O cachorro provisório

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[4 ficções e 2 fragmentos]

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pra Ferdi, sempre



4 FICÇÕES GRAVIDADE APARENTE | 9 CORPO A CORPO SEM QUERER |13 O SILÊNCIO DA CHUVA PRENHE |19 O AMOR É UM MOINHO DE VENTO | 25

2 FRAGMENTOS CASO VOCÊ QUEIRA SABER | 33 O BRANCO DO CÉU (em progresso) | 37



4 ficções



GRAVIDADE APARENTE

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Algo desse terror se transformava em graça, em gestos fugidios, em puro desejo. — Julio Cortázar.

Os trinta segundos deram espaço para um dos canais contar apenas metade da notícia, editada até o talo na tentativa de deletar as intrusões. Após usar o cameraman robusto para abrir espaço por entre a multidão, a repórter, sem consultar nenhuma possível testemunha ocular ou mesmo alguém que estivesse por perto na hora do ocorrido, noticia a cena óbvia; as feições de curiosidade carnívora das pessoas em volta caíram bem de pano de fundo, acentuaram o drama. Uma grávida inserida no grupo de curiosos que se avolumou em torno do que a repórter chama sucinta de atropelamento fatal na plataforma inferior da rodoviária guarda para si uma interjeição por tido seu pé pisado na pressa da equipe de filmagem. Chega a murmurar algo para o homem ao seu lado, mas a cara de dor dele a faz conter as palavras no último momento; não só isso, contém palavras também por causa de

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alguém mais alto que no exato do contido gemido de dor se posta bem na frente dela tampando a visão da cena e o alcance da reclamação, raiva surda, muda e cega. O problema é o estrondo dos carros passando a toda na pista em frente, não deixa ouvir nada do que a repórter diz. Perdem pouco: as escoriações na cabeça do corpo estirado suprimem qualquer dúvida, obviamente um atropelamento e obviamente fatal. Quem pôde ouvir a repórter era quem estava mais distraído; o homem à esquerda da grávida estava mais perto da clareira em torno do acidente, encalhou no meio da multidão procurando um banheiro e no momento relê as escoriações na lataria do carro, parado enviesado, a roda dianteira esquerda engolindo o meio-fio. Quando a raiva pelo pé pisado e pela obstrução da vista estoura a represa do silêncio, a grávida emparelha à direita do homem alto e pergunta como é possível que um atropelamento destrua tanto a frente de um carro, ao que, a pretexto de perguntar onde fica o banheiro, o outro homem se intromete: pelo que ele viu do acidente, o lado direito do para-choque acertara o velho de raspão. A voz do motorista, recém-saído do carro, se submerge no barulho atrás de esconderijo e consegue, tanto é que, apesar da distância curta, a grávida e o alto só o veem gesticular violentamente, a boca desleixada sempre aberta, como se esquecida nesta posição. O homem multiplica a prestidigitação dos braços sem sucesso, ao tentar apoiar uma mão contra o ombro da repórter é avidamente repelido, ela


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deu um passo para trás e o cameraman faz menção de projetar o corpo levemente para frente: clara ameaça seriam as palavras que o atropelador usaria depois para caracterizar esta ação frente às câmeras de uma outra rede de televisão, a que se interessará por esta versão. Uma rede cujo repórter de campo demorou a chegar e cuja equipe de filmagem também pisa no pé da grávida. O porra amigo, toma cuidado, tem grávida aqui do homem alto confirma que o entendimento dele da irritação dela não precisou de palavras, e ainda foi reiterado por um pé displicente deixado no caminho do assistente de gravação para fazê-lo tropeçar. Funcionou em parte, não cai, tropeça, berra cambaleante ao cameraman para esperar por ele mas não é ouvido: mais um atraso em relação à emissora concorrente, cuja repórter já enfurecia a má vontade adquirida do atropelador com perguntas que ele considerou em testemunho posterior ao repórter concorrente ofensivas e tendenciosas. Enquanto isso, o homem de caminho extraviado e bexiga cheia pergunta à grávida onde fica o banheiro, ao que ela retruca irritada e é acalmada pelo alto o qual, ao indicar a ele a direção, tampa a sua própria visão e a da grávida com o braço e perde a reviravolta. O repórter atrasado tenta arrancar o atropelador dos tentáculos das perguntas da rival, deu sorte porque o corpo estirado no chão recobrou a consciência, engrolou uma sequência de consoantes e começou a reivindicar pontuação inverossímil. Contando o número de hematomas e estimando a

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extensão e a profundidade de arranhões, resmungando; o velho mal levantou e vira presa dos repórteres. O alto entabula com a grávida um pré-assunto sobre o aguçamento das sensibilidades física e emocional na gestação, pretexto para um convite para um caldo de cana ali na rodoviária mesmo, ela concorda: os dois se afastando notam cada vez menos o murmúrio, nem chegam a ouvir o velho ressuscitado contar para a câmera da aposta feita com um amigo, velho e desenganado também, ganha quem colecionar mais machucados sem morrer. Depois de prometer ao proprietário do carro pagar os danos e depois de acompanhar, como prometeu, o repórter ao estúdio para uma exclusiva na qual tentarão explicar como uma queda de uns cinco metros, da altura da marquise, não matou o velho; ele pretende ligar para o seu amigo, que alegou doença para não ir filmar a façanha do dia, e contar sobre o aumento da coleção e a consequente tomada da liderança. A repórter entrou no carro de reportagem brava, tendo, durante a desmontagem do tripé, o seu pé fincado por uma das hastes, culpa do cameraman.


