MO
VIMENTO RÁPIDO DOS
OLHOS katrina vanfeal
MO VIMENTO RÁPIDO DOS
OLHOS
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MOVIMENTO RÁPIDO DOS
OLHOS
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MO V I
katrina vanfeal
MENTO RÁPIDO OLHOS
DOS
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Às vezes tenho a impressão de que surjo do que escrevi, como uma serpente surge da sua pele. — Enrique Vila-Matas Algumas pessoas jamais enlouquecem. Meu Deus, como deve ser horrível a vida delas. — Charles Bukowski
1° capítulo
Não diria exatamente que PODERIA ser um sonho a ser realizado, até porque, não tinha exatamente um sonho ou uma meta, nem mesmo um rascunho de um desejo que aos poucos é esquecido. Mas era bom & era o que lhe bastava para acreditar que aquilo poderia ser chamado, então de sonho ou qualquer coisa que fosse boa o suficiente para não ser real. Começou quando (não tinha exatamente um começo, mas apenas a percepção de que algo que já estava se transcrevendo, enquanto suas pálpebras caíam sobre os seus olhos, afundando em movimentos lisérgicos por minutos, até que se afogasse & voltasse do mundo dos mortos, bocejando pela casa com os olhos semiabertos) acabara de acordar — depois de mais um dia de trabalho. Um descanso de 2 horas numa cama em que não sentia a necessidade de trocar os lençóis há mais de 4 meses — e percebera que algumas cartas se encontravam espalhadas sobre seu sofá (será que já estavam ali quando chegou? Será que foram postas durante o sono?). Até onde se lembrava, os correios não entravam em casas trancadas e acorrentadas de pessoas neuróticas, com mania de perseguição
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(mas ele só tinha medo de infartos fulminantes, abduções alienígenas, amnésias repentinas e de pessoas com mais de 70 anos ainda vivas) e deixavam correspondências sobre sofás empoeirados e rasgados por unhas afiadas de felinos com tendências satânicas (a combinação dos fatores mataria qualquer carteiro alérgico).
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E por mais que seus olhos cansados se recusassem a acreditar, o mais absurdo não era o número expressivo de cartas sobre seu sofá, datadas de muitos dias atrás, meses até, inclusive anos; mas o fato de não ser qualquer cobrança ou um equívoco, se tratando de qualquer homônimo (e ele sempre se sentira único). Conhecia bem aquela disposição de letras, a caligrafia lhe era íntima como se fosse sua (e não era. Era?). E era tão incrivelmente ele que poderia ser dele cada imagem descrita. Por um instante achou que estava ficando louco ao encontrar as pontes para sua memória destruídas (sendo a loucura um estado consciente de um nada interminável). Mas lembrou-se que em
breve começaria o noticiário e que o jantar precisava ser feito. A vida odeia ser simples.
2° capítulo Primeiro estágio I’ll dig your grave, we’ll dance and sing What’s saved could be one last lifetime — Pearl Jam, The Fixer
— Você acredita em vida após a morte? — Eu mal acredito na vida, pra te dizer a verdade. — Mas acredita em vidas passadas? — Aquela coisa de reencarnação, você quer dizer? — Exatamente, acredita? — Não muito, mas eu tenho uns problemas de memória, você já sabe: eu nunca deixo os outros esquecerem disso também, mesmo sempre me esquecendo. Então quando o lapso de
memória, aquele arrombo enorme, to falando aqueles buracos negros tridimensionais que engolem todos os fragmentos... você leu Hawkins
e sabe disso ...acontece de uma hora pra outra, eu esqueço essa vida. Aí tenho que viver outra, do zero, mas com esse mesmo corpo. Eu reencarno com o mesmo corpo, a alma é que vai mudando. Entendeu? — Você é louco. — Eu também acho. — Você gosta de cartas? — Só as de tarô. Por causa do destino.
