org_
Bruna Maria
http://asvariacoesliterarias.wordpress.com/
As Variações Varvara Mikhailovna
Mayra Lopes do Couto //tolstói
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Rio de Janeiro, antes do Sena Marcos Nunes//maupassant
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As implicações filosóficas da morte Israel Fabiano Souza//saramago
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Breviário de Salomão 39 ´ Marcus Vinicius Almeida//hemingway Meu nome e vermelho Marcos Nunes//pamuk
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Variação #7 Camila Fontenele//drummond
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Variação #8 Hugo Crema//cortázar
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Lisboa Bruna Maria//mello-breyner
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Feliz Aniversário Luisa Geisler//bukowski
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~ variacao #1 ´
Mayra Lopes do Couto eternamente estudante de Letras e eternamente flertando com Filosofia. É graduada em Letras (Português/ Alemão), especializada em Filosofia Moderna e Contemporânea e em Metáfora e, atualmente, mestranda de Literatura Comparada. Tudo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É uma carioca com um pé no Rio Grande do Sul, outro na Espanha. Tem um braço na Polônia e o resto do corpo no Rio mesmo. Passeia fluentemente pela literatura mundial. E é entusiasta de idiomas desafiadores. Vive de livros, música e metáforas de criação de mundo. Publicou em 2011 seu primeiro livro, “Intravenoso”, pela Editora Multifoco. Bloga em: <http://pointlesswriting.wordpress.com> Twitter: @notaconcept.
Sacha “Varvara Mikhailovna quase nunca saía de perto de mim. Seu rosto doce e redondo, o cabelo castanho e cacheado, reconfortavam-me. Quando papai saía do quarto, ela subia na cama e me abraçava, esfregando sua face na minha, tão próxima, sem nenhum medo de pegar minha doença. Nós nos havíamos tornado grandes amigas. Embora nos conhecêssemos há muitos anos, em Moscou, não nos víamos há bastante tempo. Mas nossa correspondência se tornou mais extensa e íntima e, finalmente, convenci mamãe a deixá-la vir morar conosco. Trabalho de secretária é sempre necessário em Iasnaia Poliana, e Varvara sabe datilografar e tomar ditados. Agora, está aqui há vários meses e começamos a nos amar, no puro amor de Cristo. Partilhamos todos os temores, todas as esperanças. Costumamos nos tocar: uma mão na outra, queixo no queixo. Chamamos e respondemos, alternadamente, deleitando-nos com o fluxo do verdadeiro afeto. (p. 104-105) A visita a Mechetcherkoie, para mim, não era a as variacoes literarias/9
mesma coisa sem Varvara. É doloroso para mim separar-me dela, mesmo por pouco tempo. Mas prometi escrever todos os dias. De alguma forma, o pensamento de poder escrever cartas afetuosas tornou a separação suportável, até atraente. Na noite anterior à partida fui às escondidas para o quarto de Varvara, quando a casa toda já dormia, e coloquei a cabeça em seu ombro; aninheime junto dela durante uma hora, ou mais, escutando sua respiração, espiando a elevação ritmada de seus seios, como ondas encapelando-se ao largo, quebrando-se na praia, recolhendo-se, encapelando-se outra vez. A mão dela dobrava um cacho do meu cabelo para frente e para trás. Foi mais lindo do que dormir”. “A última estação” in Os últimos dias de Tolstoi, de Jay Parini.
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Varvara Mikhailovna
N
unca deixei de me corresponder com Sacha. Estudamos juntas em Moscou e, enquanto crescíamos, Leão Nikolaievitch já era um grande escritor e tornou-se o homem mais importante da Rússia. Lembro-me de que Sacha sempre manteve os pés no chão, ao contrário de seus irmãos, deslumbrados com a riqueza, a fama, o sobrenome de peso e os títulos de nobreza do pai. Naturalmente, quando Leão Nikolaievitch, em sua infinita sabedoria e mantendo um profundo contato com os camponeses locais entendeu a fonte dos problemas entre as classes e demonstrou total e completa ojeriza aos aprisionadores modelos burgueses e à má distribuição do capital russo, ele fez inúmeros inimigos enquanto, ao mesmo tempo, tornava-se ainda mais amado até mesmo pela parte analfabeta da população. Conde Nikolaievitch sempre havia sido um sonhador e começou uma nova fase em seus escritos onde circulavam ideias sobre igualdade, amor e liberdade. Todos nós éramos igualmente destinados à grandeza e dignos da atenção do grande Leão Tolstoi. A vida de qualquer um lhe era interessante e sagrada e eram poucas as pessoas que conseguiam entender plenamente esta maneira de pensar. No fundo, tudo, toda a base da filosofia de Tolstoi encontrase em seus romances principais: Guerra e Paz e Anna Karenina, mas, é claro, os tolstoianos têm outras coisas a fazer, não perdem tempo com romances.