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CORPO A CORPO SEM QUERER

uma sombra apocalíptica paira sobre a decisão de sair na rua em dias esquisitos: jogo do Brasil na Copa, carnaval, eleições, encontro de blocos, procissões, shows, manifestações e marchas; pedestres desgarrados, o tal do policiamento ostensivo modificando o traçado das ruas, o que era pista vira calçada, estacionam ambulâncias de sirene ligada em qualquer lugar, cercas de última hora não conseguem separar um lugar pros camelôs e um lugar para os festeiros, lixo, banheiro químico, lixo, cheiro de maconha, choro de bebês sentados em cima de ombros, flutuando acima das cabeças, sempre alguém vestido de gladiador ou só de bikini, com ou sem praia, crianças tentando fugir dos pais pra ir brincar com o spray de espuma, troca obrigatória de suores, tudo meio de raspão, grudento, obrigando a dar a volta, tudo, da manta de artesanato dos hippies à camisinha usada que é embaraçoso

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quando seu filho pergunta o que é, no caso, jogada na sarjeta da rua Vergueiro, altura Ana Rosa, no dia trinta e um de dezembro, às três da tarde, eu especificamente tentando romper o certo, entrar na estação de metrô e voltar pra casa, quando recebi uma ligação marcando na livraria dali a três horas, e aí deixou de fazer sentido ir pra casa pra depois voltar, decidimos ir andando até a livraria, passar num café, sei lá, fazer disso um passeio, a ideia teria sido ótima, se dia trinta e um não fosse dia de São Silvestre e não desse medo das pessoas cruzando sem camisa na frente do Pátio Paulista pra nos acompanhar avenida Paulista acima, às vezes de longe, às vezes esbarrando de propósito, principalmente quando as mesas daquele bar logo antes do Trianon invadem tanto a calçada que transborda pra pista, aliás, não foi nesse dia que eu descobri que dá pra entrar no edifício Royale, que ele tem dois três andares de galerias antigas e restaurantes baratos, com até uma cascata artificial de cinco metros de altura, lá dentro o tempo parado nos anos setenta, fora, enquanto tentávamos não encostar na multidão, o tempo nublado e calorento, pegajoso mesmo, até se a gente tomasse a decisão louca de não entrar na festa e não nos esfregar nas pessoas, que foi a que a gente tomou, a única coisa que a gente queria era chegar no ar-condicionado da livraria, mas antes ela precisava sacar dinheiro, e o banco dela não tem caixa eletrônico no Conjunto Nacional, atravessamos a rua, perfuramos a espessura de pessoas que já tinham se


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postado na calçada pra assistir à corrida, pessoas essas separadas da rua por aquelas grades, a gente teve que se esgueirar pra passar pra calçada e ainda atravessar o mesmo povo que tinha aproveitado o jardinzinho na frente da vitrine da agência como banheiro e lixeira, isso e mais dois mendigos escorados na vitrine, não se sabe se dormindo ou prontos pra atacar, me fizeram pensar que a agência talvez estivesse fechada, mas não, a porta inclusive cedeu fácil, não precisou daquela coisa ridícula que o banco dela tem de precisar passar o cartão numa ranhura pra liberar a porta e o ar-condicionado, que é a parte boa de ter driblado o público inteiro de uma maratona pra chegar ali, a parte ruim é que, vistos de dentro da parte dos caixas eletrônicos, tanto o jardinzinho quanto a vitrine não significavam nenhuma separação confiável entre a gente e esse público inteiro de maratona, e pra piorar eles estavam atentos na maratona e de costas pra agência, ignorância monumental, se a gente fosse assaltado, ninguém daria a mínima, nem o black power verde e amarelo que se destacava da maçaroca e ajudava a atrapalhar a vista da corrida, me fazendo ter de me distrair com as coisas do banco mesmo enquanto ela sacava o dinheiro, comecei a olhar em volta atrás de objetos abandonados de forma suspeita, talvez bombas dentro de lixeiras, nunca se sabe, ou talvez as câmeras estivessem desligadas e algum bandido sabia dessa informação interna, só sei que eu demorei a perceber as pernas de um corpo cujo torso

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se escondia atrás da divisória de um caixa eletrônico mais pra longe, corpo ansioso, era o que dava pra supor pelos tênis sujos, o da esquerda batucava o piso com alguma apreensão: aos onze anos eu li numa reportagem na Super Interessante sobre essa doença que os laboratórios estavam inventando, inventando não, convencendo as pessoas de que era uma doença: não era uma doença de verdade, era mais a sugestão psicológica, pra fazer as pessoas comprarem um remédio lá que eles tinham inventado, o nome é auto-explicativo, doença das pernas inquietas, até aí tudo bem, o assustador foi quando na semana seguinte eu li na Mundo Estranho, que era a Super Interessante pra crianças, na seção de cartas dos leitores, uma carta que dizia algo como tenho uma doença curiosa, minhas pernas não conseguem parar quietas, se quiser saber mais sobre essa doença estranha acesse o site xis, ou seja, toda uma teoria conspirando pra somar mais uma doença à longa lista de doenças adolescentes inventadas: pois bem, esse tênis batucante da agência poderia ser uma cobaia perdida de um desses laboratórios, que esqueceram de avisar do fim da missão, e isso o fez ficar preso na terra de ninguém, isso tudo, essa análise complexa de conjuntura, eu elaborei na hora lá, nos trinta segundos que demorou pro caixa automático dela pedir as senhas e entregar o dinheiro, que, não por acaso, foram os mesmos trinta segundos que eu levei descobrindo que é um velho o dono do pé inquieto, e que não para de olhar pra mim, repetidamente, pondo