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3° capítulo
Gosto de dizer que sou um escritor, olhar ao meu redor e ver sobre a mesa alguns dos meus livros já publicados; cada página, um não a algo: vida social, televisão, o futebol de final de semana e a internet (em seus primórdios, quando não descon-fiávamos do monstro que alimentávamos com nossos restos). Escrever é a arte de renegar. Parece tão pouco o que aceitei com os nãos que fui dizendo ao longo da minha carreira, que hoje me sinto um pouco nada. Alguns livros e alguma solidão satisfatórias, para uma vida tranquila, e inquieta para um ego que jamais se satisfaz com pequenas notas em jornais e resenhas frias, feitas para revistas com leitores tímidos que fingem que eu não sou eu, ou que sou eu e não gostaria de um elogio, naquela fila do caixa ou entre uma prateleira e outra na livraria. Minha assistente ri quando comento dos desencontros com leitores, onde sempre pontua meus pensamentos com a célebre frase: “Mas você é tão normal quanto eles, é de se esperar que passe despercebido mesmo.” Ela seria uma escritora perfeita se já não fosse a minha personagem perfeita, com sua tranquilidade até para me esbofetear na cama quando a insulto. Sempre a vejo como uma ilusão, um efeito pós-traumático de algum
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acidente que eu possa ter sofrido e por esse motivo não me permito ser visto ao lado dela. Qualquer gesto meu em direção a ela poderia ser visto por outrem como um gesto em direção ao vazio. Mas se ela fizesse a mesma coisa não estaria equivocada.
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Confesso que a solidão se tornou satisfatória, porque me conformei tão rápido, me era necessário enfrentá-la. Não era medo ou fraqueza, mas sou maior que o isolamento que me foi dado em vida, entendem? Falando em vida, há sempre o desejo de se tornar mais do que um best-seller ao lado dos romances adolescentes e os de autoajuda, o número um das revistas de maior circulação e sites mais acessados. Talvez ter seu livro na lista de leituras para o vestibular, ou ali num post de algum blog especializado em literatura. Livros esquecidos em sebos e encontrados por jovens enlouquecidos em busca dos mesmos, que pagariam qualquer coisa para me terem. Mas apenas terão pequenos excertos da minha essência e se conformarão com isso.
Queria também ser perguntinha de vestibular, essa coisa que decide a vida.
Prá isso, a gente dá o nome de ambição. Meu ego é insaciável.
Para estar entre os melhores, antes
de mais nada,preciso estar morto.
4° capítulo
Escrevo todos os dias para ela um poema, um conto ou até mesmo uma crônica (do meu dia de funcionário público do Estado, mal remunerado e completamente apaixonado por algo — ela — impossível aquisição porque ela, nossa, de todos). Sempre me elogia e diz que vou longe com aquelas palavras, tão longe quanto possa ser meus sonhos, não digo, mas são mais baratos que os da padaria. Ela desconfia das
batidas escancaradas do meu peito, disfarçadas pelas remessas de processos (kafkanianos) sobre a mesa, que titubeio em sua presença;
com um sorriso e alguns gestos que indicam “é, muito trabalho para pouco resultado” que ela ri, pela rima mais vagabunda que eu poderia ter feito e que poderia facilmente ser um sucesso nas rádios. Escondo dela que sei mais de Shakespeare do que as peças que ela já encenou um dia na sua juventude e que Keats sempre fora melhor que Byron — eu detestava —, mas ela gostava tanto que dera ao seu gato o mesmo nome, e jamais saberíamos que amor é aquele que morreria em doze anos e ficaria apenas nas lembranças. O nosso? Eu achava que a amava, essa era a verdade. Mas descobri ser apenas um pretexto para escrever todos os dias alguma coisa a alguém.
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Pra isso, a gente dá o nome de disciplina. Sempre escrevo eu te odeio a lápis, me arrependo e apago, e escrevo a caneta eu te amo. Um dia eu ainda pretendo não escrever mais nada. 22
5° capítulo
Trabalho de segunda a segunda e sorrio dizendo que se Bukowski (que era mediano, quase ruim) alcançou a glória eterna depois dos 50 (acredito),
eu ainda tinha tempo, não tinha?
Em mim, algumas rugas de noites em claro e muitas dívidas eram explícitas, um ótimo começo para um escritor (seguindo uma cartilha popular beatnik disponível para download). Acrescente a isso a incapacidade social de aproximação com o sexo oposto e a falta de prática com o manuseio de copos cheios de álcool. Conversas apócrifas com Dostoievski de bom humor, em dias que deus ex machina dava o ar de sua graça eram tão comuns quanto os insultos imaginados do caminho da padaria até minha casa devido à moça da fila do caixa (aquela vadia) que nunca me sorria. No máximo um bom dia, cabisbaixa, mas que não era verdadeiramente uma timidez (quase um flerte incomum) ou uma atração física não demonstrada. Ainda esfregaria em sua cara o sucesso do meu livro.
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E claro, a convidaria para jantar. Os papéis em branco espalhados pela casa eram um lembrete, bem claro, de que eu ainda seria um grande escritor. Mas quem se importa? Eu já era um escritor por QUERER ser um, e ninguém provaria o contrário, mesmo o desânimo e o meu desaparecimento (de mim mesmo) a cada página virada. O novo personagem
nunca era eu. 26
Pra isso a gente dá o nome de determinação. Em todos os livros a mentira era minha maior verdade. provaria o contrário, mesmo o desânimo e o meu desaparecimento (de mim mesmo) a cada página virada.