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Eu e a pequena Sacha mantivemos durante muitos anos uma correspondência íntima, terna e constante. E, no entanto, eu nunca imaginei que minha vida me traria até aqui. O dia em que desci em Iasnaia Poliana por um pedido de minha querida Alexandra. Ela me esperava à entrada da Casa Grande e me levou ao meu quarto pessoalmente. Estranhei não ficar em uma ala separada da casa, junto com os outros empregados. Sacha me disse, em uma carta, que a minha experiência em datilografia e em tomar ditados seria muito apreciada em Iasnaia Poliana. Ela gostaria de ter um pouco de ajuda, o que, numa propriedade daquelas proporções, qualquer ajuda a mais que se tenha, nunca parece ajuda demais. Meu quarto ficava bem próximo ao dela. Creio que quatro ou cinco quartos nos separavam. O que não separava não eram os inúmeros cômodos entre nós e sim as portas, estes barulhentos empecilhos que intermediavam nossas noites. Às vezes, Sacha mandava alguém da equipe de criados regulares me chamar aos seus aposentos, eu já com a minha camisola, ela com a dela, antes mesmo do Conde passar pelo quarto dela para que pudessem ter sua revigorante conversa noturna. Faziam isso quase todas as noites. Quando ele saia, ela me pedia para que lhe soltasse os cabelos. Eu desfazia as tranças delicadamente com meus dedos passando pelos fios ainda frisados pela rigidez delas. As tranças eram presas muito apertadas. Não me admira as enormes enxaquecas que a pequena Sacha sofria. Seus cabelos castanhos deslizavam em cascatas com o mesmo brilho que ela inteira exalava. Este era quase o único momento do dia em que eu sentia que ela poderia ser ela mesma, tão diferente da sua taciturna severidade e rigidez, que eram provocadas pela abstinência, na qual ela acreditava com todas as forças. Intimamente, ela se parecia com uma santa, rindo
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quando o pente de madeira esbarrava sem querer um pouco doloridamente em sua cabeça. O ar pesava em Iasnaia Poliana. Sofia Andrievna e Leão Nikolaievitch estavam tendo mais problemas do que nunca e brigavam todos os dias. Sofia conhecia demais o seu marido e, como todos aqueles nascidos nos berços de prata da aristocracia russa, ela farejava aproveitadores enquanto que o senhor Nikolaievitch tinha muito amor dentro de si, além de uma crença verdadeira na Revolução, para pensar que alguém poderia estar se aproveitando dele. Então quando ele decidiu partir, levando consigo ninguém mais que seu médico, ficamos eu, Bulgakov e Sacha a tomar conta de Sofia Andrievna. Enquanto eles andavam de trem pela Rússia, pude presenciar o abandono da Condessa frente ao desespero que sentia pelo fato de que, seu amado marido, o seu Liovotchka, ter tido coragem de abandoná-la a esta altura da vida, depois de tantos anos da mais cega dedicação e de um amor que suportou o insuperável para existir, porque, não poderia deixar de o ser. Alguns dias depois, Sacha foi chamada à casa de uma de suas irmãs para acompanhar o Conde no restante de sua viagem. Ela parecia quase feliz de partir. Disse-me que todos os dias me escreveria e que tal fato era o que animava a passar os dias longe de mim. Eu sabia que era mais do que isto: ela não via a hora de estar ao lado de seu pai, afinal, ela dedicara sua vida inteira a ele. Fora difícil aguentar os lamentos de Sofia Andrievna durantes estes dias de extrema solidão, os seus ataques típicos de quem pertence à realeza — ou, no caso dela, à nobreza, mas Sofia se achava mais importante do que a Czarina. Todos os dias enormes cartas de Sacha chegavam. Somente no fim das cartas ela dizia que estava sentindo falta
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de mim. As primeiras páginas variavam entre o estado de saúde do Conde, o seu itinerário e as paisagens de uma Rússia que lhe era totalmente desconhecida, uma descrição precisa de pessoas humildes e da solenidade com a qual estas mesmas pessoas tratavam o amado escritor Leão Tolstoi. Finalmente chegou o dia em que, por telegrama, ela me pediu para me reunir a ela. A saúde de seu pai havia piorado severamente, todos os jornalistas e fotógrafos acamparam em frente ao seu refúgio. Tomei um trem o mais rápido que pude, deixando Sofia Andrievna aos cuidados de Bulgakov, enquanto tomei todas as precauções para que eu não fosse seguida e para que meu paradeiro não fosse descoberto por nenhum dos empregados. Tive que sair no meio da noite. Cheguei junto com os primeiros raios matutinos. Mais uma vez, Sacha estava à porta me esperando. Eu estava cansada, a viagem havia sido longa. Ela também estava cansada, fora a sua vez de ficar de vigília durante a noite. Perguntei se havia alguma pensão ou hotel perto da estação para que eu me instalasse e Sacha me respondeu que estavam hospedados na casa de um funcionário da estação mas que, entretanto, estavam muito bem acomodados. Podíamos caminhar até lá. Quando voltei a erguer minha mala, Sacha também havia se precipitado para segurá-la e nossas mãos, envoltas em luvas grossas de pelica, se tocaram. Seria a primeira vez naqueles dias. Chegamos a casa, todos ainda dormiam, exceto pelo seu médico, que andava de um lado para o outro, esperando que seu paciente acordasse para tirar a pressão, medir a temperatura, os exames de costume a que o Conde Nikolaievitch era submetido pela manhã e ao cair da noite. Sacha se encaminhou para o que parecia ser um quarto de hóspedes onde eu deixei minha bagagem. Pedi permissão para me trocar, colocar meus trajes de dormir e Sacha
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disse que era uma ótima ideia, disse que ia pegar os dela também. Ambas tínhamos nossas camisolas, eu fui a primeira a me deitar na cama enquanto Sacha desfazia suas tranças. Quando ela se deitou, o perfume dos seus cabelos ondulados encheu todo o ar a minha volta. Virei-me para ela e disse: senti falta disto. Ela me perguntou o que era isto, se ela ou seus cabelos. Respondi que senti falta da suspensão do tempo e espaço, que significavam todo o tempo em que eu passava com ela.
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~ variacao #2 ´
Marcos Nunes Praticamente anônimo; teve publicado um único conto em livro por força de classificação entre os escolhidos pelo caderno Prosa e Verso do jornal O Globo, no concurso Contos do Rio, conto esse intitulado “Retrato do artista enquanto jovem carioca”. Um volume de poemas quando jovem, editado pela Editora Dazibao, sob o título Viuseversa. Teve publicado um ensaio mais longo, denominado Um balão de ensaios, em uma revista de literatura da Universidade de Lisboa, em Portugal. Um romance às expensas do autor, intitulado O último a sair acende a luz, em 2009, Editora Usina de Letras. Dois outros romances disponíveis no site AGBOOK, para impressão por demanda, intitulados Juventude Futebol Clube e No meio da rua, um livro de contos, Um paralelista no labirinto e um de poesia, Poesia é uma prosa que se quebra. Compartilha conosco o blog de sua esposa: <http:// rachelsnunes.blogspot.com>, e também o seu e-mail: marcosaugustonunes@hotmail.com.