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a cabeça pra fora da divisória do caixa eletrônico, me encarando e voltando para a tela, isso umas dez vezes, meio fissurado, meio tremendo todo, e se ele quisesse nos matar e vender nossos órgãos pra comprar craque, nenhum dos corredores do pelotão amador da São Silvestre ouviria, até porque reabilitaram as vuvuzelas, pra evitar a morte iminente que ninguém ouviria, eu parei de encarar, o que foi ainda mais assustador porque eu tive que começar a dar explicação pra uns movimentos estranhos visto só de rabo de olho, usei as mãos para formar um número, um valor qualquer, bem baixo pro caso de o cara nos abordar, ela não entendeu, não sei se o cara desconfiaria se eu sussurrasse pra ela, acharia meu próprio movimento freneticamente suspeito, escondi a cabeça atrás da divisória do caixa eletrônico e exagerei os movimentos da boca, sem fazer som, mas ela é ruim de leitura labial, daí eu usei as mãos pra praticamente arrastá-la pra fora da agência, deu tempo nem de apertar finalizar pra fechar a tela do caixa eletrônico, depois eu pensei: vai que o cara na verdade é um estelionatário e está ali instalando o chupa-cabra pra roubar as informações bancárias dos clientes, não olho pra trás conforme nos diluímos à multidão, o que pode ter sido ainda mais perigoso, só sei que, só uns três minutos depois, quando a gente chegou à calçada do outro lado, é que estourou o tiro que dá a largada dos competidores.

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O SILÊNCIO DA CHUVA PRENHE

A primeira reclamação foi da distância entre a varanda e o próximo prédio. Quarto em promoção, a vista só me chegava de lado; de frente, carcaças de ar-condicionado e vitrôs de banheiro aliviavam a inteireza do paredão de concreto. O ar do quarto meu irmão não demorou a ligar no máximo. Pediu para eu fechar a porta da varanda. Ao sair, o ouvi tossir, ouvi que abria o frigobar. Vingança diminuta, deixei a porta do quarto só encostada. Os quartos ficam só de um lado do corredor, do outro lado, o corredor se abre de fora a fora, com parapeito, mormaço e tudo. Me debrucei enquanto o céu ainda só prometia; a garoinha era daquelas sem nuvem, traspassada pelo sol e só uns chumaços mais escuros lá em alto mar, se aproximando. Caminhantes desviam com naturalidade de um jipe da polícia que lagarteia pelo calçadão, aproveitam o fim do expediente. Engarrafamento onde uma

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rua entronca na outra, estacionamentos em fila tripla, motoboys, camelôs, meninos, artistas, ninguém dá passagem, todas as buzinas pedem passagem; as filas ansiosas de carros encavalados, o calor que eu imagino dentro deles, o bafo que sobe do asfalto, as criancinhas competindo com o trânsito e com os celulares pra ver quem grita mais, tudo contribui pra agravar o mormaço, até a garoinha, que gruda na pele como um segundo suor. Engrossa. O trânsito é tão ruim quanto o sistema pluvial. Bueiros não demoram a gargarejar, riachos improvisados e poças alteram o traçado da rua e da calçada. Quase batidas. Buzinas esgoelam. Ônibus de raspão em calcanhares. Semáforos ignorados. Uma moto arranca cortando de um posto, toma a transversal que dá na Beira-mar. As pessoas que esperam ônibus ou só se abrigam quase são acertadas pela água que a moto levanta, dão dedo. O rosto sem capacete me dá a impressão de que se chama Josias. Mais abaixo, meninos e meninas dormem em papelões, mijam a descoberto, na parede externa do clube, pelo menos a luz favorece cada vez menos, camufla os meninos na tinta descascando e nos azulejos que faltam. Vejo umas oito piscinas, aulas de ginástica em uma sala envidraçada. Volto pelos óculos. Por algum motivo meu irmão desligou o ar, abriu a porta da varanda, zapeia deitado na cama. O teto chia mais alto que a chuva, parece que arrastam uma mesa. Na varanda do lado, riem e amassam latinhas. Provavelmente lá tem uma palmeira tão feia e espaçosa quanto esta. O volume da


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televisão aumenta, antes de sair ainda ouço dez anos do onze de setembro e Djokovic. Surgiu um guarda que só apita, competindo com o alto-falante gospel em cima de uma Saveiro. Crianças com boias de braço correm pra pular numa das piscinas. Para desespero da professorinha. Não tem salva-vidas. É alta a grade da frente do clube, nunca devem abrir. Calçada estreita comida pelas frentes dos carros estacionados. Ou seja, pedestres que não atravessam pro calçadão têm que ir pelo meio da rua disputando. A água empoçada fica pastosa, cinzenta logo. Alarme falso, era só pancada de chuva. Começam a recolocar os papelões e expositores de bugigangas ao longo do calçadão, mais no começo e no fim da feirinha. Um celular se afasta à minha direita - “sou jovem e muito bem...” — entra no elevador ou cala, corte seco. O alto-falante da Saveiro começa a anunciar show de humor. Uma fumacinha hippie levanta de algum lugar no meio da feira, próximo à estátua. As luzes nas barraquinhas favorecem, não dão ideia do cheiro de fritura e da repetição sem fim de chinelos, artesanato e cachaças com caranguejo. Um pintor estendeu suas telas num varal amarrado a dois coqueiros. Meu irmão tosse. Penduram uma faixa sobre CVV na fachada do Pão de Açúcar. Um homem firma a escada para o outro, deve ter caído com a chuva. Uma mulher de tailleur sai do mercado segurando uma sacola e um celular e para no meio-fio, ainda sobra água rente ao meio-fio. Pousa a sacola no chão, parece que não está conseguindo sinal. Sai de