6° capítulo Segundo estágio I’m going out sleepwalking Where mute memories start talking — Elliot Smith, 2h45
Segunda-feira, ** de * de **** Escrever para blogs e andar sobre as mãos, mobilidade sobre o vácuo para quem tenta alcançar a superfície e respirar. Desisto e insisto nisso em arquivos diferentes, que se perdem num mar de gigabytes de um HD de 1 tera e que provavelmente jamais serão palpáveis, inércia da minha parte, confesso a vocês. A criatividade
se esvai pelas redes sociais, notificações de um lado, tweets de outro, coisas que me fazem ser um 4.0 num mundo 2.0. Se me apresentasse agora aos novos leitores (coisa que acho improvável no âmbito das impossibilidades que me cercam, arames elétricos em casas abandonadas, pensem a respeito disso se possível), pularia as formalidades (eu sou isso, eu tento mostrar que sou isso, eu vou querer ser isso um dia) e tentaria buscar junto a eles uma explicação, lógica, sobre o que tem acontecido a mim e afetado meu modo de escrever (escrever? Isso é DIGITAR meu amigo, HAHAHA). Algum tempo (me refiro a dias que mesmo juntos não formariam uma massa temporal, mas juntos são
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algo inclassificável) me deparei com alguém vindo do futuro. Ou vindo do meu passado (ou na pior das hipóteses, vindo da minha imaginação). Explicarei logo a seguir, mas friso que isso tem me atormentado ainda (já se passaram anos? Ou horas? Que seja) como algo que me conformei em não ter qualquer explicação tão logo aceitando como algo comum a todos, um dia na vida.
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Determinado dia (digamos assim) eu (sujeito estranho e suspeito) estava na fila da bilheteria do metrô: headfones & a filosofia de que eles me separam do mundo, imagens de um cinema mudo num universo com Dinosaur Jr distorcendo aquela realidade em cinco atos. Primeiro ato: Ela (terceira pessoa da fila) me reconhece. Segundo ato: o pescoço que se sobressai da linha reta de pessoas concentradas nos guichês, com o medo de perderem sua vez na fila & na vida. Terceiro ato: o olhar incrédulo (como
explicar a exatidão da incredulidade de um olhar? O espasmo dos lábios e das pequenas rugas que no rosto formam uma frase: Eu não acredito) e os pequenos movi-
mentos dos pés numa tentativa frustrada de evitar alguns passos até mim “não pode ser isso/ ele” (o corpo fala, o livro diz) e eu (sujeito agora indeterminado) permaneço preso na distorção das guitarras, que num movimento rápido dos olhos a viu com suas tímidas tentativas (já citadas) de se manter ali, fixa, próxima passageira assim como eu (estacionado) pensava.
Quarto ato: Me alcança na catraca e posso ouvir seus passos no intervalo entre Does it Float e Pointless*, então fixo meus olhos nela (ela, segunda pessoa do meu campo de visão que em, três segundos, primeira e única) que sorri (uma mecha de cabelo, que com a corrente de ar, consegue ficar entre os lábios e os dentes; estamos entre as catracas e a plataforma. Entre o vagão e o espaço vago dos trilhos, do destino final & inicial daquilo e de tudo) e diz algo (“The silence taps my elbow. It’s good, least that’s what she said” Percebo que não desliguei naquele instante “Repulsion”**) Desculpa, não consegui te ouvir. Não tinha desligado o som. Pode repetir? —
— Você
recebeu as cartas?
—
Que cartas, moça?
—
Desculpa, te confundi com outra pessoa.
— Tudo
bem, isso acontece sempre, pareço mais comum do que você imagina. —
Como?
—
Não foi a primeira vez, moça, pode ficar tranquila
— Posso —
pegar seu nome e seu endereço?
Prá quê?
* Faixas 4 e 5 do álbum Dinosaur Jr, do Dinosaur Jr. ** Trecho de Repulsion, sexta faixa do mesmo álbum
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— — —
Prá enviar as cartas.
Mas que cartas, moça?
Confie em mim. Aliás, meu nome é Melissa.
— Como confiar se eu nem te conheço? Por que me mandar cartas? É coisa de igreja? Moça, vamos passar logo as catracas, o trem já chegou.
