as pautas desenvolvidas chamou a atenção em nossa análise. No quadro “Outro Olhar”, os assuntos têm Brasília como cenário principal, embora a abrangência das pautas tenha, na maioria dos casos, importância nacional – o marco da internet ou a situação dos moradores de rua são exemplos. Já o telejornal local da Globo, como o nome sentencia, convida parceiros locais a contribuir com o conhecimento dos problemas da cidade. Tal “parceria” aumenta a capilaridade do programa levantando particularidades, de uma rua, de um quarteirão. Tais diferenças de “alcance” de pauta, entretanto, não significam a representação direta das macro/micro comunidades anunciadas nas pautas, con___________________________________________________

O autor aponta como exemplo o caso da vinheta do Plantão da Globo cuja trilha sonora segundo Soraya Costa(2015) pesquisadora do sítio www.tudosobretv.com.br é a de maior identificação popular; Segundo a pesquisadora, o Brasil se cala ao ouvir essa vinheta. Todos direcionam sua atenção para a TV. Aumenta-se o som para acompanhar uma notícia urgente. 10 O Hip Hop chega ao Brasil, vindo da Florida (EUA), pelo ritmo “Miami Bass” de músicas com batidas rápidas. O ritmo propõe uma ação de protesto político e social para o exercício da cidadania. O termo Hip Hop tem na sua etmologia as danças da década de setenta, em que se saltava (hop) e movimentava os quadris (hip). Mas também há registros de que tenha sido criado por Afrika Bambaataa (Kevin Donovan). Fonte: http://www.infoescola.com/artes/hip-hop 11 A lounge music foi criada na década de 50, caracterizando então as canções executadas em ambientes destinados a tranquilizar a mente e o corpo, especialmente em bares finos, normalmente localizados em hotéis luxuosos. Ela passou a ser tocada também nos conhecidos Chill Out, pontos das raves e festivais nos quais as pessoas podiam dar uma trégua ao bombardeio musical do cérebro, cultivando um som mais calmo. 9

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forme veremos adiante. Das histórias anunciadas em estúdio, em Brasília e na Zona Sul do Rio - em um estúdio panorâmico - e depois das vinhetas “tecnológicas” (produzidas pelas emissoras) passamos para os assuntos tratados pelos repórteres-testemunhas: das 20 produções analisadas, em 60% de cada um dos dois quadros, o “mercado de problemas sociais” citado nos estudos de Frigério, que domina o discurso do período em questão pauta-se, prioritariamente, em mazelas, sobretudo na infra-estrutura urbana. Os cidadãos comuns, embora de posse de microfones, câmeras e outros aparatos, nesses casos acabam por atribuir mais carga ao “fardo da representação” da população na TV, como sendo aquela que reclama, numa espécie de “naturalização da categoria”. Os “Parceiros do RJ” denunciam, por exemplo, problemas no Campo de São Cristóvão (27/05/14), a situação do Rio Cação Vermelho (05/05/14) uma casa que vira depósito de lixo na comunidade Nova Brasília, no Complexo do Alemão (27/05/14), ou cobram conclusão de obra em praça de Duque de Caxias (20/05/14). Já o “Outro Olhar” mostra a vida de quem mora debaixo de pontes em Brasília (11/04/14), a situação de mulheres mulas (29/03/14), mostra que o brasileiro não sabe o que consome (14/03/14), e a questão carcerária indígena, que também é problema no Brasil (26/03/14). Instigante perceber, ainda, os jogos de poderes estampados nas expressões utilizadas nas chamadas das matérias. Enquanto os parceiros do RJ “denunciam” e “ cobram”, os integrantes do “Outro Olhar” “mostram”. Cumpre destacar aqui que se trata da chamada ainda em estúdio, feita pelos apresentadores dos noticiários, o que não quer dizer, de antemão, que um quadro tenha caráter de denúncia e outro de exposição, sobretudo das mazelas. As produções veiculadas na TV Brasil e TV Globo abrem caminhos para uma discussão sobre o hibridismo entre categorias, gêneros e formatos em televisão12. Se presenciamos, nas chamadas dos vídeos, o predomínio do formato pioneiro no gênero telejornal: o noticiário, com o apresentador lendo textos para a câmera e apresentado as reportagens externas realizadas, o que vemos após esse momento é uma ruptura entre as semelhanças dos quadros (figuras 3 e 4). Os parceiros do RJ continuam, mesmo que de forma “amadora” adotando a postura “clássica” do repórter profissional, com entonação de voz, elaboração de passagens, offs, movimentos típicos de cinegrafia. A própria expressão “parceiro” sugere esta colaboração, trabalho em “co-autoria” com a emissora. É o caso da matéria de 28/05/14, cuja chamada é “Postes instalados durante obras do BRT Transcarioca em Madureira estão tortos”. Nela, o parceiro do RJ Luiz Souza exerce a função de re___________________________________________________

Nossa classificação é tributária dos estudos de José Carlos Aronchi de Souza, na obra “Gêneros e formatos na televisão brasileira” (Summus, 2004). Nesta pesquisa, os programas de televisão brasileiros são divididos em cinco categorias (entretenimento, informação, educação, publicidade e outros). As categorias são subdivididas em 37 gêneros (desenho animado, auditório, documentário, telejornal, educativo, filme comercial, eventos, religioso, dentre outros). Os formatos surgem em função das divisões dos gêneros (o gênero telejornalismo, por exemplo, buscou outros formatos, para além do telejornal, como os programas de debate e entrevista, os documentários e reportagens especiais, etc).

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pórter e é filmado pelo outro parceiro, Frances Ferreira. Após a chamada em estúdio, Luiz dá início à matéria com uma passagem em frente ao poste torto : “Olha, essa imagem pode estar um pouco estranha, mas quem está torto não sou eu não. É o poste!”. Em sequência, o repórter, em entrevistas, registra as reclamações dos moradores, receosos, em suas declarações, de que os postes caiam sobre eles. Finalizando a matéria, em estúdio, os apresentadores repassam ao telespectador a resposta da Secretaria de Obras sobre a questão.

Figuras 3/4: frames da Matéria “Postes tortos em Madureira” (Parceiro RJ-28/05/14)

A ex-apresentadora do RJTV, Ana Paula Araújo13 caracterizou como “impressionante” a participação do público no envio de imagens de temporais, tragédias, configurando a relação entre o RJTV e o público como uma “parceria que tem dado certo”. Este modo de fazer e pensar o jornalismo, considerando a participação do telespectador, incentivando a improvisação e com uma linguagem que aproxima o jornalista do receptor da notícia é considerado por Ana Paula um “jornalismo vivo” e mais vibrante. Araújo refletiu, ainda, que o principal desafio do telejornal é levar informação bem checada, mas com linguagem mais acessível, sendo o “Parceiro RJ” o exemplo mais expressivo da participação do público no RJTV. Não tem dia que eu não saia na rua sem voltar com um papelzinho com um telefone de alguém pedindo uma matéria, denúncia, que vá lá na rua para mostrar. Muitas vezes não temos uma equipe para mostrar estas histórias inusitadas que fazem um jornal diferenciado. Na cobertura da visita do Obama, dois de nossos parceiros fizeram a melhor imagem porque moravam perto do lugar que ele visitou. O vídeo deles foi usado pelo Jornal Nacional e isso é muito interessante (2012).

Nas produções do “Outro Olhar”, a sequência de imagens e textos ora tateia pelo telejornalismo, mas por outras vezes se envereda por outras possibilidades discursivas. A produção “Outro Olhar mostra consequências da não aprovação do Marco Civil” (18/03/14) é exemplo deste mosaico de representações. Naor Elimelek e Gabriel Ranzani são convocados pelos âncoras em estúdio, que ___________________________________________________

A apresentadora participou da palestra “Mudanças no telejornalismo”, em 30/03/12 na Faculdade de Comunicação da UFJF. 13

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ressaltam que a dupla de cidadãos assina a direção do vídeo. Sem passagens, offs ou entrevistas com populares ou especialistas, o vídeo exibido no telejornal da TV Brasil, apresenta nuances que o aproximam mais de uma esquete de humor, como as apresentadas na rede por produtoras como Porta dos Fundos e Parafernalha14, do que de uma reportagem telejornalística. O vídeo mostra (fig.5), por meio de um jogo dramático de encenação, os percalços de um jovem que tenta utilizar a internet e ouve, por telefone, absurdos da atendente da empresa, numa suposta situação futura em que o Marco Civil não estaria aprovado. A utilização de trilha sonora, os closes em objetos como torneira, fechadura da porta, acendedores do fogão contribuem para a ambientação da narrativa. Tomás, personagem fictício, deseja retomar seus serviços de internet, e recebe, por meio de uma ligação telefônica, informações de uma atendente fanha e “gerúndica”, que oferece serviços a preços absurdos ao “ator”. Ao final da produção, um quadro adverte o telespectador que “sem a garantia da neutralidade da rede este diálogo pode ser real em pouco tempo” (fig.6).

Figura 05

Figura 06

Além deste exemplo, as animações e exibições de slideshows com fotografias em outras produções fogem do formato noticiário e se aproximam, por exemplo, das inúmeras montagens “artesanais” que circulam pela internet, em que os usuários da rede criam suas “interpretações visuais alternativas” para canções, narrações e outros discursos, numa narrativa que se aproxima da “estética do videoclipe”, onde imperam a bricolagem15 e o experimentalismo. É o caso da produção “Outro olhar revela que brasileiro não sabe realmente o que consome- (14/03/14), feita pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Sem um repórter conduzindo a narrativa, após a chamada em estúdio surge um quadro com a pergunta “ O que você acha que tem nessas bebidas?”. Em seguida, crianças oferecem respostas do tipo “Não faço a mínima ideia” e em seguida lêem os rótulos de sucos, achocolatados e outras bebidas. ___________________________________________________

Porta dos Fundos e Parafernalha são nomes de coletivos criativos que produzem audiovisual para web, com foco nas esquetes de humor. Em menos de um ano de existência, o Porta dos Fundos, criado em 2012, tornou-se o canal brasileiro na internet a atingir mais rapidamente a marca de 1 milhão de inscritos e venceu o prêmio da APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) de “Melhor Programa de Humor Para TV”, mesmo sendo um canal exclusivamente online.

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Considerações finais Quando propusemos, no título deste trabalho, a questão do “desigual no telejornal”, mais do que tratar da questão da inserção da população na narrativa audiovisual, percebemos que as desigualdades estão além de uma alteração do lugar do público nestes espaços. Projeções discursivas de jornalistas, não jornalistas, parcerias fluidas e outros olhares sobre os “modos de fazer” televisão (a recirculação) que acabam por demarcar diferenças (de formato, representação, enquadramentos, etc) que estão longe de ser algo natural ou objetivo. Temos “representações em cascata”, narrações de narrações, identidades que não podem ser tratadas de maneira essencialista e sim como discursos que emergem e submergem, exigindo um constante exercício de reflexão. Nestas clivagens, que temas merecem problematização? Por serem, em tese, espaços de experimentação onde a produção parece - ou ao menos é embalada (em sentido duplo) - por certa aura de “liberdade”, os vídeos colaborativos, no período analisado, mais do que respostas, nos ofertam sintomas sobre a participação popular no telejornalismo e sobre a recirculação midiática. Hoje, o produtor-amador contemporâneo dá pistas de que “leu” a gramática profissional. Mas, mostra também que a subverteu, criou neologismos e transbordou, ainda que timidamente, o histórico processo de controle social sobre sua representação. Vários estudiosos demonstram que as rotinas produtivas dos meios influem em como se constroem as notícias, sendo estes meios uma arena especialmente apropriada para instaurar um problema. Este, entretanto, recebe reforços de outros âmbitos (acadêmico, religioso, popular). Os “reclamadores” ou claims makers nas palavras de Frigério passam a ser atores sociais de fundamental importância na construção de problemas sociais e representações das diferenças. Que à população cabe um papel do reclamador típico nos telejornais não há novidade. Por outro lado, a representação deste reclamador, sobretudo nestes casos em que o mesmo atua como ___________________________________________________

Bricolagem é um termo com origem no francês "bricòláge" cujo significado se refere à execução de pequenos trabalhos domésticos. São atividades manuais de execução simples ou mais trabalhosa, onde o próprio consumidor é responsável pelo trabalho realizado. O processo de bricolagem está relacionado com o conceito de DIY (Do It Yourself) que significa "Faça você mesmo", um conceito criado nos Estados Unidos, na década de 1950. Em muitos casos, o método de bricolagem funciona como hobby, proporcionando momentos de prazer e satisfação em quem o executa.

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parceiro, colaborador, “semi-repórter” nos oferta indícios de mudanças. A vítima - tipo óbvio de reclamador, afetada por um problema e exigindo solução não figura mais sozinha entre os reclamadores audiovisuais: vem acompanhada, nos quadros analisados, de reclamadores ativistas, motivados por uma ideologia, profissionais, grupos de pressão. Reclamadores especialistas – não mais ou apenas em determinada área científica, como medicina ou psicologia, mas especialistas em um determinado bairro ou região. Desse modo, as múltiplas maneiras de fazer e as diversas leituras transformam os produtos midiáticos, de maneira a construir resistências às imposições exteriores, e fazer compreender que os grupos sociais transformam aquilo que consomem. E por mais que pesem os fardos da representação e os filtros das emissoras, podemos perceber que a audiência- na função de produtora de conteúdo- pode transformar sua auto-representação ou mesmo subvertê-la em benefício próprio. Nas palavras de Alex Primo (PRIMO, 2008, p.5) “o julgamento sobre a relevância e credibilidade das informações não parte de um olhar discriminador externo, mas sim do próprio cidadão diante do composto informacional midiático a que se expõe”. Ao atualizar o cidadão sobre assuntos de seu interesse, as produções analisadas, no contexto da recirculação midiática, nos fornecem indícios de que cresce significativamente a importância do compartilhamento e discussão sobre visões de mundo distintas que podem ser obtidas a partir de um mesmo acontecimento. Estabelece-se, desta forma, uma rede de conveniências entre uma determinada audiência e as empresas de comunicação, que aproxima produtores e consumidores de jornalismo audiovisual – “oficialmente legitimados” ou não em suas funções.

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As imagens fotográficas como moldura cinematográfica Bettina Wieth Gonçalves

As imagens fotográficas como moldura cinematográfica

opções estéticas de enquadramento em filmes contemporâneos Bettina Wieth Gonçalves1 Universidade Federal de Pelotas

Resumo: O presente artigo objetiva observar em que medida as opções de enquadramentos em obras audiovisuais contemporâneas podem ser interpretadas a partir da coexistência das noções de centrípeto/centrífugo e atenção/dispersão, com base nos conceitos propostos e discutidos pelos autores André Bazin (2014), Jacques Aumont (2004) e Jonathan Crary (2013). Tendo em vista essa discussão e seus desdobramentos, este estudo pretende verificar a maneira com que elementos pictóricos são inseridos no quadro fílmico, especialmente na observação de dois longas-metragens contemporâneos, Os Famosos e os Duendes da Morte (Esmir Filho, Brasil, 2009) e Post Tenebras Lux (Carlos Reygadas, México, 2012). Palavras-chave: percepção estética; enquadramento; centrípeto e centrífugo; atenção e dispersão.

Abstract: This essay aims to observe the extent to which frameworks options in contemporary audiovisual films can be interpreted from the coexistence of the notions centripetal/centrifugal and attention/dispersion, from the concepts proposed and discussed by the authors André Bazin (2014), Jacques Aumont (2004) and Jonathan Crary (2013). In view of this discussion and its consequences, this study intend to verify the way pictorial elements are inserted in the film structure, especially by the observation of two contemporary films, Os Famosos e os Duendes da Morte (Esmir Filho, Brazil, 2009) e Post Tenebras Lux (Carlos Reygadas, Mexico, 2012). Key words: aesthetic perception; framework; centripetal and centrifugal; attention and dispersion. ___________________________________________________

Mestranda em Artes Visuais, da linha de Processos de Criação e Poéticas do Cotidiano (PPGAV/UFPel), sob orientação da profª Angela Pohlmann e co-orientação do prof. Guilherme da Rosa. Graduada em Cinema e Audiovisual (2014) pela mesma instituição. 1

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A percepção estética do enquadramento fílmico Entre as características presentes dentro do processo de realização de filmes, em relação à forma da composição fotográfica, encontram-se definidas as diversas opções estéticas de enquadramento. Partindo-se dessa localização, o presente trabalho tem proximidades com os diversos elementos necessários na composição do quadro fílmico. Na imagem cinematográfica, os movimentos de câmera, a distância focal e a profundidade de campo são comumente utilizados para contextualizar a trama, evidenciar detalhes do cenário ou criar uma atmosfera que assegure a sequência desejada. Da mesma forma com que o realizador audiovisual preocupa-se em incorporar essas e outras práticas fotográficas, podem ser incluídas questões estéticas nos enquadramentos. No entanto, isto pode não indicar, necessariamente, uma característica exclusiva do cinema de autor, no sentido definido pela Política dos Autores de André Bazin (1957) e do movimento da Nouvelle Vague, ou de filmes conceitualmente artísticos e experimentais. A construção de uma percepção estética da imagem, pensada previamente à realização, pode ser aplicada de diversas formas na linguagem fílmica, sendo adaptada conforme a proposta narrativa, estando de acordo com gêneros ou poéticas específicas. De acordo com essa perspectiva, ao observar diversas linguagens fílmicas presentes no cinema contemporâneo, torna-se importante uma discussão que encaminhe outras possibilidades de compreensão considerando a articulação estética, não apenas sob o ponto de vista técnico. Assim, diante desses pressupostos, pretende-se investigar as potencialidades de questões estéticas a partir do plano cinematográfico. A temática que direciona este estudo reporta-se na relação entre o pictórico e o fílmico, em acordo com as noções de centrípeto e centrífugo, inicialmente propostas por Bazin (2014) e desdobradas em Jacques Aumont (2004). Paralelamente às possibilidades de relação entre os conceitos de centrípeto e centrífugo dentro do enquadramento fílmico, a questão da atenção e dispersão, proposta por Jonathan Crary (2013), também entra no interesse teórico deste estudo. Do mesmo modo, busca-se trazer à discussão as temáticas sobre a noção de plano, a imagem moderna e a ideia de superfície (DUBOIS, 2004), a questão da representação (COUCHOT, 1993) e os conceitos de punctum e studium (BARTHES, 1984). Considerando essas questões teóricas, aponta-se como objetivo principal desta pesquisa observar em que medida as opções de enquadramentos em obras audiovisuais contemporâneas podem ser interpretadas a partir da coexistência das noções de centrípeto/centrífugo e atenção/ dispersão. Assim, como recorte, dois filmes foram selecionados: Os Famosos e os Duendes da Morte ___________________________________________________ 2

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Kasimir Malevich, The Non-Objective World - The Manifesto of Suprematism (New York: Dover Publications. Inc., 2003), 67.

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(Esmir Filho, Brasil, 2009) e Post Tenebras Lux (Carlos Reygadas, México, 2012). A escolha ocorreu pela identificação empírica da presença de algumas questões em seus enquadramentos que, em uma interpretação da autora, podem dialogar esteticamente com a pintura. Linhas, horizontalidade, centralização e relações entre peso e leveza2 nas composições são alguns exemplos destes elementos estéticos que podem estar presentes no quadro fílmico das obras selecionadas. Dessa forma, pretende-se verificar a maneira com que elementos pictóricos são inseridos no quadro fílmico de Os Famosos e os Duendes da Morte e Post Tenebras Lux, por meio de práticas fotográficas utilizadas pelo realizador audiovisual. Quadro teórico: reflexões e questionamentos No texto Pintura e Cinema, de 1951, Bazin introduz sua reflexão acerca das relações entre o pictórico e o fílmico ao apontar que, com o intuito de utilizar a pintura, o cinema a trai de todas as maneiras possíveis. Em suas análises sobre dois filmes de Alain Resnais na cinematografia francesa, Van Gogh (1948) e Guernica (1950), o autor defende que um cineasta, ao adaptar a temática da pintura para o cinema, não deve simplesmente apresentar um registro histórico ou biográfico. Ao evitar esta maneira “pedagógica e crítica” (BAZIN, 2014, p. 206) de relatar o tema, o cineasta não faz uso de aspectos exclusivos do pictórico para então explorá-lo a partir de uma linguagem própria do cinema. Para Bazin, um registro claro e objetivo é característico da imagem cinematográfica, que, juntamente com a prática fotográfica, tem como intenção, desde seus primórdios, atingir um ideal de verossimilhança com a realidade. Conforme melhorias técnicas e tecnológicas disponíveis, estas formas de expressão artística encontram caminhos para alcançar este ideal de realismo. Contudo, para o autor, no que diz respeito às formas que o cineasta encontra para abordar aspectos da pintura em sua realização, tanto o conteúdo quanto as formas pictóricas são deturpadas ao serem representadas cinematograficamente. Isso ocorre, sobretudo, devido à transposição da tela limitada por uma moldura para a tela do cinema, cujo limite está contido no espaço off 3. Bazin acredita que a moldura possibilita à pintura uma espécie de oposição à própria realidade, funcionando ainda como uma demarcação da representação visual existente. Portanto, de acordo com essa perspectiva, a moldura pictórica é centrípeta, já a tela cinematográfica, centrífuga. ___________________________________________________

Nesta pesquisa, serão observadas as relações de equilíbrio entre peso e leveza nas composições fotográficas dos enquadramentos. Segundo Rudolf Arnheim, “numa composição equilibrada, todos os fatores como configuração, direção e localização determinam-se mutuamente de tal modo que nenhuma alteração parece possível, e o todo assume o caráter de ‘necessidade’ de todas as partes. Uma composição desequilibrada parece acidental, transitória e, portanto, inválida” (ARNHEIM, 2005, p.13). 3 O espaço off, ou fora-de-campo, pode ser definido como “(...) o conjunto de elementos (personagens, cenário etc) que, não estando incluídos no campo, são contudo vinculados a ele imaginariamente para o espectador, por um meio qualquer” (AUMONT, 2006, p. 24). 2

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Segundo as constatações feitas por Bazin, que sugere uma oposição entre os conceitos de pictórico e fílmico a partir de suas definições sobre o quadro, Jacques Aumont desenvolve um desdobramento desta discussão ao propor outras maneiras de compreensão com relação às formas que elementos pictóricos podem ser inseridos na imagem audiovisual. Para o teórico francês, uma das questões fundamentais nas relações entre o pictórico e o fílmico é a polarização entre a moldura/ quadro da pintura e do enquadramento/quadro do cinema. Diferentemente da pintura, que é uma imagem fixa, o quadro cinematográfico é constituído por frames em sucessão, que, em sincronia, causam uma ilusão de movimentação. Apesar disso, no processo de construção de um filme, cada plano possui sua própria movimentação interna que é determinada tanto pela mise-en-scène proposta, quanto pela composição fotográfica do quadro. Na imagem pictórica, “embora o pintor seja mais ou menos obrigado a respeitar uma certa lei perspectiva, ele brinca com liberdade com os diversos graus de nitidez da imagem” (AUMONT, 1995, p. 33). Todavia, na imagem cinematográfica, a câmera trabalha mecanicamente com a nitidez, que pode ser regulada de acordo com a quantidade de luz disponível e a distância focal, dependendo ainda de fatores como o posicionamento da câmera com relação ao objeto. Dessa forma, dentro do quadro, elementos como a profundidade de campo e a nitidez são utilizados pelo pintor e pelo cineasta de maneira que seja possível garantir a expressividade desejada para a composição de suas imagens. Porém, segundo Aumont, é na luz e em suas mais variadas formas de manipulação que se encontram as principais divergências entre o pictórico e o fílmico. No cinema, dentro da prática fotográfica, a iluminação é o elemento estrutural de maior força, possuindo um caráter ontológico. Já na pintura, a luz é explorada através da mistura de cores, que, em diferentes tons, podem representar com exatidão os efeitos desejados pelo artista. Contudo, na imagem audiovisual, mesmo que a luz possa ser obtida facilmente através de métodos naturais e artificiais, a maior dificuldade reside em sua manipulação, sendo necessário conciliar as limitações causadas por esta nos enquadramentos com o grau de realismo que a iluminação de determinada cena exige. Para o teórico, querendo fazer tudo da pintura, e fazê-lo melhor do que ela, o cinema provocou, ao longo de sua história, incessantes paralelos entre um vocabulário formal do material pictórico, formas e cores, valores e superfícies, e um vocabulário – sempre a ser forjado – do “material” fílmico. O fílmico quis absorver também o pictórico (Id., 2004, p. 168). Ao refletir sobre as mais diversas formas que o quadro se apresenta, “em sua manifestação pictórica mais corrente” (ibidem, p.112), Jacques Aumont propõe três denominações: o quadro-objeto, o quadro-limite e o quadro-janela. Como o primeiro, e também o mais literal destes aspectos, o quadro-objeto tem a função de rodear a obra, emoldurando-a. Ao estabelecer um limite físico para a

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representação visual que contém, seja na forma de uma moldura esculpida ou com um simples entorno de madeira, o quadro-objeto também pode representar a valorização comercial da pintura. Por outro lado, de maneira menos palpável, o quadro-limite representa a delimitação visual da imagem, definindo suas dimensões e aspectos relacionados à composição. Posteriormente, o quadro-janela é definido por Aumont como uma espécie de abertura sobre o imaginário e o visível. Ao mesmo tempo em que restringe, alcançando suas potencialidades expressivas, o quadro-janela também constitui um limite para a visão. A partir dessas considerações, torna-se possível observar que estas três funções do quadro estão interligadas, agindo juntas para caracterizar os elementos de investigação nas relações entre o pictórico e o fílmico. Retomando Bazin, que acreditava em uma divisão binária dos quadros pictórico e fílmico, propondo que o primeiro é centrípeto enquanto o segundo é centrífugo, Jacques Aumont aponta que “em geral, ele [quadro] faz os dois. Limite e janela – ou, na terminologia de Bazin, “quadro (moldura) x máscara” -, a imagem pictórica e a imagem fílmica jogam com os dois, e, no mais das vezes, com os dois juntos” (ibidem, p. 119). Nesse sentido, vale ressaltar que a reação do espectador em frente à imagem cinematográfica se dá como se estivesse “diante da representação muito realista de um espaço imaginário que aparentemente estamos vendo” (Id., 1995, p. 21). É o quadro fílmico que delimita a exata porção deste espaço, e fora deste campo de visão, o espectador tende a imaginar aquilo que poderia ser revelado com um simples deslize da câmera. Segundo Aumont, desde o seu surgimento, o cinema se utilizou de várias formas para dominar os meios de comunicação existentes entre o espaço off e aquilo que está em quadro. Algumas destas formas podem ser bastante recorrentes, como as saídas e entradas dos personagens em quadro, que não precisam se dar somente pelos lados, como também na parte inferior e superior do enquadramento. O teórico também aponta as variadas “interpelações diretas do fora-de-campo por um elemento do campo, em geral, um personagem” (ibidem, 1995, p. 24), como os usuais olhares e gestos direcionados para fora do quadro. Outro exemplo que ilustra as diversas maneiras de ficcionalizar o espaço off se encontra nos enquadramentos que recortam apenas uma parte do corpo de um personagem, o que implica automaticamente que o restante não revelado pela câmera está contido no fora-de-campo. Em proximidade com a discussão sobre o enquadramento empreendida por Jacques Aumont, podemos situar a perspectiva de Jonathan Crary. Ao expor e problematizar o surgimento da atenção no século XIX, Crary realiza um levantamento histórico desta noção como questão fundamental para compreender as alterações nos modos de ver. Com a ruptura do modelo clássico de visão, que prezava pela verdade e objetividade, ocorreu o surgimento de um novo modo de ver que englobava as experiências subjetivas do olhar, dependendo cada vez mais dos estados de atenção e

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dispersão. Assim, a autonomia da visão provocou uma espécie de libertação da experiência perceptiva ao desprender-se da ideia de que o olhar apenas se limitava a responder a estímulos externos. Para Crary, esta necessidade de mudar constante e rapidamente os focos da atenção é um problema intrínseco ao observador moderno, cuja experiência perceptiva transita em um universo repleto de informações. O autor também acredita que a atenção funciona como uma espécie de processo seletivo da percepção, que isola determinados fragmentos do campo visual. Consequentemente, o observador tem sua percepção definida não somente por aquilo que compõe seu foco de atenção, como também pelo restante que foi despercebido, construindo um estado de dispersão. Portanto, a atenção e a dispersão não são interpretadas pelo autor como estados distintos e opostos, mas complementares que funcionam de maneira dinâmica. Um ponto fundamental para melhor compreensão desta questão está na análise realizada por Jonathan Crary do quadro Na Estufa (Dans la Serre, 1879), de Edouard Manet. Dentro do conjunto da obra do pintor, este quadro, em específico, sofreu fortes e incisivas observações críticas no período em que esteve exposto no Salão de 1879.

Figura 01 - Na Estufa (Dans la Serre, 1879), Edouard Manet. Fonte: Art Might 4.

Na Estufa foi considerado como um afastamento do estilo ambicioso de Manet, justamente pelo fato do artista fazer uso de uma técnica considerada conservadora, com traços e contornos contidos, o que representava um contraste com demais produções suas da mesma época. Para Crary, esta obra de Manet é como um mapeamento complexo das ambiguidades da atenção visual, funcionando também como a figuração de um conflito presente na lógica moderna da percepção. Neste ponto, duas fortes tendências entram em questão. A primeira é caracterizada pela integridade da visão, que, a partir de uma obsessão com a unidade de percepção, pretende garantir um mundo real ___________________________________________________

Disponível em: http://artmight.com/Artists/Manet-Edouard-1832-30-April-1883/Manet-Edouard-Dans-la-Serre-end -271849p.html. Acesso em nov. 2014. 4

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e funcional. Já a segunda vertente está na dinâmica da troca psíquica e econômica, “de equivalência e substituição, de fluxo e dispersão” (CRARY, 2013, p. 114), que asseguram a presença de uma força coesiva em Na estufa. Além disso, outro sinal desta coesão pode ser notado no rosto feminino pintado com esmero por Manet, o que marca uma mudança em sua prática. Crary aponta, neste quadro, que a figura da mulher se mostra como “um corpo cujos olhos estão abertos, mas nada veem – isto é, não apreendem, não fixam, ou não se apropriam de maneira prática do mundo em volta. São olhos que denotam um estado momentâneo de suspensão da percepção normativa” (ibidem. p. 122). Do mesmo modo, Manet sugere uma ambiguidade entre a atenção e a dispersão ao pintar os olhos do homem. Quase desfigurados, os dois olhos são mostrados de maneira assimétrica, pois enquanto o olho direito está aberto e direcionado à mulher, a parte esquerda da face do homem revela apenas a pálpebra abaixada e seus cílios. Assim, o pintor configura dois eixos óticos dissociados, o que descaracteriza a objetividade pontual do olhar. Através de uma representação distinta das formas de atenção nestas duas figuras de Na estufa, Manet revela um desdobramento da atenção em pontos específicos de dispersão no quadro. Neste caso, no olhar do personagem masculino, é possível encontrar um exemplo de trânsito entre os estados de atenção e dispersão. Sendo assim, de acordo com Crary, a figuração da atenção nesta obra aponta para uma modernidade perceptiva, rompendo com a estabilidade do assunto. No ensejo desta discussão, na evolução das técnicas dos processos de criação e reprodução de imagens, é possível perceber uma constante busca pela aproximação definitiva entre a figuração e o real. Até o século XIX, as diversas formas de registrar imagens tinham, basicamente, a função de representar o universo, mesmo estando sujeitas à habilidade de quem as executava. Porém, querendo obter maior precisão e praticidade na produção destas imagens, ocorreu uma busca pela automatização de técnicas de criação e reprodução. Conforme Edmond Couchot (1993), a imagem se dá como representação do real, da captação até o momento de ser contemplada, tornando assim o espaço e o tempo homogêneos. Assim, com o surgimento da fotografia e do cinema, a representação imagética do mundo foi marcada de maneira decisiva, pois as técnicas tornaram-se cada vez mais complexas e eficientes no que diz respeito ao aperfeiçoamento e à decomposição analítica de imagens. Segundo o autor, Com a fotografia, a própria Representação se automatiza. Essa automatização, paradoxalmente, em vez de liberar do real a fotografia, como pôde fazê-lo a perspectiva no quadro mais “realista”, jamais conseguiu que se descolasse dele. [...] Da mesma forma, traço de um instante privilegiado – a pose que reuniu no mesmo lugar o objeto a ser fotografado, sua imagem e o fotógrafo -, ela adere também ao tempo, inscreve-se em seu fluxo, em sua cronicidade (COUCHOT, 1993, p. 40).