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sob a marquise, volta a ligar. Agora acenando junto. Cheiro de esgoto, trânsito parado. Um cara numa bicicleta desvia a tempo da mulher. O poste perto dela finalmente acende. Pelo visto não é taxi que ela quer, na verdade, ela acena é para uma janela de quinto andar num prédio perto. Às minhas costas, a fresta da porta deixa escapar uma música. É um velho que se entedia debruçado num parapeito de quinto andar, oposto ao meu. Se molha com os pingos de um toldo e se entedia. Olha moto estacionar em fila tripla, os riscos vermelhos passando no relógio de rua e formando o número de telefone do CVV. Isso deve ser forte por aqui. O velho não tem um celular em mãos, não se afeta, não desconfia do aceno cada vez mais exibido da mulher. Nem desconfia de mim. Atrás dele, numa cama, controle remoto em punho, uma segunda mulher procura algo às cegas numa gaveta de criado-mudo. Tateia olhando a televisão até esbarrar num abajur. Retrai a mão, não sei se achou. A mão do velho segura o queixo de um rosto que não quer nem olhar pra trás nem pra rua. No meu corredor um baque, culpa da camareira, sai de fininho. Pelo visto não era um celular o que a segunda mulher procurava. Ou era mas ela só desligou. A outra lá embaixo parou de acenar. Continua ligando, olhando vidrada na direção do velho, sacode o celular como se tivesse pifado, para um menino que estava só passando e aponta pra ele o velho, o menino balança a cabeça em negativa, a mulher o dispensa, para uma terceira mulher agora, aponta o


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velho mas essa mulher também não tem nada a dizer. Uma freada relincha, só os da faixa da direita respeitam o sinal vermelho, um caminhão faz um retorno no meio da pista. O velho limpa a boca com uma das mãos. Ela esquece as compras na calçada, não ouve um empacotador chamando, ele precisa sair de dentro do mercado, recolher as sacolas, ir até ela, cutucar o ombro, sacudir o ombro e entregar, e nisso a mulher já estava na frente do prédio, tocando o interfone. Parece que, se a campainha é mesmo no apartamento, ele e a mulher da cama se fazem de rogados, só pode ser. Aproveita um morador saindo para entrar no prédio correndo, mexendo nervosa na bolsa. A Saveiro voltou a apregoar conversão e salvação. A segunda mulher esconde um bocejo com uma mão. Meu irmão tosse. Aumentam a música da aula de ginástica do clube.

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O AMOR É UM MOINHO DE VENTO

O Saulo não sabia onde estava com a cabeça quando, além de se matricular num cursinho de inglês do qual todo mundo sabia que ele ia desistir, ainda por cima, comprou o material adiantado. Uma caixa que, diz o cursinho, serve pro curso inteiro: uns três quatro livros, três cds, uns folhetos: todos com umas fotinhos de umas pessoas, sempre diversidade racial, sorrindo e interagindo, uma nota o negócio. Tradicionalmente o Saulo dura menos de um dia em cada cursinho de inglês e quando desiste põe a culpa no professor ou no método; por ser uma nota o negócio, ele até se esforçou pra ir às aulas, foi a três e depois inventou uma desculpa. Ele sempre inventa essas desculpas e eu é que pago o pato, literalmente. Pois bem, assim que ele desistiu, preferiu ficar em casa assistindo televisão com a Vivianne no sábado de manhã, a primeira coisa que eu perguntei e que ele respondeu preguiçoso pra

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variar foi se tinha como devolver o material, conseguir um reembolso, se tinha um prazo alguma coisa assim. A resposta preguiçosa foi que segunda-feira sem falta ele ligava na escola. A caixa ficou um tempão lá em casa juntando poeira. Mesmo conhecendo o bicho-preguiça que eu tenho em casa, não queria desperdiçar o dinheiro; cheguei a sugerir que ele estudasse por conta própria, cheguei a sugerir que ele e a Vivianne estudassem juntos, que quem sabe a irmã dele não queria comprar a caixa pro Arthur. Sempre que o Saulo ensaia tomar uma atitude, um revés volta tudo pra estaca zero. A solução surgiu do nada quando eu comentei o assunto com o Estevão do departamento e ele falou pra anunciar a caixa na internet, vende rapidinho, falou de um site que dá pra confiar que o pessoal paga certinho, até se ofereceu pra botar o anúncio pra mim e dar uma olhada de vez em quando que eu podia ficar descansada. Vendeu até rápido mesmo, coisa de duas semanas. O único trabalho do Saulo, então, era postar a caixa no correio, combinamos que ele tinha três dias pra isso. Tem uma agência dos correios em cima da nossa quadra. Por mais que ele não goste de levar o nosso cachorro pra aqueles lados porque tem que passar perto de um descampado onde uns quero-queros atacaram eles dois uma vez, ele levou o Iguana pros correios. O Iguana foi ficando ansioso conforme chegava perto, latia pra quem passava, esticava a coleira ao máximo, meio tentando fugir. Cinco minutos caminhando debaixo do solão, trinta minutos cravados