“Encontrei algumas pessoas que já vinham correndo e voltei com elas. Nessas alturas, a casa não era mais que uma horrível e imponente pira funerária, monstruosa pira funerária que iluminava tudo, pira funerária onde homens ardiam, e ele também estava sendo queimado. Ele, ele, meu prisioneiro, o novo Ser, o novo senhor, o Horla! De repente, o telhado desabou entre as paredes, e um vulcão de chamas voou até o céu. Pelas janelas abertas naquela fornalha, vi as chamas disparando e pensei que ele estivesse lá, naquele forno, morto. Morto? Talvez?… Seu corpo? Não seria seu corpo, transparente, indestrutível pelos meios que conseguiam matar os nossos? E se ele não estivesse morto?… Talvez só o tempo tenha poder sobre esse Ser Invisível e Terrível. Qual a razão desse corpo transparente e irreconhecível, esse corpo pertencente a um espírito, se também tem de temer doenças, fraquezas e ruína prematura? Ruína prematura? Todo o terror humano tem aí sua origem! Depois do homem, o Horla. Depois daquele que pode morrer todo dia, a toda hora, a todo momento, de qualquer acidente, veio o que morreria apenas na hora, no dia e no minuto apropriado, porque tocara os limites de sua própria existência! Não… não… sem dúvida… não está morto… Então… então… acho que terei de me matar!…” O Horla, de Guy de Maupassant
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Rio de Janeiro, antes do Sena
E
le nasceu em São Paulo; sempre pressentido, nunca visto. A maioria parecia sorrir diante da hipótese, negava qualquer premonição como coisa de gente supersticiosa, sem informação, do tempo da iluminação à base de archotes, da dança da chuva, “auá, auá” faziam e dançavam, gozando. Entretanto, não foi por falta de provas materiais, quer dizer, pela ausência de certas coisas materiais, e alguns movimentos de objetos incapazes de moto próprio. Mas alguns insistiam: — Não passa de medo em crescendo, motivado por coincidências banais que ratificam os temores, acumulandoos até o pânico. — Mas ele está entre nós, aliás vários deles; são invisíveis, mas existem, não são uma doença da mente. — Há algum parecer médico conclusivo? — Algum físico, algum cientista? — Não. — Meras crendices, então. Insustentáveis. Como qualquer crença, seus alicerces estão nas suas fantasias, e estas, tremulantemente dispostas sobre um medo de seres abissais, demônios e travessia do Hades… — Sim, mas o doutor Luís Pacheco Soares da Cunha, um
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luminar, na ausência de provas conclusivas, mesmo assim foi incapaz de duvidar da ação de criaturas desconhecidas, diante de circunstâncias irrefutáveis, como, por exemplo, o fato de que apenas água e leite desapareciam das residências, várias delas, sem qualquer ligação, de pessoas não familiares, algumas até inimigas umas das outras, aliás creditando umas às outras suas penas… — Está aí, vai ver ambos estão com a razão; após a primeira brincadeira de menino, sobreveio outra, e depois vendetas sucessivas, que deveriam resultar em anedota, mas transformaram-se em tragédia devido à crença supersticiosa, somada aos ódios mútuos. — Mas não apenas isso, não apenas. Pessoas definham a olhos vistos, todas sem qualquer doença diagnosticável. — Pois aí está o nó. O fato de não haver diagnóstico depõe contra a ciência médica, daí o depoimento do nomeado doutor, capaz de referendar absurdos a admitir a própria ignorância. — É, pode ser… pode ser. A essa altura, São Paulo era uma cidade medíocre; um entreposto dos grandes interesses e fortunas de fora, das fazendas de Piracicaba até os confins do Paraná. Os males de uma gente pequena não afligia a capital, muito distante, ela mesma mais preocupada com doenças reais, como a febre amarela e a peste bubônica, embora mais atenta, na verdade, às pequenas maledicências, traições e sangue de mulheres casadas e homens traídos. No todo, um Império nada imperial, caótico e provinciano, a digerir modas de Paris sempre anacronicamente, sorvendo má literatura como fino biscoito de uma civilização desde então alimentando sua decadência eterna, mas por gosto, bem entendido. O fato é que em São Paulo, fala a voz vinda não se sabe
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de onde, sinto-me só. Ando de casa em casa, sem necessidade de esgueirar-me, porque essas pobres criaturas humanas são incapazes de ver algo que não seja absurdamente concreto. Esses “seres superiores” o são menos que gatos e cachorros, todos atentos à minha passagem, receosos, mesmo que não cientes de minhas capacidades de subtração energética. Pois disso adoecem eles, pobres interioranos. Roubolhes as forças, e eles murcham, lamentam, rezam tementes a um deus inexistente. Quase me compadeço, se não precisasse, por meu turno, também viver. Quando a voz se cala, o efeito é o mesmo. Ninguém havia ouvido, e tornam ao silêncio como se dele não tivessem saído. Mas ele falou, e alguém está aqui para contar isso, e antes, digo antes daquele que contou mais adiante, depois da grande viagem. Estamos no Brasil e, como se diz, ninguém é profeta na própria terra. Um narrador, onipresente, não é onipotente, mas está aqui para contar porque dele é o primeiro testemunho; séculos à frente, quem sabe, virá o reconhecimento, e o aviso prévio lhe será creditado ou, ao menos, seus termos serão apensados aos autos, autos que serão compostos quando poucos homens restarem, sendo os Horlas donos e senhores de tudo, e por destino imortais. Ou não? Como posso saber eu, apesar de todos os… pressentimentos. Na cidade paulista, dirige-se o mencionado doutor Luís Pacheco à carruagem que o levará à Santos, daí ao porto da mesma cidade, dele ao navio e então, viajando pelo mar, chegar à capital, Rio de Janeiro, trazendo consigo amostras de… frascos vazios, onde antes havia leite ou água. Potes de cerâmica, alguns distintos, outros feitos por gente índia. Mas a beleza não importa; o fato é que doutor Luís guar-