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Em paralelo às ideias revisadas para a pesquisa, cabe menção, também, à Roland Barthes e a introdução dos conceitos de punctum e studium, formadores de uma espécie de dualidade que norteia o interesse do observador pela imagem fotográfica. O studium é um envolvimento objetivo guiado conscientemente através da experiência visual, que evidencia características genericamente difundidas na composição fotográfica. Para Barthes (1984), o studium funciona como um interesse médio, uma espécie de afeto geral mediado pelo contexto cultural em que o observador está inserido. Assim, “o studium não quer dizer estudo, mas [...] uma espécie de investimento geral, ardoroso, é verdade, mas sem acuidade particular” (ibidem, p. 45). Por conseguinte, o punctum é justamente o elemento que mais se impõe, sendo aquilo que fere ou atrai o observador de maneira incisiva. Dessa forma uma fotografia é “unária” (ibidem, p. 66) quando contiver um studium sem a presença de um punctum, provocando um envolvimento mediano onde nada em especial desperta interesse do olhar. Porém, segundo Barthes, não é possível estabelecer regras de conexão entre o punctum e o studium, pois se relacionam ao mesmo tempo, em uma espécie de co-presença. Da mesma forma, nenhum tipo de análise é realizada para a compreensão do punctum em um enquadramento, ela acontece naturalmente, bastando apenas o impacto próprio da composição fotográfica. Além disso, o autor também acredita que ao enquadrar uma fotografia, o visor acaba delimitando sua representação visual, sendo criado um “campo cego” que oferece ao observador a possibilidade de imaginar o restante daquele enquadramento. Portanto, Barthes afirma que “o punctum é uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem lançasse o desejo para além daquilo que ela dá a ver” (ibidem, p. 89). Por fim, cabe relacionar o pensamento de Phillipe Dubois (2004), que propõe outras formas de compreensão acerca de transformações técnicas e estéticas que ocorreram no cinema frente a outras mídias digitais e eletrônicas, como o vídeo e a televisão. Segundo o autor, na contemporaneidade, torna-se necessário pensar nas possibilidades do hibridismo imagético especialmente por meio de elementos da estética videográfica. Para isso, Dubois estabelece reflexões acerca de conceitos amplamente utilizados no meio audiovisual, repensando suas definições. O plano, unidade elementar da linguagem cinematográfica, encontra significação usual a partir de sua característica estrutural, como um pequeno componente do processo construtivo da montagem fílmica. Ao desdobrar essa definição, Dubois acredita que “o plano é o “fiador” do universo fílmico concebido como totalidade intrínseca. Em outros termos, o plano é também aquilo que funda a ideia de Sujeito no cinema” (ibidem, p. 75). Além disso, estendendo a discussão até o cinema moderno5, Dubois relaciona a busca pela hibridização de imagens através de interpelações diretas com outros dispositivos que poderiam trazer diferentes implicações ao meio cinematográfico. Desejando divergir do uso tradicional de uma

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profundidade presente na dramaturgia da cena, sendo representada por meio da imagem fotográfica, “a cenografia moderna prefere suprimir todo mergulho na profundidade; nela, o espaço se fecha sobre si mesmo: não há nada a ver atrás, nenhum suplemento no espaço off, [...] apenas sua superfície” (ibidem, p. 213). As opções de enquadramento em Os Famosos e os Duendes da Morte Os Famosos e os Duendes da Morte é um filme brasileiro lançado em 2009, realizado pelo diretor Esmir Filho, que baseou seu roteiro no livro homônimo de Ismael Caneppele. Em seu longametragem de estreia, Esmir Filho consegue retratar uma experiência de imersão no universo interno do adolescente, tema anteriormente explorado pelo diretor em seus curtas-metragens Saliva (2007) e Alguma Coisa Assim (2006). Dentro da cinematografia contemporânea brasileira, Os Famosos e os Duendes da Morte se destaca ao adotar uma forte linguagem autoral, retratando de maneira sensorial as angústias e o vazio presentes no íntimo do protagonista. Além disso, insere-se em um eixo temático de filmes nacionais que retratam aspectos do universo adolescente, como As Melhores Coisas do Mundo (Laís Bodanzky, 2010), Morro do Céu (Gustavo Spolidoro, 2009) e Antes que o Mundo Acabe (Ana Luiza Azevedo, 2009). Na obra de Filho, a hibridização entre fotografia, vídeo e a linguagem linear clássica do cinema dá ao texto fílmico uma atmosfera onírica permeada por sutilezas poéticas, que são expressadas através da direção de fotografia de Mauro Pinheiro Jr. Em um dos momentos-chave do filme de Esmir Filho, o personagem Garoto Sem Nome6 (Henrique Larré) encontra Diego (Samuel Reginatto) na ponte de ferro da cidade. Naquela situação, o personagem de Reginatto conta ao amigo sobre o suicídio da mãe de um colega escolar, motivo pelo qual haviam algumas pessoas reunidas no local. Em uma espécie de flashback que remete o espectador ao momento anterior à queda de Garota Sem Pernas (Tuane Eggers) e Julian (Ismael Caneppele), um movimento de câmera vertical revela os personagens na mesma ponte. Posicionados de costas um para o outro, sendo que ela é retratada em primeiro plano e ele fica ao fundo, ambos permanecem imóveis por um tempo, em silêncio. Observando esta sequência, é possível perceber que existe uma relação entre a duração do plano e sua composição fotográfica que permite ao olho uma maior mobilidade no enquadramento. Conforme ilustrado abaixo, na figura 2: ___________________________________________________

Segundo Philippe Dubois, o cinema moderno “é aquele que, tomando os clássicos como pais, irá, com força e violência variáveis, afastar-se do classicismo instituído [...]. É um cinema da ruptura, mas de uma ruptura em relação a um jogo funcionalista excessivamente articulado” (DUBOIS, 2004, p. 147). 6 Garoto Sem Nome ou Mr. Tambourine Man são denominações utilizadas para o personagem interpretado por Henrique Larré dentro da narrativa do filme. O mesmo se aplica para Garota Sem Pernas ou Jingle Jangle, personagem de Tuane Eggers. 5

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Figura 02 - Plano de Os Famosos e os Duendes da Morte Fonte: imagem capturada pela autora.

Os contrastes entre luz e sombras, as linhas que compõem a ponte de ferro, a baixa profundidade de campo que ocasiona o desfoque em Julian e o direcionamento do olhar dos personagens promoveram uma aproximação entre as molduras centrípeta e centrífuga. Além disso, o enquadramento suscita uma forte complementação imaginária ao que mostra, marcando a presença do fora de campo. Posteriormente, em um plano impactante, mas revelado com sutileza, a narrativa mostra a personagem de Eggers cometendo suicídio ao se jogar de uma ponte. Contudo, a escolha fotográfica fez com que a situação fosse mostrada por intermédio do rio, registrando o momento da queda no reflexo da água. Dessa forma, resgatando a discussão teórica de Barthes, observa-se que o punctum do enquadramento é a personagem de Eggers pulando da ponte sendo retratada dentro desta escolha estética da direção de fotografia, segundo uma interpretação da autora. Ao mesmo tempo, o reflexo do rio confere uma impressão de textura ao enquadramento que, desvinculado da trama e observado como imagem estática, poderia ser tomado por uma pintura. Estas questões podem ser observadas abaixo, na figura 3:

Figura 03 - Plano de Os Famosos e os Duendes da Morte Fonte: imagem capturada pela autora.

Da mesma maneira, na narrativa, também é possível identificar questões emocionais dos personagens que contribuem para o impacto causado pela situação apresentada. Acredita-se que o espectador, ao envolver-se na trama, busque elementos que acentuem as sensações despertadas

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por esta. Visualmente, isto pode ser interpretado como uma espécie de destaque presente na composição imagética, um punctum, que também sugere delicadamente uma continuidade no espaço off. Em outro momento da narrativa de Os Famosos e os Duendes da Morte, o espectador se encontra mais familiarizado com o cotidiano de Garoto Sem Nome, o que torna possível perceber a atmosfera melancólica e solitária que seus dias possuem. Ademais, observa-se também a distância entre o personagem e sua mãe, por quem se sente incompreendido. Assim, em uma sequência específica que retrata a casa da família, a impressão de que Garoto Sem Nome está em um ambiente com o qual pouco se identifica é reforçada. Isto é expresso especialmente através da direção de arte que faz uso de objetos simples, porém antiquados, dispostos em variados tons pastéis. Por outro lado, tanto a exposição destes objetos, ordenada por suas cores, quanto a divisão dos elementos em quadro fortalecem o equilíbrio entre peso e leveza na composição. A sequência em questão está ilustrada abaixo, na figura 4.

Figura 04 - Sequência de Os Famosos e os Duendes da Morte Fonte: imagem capturada pela autora.

Além disso, a diegese fílmica7 também desempenha um papel latente de influência nesta questão. Isso se intensifica no momento em que a mãe entra em cena ao fundo, pois é possível perceber a tensão que este encontro causa no personagem de Larré. O adolescente não se identifica com a mãe demonstrando rejeitar suas opiniões e tentativas de diálogo, o que acaba restringindo sua convivência. Logo, com sua entrada em cena, sabe-se que a atmosfera da narrativa se modifica, o que possibilita interpretação semelhante sobre o enquadramento. A questão da influência da diegese sobre o ponto de vista estético também pode ser aplicada com relação à determinação de focos de atenção e dispersão dentro do quadro, que também contribuem para definições de peso e leveza. Com a chegada da mãe e o começo de sua interação com o ambiente e com a mascote Inês, automaticamente se instaura um ponto de atenção. Isso contrasta

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com o desfoque da personagem que está situada no fundo do quadro, em um recorte mais iluminado da cozinha, como se pode observar acima na figura 4. Porém, este foco de atenção complementa o quadro, descentralizando a ação e distribuindo diferentes pontos de atenção e dispersão na imagem. O estado de dispersão é transmitido principalmente através do olhar do personagem de Henrique Larré, que encara com desinteresse o prato do sanduíche que está comendo. Esta questão do olhar e as relações entre linhas e perspectiva tornam possível ficcionalizar um espaço off quase palpável, que representa um fator de equilíbrio entre os estados de atenção e distração nesta sequência. De forma geral, ao longo da narrativa, o espectador pode observar que Esmir Filho opta por inserir alguns elementos da linguagem videográfica em sua estrutura fílmica tradicional. Uma destas inserções está ilustrada na figura 5:

Figura 05 - Frames de Os Famosos e os Duendes da Morte Fonte: imagem capturada pela autora.

Os vídeos digitais de baixa resolução são gravados e protagonizados por Julian e Garota Sem Pernas que proporcionam um olhar intimista sobre seu universo, impressão reforçada pelo aspecto caseiro das gravações. Conforme o desenvolvimento da montagem se torna possível perceber que estes vídeos surgem sempre em momentos de forte conexão emocional entre Garoto Sem Nome e os personagens, especialmente em seus devaneios. Além disso, estes vídeos são inseridos em momentos específicos da sequência que possuam ligação visual entre o plano cinematográfico e o próprio fragmento videográfico. Na inserção videográfica da cena em questão, observa-se a semelhança estética entre os planos, principalmente por meio de seus tons de cores. Esta aproximação visual pode ___________________________________________________

A diegese fílmica pode ser definida como o aspecto ficcional da narrativa, funcionando como a realidade própria de um determinado contexto. Sendo assim, o tempo e o espaço diegéticos são existentes apenas na trama, tendo suas singularidades e limites delimitados pelo autor. 7

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servir também como uma metáfora que reforça a relação de identificação entre os personagens. Segundo Dubois, a estética videográfica pode ser compreendida a partir de dois modos: “o modo plástico (a ‘videoarte’ em suas formas e tendências múltiplas) e o modo documentário (o ‘real’ – bruto ou não – em todas as suas estratégias de representação)” (DUBOIS, 2004, p.77). A adoção deste ponto de vista caracteriza uma mistura entre os principais modos de representação videográfica. Assim, dentro do modo plástico de representação, o papel celofane foi utilizado como uma espécie de filtro para as lentes dos personagens, o que pode ser relacionado com a apreensão deste ponto de vista estético através de técnicas de figuração misturadas ao formato digital dos vídeos. Este hibridismo propõe um contraponto relativo à automatização das formas de reprodução e criação de imagens ao utilizar manualmente o papel celofane como um efeito que transforma os tons de cores, sendo aplicado como pinceladas modificadoras da coloração de uma tela. Pode-se observar estas questões na figura 6.

Figura 06 - Frame de Os Famosos e os Duendes da Morte Fonte: imagem capturada pela autora.

Em momento anterior da narrativa, em outra inserção de vídeo, práticas fotográficas também são trabalhadas de forma que se aproximam visualmente de técnicas de figuração. Julian gravou Garota Sem Pernas ao fundo de uma ponte de ferro cheia de linhas horizontais e verticais, posicionando o sujeito da imagem no meio do enquadramento. Devido à baixa resolução do vídeo acentuada pelo efeito do zoom digital, a facilidade com que o rosto de Garota Sem Pernas é desfocado se assemelha a um borrão de tinta em uma tela, misturando totalmente as cores escurecidas do quadro. Sendo assim, de acordo com Couchot, “as técnicas figurativas não são apenas meios para criar imagens de um tipo específico, são também meios de perceber e de interpretar o mundo” (COUCHOT, 1993, p. 41). Opções estéticas em Post Tenebras Lux Por outro lado, neste filme mexicano de 2012, “embora haja um enredo mínimo, os (des)encadeamentos, as passagens de tempo e mesmo os acontecimentos [...] não se sustentam em cima de uma estrutura convencional” (PINTO, 2013, p. 53). Antes de Post Tenebras Lux, Carlos Reygadas já di-

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rigiu outros três longas-metragens, Japón (México, 2002), Batalha no Céu (Batalla en el Cielo, México, 2005) e Luz Silenciosa (Stellet Licht, México, 2007). Porém, seu quarto longa-metragem se apresenta como um exercício de experimentação entre a estética e a linguagem cinematográfica, impressão reforçada pelo intenso desfoque presente nas bordas da imagem na maior parte das cenas externas. Em sequências como a citada acima, a fotografia de Alexis Zabe transpõe uma atmosfera etérea e, ao mesmo tempo, realista, ao transitar entre momentos de rigorosa estabilidade da câmera e situações em que a imagem parece múltipla, quase caleidoscópica. Assim, é possível identificar vários elementos de diálogo do fílmico com outros formatos de expressão artística, como por exemplo, a poética da imagem em movimento, o que acaba caracterizando a linguagem experimental adotada por Reygadas. De todo modo, através de elementos como as metáforas, os simbolismos e a mistura entre sonhos, medos e memórias, bastante presentes, o diretor traça um paralelo entre a estrutura dos planos e sua narrativa subjetiva. Em Post Tenebras Lux, em meio a uma sucessão de acontecimentos aparentemente pouco relacionados entre si, é mostrado ao espectador um recorte da vida de uma família mexicana que vive afastada da cidade. Como uma espécie de fio condutor, flashforwards e trechos da infância de Rut e Eleazar Reygadas são revelados ao longo da trama, ao mesmo tempo em que o espectador acompanha situações e diálogos abstratos envolvidos em uma atmosfera onírica. Além disso, entre os momentos de maior linearidade narrativa, pode-se observar um pouco da vida diária dos empregados da família e suas relações com o ambiente em que estão inseridos. Em uma das sequências, iniciada com um plano longo e aberto, a centralização e a linearidade com que o assunto é fotografado suscita a interpretação de que se deve focalizar o olhar na ação que ocorre em quadro. É possível também perceber uma relação da composição a partir do formato adotado para o filme, na proporção 4:38, em diferença ao padrão dominante 16:9. Pode-se observar esta questão a seguir (Fig. 7):

Figura 07: Sequência de Post Tenebras Lux. Fonte: imagem capturada pela autora.

No entanto, conforme a ação se desenvolve, mesmo que os dois personagens estejam conversando em um tom sério, percebe-se que aquilo que acontece no fora de quadro é o que acaba

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detendo a atenção de ambos. Neste momento, o espectador acompanha principalmente através do som o que parece ser uma briga entre cachorros. Sendo assim, influenciado pela atitude dos personagens na diegese fílmica, o público tende a apreender os acontecimentos da cena primeiramente através do meio sonoro. Esta interpretação sobre o enquadramento estabelece no som off um foco de atenção relevante para o desenvolvimento da ação, pois é a partir deste elemento que o espectador encontra a possibilidade de ficcionalizar a situação que ocorre por trás da câmera. De acordo com a concepção de Jonathan Crary, a priorização de diversos pontos de atenção e dispersão em uma cena indica uma preocupação em conferir maior mobilidade para o olhar do espectador. Na sequência em questão, tanto através da utilização do meio sonoro para evidenciar o espaço off, quanto pela intensa linearidade e centralização empregadas, o realizador audiovisual consegue delimitar sutilmente os focos de atenção e dispersão, vistos por Crary como estados que coexistem de maneira harmoniosa. No entanto, neste caso, o foco de dispersão ocorre por meio da camada sonora que, de alguma maneira, leva a atenção para o fora de quadro. Ao longo do texto fílmico de Post Tenebras Lux, os tons de cores suaves que frequentemente se misturam são uma característica marcante para a compreensão das escolhas estéticas propostas. Conforme a percepção do espectador sobre a relação entre a paleta de cores e a narrativa, também se torna possível identificar o papel do intenso desfoque presente em grande parte das cenas externas do filme, conforme ilustrado na figura abaixo.

Figura 08: Planos de Post Tenebras Lux. Fonte: imagem capturada pela autora.

Este desfoque proporciona um efeito de multiplicidade para a imagem, também funcionando como uma espécie de moldura que enquadra o assunto fotografado no centro. Juntamente com a iluminação das cenas, é um dos elementos que mais caracterizam a atmosfera de fluidez contemplativa que permeia o filme. Além disso, também se acredita que esta distorção nas bordas da imagem ___________________________________________________

O formato 4:3, além de ter utilização escassa em produções contemporâneas, especialmente pela ausência de proporção áurea, tende a promover a centralização do objeto. Em uma interpretação da autora, esta é uma das características que influenciam sua apreensão a partir do enquadramento centrípeto. 8

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desempenha visualmente o papel de uma presença de subjetividade onírica, que marca, com mais ou menos intensidade, a realidade apresentada pela diegese fílmica. Dessa forma, torna-se possível cruzar a presença do efeito de distorção com opções estéticas do quadro que evidenciam a superfície das imagens em questão. De acordo com Dubois, nestes planos que priorizam a frontalidade e a centralização da ação, “o diretor dá lugar ao “autor”, a mise-en-scène dá lugar à escrita plana. [...] tudo está lá, na imagem, na sua superfície, em um só e mesmo plano” (DUBOIS, 2004, p. 148). Na cena inicial de Post Tenebras Lux, a menina Rut Reygadas anda no chão coberto por barro e poças d’água, passeando em meio aos diversos cães, cavalos e vacas. Nesta longa sequência, ao mesmo tempo em que anoitece, com a iluminação natural se esvaindo gradativamente, os cortes revelam de maneira subjetiva a percepção da menina sobre aquela localidade. Alguns quadros da cena podem ser observados abaixo, na figura 9.

Figura 09: Sequência de Post Tenebras Lux. Fonte: imagem capturada pela autora.

Em paralelo, a mistura de cores que começa suavemente com tons de rosa claro e depois se intensifica com roxos e azuis mais escuros contribui para a atmosfera transpassada pela narrativa. Com o desenvolvimento da cena observa-se que, inicialmente, os planos abertos buscam contemplação do espaço e do envolvimento da menina com os animais. Porém, posteriormente, enquanto se ouve a aproximação da tempestade, uma sensação de desconforto é acentuada por meio de planos mais fechados e pouco iluminados. Na narrativa, este sentimento se estabelece também por meio de alguns conflitos entre os animais, além da expressão e comportamento da criança, que por vezes remete ao espectador a impressão de estar perdida no campo. Neste momento da cena, a moldura desfocada nas bordas da imagem é destacada, conferindo um aspecto pictórico à composição fotográfica ao fazer com que o olhar seja forçado a percorrer suas representações. Porém, ao mesmo tempo, a característica caleidoscópica deste efeito de distorção consegue exprimir o aspecto centrífugo do enquadramento, vinculando a existência de um espaço off à imaginação do público. Além disso, acredita-se que o efeito desfocado como moldura centrípeta pode ser observado a partir da definição de Aumont sobre o quadro-objeto, que

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ao desempenhar o papel de emoldurar a imagem, é também “um intermediário, e forçosamente paradoxal, como todo intermediário; integra a tela a seu ambiente e ao mesmo tempo, a separa dele visivelmente” (AUMONT, 2004, p.116). Da mesma maneira, se torna possível relacionar o conceito do autor sobre o quadro-janela com a característica centrífuga presente nos enquadramentos da sequência fílmica. Assim, tanto estas opções estéticas incorporadas na composição fotográfica, quanto as sensações promovidas através da diegese fílmica, contribuem para uma interpretação dos enquadramentos a partir da aproximação entre as noções de centrípeto e centrífugo. Tendo em vista as discussões propostas por esta pesquisa, conclui-se que foram encontradas características de diálogo entre o pictórico e o fílmico nos enquadramentos de Os Famosos e os Duendes da Morte e Post Tenebras Lux. Ao mesmo tempo, as aproximações entre noções de centrípeto/centrífugo e atenção/dispersão, bem como os conceitos correlatos de Dubois, Couchot e Barthes foram identificados na composição fotográfica dos quadros selecionados para análise. Assim, destacando elementos específicos que contribuíram para uma percepção estética da imagem cinematográfica, tornou-se possível interpretar as opções de enquadramentos a partir das considerações teóricas estudadas. Esta reflexão também pode ser levada ao campo da prática, pois a pesquisa aqui desenvolvida intenta exprimir outras formas de compreensão dos efeitos de uma construção estética evidente no processo de execução da obra audiovisual. Além destas questões, torna-se relevante destacar a necessária interdisciplinaridade entre arte e cinema, o que possibilita novas maneiras de desenvolver o pensamento e a prática de ambos os campos. Referências bibliográficas AUMONT, Jacques; et all. A estética do filme. São Paulo: Papirus, 1995. AUMONT, Jacques. O olho interminável. São Paulo: Cosac Naify, 2004. ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Pioneira, 2005. BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BAZIN, André. De la politique des auteurs. Em Cahiers du cinéma, nº70, Abril, 1957, pgs. 2-11. BAZIN, André. O que é o cinema? São Paulo: Cosac Naify, 2014. CANEPPELE, Ismael. Os Famosos e os Duendes da Morte. São Paulo: Illuminuras, 2010

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COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação: evolução das técnicas e das artes da figuração. In: PARENTE, André (Org.). Imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993. CRARY, Jonathan. Suspensões da percepção: atenção, espetáculo e cultura moderna. São Paulo: Cosac Naify, 2013. DUBOIS, Philippe. Cinema, vídeo, Godard. Cosac Naify, 2004. PINTO, Ivonete. Sexo, religião e conflito de classe. Revista Teorema, Porto Alegre, nº 22, p. 53 – 58, 2013. REFERÊNCIAS FILMOGRÁFICAS Alguma Coisa Assim. Direção de Esmir Filho. Brasil, 2006. 15 min. Antes que o Mundo Acabe. Direção de Ana Luiza Azevedo. Brasil, 2009. 104 min. As Melhores Coisas do Mundo. Direção de Laís Bodanzky. Brasil, 2010. 100 min. Batalha no Céu (Batalla en el Cielo). Direção de Carlos Reygadas. Bélgica, 2005. 98 min Guernica. Direção de Alain Resnais. França, 1950. 13 min. Japón. Direção de Carlos Reygadas. México, 2002. 130 min. Luz Silenciosa (Stellet Licht). Direção de Carlos Reygadas. 145 min. Morro do Céu. Direção de Gustavo Spolidoro. Brasil, 2009. 71 min. Os Famosos e os Duendes da Morte. Direção de Esmir Filho. Brasil, 2010. 101 min. Post Tenebras Lux. Direção de Carlos Reygadas. México, 2012. 115 min. Saliva. Direção de Esmir Filho. Brasil, 2007. 14 min. Van Gogh. Direção de Alain Resnais. França, 1948. 20 min.

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Optimus Prime e a visualidade neobarroca no filme Transformers Radael Rezende Rodrigues Junior

Optimus Prime e a visualidade neobarroca no filme Transformers Radael Rezende Rodrigues Junior1 Universidade Federal do Espírito Santo

Resumo: O barroco do século XVII se guiou quase sempre pelo espetáculo sensorial e o exagero. Proliferação de motivos, obsessão pelo movimento, desejo de romper a barreira entre o real e o imaginário são apenas algumas das características próprias desse período. Omar Calabrese (1999), por outro lado, entende o barroco como algo que ultrapassa limites de tempo e espaço. Adota então a expressão Neobarroco para referir-se a uma mentalidade atual que se espalha por diversas manifestações do saber. Apareceria desde teorias científicas até filmes high concept como Transformers (Michael Bay, 2007), por exemplo, sendo ambos reflexos de uma orientação comum de gosto. É a partir dessa produção cinematográfica e dos textos de autores como Heinrich Wölfflin, Giulio Argan e Severo Sarduy que se propõe aqui um estudo sobre como esse Neobarroco se manifesta na indústria do espetáculo e do entretenimento atual. Palavras-chave: barroco; neobarroco; cinema high concept Abstract: Exaggeration and the spectacle of sensations are one of the foundations of the 17th century baroque. Proliferation of elements, obsession for movement and a desire to break the boundaries between the real and the imaginary are some of its features. Omar Calabrese (1999), conversely, understands the baroque as something that goes beyond the boundaries of time and space. He then adopts the term Neobaroque to refer to a current mindset that is plural in many manifestations of knowledge. The term would appear in scientific theories and even in high-concept movies, such as Transformers (Michael Bay, 2007), both of them being a reflection

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Docente no curso de Desenho Industrial na Faculdade Centro Leste (UCL). Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Espírito Santo, inserido na linha de pesquisa em Nexos entre Arte, Espaço e Pensamento e orientado pelo Professor Dr. Erly Vieira Junior. Graduado em Desenho Industrial pela Universidade Federal do Espírito Santo (2005) e com MBA em Gestão da Comunicação Estratégica.

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of common taste preference. Based on the mentioned movie and on the works of scholars as Heinrich Wölfflin, Giulio Argan and Severo Sarduy, this article, therefore, suggests a study on how the Neobaroque manifests itself in today's industry of spectacle an entertainment. Key words: VJ; Existential graphs; Improvisation; Image and social inclusion.

1. Davi e Optimus Prime: o barroco e o cinema high concept 2 Gian Lorenzo Bernini foi um dos grandes nomes do barroco do século 17. Entre os anos de 1623 e 1624 esculpiu em mármore uma de suas obras-primas: Davi (figura 1). Retratada magistralmente pelo escultor, a escultura transmite com maestria toda sua dramaticidade: a tensão no rosto do personagem; sua postura exagerada, quase sensual; o movimento interrompido no auge da ação; a aparente instabilidade; enfim, toda a teatralidade da cena levada ao extremo por meio do virtuosismo próprio do escultor. Aqui o importante é o espetáculo e a ilusão do movimento. E isso é intensificado ainda mais pela falta de um limite entre a obra e o universo que a circula, entre a fantasia e a realidade. Davi parece projetar-se para o universo do real, invadindo o mundo do espectador, envolvendo-o na energia e na emoção do movimento proposto.

Figura 01: BERNINI, Gian Lorenzo. Davi (1623–24). Mármore. 170cm. Galeria Borghese, Roma. http://freebeacon.com/blog/professors-and-the-classical-tradition/ Acesso em 10 de junho de 2014. ___________________________________________________

Conceito direcionado aos filmes da indústria hollywoodiana com orçamentos milionários e, principalmente, sinergia entre diversas indústrias de marketing, entretenimento e produção. Esse conceito é defendido por Mascarello como sendo mais específico do que o conceito de cinema blockbuster. Para mais ver: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2006. p. 336-359. Esse conceito é defendido também por Justin Wyat, que contrapõe filmes high concept a filmes low concept. No primeiro caso tem-se filmes com alto poder de marketing, narrativa simples e altamente vendável. O segundo representa basicamente o oposto disso. O conceito de high concept é explicado por todo o texto em: WYATT, Justin. High concept: movies and marketing in Hollywood. Texas: University of Texas Press, 2006.

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Transpondo essa mesma observação feita sobre essa escultura do século 17 a uma outra esculpida mais recentemente, Optimus Prime (figura 2), personagem do filme Transformers, dirigido por Michael Bay, em 2007, pode-se traçar alguns paralelos interessantes. Seu corpo é feito a partir de bytes ao invés de mármore, mas apresenta um virtuosismo técnico que pode ser considerado equiparável à obra de Bernini. Nele, milhares de peças confeccionadas em softwares de modelagem tridimensional são conectadas para construir virtualmente o corpo do robô nos seus mínimos detalhes. Seus movimentos, quase sempre teatrais e exagerados, parecem querer ultrapassar os limites da tela, principalmente através da tecnologia de projeção 3D, rompendo a delimitação entre o espetáculo ilusório e a realidade.

Figura 02: Cena do filme Transformers (2007), onde Optimus Prime assume uma postura heroica, exagerada, quase caricata. Optimus deixa claro nesse gesto seu papel de herói no filme, de líder. Fonte: DVD do filme.

Parece um tanto absurdo comparar a obra-prima de Bernini a um personagem tridimensional da indústria de entretenimento atual, no entanto as aproximações são muitas. Tanto nas próprias obras citadas e na relação que elas propõem com o espectador quanto no contexto em que elas foram construídas. É a partir dessas aproximações que pretende-se analisar aqui o conceito de Neobarroco proposto por Omar Calabrese (1999), especialmente quando aplicado ao chamado cinema High Concept hollywoodiano. 2. O barroco e o neobarroco 2.1. O barroco de Heinrich Wölfflin e Giulio Argan e o neobarroco de Severo Sarduy O barroco é o estilo de arte normalmente associado ao século XVII e foi tratado, até o século XIX, como uma arte de exagero descabido e de pouco valor histórico. Era visto como uma forma decadente e excessivamente irracional dos valores renascentistas, considerados superiores durante o século XVIII e início do XIX. É provável que somente com Heinrich Wölfflin (1989), em 1888, essa

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visão negativista tenha começado a mudar 3. Segundo o autor, o Barroco não seria somente um estilo no qual se dissolveu a Renascença, resultando portanto em sua decadência. Ele observou elementos próprios do estilo setecentista no século anterior, já durante a chamada Alta Renascença, ao passo que observa também elementos da Renascença no Barroco. Por outro lado analisa diversas características que tornaram o Barroco único e importante na história da arte europeia. Wölfflin (1989) destaca, entre outras coisas, a importância dada à sensação de devir, do “por acontecer”; a importância da tensão e instabilidade e o decorrente desejo pelo movimento constante. Nesse sentido, evidencia a descentralização formal do barroco em contrapartida à composição rítmica e ao agrupamento aparentemente informal dos elementos, o que aumentaria, em suas obras, a sensação de instabilidade, que é ampliada com a preferência por formas abertas em detrimento das formas fechadas. Destaca também a multiplicação quase infinita de motivos e formas nas obras barrocas. Através dessa imensa proliferação o artista barroco tenta tornar quase impossível a apreensão dos inúmeros detalhes de sua obra com apenas um olhar, criando o que Wölfflin (op.cit.) chama de efeito de massa. Esse efeito faz com que essa obra seja percebida primeiramente em sua totalidade, e não em seus pormenores. Outro fator importante no barroco é a aversão absoluta a qualquer coisa que possa limitar a composição, seja ela uma moldura ou uma linha que contorne as figuras. Essa falta de perímetro gera ainda mais ausência de um centro organizador da obra, ou ainda a constituição de múltiplos centros, o que por um lado aumenta ainda a mais a tensão entre realidade e ilusão, e por outro a sensação maior de movimento, de instabilidade. Essas e várias outras características, próprias do século XVII, viriam a se manifestar, em maior ou menor grau, em todos os níveis da cultura da época, indo da música à pintura, da moda à arquitetura. Somando essas características únicas do estilo e sua presença abrangente na época, Wölfflin (op. cit.) consegue demonstrar com propriedade a importância até então ignorada do barroco setecentista. Por outro lado, o barroco foi também a arte de persuasão. Segundo Giulio Argan (2008), os artistas desse período procuram sem pudor algum os excessos e, por meio desses excessos, tentam encantar seu público e, principalmente, inserir suas obras no tempo e espaço de seus espectadores, “concorrendo positivamente para mudar a ordem do mundo” (ARGAN, op.cit., p.482). Ainda segundo o autor o barroco não seria de forma alguma uma representação da decadência de valores religiosos, mas sim uma modificação de valores. O pensamento religioso nesse caso não se concreti___________________________________________________

A revisão do conceito barroco se distribui pelo texto, voltado especialmente à arquitetura e à pintura. Contudo seus conceitos podem se estender a toda arte e cultura da época.