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na fila, o dono sentado numa cadeira daquelas enfileiradas, debaixo de um ar-condicionado gritando, e o cachorro do lado de fora amarrado no corrimão da rampa pra cadeira de rodas, zanzando e ganindo. Enquanto esperava, rabiscava um papel qualquer, chutava mentalmente o nome da atendente, o Saulo entreouviu uma mulher puxando assunto quase num sussurro com a mulher do lado dela, as duas sentadas na fileira da frente da dele. Pegou a conversa pelas metades, quando uma já perguntava para outra como anda Anaju, cadê Anaju. A outra respondeu que tem tentado fazer a menina sair de casa, arejar um pouco, mas ela se recusa. Faz uma semana, o namorado dela terminou o namoro de três anos do nada pra ficar com outra e só o que ela faz é escutar Cartola, não come, fica acordada a noite inteira, dorme o dia inteiro, fuma feito uma condenada, outro dia a mulher estranhou que ela estava demorando demais no banho, quando foi ver a menina estava lá parada debaixo do chuveiro, só levando água na cabeça e chorando, celular na pia, tocando Cartola a toda. Nesse dia a mulher tinha conseguido sair com a menina um pouco, na hora em que o Saulo ouviu a conversa, a Anaju estava inclusive no carro naquela hora, esperando com o rádio ligado. A mulher conta que a música que a menina tanto ouve é Corre e olha o céu, que era a música do namoro, que o desgraçado tocava no violão, fazia serenata. A mulher nunca gostou desse namorado, mas agora é bola pra frente que homem nenhum merece tanto. Pelo que o

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Saulo contou, a mãe da Anaju não soou extremamente triste enquanto contava a história pra outra mulher, soou mais pra vitoriosa ou pra resignada, com um tom de eu avisei aquela menina que ia dar nisso. Durante essa espera, eu estava no trabalho e liguei pra ele no celular pra pedir pra ele comprar chá e aspirina e pra perguntar se ele tinha levado a caixa no correio. Ele respondeu apressado, disperso comigo mas interessado em outra coisa, claramente querendo desligar logo, disse sim pra tudo. As mulheres continuavam lá baixinho quando chegou a vez do Saulo e ele se levantou meio a contrariado de perder o fim da conversa. Postou, pagou, desamarrou o Iguana e seguiu pro mercado. Quem ficou na agência, até a mulher, poderia olhar pra rua através das vidraças da fachada da agência e não desconfiaria; ninguém tinha como saber que nesse meio tempo a tal da Anaju roubaria o carro e se jogaria dentro dele da ponte do Bragueto. Tanto é que o Saulo só me contou essa história dessas duas mulheres na agência do correio no dia seguinte, depois de ler no jornal sobre a menina e associar o nome à história. Me ligou no trabalho pra contar, no meio da manhã, assim que leu a notícia, sua voz era enlutada como se fosse namorada dele a morta, ou como se tivesse sido ele o abandonado pelo seresteiro. Quando cheguei pro almoço, as coisas estavam mais sossegadas, mas eu reparei em como ele tentava disfarçar que tinha chorado. Pra dizer em poucas palavras, a história assustou. Nessa tarde mesmo, ele comprou um cd do Cartola


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que fez todo mundo na casa ouvir milhares de vezes, até furar não porque cd não fura. À noite começou a transformar as histórias que a Vivianne pede pra ele contar antes de ela ir dormir em histórias de perdas, de amores malfadados, sempre um final trágico, até a menina percebeu de cara a bobeira do negócio, ainda bem que não se deixou contagiar, perguntou para o pai por que ele estava contando só essas histórias bestas, pediu para ouvir alguma mais engraçada. Depois de por a Vivianne pra dormir ele ainda me fez assistir a uma comédia romântica na televisão. Mais ou menos uma semana dessas chatices, de me mandar rosas no trabalho, de comprar gravatinha borboleta pro Iguana, de tomar vinho no jantar, de aconselhar a Vivianne sobre como escolher bem um namorado, dá licença, a menina tem sete anos, tem nada nem que ouvir falar de namorado. Eu estava vendo o dia em que ele ia mandar um carro de som daqueles com mensagens pra mim e pra Vivianne, ele começou a nos tratar por amores da minha vida. Isso durou uma semana, até eu confiscar o cd do Cartola e mandar ele parar com a palhaçada. No início ele melindrou, ficou ofendido e tal, perguntou onde é que tínhamos perdido o romantismo, mas depois melhorou, passou pra outra mania.

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CASO VOCÊ QUEIRA SABER

Eu devia ter desconfiado, até porque quando a esmola é demais o santo desconfia. Se bem que nesse caso a esmola não era nada demais, só um aluguel barato, terceiro andar sem elevador, localização média, e mesmo assim o santo desconfiou e atirou um para-brisas a 35 km/h contra um pombo, e vice versa, em aviso, aviso esse que os romanos teriam sabido interpretar, mas eu não soube. Por mais que só eu tenha assistido, o pombo voando troncho depois, meio que mancando no ar. Eu já tinha descido do carro pra abrir a porta do prédio que dá pra rua, nisso tinha liberado uma vaga e o meu amigo resolveu sair da fila dupla. Abri a porta do prédio, escorei, já estava voltando pro carro pra buscar as coisas quando aconteceu, primeiro o baque, e depois uma chuva das plumas arrancadas no impacto; o motorista nem se abalou, acho que nunca percebeu. Repito, o pombo saiu relativamente ileso, o carro do

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cara também, mas bom sinal não podia ser. Meu amigo tinha aberto o porta-malas do kangoo e estava atrás de um ângulo por onde começar a tirar a estante, essa era a estante que faltava, a que não veio na mudança porque não coube na kombi. Minha namorada ainda estava no banco de trás arrumando a caixinha de coisas que não convém a kombi de mudanças transportar. Quando achou o ângulo, ele jogou a chave do carro para a minha namorada e disse que era só apertar o botão com o cadeadinho fechado que o kangoo tranca sozinho, me apressou a ir erguer minha metade da estante, segurou a sua metade da estante com uma mão por um segundo pra bater a porta do porta-malas. Eu na frente e de frente, segurando a ponta da estante deitada atrás de mim, guiando meu amigo na retaguarda, quase pus a minha metade no chão quando cheguei no alto da escadinha que dá pro prédio. Meu amigo percebeu a tempo e disse que tinha de subir de uma vez; se a gente pusesse a estante no chão, ela não levantava mais. A partir daí, cada um em silêncio pra não dar pinta de que a estante era pesada. O vestíbulo estava mais frio e mais em silêncio do que a rua, talvez pelo piso de ardósia, talvez pelo sol que nunca bate de frente, sempre morre antes do topo da escadinha. A tosse do meu amigo não só ecoou no vão da escada, ficou ressoando um tempo que fez o prédio parecer deserto. Tomei fôlego pro primeiro lance, propus uma arrancada e no descanso antes do próximo lance dar uma reduzida, meu amigo concordou. Lá fomos nós, cada um bufando meio