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dou os potes em sacos de farinha bem lavados, encerrouos em baús e com eles dirigia-se ao Rio de Janeiro, levando “as provas do ofício”. Sem saber, levando também o Horla, algo entediado, montado ora sobre um ora sobre outro cavalo, embora pudesse simplesmente pairar sobre eles ou sobre a carruagem, sendo melhor opção ainda ir atrás do conjunto, carregado tão somente pelo fraco vácuo produzido pelo lento veículo, cujo tráfego era muito prejudicado, aliás, pelas péssimas condições da estrada. Parênteses: o nome do ser. Não sei se fui roubado, mas, na minha boa fé, o pronunciava a torto e a direito, sem me importar com precedências. Nem sabia se viveria para escrever isso, e a prova que vivo estou aqui está, nessas parcas palavras de almoxarife, nome aliás que deve ser árabe, é muito esquisito, é como Horla. As pessoas têm paciência e criatividade, não sei como acontece, inventam essas coisas, mas eu não ajo assim; não inventei nem profissão nem o nome almoxarife, e muito menos batizei o Horla. O nome veio assim, soprado ao ouvido. Ao menos assim penso eu. E registrei. Digo, registrei na memória e agora escrevo, mas nesse meio tempo falei com meio mundo, e lá está o nome na história francesa. Perco eu, perde o Brasil? Falam de nós, apesar de tudo. E é pena que, quando falam de nós, o nome é associado a coisa ruim. Ruim mas com um destaque: ruim para nós, não para ele. Ruim mais o futuro. Quem um dia poderia afirmar algo assim como “o futuro virá do Brasil”? Nada mais absurdo. Ele fala mais uma vez sobre a bonita viagem, apesar dos trancos e barrancos, de São Paulo a Santos, e logo de Santos ao Rio de Janeiro, por mar: Deixo em São Paulo um parente que fiz, a partir de mim mesmo, pois nós somos assim, fazemos nossos próprios parentes, ou amigos, como quiserem. Não deixa de ser di-
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vertido, embora o sentido dessa palavra me escape; aliás, devo dizer que o sentido de qualquer palavra me escapa, apenas capturo, e fica anotado o conceito para gerações futuras: as palavras não fazem sentido. Ainda irei ler, porque de tudo sei antes mesmo de saber, mas irei ler em Paris, está bem registrado em minha poderosa memória de todos os tempos, algo assim como “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e de fúria, e sem qualquer significado”. Pois bem, de todas as coisas sem sentido e banalíssimas, esta é a que está mais bem contada, quer dizer, escrita, como outro dito da mesma lavra, popularíssimo até (essa gente, como eles às vezes se chamam, tem o hábito cretino de colecionar frases avulsas; eu como humorista natural, faço a mímese como ironia), segundo o qual “há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe sua vã filosofia”. E ponha vã nisso, meu caro, ponha vã nisso… As pessoas gemem no interior da carruagem, mas eu sigo sereno como uma pluma, triste comparação, mas é a mais verdadeira e a que mais rapidamente surgiu nessa linguagem para vocês compreensível, mas para mim um mistério tão cheio de segredos que, assim penso, qualquer palavra é em si mesmo uma filosofia, embora diga de coisas, mas dessas coisas, na verdade, nada diz, pois, como sabemos, as coisas não são palavras. Essa seria, se posso dizer assim, a minha filosofia natural, se natural pudesse ser uma filosofia e, mais ainda, filosofia algo que decorre do natural que, para a humanidade, é um profundo mistério, apesar de que, para o Horla, o Horla não é um mistério, o Horla é a subtração da soma de todas as coisas, bem entendido? Não, não entendo. Sou um narrador, um narrador à espera de uma narrativa de viagem. Sim, a viagem. Eu, humano, fiz várias vezes a primeira
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parte da viagem, de São Paulo a Santos, para uma única finalidade: tratamento médico. Sinto frequentes náuseas em São Paulo, com suas valas abertas, os dejetos revolvendo-se, toda a imundície dos restolhos de uma humanidade porca e doente… Não posso reclamar aqui, não é a hora nem o lugar, mesmo porque estamos de passagem de São Paulo para Santos, passando, graças a um bom deus, se ele existir, por um território virgem ou, quando menos, semivirgem. Ah, os odores das florestas, com suas espécies vegetais, suas flores, suas águas, suas madeiras que recendem a bom vinho! Mas ele, creio, disso nada sabe, nada vê, porque, como ele disse, ou julgo que disse, nada mais é que a subtração da soma de todas as coisas e, como tal, deve trazer um bom bocado de tudo em si, de forma que, se precisasse ver e cheirar, bastaria ver e cheirar a si mesmo, enquanto nós, como ele disse, pobre humanidade, não pode nem vê-lo nem cheirá-lo, só idealizar que, enquanto aquilo que ele é ou diz ser, podemos deduzir, ele é ou pode ser tudo. Com tais supremas filosofias alcançamos, enfim, as portas de Santos. O idealismo nos leva a isso, a tudo. E se o Horla pode ser tudo, podemos fazer outra equação a respeito do ser humano, ao mesmo tempo diferente mas também muito semelhante àquela que ele nos presenteou: a humanidade é a soma da subtração de todas as coisas, basta multiplicar e dividir. Matutando nisso, volto ao doutor Luís, bom sujeito, mas desde o início da viagem vítima da mesma doença daqueles que julgou beneficiar com o exame científico daqueles objetos que levava ao Rio de Janeiro. De quando em vez, o Horla dele sorvia as forças, e tão matreiramente, com seu humor sobrenatural, que o doutor, infelizmente, só pode chegar em Santos… morto. O baú com os pertences foi despachado para o Rio, nele
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constando, desde São Paulo, o endereço com seu destino final. Previdente ou sabedor dom Luís? Era um bom médico. O mar quebrando na praia, o baú carregado por estivadores, sobre ele o Horla, condescendente com o esforço humano, sem sorver nenhuma energia adicional ao marinheiro de cais. Via o mar quebrando na praia… novidade? Não, ele já conhecia o mar, embora nunca o tivesse visto. Se tivesse boca, poderia bocejar e, antes de chegar a Paris e transformar-se em parisiense, revelar ao arguto observador seu ar blasé, acompanhado talvez por um cãozinho tão fantasmático e parisiense quanto ele. O Horla, contaram-me os ventos, durante a viagem, alimentava lembranças de cousas futuras; por mero prazer estético, ia descarnando, um por um, os verdadeiros homens do mar, tão mais verdadeiros que nele eram lançados, depois de mortos. Assim, tão pós-modernamente (deuses, o que é isso?) construía a referência de um certo barco atracando solitário em um porto enfeitado por brumas, antecipatórias da desgraça que logo se abateria sobre a cidade, refém da peste trazida por Nosferatu, mas nesse meio-tempo seguia lentamente a embarcação, sem nenhum sobrevivente, tendo amarrado ao timão seu comandante exangue. Chegar em Paris sem um verniz de cultura, impossível, e como me verá Guy de Maupassant, através de seu personagem, se não for a guiar sorumbaticamente a nave com bandeira brasileira pelo rio Sena, vinda de outro Rio sem rio, o de Janeiro, a trazer uma globalização reversa, o futuro vindo do Brasil, a conjugação de todos os medos, deve haver uma metáfora aí, imagina o Horla, querendo perceber o que é uma metáfora.