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zaria por meio da contemplação puramente, mas na propaganda dessa religião. É interessante notar as semelhanças entre essa visão do que é o barroco para Argan e a constituição de uma sociedade pós-moderna pautada no espetáculo, e em um cinema como o cinema high concept, ancorado muito na sua própria autopromoção e propaganda. Chegando agora à década de 1970 tem-se o autor e ensaísta cubano Severo Sarduy (2000), que retoma o conceito barroco ao observar a manifestação do estilo em diversos níveis da cultura4. Estabeleceu, dessa forma, um forte vínculo entre a contemporaneidade e o barroco no contexto cultural latino-americano. Na literatura, em especial, o autor assinala a presença de elementos do que ele viria a chamar de Neobarroco nos textos de escritores como Jorge Luis Borges, Fernando del Paso, José Lezama Lima, Alejo Carpentier, Carlos Fuente e, claro, na sua própria obra. Designou dessa forma o chamado boom literário latino-americano, ocorrido durante as décadas de 1960 e 1970, como uma manifestação de características paralelas ao barroco do século XVII. Ele pensou, portanto, o conceito Barroco e sua manifestação pós-moderna, o Neobarroco, como algo que subverte o tempo, que deixa de ser histórico para tornar-se uma manifestação cultural e, sendo assim, independente de uma cronologia. Mas que características barrocas seriam essas que se manifestam na literatura Neobarroca? A metaficção, em que elementos do próprio texto deixam claro seu caráter fictício, surge como uma delas. A sensação de instabilidade, característica marcante da arte setecentista, também é citada pelo autor. Além disso, a “suprema artificialização” dos textos ibid. (ibid., p. 169) já seria, segundo o autor, motivo suficiente para assinalar neles a instância do barroco. Sarduy cita também o acúmulo de significados, a justaposição de palavras de diversas interpretações, nas quais várias e várias coisas querem dizer uma mesma coisa ausente5. Nesse sentido temos ainda a presença do tema recorrente do labirinto como representação de múltiplas vozes ou inúmeras camadas de significados. Outro elemento assinalado pelo autor é o forte senso de virtuosismo, presente nos artistas barrocos e nos escritores neobarrocos para com seus textos. Sarduy fala também da alegoria e do forte caráter carnavalesco como qualidades próprias dos textos neobarrocos. Por fim soma-se a tudo isso a desconfiança sempre presente da realidade como verdade absoluta. É interessante notar que Severo Sarduy defendia o neobarroco e seus valores como única forma de se contrapor às ideologias dominantes na época: o capitalismo e o socialismo. Para o autor a verdade e a realidade estavam sempre distantes da percepção do indivíduo e devia, portanto, ser sempre contestadas6. ___________________________________________________

SARDUY, Severo. El barroco y el neobarroco. In: MORENO, Cezar Fernandez. America Latina en su literatura. 17. ed. México: 2000. p. 167-183. 5 Ibidem, p. 169. 4

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2.3. O neobarroco de Omar Calabrese e o filme Transformers Assim como Severo Sarduy, Omar Calabrese também dispõe uma revisão sobre o conceito barroco como algo que subverte o tempo e espaço. Contudo, apesar do foco cultural dado pelo autor, Calabrese amplia o alcance do conceito ainda mais. Extrapola os limites da cultura e estende os valores barrocos ao que ele chama de uma mentalidade de época. Manifestações na ciência contemporânea, tais como a teoria do caos, são, segundo o autor, manifestações de uma mentalidade tipicamente barroca. Essa mentalidade entranha-se no pensamento do indivíduo contemporâneo, mesmo que inconscientemente, e manifesta-se em suas obras e em tudo que ele cria, em menor ou maior grau (CALABRESE, 1999). Cada um desses indivíduos possui, dessa forma, muito mais conhecimento do que aquilo que diz crer possuir. Esse conhecimento, expresso principalmente nas suas manifestações já citadas, distinguem uma mentalidade de um determinado tempo das mentalidades de outros tempos. Sendo assim, o Neobarroco se define “na procura de formas – e na sua valorização – em que assistimos à perda da integridade, da globalidade, da sistematicidade ordenada em troca da instabilidade, da mutabilidade” (ibidem, p. 10). Destaca-se também uma relação dialética entre o clássico e o barroco proposta pelo autor. Para Calabrese, esses dois tipos de mentalidade convivem historicamente, cruzando tempo e espaço, sendo que uma se sobrepõe à outra em momentos determinados, ganhando mais importância naquela época específica. Por outro lado Calabrese assinala ainda que tanto o clássico quanto o barroco possuem um pouco da sua contraparte na sua própria essência. É importante ressaltar que ao adotar a expressão Neobarroco, de forma alguma sugere-se o retorno literal do barroco setecentista7. Muito menos que o Neobarroco seria a manifestação estética plena da sociedade atual. O que é sugerido é que o Neobarroco seria um “ar do tempo” (ibidem, p. 10). que se espalha por diversas manifestações do saber, desde a cultura à ciência. Esse “ar do tempo” pode ser associado às teorias científicas, como as que dizem respeito a fenômenos de flutuação e turbulência8, ou a um filme de ficção científica como Transformers, por exemplo, sendo ambos reflexos de uma orientação comum de gosto. Essa mesma mentalidade teria se manifestado no século XVII, porém de uma forma menos tecnológica. Dentre as características do Neobarroco paralelas ao barroco setecentista destaca-se o ritmo e a repetição intensa de elementos. Como exemplo disso podem ser citados os roteiros claramente ___________________________________________________

Segundo Calabrese, teorias como essas e várias outras semelhantes só seriam analisadas hoje por conta de um certo gosto comum que se estabelece no tempo e na sociedade. Existe, pois, uma determinada mentalidade de época, e não outra, que favorece que isso aconteça. 7 Calabrese procura sempre destacar que o neobarroco possui características que seriam paralelas ao barroco setecentista, sendo portanto uma manifestação comum à mentalidade daquela época. Para ver mais: CALABRESE, Omar. A Idade Neobarroca. Lisboa: Edições 70, 1999. p. 27. 8

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repetitivos de algumas séries de televisão exibidas atualmente ou as narrativas excessivamente previsíveis de alguns filmes voltados para o público massificado, o que acaba por evidenciar seu caráter de espetáculo sensorial. Essa previsibilidade provavelmente oferece ao espectador a possibilidade de se entregar aos hiperestímulos9 sensoriais constantes, sem necessariamente ter que se aprofundar na narrativa do que está sendo exibido. A única imprevisibilidade possível são os choques aos quais ele é submetido. Outro fator interessante é a tendência ao limite, ao excesso de elementos em um sistema qualquer. É importante aqui destacar que para haver um excesso necessariamente há um limite a ser tensionado. E havendo um limite existe naturalmente um centro organizador desse sistema. Ao tensionar esse limite muda-se esse centro organizador, o que causa ainda mais instabilidade. Um exemplo disso vem novamente do filme Transformers. É difícil determinar o gênero cinematográfico a que ele pertence. Não é simplesmente uma aventura como se autoproclama. Considerando a presença de máquinas e tecnologia fantásticas poderia ser visto como cinema de ficção-científica. A presença dos “robôs”, sua origem alienígena, sua linguagem e todo aparato científico apresentados constantemente demonstram isso com propriedade. Contudo, deixaríamos de lado elementos próprios de filmes de guerra apresentados logo no início, como os soldados presentes em todo o filme e todo o equipamento militar mostrado constantemente, por exemplo. A comédia também aparece em várias passagens, especialmente na atuação de Shea Labeouf, ator que interpreta Sam Witwicky, personagem principal da trama. Os limites de classificação do filme aqui são então tensionados, misturados, criando-se um gigantesco pastiche. Tem-se dessa forma a tensão extrema na categorização do filme, chegando à necessidade de invenção de uma espécie de “supergênero” fílmico, que não é nem uma coisa nem outra, mas a soma de todas elas. A própria separação entre realidade e ficção é forçada por diversas vezes ao extremo nesse filme. Em várias cenas, diversos objetos são atirados em direção ao público. Movimentos corpóreos exagerados, tanto dos personagens humanos quanto dos robóticos, parecem tentar romper o limite da tela. A sensação aparenta tentar ser paralela ao de um trompe-l'oeil, recurso tão comum ao Barroco setecentista. A atração pelo detalhe, pelo fragmento e/ou pelo pormenor também é um fator a ser assinalado. Detalhar uma determinada cena através da distorção do tempo, por exemplo, demonstra esse ___________________________________________________

Expressão cunhada por Ben Singer ao referir-se a situação de estímulos sensoriais constantes e intensos aos quais o indivíduo estaria submetido a partir da modernidade. Aqui a expressão é utilizada ao referir-se a esses mesmos estímulos, aumentados de forma exponencial na atualidade. Para mais: SINGER, Ben. Modernidade, hiperestímulo e o início do sensacionalismo popular. In: CHARNEY, L.; SCHWARTZ, V.R. (Org.). O cinema e a invenção da vida moderna. 2. ed. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 115-148.

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desejo exacerbado pela minúcia. O uso do efeito de câmera-lenta no cinema, por exemplo, há muito tempo deixou de ter uma função meramente analítica, como é tão comum na transmissão esportiva. Em produções cinematográficas hollywoodianas, esse recurso passou a ter uma função muito mais sensória, especialmente quando usado em filmes de ação. Em Transformers diversas cenas têm sua temporalidade retardada, em uma busca obsessiva pelo instante decisivo. Esse atraso confere dramaticidade ao momento, dá ênfase à sua ação no seu detalhamento extremo e o destaca dos outros momentos com ritmo normal do filme. Inversamente a esse tempo retardado tem-se em outras cenas o acréscimo de planos em um nível quase vertiginoso. Essa quase sobrecarga de planos pode ser vista também como uma busca obsessiva pelo detalhamento. Tem-se então um pormenor narrativo, onde a cena é tensionada quase ao limite por inserção excessiva de planos. Um exemplo é a cena em que soldados lutam com o personagem Scorponok. A partir do momento em que ele surge, a 39’30’’ de filme, até o momento em que ele foge derrotado, a 44’37’’, discorre a quantidade absurda de 133 planos (o que leva a uma duração média de 2,31 segundos por plano). São tantos planos e, consequentemente, tantos elementos que fica difícil perceber a sequência em detalhes. Cria-se assim uma espécie de textura, um efeito de massa paralelo ao proposto por Wölfflin (1989) no barroco setecentista, só que nesse caso a textura é rítmica. A instabilidade e a metamorfose, também características do Neobarroco, ganham especial importância aqui pela ligação direta com o filme Transformers. Os próprios personagens que dão nome à produção são seres sem uma forma definida. São portanto irregulares, inconstantes em sua própria aparência. Transformam-se de robôs em carros e de carros em robôs a todo momento. Não possuem uma identidade constante. Sua própria morfologia, quando na forma robótica, é exagerada, espetacular, monstruosa. São gigantescos. E esse exagero ultrapassa os limites do que se considera “normal”, do que se considera aceitável e que muitas vezes está associado à perfeição. “Nada se assemelha tanto à mediocridade quanto a perfeição” (CALABRESE, 1999, p.106). Pensando dessa forma a perfeição torna-se então uma medida média, e aquilo que a ultrapassa é considerado monstruoso, imperfeito. Porém, no caso dos “robôs mocinhos”, esses “monstros” são honrados, gentis, bondosos e preocupados com os humanos. O disforme e o exagerado, características normalmente associadas a algo ruim, são então deslocados, fugindo de categorias de valor previamente estabelecidas. O monstro deixa de ser monstro e passa a ser o herói. Princípios como irregularidade, casualidade e caoticidade são buscados constantemente no Neobarroco. Em filmes como Transformers eles aparecem em sua expressão mais visual: os fractais. Essas formas extremamente irregulares, obtidas através de cálculos matemáticos complexos e repetidas infinitamente são com frequência utilizadas para se obter imagens computadorizadas mais

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orgânicas e naturais. As explosões que povoam o filme, por exemplo, nada mais são do que cálculos fractais trabalhados por artistas gráficos através de softwares de modelagem tridimensional e/ou de edição de vídeos. Por fim, a manifestação visual do labirinto deve ser lembrado como uma nítida referência a conceitos pertinentes ao Neobarroco. Sua forma complexa é uma clara metáfora ao movimento e está diretamente vinculada ao conceito de caos. Sua complexidade é evidente, mas uma complexidade dotada de ordem, mesmo que uma ordem oculta. Nesse caso, voltando ao filme Transformers, pode ser citada a sua própria narrativa como exemplo. Apesar de possuir uma trama simples e previsível, o filme se divide em várias subtramas. Essas várias camadas de história presentes no conjunto de tramas do filme formam uma estrutura quase labiríntica. Apenas citando algumas: tem-se a história do protagonista na compra do seu primeira carro, o relacionamento desse com seus pais, o seu interesse romântico pela menina mais bonita da escola, a história dessa menina e o relacionamento problemático com o pai criminoso, a história dos robôs e sua guerra interestelar, a invasão alienígena, o relacionamento entre os soldados, a história da equipe de análise de dados e o governo norte-americano, etc. São tantas subtramas paralelas, sendo que algumas se cruzam e outras não, que fica difícil determinar uma linha única no roteiro do filme. O espectador é conduzido pelo filme como por um labirinto. A perda da orientação conduz a um sentimento de perda da ordem. Contudo o labirinto é controlado e em nenhum momento essa ordem deixa de existir. O espectador chega ao seu destino invariavelmente. O prazer da solução, comum a todo enigma, está no fim do filme. Todos esses elementos destacados aqui são relevantes no momento em que assinalam um modelo formal Neobarroco com o qual pode-se caracterizar muitas das transformações culturais da atualidade. Esse modelo possui características paralelas ao barroco setecentista, o que demonstra uma mentalidade comum aos dois períodos. É interessante notar que essas características se manifestam especialmente na cultura massificada, com especial destaque aos meios de entretenimento atual. Filmes que seguem o modelo high concept de cinema hollywoodiano aproveitam-se desse gosto comum a todo tempo em suas produções. Apresentam quase sempre narrativas sequenciais, seguindo um modelo clássico e de fácil absorção pelo público. Tem-se então padrões de causa e efeito muito bem delimitados, com ênfase em personagens com objetivos claros e bem definidos, motivados psicologicamente por claras ameaças e uma estrutura dividida simplesmente em começo, meio e fim. Essa narrativa, mesmo que subdividida em várias subtramas e um tanto labiríntica, mostrase extremamente simplificada em sua estrutura como um todo. O espectador, mesmo que confuso com essa quantidade de subtramas sabe exatamente para onde todos elas o levam, assim como a história que o conduz, sem que haja no percurso praticamente nenhuma surpresa narrativa. Isso

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acaba por destacar ainda mais o gosto extremo pelo espetáculo sensorial. Conceitos como instabilidade, irregularidade, casualidade, movimento, saturação de elementos e de motivos e a busca pela ilusão, por exemplo, são levados ao limite nessas produções, tudo para atrair um público ávido por esse tipo de estímulo. Na produção de Transformers quase todos esses elementos estão fortemente presentes. É por conta dessa presença que se propõe a seguir uma análise de um dos personagens mais marcantes do filme, Optimus Prime, e de sua presença em alguma cenas no decorrer da película. Dessa forma são assinaladas características que demonstram um pensamento fortemente barroco na produção de Michael Bay e, paralelo a isso, uma presença desse pensamento em outras produções semelhantes. 2.4. Optimus Prime e a visualidade neobarroca no cinema de Michael Bay Optimus Prime é apresentado como um imenso “organismo robótico autônomo” (BAY, 2007), segundo sua própria definição durante o filme. Líder do grupo de heróis robóticos, denominados Autobots, Prime é respeitado e quase idolatrado por seus seguidores. Representa o estereótipo do super-herói perfeito. Sua voz marcadamente heroica, seu gestual beirando o exagero e a caricatura demonstram isso a todo tempo. Contudo, sua própria essência parece ser uma espécie de paródia ao limite da identidade e do gênero. Esse limite foi a todo tempo levantado por Severo Sarduy (2000) e o seu questionamento era proposto como predominante ao pensamento barroco. No caso de Optimus tem-se um personagem que não pode ser considerado uma máquina, como aparenta à primeira vista. Ele é apresentado como um ser vivo em toda a produção e em todos os filmes posteriores da série. Além disso, como se percebe exaustivamente, é um ser capaz de se transformar, sendo ora uma espécie de robô, ora um imenso veículo. Em sua primeira aparição (após uma hora de filme) ele é visto como uma imensa figura, semelhante a uma máquina, um robô que posa no alto de um barranco. A câmera o mostra de em um ângulo de contra-plongeé 10, colocando o espectador em um ponto de vista abaixo dele. Essa posição procura mostrar a nobreza do personagem, sua posição superior ao resto dos seres comuns, quase como uma criatura celestial (o próprio fato dele ter caído do céu reforça esse pensamento). Em movimento panorâmico, a câmera parece novamente convidar o espectador a participar do filme, simulando o movimento de giro de sua cabeça ao olhar um caminhão que passa pela tela. O olhar acompanha esse movimento e ao chegar novamente ao ponto em que estava o personagem não se vê mais o robô, mas o mesmo caminhão se constituindo, com um barulho que tornara-se característico da série. Optimus Prime não é, portanto, nem um robô, nem um ser vivo e nem um veículo, mas um amálgama de tudo isso. Um ser ___________________________________________________ 10

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Posição em que a câmera mostra o personagem de uma posição inferior, de baixo para cima.

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em constante movimento, tanto na ação que executa pelo filme quanto em sua própria identidade apresentada ao público. Por outro lado, como já foi dito, é ele quem representa o alicerce principal dos Autobots. É ele quem lidera o grupo e é a ele que todos devotam total confiança. Optimus se apresenta como o mais firme de todos, como correto e confiante. Essa total estabilidade contrasta diretamente com a instabilidade na forma do personagem. Tensão e instabilidade, elementos tão relacionados ao barroco. Logo após sua primeira aparição, na primeira cena em que Optimus Prime revela-se ao protagonista (1h02min), ele aparece novamente como um imenso caminhão vindo do meio de uma névoa em uma rua entre dois prédios, como em um videoclipe dos anos 1980. Isso acontece sob olhar atônito do casal de protagonistas do filme. A montagem paralela passa do rosto desses personagens para a chegada de vários veículos, em um raccord de olhar11, de planos rápidos, que procuram transmitir o espanto do casal e toda a dramaticidade da cena. A música conduz sua entrada, que acontece em câmera-lenta. Uma forte carga dramática é construída, onde a música se impõe na sequência. Uma nova mudança no ponto de vista da cena: agora vemos o caminhão de um ponto de vista superior, de uma posição que simula uma possível janela em um dos prédios do beco. Novamente o filme parece brincar com a ideia do espectador que olha o desenrolar da cena, como se estivesse no mesmo local que os personagens (figura 10). A chegada do caminhão funciona como em um trompe -l'oeil setecentista ao parecer convidar o público a entrar na obra representada. A cena então volta ao ponto de vista de Sam e Mikaela. O veículo parece mover-se em direção à tela, como se fosse ultrapassá-la e passar para o mundo real. Aqui novamente a tendência ao limite e a aparente tentativa constante de rompê-lo. A própria tela do cinema, linha que separa o real da ilusão e, portanto, borda de um sistema estabelecido, é tensionada pela chegada do personagem. A projeção tridimensional parece tentar aumentar ainda mais essa sensação. É como se o veículo realmente fosse atropelar os espectadores. O caminhão então para quase que saltando da tela. Por um breve momento ouve-se um som que indica ao espectador o que vai acontecer em seguida. Esse som vem em meio a toda a mistura de ruídos produzidos pela transformação do personagem. O espectador é guiado, mesmo que de forma sutil, a um momento carregado de nostalgia, especialmente aqueles que eram fãs da série original de desenhos animados homóloga ao filme. Foi esse mesmo efeito sonoro que marcou a série da década de 1980, assinalando os momentos em que os carros transformavam-se em robôs nos episódios do desenho animado. Além de toda carga dramática pretendida, com apenas poucos segundos des___________________________________________________

Recurso comum na montagem dos filmes no cinema, onde o olhar de um personagem conduz o ponto de vista do espectador, mostrando o plano B como aquele que vê esse personagem no plano A. Para mais, ver: JULLIER, Laurent; MARIE, Michel. Lendo as imagens do cinema. São Paulo: Editora SENAC, 2009. p.47. 11

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se som tão característico o cinema liga-se novamente ao desenho animado, descentralizando mais uma vez o espetáculo. Essa ligação evidencia uma característica própria desse tipo de produção, na qual fica difícil definir onde termina uma atração e começa outra. Um filme como Transformers é produzido não apenas para cinema, mas para relacionar-se com toda uma cadeia de divertimentos. Nesse sentido toda uma indústria se integra horizontalmente, indo da produção do filme em si a brinquedos relacionados a ele, de jogos de videogame a parques temáticos, todos funcionando na mais completa sinergia. Essa integração horizontal da indústria de entretenimento, que se desenvolveu especialmente a partir da década de 1970, tornou-se uma das estratégias de maior sucesso na revitalização da indústria cinematográfica hollywoodiana12. A descentralização originada dessa integração assinala uma característica marcante do Neobarroco no entretenimento atual, em que vários elementos de um sistema se relacionam organicamente. Nesse caso, o filme, por diversas vezes, torna-se uma plataforma de lançamento de todo um sistema integrado, que tenta atrair a maior quantidade possível de público13. Isso gera uma narrativa fragmentada, muitas vezes até um tanto incompleta, permitindo uma maior adaptação aos diversos meios em que um mesmo personagem pode aparecer 14. O gosto por formas abertas, por elementos sem um início bem definido e por um fim obsessivamente escondido é próprio do pensamento barroco, manifestando-se tanto em obras de arte e de arquitetura do século XVII quanto na estrutura narrativa de filmes high concept atuais e na própria indústria em torno dela. Voltando à descrição do momento da transformação do personagem tem-se, por um instante, o veículo se metamorfoseando, como se fosse desfazer-se em milhares de fragmentos. Aqui cria-se uma tensão que parece querer romper o limite entre o coeso e desconexo na própria estrutura do personagem. Contudo esses fragmentos se reconfiguram, formando o imenso corpo do robô. Ao levantar-se, soberbo, heroico, a câmera o acompanha em um movimento livre, fluido e próximo, mostrando a quase infinidade de partículas que o compõem, a maioria delas em movimento constante. O corpo de Optimus, quando enfim termina sua transição de veículo para robô, mostra-se composto por milhares de peças tridimensionais virtuais (figura 20). Podemos perceber essas peças apenas de relance. Não é possível captar todos os detalhes ao assistir ao filme. Eles são tantos e tão ínfimos que se percebe sua existência, mas não se pode focar a todos, defini-los. Seu corpo torna-se ___________________________________________________

Para ver mais sobre o assunto: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. São Paulo: Papirus, 2006. p. 336-359. 13 Angela Ndalianis discute a estética Neobarroca e como ela influencia a indústria do entretenimento contemporâneo. No texto a autora apresenta como marcante ao neobarroco a relação entre vários elementos de uma indústria horizontalizada, na qual cada elemento relaciona-se com o outro, criando um policentrismo próprio de uma mentalidade barroca. Para mais, ver: NDALIANIS, Angela. Neo-Baroque Aesthetics and Contemporary Entertainment. Londres: The MIT Press, 2004. p. 26. 14 CUBBIT, SEAN. The cinema effect. Massachusets: The MIT Press, 2004. p.219. 12

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então uma massa, um conjunto enorme de texturas, provocando sensação semelhante ao efeito de massa levantado por Wölfflin (1989) no barroco do século XVII e citado aqui anteriormente. Ao completar a transformação, Optimus volta-se para Sam Witwicky, projetando-se em direção à tela, parecendo voltar-se diretamente ao público. Novamente a separação entre realidade e fantasia é tensionada. Além disso, o personagem parece voltar-se em direção ao público, como os convidasse a relacionar-se com ele. No Neobarroco hollywoodiano o público deixa de ser meramente espectador passivo do filme. É convidado a todo tempo a participar da cena ativamente. Em Transformers, corpos, mesmo que monstruosos, movem-se freneticamente, provocando o público a mover-se na poltrona do cinema a todo tempo. Por outro lado, já nessa mesma cena, percebe-se uma outra característica que é essencial ao pensamento barroco: o gosto pela ilusão. É certo que a imensa maioria do público tem plena consciência de que o personagem que se ergue à sua frente é um personagem fictício, uma construção tridimensional. Contudo a todo momento esse mesmo personagem tenta passar sua existência da forma mais real possível15: Optimus tem peso, tem massa, interfere em outros objetos e se relaciona com os personagens humanos do filme. A obsessiva preocupação com o ilusionismo e a contestação da realidade assinalada no trompe-l’oeil do barroco setecentista e na obra literária de Severo Sarduy e seu Neobarroco, por exemplo, encontra agora um novo contexto cultural e tecnológico. Filmes de efeitos especiais avançados, como Transformers, por exemplo, tentam criar mundos fantasiosos tão verossimilhantes que chegam ao ponto de confundir o espectador quanto à sua materialidade. Outra sequência em que isso fica ainda mais claro acontece por volta de 1h10min de filme. Nesse momento Optimus carrega na mão Mikaela Banes, personagem interpretada por Megan Fox e interesse romântico de Sam, até o quarto do protagonista para ajudá-lo na busca por um artefato precioso aos alienígenas. A interação física entre a garota e Optimus reforça a ilusão de materialidade de um personagem que só existe digitalmente. Essa interação entre os robôs e os personagens humanos é recorrente diversas vezes durante o filme. Outra cena de Optimus que pode ser destacada aqui como marcante no que diz respeito ao Neobarroco e suas características acontece por volta de 1h50min de filme. Nessa sequência de perseguição por um viaduto e a luta entre os robôs tem-se diversas alterações no próprio ritmo do filme e na composição dos planos. Em apenas 2 minutos temos 35 planos diferentes. Há uma quantidade imensa de elementos narrativos nesse meio tempo. Podemos citar a seguir alguns exemplos: a ___________________________________________________

É interessante o paralelo que pode ser traçado entre esse real proposto pelo filme e o que Hal Foster chama de efeitos de real, em que ele afirma que o realismo contemporâneo opera por impressões de realidade ao invés de mimetização do real. Dessa forma um robô produzido digitalmente que fala e se move pelo filme soa real para o espectador, mesmo que ele não exista realmente. Para mais ver: FOSTER, Hal. O retorno do real. São Paulo: Cosac Naify, 2014. p. 123-159.

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chegada de Bonecrusher, um Decepticon, que se transformará de um grande caminhão militar para um imenso robô com uma espécie de cauda; a câmera o segue em um travelling frenético, enquanto diversos carros são atirados para o alto pelo monstro; as transformações de Bonecrusher e Optimus, acompanhadas de perto por uma câmera que coloca o público embaixo dos imensos robôs, tentando captar cada detalhe das máquinas; o próprio asfalto que se esfarela pelo atrito com os robôs, gerando partículas que povoam a tela; um ônibus que é completamente destruído pelo monstro (aparentemente sem motivo algum, apenas pelo prazer estético da explosão), sendo consumido pelo fogo; os dois se engalfinhando e caindo do viaduto; ao cair em um carro, uma família testemunha de bem perto sua luta; um líquido viscoso, algo entre óleo e sangue é atirado no vidro do carro, novamente como se fosse ultrapassar a tela e atingir o público; por fim a cabeça de Bonecrusher é desfeita em vários fragmentos pela espada de Optimus Prime. O gosto obsessivo pelo detalhe e pela fragmentação é levado ao extremo em apenas 2 minutos de filme. O espectador é convidado então a percorrer esses detalhes. Assinala-se também o uso de câmera-lenta no choque inicial entre o herói e o monstro. Essa distorção do tempo parece destacar esse momento específico do resto da cena. Quando se dilata a cena surge tensão e drama quanto ao que vai acontecer, ao impacto iminente entre os dois personagens. O próprio movimento, tão precioso ao barroco, é aqui estendido e detalhado ao máximo. E movimento não falta nessa sequência. Não há nada estático. Tudo se move. Aliás, ele não só é constante como chega a ser vertiginoso, convidando o público a mover-se junto nas cadeiras do cinema. Os carros e os personagens se movem, enquanto a câmera parece tentar a todo tempo acompanhar esse movimento, sempre trepidando, como se participasse da ação que acontece. O interessante é que por alguns segundos essa câmera parece perder-se, desenquadrando os personagens (toma-se como exemplo a cena de transformação de Optimus, em que ele, ao se transformar em robô, parece quase escapar da tela, com a cabeça quase sempre fora do enquadramento - figuras 35 a 37). Obviamente, por se tratar de uma cena na qual os personagens são totalmente produzidos digitalmente, essa “trepidação” e esse “desenquadramento” são totalmente intencionais. Isso demonstra o que parece ser uma tentativa de perda da composição estática da cena em favorecimento de uma composição muito mais dinâmica e instável. Por fim destaca-se a batalha final do filme e a aparição de Optimus Prime (2h). Novamente ele chega sob música dramática em forma de caminhão e mais uma vez se volta em direção à tela, como se fosse passar por ela. Ao transformar-se a câmera mais uma vez parece circular em volta dele, mostrando os detalhes da máquina. Porém agora ele assume uma posição de luta heroica, exagerada, quase caricata (figura 2). Sua luta com seu total oposto Megatron, líder dos Decepticons, assinala uma dicotomia ar-

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quetípica comum ao pensamento barroco setecentista, também presente no neobarroco hollywoodiano: a luta entre o bem total e o mal supremo, entre o herói e o monstro. E essa luta vem carregada de todos os elementos aqui já citados: dramaticidade, câmeras-lentas, uma infinidade de elementos visuais, muitos deles sendo atirados em direção à tela e movimento, muito movimento. Os dois gigantes destroem tudo pela frente. O próprio Optimus é lançado na direção da tela por Megatron, chocando-se com a janela de um prédio. O público que assiste ao filme vê a cena como se estivesse dentro do prédio. É como se a única coisa que impedisse o personagem de sair da tela e cair sobre os espectadores fosse essa mesma janela. 3. O neobarroco como “um ar do tempo” para Michael Bay Ao dirigir suas mega produções, Michael Bay provavelmente pensa apenas em atrair o maior número de pessoas possível para as centenas de salas de cinema onde serão exibidos seus filmes. Quase sempre alvo de péssimas críticas quanto ao conteúdo de suas produções, mas gozando de sucesso em suas bilheterias, o diretor parece cair no gosto popular, dando exatamente o que a massa parece procurar em seus filmes. Tem-se explosões frequentes, fartos efeitos especiais e aparente obsessão por ilusão. Suas histórias são sempre de narrativas muito simples e fragmentadas em módulos, privilegiando por um lado o espetáculo sensorial, e por outro permitindo extensões, tanto para sequências quanto para outras mídias. Movimento frenético o tempo todo. Saturação de elementos visuais e sonoros, beirando o incompreensível. Tudo o que o seu público busca e encontra fartamente em filmes como a trilogia Transformers, por exemplo. Essa tendência parece evidenciar um gosto comum ao público massificado, especialmente quando esse público procura entretenimento. Por outro lado é bem verdade que Michael Bay provavelmente nem tenha consciência do conceito de época Neobarroca. Porém já foi dito que isso não é em nada necessário para que seus filmes manifestem elementos comuns a esse tipo de período. Como se viu, em Transformers eles aparecem a todo momento. E isso acontece porque esse gosto comum, esse zeitgeist, ou “ar do tempo” acaba se entranhando no pensamento contemporâneo e se manifestando nesse dito gosto que é comum a muitas pessoas e, em maior ou menor grau, em tudo que é produzido, indo da ciência à cultura, da arte ao entretenimento. E Michael Bay claramente é influenciado por isso. Acaba por manifestar esse pensamento e as características próprias de um período de tendências barrocas em seus filmes. Conclui-se que, consequentemente, uma coisa alimenta a outra: os filmes são feitos dentro de uma expectativa de gosto comum ao grande público e esse grande público, que influencia e está sob influência direta desse gosto comum consome esses filmes com avidez, gerando mais lucros e proporcionando a produção de ainda mais filmes. E Michael Bay continua a produzir suas explosões,

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efeitos especiais cada vez mais mirabolantes, seus roteiros de narrativa rasa e fragmentada a serviço de grandes espetáculos sensoriais, inúmeras continuações desses espetáculos, enfim, um tipo de entretenimento massificado em uma idade de cunho Neobarroco. Por fim é interessante que se considere para futuros estudos uma possível presença de um pensamento barroco não só no cinema massificado que se fortalece a partir da década de 70, mas em diversos outros momentos de sua história. Limitou-se aqui a análise apenas ao filme Transformers, focando principalmente em um de seus personagens principais: Optimus Prime. Através dessa análise pode-se concluir a existência de uma visualidade própria do neobarroco no filme e, por extensão, em vários outras produções semelhantes no cinema high concept hollywoodiano. Contudo o gosto pela ilusão, pelo espetáculo e pelo virtuosismo parece sempre ter feito parte da produção cinematográfica, em especial nos filmes voltados ao grande público. Esse gosto já podia ser presenciado nas primeiras projeções dos Irmãos Lumière no Grand Café em Paris. Basta pensar na incredulidade do espectador ao presenciar um trem em movimento, indo em sua direção. Esse movimento, no qual a máquina ultrapassa a tela, parecendo rompê-la, até então era impensável para esse público. Além disso não só o trem se movia, mas as pessoas que desciam dele, que passavam diante da tela, que saiam dela. Havia profundidade de tela com diversos elementos em movimento. Tudo parecia tentar ultrapassar os limites entre ilusão e realidade. Como um trompe l’oeil setecentista, só que em movimento diante dos espectadores. Uma mistura de ficção e realidade que já causava espanto e fascínio àqueles presentes às primeiras exibições cinematográficas. O cinema high concept, como procurou ser assinalado no filme de Michael Bay, mostra-se expressão de um pensamento de cunho barroco próprio de nossa época. Contudo esse tipo de pensamento provavelmente já vem se manifestando desde o seu nascimento, ganhando mais ou menos força em determinada época. Referências bibliográficas ALVES, Luciana. Travestis, travessões e colibri: o neobarroco de Severo Sarduy. Anais do V Colóquio Internacional Sul de Literatura Comparada. Porto Alegre: Editora do Instituto de Letras UFRGS, 2012. Disponível em <http://wwlivros.com.br/Vcoloquio/artigos/LucianeAlves.pdf > Acesso em: 20 de junho de 2014. ARGAN, Giulio. Imagem e persuasão: ensaios sobre o barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. ARRIARÁN, Samuel. La teoria del neobarroco de Severo Sarduy. Anais do XXXVIII Congresso Internacional Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana. Disponível em: <http://www.iiligeorgetown2010.com/2/pdf/Arriaran.pdf > Acesso em: 20 de junho de 2014. CUBITT, Sean. The cinema effect. Londres: The Mit Press, 2004.

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Optimus Prime e a visualidade neobarroca no filme Transformers Radael Rezende Rodrigues Junior

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O som ao redor - violência invisível, medo palpável Ana Carolina Chagas Marçal

O som ao redor

violência invisível, medo palpável Ana Carolina Chagas Marçal1 Universidade Federal do Pará

Resumo: Este artigo se propõe a investigar O som ao redor, dirigido por Kleber Mendonça Filho, lançado em 2012, a partir de decomposição análitico-Descretiva de sequências do filme com intuito de identificar os fenômenos sociais que o mesmo aborda, como a violência urbana, o medo e a sensação de insegurança, traçando a partir daí um paralelo com o entendimento de Zygmunt Bauman a respeito desses fenômenos no real. Além disso, vamos relacionar o medo e a sensação de segurança ao conceito de poder disciplinar descrito por Michel Foucault na obra Vigiar e Punir. Palavras-chave: violência urbana; medo; sensação de insegurança. Abstract: This article proposes to investigate the movie Neighboring sounds, directed by Kleber Mendonça Filho, released in 2012, doing an analytical and descriptive decomposition of the movie sequences to identify the social phenomena that it addresses, such as urban violence, fear and the feeling of insecurity, tracing from there a parallel with Zygmunt Buaman's understanding about these phenomena in the real world. In addition, we will relate the fear and the sense of security to the concept of disciplinary power described by Michel Foucault in the book Discipline and Punish. Key words: urban violence; fear; feeling of insecurity.