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clandestinamente para o outro não descobrir. A estante era bem pesada ou a gente estava fora de forma, de qualquer maneira deu pra chegar no descanso. Subi mais dois degraus pra dar espaço para o meu amigo. Durante a pausa involuntária, a porta bateu, era a minha namorada e pelo barulho ela tinha colocada as chaves do carro dentro da caixinha e deixado a caixinha aberta. Nunca vai deixar de ser esquisito isso de reconhecer alguém pelo som da passada. Da boca da escada, não dava pra nos ver, mas dava pra nos ouvir hiperventilando. A frase que ela ia dizer começava com “tranquei o carro mas”, pena que foi interrompida no meio por uma gritaria que começou dentro de um dos apartamentos. O susto só não foi maior porque a gente tinha que segurar a estante. Eu arregalei os olhos, virei a cabeça mas não consegui enxergar minha namorada, meu amigo soltou um palavrão. De qualquer maneira o som vinha de cima. Conforme a gritaria permanecia, algumas coisas iam se destacando no meio da maçaroca: era uma voz, de mulher, repetindo a mesma frase (“é namoro ou amizade?”), freneticamente, no mesmo tom nada verossímil meio desesperado meio maternal, como se a mulher estivesse batendo a cabeça na parede, arrancando os cabelos enquanto interrogava as más escolhas que uma filha fez na vida. Provavelmente uma cabeça dormindo num sofá apertou um controle remoto e pôs no máximo o volume de uma televisão enguiçada. Gritei pra minha namorada ficar no vestíbulo, não sei se ela ouviu. Decidimos que enquanto continuasse a

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gritaria, era melhor não continuar com a estante. Os dois idiotas lá, de pé, com a mão fazendo calo, esperando passar, ficando com vergonha a medida que foi dando pra entender o que a mulher dizia. Ao mesmo tempo, a impressão era a de que ela se dirigia ao meu amigo e se referia a mim e à minha namorada. Ou não. O jeito foi continuar a subir. Não tinha como demorar muito senão a mão caía de vez. Chegamos no primeiro andar, a mulher ainda gritava. Depois, ficou claro o apartamento específico de onde saía a tal da voz e isso fez a gente apressar ainda mais, era no segundo andar, passamos rapidinho e a gritaria não se alterou. Segurei a estante um segundo com uma mão pra tirar a chave do bolso e abrir a porta do apartamento. Pusemos a estante no corredor da entrada mesmo. Enchi um copo com água pro meu amigo e desci pra buscar minha namorada. Na ida e na volta deu medo passar no segundo andar. Esmola demais: o nosso apartamento é bem em cima da gritaria. Meu amigo ajudou a ajeitar a estante na sala, tomou uma cerveja e foi embora quando a gritaria passou vinte e cinco minutos depois. Resultado: demorei cinco dias pra perceber que era marcado o horário em que a nossa vizinha começava a gritar. Antes disso susto atrás de susto. Palpitação. Depois, eu demorei mais cinco dias pra perceber que quando dava a hora o que a vizinha começava a gritar era a última frase que ela ouvia na televisão, os destaques foram: o eri pinta, o johnson borda e meu apelido era navilouca chamegueiro.


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O BRANCO DO CÉU (em progresso)

Quando eu cheguei e nem a secretária estava, bati direto na porta da sala e uma voz lá de dentro pediu de um jeito esquisito para eu esperar na sala de espera, que em cinco minutos ele poderia me atender, o esquisito foi justamente como depois de falar isso o silêncio voltou com tudo, não dava pra dizer que ele estivesse trabalhando na sala, senão daria pra ouvir alguma coisa pelos vitrôs no alto da divisória, alguma broca, alguma coisa. E isso que pela localização e pelo horário pelo menos uma buzinada lá embaixo, um megafone, um sanfoneiro, alguma coisa devia dar pra ouvir, mas não, só um burburinho mesmo. A divisória que separa a sala de espera da sala do relojoeiro divide o janelão ao meio, ou seja, eu sentei na fileira de cadeiras perpendicular à divisória, de costas pro janelão, peguei uma revista. Dali a vista era nítida: os camelôs voltaram com tudo pra plataforma superior

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da rodoviária. Tem nem cinco anos que o governo tentou tirar o pessoal de lá, separou um terreno mais ou menos, facilitou o alvará, destinou algumas linhas de ônibus e ainda assim, o Shopping Popular ficou foi muito tempo fechado, servindo só pra propaganda do governo na televisão, é óbvio que os camelôs preferiam se amontoar na rodoviária a mudar praquele fim de mundo, só que quando a polícia começou a expulsar os camelôs e o Shopping Popular começou a vingar, esse governador foi deposto. Veio a eleição, trocou o governo e os camelôs foram voltando. Agora está pior do que era a cinco anos, eles se multiplicaram pra vender as coisas mais bizarras, de pipa de desenho animado a cinto a chip de celular. Se bem que na hora em que eu fui consertar meu relógio não dava pra ver bem cada camelô, eles estavam misturados no meio do povaréu, os que dava pra ver eram justamente o que empinava pipa, a que usava um colete com a marca da operadora de celular e o que levantava os cabides com os cintos pendurados pra abrir caminho. Eu achei até que estava ficando surdo de não ouvir essa maçaroca de gente da plataforma superior e a maçaroca de carro da plataforma inferior. Era o pior horário, seis horas da tarde, tanto pra se locomover quanto pra levar um relógio pro conserto, quem sabe o relojeiro, Judas ou Josué meu pai disse que é o nome dele, não terminava o expediente dele e resolvia ir pra casa. Meu relógio quebrou de um jeito absurdo: eu estava do lado de fora da faculdade, numa