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~ variacao #3 ´
Israel Fabiano Souza Escreve em sua maioria contos que versam sobre literatura fantĂĄstica. Acabou de escrever um livro sobre lobisomens e tem mais trĂŞs projetos em andamento. Dois dos projetos versam sobre o tema aqui tratado e o outro projeto, o autor pretende publicar como romance. Bloga em <http://ocontidiano.blogspot.com> E-mail: akularith@gmail.com Twitter: @akularith
“Nós, as sectoriais, pensou a morte, somos as que realmente trabalhamos a sério, limpando o terreno de excrescências, e, na verdade, não me surpreenderia nada que, se o cosmo desaparecer, não seja em consequência de uma proclamação solene da morte universal, retumbando entre as galáxias e os buracos negros, mas sim como derradeiro efeito da acumulação das mortezinhas particulares e pessoais que estão à nossa responsabilidade, uma a uma…” As intermitências da morte, José Saramago
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~ As implicacoes ´ filosoficas da morte
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R
eli mais uma vez a lista: estava completa. Mesmo assim faltava um. Olhei para um lado, olhei para o outro e nada de encontrar o miserável que me faltava aos olhos. Despachadas todas as almas, fui cuidar de verificar mais atentamente o que havia acontecido. Foi quando vi o senhor lá em cima, no barranco, a olhar para baixo. Não pude acreditar na ousadia daquele ser que insistia em não querer descer. Tive que ir até lá. Num átimo estava eu perto da criatura que havia me tirado do sério e, acreditem, nestes milênios todos que estou a acompanhar o fenômeno vida neste planeta, foram poucas as vezes que conseguiram fazer meu estômago ferver de cólera, salvo os revolucionários e os filósofos: estes sim, são um estorvo à minha pessoa! Antes de continuar a contar a minha história, deixe que eu me apresente. Muito prazer, meu nome é Morte. Sim, esta que vos fala agora é a mesma que a todo momento visita os agonizantes, os atropelados, os acometidos de infarto, os aparentemente saudáveis, os mortos de morte matada e de morte morrida, de fome, de ira, de inveja, de amor, de tristeza. Sou eu mesmo (porque usam tanto o feminino para o meu nome, afinal?) quem faz com que cruzem a tênue linha existente entre o que há de vivo e o que não existe mais. Mas por ora chega de apresentações,
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pois que não estou aqui para este mister, e deixem que eu continue com a história que estava a lhes contar. Pois bem, dizia eu que, contraditoriamente ao que pode parecer, na própria morte jaz também um estômago, assim como um coração, um cérebro e muitos litros de sangue, ainda que estes não sejam da mesma natureza do que o de vós, mortais. Mas sobre isto é suficiente que saibam que a nós, seres ocultos do lado de cá, também as emoções acabam por nos arrebatar. E aquele pequeno ser ali, olhando profundamente para o fundo do rio da morte, do meu rio, onde são despejadas as almas que quando encontram o afluente do rio do Julgador do Destino (sim, há uma entidade chamada assim!) tomam parte no processo como réus e têm seus corações pesados na balança que vai dizer se vão para o céu ou para o inferno, repito, aquele ser desprezível aos olhos de qualquer entidade me despertou algo que denominais como curiosidade. Foi por isso que adiei o mergulho daquela alma e me coloquei ao seu lado, como que querendo entender o que é que ele tanto contemplava. Geralmente, e aqui me escuso de novamente me desviar do caminho da prosa que venho tentando me ater, as pessoas que têm suas vidas ceifadas quando chegam aqui e vislumbram a verdade que as esperam seguem um procedimento mais ou menos padrão que ao longo de meus anos de vida, que morte alguma há de tirar, pude ter a chance de estudar meticulosamente. Alguns que aqui chegam se desesperam, porque em vida foram homens e mulheres de mau caráter — como os humanos costumam dizer — e fizeram de tudo contra a vida de outros e deles mesmos e sabem que neste terreno não possuem chance alguma de obter os prazeres e as delícias que os maus tratos alheios ou não forneceram em vida. Outros, quando sabem do que se trata este lugar maldizem seus deuses, rogam pra-
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gas e os xingam por os terem enganado com promessas vazias. A estes eu respondo mentalmente que vale mais atentar para quem está enganando quem, e interiormente eles mesmos sabem que os embustes dos quais se servem para atentarem contra seus deuses são, na verdade criaturas de um criador só: eles mesmos. Outros ainda, cônscios de onde estão ficam indignados com sua situação e se recusam a descer voluntariamente até a beirada do rio da morte para terem seus corpos (almas, se preferirem vocês humanos tão cheios dos melindres e das palavras soltas de seus significados) levados até meu compatriota (nunca entendi esta palavra que vosmecês usam para se dirigirem aos seus iguais em nascimento, mas uso-a aqui em meu contexto) Julgador do Destino. Meus lacaios têm um trabalho com estes, porque se recusam a aceitar as condições que aqui precisam acatar. Dizem que em vida não foram notificados do que havia em morte. E que o que procede aqui é um engodo, uma armação tomada a cabo para que eles não consigam se defender previamente das asserções que aqui encontram. Estes me dão um trabalho danado, mas aqui não há lei humana, nem advogados, ou melhor, há muito deles, mas não como promotores ou acusadores. E em poucos minutos a balbúrdia cessa e eles estão mergulhando no rio novamente. Malditos revolucionários. Maldita filosofia. Existem outros mais, que entram no rio sem dar um pio sequer. Destes eu gosto bastante, porque me poupam trabalho e energia. São, como costumo dizer, os amantes da perfeita logística. Eu poderia me demorar ainda mais com estes meandros, quer dizer, estas explicações do mundo de cá, mas volto ao tema que de início pôs começo a este escrito. O homem continuava lá. Quieto. Atônito. Pasmo. Deilhe alguns minutos de presente e parece que o infeliz nem se apercebeu de quem estava ao seu lado naquele
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momento. Ficava ali, a fitar o precipício interminável que havia entre ele e o rio. Olhos arregalados, mãos envolvidas nos joelhos unidos. Finalmente não aguentei e perguntei. — O que é que tanto olha, ô infeliz? O homenzinho não pareceu se assustar comigo, o que me deixou ainda mais impaciente. Do outro lado da margem um de meus serviçais me perturba a contemplação da cena. — Olha que está a chegar mais uma leva, minha senhora. Que fazemos com eles? — Pois que fiquem esperando um pouco mais. Já terão uma eternidade para passar neste lado de cá. Que aguardem mais uns minutos, pois que todos ali nasceram de pelo menos sete meses. E se voltar a me chamar de “minha senhora” mais uma vez arrepender-te-á por toda a sua morte, ô animal desgraçado. Vai-te daqui e põe-te a fazer teu trabalho. Anda! Ele foi. Literalmente com o rabo entre as pernas. Voltei finalmente minha atenção para o humanozinho. — E então? Responde logo que tenho mais o que fazer, não escutou meu subordinado, homem? Aquele ser olhou para mim com sua cabeça preguiçosa e finalmente abriu sua boca. — A senhora, se não estou enganado… — Senhor, homem. Senhor — disse eu com fulgor assombroso nos olhos. — Desculpe a minha ignorância meu senhor. Mas é que em assuntos de mortes não sou versado, mesmo tendo vivido bastante. Mas eu ia perguntando: o senhor, se não estou enganado, é o Morte, não é? — Sim, e orgulho-me de ser temido e odiado por vós. — Pois que seja, senhor. Aliás, menos mal que seja assim porque as pessoas aprendem a te respeitar com isso. As pessoas sempre aprendem o que é respeito através do te-