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Docente substituta na Faculdade de Comunicação, do Instituto de Letras e Comunicação, da UFPA, na graduação em Comunicação Social. Mestra em Artes pelo Programa de Pós-graduação em Artes do Instituto de Ciências da Arte da Universidade Federal do Pará (2015). Graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela UFPA (2006), especialista em Artes Visuais pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial – PA (2013). 1

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O som ao redor - violência invisível, medo palpável Ana Carolina Chagas Marçal

Naturalismo como reflexão sobre realidade Durante as duas horas e onze minutos de projeção de O som ao redor (Kleber Mendonça Filho, 2012), somos lançados no cotidiano de uma pacata rua com casas e prédios de classe média e classe média alta em Recife, Pernambuco. A câmera quer, antes de tudo, fazer do espectador um voyeur de momentos, aparentemente, banais dos moradores daquela vizinhança. Passamos a acompanhar o dia a dia da dona de casa Bia (Maeve Jinkings) e sua família, do corretor de imóveis João (Gustavo Jahn), da dinâmica da rua em que moram com seu vai e vem de pessoas, camelôs, flanelinhas e carros. Dia a dia similar ao de qualquer grande cidade no território nacional. A câmera passeia pelos espaços de casas e apartamentos sem pressa. Acompanha o tempo lento da rotina que tenta captar, como podemos perceber na sequência de abertura em que a câmera, em um longo plano sequência, acompanha uma menina de patins deslizando por vários espaços do ambiente do prédio: passamos da garagem até a quadra de esportes em que outras crianças jogam futebol e bebês passeiam com suas babás. A câmera assume a posição da perspectiva do espectador que vê a menina de costas. Essa posição parece indicar qual a intenção do filme: fazer-nos observadores participantes da ação. A câmera na mão, com sua típica trepidação, nos dá a impressão de que somos nós, espectadores, que acompanhamos a menina. A sequência tem fim com a menina admirando da proteção da grade de ferro na quadra de esporte o lanterneiro que estala mais uma grade no prédio em frente. É assim que o filme nos apresenta as imagens: mediada por janelas, grades, telas de circuito interno de vigilância. Vemos Recife filtrada por lentes, vidros, grades, da perspectiva dos moradores dos grandes prédios que encheram essa cidade, principalmente, ao longo da orla. Temos a mesma visão da cidade que os cidadãos enclausurados em seus belos condomínios. O filme parece querer nos apresentar a cidade por meio do olhar dos habitantes desses espaços. Os paredões de concreto que bloqueiam a visão do mar significam ao mesmo tempo a especulação imobiliária e o crescimento de construções voltadas para uma classe média cada vez mais aterrorizada pela violência urbana. O som ao redor parece preocupado em apreender essa realidade ao redor que o título nos remete. Toda a sua construção formal em termos de planos, cenários, iluminação e atuações dos atores nos remetem para uma estética naturalista. A ideia naturalista é acentuada pela maneira atônita com que a câmera registra acontecimentos aleatórios do cotidiano e fica ainda mais evidente no transcorrer lento da primeira parte da narrativa intitulada, Cães de Guarda, que toma lugar em um único dia. São quase 52 minutos de narrativa para que o grupo de vigilantes liderados por Clodoaldo (Irandhir Santos) seja enfim introduzido na história. Destacamos aqui este fato porque o grupo de vigilantes é de suma importância para o

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desenrolar da narrativa e dos temas ligados a violência urbana, o medo e a sensação de insegurança. Os “tempos mortos”, elemento narrativo muito utilizado por movimentos como o Cinema Novo e a Nouvelle Vague, se caracterizam por sequências em que, aparentemente, nada de importante para a narrativa acontece e que possuem uma relação particular com o tempo de ação2. Esse efeito se deve principalmente ao uso de planos-sequência e também ao uso da câmera fixa. Exemplo de sequência que explicita esta poética é a de abertura que já citamos, além daquela em que o tio de João, durante um café na cozinha de casa, relata ao sobrinho o reencontro com uma antiga amante. Conversa trivial que em nada acrescenta à ação dramática do filme, mas que, no entanto, acaba por apresentar o grupo de vigilantes. A câmera, que de início está fixa na conversa de João e do tio, tem um corte, fazendo com que a câmera passe a focalizar o monitor de vigilância em que vemos pela primeira vez Clodoaldo. Gilles Deleuze, em Imagem-tempo (2005), investiga justamente de que maneira a dimensão do tempo ganha destaque no cinema moderno. No entendimento de Deleuze, as imagens antes subordinadas à dinâmica da ação deixam de ser submetidas a um esquema sensório-motor e passam a ser situações óticas e sonoras puras, que têm por característica a apreensão direta do tempo. Algo que tem relação com os “tempos mortos” e uma certa “paralisia” dos personagens diante das situações colocadas pela narrativa. Para o filósofo francês, se no cinema clássico era a ação que comandava a narrativa, no cinema moderno é o transcorrer do tempo que dá sentido ao fazer cinematográfico: Primeiramente, enquanto a imagem-movimento e seus signos sensóriomotores estavam em relação apenas com uma imagem indireta do tempo (dependendo da montagem), a imagem ótica e sonora pura, e seus opsignos e sonsignos, ligam-se diretamente a uma imagem-tempo que sub-ordenou o movimento. É essa reversão que faz, não mais do tempo a medida do movimento, mas do movimento a perspectiva do tempo: ela constitui todo um cinema do tempo, com uma nova concepção e novas formas de montagem (Welles, Resnais) (DELEUZE, 2005, p. 33-34).

Ao descrever essa nova relação entre cinema e tempo, Deleuze se referia ao nascimento de uma nova forma de fazer cinema, que não determinou a morte do esquema sensório-motor. Filmes que privilegiam as ações em detrimento do tempo continuam a existir e a serem produzidos, principalmente, dentro da lógica da indústria cinematográfica dominada pelos Estados Unidos. O som ao redor, por sua vez, se vale não só dessa relação particular com o tempo, mas das potências da vida que Deleuze (2005) usou para descrever os temas da Nouvelle Vague. O cotidiano ___________________________________________________

Segundo Marcel Martin (2005), Béla Balázs classifica o tempo no cinema em três tipos: o tempo de projeção, que é a própria duração do filme, o tempo de ação, a impressão de duração de um acontecimento na ação dramática e o tempo de percepção, que está ligado a maneira como o espectador experimenta o tempo de ação. Nos “tempos mortos”, podemos dizer que existe uma aproximação entre o tempo da ação e o tempo de projeção. O espectador tem a impressão de que o tempo da ação é o mesmo do tempo de projeção.

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não é só uma desculpa para abordar o tema da violência urbana, mas é mostrado em toda a sua pungência, caracterizando a estética naturalista a que nos referimos. O cotidiano é aqui esquadrinhado, relevado em seus ínfimos detalhes. O Naturalismo surge na França no século XIX como uma de tentativa explicar o homem e a sociedade pelo viés das ciências naturais. Como movimento nas artes, o Naturalismo se caracteriza, sobretudo, pela exploração de temas ligados às questões sociais, aos instintos humanos, ao desejo, à violência, à miséria, às patologias da mente, pela descrição de ambientes e tipos e a influência do meio social no comportamento humano, além do registro e uso da linguagem coloquial ou regional. Entendido como uma extensão do Realismo, o Naturalismo tem por características: O naturalismo não é uma concepção de arte homogênea e bem definida, que se baseia sempre na mesma ideia da natureza, mas, pelo contrário, varia com o tempo, tendo, constantemente, em vista, um objetivo particular e imediato, sempre preocupado com uma tarefa concreta e confiando a sua interpretação da vida a fenômenos particulares. Professa-se a crença no naturalismo, não porque seja considerado uma representação naturalista, a priori mais artística do que uma estilização, mas porque se descobre na realidade uma feição, uma tendência que se pretenderia acentuar com mais ênfase, que se gostaria de intensificar ou de combater. Tal descoberta não é em si o resultado da observação naturalista, pelo contrário, o interesse pelo naturalismo é resultado de tal descoberta. (HAUSER, 1982, p.902).

Se O som ao redor pode ser chamado de naturalista é porque se apresenta como uma lente de aumento sobre o microcosmos representado pela rua de Recife e seus moradores, maximizando medos, problemas sociais e investigando de que maneira os seres humanos reagem diante deles. Nesse sentido, destacam-se, o medo e a sensação de insegurança gerados, principalmente, pela violência urbana. É esse medo e sensação de insegurança, que assolam os moradores da pequena rua, que justificam a contração do grupo de vigilantes de Clodoaldo e o consequente desenrolar da ação dramática. Estamos abordando a estética naturalista proposta em O som ao redor não porque estamos decididos a classificá-lo como represente desta estética, mas sim porque o filme se apropria de elementos da realidade para compor sua narrativa, ressignifica-os e constrói a partir daí um discurso sobre fenômenos sociais como o medo, a sensação de insegurança, a violência urbana. O som ao redor, ao contrário de filmes como Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002), Tropa de Elite (José Padilha, 2007), entre outros filmes nacionais que se dedicam a investigar a violência e seus porquês, desloca o olhar da favela e periferia para os prédios e condomínios de classe média e classe média alta, sem deixar de trazer essa relação dialética e conflituosa entre

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centro e periferia. A ameça não está ali representada pela violência física explícita. Nenhuma gota de sangue é derramada durante o desenrolar da narrativa. O som ao redor foi escolhido para este trabalho justamente pela maneira singular com que aborda o tema da violência urbana. Para tematizá-la, o filme não se vale da exposição de atos violentos. De forma asséptica, o filme aborda o medo e a sensação de insegurança derivados, sobretudo, da violência urbana, sem apresentá-la em nenhuma sequência. Nesse caso, a violência urbana só pode ser presumida, intuída pelo espectador. Invisível aos olhos de quem assisti à película, mas presente na manifestação do medo e da sensação de insegurança, o filme faz da ausência da violência urbana uma presença incômoda, oferecendo um interessante retrato sobre a dinâmica da vida nas grandes cidades, das angústias que perturbam os seus cidadãos e debate a maneira como lidamos com os possíveis perigos e os temores que rondam os espaços urbanos na contemporaneidade. Assim, o presente artigo pretende a investigar o filme O som ao redor, a partir de decomposição análitico-descretiva de sequências do filme com intuito de identificar os fenômenos sociais que o mesmo aborda: o medo e a sensação de insegurança, derivados da violência urbana, traçando a partir daí um paralelo com o entendimento de Zygmunt Bauman a respeito desses fenômenos no real. Além disso, vamos relacionar o medo e a sensação de segurança ao conceito de poder disciplinar descrito por Michel Foucault na obra Vigiar e Punir. A ideia é partir da obra fílmica, construir relações possíveis entre ela e os conceitos dos referidos autores. Vale destacar que o único ato de violência mostrado no filme é o furto do toca-cds do veículo de Sofia (Irma Brown). Mesmo assim, O som ao redor nos poupa da sequência do arrombamento, mostrando apenas a descoberta do furto por Sofia e João (Gustavo Jahn) e o vidro de trás do carro cuidadosamente retirado do veículo, ainda intacto sem ter sido quebrado durante o delito. Um crime sem imagens, uma violência invisível. É interessante notar que o crime é atribuído a Dinho (Yuri Holanda), um morador da própria rua, neto de Francisco (W. J. Solha), e não a um ladrão externo. Se a ameaça que justifica a presença do grupo de vigilância é externa, o filme em nenhum momento se propõem a dar a esta ameaça uma face. Tampouco parece preocupado em mostrar se ela é real ou apenas imaginária como veremos a seguir. Medo e sensação de insegurança em cena Em Medo líquido (2008b), obra que investiga os medos contemporâneos, Bauman nos fala em um “medo derivado” resultante do enfraquecimento dos laços humanos, da consequente falta de confiança no outro e da lograda promessa de segurança total que a modernidade não cumpriu.

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Os avanços científicos e tecnológicos, bem como a atuação do Estado no início da Era Moderna, pareciam a solução definitiva para todas as ameaças à integridade dos seres humanos no que dizia respeito aos males do corpo e às questões dos serviços públicos como saúde, educação, saneamento e também a segurança pública. Esse “medo derivado” seria o responsável por uma crescente sensação de insegurança e vulnerabilidade que caracteriza a vida nas grandes cidades na contemporaneidade. Sobre isso Bauman destaca que “uma pessoa que tenha interiorizado uma visão de mundo que inclua a insegurança e a vulnerabilidade recorrerá rotineiramente, mesmo na ausência de ameaça genuína, às reações adequadas a um encontro imediato com o perigo; o “medo derivado" adquire a capacidade da autopropulsão.” (BAUMAN, 2008b, p.9). Se a ameaça é invisível e o inimigo difuso, incerto e sem rosto, o medo não poderia ser algo mais palpável e ganha a capacidade de autopropulsão citada por Bauman quando é, aparentemente, a única justificativa para a contração do grupo de vigilância comandado por Clodoaldo. Quando são apresentados pela trama de O som ao redor, Clodoaldo e os vigilantes estão distribuindo panfletos sobre o suposto serviço de segurança particular que oferecem. Portanto, não temos nenhuma explicação sobre a origem do grupo, que aparece sem ser convocado e sem esclarecer quais são suas intenções. Em nenhum momento do filme, Clodoaldo e seus homens são convidados a mostrar seus antecedentes ou comprovar suas habilidades em relação ao serviço oferecido. O único a ser consultado sobre a presença do grupo de vigilância é Francisco, dono da maior parte dos imóveis da rua. Assim de forma quase imperceptível, o grupo de vigilante se “infiltra” na comunidade e passa a fazer parte do dia a dia dos habitantes da rua. Não estamos negando a existência do fenômeno da violência urbana e suas possíveis consequências para a população das cidades. Estamos apenas demonstrando que o filme enquanto suporte não fundamenta a origem do medo e da insegurança experimentados pelos personagens em um acontecimento específico. O que importa é que o sentimento de vulnerabilidade e a certeza de um perigo iminente, que pode atacar a todos a qualquer momento, são reais o bastante para fundamentar o modo de agir dos moradores. Que o medo e a sensação de insegurança são reais para os personagens de O som ao redor não podemos duvidar. Basta observar as diversas sequências em que os personagens são enquadrados por detrás de grades de ferro, ressaltando a necessidade de se proteger de alguma ameaça. Vemos Bia (Maeve Jinkings) em inúmeras sequências, por exemplo, enquadrada por meio das barras de ferro da janela da cozinha. As grades, nesse sentido, dão a tônica da procura por proteção pessoal que assola os moradores dos espaços urbanos. Símbolo máximo daquilo que se quer deixar do lado

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fora, as grades parecem apontar para o encarceramento do próprio cidadão provocado pela violência urbana. Nessas condições, os vinte reais por mês cobrados pelo grupo de vigilância de Clodoaldo parece um pequeno preço a pagar pela tão sonhada sensação de segurança. Como nos afirma Bauman: “O medo nos estimula a assumir uma ação defensiva, e isso confere proximidade, tangibilidade e credibilidade às ameaças, genuínas ou supostas, de que ele presumivelmente emana” (BAUMAN, 2008b, p.173). Nessa medida, é o incognoscível que mais assusta. Aquilo que não se pode identificar, reconhecer e compreender. É a ignorância e o desconhecimento em relação aos inimigos e às ameaças que se escondem em cada esquina que parecem motivar o medo e a sensação de insegurança no filme. Não admira, portanto, que as ameaças que rondam os moradores não sejam visíveis durante toda a projeção. Os perigos estão no fora de campo, longe dos olhos da câmera que atônita registra a angústia dos habitantes da pequena rua. O fato de não se poder identificar as possíveis ameaças, no entanto, não significa que elas não existam. A ameaça em O som ao redor é invisível, mas o medo não o é. A violência urbana, fonte de ansiedade para os moradores dos grandes centros, em nenhum momento mostra sua faceta claramente. Assaltos, sequestros, uso de armas de fogo, tráfico de drogas, estupro ou agressão física não estão lá de forma de explícita, representados em uma cena específica, mas, com certeza, se fazem presente por meio do estado de espírito dos moradores daquele espaço. Até mesmo quando vemos algum comentário sobre a criminalidade no filme, informação que toma lugar no diálogo entre Bia e seu marido, é de forma indireta. O casal comenta dois furtos a carro acontecidos na rua, eventos que não são mostrados em que nenhuma sequência específica do filme, Bia ainda cogita a possibilidade dos crimes estarem ligados ao próprio grupo de vigilantes, que, apareceu justamente no dia seguinte aos furtos. Segundo Bia, tudo poderia não passar de um “golpe de marketing” do grupo de Clodoaldo. Mais uma vez o filme não mostra a violência. Ouvimos o comentário sobre os crimes, mas não os crimes em si. É justamente esse jogo entre o que está ali apresentado para o espectador e o que não está que fazem do filme uma metáfora da vida contemporânea nas grandes cidades. A ameaça invisível que espreita a rua de Recife e enche de medo e insegurança os personagens não é diferente do medo e da insegurança que apavora e paralisa os habitantes das grandes cidades. Algo capaz de gerar uma identificação imediata não só a nos espectadores brasileiros, mas também em espectadores de várias partes do globo. O medo e a sensação de insegurança dos moradores das áreas urbanas são justificados pela percepção de que o “vínculo entre civilização e barbárie se in-

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verteu. A vida nas cidades está se convertendo em um estado de natureza caracterizado pela regra do terror e pelo medo onipresente que a acompanha”. (DIKEN E LAUSTSEN apud BAUMAN, 2009, p. 61). No nascimento da Era Moderna, viver nas áreas urbanas se justificava também pela possível segurança que elas eram capazes de prover, hoje vemos que a situação se inverteu e que “as cidades que, histórica e conceitualmente, costumavam ser a metonímia da proteção e da segurança se transformaram em fontes de ameaça e violência” (MENDIETTA apud BAUMAN, 2008b, p.92). Segundo Bauman (2008b), a omissão e a incapacidade do Estado, mais preocupado com as questões ligadas a economia global, em promover os serviços básicos como saúde, emprego, moradia, e, principalmente, segurança pública, transferiu esta última competência para o cidadão comum que se vê agora único responsável por sua proteção individual. Passamos do Estado social para o Estado de segurança pessoal nas palavras do sociólogo polonês. Se o Estado não é capaz de promover a proteção necessária e as cidades se tornaram um espaço de barbárie como muitos acreditam, nada mais natural que os cidadãos com um poder aquisitivo mais elevado tratem de criar mecanismos que deixem os perigos bem distantes dos seus espaços de convívio. É assim que vemos o crescimento da chamada arquitetura do medo3 e a proliferação de prédios e condomínios fechados que prometem manter todas as ameaças do lado de fora. Em O som ao redor essas paredes capazes de criar uma fronteira entre os perigos da grande cidade e os cidadãos não são físicas, mas simbólicas. A rua não está fechada por barreiras materiais, mas está isolada do resto da cidade por meio da presença e da atuação do grupo de vigilância ou, pelo menos, essa é a grande promessa que justifica sua contratação. É claro que o pretenso “isolamento” da classe média e classe alta representado no filme cria uma cisão no espaço das grandes cidades. O que se quer manter do lado de fora não é só a violência urbana, mas a pobreza e as demais mazelas sociais que enfeiam o espaço urbano. Os condomínios fechados e os prédios com seus jardins bem cuidados, sua beleza arquitetônica e seus espaços bem planejados representam uma cidade ideal. Nessa medida, esses enclaves de segurança parecem estar cada vez mais desconectados física e simbolicamente das áreas de vizinhança direta, representadas pelas áreas de periferia e seus moradores. Situação que só contribui para o aumento do clima de desconfiança entre os habitantes da cidade, que não mais se enxergam como parte de um mesmo lugar: ___________________________________________________

Termo utilizado para designar a tendência do mercado imobiliário e da arquitetura urbana na criação de espaços planejados baseado nas preocupações com o medo e com a insegurança. Para saber mais ver ELLIN, N. e. BLAKEY, E.J. (orgs.), Architecture of Fear, Nova York, Princeton Architectural Press, 1997. 3

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Como bem sabemos, as cercas têm dois lados. Dividem um espaço antes uniforme em “dentro” e “fora”, mas o que é “dentro” para quem está de um lado da cerca é “fora” para quem está do outro. Os moradores de condomínio mantêm-se fora da desconcertante, perturbadora e vagamente ameaçadora – por ser turbulenta e confusa – vida urbana, para se colocarem “dentro” de um oásis de tranquilidade e segurança. Contudo, justamente por isso, mantêm todos os demais fora dos lugares decentes e seguros, e estão absolutamente decididos a conservar e defender com unhas e dentes esse padrão; tratam de manter os outros nas mesmas ruas desoladas que pretendem deixar do lado de fora, sem ligar para o preço que isso tem. A cerca separa o "gueto voluntário" dos arrogantes dos muitos condenados a nada ter. Para aqueles que vivem num gueto voluntário, os outros guetos são espaços “nos quais não entrarão jamais”. Para aqueles que estão nos guetos “involuntários”, a área a que estão confinados (excluídos de qualquer outro lugar) é um espaço “do qual não lhes é permitido sair”. (BAUMAN, 2009, p.39-40).

Dentro dessa lógica, prédios e condomínios fechados com suas regras de convivência, câmeras de vigilância 24 horas e o constante controle em cima dos moradores parecem a materialização do conceito de panóptico estabelecido por Foucault (2009). Se antes o dispositivo panóptico estava a serviço de controlar detentos dentro dos sistemas prisionais, doentes mentais em hospitais psiquiátricos ou estudantes dentro do ambiente escolar, hoje ele é utilizado na busca utópica pela segurança pessoal. As palavras de Foucault não poderiam ser mais precisas sobre a correspondência entre o panóptico e os prédios e condomínios fechados: “cada vez que se tratar de uma multiplicidade de indivíduos a que se deve impor uma tarefa ou um comportamento, o esquema panóptico4 poderá ser utilizado. (FOUCAULT, 2009, 195). Os prédios e condomínios fechados se diferem dos demais dispositivos panópticos, no entanto, porque não são imposições de terceiros em um sistema de cima para baixo como nas prisões, escolas e hospitais, mas são algo desejado e requirido pelos próprios indivíduos. Em prol da segurança e do bem-estar, os habitantes desses espaços desfrutam de uma liberdade vigiada. Em O som ao redor o dispositivo panóptico é caracterizo pela presença do grupo de vigilantes. Localizados em uma guarita improvisada no início da rua, Clodoaldo e seus homens vigiam a vida dos moradores em tempo integral, fiscalizam a entrada e saída de visitantes, anotam informação a respeito de cada habitante nos relatórios em suas pranchetas e são capazes de descrever a rotina ___________________________________________________

Panóptico de Bentham: estrutura arquitetônica criada por Jeremy Bentham no formato circular em que uma torre vigilância era inserida no centro do conjunto, permitindo que o vigilante tivesse uma visão de todo o conjunto, sem que os prisioneiros fossem capazes de avistá-lo. Projeto utilizado, principalmente, na construção de prisões. Mas para Foucault o Panóptico vai além e “não deve ser compreendido como um edifício onírico: é o diagrama de um mecanismo de poder levado à sua forma ideal; seu funcionamento, abstraindo-se de qualquer obstáculo, resistência ou desgaste, pode ser bem representado como um puro sistema arquitetural e óptico: é na realidade uma figura de tecnologia política que se pode e se deve destacar de qualquer uso específico.” (Foucault, 2009, p.194).

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de cada pessoa. Esse tipo de conhecimento a cerca dos moradores em muito se assemelha ao saber produzido a respeito dos indivíduos pelo poder disciplinar. Forma de tecnologia de poder descrita por Foucault em Vigiar e Punir (2009), as disciplinas ou poder disciplinar começou a tomar forma a partir do século XVIII, passando a ser utilizado por aparelhos e instituições, dentre elas o próprio Estado moderno, e que se vale de estratégias, manobras e técnicas de coerção e sujeição para condicionar comportamentos, pensamentos e atitudes sem fazer uso, necessariamente, de força física ou de instrumentos ideológicos. As disciplinas, de acordo com Foucault (2009), são uma forma sutil de exercício de poder e difusa, já que encontra expressão em uma única instituição ou aparelho facilmente identificável e se dão, primordialmente, nas relações humanas. As disciplinas buscam, acima de tudo, tornar os corpos5 tanto mais úteis quanto dóceis: O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente é quanto útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. (FOUCAULT, 2009, p. 133).

Podemos dizer, nesse contexto, que o conhecimento produzido sobre o hábito dos moradores no filme de Kleber Mendonça Filho se constitui em uma das técnicas desse poder disciplinar. Foucault já ressaltava que as disciplinas são “uma anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2009, p.134). E mais: não existiria relações de poder sem que um campo de saber estivesse implicado. Nesse sentido, as disciplinas produzem saber sobre os indivíduos não só para melhor conhecê-los, mas para melhor aproveitá-los de forma útil. Esse poder-saber, termo utilizado por Foucault para denominar essa relação entre saber e poder, seria um dos responsáveis pelo desenvolvimento das ciências humanas a partir do século XIX. Psicologia, antropologia, sociologia, entre outros campos de conhecimento que estão a serviço de desvendar a natureza do homem, investigam os seres humanos e suas relações com o mundo. É interessante destacar que é justamente desses campos de conhecimento que o movimento naturalista nas artes vai se nutrir e se basear, o que corrobora para a ideia naturalista que o filme nos passa.

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Privados de liberdade e com a privacidade invadida, os moradores da pequena rua de Recife mostrada no filme, assim como os habitantes de prédios e condomínios fechados, tornam-se prisioneiros. A lógica da prisão se inverte: ao invés do criminoso estar encarcerado, são os cidadãos comuns que passam a ficar aprisionados. Assim, parece que o medo e a sensação de insegurança no mundo contemporâneo são apenas mais uma faceta do poder disciplinar a serviço de docilizar os corpos, já que condicionam, limitam e impõe uma série de comportamentos aos indivíduos e justificam um constante esquema de vigilância. As angústias ligadas ao medo e a sensação de insegurança, portanto, podem e têm sido utilizados como formas de controle e coerção social. Os corpos dóceis são produtos das disciplinas e também uma de suas finalidades: por meios de suas técnicas, mecanismos e estratégias os corpos dóceis tomam forma e são condicionados. Para Foucault (2009), os corpos são investidos por relações de poder e dominação que direcionam ações, submetem-nos a trabalhos, sujeitam-nos a comportamentos. Corpos que ao mesmo tempo são força útil, campo produtivo e objeto de submissão: “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”. (FOUCAULT, 2009, p.132). As disciplinas, portanto, no caso de O som ao redor, servem para docializar os corpos dos moradores, condicionando comportamentos e atitudes em relação ao medo e à sensação de insegurança. A primeira expressão desse condicionamento é aceitar a presença do grupo de vigilantes sem questionamento e motivo aparente. A segunda é o estabelecimento do sistema panóptico e a produção de saber gerada por ele e o terceiro é o adestramento que advém desse sistema panóptico. Esse adestramento seria uma das consequências e funções do poder disciplinar. Ele estaria a serviço de “fabricar” os corpos dóceis para deles “retirar e se apropriar ainda mais e melhor (FOUCAULT, 2009, p. 164). Para isso, o adestramento se valeria de três instrumentos: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. No caso de O som ao redor, é fácil verificar a aplicação da vigilância hierárquica e da sanção normalizadora. A vigilância hierárquica se caracteriza pela própria presença do grupo de vigilantes. A partir do momento que se estabelecem na rua, Clodoaldo e seus homens passam a exercer um papel de autoridade naquele espaço. Autoridade outorgada pelos próprios moradores e pelo sistema paralelo de poder que se estabelece a partir deles. Falamos em um sistema de poder paralelo porque não está integrado a nenhum aparelho oficial do Estado, como a polícia civil e militar. Ao ser questionado sobre uso de armas de fogo, por exemplo, Clodoaldo dá entender que o grupo se utiliza de armas, mas não com a permissão das leis vigentes no país. De acordo com Foucault (2009), a vigilância hierárquica se faz necessária porque o poder

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disciplinar supõe a observação ostensiva dos indivíduos com o objetivo de induzir os efeitos do poder e assegurar os meios coerção pela visibilidade sobre os que se aplicam as disciplinas. Essa vigilância se encontra reproduzida nos hospitais, prisões, acampamentos militares, fábricas, escolas, impondo o cumprimento de normas, regras e exigindo dos indivíduos o seguimento das mesmas. Nesse sentido, essas instituições “produziram uma maquinaria de controle que funcionou como microscópio do comportamento; as divisões tênues e analíticas por elas realizadas formaram, em torno dos homens, um aparelho de observação, de registro e de treinamento”. (FOUCAULT, 2009, p.167). Exemplo dessa vigilância hierárquica exercida pelo grupo de vigilantes de O som ao redor e da confiança na pretensa segurança que oferecem é a sequência em que Clodoaldo usa a casa de um dos moradores para um encontro amoroso com a empregada doméstica de Francisco. Sabendo que os moradores estão viajando e que o dono da residência deixará uma chave sobressalente em seu poder, Clodoaldo utiliza a casa como espaço para o encontro. Ironicamente, enquanto Clodoaldo se diverte com a moça, vemos nessa mesma sequência, um rapaz passeando de toalha, um invasor, que se vale da mesma casa vazia sem ser notado pelo chefe dos vigilantes. Esse mesmo rapaz é visto de relance por Bia na sequência em que esta está fumando no terraço. Apesar de toda a suposta segurança oferecida pelo grupo e a vigilância exercida por eles sobre os moradores, os vigilantes não conseguem notar a invasão da casa e tampouco descobrem a existência do intruso. Nesse ponto, somos nós, os espectadores, os únicos a saber que a promessa de segurança oferecida pelo grupo foi lograda. O filme faz do espectador seu único cúmplice. Para que a vigilância hierárquica seja exercida de maneira eficaz o espaço deve ser organizado de maneira que facilite a observação. O poder disciplinar para ser exercido nos corpos dóceis precisa que os indivíduos sejam distribuídos no espaço a fim de anular “(...) o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa” (FOUCAULT, 2009, p.138). A relação do poder disciplinar com o espaço e a distribuição dos indivíduos por ele encontra sua representação máxima no sistema panóptico. Essa forma de organizar o espaço está, portanto, também presente no filme seja na presença do grupo de vigilantes, seja na organização das casas e condomínios de classe média e classe média alta como já dissemos. Esses espaços que permitem não só que os indivíduos sejam observados, mas condicionam a circulação dos indivíduos, a interação entre eles e a própria relação deles com o espaço, tendo tanto uma existência material como simbólica, como Foucault reitera:

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São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais pois que regem a disposição de edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias (FOUCAULT, 2009, p.142-143).

No entendimento de Foucault (2009), dentro de todo o espaço organizado a partir do poder disciplinar funciona uma espécie de mecanismo penal. Esse mecanismo penal é chamado de sanção normalizadora e estabelece uma série de regras e leis que devem ser cumpridas por todos. Sua desobediência supõe alguma forma de punição. A segurança e comodidades oferecidos por condomínios e prédios pressupõem também uma série de regras de convivência que deve ser seguida por seus moradores: horários em que obras devem ser executadas, estabelece quem deve usar o elevador de serviço e o elevador social, que espaço na garagem cabe a cada morador, que lugares podem utilizados para lazer, entre outras regras. Esse código de conduta por si só já representa a sanção normalizadora proposta por Foucault (2009). Podemos supor que essa série de regras se encontram vigentes dentro dos condomínios e prédios mostrados no filme. No entanto, acreditamos que essa sanção normalizadora ganha novas nuances com a presença do grupo de vigilantes. A partir do momento em que passam a vigiar a rua, os vigilantes estabelecem também uma série de regras que devem ser seguidas por todos. Exemplo disso, é a sequência em que um homem se encontra perdido na rua. Pelo rádio, os vigilantes comunicam-se para achar o prédio de que o visitante havia saído. O filme, de forma didática, demonstra o controle que os vigilantes exercem sobre aquele espaço: o visitante é um estranho e sua presença não documentada cria uma ameaça que precisa ser imediatamente esclarecida. A presença de alguém estranho foge as regras de segurança estabelecida pelos vigilantes, foge a sanção normalizadora. Podemos citar ainda a ameaça feita por Clodoaldo a Dinho, neto de Francisco, proprietário da maior parte dos imóveis na rua que é cenário de O som ao redor. Logo que chegam à rua, o grupo de vigilantes é alertado por Francisco de que podem atuar na área desde que não importunem Dinho. Para Francisco, os delitos de Dinho estão acima do poder representado pelo grupo de vigilantes, mas para Clodoaldo não. Ignorando o aviso dado por Francisco, o vigilante telefona do orelhão da esquina para casa de Dinho e o ameaça, demostrando que ninguém está acima da sanção normalizadora que o grupo estabelece na rua.