(muda o narrador) Que em nenhum horário a quantidade de trens aguenta a demanda, que pra onde tem linha elas são falhadas, que as estações ficam longe umas das outras, e que, mesmo superfaturadas, ou talvez por isso, as obras se arrastam há vinte anos ao Deus dará, que as estações mais antigas precisam de reforma, que querem inaugurar logo as mais novas e dizem que estão prontas, terminam de qualquer jeito, sempre dá algum problema, essas coisas todo mundo sabe, o problema é como a notícia saiu. Deram o óbvio e não apuraram o resto, quer dizer, apuraram do jeito deles lá. Pra começo de conversa, não deu no noticiário a história, o Joaquim

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barraquinha daquelas, comendo um sanduíche na minha, quando um cara, um playboy daqueles fortinhos que cumprimenta o dono da barraquinha pra se fazer de esperto, se levantou do nada e deu um soco num outro cara que estava passando, esse cara caiu em cima da minha mesa, virou a mesa, derrubou meu copo com refrigerante em cima de mim, mais especificamente em cima do meu relógio, que, apesar de o vendedor ter me dito que era a prova d’água, pifou na hora. No que eu fui embora bem quieto, o playboy ainda estava lá xingando e chutando o cara no chão, o chapeiro nem se meteu pra apartar e logo se formou uma plateia pra assitir a tal da surra, isso eu já vi de longe, da escadaria que dá pro saguão da faculdade.

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fica na televisão ou no rádio do celular o dia inteiro, ele teria visto se tivesse passado alguma coisa. Se bem que eu não sei, parece que aconteceu rápido, e tem coisas que eles abafam nesses noticiários, pra não dar ideia pros outros, deve ter algum combinado entre a televisão e a polícia, que nem quando não noticiavam aquelas histórias do pessoal se jogando do alto daquele shopping, não noticiavam mas também não colocavam tela de proteção, nada. O que eu sei foi que na hora a gente só viu uma debandada normal pra hora do rush, só mais apressada, se espremendo pelas catracas: a gritaria era a de sempre, o suor eterno brilhando e os passos no automático. Essa gritaria não dá exatamente pra ouvir, ou não faz diferença se a gente ouve ou não, dá pra pressupor; até porque a estação está em reforma, e mesmo quando o maquinário para, antes da hora do rush, lá pras seis, ainda sobra uma névoa de poeira que gruda na pele e um zunido dentro do ouvido. As britadeiras abafam os barulhos, eles deviam dar protetor de ouvido pra gente, o Joaquim disse que se a gente arranjar um laudo é fácil conseguir indenização por acidente de trabalho, quem sabe uma pensão. Enfim, mesmo depois que a reforma para fica esse zunido na orelha e essa névoa que embaça na frente da gente, e mesmo assim dá pra perceber na maçaroca de gente mãe puxando braço de filho, freiras, homens encafifados, homens mal encarados, homens que claramente vão abrir a capa de um instrumento ali em cima da estação e começar a


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tocar, e isso que é proibido e eles sabem que é proibido e eu vou ter de ir lá explicar isso de novo e de novo, pedir pra irem tocar em outro lugar. Todo dia tem um grupinho de freiras cabisbaixas que passa aqui de manhã e voltando à noite, nem todas com terço na mão, sempre uns passos miúdos, caladas até quando alguém no meio do aperto pisa na barra do hábito ou dá um encontrão. Nesse dia não foi diferente, pelo menos não pareceu, foi a mesma maçaroca escorrendo na direção das saídas. Se sete horas não terminasse meu turno, eu veria o corpo sendo removido, teria inclusive de ajudar, ligar o elevador, descer com os bombeiros até a plataforma só pra eles descobrirem que, óbvio, não cabe uma maca no elevador da estação, e ainda subir de volta no elevador pra ele não ficar na plataforma, assistir os bombeiros carregando a maca pela escada rolante e abrir a portinha para eles passarem, em fila, um bombeiro em cada ponta da maca e um atrás, registrar ata. Me admira eu não ter ouvido nem ambulância enquanto eu apanhava minhas coisas e subi pra Praça do Relógio pra pegar meu ônibus. Ônibus esse onde no dia seguinte na ida pro trabalho eu peguei o tal jornal com a notícia defeituosa. Tudo bem que não dá pra esperar muito do jornal grátis que a gente pega no ônibus, o negócio é que além de repetir as reclamações que todo usuário faz, a notícia só dizia que um tumulto na estação Praça do Relógio do metrô tinha terminado em um hospitalizado. Quando eu cheguei na estação, ninguém tinha nem lido o jornal, ninguém