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mor e do ódio, infelizmente — sofismou o pobre coitado. — Não! Não me diga que você é um daqueles revolucionários? Somente Marx fez com que trezentas mil almas cruzassem os braços para não entrar no rio. Por pouco meus subordinados não conseguem conter o levante que aqui se fez. Como sempre digo: malditos revolucionários! — Não sou, meu senhor. Quanto a isso fique sossegado. Sou um simples homem mesmo. Daqueles que ninguém sentirá falta quando eu me for. Quero dizer, agora que me fui. — E por que está aqui a chorar? A contemplar com pesar o seu calvário? Não acha então que seria melhor abraçar esta morte e vivê-la de modo que os mortos se lembrem de ti quando tua morte também se extinguir e fores daqui para outra condição anímica que não a vida e também não a morte? — Não estou triste com minha morte, meu senhor. Nem tampouco penso na minha pós-vida. Quanto mais na minha pós-morte. Eu só estou a admirar o senhor, só isso. — Só isso? Oras, mas que belo exemplar de filósofo eu fui ter aqui, não? Pois que vai rolar barranco abaixo agora mesmo. — Vou sim, senhor Morte. Não me importo. Só queria antes poder olhar mais um pouquinho só este rio que tantas almas tem dentro de si. — Já olhou bastante. Agora bunda à mostra que meu pé a espera. A conversa poderia ter ficado por aí. Eu ficaria feliz com a tarefa cumprida. E tudo seguiria como sempre seguiu. Sou Morte de paz e amante da ordem. Gosto do tradicional e do que funciona. Como dizem os seus: “em time que se ganha não se mexe”. Mas aquele vermezinho não
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conseguiu ficar com a língua dentro da boca. — Olha senhor Morte. Antes de ir-me, deixe apenas perguntar uma coisa. — Sim, pergunte. — Os homens, eles são eternos? — Como assim, criatura? — Digo, a humanidade, ela sempre vai existir? Estará ela daqui vinte séculos, ou mais, daqui vinte milhões de séculos? — Não me pergunte bobagens, ora! Sabes que nada neste mundo permanece para sempre. — Então quer dizer que a vida também não é eterna? — Nem ela, nem nada, como já te disse. — E qual o teu ofício mesmo, senhor Morte? — Bem o sabes, homem. Pois que é tirar das pessoas, dos animais, das flores e de tudo o mais a centelha denominada vida. — Entendo. — Entende o que? — Ora, senhor Morte. É simples. Mas antes me responda mais uma coisa: acaso tu és imortal? — Mas é claro que sim. Apenas eu, dentre todas as coisas que a Inteligência criou, é que possui essa qualidade. — E mais outra: acaso sabes fazer outra coisa na vida que não matar? — Que pergunta mais besta esta. É claro que não. Matar é minha especialidade única. Ninguém faz isto como eu! — Entendo. — Ora seu… fale de uma vez por todas ou cale-se para sempre. — Senhor Morte, o que farás quando a vida no mundo cessar? — Que disse? — O que é que vai acontecer, e era nisto que eu estava
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pensando quando sentei-me aqui, quando todo o mundo morrer, e o senhor não tiver mais nem uma alma sequer para ceifar? Vai fazer o que da sua vida? Sabe, eu tenho pena do senhor por este fado que carrega consigo. Deve pensar nisto a todo instante, eu presumo. É por isso que o admiro. Eu não pensava. Aliás, nunca pensei e nem sequer havia formulado o postulado que o maldito homem proferira em seu literal leito de morte. Se eu acreditasse nos remédios humanos, provavelmente tomaria algum para a corrosão do estômago (creio que entre os humanos isto se chame gastrite!), pois escutando isto não me controlei e joguei o homem com minhas próprias mãos no fundo do rio. Ele caiu, inerte. Mas a minha vingança não foi o suficiente. Aquele pequeno monstro havia me dado o que pensar, afinal! Depois de milênios gozando de prestígio entre todos os mortais, eu agora era o mais novo desempregado perpétuo, posto que o maldito serzinho havia me alertado para este problema de ordem cósmica: o que fazer da minha vida… errr… que estou a dizer? os nervos já estão muito atacados por causa disto… o que fazer da minha morte? Nos dias que se seguiram caí em profunda depressão. Já não matava mais com o prazer de antes, como um carnívoro que enjoa de comer carne. Fiquei letárgico por várias décadas e praticamente entreguei meu negócio aos meus acólitos, que cuidam de tudo para mim até os fins dos dias. Não sei o que faço, sinceramente, não sei. Estou desesperado e com um ódio mortal que sei, não poderei aplacar, visto que o serzinho culpado por isto tudo descansa enfim nos pés de seu adorado deus. Como eu tenho saudades dos revolucionários!… Malditos filósofos!!!
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~ variacao #4 ´
´ Marcos Vinicius Almeida Nasceu em 1982, em Taboão da Serra, na grande SP. Viveu desde sempre em Luminárias-MG, com breves passagens por São João del Rei-MG e Porto Alegre-RS. Publicou seu livro de estreia em 2009, um romance: Inércia (Ed. Multifoco). Publicou alguns contos em antologias, sites, jornais e revistas: Cult, Suplemento Literário de MG, Germina, Cronópios, Escrita, Histórias Possíveis, Diversos & Afins, Jornal Opção, entre outros. Venceu o Prêmio UFES de Literatura 2009/2010. Edita o Selo Terceira Margem (Editora Multifoco), voltado para autores mineiros. Site: <http://www.quebracorpo.com>. br Blog: <http://quebracorpo.blogspot.com>.
“Vende-se: sapatos de bebê, sem uso.” Ernest Hemingway
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´ Breviario de ~ Salomao
amor Feito a escova de dentes que caísse, abandonada atrás da pia do banheiro, onde duas semanas depois, ele a encontraria com as cerdas esturricadas; primeiro surpreso, você esteve aí esse tempo todo, e depois, sem culpa, enfiaria no lixo, porque outra escova, nova e de melhor qualidade, estava guardada no armário.
^ violencia Quando o pai saía com a testa suada, a mãe entrava no quarto e dizia para a menina que ela deveria esquecer aquilo. Então, lhe dava o chocolate.
amigos de bar Os caras no banheiro o esperavam para cheirar, o pó estava no seu bolso. Ele saiu sem beijá-la, já não a beijava, e depois, sozinho, se mijou na cadeira, com os olhos viraas variacoes literarias/45
dos, enquanto o dono do bar, rindo e a ponto de se mijar também, batia com força à porta do banheiro, chamando os caras no banheiro pra ver.
assimetria Deixou o emprego de anos, sem avisá-la, entrou no ônibus e partiu para a cidade. Enquanto ele não conseguia dormir no ônibus, por causa dessa estranha mulher que não parava de falar sobre a reforma da casa, ela (na cidade, sem esperá-lo), sorria de consciência limpa, sentindo os pelos da barba de um outro homem entre suas pernas suadas.
azul cobalto Abaixou as calças até os joelhos, sem tirar os sapatos ou a blusa, deitado de lado na cama, e o sangue escorria do vazio dela para o ventre dele. Ele tirou, sujo de sangue e colocou atrás, devagar, e ela consentiu. Mas eram os olhos dela que ele queria ver, então puxou o cabelo, e reparou que eram os mesmos, iguais aos olhos do filho dela, pequeno, do qual ele era professor. De volta à sua casa, e o marido não perguntou porque os cabelos dela estavam molhados, sentada no vaso enquanto o sangue ainda escorria, ela ouviu o marido tomar a lição do filho; o espelho a encarou e um arrepio frio subiu pelo corpo, mas ela não sabia explicar porque.