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Medo e sensação de insegurança a serviço de quem? O grupo de vigilantes, no que tange o medo e a sensação de insegurança, são só uma faceta do poder disciplinar que se estabelece a partir da exploração desses dois fenômenos. Mas nesse jogo de controle e coerção estabelecido a partir das disciplinas a quem interessaria o medo e a sensação de insegurança? De certo a toda indústria construída ao redor da proteção pessoal, de que fazem parte as construtoras de prédios e condomínios fechados, que produz uma série de produtos que prometem manter qualquer perigo a distância: câmeras de vigilância, carros blindados, cercas elétricas, portões eletrônicos, coletes à prova de bala, entre outros. Além disso, a segurança pública tem sido tema de polarização nas campanhas eleitorais, gerando debates acalorados e passando a fazer parte do plano de governo de candidatos a cargos públicos. Nesse escopo, também devemos lembrar que o medo e a sensação de insegurança têm sido usados como justificativa para os gastos públicos tanto na esfera municipal, estadual, quanto federal que vão desde a aquisição de novas viaturas, construção de novas prisões e/ou postos policiais até a contratação de um maior contingente de policiais. É preciso considerar ainda o impacto dos meios de comunicação de massa nessa equação, já que fazem da violência urbana um produto amplamente espetacularizado pelos cadernos policiais dos jornais impressos, pelos telejornais e pelos programas de TV que exploram os crimes à exaustão. Os recortes da realidade feitos pelas notícias sobre crimes e atos violentos quase nunca dão conta de representar o fenômeno em sua totalidade e habilmente dissociam a violência de sua causa mais imediata: as questões sociais ligadas ao desemprego, a baixa qualificação profissional dos moradores da periferia e a falta de educação de qualidade, por exemplo. No entanto, as notícias sobre crimes e criminosos são fonte de preocupação e angústia para a população. Se os fatores aqui apresentados não são responsáveis por si só pelo medo e pela sensação de insegurança experimentados nas grandes cidades, sem dúvida se alimentam e retroalimentam esses fenômenos, já que lucram diretamente com sua propagação pelo corpo social. Aproveitam-se da demanda assim como são responsáveis por criá-la. É o que Bauman chama de “capital do medo”, toda a forma de capitalização, seja política ou comercial, em cima do medo e da sensação de insegurança: “o mercado prospera em condições de insegurança; ele aproveita os medos e o sentimento de desamparo dos seres humanos” (BAUMAN, 2008b, p. 176). O medo e a sensação de insegurança aparecem aqui como uma metáfora da vida contemporânea nas grandes cidades cada vez mais controlada por câmeras, vigilantes e todo tipo de artifício que visa oferecer segurança pessoal, mas que nem por isso são capazes de evitar os temores de tudo e de todos. O paradoxo está colocado: quanto mais tecnologia se desenvolve no sentido de promover

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a segurança, mais nos sentimos inseguros. A relação entre o contexto sociocultural, político e histórico e a obra de arte é uma análise válida tanto para entender os fenômenos sociológicos, como a violência urbana e seus desdobramentos, aqui apresentados na forma de medo e sensação de insegurança, quanto a própria obra de arte. Procuramos, assim, contextualizar por meio do filme O som ao redor as preocupações com a segurança pública que rondam a vida contemporânea nas cidades, esboçando algumas leituras possíveis. Acreditamos que a obra de arte e, em particular, o cinema produz uma forma de conhecimento importante sobre a sociedade. Como nos afirma Viktor Shklovsky sobre uma das funções da arte: “e a arte existe para que se possa recuperar a sensação de vida; existe para fazer com que as pessoas sintam as coisas, para tornar a pedra pedregosa. O propósito da arte é transmitir a sensação das coisas como elas são percebidas e não como elas são conhecidas”. (SHKLOVSKY apud CHARNEY e SCHWARZ, 2010, p.327). Não pretendemos reduzir O som ao redor apenas ao tema do medo e da sensação de insegurança. Os fenômenos aqui abordados estão longe de ser a única questão levantada durante o desenrolar da trama. Os choques provocados pelas relações humanas, as relações de trabalho, a dialética entre centro e periferia, o ranço de exploração durante o clico açucareiro e o derramamento de sangue provocado pela disputa de terra, em um passado assim não tão distante, são questões que fazem do filme um universo complexo que não exaure tão facilmente. Talvez tenha sido a naturalidade com que o grupo de vigilantes se insere naquela comunidade que tenha nos chamado tanto a atenção, levando a série de questionamentos aqui propostos. Quando a liberdade e a privacidade, bens tão preciosos, se tornaram algo tão facilmente negociável? Quando a liberdade vigiada oferecida por prédios, shoppings, condomínios fechados, entre outros, viraram a única alternativa diante dos perigos das cidades? O que precisamos fazer para nos sentirmos seguros novamente? Existe alguma saída para essa situação? O som ao redor não nos oferece nenhuma resposta para estas perguntas. Nem mesmo se propõe a equacionar as preocupações com a proteção pessoal que angústia seus personagens. No entanto, a mensagem é clara: enquanto não encontramos soluções para isso, só existem paliativos como o grupo de vigilância. Qualquer coisa que torne mais tolerável viver na companhia dos temores. Com certeza o medo e a sensação de insegurança estão introjetados, condicionando comportamentos e atitudes o que nos fez considerar o poder disciplinar descrito a partir do entendimento de Foucault (2009). De forma lírica, o filme materializa essa angústia, provocada principalmente pela violência urbana, no sonho da filha de Bia, que por alguns segundos olha pela janela do quarto

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e acredita ver um grupo de homens, possivelmente criminosos, pulando o muro da casa ao lado para logo em seguida descobrir que tudo não passava de um pesadelo. Como já dissemos, a violência urbana é só uma faceta do medo contemporâneo. Ainda temos o terrorismo e as catástrofes naturais, por exemplo, que quando adicionados à mistura só aumentam as incertezas e os temores. Nesse sentido, “O mais horripilante dos medos adicionados é o de ser incapaz de evitar a condição de estar com medo ou de escapar dela” (Bauman, 2008, p. 124. Grifo do autor). Talvez nós, habitantes das cidades, sejamos como a filha de Bia diante do medo e da sensação de insegurança, apenas crianças amedrontadas em nossas camas, esperando que as ameaças e perigos não passem de um terrível pesadelo.

Referências bibliográficas AUMONT, Jacques e MARIE, Michael. A análise do filme. Lisboa: Armand Colin, 2004. BAUMAN, Zygmunt. A sociedade individualizada: vidas cotidianas e histórias vividas. Tradução: José Gradel. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008. ________________. Confiança e medo na cidade. Tradução: Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2009. ________________. Medo líquido. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Editora Jorge Zahar, 2008. CHARNEY, Leo e SCHAWARZ, Vanessa R. O Cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo. Cosac Naify, 2010. DELEUZE, Gilles. Imagem-tempo – cinema 2. São Paulo: Brasiliense, 2005. FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2012. _______________. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes, 2009. HAUSER, Arnold. História Social da Literatura e da Arte. São Paulo: Mestre Jou, 1982. HEINICH, Nathalie. A sociologia da arte. Tradução de Maria Ângela Caselatto. Bauru, SP: Edusc, 2008. MARTIN, Marcel. A linguagem cinematográfica. Dinalivro: Lisboa, 2005.

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MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006 – Coleção Campo Imagético. NAGIB, Lúcia. Em "O Som ao Redor", todos temem a própria sombra. Disponível em: http://www1.folha. uol.com.br/ilustrissima/1231435-em-o-som-ao-redor-todos-temem-a-propria-sombra.shtml. Acesso em: 23 de setembro de 2013. PAIXÃO, João Gabriel. O som ao redor ou o naturalismo à brasileira. Revista Contracampo, novembro de 2012. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/99/pgosomaoredor.htm. Acesso em: 5 de agosto de 2014 XAVIER, Ismail. Cinema Brasileiro Moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001 ____________. O discurso cinematográfico: opacidade e transparência. São Paulo: Paz e Terra, 2005.

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Dramaturgias cinematográficas lúdicas Alexandre Martins Soares

Dramaturgias cinematográficas lúdicas

Os casos Um conto do tempo perdido e O fabuloso destino de Amélie Poulain Alexandre Martins Soares1 Universidade Federal de Minas Gerais

Resumo: Elementos lúdicos são articuláveis como condutores de narrativas cinematográficas. Para verificá-los, no presente comunicado parte-se de referencial teórico em Semiótica da Cultura, Sociologia e Psicanálise. A seguir, são analisados os filmes Um conto do tempo perdido, do soviético Aleksandr Ptushko, e O fabuloso destino de Amélie Poulain, do francês Jean -Pierre Jeunet. Eles foram realizados em épocas e sistemas sociais distintos. Porém, os dois são comparados pela fantasia e pela dramaturgia lúdica de personagens, cada qual em uma grande cidade, contrapondo-se ao ideal produtivista de seu tempo e lugar. Palavras-chave: narrativas lúdicas; cinema; fantasia. Abstract: Playful elements are hinging as drivers of cinematographic narratives. To check them, this statement part of theoretical reference in Semiotics of Culture, Sociology and Psychoanalysis. The following are analyzed the films A Tale of Lost Times, directed by the Soviet Aleksandr Ptushko, and The Fabulous Destiny of Amélie Poulain, directed by the Frenchman Jean-Pierre Jeunet. They were realized in separate epochs and social systems. However, the two are compared by the fantasy and the dramaturgy of playful characters, each of which in a big city, contra positing the ideal of industrial output of his time and place. Key words: playful narratives; cinema; fantasy.

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Doutorando em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG, bolsista da CAPES e orientado pelo Prof. Dr. Luiz Nazario, desenvolve a tese Na vitrine do socialismo. A mulher no cinema da DEFA e da Ostalgie. Linha de pesquisa: Cinema. É especialista em Educação a Distância pelo SENAC-MG (2009). Mestre pela EBA-UFMG (2003) e graduado em Cinema de Animação pela mesma instituição (2000).

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Dois filmes separados pelo tempo e espaço. O primeiro é Um conto do tempo perdido (A Tale of Lost Times ou The Tale of Time Lost, 1964), dirigido por Aleksandr Ptushko, realizado na então União Soviética do início da era Brejnev. Uma época conhecida por abranger o apogeu e início do declínio do império soviético, com a estagnação econômica, e sua ideologia coletivista. O segundo é O fabuloso destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin D’Amélie Poulain, 2002) realizado na França do governo Jacques Chirac, do compromisso de integração à União Europeia e adoção do Euro. Propõe-se aqui uma abordagem comparativa dos dois filmes, que, a princípio, não seriam comparáveis. Não há evidências de referências intertextuais conscientes e mesmo inconscientes dos criadores do segundo, mais recente, feitas ao primeiro. São obras realizadas com propostas distintas em contextos distintos. Lembra-se, porém, que na base de uma ciência está um espanto original, que pode vir da observância de padrões similares ocorrendo em universos que aparentemente não se relacionam. A primeira aproximação entre o filme de Ptushko e o de Jeunet ocorre pela fantasia que rompe com a realidade vivida em capitais de dois países em épocas e sistemas de governo diferentes: respectivamente a história de um garoto da Moscou de 1964 e de uma moça da Paris de 1997. A segunda aproximação ocorre pela observância de que os dois personagens centrais são motivados pelo lado lúdico da vida. A narrativa é construída como um jogo, em que estão presentes os elementos do sonho, da imaginação em vigília e mesmo de possíveis patologias. Para confrontar a dramaturgia dos dois personagens em dois filmes distintos, parte-se de referenciais teóricos na Semiótica da Cultura, Sociologia, Psicanálise e de relações entre Cinema e História. Tais referenciais, expostos brevemente, são adotados como pontos de vista para a análise comparada, pois podem lançar algumas luzes sobre a questão central proposta, e que unifica a abordagem comparativa: o menino de Moscou no filme de Ptushko e a moça de Paris no filme de Jeunet desafiam, sem que disso tenham consciência, o ideal produtivista presente tanto no socialismo realmente existente quanto no capitalismo liberal avançado? Um tempo certo para cada coisa Baitello Junior (1999, p. 28) apresenta semióticos soviéticos das escolas de Tartu e Moscou, nomes como Lotman, Uspienskii, Ivanov, Toporov e Pjatigorskii, para quem a cultura, como textos produzidos pelo homem, deve ser entendida “não apenas [como] aquelas construções da linguagem verbal, mas também imagens, mitos, rituais, jogos, gestos, cantos, ritmos, performances, danças, etc.”. Dentre os diversos pontos de partida para a produção dos textos culturais estão o sonho e a imaginação em vigília. O semiótico tcheco Ivan Bystrina (1989), citado por Baitello Junior (ibid.),

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argumenta que quando o homem assegura sua sobrevivência, superando a realidade física e biológica, encontra momentos em que ele também pode esquecê-la. É quando começa a penetrar cada vez mais no universo da cultura, vindo constituir processos criativos e produtivos. “Do sonho vem a primeira inspiração, mas também do sonho acordado, do devaneio, do delírio jorram ideias, imagens, verdadeiros textos que possibilitam a criação de mitos, ritmos, de histórias. Também do sonho nasce o jogo, o brinquedo, a simulação”. (BAITELLO JUNIOR, ibid., p. 31.). Dentre as práticas criativas para uma realidade situada além das necessidades imediatas da sobrevivência, estaria o uso de substâncias químicas, elaboração de sons, imagens, movimentos e mesmo as psicopatologias que levam a superar padrões estabelecidos. A delicada questão do uso de substâncias lícitas ou ilícitas foge ao proposto neste comunicado. São destacados aqui alguns traços de personalidade que confrontam padrões sociais estabelecidos. Baitello Junior refere-se à capacidade de alguns indivíduos verem o que outros não veem e sentirem o que outros não sentem. Que, apesar de frequentemente conterem elementos de melancolia, constituem “fontes de inspiração e criação da cultura”, constatando como traço comum a variadas culturas a “[...] busca do prazer, do gozo, da alegria” (Ibid., p. 31.). Tanto o cinema quanto a literatura, abordando diferentes épocas e lugares, apresentam uma notável galeria dos chamados outsiders, os que se sentem diferentes ou se comportam de forma destoante ao esperado pela sociedade na qual tem que viver. O conceito vem do livro de Colin Wilson, The Outsider, publicado originalmente em 1956. Bystrina expõe os sistemas simbólicos a superar, justificar ou explicar dificuldades da vida biofísica e social no universo da cultura, “[...] transpondo as fronteiras do meramente pragmático da organização social, e criando limites maiores e mais etéreos para a existência, abrindo espaço para o imaginário, para a fantasia, para as lendas e histórias, para as invenções mirabolantes, para a ficção” (BYSTRINA, 1989 apud BAITELLO JUNIOR, ibid, p. 40). Edgar Morin chama a atenção para a tentativa de se prolongar a juventude, sobretudo observável em fins do século XX e nas décadas iniciais do século XXI. A que seria conduzida, dentre outras coisas, pela busca constante por novidades. É intensificada a necessidade de aprendizado contínuo, devendo-se lidar com um crescente volume de informações. (MORIN, 1979 apud BAITELLO JUNIOR, ibid.). Pode haver aí componentes geradores de patologias, de obsessões e não aceitação dos limites impostos pela vida. Amadurecer requer saber fazer bom uso da liberdade, é assumir a responsabilidade para uma vida independente. Porém, não exclui a atividade lúdica, a qual, conforme relembra Baitello Junior, se estende por toda a vida no ser humano como fonte renovadora de suas forças e criatividade (Ibid., p. 31.). As variantes psicopatológicas, segundo Baitello Junior fundamentado nos semióticos do

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Leste europeu, podem levar a situações de aflição por inabilidade social e também constituírem fontes de fantasias criativas, e mesmo produtivas da cultura. Destacam-se aqui, embora não abordados de forma específica pelos autores anteriormente citados, traços de personalidade como a presença de algum déficit da atenção com hiperatividade e o comportamento esquivo. Afirmar quando constituem transtornos de personalidade requer fundamentação especializada, visto que as fronteiras entre o patológico ou não são tênues. O que apresenta motivo para amplas discussões, se situando muito além do que é proposto neste comunicado. Alerta-se, no entanto, que traços de personalidade são tomados aqui como traços de personagem, sendo nada mais do que ideias dramáticas. Eles são significativos para a investigação das motivações dos personagens centrais dos dois filmes propostos para a análise. O disperso menino de Moscou e a esquiva moça de Paris apresentam comportamentos destoantes do que é esperado na sociedade de seu tempo e lugar. Busca-se ainda evidenciar como o cinema pode lançar luzes sobre o que está por vezes oculto no universo social. Nas narrativas lúdicas estão presentes o ócio e o esquecimento (de si mesmo), que proporcionam a entrega a atividades formalmente consideradas não produtivas. Ócio e esquecimento são temas tratados por Baitello Junior em sua exposição da Semiótica da Cultura, como também estão presentes na Sociologia de Domenico De Masi, a observar o alvorecer do século XXI. “Valores como a estética, a subjetividade, a feminilidade, a virtualidade, a flexibilidade, a descentralização e a motivação ganharam terreno em relação à racionalidade, à padronização, à produção em série, à massificação, ao controle, ao gigantismo e à centralização, aspectos privilegiados ao longo de todo o período precedente da sociedade industrial”. (DE MASI, 2005, vol. 1, p. 16-17). De Masi, no entanto, não é isento de ressalvas, como as levantadas pelo historiador e crítico do imaginário Luiz Nazario, para quem o ócio criativo seria uma nova utopia, tendo em vista as características organizacionais ainda marcantemente industriais da atualidade. (NAZARIO, 2005, p. 55). Citando Heráclito, De Masi reafirma ser o tempo como um jovem a brincar. “Às vezes, nos seus jogos, gosta de se divertir [...] com a esfera emotiva, criando poesia, música e arte. Outras vezes [...] concentrar-se [...] no âmbito racional, criando matemática, ciência e tecnologia”. (DE MASI, 2005, vol. 1, p. 27.). Ele considera, porém, que a criatividade individual na atualidade seria um “delírio de onipotência”, lembrando também Thomas Merton a afirmar que “nenhum homem é uma ilha”. (Ibid, p. 47.). Para De Masi, uma sociedade pós-industrial eleva os valores emocionais, destacando-se a metáfora dos caminhos descontínuos e curvos. (Ibid., p. 135.). Há o entrelaçamento de modelos culturais, atitudes mentais e tendências relativas à fantasia, à imaginação, ao vagar do pensamento e a inteligência usada em soluções de problemas práticos e concretos. Indo-se além dos recursos racio-

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nais, recorre-se “à acuidade, à intuição, ao estratagema [grifo meu], à atenção, à destreza, à desenvoltura, à agilidade, à precisão do golpe de vista, à rapidez mental e à habilidade de desembaraçar-se de estorvos ou impedimentos” (Ibid., p. 172.). De Masi cita também Sêneca, relembrando que “vento algum é favorável para quem não sabe aonde quer ir” (Ibid., p. 145.). E contrapõe o pensamento de Bertrand Russell, de 1935, ao de Henry Ford. O primeiro se espantava com o desperdício de energia humana quando já se dispunha de máquinas industriais. (RUSSELL, 1992 apud DE MASI, ibid.). O segundo reafirmava a rigorosa separação do mundo do trabalho e do mundo lúdico, bem como a divisão de tarefas nas linhas de montagem, ou seja, a racionalização total taylorista. (FORD, 1982 apud DE MASI, ibid.). De Masi destaca a cidade como um fenômeno a crescer com a atividade industrial, a proporcionar locais de trabalho e lazer, produção e consumo. E sentencia que “a estrela da sociedade industrial não era a criatividade, mas a produtividade [...]”. (DE MASI, 2005, vol. 2, p. 14). Ao abordar o universo da arte, De Masi evoca a frase de Karl Kraus, para quem “artista é somente quem sabe fazer da solução um enigma” (Ibid., p. 63). As exigências da Era Industrial foram impostas tanto no mundo capitalista liberal quanto no mundo do socialismo realmente existente, do conceito de Bahro (1980), mantendo-se também a utopia da superação da fadiga, adiada sempre para um futuro indefinido. A importância das relações econômicas é central no pensamento de Marx e Engels, conforme se pode verificar por Andreia Nye, que escreveu sobre as mulheres e as relações familiares no socialismo. A subordinação da agenda libertária aos meios de produção da existência compõe o fator histórico em uma análise marxista. (NYE, 1995, p. 48-94). Para a análise das duas narrativas lúdicas propostas, há que se considerar também, a abordagem psicanalítica de Bruno Bettelheim em seu estudo sobre os contos de fada, no qual ele argumenta sobre a importância deles para a organização do significado existencial desde a infância, pois confrontam “a criança [...] com os predicamentos humanos básicos. Por exemplo, muitas estórias de fadas começam com a morte da mãe ou do pai”. (BETTELHEIM, 2002, p. 15). O herói deve se lançar em uma jornada pelo mundo e só após sofrer poderá experimentar a superação da ansiedade da separação. Outra recorrência nos contos de fada é que os heróis por vezes entram em sono profundo e despertam para um estado revigorado de esclarecimento. (Ibid., p. 254.). Esses são alguns elementos reelaborados verificáveis em Um conto do tempo perdido e O fabuloso destino de Amélie Poulain. Considera-se ainda ser possível neles observar também relações com a História, conforme a proposta de Capelato et al.: “pensar o filme como documento de discussão de uma época e seu estatuto como objeto da cultura que encena o passado e expressa o

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presente”. (CAPELATO et al., 2007, p. 10). Breve introdução aos filmes de Aleksandr Ptushko e Um conto do tempo perdido2 Os filmes fantásticos do diretor soviético Aleksandr Ptushko possuem referenciais no folclore e lendas de seu país, e são articulados como contos de fadas adaptados à ideologia socialista. Em Ptushko, o amor pela terra natal é cultivado. Os heróis e heroínas quase sempre devem se lançar ao mar, em jornadas repletas de sonhos, aventuras por terras exóticas, distantes e mágicas, mas devem retornar fortalecidos à pátria e à realidade material. Ocorrem referências simbólicas ao poder soviético, seja pela autoridade de um soberano, uma reafirmação velada do stalinismo, seja pela presença de intensas cores vermelhas realçadas pelo Sovicolor, um sistema técnico de cor desenvolvido na então União Soviética a partir do Agfacolor alemão. (NAZARIO, 2014). Em A flor de pedra (The Stone Flower, URSS, 1946), uma fada seduz um artífice para que construa sua obra prima, proporcionando a ele esse poder, desde que abdique de tudo mais e viva com ela. A noiva do rapaz, uma simples camponesa, é quem o traz de volta ao senso de realidade. No mundo de Ptushko, as mulheres possibilitam o equilíbrio para um herói fanfarrão ou são motivos de quebra da passividade para um rapaz indeciso. Elas representam um ideal pelo qual o homem deve lutar e se esforçar para ter seu valor reconhecido. As mulheres podem ser camponesas ou fadas, como em The Stone Flower, ou mesmo princesas como em Ruslan e Ludmila (Ruslan and Ludmila, URSS, 1972). Em Velas vermelhas (Scarlet Sails, URSS, 1961) ocorre o deslocamento do mundo fantástico para o referencial um pouco mais fundamentado na realidade material. Nele, o jovem Arthur Grey (Vasily Lanovoy), precoce comandante de navio mercante, usa todo seu poder para seduzir a ingênua jovem Assol (Anastasiya Vertinskaya), que vive em um mundo de fantasias. Assol é fascinada pela Marinha e espera ver chegar do mar um navio com velas vermelhas, cujo comandante será o seu amado. Sabendo da crença da moça, o jovem comandante equipa o barco com velas vermelhas. Além da simbologia do poder soviético, o filme reafirma o conceito de materialismo, ou seja, de que os sonhos não se realizam por forças sobrenaturais, mas por ação humana (NAZARIO, 2014). Se Putshko recorre à simbologia dos navios movidos a velas cruzando os mares, retoma-se aqui o anteriormente citado Sêneca, a recordar que “vento algum é favorável para quem não sabe aonde quer ir” (DE MASI, 2005, vol. 1, p. 145.). O que parece estar na essência de Um conto do tempo ___________________________________________________

Estudados na disciplina Autores do Cinema: Alexander Ptushko ministrada pelo Prof. Dr. Luiz Nazario do Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, 01 a 08 set. 2014. Sobre dados técnicos dos filmes de Ptushko disponíveis em DVD ver Russian Cinema Council. In: RUSCICO, online. 2

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perdido (A Tale of Lost Times, URSS, 1964), pois no filme o menino Petya (Grisha Plotkin) se mostra disperso desde quando acorda. Ele deve ir à escola, mas vaga pela Moscou de meados dos anos 1960, se deixando desviar por brincadeiras e outras distrações. Então, dois feiticeiros e duas feiticeiras, idosos e maus, se aproveitam usando um encantamento para se apossarem do tempo que Petya perde na vida. Eles voltam a ser criança, ao passo que o menino e outras três crianças dispersas, mais um menino e duas meninas, se tornam idosos. As cenas iniciais mostram Petya dormindo. A trilha sonora apresenta delicados temas musicais. Em contraste, o despertador toca de forma ruidosa. O inteligente cachorro Friendly tenta tirar o preguiçoso menino da cama, chega até a ligar o rádio. Como em uma fábula, em que os animais falam e há uma narrativa que traz um ensinamento moral, Friendly parece dizer: “não fique surpreso: eu não estou falando. Todo mundo sabe que cachorros não falam”. E apresenta o amigo: “Petya é um bom rapaz, ele é apenas um pouco desorganizado e dorminhoco”3. A câmera enquadra um desenho infantil suspenso no quarto de Petya. Apresenta reproduções coloridas da Vostok 1 e seu célebre tripulante Iuri Gagárin, herói da União Soviética. Recorda-se que em 12 de abril de 1961, a Vostok 1 realizou o primeiro voo espacial tripulado, quando então “Iuri Gagárin descreveu uma órbita ao redor da Terra em 1h48min a uma altura de 328 quilômetros, aterrissando com sucesso”. (CLARK et al., 1982, p. 196). Da sonolência, Petya finalmente desperta dando asas à imaginação. Despreocupadamente ele diz: “tenho muito tempo”. Ao que Friendly comenta: “é assim todos os dias”. Enquanto prepara os sapatos, Petya diz que inventará uma máquina para amarrar cadarços e como prêmio ganhará uma viagem à África. Ele então perde o foco (aprontar rapidamente para ir à escola) e imagina uma aventura africana. O que é proporcionada imageticamente com inserção de animação tradicional em cartoons no filme live-action.4 Um conto do tempo perdido é construído com alternância do referencial realista da Moscou de sua época com as imagens fantásticas já celebrizadas na obra anterior de Ptushko. É o caso das cenas da floresta mágica mostrada em sua grandiosidade ameaçadora com o uso de cenários giratórios. O recurso foi utilizado pelo diretor em A flor de pedra. A visualidade artificial em Um conto do tempo perdido está presente também nas cenas da cabana dos feiticeiros na floresta. Ela possui até distorções expressionistas. O mundo fantástico está oculto sob o tronco de uma árvore. E faz lembrar os cenários do teatro infantil, com efeitos compostos por luzes coloridas, e mesmo a cenografia de obras do balé russo, o que realça o caráter de uma obra construída com linguagens artísticas varia___________________________________________________

Tradução livre das legendas em inglês Don’t be surprised: I’m not talking. Everyone knows that dogs don’t talk. […] Petya is a good boy, he is just somewhat disorganized, and is very fond of sleeping late. (2 a 3 min.). 4 Tradução livre das legendas em inglês [Petya]: I’ve got plenty of time. / [Friendly]: It goes on like this every day. (4 min., passim). 3

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das. Nos filmes de Ptushko há também referências visuais à pintura romântica. Em Um conto do tempo perdido, a fantasia é confrontada com o materialismo, mesmo que isso ocorra pela imaginação, pelo “faz-de-conta”. Friendly parece conversar sobre Petya com os Gagárins desenhados: “ele não dá valor ao tempo. Pessoas assim são presas fáceis de feiticeiros perversos. Vocês acham que eles não existem?”5. Na cabana da floresta, o diálogo entre os feiticeiros, por sua vez, evidencia momentos diferentes da História soviética. Um feiticeiro e duas feiticeiras preparam denúncias anônimas, a serem enviadas pelo correio, contra pessoas que eles escolhem na lista telefônica. Lançam acusações tais como: “Ele não desliga a luz da sala de repouso comunal. É um tipo suspeito, de qualquer maneira. [...] vive muito além de suas posses”6. Sugerem que algumas pessoas se dedicam ao mercado negro. Aqui, há referências tanto aos tempos do terror stalinista, que poderia atingir qualquer um, quanto à corrupção nos anos de transição pelos quais passava aquela sociedade estatizada. O quarto feiticeiro, que parece ter a liderança sobre os outros, adentra à cabana e censura os colegas pelo uso de “métodos ultrapassados”. Sendo eles feiticeiros, deveriam usar a imaginação – o que indica mudanças de algumas práticas na sociedade soviética. Mais adiante, até a caixa de correios não aceitará as denúncias, cuspindo-as fora. Há em Ptushko nuanças ideológicas, pois parece reafirmar o stalinismo em seus filmes anteriores e agora apoiar o stalinismo “mais amenizado” da “linha justa” partidária da era Brejnev em uma sociedade que permanecia totalitária. Voltando-se a Petya, ele desperdiça cada vez mais tempo. Durante o caminho para a escola, se entretém com os pombos, faz coreografias nas escadas, observa o trabalho do guarda de trânsito, atira pedras no rio e atrapalha a atividade de um paciente pescador. Ao parar para observar mergulhadores em uma piscina, dá mostras da falácia, do autoengano, características presentes em muitos sonhadores dispersos: “Alguns nadadores! Eu poderia mostrá-los como se faz melhor!”7. O tempo das crianças a brincar, o tempo para o jogo, a simulação, a fantasia, parece ser tempo desperdiçado. Mas o que Um conto do tempo perdido reafirma é a disciplina, do conceito fordista e industrial, também necessária para a construção da sociedade socialista. O trabalho deve vir antes do prazer. Significativa é a sequência na qual um motorista em uma caminhonete vem chegando à Moscou. Ele canta: “Canção dos bonitos dias de primavera, da minha amada terra natal, e do que nós temos que valorizar com todo o nosso poder. Tempo precioso [...] muito precioso. Ele deve servir ___________________________________________________

Tradução livre das legendas em inglês He doesn’t value time. People like him are an easy prey for the wicked sorcerers. […] You think they don’t exist? (5 min.). 6 Tradução livre das legendas em inglês Doesn’t switch off the light in the communal rest room. A suspicious character, anyway. […] lives beyond his means. (9 min.). 7 Tradução livre das legendas em inglês Some swimmers! I could show them high class! (20 min.). 5

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ao nosso bem, fazer crescer a produção nacional. [...] A vida é bonita [...] apenas se somos capazes de dar valor ao tempo”8. Enquanto isso, os feiticeiros já estão a caminho da cidade para coletar em sacos algo que para eles é muito material: o tempo que as crianças desperdiçam. O motorista dá carona para eles e vê, com estranhamento pelo retrovisor, a disputa deles para subir na carroceria e ocupar os melhores lugares. O líder dos feiticeiros, para não levantar suspeitas, adverte os colegas que eles têm que agir de forma colaborativa, pois esse seria o comportamento esperado. Em Moscou, o disperso Petya tem sua juventude roubada pelos feiticeiros. Eles são como crianças velhas, pois exageram na dose da fórmula encantada para tomar posse do tempo que meninos e meninas desperdiçam. Os feiticeiros queriam apenas se tornar adultos jovens, mas voltaram à infância. Quando o menino no corpo de um idoso se vê no espelho, pensa que ainda está dormindo, achando então poder ficar despreocupado. Há a relação com o papel do sonho na criação das coisas mais absurdas. Assim, Petya idoso segue pelas ruas de Moscou causando confusões, como as passadas na escola e em um canteiro de obras. Ele é confundido com um veterano operário especializado no manejo de grandes guindastes. Há a reafirmação do mundo da qualificação técnica e da produção. O imaginário é composto por recorrentes elementos de propaganda socialista: guindastes colossais, blocos pré-moldados e grandes prédios sendo erguidos para futuras moradias populares. Mais adiante, Petya descobre por acaso a cabana na floresta vazia. Ele conversa com o cuco que sai do relógio, reafirmando-se a simbologia do tempo. O cuco diz a Petya como quebrar o encantamento. Ele deve voltar manualmente o ponteiro das horas em três ciclos completos. Mas há um problema, se o fizer sem a presença do outro menino e das duas meninas também vítimas dos feiticeiros, só ele voltará a ser criança. Petya pergunta o que deve fazer então. O cuco o incentiva a ir adiante. Porém, o idoso Petya se redime ao valorizar a solidariedade: “Não, jovens pioneiros jamais se comportam assim”9. E sai em busca das outras crianças-idosas enfeitiçadas, levando às cenas finais da aventura, em uma corrida dos quatro contra os feiticeiros e o tempo cada vez mais valioso. Visualmente, o filme de Ptushko ainda faz referências a cartazes fotográficos publicitários, cartazes de propaganda socialista e ao próprio cinema ao longo das aventuras urbanas de Petya menino e idoso pelas ruas de Moscou.