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Quinto ato: passamos as catracas e ela me segura pelo braço, num gesto que impediria minha fuga. Minha mão agarra a dela, repelindo tudo aquilo que me impedisse de entrar naquele vagão, que ela, também entra, porque também é o seu, meu destino. Sentamos lado a lado e dejàvu, ela põe sua cabeça sobre meu ombro (que estranho, agradeço & sinto algo familiar) Seu nome é Arthur, a marca que fica bem no meio das suas costas foi de uma operação para correção da coluna aos 4 anos. Você tem alergia a girassóis, compra no atacado caixas de Diamante Negro que devora em 1 semana, mas não teve problemas com o peso ou
—
O primeiro livro que comprou foi Os sertões,
espinhas.
aos 15 anos. Nunca leu, deu para doação e hoje se arrepende. Sua compulsão é escrever e mesmo que abandone essa vida, na próxima, isso será sua obsessão e seu elo de ligação comigo. Eu sei que está assustado, mas só peço que me passe seu endereço, só isso. Peraí que eu tenho um papel e um lápis aqui na bolsa. (pausa dramática nesse momento, no qual ela fuça em sua bolsa colorida, enquanto eu planejo uma fuga na próxima estação & penso, talvez tenha falado, QUE PORRA É ISSO? Mas me calo, ela me passa o papel e o lápis e eu ajo como que por instinto, anoto meu
endereço de uma forma estranha, eu sinto que nunca fora meu real endereço, mas não me lembro de outro endereço no momento que não seja aquele, percebe a ironia neste comentário? É claro que isso não é normal, encaro como um sonho, um próximo estágio, onde os olhos se movimentam rápido e estamos suscetíveis tanto ao mundo dos sonhos quanto ao real. Trocamos um sorriso próxima estação, o alívio da partida dela, porque eu já estou partindo.) observações: Os acontecimentos são verídicos mas minha prosa não. Alguém sabe quanto tempo, em média, os correios entregam as cartas de um bairro para o outro?
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7° capítulo Terceiro estágio Old enough now to change your name When so many love you, is it the same? It’s the woman in you that makes you want to play this game. — Neil Young, Cowgirl in the sand
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— —
Eu queria saber o que o meu nome significa.
Mas isso não vai dizer o que você é.
Tem todo aquele misticismo em volta dos nomes, talvez isso explique porque sou tão confusa. —
Leia horóscopo, saem todos os dias no jornal e são fáceis de se encontrar. —
Queria que você fosse um pouco mais delicado às vezes comigo; mais companheiro, entende? —
Descubra o que o meu nome significa, aí você vai entender porque eu sou assim. Eu já disse que amanhã ou depois, eu não sei direito o quando, eu vou esquecer você. Pra quê ser teu companheiro e te ajudar nessas coisas? —
—
Se você esquecer, eu te faço lembrar. Não quer ser
—
Gostaria que as pessoas fossem assim, não eu.
inesquecível?
Você deveria escrever, sabia? Leva todo o jeito de escritor, todo pragmático e pessimista. — — — — — —
Às vezes eu penso nisso. Muito.
Escreve sobre essa vida, pra não me esquecer. Promete não rir? Do quê?
Eu nunca me esqueci de você.
8° capítulo
Existe uma história em minha cabeça emaranhada entre os fios do meu cabelo e a escova que insiste em desembaraça-los: Um homem que se lembra da sua vida até um certo momento e daquele momento em diante ele sempre se esquecerá dos fatos a partir de então. É como se a cada período ele renascesse (daquele momento crucial, que ainda não imaginei) e fosse capaz de refazer sua vida, ser outro homem com uma outra história. Finais alternati-
vos para histórias desastrosas. E é o que faz. A única
coisa que não consegue
esquecer é o fato de ser um escritor. Se em um período ele consegue lançar alguns
livros (mas não se sentir satisfeito com aquilo por motivos dos quais ainda não imaginei. Talvez nem existam, que escritor não ficaria satisfeito em ver seu trabalho publicado?) em outro ele tem a vontade de escrever mas nada o impulsiona além do mero desejo de ser escritor. Também há uma mulher, mesmo que nunca tendo perdido a memória não quer perder aquele homem. Ela o conheceu após o momento (do acidente?) e não consegue se conformar em ser
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esquecida por ele. Não sabemos (vou incluir aqui o nós, porque nem eu e nem vocês sabemos ainda) como se conheceram e o que foram no primeiro instante, em que ela teve certeza que jamais o esqueceria e por achar injusto (ou apenas um lance de orgulho, que a cada degrau a deixaria mais próxima de uma queda, quando um dos saltos quebrasse) não queria que ele a esquecesse tão facilmente. Então não se importa se nunca mais serão amantes ou amigos ou qualquer outra coisa, mas sua única exigência ao passar drástico dos anos é nunca ser esquecida por ele. Romantismo exacerbado? Sim, confesso. Inspirado nas novelas das bancas de jornais. Ela consegue sempre estar presente em sua vida de uma maneira ou outra, e para que ele jamais a esqueça, cria um método: o fará escrever cartas que enviará a ela (pensei num
diário, mas como ele
é alguém que
sempre terá esses lapsos e co-
meçará do ponto zero onde perdeu a memória, o acidente, talvez ele nem encontre ou saiba da existência de diários. Mas confesso que sempre gostei da ideia das cartas. Ela também pensa assim. Madame Bovary sou eu?) dizendo algo sobre ele, uma troca de correspondências, como aquelas antigas agências de encontro, ou aqueles romances de anúncios de revistas. Sou brega e cretino, hei de confessar.