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sabia de nada, nem o Joaquim nem a Diane nem as meninas da limpeza sabiam de nada, o negócio era esperar e perguntar para o pessoal do segundo turno. A Marilda é que é a agente de estação do segundo turno, eu só fui achar a ata que ela registrou bem depois. Essa manhã foi lenta, daquelas abafadas, mas também não choveu. A gente vê quando chove porque as escadas da saída pra Praça do Relógio ficam a céu aberto e é assim que o clima do lado de fora entra na estação, não tem ar condicionado acho que em nenhuma estação da rede. Nessa aqui não tem, disso eu sei, a gente fica dependendo do vento encanado que sobra da praça ou de alguém trazer escondido um ventilador de mão que a gente reveza, a administração não deixa por ventilador nas cabines nem nas catracas. Quando chove os usuários sujam tudo de barro, o piso da estação é áspero e ainda tem alguns que escorregam e a gente nem pode rir, tem que se segurar e ir ajudar a levantar, perguntar se está tudo bem, se a pessoa quer se limpar no banheiro, mas que isso é exceção. O banheiro da estação é só pros funcionários, então na hora de abordar o usuário tem que usar isso de exceção. É complicado abrir exceção e essa é justamente a maior parte do meu trabalho, porque se uma pessoa não consegue descer de escada ou de escada rolante por qualquer motivo e eu tenho de ligar o elevador para ela, é muito provável que, se ela precisar ir ao banheiro, eu tenha que abrir uma exceção. E ainda é proibido perguntar ao usuário o que ele precisa fazer


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no banheiro, então o que nos resta é uma avaliação muito besta, de se a pessoa consegue aguentar ou não até achar um banheiro em outro lugar. Mas é o que eu falei, se a pessoa já precisa usar o elevador, ele pode ser a mais picareta do mundo, é só fazer cara de coitadinha que eu abro a tal exceção. Se bem que pra usar o elevador os critérios são mais fáceis: grávidas, cadeiras de rodas, muletas, bengalas, é claro que tem suas exceções também. E eu estou me lixando pra limpeza do banheiro dos funcionários, o negócio é que eu tenho um supervisor da administração que aparece meio de surpresa uma vez por semana. E se eles quisessem mesmo impedir os usuários de usar o banheiro, se eles quisessem que fosse só pros funcionários, eles teriam construído o banheiro numa parte interna, com acesso pros vestiários, por exemplo, e não com uma porta para o saguão e uma plaquinha azul com um bonequinho branco em cadeira de rodas praticamente anunciando que ali é um banheiro. Ou isso ou a estação foi mal projetada. Aliás, eu nem posso reproduzir as reclamações dos usuários, por mais que elas sejam minhas também. Ou não. E o que eu ouço de reclamação por causa desse banheiro não está no gibi. Por causa do banheiro e quando as escadas rolantes estão paradas. Até de lâmpada piscando eu já recebi reclamação. Nada disso é formal, ninguém dá a mínima praquele formulário de sugestões que a gente põe perto das cabines, os usuários reclamam mais na base de comentários em voz mais alta quando vão passar pela catraca

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e leem na minha camisa que eu trabalho no metrô. Na manhã seguinte ao acontecido, tudo correu certinho com as lâmpadas e com as rampas, não precisei acionar o elevador nenhuma vez, mas três pessoas me perguntaram onde ficava o banheiro da estação; como elas tinham uma cara saudável, lá fui eu recitar a resposta com a cara mais lavada: a estação não conta com banheiro para usuários. Além disso, foi uma pasmaceira a manhã, eu esperando o pessoal da tarde chegar pra perguntar, o Joaquim mexendo, jogando no celular, a diversão da Diane foi afugentar uns meninos que estavam matando aula e bebendo na escada da saída pro banco. O banco fica do outro lado da rua da praça. O movimento foi o de sempre, engrossou entre as sete horas e as oito e meia, minguou até o meio dia. A Marilda é que é a agente de estação do segundo turno, como ela não registrou ata, eu

Brasília, março de 2012



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[4 ficções e 2 fragmentos]

sobre o autor Hugo Crema (Brasília, 1990) é autor do romance Finisterra (por alguma editora, este ano) além de materiais veiculados em lugares esparsos na internet, traduções de Roberto Bolaño para o projeto Estrela Selvagem e o eBook de contos O Cachorro Provisório, por exemplo. Bate ponto no blogue calopsitaescapista.


O cachorro provisório Copyright © 2012 por Hugo Crema Este livro foi licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Brasil. RapaDura Edições www.revistarapadura.com revistarapadura@gmail.com Capa Recorte de “Angry dog”, Daniel A. Forero/iStockphoto.com. Projeto gráfico & Diagramação Mauro Siqueira | maurovss@gmail.com Os personagens e as situações descritas nessa obra fazem parte do domínio da ficção, não se referindo, assim, a pessoas e/ou fatos do âmbito da realidade. Este eBook utiliza a tipologia Rotis serif no miolo, corpo 11 e Din Pro, nos demais elementos. eBook em formato .pdf

CIP-Brasil. Catalogação na fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ Crema, Hugo O cachorro provisório / Hugo Crema Rio de Janeiro : Edições RapaDura, 2012. ISBN 978-85-1929-8401-0 1. Ficção. 2. Contos CDD 813 CDU 821.111(73)-3


De Fortaleza na chuva a uma corrida de São Silvestre, a variedade de situações (mas não de temas) no livro forma uma colcha de retalhos em que a linha de costura é um narrador pedestre, incomodado com sirenes, alto-falantes, tiros de partida e conversas intrusas. O olhar pode ser menos que atento ou atento demais, o passo mais de improviso do que preciso, a desconfiança pode ser mais do que epidérmica e aflorar à pele, tanto faz, o que importa é que, com alguma insistência, essas paranoias decidem por conta própria qual é o contorno do turbilhão urbano que quer dizer alguma coisa, coisa essa que, no fim das contas, pode ou não ser mais do que um detalhe na imagem total que a colcha revela se olhamos à distância certa. lml.

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