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Tradução livre das legendas em inglês Song of beautiful spring’s days, of my lovely native place, and of what we have to value with all our might. Precious time, […] very precious time. It should serve for our good, raise the country’s output. […] Life is beautiful […] if we only are able time to value. (14 min.). 9 Tradução livre das legendas em inglês No, young pioneers never behave like that. (52 min.). 8

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O fabuloso destino de Amélie Poulain O fabuloso destino de Amélie Poulain (Le Fabuleux Destin D’Amélie Poulain, França, 2002) foi dirigido por Jean-Pierre Jeunet. É também um filme fantástico, por sua vez passado em Paris de fins do século XX. Amélie (Audrey Tautou) é uma daquelas pessoas que se encontram em uma situação na vida aquém do que poderia conseguir. Filha de um médico e de uma professora, ela parece satisfeita como garçonete aos 24 anos de idade e dedica seu tempo livre às fantasias. Um dia, descobre por acaso em seu lar, um estojo com objetos infantis que um garoto guardou há quase quarenta anos. Devolvê-lo ao dono passa a ser a meta da moça. As cenas iniciais do filme apresentam Amélie quando criança. É curioso notar que são introduzidas imagens poéticas com a voz do narrador em off relatando dados minuciosos sobre a realidade mensurável: “Em 3 de setembro de 1973, às 18:28:32 uma mosca califorídea, capaz de 14.670 batidas de asa por minuto pousou na Rua Saint Vincent, em Montmartre”. Paris é mostrada com cores artificiais, a quebrar o realismo, com predominância do dourado e do verde. O narrador continua: “No mesmo segundo, num restaurante perto de Moulin-de-la-Galette o vento esgueirou-se como por magia sob uma toalha, fazendo os copos dançarem sem que ninguém notasse”10. Fragmentos de filmes científicos e imagens poéticas com suportes, texturas, sons, e motivos diversos são articulados. Ainda quando são apresentados os créditos iniciais, há grafismo, performances corporais de Amélie criança, pinturas de formas móveis sobre partes do corpo, simulação de filmes caseiros formato super-8 envelhecidos, recortes e o desencadear da queda de peças de dominó umas sobre as outras, proporcionando um ruído similar ao de um projetor cinematográfico portátil. Amélie mostra ser uma criança muito imaginativa, propensa a experimentos sensoriais. Com seus dedos umedecidos, extrai sons de uma taça de cristal, enquanto nas imagens, ocorrem expressões estéticas de luzes estouradas e tomadas de câmeras tremidas da simulação do filme caseiro. Os três primeiros minutos de O fabuloso destino de Amélie Poulain condensam uma miscelânea de formas, experimentos e sensações protagonizadas pela solitária pequena, em que as ciências, a poesia e as descobertas de experiências lúdicas se encontram. A seguir, são apresentados outros personagens, iniciando-se com o pai de Amélie, homem distante e introspectivo, e a mãe que sofre de tensão nervosa. Índices psicanalíticos da futura Amélie são sugeridos. É curiosa a forma usada por Jeunet para introduzir personagens, baseada em sensações. Imagens com a voz narrando em off desfilam coisas que cada um não gosta e depois, o que gosta. ___________________________________________________

Tradução em legendas do original em francês Le 3 septebre 1973, à 18: 28: 32 une mouche califoridée, capable de 14.670 battementss d’aile à la minute se posait rue Saint Vincent, à Montmartre. [...] A la mème seconde, au restaurant à deux pas du Moulin-de-la-Galette le vent s’engouffrait comme par magie sous une nappe faisant danser les verres, sans que personne ne s’em aperçoive. (1 min.). 10

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A solidão na infância de Amélie é acentuada por um diagnóstico equivocado. A menina fica privada da escola, do contato com outras crianças, tendo sua educação formal assumida pela própria mãe. As ocorrências que cercam o universo fantástico de Amélie são absurdas, como a existência de um peixinho suicida. E a morte da mãe, de forma também absurda, fará com que Amélie se refugie de vez em um mundo por ela imaginado. A narrativa segue proporcionando sensações imagéticas e sonoras poéticas diversas: as gotas de chuva sobre um espelho d’água, a passagem visual do tempo e das estações. Há texturas de imagens televisivas, referências iniciais à fotografia, quando Amélie fotografa, usando uma pequena câmara Kodak, formas de bichinhos que ela visualiza nas nuvens. Mas, como costuma ocorrer nas partes iniciais de um conto de fadas, e conforme afirma o narrador, “o mundo parece tão morto que Amélie prefere sonhar até ter idade para partir”11. Das sensações e referências às linguagens audiovisuais, inclusive feitas ao próprio cinema, vem a somar imagens de projeções de filmes históricos em preto e branco. A trilha sonora suave traz melodias tocadas em acordeon, peças para piano e delicados toques de metalofone. Da Amélie adulta, o espectador vai conhecendo cada vez mais seus traços de personalidade esquiva: Amélie não tem namorado. Tentou uma ou duas vezes, mas o resultado não foi o que esperava. Em compensação, cultiva um gosto particular pelos pequenos prazeres. Enfiar a mão bem fundo num saco de cereais... quebrar a cobertura do “crème brúlée” com a colher... e jogar pedras no canal de Saint Martin. [...] O tempo não mudou nada. Amélie continua se refugiando na solidão. 12

Outro personagem de vida solitária é o “homem de vidro”, vizinho de Amélie. Porém, ele vive recluso há 20 anos devido a uma doença congênita que fragilizou seus ossos. O filme de Jeunet dialoga com diversas expressões artísticas e o “homem de vidro” trabalha em reproduções do quadro de Auguste Renoir, O Almoço dos Barqueiros. É ele quem ajuda Amélie a encontrar o Sr. Dominique Bretodeau, que na infância escondeu o estojo como um pequeno tesouro. O “homem de vidro” e Amélie se tornam próximos. Ele entende o que se passa com ela, quando ambos discutem sobre a personalidade de uma moça, de olhar distante, no quadro de Renoir, e que parece se sentir um pouco deslocada. ___________________________________________________

Tradução em legendas do original em francês Le monde extérieur paraît si mort qu’ Amélie prefere rèver sa vie en attendant d’àge le partir. (9 min.). 12 Tradução em legendas do original em francês Amélie n’a pas d’homme dans sa vie. Elle a bien essayé, mais le résultat n’a pas été ce qu’ ele espérait. En revanche, ele cultive un goût particulier pour les petits plaisirs. Plonger la main dans un sac de grains… briser la croute des crèmes brùlées avec la petite cuillère et faire des ricochets sur le canal Saint Martin. [...] Le temps n’ a rien changé. Amélie se réfugie tourjours dans la solitude. (12 min. a 14 min., passim). 11

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Da pintura à reprodução fonográfica, o cego da estação, por onde Amélie costuma passar, dedica-se a tocar discos de vinil em uma pequena vitrola portátil. Ele está sentado diante de painéis coloridos, quando Amélie se aproxima. Na sequência ocorre o primeiro encontro com aquele por quem ela virá a se apaixonar: Nino Quicampolx (Mathieu Kassovitz), que está a fuçar debaixo da cabine fotográfica. Ele é também um outsider e não um príncipe encantado. Amélie consegue realizar o primeiro de seus objetivos no filme: devolver o estojo infantil a Dominique Bretodeau. E, feliz, logo parte para outros objetivos, agora absurdos, que havia se proposto: “Se ele se emocionar, ela se imiscuirá na vida dos outros”13. Amélie possui um problemático desejo secreto de onipotência, e vive uma tensão entre a necessidade de solidão e do lançar-se ao outro. De fato, o Sr. Bretodeau ficou emocionado. Tomando um conhaque, ele diz: “A vida é engraçada. Para a criança, o tempo não passa. E, de repente, temos 50 anos. E o que sobra da infância cabe numa pequena caixa... uma caixa enferrujada”14. É notável a similaridade dessa afirmação com a essência da mensagem presente em Um conto do tempo perdido do soviético Ptushko! A fotografia é um tema central em O fabuloso destino de Amélie Poulain. Mais especificamente, a ressignificação de fotografias 3x4. Nino reconstitui, em um trabalho obsessivo, apenas para o seu prazer estético, fotos amassadas ou rasgadas de estranhos que ele coleta das máquinas das estações de metrô de Paris. Aliás, as coleções apresentadas ou citadas no filme são exóticas e absurdas, sejam elas em imagens, sons e objetos. A literatura é outra arte referenciada, na figura de um escritor fracassado que frequenta o café onde Amélie trabalha. Nino perde um de seus álbuns de fotografia e devolvê-lo passa a ser a principal meta de Amélie. Mas sua personalidade esquiva mais uma vez se faz notar. O “homem de vidro” sugere a ela, comparando-a com a moça no quadro de Renoir: “Em outros termos, prefere imaginar uma relação com alguém ausente a criar laços com os que estão presentes”15. A capacidade para fantasiar é similar em Amélie e Nino. Em uma sequência, ela cai no sono, enquanto animais nos quadros e objetos se tornam animados e dialogam: “Digam... ela não estará apaixonada?”16. O mesmo ocorre com a imaginação de Nino mais adiante, também recolhido em seu mundinho. Quatro fotos 3x4 de um mesmo estranho dialogam entre si, e a seguir, brincam com Nino, que, deitado sonolento, imagina conversar com eles sobre Amélie: “[Nino] Nem a conheço./ [homem das fotos] Claro que conhece./ [Nino] Desde quando?/ [homem das fotos] Desde sempre. ___________________________________________________

Tradução em legendas do original em francês Si ç ale touche, c’est décidé: elle va se mèler de l avie des autres. (15 min.). Tradução em legendas do original em francês C’est drôle la vie. Quand on est gosse, le temps se traîne et, soudain, on a 50 ans. Puis l’enfance, tout ce qu’il en reste tient dans une petite boîte… une boîte rouillée. (33 min.). 15 Tradução em legendas do original em francês Autrement dit, elle préfère une relation avec quehu’n d’absent que créer des liens avec ceux qui sont présents. (49 min.). 16 Tradução em legendas do original em francês Dites, elle serait pas en train de nos tomber amoureuse? (57 min.). 13

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Em seus sonhos”17. A cena do parque em Montmartre, aonde Amélie vai ao encontro de Nino para devolver o álbum, é um dos pontos culminantes da estruturação lúdica da narrativa. Os estratagemas dela são complexos e variados, pois Amélie, em sua auto-sabotagem, é como descreve o narrador: “Uma garota normal arriscaria ligar para ele imediatamente. Marcaria um dia, devolveria o álbum e veria se ele vale a pena ou não. Isso se chama encarar a realidade. Mas é isso que Amélie não quer”18. Ela prefere seguir a linha curva, o caminho descontínuo ou, tendo algo de artista, prefere “fazer da solução um enigma”. Assim, elabora, dentre seu variado repertório de estratagemas, uma sinalização para Nino com setas feitas de giz colorido e grãos. Amélie induz Nino a encontrá-la no café, mas como ele demora a aparecer, o espectador tem a confirmação da imensa tendência à fantasia de Amélie, quando então ela imagina coisas absurdas que poderiam ter acontecido ao rapaz. É notável o efeito visual da “liquefação de Amélie”, como a materializar a expressão de sua decepção por Nino ter saído do café sem que os dois tenham se conhecido. No filme, é como se uma região de Paris se tornasse um grande palco para o pique-esconde de um menino e uma menina já um tanto crescidinhos. A fotografia de O fabuloso destino de Amélie Poulain desloca o realismo e acentua a fantasia na Paris contemporânea. Há referências visuais da pintura, tal como na obra de Ptushko, e a ênfase em brilhos e cores primárias faz lembrar o antigo sistema Tecnicolor e mesmo o Agfacolor, sobretudo quando surgem os vermelhos intensos. Jean-Pierre Jeunet relata: “Eu adoro todas as partes: as falas, a música... adoro jogar com todos os elementos. É por isso que tento modificar a realidade. Não quero fazer filmes realistas”19. O diretor de fotografia do filme, Bruno Delbonnel, afirma que Jeunet quis a visualidade brilhante. Uma de suas principais referências foram os quadros do pintor brasileiro Juarez Machado, que usa muito o vermelho e o verde. Mas sempre há outra cor pontual, seja o azul, o amarelo ou o branco muito brilhante. A influência é notável em cenas de O fabuloso destino de Amélie Poulain, conforme exemplifica Delbonnel: “[...] quando ela [Amélie] está no apartamento dela, há uma lâmpada azul feita de vidro azul, totalmente falsa em termos de iluminação [...]. O resto é tudo amarelo, verde e vermelho”20. ___________________________________________________

Tradução em legendas do original em francês [Nino]: Je la connais même pas./ [homem das fotos]: Mais si, tu l’a connais./ [Nino]: Depuis quand ?/ [homem das fotos]: Depuis toujours. Dans tes rêves. (72 min.). 18 Tradução em legendas do original em francês Une fille normale prendrait le risque de l’appeler tout de suite. Elle lui donnerait rendez-vous et elle saurait si ça vaut le coup de rêver. Ca, c’est se confronter à la réalité. Mais ça Amélie n’y tient pas du tout. (57 min.). 19 “Making of: Um Olhar sobre Amélie Poulain”. In: O FABULOSO Destino de Amélie Poulain. 20 “Making of: Um Olhar sobre Amélie Poulain”. In: O FABULOSO Destino de Amélie Poulain. 17

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Apesar de Delbonnel ter afirmado que evitou chamar muita atenção para a presença da câmera, ou seja, uma das formas metalinguísticas da linguagem cinematográfica chamar a atenção para a própria linguagem, no filme há arrojados movimentos de câmera alta. Quanto a Jean-Pierre Jeunet, este declarou fazer dezoito rascunhos do roteiro e um storyboard, evidenciando ser um diretor minucioso em planejamento. Uma característica similar à do soviético Aleksandr Ptushko. Retomando a questão central comparativa proposta inicialmente, os dois filmes fantásticos aqui verificados, feitos em épocas e em dois sistemas de produção distintos, apontam, cada qual a seu modo, para uma possibilidade de subversão da Era Industrial. Se um garoto diverte-se sem uma meta de vida pelas ruas da Moscou de 1964, Amélie, uma moça adulta, vive em um mundo de fantasias cultivando pequenos prazeres na Paris de 1997, ano da morte da Princesa Lady Diana. Esse fato, aliás, é significativo e lembrado em O fabuloso destino de Amélie Poulain. Uma passagem define a moral do filme de Jeunet, mas que também pode ser aplicada ao filme de Ptushko em seu contexto: “São tempos difíceis para os sonhadores.21” Um conto do tempo perdido e O fabuloso destino de Amélie Poulain assimilam ou confrontam pela forma lúdica, pela evocação da fábula, do conto de fadas, pela fantasia, pelo diálogo com linguagens artísticas variadas, pelo sonho e a imaginação o mundo material produtivista industrial. No filme de Jeunet, existe a explicação pela ação humana para ocorrências fantásticas, por absurda que seja. Nesse aspecto, aproxima-se de Velas Vermelhas. Ptushko tem por base o historicismo marxista -leninista, Jeunet lida com o papel do acaso. O socialista Um conto do tempo perdido enfatiza as necessidades do mundo material e pune o menino sonhador, até que ele reconheça o valor do tempo. O fabuloso destino de Amélie Poulain, apesar de mostrar o que há de problemático para os sonhadores em uma época liberal, é mais condescendente com o sonho, a escolha e a iniciativa individual.

Referências bibliográficas BAHRO, Rudolf. A alternativa para uma crítica do socialismo real. Tradução de Luiz Sérgio N. Henriques e Gilvan P. Ribeiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. 314 p. (Coleção Pensamento Crítico; v. 42). BAITELLO JUNIOR, Norval. O animal que parou os relógios: ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1999. 126 p. (Coleção E – 7). BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. 16ª. Ed. Tradução de Arlene Caetano. [S.l.]: Paz e Terra, 2002. ___________________________________________________ 21

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Tradução em legendas do original em francês Les temps sont durs pour les rêveurs. (69 min.).

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BYSTRINA, Ivan. Semiotik der Kultur. Tübingen: Stauffenburg, 1989 apud BAITELLO JUNIOR, Norval. O animal que parou os relógios: ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1999. 126 p. (Coleção E – 7). CAPELATO, Maria Helena et al. História e cinema. Dimensões históricas do audiovisual. São Paulo: Alameda, 2007. 389 p. (USP: História Social. Série Coletâneas). CLARKE, Arthur C. et al. O homem e o espaço. Ed. atualizada e revista. Rio de Janeiro: José Olympio, 1982. 204 p. (Biblioteca Científica Life). DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Vol. 1. Descoberta e invenção. Tradução Léa Manzi e Yadyr Figueiredo. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. 264 p. ____________. Criatividade e grupos criativos. Vol. 2. Fantasia e concretude. Tradução Léa Manzi e Yadyr Figueiredo. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. 310 p. FORD, Henry. Autobiografia. Organizado por S. Crowther. Milão: Rizzoli, 1982 apud DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Vol. 1. Descoberta e invenção. Tradução Léa Manzi e Yadyr Figueiredo. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. 264 p. MORIN, Edgar. O enigma do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1979 apud BAITELLO JUNIOR, Norval. O animal que parou os relógios: ensaios sobre comunicação, cultura e mídia. São Paulo: Annablume, 1999. 126 p. (Coleção E – 7). NAZARIO, Luiz. Quadro histórico do Pós-modernismo. In: GUINSBURG, J.; BARBOSA, Ana Mae (org.). O Pós-modernismo. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 23-70. ____________. Autores do Cinema: Alexander Ptushko. Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes (EBA) da UFMG, Belo Horizonte, 01 a 08 set. 2014. [inédito]. NYE, Andrea. Uma comunidade de homens: O marxismo e as mulheres. In: _________ Teoria feminista e as filosofias do homem. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Record/ Rosa dos tempos, 1995. p. 48-94. Disponível em: <http://brasil.indymedia.org/media/2007/06/386930.pdf>. Acesso em: 13 fev. 2013. RUSSELL, Bertrand. Elogio dell’Ozio. In: DE MASI, Domenico (org.). Economia dell’Ozio. Milão: Edizioni Olivares, 1992 apud DE MASI, Domenico. Criatividade e grupos criativos. Vol. 1. Descoberta e invenção. Tradução Léa Manzi e Yadyr Figueiredo. Rio de Janeiro: Sextante, 2005. 264 p. WILSON, Colin. The Outsider. Reissue edition. [s.l.]: Tarcher, 1987. 320 p. Filmografia A TALE of Lost Times. Director: Alexander Ptushko. (78 min.), son., color., Russian with English subtitles. Alternate Title: Skazka O Poteryannom Vremeni. In: DAILYMOTION. Available from: <http://www. dailymotion.com/video/x12eb1n_a-tale-of-lost-times-1964-pt-1_creation>. Access in: 20 April 2015.

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Dramaturgias cinematográficas lúdicas Alexandre Martins Soares

O FABULOSO Destino de Amélie Poulain. Direção: Jean-Pierre Jeunet. São José (SC): W Mix, [s.d.]. 1 DVD (122 min.), son., color., legendado. Tradução de: Le Fabuleux Destin D’Amélie Poulain. RUSCICO. Russian Cinema Council. Ruscico.ru. Ruscico.com. Available from: <http://www.ruscico. com/catalog/dvdsearch/?sg_query=ptushko&sg_sound=&sg_subtitl=&sg_type=3>. Access in: 20 April 2015.

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De música a ícone Raquel Vieira Fávaro Petronilho

De música a ícone

o caminho da trilha sonora através da ressignificação Raquel Vieira Fávaro Petronilho1 PUC Minas Resumo: O ser humano é um ser semiótico, que atribui aos objetos os mais diversos e numerosos significados – e depois os ressignifica. Este ensaio traz à tona uma das possíveis discussões acerca da ressignificação, tendo como objetos de estudo a relação sígnica do espectador em relação a (exemplos de) produções midiáticas e suas trilhas sonoras e como tal processo de ressignificação pode contribuir com a evolução de uma música a ícone de uma produção audiovisual. Palavras-chave: produção midiática; trilha sonora; memória; significação; ícone. Abstract: Human being is semiotic, who attaches to objects the most various and abounding meanings – and then make sure it will mean something else. This assay emphasizes one of among the many discussions about it, making use of the connection of signs as part of the relation established between the spectator, the receiver, and media content and its sound-tracks; and the way this process may add up to the transformation of a song into an audiovisual icon. Key words: media content; sound-track; memory; sign; icon.

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Professora de Linguagem Publicitária, Ética na Propaganda e Criação Publicitária no curso de Publicidade e Propaganda da PUC Minas Poços de Caldas. Graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda pela PUC Minas. Pós-graduada em Processos Criativos em Palavra e Imagem pelo IEC PUC Minas. Mestranda em Comunicação Social pelo IEC PUC Minas, na linha de pesquisa Linguagem e Mediação Sociotécnica, orientada por Júlio Pinto. E-mail: quelfavaro@hotmail.com

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Há muito os estudos semióticos se aprofundam acerca de acontecimentos que nos permeiam – muitas vezes sem se fazerem notados. A forma como percebemos e enfrentamos acontecimentos, dos mais rotineiros, aos mais extraordinários; a criação de sentido que é por nós imposta não somente sobre acontecimentos, mas sobre pessoas, lugares, coisas: esta propensão à busca por uma significação, mesmo que se faça imperceptível, esta capacidade de ressignificação, de atribuir a algo ou a alguém um significado particular, se mostra fascinante. Parecem infinitas as possibilidades. Quantos são os adjetivos capazes de serem levados às costas de uma pessoa? E quantos sentimentos, quantas coisas, lugares e, ainda, quantas outras pessoas pode a imagem ou a lembrança de um alguém invocar? Nunca ao acaso, sempre graças à ressignificação que cada ser imprime sobre uma pessoa, um objeto, um lugar ou um acontecimento. E se é tão consistente tal ocorrência em quaisquer campos da vida de uma pessoa, qual seria, então, a relação de ressignificação que o espectador comum pode vir a atribuir a uma determinada obra audiovisual? Poderia a memória auditiva do espectador funcionar como ressignificador de uma obra midiática? E mais: uma música já existente que se transforme em trilha sonora de um filme ou programa televisivo de sucesso poderia vir a ser ressignificada de tal forma por quem a consome, que aquela passaria a ser a referência dominante (ou ainda, única) a encontrar eco na memória do espectador? Tendo em mente que a ressignificação se dá a todo momento, mesmo que sobre as mais ínfimas coisas ou acontecimentos, se faz possível afirmar que uma produção midiática é capaz de reverberar dentro da memória do espectador – e é sobre essa possível reverberação e algumas de suas peculiaridades que o presente artigo pretende discutir. A memória do espectador ressignifica o conteúdo É notável o interesse pelo alcance de uma produção midiática por estudiosos de diversas áreas da Comunicação Social, visto que ela pode vir a atingir, sabidamente, os mais diversos públicos. São pessoas que divergem em classes sociais, sexo, idade, localização. Existem, evidentemente, conteúdos elaborados e transmitidos para públicos determinados. Filmes e programas de TV de grande sucesso, entretanto, muitas vezes podem se fazer exceção – bem como a trilha sonora que os embala. Isso posto, surge o questionamento: qual poderia vir a ser o impacto de um filme ou programa televisivo em tantos espectadores, no sentido de ressignificação da obra e de características que lhe foram (são) particulares, como a trilha sonora? Espectadores que em tanto se diferem seriam capazes de criarem ressignificações semelhantes a partir de uma mesma obra midiática?

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Apropriação de trilhas sonoras: a música que nasce para um fim e (não) morre com outro Uma vinheta é um tema específico que tem por objetivo sinalizar determinado conteúdo midiático – seja ela apenas sonoras, no caso do rádio ou dos chamados carros de som, que levam conteúdo publicitário às ruas de cidades fazendo uso de carros com gigantescas caixas de som acopladas à sua estrutura, ou ainda audiovisuais, como as que estamos acostumados a ver na programação televisiva ou, mais recentemente, nas produções da web (como é o caso dos consagrados vídeos do humorístico Porta dos Fundos, que sempre terminam com a já amplamente conhecida vinheta do canal). Sonoramente falando, as características acerca da definição de uma vinheta podem variar: é possível encontrar produções temáticas criadas com exclusividade para tal, existem aquelas que copiam algo preexistente, alterando apenas uma nota musical do original ou, ainda, há a possibilidade de fazer uso de uma música ou efeito já existente, sem necessidade – ou desejo – de alteração (em casos como este, nos resta imaginar e torcer para que a empresa/o sujeito que se utiliza de tal recurso esteja de acordo com a lei no que diz respeito aos direitos autorais – mas isso é questão para um outro estudo).

Em relação a este último, temos na TV brasileira um case que pode ser considerado

de sucesso, visto que já está próximo de completar quatro décadas de existência e, talvez mais importante, de relevância. É o caso do tema Dr. Jeckle and Hyde Park, mais conhecida no Brasil por Hyde Park, ou “a música do Esporte Espetacular”. O tema da Carnaby Street Pop Orchestra and Choir (sim, o nome da orquestra é tudo isso), liderada por Keith Mansfield, serve como trilha sonora para as vinhetas do programa esportivo Esporte Espetacular, da Rede Globo, desde 1977. A música foi ainda utilizada na novela Selva de Pedra, da mesma Rede Globo, em 1972, mas com a durabilidade do Esporte Espetacular como carro chefe da programação esportiva do canal, com frequência semanal ao longo dos últimos quase quarenta anos e a repetição constante da vinheta, foi logo esquecida como música tema de folhetim novelístico (por maior que tenha sido o sucesso do mesmo) para se tornar “a música do Esporte Espetacular”. Tal identificação encontra-se tão estabelecida na relação do programa com seu público – ou mesmo com aqueles que não se fazem público-alvo da produção, mas consomem outros programas daquele canal e, por conseguinte, as chamadas comercias do esportivo, que fazem da canção-tema da vinheta música de fundo – que a CGCOM, agência de publicidade que atende a conta da atração televisiva, fez uso de tal fato basilar para a criação da campanha de celebração dos 40 anos do programa. As peças que compõem a citada campanha publicitária consistem em exibir cenas cotidianas – como alguém a subir escadas ou a caminhar pela calçada – transformadas em cenas esportivas, como halterofilismo e atletismo, unicamente a partir da inserção da “música do Esporte Espetacular” como trilha sonora daquela ação rotineira. O con-

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ceito da campanha, “a gente vê esporte em tudo”, reforça a relação da música Hyde Park com o programa global e vai além: mostra, através da trilha sonora consagrada pela vinheta, que o espectador não só a relaciona com o programa, mas faz a associação do Esporte Espetacular com o esporte em si e com tudo o que pode ser englobado como tal (categorias esportivas, atletas, campeonatos, etc). Ou seja, o poder da música utilizada como vinheta sonora pela atração não só a tornou “a música do Esporte Espetacular”, mas fez com que ganhasse conotações de trilha sonora do esporte como um todo. Basta que o espectador/consumidor/sujeito ouça as notas musicais da composição para que lhe venha à mente algo relacionado ao esporte. É importante ressaltar aqui o uso da expressão “algo relacionado ao esporte” como o que é transportado pela memória quando o sujeito se vê em contato com a canção Hyde Park: a interpretação sígnica apresenta a possibilidade de divergência de significado, ou seja, uma vez que o significante é deslizante, admite a possibilidade de significados diferentes para pessoas diferentes. Assim como um clichê descreve o sentimento comum de todos, mas pode não dar conta da singularidade de um sentimento, a música da vinheta em questão, ou “a música do Esporte Espetacular”, pode vir a despertar a consciência comum, a memória generalizada do cidadão brasileiro médio, em relação ao esporte como um todo. Entretanto, é possível afirmar que, apesar de atreladas ao esporte de forma geral, cada sujeito poderá vir a apresentar uma lembrança distinta, resultado de suas experiências particulares, sejam elas um histórico de carreira esportiva, a existência de um ídolo esportivo maior, a preferência ou admiração por determinado esporte, dentre tantos motivos outros quanto podem ser possíveis de serem enumerados, visto que o significado é extrínseco ao signo e inclui um sujeito no processo de interpretação – e, se a mente é variável, também o é o resultado de uma significação. A mesma Rede Globo nos oferece ainda outro caso interessante de utilização de uma música preexistente como recurso sonoro para a vinheta de um dos programas de sua grade que, assim como o exemplo anterior, sofreu tamanha acumulação simbólica que permitiu sua ressignificação, transformando uma música (desta vez de um artista mundialmente conhecido) em arauto de conteúdos de entretenimento. É o caso de Don’t Stop ‘Til You Get Enough, de Michael Jackson, cuja versão instrumental é empregada, há mais de duas décadas, como recurso sonoro na vinheta do boletim eletrônico semanal Vídeo Show. Tal qual a música Hyde Park se tornou conhecida como “a música do Esporte Espetacular”, esta passou a ser identificada (talvez exceto pelos fãs do rei do pop) como “a música do Vídeo Show”. A relação estabelecida pelo público/espectador entre a trilha sonora utilizada na vinheta e o programa se mostra de tal forma solidificada, que é utilizada mesmo por produções de canais concorrentes para fazer referência ao Vídeo Show, como é o caso do jornalístico Balanço Geral. Transmitido pela Rede Record no mesmo horário que a atração global em questão, traz à tona

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“a música do Vídeo Show” quando se vê à frente na corrida pela audiência, apontada pelo Ibope, com a certeza de que o espectador irá compreender o apontamento e deixar vir à tona a lembrança do programa. A ressignificação de trilhas ou recursos sonoros utilizados em vinhetas pode ser correlacionada com ocorrência equivalente que se dá em produções midiáticas voltadas para o cinema. Cada quadro, cada plano, cada sequência de um filme se dão graças ao trabalho meticuloso que abrange as mais diversas áreas. “O cinema não é um meio simples, como a canção ou a palavra escrita, mas uma forma de arte coletiva, onde indivíduos diversos orientam a cor, a iluminação, o som, a interpretação e a fala” (MCLUHAN, 2011:327). Ou seja, cada milésima parte de uma obra cinematográfica é pensada por um profissional especializado naquele segmento específico, pois é da junção de todas estas especialidades que se faz cada cena. “O cinema é mais perceptivo, se é que assim nos podemos exprimir, do que muitos outros meios de expressão: mobiliza a percepção segundo um maior número de eixos.” (METZ, 1980:53); é da confluência de todos estes elementos – cor, iluminação, som, interpretação, fala, dentre outros não citados pelo autor – que resulta uma cena (considerada) perfeita. Dentre estes elementos, constituintes da obra cinematográfica, faz-se relevante para nós a trilha sonora. A partir de Aumont, sabe-se que “(...) o som é, na maioria das vezes, considerado como um simples coadjuvante da analogia cênica oferecida pelos elementos visuais. De um ponto de vista teórico, contudo, não há qualquer motivo para que as coisas ocorram dessa maneira.” (AUMONT, 1995:48). É o caso do filme Ghost: do Outro Lado da Vida, estrelado por Demi Moore e Patrick Swayze, grande sucesso do cinema (e das então ainda relevantes locadoras) na década de 1990. Cenas românticas marcantes do casal são embaladas pela também romântica Unchained Melody, canção de 1955. Originalmente lançada na voz de Al Hibbler, é uma das canções mais gravadas do século XX, tendo sido eternizada, por exemplo, por outro rei, Elvis Presley, ou ainda, mais recentemente, pela banda irlandesa U2 e pela cantora pop Cindi Lauper. A versão utilizada no filme em questão foi a da dupla The Righteous Brothers – e, para muitos, parece ser a única. A canção se faz paisagem sonora do romance a partir do momento em que, de acordo com Fernandes, Rocha e Dos Santos (2007), a música se faz base para a formação de um ambiente, ou seja, é utilizada para resgatar o que o espectador já sabe sobre as personagens – a música funciona como veículo, levando o público de volta ao lugar/momento anterior, à última cena exibida acerca dos acontecimentos que envolvem o casal – não somente durante a trama, mas como experiência alcançada pela memória do sujeito a cada novo encontro com a música em questão.

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Se, por acaso, alguma coisa, como qualquer corpo visível, desaparece da vista, não da memória, conserva-se interiormente a sua imagem, e procura-se, até que seja restituída à vista. Logo que for encontrada, é reconhecida pela imagem que está dentro de nós. Não dizemos que encontramos o que estava perdido, se não o reconhecemos, nem o podemos reconhecer, se não nos lembramos: mas aquilo que, de facto, estava perdido para os olhos, conservava-se na memória (AGOSTINHO, 2002:65).