9° capítulo Quarto estágio Honest when you’re tellin’ a lie You hurt her but you don’t know why You love her but you don’t know why Wilco, Misunderstood
As cartas sobre o sofá o impedem de qualquer fuga momentânea pelos cômodos da casa. Todas endereçadas a ele, CEP’s distintos cada uma, tanto de remetente quanto de destinatário, como se ele, além das cartas, também fugisse um pouco de tudo sem saber. Não fazia ideia de quem era Melissa, mesmo a caligrafia sendo tão familiar, mesmo sendo ele tão familiar aqueles descritos nas cartas, justo ele que evitava escrever e era apenas um leitor restritivo a grandes obras (poderia passar horas elogiando Proust de tal forma que seria vergonhoso aos ouvintes, mas para ele seria apenas uma pequena demonstração de uma inveja disfarçada de admiração), sempre evitando cair na ladainha desses novos escritores que querem mostrar todo o seu conhecimento em tão poucas linhas, mas apenas expõe uma pobreza de integridade com a literatura que é cansativa. Bocejava por tédio, sem ter algum fundo provocativo. A cada carta, uma persona tão mal escrita, uma vida mal detalhada. Não havia descrição do fim, nem do começo, era apenas aquela massa mediana ansiando por um fermento para que crescesse (mas ao pensar nessa metáfora, a conclusão que chegara era de que todos eram bolos de caixinha e aquilo não fazia sentido algum. As histórias e a sua metáfora).
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Melissa aparecia ali sempre presente nas descrições, de homens apaixonados por ela, mas apaixonados pelo o quê?
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Já na quinta carta seu tédio por aquela criatura sem emoções predominantes já era maior do que o tédio acumulado por todos os domingos à noite de sua vida. Cartas para que não se esqueçam dela? Ele a esqueceria na próxima esquina, ao atravessar a rua, como qualquer outra mulher que esbarrasse nele. Não sentiu nela nada comparável às grandes personagens da literatura que conhecera, mulheres inesquecíveis que moviam os leitores numa eterna jornada em busca delas em cada mulher que lhes cruzassem o caminho. Melissa era apenas Melissa, egocêntrica, mimada, e pelo jeito, uma péssima escritora. Se aquilo tudo PODERIA ser sua vida, seria injusto deixa-la nas mãos de Melissa. De qualquer jeito, era injusta qualquer maneira de vida desta forma, pensou. Brega e cretino, hei de confessar.
10° capítulo Rapid Eyes Moviment
—
Melissa?
—
Oi?
—
Odeio esses pesadelos.
—
Quer algum remédio, algo que amenize a sua
dor? —
Não, obrigado. Melissa?
— Diga. — Estou
dormindo?
—
Não, você está em coma.
—
Profundo?
—
O suficiente para se afogar.
—
Volto um dia?
— Sempre que quiser. Agora durma, meu querido.
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© Leticia Cruxen
katrina vanfeal
Este livro foi licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Brasil. © RapaDura Edições, 2011 © Katrina Vanfeal, 2011 Imagem de capa wikimedia commons Capa e miolo mauro siqueira Revisão gisele almérida
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ V113p Vanfeal, Katrina Movimento Rápido dos Olhos / Katrina Vanfeal ; Rio de Janeiro: RapaDura Edições, 2011. 52p. ; 12x21 cm ISBN 978-85-113-1989-9 1. Literatura brasileira contemporânea. 2. novela. I. Vanfeal, Katrina. II. Título. 11-0389
Os personagens e as situações descritas nessa obra fazem parte do domínio da ficção, não se referindo, assim, a pessoas e/ou fatos do âmbito da realidade.
Este livro foi composto em fonte Emblem, Caecilia LT e Adobe Calson Pro
CDD: 869.93