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rei Disse que precisava dela, assim, olhando para ele quando ele estivesse no topo, bem no topo, quando fosse o gerente, que sem ela não fazia sentindo. E ela sorriu, dizendo que, sim, sempre estaria aqui para vê-lo. Bem no topo, ele disse. Sim, bem no topo, ela disse, e a planta podre e viscosa ia crescendo e se espalhando vigorosamente dentro dela.
tudo bem Quando ela entrou em casa ele dormia no sofá, sem sapatos, mas com a roupa que tinha saído cedo, dizendo que ia procurar trabalho. Ela já não aguentava mais, o acordou e disse que ele precisava ir embora. Dessa vez ele não disse nada. Enfiou poucas coisas na mochila e disse que depois voltava para pegar o resto. E não voltou mais; e quando ela encontrou a foto, hesitou um pouco, só um pouco: enfiou tudo numa caixa e o caminhão levou. Então ele bateu à porta seis meses depois, mas ela não estava lá, um homem muito simpático atendeu. O homem insistiu que ele esperasse, mas não, ele não suportaria.
bilhar O Biela e o Tomate iam ganhar a terceira partida dos caras, e os caras estavam de saco cheio porque o Biela ajeitava os óculos e não errava e o Tomate puxava a cinta e não errava e vinham matando todas as bolas e todo mundo ali estava rindo dos caras, mas os caras tinham tomado quatro cervejas e três cachaças e quando a bola estourou
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na caçapa e todo mundo riu dos caras, os caras quebraram três garrafas seguidas na cabeça do Biela; sobrou só uma pra cabeça do Tomate.
cidade Biscoito era bolacha, ou o contrário, e pegando o ônibus ao contrário seus olhos não reconheceram nem um palmo de chão. Estava com fome e enfiou-se na primeira lanchonete onde o mendigo, sujo, disse, que se pagasse um pastel, ele o ajudava a voltar. Os dois, perdidos, sentaram-se à mesa enquanto o cheiro de gordura velha enchia o ar.
Deus. Não adiantava correr, ia chegar atrasado de qualquer forma. Mas tinha se esquecido que o chefe não ia aquele dia.
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~ variacao #5 ´
Marcos Nunes Praticamente anônimo; teve publicado um único conto em livro por força de classificação entre os escolhidos pelo caderno Prosa e Verso do jornal O Globo, no concurso Contos do Rio, conto esse intitulado “Retrato do artista enquanto jovem carioca”. Um volume de poemas quando jovem, editado pela Editora Dazibao, sob o título Viuseversa. Teve publicado um ensaio mais longo, denominado Um balão de ensaios, em uma revista de literatura da Universidade de Lisboa, em Portugal. Um romance às expensas do autor, intitulado O último a sair acende a luz, em 2009, Editora Usina de Letras. Dois outros romances disponíveis no site AGBOOK, para impressão por demanda, intitulados Juventude Futebol Clube e No meio da rua, um livro de contos, Um paralelista no labirinto e um de poesia, Poesia é uma prosa que se quebra. Compartilha conosco o blog de sua esposa: <http:// rachelsnunes.blogspot.com>, e também o seu e-mail: marcosaugustonunes@hotmail.com.
“Tornei-me o sangue que esguicha do célebre demônio branco, quando Rustam o racha no meio com sua espada maravilhosa; e estava nas dobras dos lençois entre os quais ele faz furiosamente amor com a filha de seu anfitrião, o rei de Turã. Sim, eu estava e estou em toda parte, sempre. (…) Que sorte tenho de ser o Vermelho! Sou o fogo, sou a força! Todos me notam e me admiram, e ninguém resiste a mim. Devo ser franco: para mim, o refinamento não se esconde na fraqueza nem na sutileza, mas reside na firmeza e na determinação. Eu me exponho, pois, aos olhares. Não tenho medo nem das cores nem das sombras; menos ainda da multidão ou da solidão. Que prazer tenho ao pegar uma superfície oferecida ao meu ardente triunfo: eu a encho, expando-me nela; os corações se embalam, o desejo aumenta, os olhos se arregalam e todos os olhares brilham! Olhem para mim: é bom viver! Vejam como é bom ver! Viver é ver. Podem me ver em toda parte, creiam: a vida começa e se acaba sempre comigo.” Meu nome é vermelho, de Orhan Pamuk
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Meu nome e´ vermelho
E
le certamente se perdeu percorrendo as vielas e esbarrando com os vendedores de narguilé ou, quem sabe, com as mulheres a preço, dissimulando a profissão com recatadas vestes em azul claro. (De fato o aprendiz recebera ordens de adquirir pigmentos variados no principal estabelecimento de Istambul, juntamente com o itinerário regular, passando pelas avenidas e cortando caminho somente por três vielas confiáveis, mas ele, esperto, sabia que se percorresse rota alternativa teria tempo para apreciar, no estúdio do venerável Hasan al-Su’udi, o desenvolvimento das últimas iluminuras no livro encomendado pelo sultão em comemoração à Hégira) Em Veneza, tão ciosa de seus símbolos, as prostitutas são, por vezes, irreconhecíveis, circulando pelos salões dos nobres a recitar poemas, explanar sobre técnicas de pintura, informar aos interessados sobre as últimas artes eróticas do Oriente. A confusão de Istambul permite a violação frequente dos códigos, de forma que eu suspeito da existência de rameiras mesmo entre as famílias de boa origem. Da mesma forma, entre os rapazes o dinheiro estimula trocas libidinosas indecentes. (Não há como o talento florescer entre tantas preocupações conservadoras, por isso o aprendiz passeia por outros
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ateliês e lamenta sua sorte — na verdade, azar — de ser designado justo para o estúdio de Ayaan Mohammed, já decadente e que só recebia encomendas de seguidores de Hassan ibn Sabbah, os hashishin) Mil anos e começaremos a andar para trás, justo quando julgamos estar à frente, em desenvolvimento político, econômico, filosófico e artístico — por este último posso jurar, pois, tendo muito aprendido em Veneza, também muito ensinei. (Os cavalos de Ayaan formam linhas de dezenas em miniatura, em uma única folha de papel cujas margens são adornadas em ouro. Montados nos cavalos, guerreiros com espadas empunhadas se dirigem ao inimigo à frente, nada mais do que uma nuvem indistinta de poeira não devassada mesmo pelos raios de sol que indicam a presença de Alá e nossa vitória final) Um hashishin penetra no estúdio de Ayaan silenciosamente, mas sua finalidade é outra: entrega ao miniaturista uma boa quantidade de pigmento vermelho. Dessa qualidade é o melhor fornecedor. Ayaan efetua o pagamento justo quando adentra o aprendiz, que se assusta com a presença do hashishin. Perdeu-se pelos becos de Istambul, Abdul-Baasit? A pergunta maliciosa afasta o medo e traz novamente à lembrança os belos cavalos árabes brancos e negros, e Abdul não percebe que o homem que partira deixara atrás de si uma nuvem de poeira de tom avermelhado.