O que podemos entender a partir deste trecho das Confissões de Santo Agostinho é que a ressignificação de uma trilha sonora por parte do espectador, fazendo deste recurso sonoro sinônimo daquela obra audiovisual em particular, se dá quando a música em questão tenha se instalado na memória do sujeito à época da apreciação da obra cinematográfica. A partir da ativação, do resgate da memória do espectador acerca da produção audiovisual, espera-se que a relação espectador-obra não mais se apresente de forma unilateral, com a ação do filme sobre o espectador, mas também do agir emocional do espectador sobre o filme. Para Fernandes, Rocha e Dos Anjos, é plausível que se apresente avanço na ressignificação dos espaços fílmicos “a partir dos sons/música evocados por sua imaginação. O cinema tem esse poder de sedução” (FERNANDES, ROCHA e DOS ANJOS, 2007). É importante salientar: todo significado é produzido na memória: se não houver significado prévio, não há significado. Ou seja, a transformação da música em conteúdo análogo ao conteúdo midiático que ela representa pode ser associada à relação existente entre a memória auditiva do espectador em relação a uma produção midiática, à medida que este espectador produz uma ressignificação sobre a trilha sonora, a ponto de transforma-la em correspondente à obra midiática no que diz respeito ao seu conteúdo de forma geral. Acerca das possibilidades de ressignificação por parte do espectador a partir das memórias que envolvem a obra cinematográfica em questão, ativada pelo defronte com a trilha sonora do mesmo, as palavras de Peirce se fazem elucidativas: Uma palavra possui um significado, para nós, na medida em que somos capazes de utilizá-la para comunicar nosso conhecimento a outros e na medida em que somos capazes de apreender o conhecimento que os outros procuram comunicar-nos. Este é o grau mais baixo do significado. O significado de uma palavra é, de uma forma mais completa, a soma total de todas as predições condicionais pelas quais a pessoa que a utiliza pretende tornar-se responsável ou pretende negar. Essa intenção consciente ou quase-consciente no uso da palavra é seu segundo grau de significado. Mas, além das consequências com as quais conscientemente se compromete a pessoa que aceita uma palavra, há um amplo oceano de consequências imprevistas que a aceitação da palavra está destinada a não apenas consequências de conhecimento, mas talvez, revoluções na sociedade. Nunca se pode dizer qual o poder que pode haver numa palavra ou numa frase para mudar a face do mundo: e a soma destas con-

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sequências perfazem o terceiro grau do significado (PEIRCE, 2010:160)

Por conseguinte, voltando ao exemplo supracitado, entende-se que a trilha sonora do filme, a canção Unchained Melody, pode vir a ser um ícone do objeto Ghost: do Outro Lado da Vida – de acordo com Pinto, ícone é “(...) aquele signo2 que é determinado por seu objeto por compartilhar das características dele” (PINTO, 1995:24), enquanto o objeto não deve ser pensado como uma coisa, mas como “algo ao qual algo se refere” (PINTO, 1995:37). Isto é, a partir do encontro com a música-tema do filme em questão, o espectador pode vir a produzir uma dinâmica de significação, uma relação de signo com o seu objeto (o filme). Isto posto, mostra-se passível de entendimento que a canção Unchained Melody tenha se tornado – como “a música do Esporte Espetacular” ou “a música do Vídeo Show” – “a música do Ghost”, como se as tantas outras versões, as já existentes e as que sucederam o blockbuster, não se fizessem dignas de serem lembradas, ou mesmo como se nunca tivessem sequer existido. A título de curiosidade: o caso da significação atribuída pelos espectadores à relação filme/trilha sonora, no caso do filme Ghost: do Outro Lado da Vida, parece ter alcançado ainda mais profunda acepção. Nos Estados Unidos, o nome da música tornou-se uma expressão urbana. Um momento unchained melody é aquele no qual alguém faz algo, alguma atividade, junto da pessoa amada, e tal atividade, mesmo que corriqueira, parece ser um momento romântico. A origem da expressão vem da (talvez) mais famosa cena do filme, na qual as personagens de Moore e Swayze – obviamente embalados pela canção em questão – se envolvem na confecção de um artefato de cerâmica, uma atividade corriqueira que, naquele contexto, representava uma cena extremamente romântica. De música a ícone Se alguma coisa pode ser usada para comunicar, ela pode ser significada – e de novo, e de novo, e de novo, num ressignificar contínuo, que pode tanto fazer com que esta alguma coisa em determinado momento se perca e se torne referência desconhecida ou que se torne eternamente resgatável em meio aos tantos e diversos signos que ocupam a memória de um sujeito. É sabido que a ressignificação de um objeto se dá a partir do repertório individual ou coletivo, de vivências e experiências. Por conseguinte, e tendo em mente os casos exemplificados ao longo deste artigo, talvez seja possível afirmar que quando uma música já existente – mesmo que gravada por um artista de ___________________________________________________

Um signo, ou representâmen, é aquilo que sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. Ao signo assim criado denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma coisa, seu objeto. Representa esse objeto não em todos os seus aspectos, mas com referência a um tipo de ideia que eu, por vezes, denominei fundamento do representâmen. (PEIRCE, 2010:46) 2

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renome internacional ou regravada mais vezes do que uma pessoa pode se lembrar – passa a ser trilha sonora de uma relevante produção televisiva ou cinematográfica e, além disso, se vê inserida na rotina do espectador, passando a fazer parte de suas experiências e de sua memória, a ressignificação a ela atribuída pode transforma-la em mais do que uma música, mais do que uma trilha sonora, mas em um ícone, exibidor do objeto a que se refere. Nada significa uma coisa só, sabemos. Entretanto, um significado pode vir a ter força suficiente para prevalecer sobre tantos outros, como primeiro ou único, no disputado espaço que se faz a memória do sujeito-espectador. A diferença entre estes e os que tão logo se tornam esquecidos, no caso das trilhas sonoras, muito se dá graças ao envolvimento do espectador para com elas, que podem ser vinculadas à qualidade (tanto a sonora quanto a visual, à qual a trilha fará fundo) e à durabilidade (em tempo ou em ressonância de sucesso) da produção midiática em questão. Além de, claro, um pouco de sorte de quem, nos bastidores, em determinado momento optou por esta, e não aquela faixa musical.

Referências bibliográficas AGOSTINHO, Santo. Confissões: Livros XII, X e XI. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002. AUMONT, Jacques. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus Editora, 1995. BORDWELL, David. O cinema clássico hollywoodiano: normas e princípios narrativos. In: RAMOS, Fernão (org.), Teoria contemporânea do cinema: documentário e narrativa ficcional, vol 2. São Paulo: Senac, 2005, pp. 277-301. BERGSON, Henri. Matéria e Memória: Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Livraria Martins Fontes, 1999. FERNANDO, Glauco Vieira, ROCHA, Ewelter de Siqueira e, DOS ANJOS, Francisco Weber. Paisagens sonoras em cidades cinemáticas. Disponível em <http://is.gd/Zx1okx> Acesso em 7 dez. 2013. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. MACHADO, Mariângela. A formação do espectador de cinema e a indústria cinematográfica norte-americana In Revista Sessões do Imaginário, Faculdade de Comunicação Social da PUCRS, Porto Alegre, v.1, n.22, dez. 2009. Disponível em: <http://is.gd/ByLpDn> acesso em 12 dez. 2013. MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Editora Cultrix, 2011. METZ, Christian. O significante imaginário: psicanálise e cinema. Lisboa: Livros Horizonte, 1980. 126

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PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2010. PINTO, Julio, 1 2 3 da Semiótica. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1995.

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Sound studies no cinema Bernardo Marquez Alves

Sound studies no cinema

panorama da produção bibliográfica dos anos 1970 até o final do século XX Bernardo Marquez Alves1 Universidade de São Paulo

Resumo: Este artigo pretende contextualizar o desenvolvimento dos “Estudos do Som” (Sound Studies) no cinema a partir de um panorama de sua produção bibliográfica da década de 1970 até o final do século XX, período que deu início à consolidação desse jovem campo de pesquisa nas discussões sobre o cinema e o audiovisual. O foco essencial está nos principais materiais publicados na França, Inglaterra, Estados Unidos, Rússia e Brasil, priorizando aqueles que articulam questões que não são específicas da trilha musical. Palavras-chave: estudos do som; sound studies; cinema; trilha sonora; som; audiovisual. Abstract: This article intents to contextualize the development of Film Sound Studies from an overview of its bibliographic production of the 1970s until the late twentieth century, a period that began the consolidation of this young field of research in the discussions on cinema and audiovisual. The primarily focus is on the main documents published in France, England, USA, Russia and Brazil, that articulate issues that are not specific to the film music. Key words: sound studies; cinema; sound; soundtrack; audiovisual.

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Mestre em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP e realizador do site www.artesaosdosom.org. Graduado em Comunicação Social, habilitação em Radialismo na Unesp. Contato: bmarquez_9@hotmail.com 1

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Sound Studies é o termo utilizado para designar o novo campo de pesquisa acadêmica que se consolida no final do século passado e que privilegia o som como objeto central de estudo. Para compreender melhor o percurso de consolidação desse jovem campo de pesquisa nas discussões sobre o cinema e o audiovisual, este artigo pretende contextualizar o desenvolvimento dos estudos do som cinematográfico a partir de um panorama de sua produção bibliográfica dos anos 1970 até o final do século XX, focando essencialmente nos principais materiais publicados na França, Inglaterra, Estados Unidos, Rússia e Brasil, e priorizando aqueles que articulam questões que não são específicas da trilha musical. A opção por não investigar trabalhos que articulam questões específicas da trilha musical aparece devido à necessidade de restringir o objeto de estudo, uma vez que a música no cinema além de receber uma atenção mais significativa dos pesquisadores da área dos “Estudos do Som” no cinema, é também objeto de estudo dos pesquisadores da área de música, gerando assim grande quantidade de publicações que, igualmente por sua importância, merece uma atenção à parte. Da mesma forma, busca-se assim contribuir com a expansão e valorização dos demais elementos, fenômenos e perspectivas de estudo sobre a trilha sonora cinematográfica. O período estipulado, dos anos 1970 até 2000, é o que podemos considerar o período de consolidação dos Sound Studies no cinema, já que a partir da década de 1970 mais modestamente, expandindo-se na década de 1980 e 1990, a trilha sonora passa a se concretizar como objeto de pesquisa na academia. Inicialmente esteve sobretudo atrelado aos estudos de cinema (Film Studies). Como afirma Hilmes (2005, p. 250), o estudo do som relacionado ao cinema seja talvez a maior e mais desenvolvida área que deve ser incluída em qualquer tentativa de delinear os Sound Studies. E é com essa vertente, a dos Film Sound Studies, que esta pesquisa trabalha. Isso porque os estudos do som vieram a se tornar um campo mais amplo, abrangendo estudos relacionados às ciências humanas e sociais, a aspectos da física, da tecnologia do áudio, da análise da cultura e das artes sonoras, assim como de outras mídias audiovisuais, etc. Estudos do Som é uma área interdisciplinar emergente que estuda a produção material e o consumo da música, do som, do ruído e do silêncio, e como estes mudaram ao longo da história e em diferentes sociedades. Mas o faz através de uma perspectiva muito mais ampla que disciplinas padrões como etnomusicologia, história da música e sociologia da música2 (PINCH; BIJSTERVELD, 2004, p. 636).

Para apresentar na forma de revisões históricas o desenvolvimento dos Estudos do Som no ___________________________________________________ 2

Tradução do autor.

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cinema, destacando os principais materiais publicados ao longo da história do cinema da década de 1970 até o ano 2000, foi utilizado como base de consulta os seguintes levantamentos bibliográficos: Bibliography on Sound in Film (GORBMAN, 1980); Annotated Bibliography (GORBMAN, 1985); The Trail of the Snail: Recent Literature on Sound Design (WEIS, 1999); e La Création Sonore (LAVOIE, s.d.). A Consolidação dos Estudos do Som no Cinema Muitas são as publicações em língua estrangeira sobre o som no cinema, especialmente ocidentais advindas dos EUA e de países europeus como França e Inglaterra, por exemplo. Complementando o artigo de Alves (2012), intitulado “Sound Studies no Cinema: panorama da produção bibliográfica até a década de 1960”, o desenvolvimento dos estudos do som no cinema pode ser observado em um breve panorama histórico de algumas de suas principais publicações a partir dos anos 1970. Na década de 1970 vale então destacar especialmente a defesa da tese de pós-doutorado do historiador norte-americano Douglas Gomery, intitulada The Coming of Sound to the American Cinema: a history of the transformation of an industry (1975), base para uma série de outros artigos e um livro3 publicados posteriormente. O trabalho de Gomery, que contempla aspectos da história do som cinematográfico, se diferencia de outros estudos históricos tradicionais por não ignorar fatos relacionados às complexas questões da economia e da demanda ideológica que desempenham um papel na formação da evolução do cinema, como explicam Weis e Belton: Histórias tradicionais sobre a chegada do som focam em um conjunto de “grandes homens” - a maioria inventores ou cineastas – que sozinhos conduziram a transição para o cinema sonoro. Um curso linear dos acontecimentos, vistos como uma evolução natural em direção a um objetivo pré-determinado, leva inevitavelmente ao The Jazz Singer. Infelizmente, essas histórias tendem a ignorar as complexas pressões da economia e da demanda ideológica que desempenham um papel na formação da evolução do cinema. [...] Baseando-se na teoria econômica neoclássica, Gomery situa as mudanças técnicas dentro de um contexto econômico mais amplo. [...] Gomery defende uma história do som que é determinada economicamente, inspirada pelo desejo de controle de patentes e aumento dos lucros4 (WEIS; BELTON, 1985a, p. 3).

É também nessa década que surgem os primeiros artigos de outros pesquisadores vindos de escolas de cinema, como David Bordwell, Kristin Thompson, Daniel Percheron e Claudia Gorbman que apresentaram novas formas de análises audiovisuais. Esta última em particular, foi quem propôs ___________________________________________________ 3 4

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GOMERY, Douglas. The Coming of Sound: a history. New York: Routledge, 2005. Tradução do autor.

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pela primeira vez a categoria narrativa denominada “meta-diegética”, em seu artigo Teaching the Soundtrack (1976). No meu conhecimento, o primeiro que propôs a categoria meta-diegética referindo-se a sons internos foi Claudia Gorbman em sua taxionomia de sons para filme. De acordo com Gorbman, a fonte sonora no nível narrativo pode ser diegética, extra-diegética e meta-diegética. Som metadiegético foi explicado como um som imaginado, ou talvez, alucinado por um personagem5 (MILICEVIC, s.d.) 6.

Um marco na consolidação dos estudos do som no cinema em âmbito internacional foi o lançamento da edição de número 60 da revista Yale French Studies. Publicada pela Yale University Press em 1980, foi editada por Rick Altman e intitulada Cinema/Sound. Além de sugerir novos rumos e possibilidades para uma abordagem mais integrada à experiência cinematográfica, teve o objetivo de romper com a ideia de um cinema observado apenas como uma arte essencialmente visual. Altman (1980b) pontua que aspectos da inovação tecnológica, econômica e artística de certa forma sempre estiveram presentes em livros e análises que discorriam sobre o cinema. Ele cita como exemplo as investigações presentes no JSMPE sobre o desenvolvimento dos sistemas de gravação e reprodução do som e sua sincronia com a imagem nas experimentações audiovisuais de Thomas Edson, Lee de Forest, Theodore Case e Earl Sponable; ou mesmo os manifestos e reflexões sobre o papel da trilha sonora propostas por realizadores como René Clair, Sergei Eisenstein, Pudovkin, Alexandrov, Béla Balázs, Charlie Chaplin e críticos como Rudolf Arnheim e Siegfried Kracauer. Esses estudos espelhavam-se no período de chegada e consolidação do som no cinema, mas não havia uma considerável integração na linguagem de análise do som cinematográfico. A teoria e a crítica de cinema permaneciam prioritariamente limitadas a aspectos da imagem. Para Altman, o crescimento de uma sensibilidade relativa aos problemas referentes à tecnologia do som foi o provável e mais importante requisito responsável pelo renascimento do interesse no estudo da trilha sonora. Os artigos publicados na revista foram divididos em quatro áreas. São elas: teoria, história, música e estudos de caso. Dentre os pesquisadores que participaram desta edição estavam Claudia Gorbman, Daniel Percheron, Mary Ann Doane, Kristin Thompson e David Bordwell. Outro mérito presente na Cinema/Sound e proporcionado por Claudia Gorbman, foi a publicação de um extenso levantamento bibliográfico onde reuniu-se praticamente todos os livros, en___________________________________________________

Idem. MILICEVIC, Mladen. Film Sound Beyond Reality: subjective sound in narrative cinema. Loyola Marymount University. Los Angeles, sem data. Disponível em: <http://myweb.lmu.edu/mmilicevic/NEWpers/_PAPERS/beyond.pdf>. Acesso em 10 de jun. 2013. 5

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saios e entrevistas relacionadas à trilha sonora cinematográfica publicados nos EUA e na Europa até aquela data. A intitulada Bibliography on Sound in Film (GORBMAN, 1980) possibilitou o acesso a uma informação até então dispersa no campo dos estudos de cinema. Enquanto isso no Brasil, destacaram-se os textos, entrevistas e depoimentos reunidos por Jean-Claude Bernardet na edição de número 37 da revista Filme Cultura de 1981, intitulada “Som e Cinema”. Esta pode ser considerada uma das primeiras publicações do país, se não a primeira centrada especificamente na discussão da trilha sonora cinematográfica nacional. Bernardet, além de fazer uma breve introdução, ordena uma série de depoimentos e entrevistas, formando uma espécie de dossiê. Dão sua contribuição os precursores Luís de Barros e Humberto Mauro, Watson Macedo; Arthur Omar, Vladimir Carvalho e Geraldo Sarno, expondo suas diferentes concepções sonoras para o documentário; Leon Hirszman. Ainda compositores como John Neschling, Remo Usai, Caetano Veloso, por conta principalmente do bom trabalho em São Bernardo, de Leon Hirszman, Paulo Moura. E, por fim, técnicos, como Vitor Rapozeiro e Juarez Dagoberto (COSTA, 2008, p. 9).

Depois da edição de número 60 da revista Yale French Studies, a primeira grande coletânea sobre o som no cinema publicada no formato de livro foi Film Sound: theory and practice (WEIS; BELTON, 1985a), que reúne artigos da área com relevante importância histórica, artigos recentes mas que apareceram em fontes efêmeras, e também outros materiais para complementar as lacunas de estudo sobre a estética do som e o próprio desenvolvimento da história do cinema sonoro, indo além do período de transição do silencioso para o falado. Weis e Belton (1985b) reafirmam a premissa de que até a década de 1980, as publicações sobre o som em filmes na maioria dos casos tinham sempre como foco apenas dois temas centrais: a música do filme e o nascimento do cinema sonoro. E ainda, esses materiais muitas vezes ou não tinham sido traduzidos, ou estavam fora de catálogo, ou pertenciam a revistas que não estavam disponíveis. Esta coletânea conta novamente com a publicação de um levantamento bibliográfico de Claudia Gorbman, desta vez como uma bibliografia comentada. Nesta década Michel Chion, um dos mais importantes pesquisadores contemporâneos da área, começa a publicar seus primeiros textos. Discípulo direto do conceituado pesquisador e compositor francês Pierre Schaeffer, Chion é autor de vários livros representativos da área, como por exemplo: La Voix Au Cinéma (1982), Le Son au Cinéma (1985) e L'Audio-Vision: son et image au cinéma (1991). Este último é na verdade uma compilação, revisão e ampliação dos conceitos e teorias distribuídas nas publicações anteriores do autor. Para se ter uma breve noção da importância desse trabalho, o livro também ganha versões traduzidas em espanhol em 1993, em inglês em 1994 (traduzido por Claudia Gorbman), em italiano em 1997 e em português (de Portugal) em 2011. De fato, os con-

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ceitos propostos por Chion em suas obras provocaram uma evolução no pensamento sobre o som e o audiovisual na teoria do cinema, expandindo os estudos na área. Dentre alguns conceitos famosos está o de “valor acrescentado”, de “contrato audiovisual”, de “audiovisão”, de “som acusmático”, de “vococentrismo”, o desenvolvimento de ideias acerca da escuta fílmica, dentre outros. O compositor, cineasta e teórico francês Michel Chion dedicou grande parte de seu livro Audio-Vision no sentido de delinear os vários aspectos do fenômeno do som no filme - que ele nomeia de “valor agregado” -, e esta alquimia também está presente no âmago de seus três trabalhos antecedentes, ainda não traduzidos para o inglês: La Voix Au Cinéma, Le Son au Cinéma e La Toile Trouée. […] O primeiro passo essencial que Chion dá é assumir que não existe nenhuma “harmonia pré-existente e natural entre imagem e som”. […] O desafio para um teórico como Chion, por outro lado, é como definir - de forma tão ampla, mas a mais precisa possível - as circunstâncias sob quais essa “relação” pode ser feita, foi feita no passado, e poderá ser melhor realizada no futuro. Este desafio Chion empreende nos primeiros seis capítulos do Audio-Vision na forma de um “contrato audiovisual” - uma síntese e extensão das teorias desenvolvidas nos últimos dez anos em seus primeiros três livros. […] Além disso, outras idéias de Chion são, para mim, ideias completamente novas e originais de se pensar sobre o assunto […]. Mas a verdadeira conquista do Audio-Vision é - além de simplesmente nomear e descrever estes conceitos e ideias isoladamente - propiciar uma síntese em um todo coerente, cujo padrão torna-o acessível tanto ao não-profissional como aos que já possuem experiência no ofício7 (MURCH, 1994, p. IX, XII, XIII, XVII)8.

Os anos 1990 chegam para efetivar a presença dos estudos do som como campo de pesquisa acadêmica, ao menos a nível do exterior. Além do lançamento do já mencionado livro de Michel Chion, L'Audio-Vision (1991), outras quatro coletâneas ganham destaque: Sound Theory / Sound Practice (ALTMAN, 1992) com uma diversidade de artigos compilados tratando o cinema como “evento” e propondo diferentes modelos de se pensar o cinema em geral e a trilha sonora em especial. É neste trabalho, por exemplo, que Altman expõe suas críticas em relação à forma como as teorias do cinema vieram lidando com o som ao longo dos anos, através do que ele denomina de “quatro falácias e meia do cinema”9. Sound for Picture: an inside look at audio production for film and television (FORLENZA; STONE, 1993) que reúne basicamente artigos publicados na revista Mix10 sobre estudos de caso do som em filmes específicos e textos sobre a complexa arte do sound design no cinema; Sound-on-Film: interviews with the creators of film sound (LoBRUTTO, 1994) contendo vinte e sete entrevistas com ___________________________________________________

Tradução do autor. Retirado do prefácio do livro Audio-vision de Michel Chion traduzido para o inglês. 9 ALTMAN, Rick. Introduction: four and a half film falacies. In: Sound Theory / Sound Practice. New York: Routledge, p. 35-45, 1992. 10 Uma das principais revistas internacionais sobre áudio profissional e produção musical. Disponível em: <http://mixonline.com/>. 7

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renomados profissionais do meio, de técnicos de som direto a editores de som, artistas de foley e mixadores, por exemplo, e, consequentemente, disponibilizando informações sobre a prática de produção sonora e suas particularidades até antes não registradas; e Sounds of Movies: interviews with the creators of feature sound tracks (PASQUARIELLO, 1996) com vinte entrevistas também divididas entre profissionais de todas as etapas da produção sonora cinematográfica. A conexão entre o universo teórico e a descrição prática do processo de trabalho, produção e criação sonora no cinema, proporcionada de certa forma já nesses livros de entrevistas, e que acaba por também gerar materiais didáticos importantes para o desenvolvimento do campo profissional da área, começa a ser mais recorrente. Exemplos disso estão na publicação da primeira edição do livro The Practical Art of Motion Picture Sound (YEWDALL, 1999), contendo exemplos práticos, dados técnicos e dicas de criação sonora cinematográfica. E em dois artigos famosos de dois grandes sound designers que sempre demonstraram interesse em interagir com o campo acadêmico. O primeiro é o intitulado Sound Design: the dancing shadow de Walter Murch, publicado em 1995 na coletânea Projections 4: Film-makers on Film-making, mas que posteriormente ficou mais conhecido por sua versão adaptada intitulada Stretching Sound to Help the Mind See (MURCH, 2000), que é uma combinação de princípios gerais, explicações técnicas e contextos teóricos desenvolvidos ou praticados por Murch. E o segundo é o artigo Design a Movie for Sound de Randy Thom, publicado no número 27 da revista Iris de 1999, onde o autor afirma que a melhor maneira de um cineasta tirar proveito do som é pensando-o desde o roteiro, na pré-produção. Inclusive, esta mesma revista Iris, de número 27, editada por Rick Altman e intitulada The State of Sound Studies/Le son au cinéma, état de la rechearche, pode ser considerada a primeira que publicou uma edição completa dedicada exclusivamente a avaliar o estado da pesquisa sobre som no cinema no exterior. Nela, Rick Altman confirma a consolidação do denominado “Sound Studies” como um novo campo acadêmico reconhecido e respeitado pelas universidades, pelas editoras e até mesmo pelos meios de comunicação. Inclusive, a maturidade atingida fez com que os estudos do som ultrapassassem a especificidade do cinema e se tornassem aptos para abordagens interdisciplinares. Sound Studies: um domínio em plena expansão. Eles dizem que é preciso várias gerações para garantir a sobrevivência de uma nova espécie. O mesmo é válido para cada novo campo acadêmico. Com essa edição nós entramos na quarta geração dos Sound Studies. Aproximadamente a vinte anos atrás, tudo começou com a edição da Yale French Studies intitulada Cinema/Sound, que rapidamente saiu de catálogo e foi substituída pelo Film Sound: theory and practice, e depois pelo Sound Theory/Sound Practice. […] Mais do que nunca, o estudo do som é ___________________________________________________ 2

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Tradução do autor.

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agora reconhecido pelas mesmas instituições (universidades, meios de comunicação, editoras) que só recentemente saíram do caminho de impedir este novo domínio11 (ALTMAN, 1999b, p. 3).

Além do texto de Randy Thom, a revista conta com um artigo de Michel Chion, tratando dos problemas e soluções para desenvolver o estudo do som na Europa e no mundo; com uma bibliografia comentada das literaturas sobre sound design recentes à época realizada por Elisabeth Weis; um artigo de Jay Beck e Franck Le Gac sobre fontes de conteúdo encontradas na internet destinadas ao estudo do som no cinema; um texto com notas e revisões dos principais colóquios e conferências sobre os estudos do som cinematográfico realizados ao longo da década de 1990; dentre outros. Os anos 1990, portanto, também marcaram o início da frutífera e multifacetada troca de conhecimentos teóricos e práticos na área através da internet, a qual progride até os dias de hoje. O maior exemplo disso é o website Film Sound (www.filmsound.org), idealizado pelo professor sueco Sven E. Carlsson em 1997, e que aglomera, por exemplo, um vasto glossário com definições de termos da área, uma bibliografia de livros e jornais sobre o som no cinema, entrevistas e artigos que tratam desde estudos da trilha sonora de filmes específicos a questões mais técnicas e teóricas, além de também ser precursor de um grupo de discussão por email denominado Sound-Article-List e que reúne pesquisadores e profissionais renomados do mundo inteiro para promover e incentivar a arte criativa do trabalho com o som no cinema. Voltando ao universo brasileiro, é também na década de 1990 que começam a surgir os primeiros trabalhos acadêmicos sobre o som no cinema. Dentre as primeiras pesquisas realizadas no país está a dissertação de David Pennington defendida na UNB em 1993 com o nome de “Som Direto”, propondo resgatar alguns aspectos do conhecimento da atividade de trabalho com o som direto dentro do audiovisual; a dissertação de Ney Carrasco “Trilha Musical: música e articulação fílmica”, defendida na Escola de Comunicação e Artes da USP no mesmo ano de 1993, abordando a trilha musical como recurso de articulação da narrativa fílmica e demonstrando o modo pelo qual a música se insere na dramaturgia do cinema; a dissertação de Eduardo Santos Mendes, intitulada “A trilha sonora nos curtas-metragens de ficção realizados em São Paulo entre 1982 e 1992”, defendida na ECA/USP em 1994, e que além de estudar a função da narrativa sonora dentro dos curtas-metragens paulistanos do período estipulado, faz um breve levantamento histórico do desenvolvimento do som no cinema e expõe alguns modelos de análise da trilha sonora cinematográfica; a dissertação “Espaço fílmico sonoro em Arthur Omar” de Guiomar Ramos defendida também na ECA/USP em ___________________________________________________ 11

Tradução do autor.

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1995, e que investiga o uso e o potencial do som na obra do cineasta Arthur Omar. Ainda temos nessa década a dissertação de Luiz Cláudio Cajaiba Soares denominada “Versão Brasileira: dublagem na tv como recurso difusor do cinema”, defendida na UFBA em 1997, e que estuda sob óticas estéticas e artísticas o fenômeno da dublagem em filmes produzidos para cinema, tratando especialmente das versões distribuídas para as emissoras de TV; a dissertação de Suzana Reck Miranda nomeada “A Música no Cinema e a Música do Cinema de Krzysztof Kieslowski”, defendida em 1998 na UNICAMP, e que descreve características específicas da utilização da música do compositor polonês Zbigniew Preisner em dois filmes de Krzysztof Kieslowski: A Dupla Vida de Véronique (1991) e A Liberdade é Azul (1993). Há também a dissertação de Luiz Adelmo Manzano intitulada “A Relação Som-Imagem no Cinema: a experiência alemã de Fritz Lang”, defendida na USP em 1999, discorrendo sobre o papel do som no cinema e aplicando os conceitos estudados em duas obras do diretor alemão Fritz Lang: Metropolis (1925-1926) e M, o Vampiro de Düsseldorf (1931). A dissertação de Luciana Almeida Pereira com o título “Princípios da Articulação Sonora no Cinema”, defendida em 1999 na UFMG, e que analisa o desenvolvimento da linguagem sonora e as teorias que ampararam as etapas de evolução das tecnologias do som ao longo da história do cinema. E a tese de doutorado de Ney Carrasco denominada “Sygkhronos: a formação da poética musical do cinema”, defendida também na USP em 1999, mostrando além do processo de formação poética, a evolução do papel da música no cinema. Fechando o século XX, há ainda a tese de Eduardo Santos Mendes, “Walter Murch: a revolução no pensamento sonoro cinematográfico”, defendida na USP em 2000, e que discorre sobre a importância de Murch na mudança do pensamento sonoro dos filmes norte-americanos de ficção nos anos 1970, através da análise das trilhas sonoras realizadas por ele em especial nos filmes O Poderoso Chefão (Francis Ford Coppola, 1972) e Apocalypse Now (Francis Ford Coppola, 1979). Conclusão Os estudos do som cinematográfico chegam então ao século XXI como um promissor campo de pesquisa em emergência a nível do exterior. No Brasil, pode ser observado que até o final do século passado essa área não acompanhou de forma assídua esse percurso de desenvolvimento, possuindo baixa representatividade, e sendo caracterizada por trabalhos escassos e esporádicos. Apenas ao longo dos anos 1990 que começaram a surgir timidamente mais pesquisas sobre o tema, representadas principalmente pelas teses e dissertações a pouco mencionadas. Como documentos, as teses e dissertações são partes importantes da literatura científica, pois mostram as preocupações dos pesquisadores quanto à configuração do campo em períodos específicos ou ao longo de uma trajetória, ao mesmo tempo em que podem apontar problemas

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disciplinares, bem como teorias e metodologias utilizadas pela área. [...] Entretanto, por não contarem com um sistema de publicação e distribuição comercial, teses e dissertações impressas podem ser consideradas literatura cinzenta (LC), devido ao escasso número de cópias, o que acarreta pouca visibilidade e dificuldade de acesso (VANZ; BRAMBILLA; RIBEIRO; STUMPF, 2007, p. 54)

É interessante notar a forte integração entre o trabalho acadêmico e a prática do mercado de realização audiovisual ao longo do desenvolvimento dos Sound Studies no cinema. Como afirma a pesquisadora Elisabeth Weis, “uma das alegrias de se trabalhar com os estudos do som é que há um amplo intercâmbio de ideias entre os profissionais da área e os acadêmicos”12 (WEIS, 1999: 96). McGILL também constata: Há de fato um maior diálogo entre os interessados no estudo crítico da trilha sonora e as pessoas envolvidas em sua produção real: dois grupos que até os últimos anos pareciam estar desconectados. […] Este diálogo é indicativo de uma maior e importante troca interdisciplinar, algo que pode enriquecer a nossa compreensão da trilha sonora em vários níveis. Essa troca pode iluminar como os vários componentes do som do filme são criados e coordenados, e a natureza das considerações técnicas e artísticas envolvidas neste processo. Ele pode oferecer percepções sobre a dinâmica de trabalho entre profissionais de som e o modo de trabalho na indústria do cinema, e também levar uma compreensão mais desenvolvida como a razão pela qual a trilha sonora de um filme em especial soa como é (McGILL, 2008, p. 16)

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Tradução do autor.

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Energia vital em formas sem fim Carolina Berger

Energia vital em formas sem fim (氣 | 气 | 気)

Carolina Berger1 Universidade de São Paulo

Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar o processo de concepção e instauração da poética de Qi (氣 | 气 | 気), video performance elaborada em workshop ministrado pelo coreógrafo e diretor de arte Daniel Belton (Good Company Arts), durante o SoundIsland Festival, parte da programaçã do II Simpósito Internacional de Som e Interatividade, School of Art, Design and Media (NTU), na Nanyang University of Technology, em Singapura. A premissa do workshop aborda a relação entre execução sonora ao vivo e o gesto corporal como condutor de narrativas audiovisuais apresentadas em formatos monocanal e ao vivo. O vídeo é idealizado e pós produzido pela performer e artista Carolina Berger (Brasil), que convida a musicista Rachel Chen (Singapura) para executar a performance sonora em tempo real, enquanto improvisa movimentos voltados à compreensão da gestualidade da leveza e do elemento ar, com objetos circulares de superfície branca. A obra teve estreia internacional no ArtScience Museum, em agosto de 2015, em Singapra. Palavras-chave: Performance; audiovisual; videoarte; dança; poéticas audiovisuais.

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Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais, na ECA/USP. Bolsista da FAPESP com projeto intitulado “Poéticas de corpos duplicados em audiovisualidades performativas: presença e expansão do dispositivo técnico cinematográfico”, sobre a relação entre performatividade e dispositivo técnico em performance multimídia e performance audiovisual. Mestre em Documentário Cinematográfico pela Universidad del Cine (FUC - Argentina). documentarista premiada, artista multimídia e performer. Foi professora no Curso Superior de Tecnologia em Produ ____ 1

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Energia vital em formas sem fim Carolina Berger

Abstract: This paper presents the creation process and analises how the poetics of the performative video Qi (氣 | 气 | 気), was found in an improvisational experience. The artwork was conceived by the performers Carolina Berger (body and audiovisual postproduction) and Rachel Chen (Violin) during the workshop “Conductors: creating filmic narrative through body gestures” supervised by the artist director and choreographer Daniel Belton (Good Company Arts), in the context of SoundIsland Festival, during the 2nd International Symposium on sound and interactivity, at the School of Art, Design and Media (NTU), in Singapure. The premisse of the workshop was the language of the body as a visual conduit for communication and the gesture as a conduit to narrative. Qi is how the material energy and the active principle is called in many cultures. It’s related to the air element. 氣 | or Qi is action, movement and breath. The performative video is an improvisational choreography made with pure intention as a glimpse of feminine lightness. Key-words: Performance; audiovisual performance; videoart; dance; medi art; audiovisual poetics.

Começo a olhar as imagens brutas da gravação de Qi (氣 | 气 | 気) percorrendo lentamente os segundos deste improviso audiovisual. Como se visualizasse fotografias, manipulo o tempo quadro a quadro. A cada imagem, uma nova sensação de surpresa e deslumbramento instiga meus pensamentos ao reconhecer no olhar da musicista Rachel Chen uma tão plena atenção aos meus movimentos. Ao mesmo tempo, regozijo-me ao perceber uma presença tão nobre em seus gestos, seguindo com seu instrumento de expressão, o violino, as formas que meu corpo desenha com os objetos e com o figurino de leveza sublime, desenhado pela figurinista e parceira Isis Gomes, para Performance do Despertar2, que dias antes apresentei na LASALLE College of the Arts, em Singapura. O olhar de Rachel é acurado, direcionado à improvisada movimentação de meu corpo em pleno esforço para expressar minha intenção de exaltar a excelência dos sons produzidos por uma interprete e compositora que eu pouco conhecia mas já profundamente admirava.

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ção Audiovisual (PUC-POA) e na Pós-Graduação em Cinema, Vídeo e TV: Estética da Imagem em Movimento, do Centro Universitário Belas Artes (SP). Ministrou inúmeros workshops sobre documentário, roteiro e direção para cinema. Idealizadora do Digital Self Workshop e de #LiveLivingPerformanceProject, trilogia de performances multimídia sobre a relação entre elementos da natureza e arquétipos de mitologias femininas afro-brasileira e indígena. Website: http:// carolinaberger.com.br/ 2 Informações sobre o trabalho em: http://carolinaberger.com.br/performance-do-despertar/ 142

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Figuras 01 a 03: frames (imagens brutas) de gravações de Qi.

Em sua contemplação ativa de minha busca, parece haver uma série de finas linhas retas, como uma teia transparente, que logo remete à recordação de uma das cenas mais deslumbrantes que a natureza ofereceu a mim e à equipe que há anos realizava comigo o documentário “Paragem do tempo”3: estávamos no alto de uma rocha, nas Minas do Camaquã, gravando imagens do entardecer, quando uma pequena ave de rapina aparece flutuando diante da câmera. Com suas asas equilibrando-se ao vento, seu olhar e bico em linha reta a ave mirava ao chão, há muitos metros de distância. A comparação da concentração de Rachel com o instante de tempo suspendido e vivido de forma coletiva durante a gravação do documentário foi inevitável. São cenas harmoniosas da vida que a dedicação à arte traz-nos sem pedir nada em troca, simplesmente surgem para transformar a riqueza poética do olhar. Tecido entre os sentidos, e na certeza surgida da experiência artística com a essência do inesperado, o vídeo performático Qi (em variações do ideograma chinês 氣 | 气 | 気) é uma coreografia improvisada com a pura intenção da graça feminina, em sua relação com os elementos da natureza, que segundo filosofias orientais e tradições afro-brasileiras compõem nosso corpo, nossa relação com o cosmos e assim fundam personificações arquetípicas que nos conectam quando suas semelhanças são simbolizadas em diferentes mitologias. ___________________________________________________ 3

Trailer, sinopse e demais informações relevantes sobre a obra em http://carolinaberger.com.br/video/paragem-no-tempo/

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Figura 04: frames de gravações de Qi.

Figura 05: resultado da mesma imagem anterior em vídeo final.

Poética: um processo de descobertas

Figura 06 e 07: frames iniciais e finais (imagens brutas) de gravações de Qi.

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Em cinema experimental, corporeal cinema, vídeo arte, e em media art, principais universos criativos aos quais conecto a experiência de Qi, grande parte dos trabalhos é concebido a partir de uma progressão inventiva. Artifícios de cada manifestação poética vão sendo somados à ideia inicial e à complexidade da relação entre recursos expressivos, intenções dramáticas e estéticas. Cada nova camada de informação forma documentos de roteiro, esboços, esquemas, croquis, riders técnicos, plantas baixas, experimentos com efeitos de montagem de som e imagem, e uma série de rascunhos com diferentes nomenclaturas e formatos, elaborados pelos artistas, de acordo com o formato de exposição ou exibição do trabalho. Em uma gradação não necessariamente linear da elaboração dos recursos expressivos do trabalho, e em circunstâncias singulares, a poética e a narratividade tomam forma. Qi foi produzido em uma situação específica de acumulação de estudos, pesquisas, experimentos, acontecimentos com o público presente e momentos de solidão criativa. A força do fluxo da vida vinculada aos processos de criação, então, conectou duas performers e a potente relação entre música e dança improvisada transformou-se em obra que traduz um movimento sinfônico e experimental de interpretação do espaço que nos conecta. Por isso, em sua sinopse, explicito está que 氣 | Qi | foi produzido no fluxo da energia vital, pois sua forma emanada da vida que tem um princípio ativo: o ar.

Figura 08 e 09: frame de material bruto e imagem de vídeo final. Ambas demonstram como buscamos criar uma poética para o elemento ar através de gestual e imagem audiovisual.

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O equilíbrio através da harmonia

Figura 10: uso de objetos circulares utilizados nas performances da Good Company Arts.

Desde o início da obra a ideia era chamá-la balance que em inglês equivale à equilíbrio, simbolizado também pelo oito deitado, ou seja, o símbolo do infinito. Entre as formas manipuladas nos gestos da performance-corpo e os sons que vibram nas cordas harmônicas é isto que ocorre, uma sorte de profusão de eternidade. São infindáveis possibilidades de equilíbrio, de harmonia, surgidas de uma relação de pureza do experimento e do improviso, emanada na poética. É essa força que move a energia vital dedicada em Qi. É essa força que equivalente ao símbolo chinês 氣 que nos moveu, performers do corpo e da música a juntar nossos polos do mundo e criar um lampejo de eternidade, improviso vindo da vontade de compartilhar a conexão poética que surgiu em nós. O trabalho foi produzido em Singapura, durante workshop ministrado pelo coreógrafo e diretor artístico Daniel Belton (Good Company Arts/ Nova Zelândia). No workshop “Conductors: creating filmic narrative through body gestures”, executamos diferentes séries de movimentos, em estudos coreográficos, principalmente em duplas. As investigações corporais orientadas por Belton, com sua capacidade, generosidade e experiência de artista há anos dedicado à relação entre audiovisual e gestualidade, foram criadas para prolongar o corpo no espaço e para entender como articulamos os gestos para produzir significados narrativos. Nestes exercícios, o corpo foi pensado em relações de condução e recepção. A linguagem do corpo foi discutida de acordo com o meio acústico para o espaço da tela, sempre pensando na premissa do workshop que visava demonstrar a clareza do gesto como condutor de narrativas.

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Figuras 11 e 12: Imagens brutas das gravações demonstram relações de condução e recepção enfatizadas nos exercícios em duplas, feitos em workshop de Daniel Belton.

A partir de técnicas audiovisuais apresentadas por Belton, de sobreposição de imagens de diferentes naturezas estéticas – como coreografias e formas geométricas - na ilha de edição crio três camadas de vídeo. Em cada camada utilizo diferentes velocidades, principalmente ralentando entre 40% e 60% a gravação. Com estas imagens, componho o efeito poético de ar, vento e leveza, a partir de modo de adição de imagens em software Final Cut Pro. Também saturo as cores, das quais se destacam o verde, o vermelho e o amarelo; e contrasto os vídeos com diferentes gradações, para levar as sobreposições ao efeito de tridimensionalidade. Com a mesma execução em diferentes velocidades e tonalidades, percebo as inúmeras formas surgidas da sobreposição dos elementos utilizados na cenografia de Qi.

Figura 13: resultado final de camada visual com sobreposição de diferentes instantes de execução de movimento

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Figura 14, 15 e 16: diferentes instantes de movimento, resultado de variações de velocidades na imagem.

Essência sincrética em camadas sonorovisuais Com a mudança de velocidade dos vídeos, o áudio original da performance executada para as câmeras tem duração curta e não suficiente para influenciar na percepção da imagem em movimento. Adiciono, então, sons de bowls tibetanos e poucos segundos de sons ambientes captados na mesma locação e ocasião de gravação de cena de ave de rapina, no documentário “Paragem do Tempo”4. Cada camada de áudio deverá servir para conduzir uma camada de imagem equivalente. Há o estrato de natureza, representado pelas inesperadas rajadas de vento, com alguns momentos mais silenciosos e sutis assobios de pássaros; há a camada de espiritualidade e transcendência, representada pela repetição das batidas do bowl tibetano; e há a camada de intensidade do improviso do movimento, que surgirá no momento em que começo a levantar para dançar, embalada pela do tom “agudo” inicial da improvisação da violinista Rachel Chen. Chego, então, a uma poética fundada na relação entre corporalidades femininas sonorovi___________________________________________________

Som direto captado pelo artista sonoro Cristiano Scherer para o documentário. Utilizo trechos de captação em fades sonoros para criar continuidade sonora ao elemento sonoro natural.

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suais performáticas e elementos da natureza através de poucos recursos de pós produção. Vale salientar que lapido esta forma depois de muitos exercícios executados durante o aprendizado do workshop e de alguns anos buscando traduzir a palavra leveza na dança com objetos cênicos relacionados com o elemento ar. Esses aspectos são somados na hora de orquestrar com precisão e presença plena a forma de Rachel tocar o violino com acuidade. Pois a busca da linguagem corporal executada em Qi surge antes, em pesquisa realizada no processo de instauração de poética de trilogia de performances criadas para #LiveLivingPerformanceProject5 um trabalho multimídia que aborda o vínculo entre os elementos da natureza – fogo, ar, água e terra - e arquétipos das mitologias femininas afro-brasileiras e indígenas. A gravação de Qi acontece também depois de três semanas de trabalho corporal desenvolvido em estágio de pesquisa no exterior, na LASALLE College of the Arts, onde foi realizada apresentação de Performance do Despertar6, a convite do professor Dr. Steve Dixon, presidente da mesma universidade. Nessa experiência de pesquisa laboratorial teórico-prática tive a oportunidade de entender o significado anglo-saxão da palavra performance a partir da experiência. Percebi como o improviso inerente à situação de vulnerabilidade da performance só torna-se potente após muito esmero de execução dos movimentos com método pois é a partir desta premissa que a exatidão da expressão torna-se poética e comunica uma narratividade e conecta-se aos estados emocionais do público. Presença espelhada: performance Qi aconteceu sem ser previsto. No dia de gravação das imagens para a exposição coletiva que realizaríamos, resolvo levar figurino utilizado em Performance do Despertar. Chegando ao local de gravação, uma coincidência que no mundo da arte acontece como um momento de magia: estruturas circulares, brancas estão no cenário. São peças utilizadas em trabalhos da Good Company Arts, trazidas por Belton para utilizamos nos exercícios. Coincide que utilizo forma semelhante em Performance do Despertar. A peça que utilizo, projetada em colaboração com a diretora de arte e pesquisadora de cor Laura Carvalho, representa o elemento vento e tem a cor vermelha, que simboliza o Orixá Iansã, personificação feminina da mulher guerreira e ativa, da serenidade dos ventos e da força das tempestades. Também vejo que Rachel trouxe seu violino. Converso com ela rapidamente. Só digo: dançarei com estas formas circulares e você improvisa com seu violinos. Ela concorda e a sinergia acontece. Também será obra do acaso o fato de que a superfície que utilizo em Performance do Des___________________________________________________ 5 6

Informações sobre o projeto disponíveis em: http://carolinaberger.com.br/live-living-performance-project/ . http://carolinaberger.com.br/performance-do-despertar/ .

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Figura 17: Espelhamento de rostos de performers. Efeito de pós-produção possível através de modo de composição de adição de imagens possível graças à transparência das figuras brancas quando colocadas em camadas.

pertar e as estruturas circulares brancas representarão, em contextos diferentes, a não dualidade e o espelhamento que a presença sincrética de uma performance faz-nos experienciar. E será mais surpreendente ainda ver, na edição do trabalho, o momento em que tiro de meu rosto e estendo um destes círculos que transforma-se no rosto de Rachel. Somos, então, espelho uma da outra, no mesmo instante, na mesma forma, na mesma teia que a arte fez-nos cair para oferecer ao público. Performar a quantidade sem fim Foi analisando segundo a segundo o vídeo de como a obra aconteceu que descobri a harmonia do instante de improviso entre corpo e som. Naquela experiência de minutos de movimento oferecido ao vento, embalados pelo som das cordas mais leves e precisas de um violino que por acaso ali estava, que a performance e sua relação com o cinema corporal fez sentido. Vislumbro que performar para a câmera é antes conhecer as possibilidades expressivas das imagens técnicas audiovisuais. Por isso, da energia vital irradiada de um experimento entre o som e a busca do gesto da leveza surgiu Qi ( 氣 | 气 | 気) . Concluo, após as surpresas do acaso que Qi é o primeiro vídeo monocanal produzido no contexto da obra multimídia #LiveLivingPerformanceProject, uma jornada inesperada de resultados que surgem sempre no porvir que muitas vezes parece uma quantidade sem fim de processos de

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descobertas do que existe entre nós, a natureza, a tecnologia e a arte.

Figura 18: Imagem que demostra conexão corporal visível entre movimentos das performers.

É o que chamarei de modalidade de presença sincrética, possível em performances audiovisuais e performances multimídia. É o espaço que está em todos e entre todos, pois relaciona-se com o que tudo permeia, interliga, conecta e torna, de forma fluida, natureza, corpo-mente e tecnologia uma só expressão da experiência humana do estar e da leveza de vir sempre a ser. Visualização do vídeo Qi (clique na imagem abaixo para iniciar a exibição)

Links: http://carolinaberger.com.br/video/氣-气-気/ ou https://vimeo.com/137357078

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Sobre artista Rachel Chen: Violinista, pianista e compositora de Singapura. Com forte background clássico, ela descobre ritmos que influenciam seu trabalho como o jazz, a música experimental, eletrônica e o folk durante sua estada nos Estados Unidos. Explora instrumentos clássicos e busca pela liberdade expressiva do improviso musical. Raquel acredita que as melhores obras sonoras vem da espontaneidade e da exploração e sempre busca estender as potencialidades da música instrumental. Ficha técnica Qi (氣 | 气 | 気) Performance | Corpo: Carolina Berger (Brasil) Performance | Violino: Rachel Chen (Singapura) Pós-Produção: Carolina Berger Produzido no SoundIsland Festival 2015 | Daniel Belton’s Workshop Financiamento de pesquisa (Carolina Berger): FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) – Projeto de doutorado | Projeto de doutorado “Poéticas de corpos duplicados em audiovisualidades performativas: presença e expansão do dispostivo técnico cinematográfico” Financiamento em Singapura: Good Company Arts (www.goodcompanyarts.com) School of Art Design Media New Zealand Art Council Creative New Zealand SoundIslands Festival Exibições: Estreia internacional: SoundIsland Festival | ArtScience Museum (Singapura) | Agosto de 2015 Estreia no Brasil: Canal Alt AV | Rede de Adiovisual Alternativo, no Festival Telas ou o 2º Festival Internacional de Televisão | no espaço OCA | Parque Ibirapuera | Novembro de 2015

Referências bibliográficas ARTAUD, Antonin. O Teatro e o seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993. ASCOTT, Roy. Sincretic Reality: Art, Proccess and potentiality. Em Revista Digital de Tecnologias Cognitivas (TechCogs). Edição 2 - Jul/Dez 2009. PUC SP: Programa de Pós-Graduação em Tecnologias da 152

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Inteligência e Design Digital (TIDD) http://www4.pucsp.br/pos/tidd/teccogs/artigos/2009/edicao_2/ 1-syncretic_reality-art_process_potentiality-roy_ascott.pdf KOZEL, Susan. Closer: performance, technologies, phenomenology. Cambridge: Massachusetts Institute of Technology (MIT), 2007. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de presença: o que o sentido não pode transmitir. Rio de Janeiro: Editora PUC RIO, 2010. DIXON, Steve. Digital performance: a History of New Media in Theater, Dance, Performance Art, and Instalation. Cambridge: The MIT Press, 2007. PASSERON, René. Pour une philosophie de la creation. Paris: Klincksieck, 1989. SALTER, Chris. Entangled: technology and the transformation of performance. London: The MIT Press, 2010. VERGER, Pierre. Notas Sobre o Culto aos Orixás e Voduns. São Paulo, EDUSP: 1999.THEODORO, Helena. “Iansã: rainha dos ventos e das tempestades”. Rio de Janeiro: Pallas, 2013. VALÉRY, Paul. Degas, dança, desenho. Cosac&Naif, 2003.

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Ângulo de guinada (Angle of Yaw, de Ben Lerner) por Ellen Maria Martins de Vasconcellos

Ângulo de guinada

Tradução da obra Angle of Yaw, de Ben Lerner Ellen Maria Martins de Vasconcellos1 Universidade de São Paulo

Resumo: Os textos traduzidos foram retirados do livro Angle of Yaw, publicado em 2006, uma mescla de reflexão filosófica sobre a comercialização do espaço público, prosa sobre o valor da arte contemporânea, sequências líricas e poesia experimental. Ben Lerner nasceu em 1979, no Kansas, Estados Unidos. É autor de The Lichtenberg Figures (2004), Angle of Yaw (2006), Mean Free Path (2010), Leaving Atocha Station (2011) e 10:04 (2014). Estação Atocha foi publicado em português, pela editora Rádio Londres (2015). Ângulo de guinada está previsto para ser publicado em breve (tradução minha). Palavras-chave: arte; cultura; televisão. Abstract: Los textos traducidos fueron retirados del libro Angle of Yaw, publicado en 2006, una mezcla de reflexión filosófica sobre la comercialización del espacio público, prosa sobre el valor de la arte contemporánea, secuencias líricas y poesía experimental. Ben Lerner nació en 1979, en Kansas, Estados Unidos. Es autor de The Lichtenberg Figures (2004), Angle of Yaw (2006), Mean Free Path (2010), Leaving Atocha Station (2011) e 10:04 (2014). Estação Atocha fue publicado en portugués, por la editorial Rádio Londres (2015). Ângulo de guinada pronto será publicado (mi traducción). Key words: arte; cultura; televisión.

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Mestranda em literatura hispano-americana na Universidade de São Paulo. Orientador: Pablo Fernando Gasparini. Investiga narrativas literárias contemporâneas e suas relações com as imagens e formatos televisivos. É autora do livro bilíngue de poemas “Chacharitas & gambuzinos”, pela editora Patuá. Faz traduções literárias e não literárias. 1

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Tradução: LERNER, Ben. Angle of Yaw. Copper Canyon Press, Washington, 2006. Ângulo de guinada O PRIMEIRO CONSOLE DE JOGOS foi a chama domesticada. Os videogames contemporâneos permitem selecionar o ângulo desde onde se vê a ação, inspirando uma sucessão de massacres escolares. Os jogos novos, que usam pequenas pinceladas para simular o reflexo da luz, resultam quase ininteligíveis para os jogadores de mais idade. Em nossos simuladores, abstraímos o aeroplano com a esperança de manipular o voo como tal. Os macetes, códigos secretos que transformam a personagem em invisível ou rica, mudam o clima ou permitem pular de fase, são ao videogame o que é a prece ao mundo real. As crianças, chegada a hora, tentarão aplicar os macetes ao mundo fenomênico. Aperta pra cima, pra baixo, pra cima, pra baixo, esquerda, direita, esquerda, direita, a, b, a, para que saia o sol. Esquerda, esquerda, b, b, para manter-se aquecido. VALORIZAVA A PINTURA ATÉ O PONTO de renunciá-la. Valorizava a renúncia até o ponto de seguir pintando. A figura até o ponto de abstrair. A abstração até o ponto de insinuar o busto. O busto até o ponto de pedir a modelo que se retire. Mas eu vivo aqui, disse a modelo. Eu valorizo isso, disse o pintor. Mas valorizo o valor até o ponto de insistir. A insistência até o ponto de dar a outra face. A outra face até o ponto de colocar a outra. Daí até que pareça que estou dizendo Não com a cabeça. AS MINÚSCULAS PARTÍCULAS DE ESCOMBRO EM QUEDA LENTA forçam a evacuação do conceito. A que altura o olhar se torna global? O temerário mete a cabeça na câmera, provocando uuhs e aahs. Penduramos voluntariamente nossa desconfiança nas cordas para poder manipulá-la desde o alto. NO DESENHO ANIMADO, O CACHORRO dispara uma arma, corre com o carro e espera a bala com a boca aberta. Pequenas e contínuas mudanças na decoração produzem uma ilusão de movimento. No lugar de ereções, brotam contusões encefálicas. Reduzido todo o resto a uma pilha de cinzas, os olhos do gato travesso seguem aí, piscando. A contiguidade substituída pela substituição: você amassa o pato com uma frigideira e ele se transforma em frigideira. O urso, indiferente, apalpa o peito baleado. O imenso presunto que organiza a ação do episódio não pesa nada, parece se escorrer e por fim, é devorado por um rato. O café da manhã mais comum, a carne do sanduíche, é de desenho animado. O menino ator que trabalhou em frente ao dragão estará ferido a vida inteira. Abri os olhos. Você segue abraçado à dinamite.

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ANTES DA INVENÇÃO DO CINEMA, ninguém se movia. Chuva como uma cortina de miçangas. Neve como a ausência de neve. Deixe de colocar sua boca em minhas palavras, lhe disse ao oficial antes de cair em seus braços. Amor pelo uniforme no lugar de amor uniforme. Baixe a voz na igreja, diminua a letra em um poema. Não já uma espada sustentada por um fio de cabelo, mas uma mina detonada por um cabo. À meia noite, a pergunta se torna retórica. O engenho tem pai? Na época da reprodutividade técnica, pode haver algum pecado original? LER É IMPORTANTE porque te obriga a baixar a vista, um gesto de contrição. Quando a página passa ao plano vertical, se transforma em publicidade, decreto e/ou a imagem de um menino perdido ou de um animal. Costuma-se dizer que os textos em vertical se dirigem ao público, quando, em rigor, ao não ensinarmos a humildade, que é requisito da vida em comum, convocam o narcisismo das massas. Quando você olha vitrines, quando você quebra em cacos o vidro de uma loja, você vê sua própria imagem refletida. SONHAMOS COM UMA CHUVA que, em lugar de cair, se espalha paralela à terra. Lâmina sobre lâmina de chuva. Logo uma chuva voltada para cima, que surja a uns poucos centímetros do solo. Alguém poderia se colocar debaixo da chuva e olhar. Com a desaparição do espaço público, sonhamos uma chuva que tenha lugar em interiores. Uma chuva em miniatura limitada a um quarto, uma parede, uma caixa. Logo sonhamos neve. SE ESTÁ PENDURADA NA PAREDE, é um quadro. Se está no piso, é uma escultura. Se é muito grande ou pequena demais, é arte conceitual. Se faz parte da parede, se faz parte do piso, é arquitetura. Se precisa pagar entrada, é moderna. Se você já está dentro e tem que pagar para sair, é ainda mais moderna. Se é possível estar dentro sem pagar, é uma armadilha. Se está movendo, já passou de moda. Se é preciso levantar os olhos, é religiosa. Se é preciso abaixar os olhos, é realista. Se já foi vendida, é que foi criada especialmente para o espaço. Se para poder vê-la, você tem que passar por um detector de metais, é pública. O HOMEM OBSERVA A AÇÃO NO CAMPO DO JOGO através do pequeno televisor que trouxe ao estádio. Sem camiseta, o torso dourado, leva peruca. Seu exagerado dedo indicador de espuma assinala a tela gigante sobre a qual projeta sua própria imagem, modelo de fanatismo. Agora observa sua própria imagem observando sua própria imagem em sua TV portátil em sua TV portátil. De repente,

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se coloca de pé com os braços para o alto e dá inicio a uma ola destinada a consumi-lo. A DIFICULDADE INERENTE AO JOGO reside exclusivamente no enigma do objetivo. Perdem-se pontos por matar civis, mas os pontos não têm a menor importância. O ouro compra os homens. As crianças, se perguntamos a elas, negam a mediação do joystick ou ignoram a pergunta. Com frequência nos é permitido voltar fases já superadas para buscar cogumelos. O SOLDADO DO FILME pede ao público que descreva suas feridas. Sem advertir que não tem pernas, tenta sair do quadro. O que importa é a forma, não o conteúdo do subministro aéreo, a maneira em que alude ao maná. Então me mate, suplica. Os soldados ativos atuam como atores, os atores inativos atuam como soldados, os espectadores vomitam em seus refrigerantes gigantes. Dança, lhe digo, apontando aos pés. Pensa, lhe digo, apontando à cabeça. A multidão se desmembra. Agora estou deitado de costas, fazendo um anjo, esperando não a margarina e a propaganda, mas a máquina fluorescente que retarda sua queda. O SOL SE PÕE NUM SENTIDO TORTO, subtraindo alinhamentos da pedra da paisagem, tingindo de um vermelho vívido o vermelho o vermelho – o texto salta. O autor sonha com cortar um adjetivo e colocá-lo detrás da orelha do leitor, como se fosse uma flor. Cortar também como uma flor e colocá-lo no leitor detrás da orelha como se fosse uma flor. NOSTÁLGICO DE NASCIMENTO, O ARTISTA PROPÕE um retorno à desesperação. Instala-se em seu freezer. O crítico sustenta que não é um pelo de verdade, que pelo de verdade é incapaz de fazer isto. Em que momento, pergunta o crítico, você se deu conta de que o sangue era falso? Já chegando à metade da transfusão, quando começou a dizer um monte de baboseiras. Sobre a capacidade formal de eleição? Sim, como você soube? Trabalhei como artista durante a guerra. É DIFÍCIL DISTINGUIR ENTRE A QUEDA das torres e a imagem das torres caindo. A influência das imagens supera com frequência a dos acontecimentos assim como o filme do Pollock é mais influente que as pinturas do Pollock. Mas o poder de uma imagem se desgasta com cada repetição, produzindo inquietação e reinversão simbólica. É possível então estipular valor a uma imagem que não o tem.

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Pode uma imagem ser heroica? Não, mas pode afirmar uma distância a respeito do acontecimento que ostensivamente retrata; isto é, pode se declarar acontecimento por direito próprio, impedindo assim todo o investimento futuro. O crítico observa a imagem das torres caindo. Lembra cada vez menos das torres caindo cada vez que observa a imagem das torres caindo. O crítico sente culpa ao ver a imagem como obra de arte, mas a culpa provém do erro cognitivo de não saber distinguir entre o acontecimento e o acontecimento da imagem do acontecimento. A imagem das torres caindo é uma obra de arte que pode ser rejeitada, como qualquer outra, por embarrar aquilo que ostensivamente retrata. [Por regra geral, se uma representação das torres caindo pode ser repetida, não será realista. FORMALISMO É A CRENÇA de que o olho violenta o objeto que apreende. Todos os formalismos são, portanto, tristes. Um formalismo negativo se encarrega da violência inerente ao seu método. O formalismo é, portanto uma prática, não uma essência. Por exemplo, um silogismo submetido a um sistema de substituições nos permite apreender a experiência da lógica no preço da lógica. Os formalismos negativos catalisam uma experiência da estrutura. A experiência da estrutura é triste, mas ao revelar a contingência do conteúdo, autoriza a esperança. Esta é a função da obra de arte – autorizar a esperança, mas a condição mesma de possibilidade desta esperança é a impossibilidade de seu cumprimento. O valor da esperança é que não tem valor de uso.

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A esperança é o mais triste dos formalismos. O olhar do crítico é uma polêmica sem objeto que busca unicamente uma superfície onde despregar suas próprias contradições internas. Se as condições o permitem, um desenho pode então se tornar significativo, mas só em função da busca crítica da significação. Não se trata de que a significação seja mera aparência. A significação é real, mas transitória. De fato, a mera aparição de significação é significativa. Chamamos de política.

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Angle of Yaw THE FIRST GAMING SYSTEM was the domesticated flame. Contemporary video games allow you to select the angle from which you view the action, inspiring a rash of high school massacres. Newer games, with their use of small strokes to simulate reflected light, are all but unintelligible to older players. We have abstracted airplanes from our simulators in the hope of manipulating flight as such. Game cheats, special codes that make your character invincible or rich, alter weather conditions or allow you to bypass a narrative stage, stand in relation to video games cheats on the phenomenal world. Enter up, down, up, down, left, right, left, right, a, b, a, to tear open the sky. Left, left, b, b, to keep warm. HE HAD ENOUGH RESPECT FOR PAINTING to quit. Enough respect for quitting to paint. Enough respect for the figure to abstract. For abstraction to hint at the breast. For the breast to ask the model to leave. But I live here, says the model. And I respect that, says the painter. But I have enough respect to insist. For insistence to turn the other cheek. For the other cheek to turn the other cheek. Hence I appear to be shaking my head No. MINUTE PARTICLES OF DEBRIS IN SLOW DESCENT force evacuation of the concept. At what altitude does the view grow comprehensive? The daredevil places his head in the camera, eliciting oohs and aahs. We have willingly suspended our disbelief on strings in order to manipulate it from above. THE DOG IN THE CARTOON shoots a gun, overtakes the bullet in a car, and awaits it with an open mouth. Slight, continuous changes in the shapes of the scenery give the illusion of motion. In lieu of erections, sprouting cephalic contusions. Otherwise reduced to a pile of ash, the eyes of the mischievous cat remain, blinking. Contiguity substituted for substitution: flatten the duck with a frying pan and he becomes a frying pan. The bear indifferently fingers the holes in his chest. The giant ham around which the episode is organized weighs nothing, appears slippery, and is ultimately swallowed by a mouse. The popular breakfast sandwich is made of cartoon flesh. The child actor who worked opposite the dragon is scarred for life. Open your eyes. You’re still holding the dynamite. BEFORE THE INVENTION OF MOVIES, nobody moved. Rain like a curtain of beads. Snow like the

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Ângulo de guinada (Angle of Yaw, de Ben Lerner) por Ellen Maria Martins de Vasconcellos

absence of snow. Quit putting your mouth in my words, I said to the officer, before falling into his arms. Love of the uniform in lieu of uniform love. Lower your voice in a church, decrease your font in a poem. Not a sword suspended by a hair, but mine triggered by a wire. At midnight, the question turns rhetorical. Does invention have a father? In an age of mechanical reproduction, is any sin original? READING IS IMPORTANT because it makes you look down, an expression of shame. When the page is shifted to a vertical plane, it becomes an advertisement, decree, and/or image of a missing pet or child. We say that texts displayed vertically are addressed to the public, while in fact, by falling to teach us the humility a common life requires, they convene a narcissistic mass. When you window-shop, when you shatter a store window, you see your own image in the glass. WE DREAM OF RAIN that, in lieu of falling, moves parallel to the earth. Sheet after sheet of rain. Then an upward rain that originates a few feet off the ground. You can get under the rain and watch. With the disappearance of public space, we dream a rain that’s moved indoors. A miniaturized rain restricted to one room, one wall, a box. Then we dream snow. IF IT HANGS FROM THE WALL, it’s a painting. If it rests on the floor, it’s a sculpture. If it’s very big or very small, it’s conceptual. If it forms part of the wall, if it forms part of the floor, it’s architecture. If you have to buy a ticket, it’s modern. If you are already inside it and you have to pay to get out of it, it’s more modern. If you can be inside it without paying, it’s a trap. If it moves, it’s outmoded. If you have to look up, it’s religious. If you have to look down, it’s realistic. If it’s been sold, it’s sitespecific. If, in order to see it, you have to pass through a metal detector, it’s public. THE MAN OBSERVES THE ACTION ON THE FIELD with the tiny television he brought to the stadium. He is topless, painted gold, bewigged. His exaggerated foam index finger indicates the giant screen upon which his own image is now displayed, a model of fanaticism. He watches the image of his watching the image on his portable TV on his portable TV. He suddenly stands with arms upraised and initiates the wave that will consume him. THE INHERENT DIFFICULTY OF THE GAME rests exclusively in the obscurity of its object. Points are taken away for killing civilians, but points are irrelevant. Gold earns you extra men. Children, if questioned, deny the mediation of the joystick or fail to hear the question. Often we are permitted to return to levels we’ve surpassed to search for mushrooms.

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THE SOLDIER IN THE FILM asks the audience to describe his wounds. Unaware his legs are elsewhere, he attempts to walk out of the screen. What matters is the form, not the content, of the airdrop, how it alludes to manna. Then kill me, he begs. Active soldiers act like actors, inactive actors act like soldiers, audience members vomit in their giant sodas. Dance, I say, aiming near his feet. Think, I say, aiming near his head. The crowd dismembers. Now I’m on my back, making an angel, awaiting not the peanut butter and propaganda, but the flowering apparatus that retards its fall. THE SUN SETS IN A WEAK SENSE, striking conjunctions of rock from the view, imparting a vivid red to the red to the red – the text is skipping. The author dreams of cutting an adjective and tucking it behind the reader’s ear like a flower. And cutting like a flower and tucking it behind the reader’s ear like a flower. BORN NOSTALGIC, THE ARTIST PROPOSES a return to despair. He installs himself in your freezer, The critic argues it is not real hair, that real hair could never do this. At what point, asks the critic, did you realize the blood was fake? About halfway through the transfusion, when he began to talk a bunch of bullshit. About the formal capacity for choice? Yes, how did you know? I worked as an artist during the war. IT IS DIFFICULT TO DIFFERENTIATE between the collapse of the towers and the image of the towers collapsing. The influence of images is often stronger than the influence of events, as the film of Pollock painting is more influential than Pollock’s paintings. But as it is repeated, the power of an image diminishes, producing anxiety and a symbolic reinvestment. The image may then be assigned value where there is none. Can an image be heroic? No, but an image may proclaim its distance from the event it ostensibly depicts; that is, it may declare itself its own event,

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and thereby ban all further investment. The critic watches the image of the towers collapsing. She remembers less and less about the towers collapsing each time she watches the image of the towers collapsing. The critic feels guilty viewing the image like a work of art, but guilt here stems from an error of cognition, as the critic fails to distinguish between an event and the event of the event’s image. The image of the towers collapsing is a work of art and, like all works of art, may be rejected for soiling that which it ostensibly depicts. As a general rule, is a representation of the towers collapsing may be repeated, it is unrealistic. FORMALISM IS THE BELIEF that the eye does violence to the object it apprehends. All formalisms are therefore sad. A negative formalism acknowledges the violence intrinsic to its method. Formalism is therefore a practice, not an essence. For example, a syllogism subjected to a system of substitutions allows us to apprehend the experience of logic at logic’s expense. Negative formalisms catalyze an experience of structure. The experience of structure is sad, but, by revealing the contingency of content, if authorizes hope. This is the role of the artwork – to authorize hope, but the very condition of possibility for this hope is the impossibility of its fulfillment. The value of hope is that it has no use value. Hope is the saddest of formalisms. The critic’s gaze is a polemic without object and only seeks a surface upon which to unfold its own internal contradictions. Conditions permitting, a drawing might then be significant,

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but only as a function of her search for significance. It is not that the significance is mere appearance. The significance is real but impermanent. Indeed, the mere appearance of significance is significant. We call it politics.

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