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~ variacao #6 ´
Camila Fontenele Estudante de publicidade, fot贸grafa amadora, escritora por vontade, cantora de chuveiro, colecionadora de desapontamentos, viciada em Post-it e caf茅. Blog: <http://asimplesedoceironia.blogspot.com> Flickr: <http://www.flickr.com/photos/pelos_olhos_de_ camila> Twitter: @ca_fontenele
´ Soliloquio “ Vão dizer quantas pessoas podem sair de casa, a quantas horas, por quanto tempo, e por onde será permitido caminhar, durante quantos minutos, para que as turmas seguintes não sejam prejudicadas na regalia de ir e vir na cidade entupida? Vão acabar com a cidade, todas as cidade, vão acabar com o homem e a mulher também, vão fazer o quê, depois que eles mesmos acabarem? ”
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Coisas de graca ´
“— Queria. Por que não? Se este cafezinho me é servido de graça neste instante, e se eu voltar daqui cinco minutos depois, e mais cinco e mais cinco… até eu ficar entupido de café e bradas: chega, não quero mais! Por que não posso pensar que uma sociedade bem organizada serviria tudo a todos, a troco de sorriso?”
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O outro “Depois, não só um Outro. São muitos, são vagos, são indefinidos: os Outros. Que é que os outros vão dizer? Mas os outros nunca dizem nada, apenas se receia que eles digam alguma coisa desabonadora ou cruel. Quem costuma dizer, e é antes abonador, é o Outro. Mas abona escondido, sopra ou insinua a sentença oportuna, para que ela corra mundo sem que o Outro, pessoalmente se comprometa. O Outro tem medo? ”
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Colecionadora “ — Quem lhe disse que o guarda-chuva há de ser preto, e que o preto é necessariamente uma cor desolada? A alegria dos pretos, a musicalidade, o samba, o senhor acha isso triste? E tem guarda-chuva de toda cor, não só guarda-sol que pode ser enfeitar de cores. A gente é que não sabe colorir a vida, e cria preconceito de que a determinadas coisas devem corresponder determinadas cores. ”
As fotos desse ensaio são varições de De Notícias e não-notícias faz-se a crônica, de Carlos Drummond Andrade.
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~ variacao #7 ´
Hugo Crema Brasiliense capricorniano que nunca publicarei meu primeiro romance, que já saí em certos sites e portais literários. Atualmente finalizo meu querido O branco do daso de flores e vivo de passado. Twitter: @hugocrema
“Algo de ese terror se trasformaba en gracia, en gestos casi esquivos, en puro deseo.” (Algo desse terror se transformava em graça, em gestos fugidios, em puro desejo.) El Otro Cielo, Julio Cortázar.
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G
ravidade aparente. Os trinta segundos deram espaço para um dos canais contar apenas metade da notícia, editada até o talo na tentativa de deletar as intrusões. Após usar o cameraman robusto para abrir espaço por entre a multidão, a repórter, sem consultar nenhuma possível testemunha ocular ou mesmo alguém que estivesse por perto na hora do ocorrido, noticia a cena óbvia; as feições de curiosidade carnívora das pessoas em volta caíram bem de pano de fundo, acentuaram o drama. Uma grávida inserida no grupo de curiosos que se avolumou em torno do que a repórter chama sucinta de atropelamento fatal na plataforma inferior da rodoviária guarda para si uma interjeição por tido seu pé pisado na pressa da equipe de filmagem. Chega a murmurar algo para o homem ao seu lado, mas a cara de dor dele a faz conter as palavras no último momento; não só isso, contém palavras também por causa de alguém mais alto que no exato do contido gemido de dor se posta bem na frente dela tampando a visão da cena e o alcance da reclamação, raiva surda, muda e cega. O problema é o estrondo dos carros passando a toda na pista em frente, não deixa ouvir nada do que a repórter diz. Perdem pouco: as escoriações na cabeça do corpo estirado suprimem qualquer dúvida, obviamente um atropelamento e obviamente fatal. Quem pôde ouvir
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a repórter era quem estava mais distraído; o homem à esquerda da grávida estava mais perto da clareira em torno do acidente, encalhou no meio da multidão procurando um banheiro e no momento relê as escoriações na lataria do carro, parado enviesado, a roda dianteira esquerda engolindo o meio-fio. Quando a raiva pelo pé pisado e pela obstrução da vista estoura a represa do silêncio, a grávida emparelha à direita do homem alto e pergunta como é possível que um atropelamento destrua tanto a frente de um carro, ao que, a pretexto de perguntar onde fica o banheiro, o outro homem se intromete: pelo que ele viu do acidente, o lado direito do para-choque acertara o velho de raspão. A voz do motorista, recém-saído do carro, se submerge no barulho atrás de esconderijo e consegue, tanto é que, apesar da distância curta, a grávida e o alto só o veem gesticular violentamente, a boca desleixada sempre aberta, como se esquecida nesta posição. O homem multiplica a prestidigitação dos braços sem sucesso, ao tentar apoiar uma mão contra o ombro da repórter é avidamente repelido, ela deu um passo para trás e o cameraman faz menção de projetar o corpo levemente para frente: clara ameaça seriam as palavras que o atropelador usaria depois para caracterizar esta ação frente às câmeras de uma outra rede de televisão, a que se interessará por esta versão. Uma rede cujo repórter de campo demorou a chegar e cuja equipe de filmagem também pisa no pé da grávida. O porra amigo, toma cuidado, tem grávida aqui do homem alto confirma que o entendimento dele da irritação dela não precisou de palavras, e ainda foi reiterado por um pé displicente deixado no caminho do assistente de gravação para fazê-lo tropeçar. Funcionou em parte, não cai, tropeça, berra cambaleante ao cameraman para esperar por ele mas não é ouvido: mais um atraso em relação à emissora concorrente, cuja repórter já enfurecia a má-vontade ad-
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quirida do atropelador com perguntas que ele considerou em testemunho posterior ao repórter concorrente ofensivas e tendenciosas. Enquanto isso, o homem de caminho extraviado e bexiga cheia pergunta à grávida onde fica o banheiro, ao que ela retruca irritada e é acalmada pelo alto o qual, ao indicar a ele a direção, tampa a sua própria visão e a da grávida com o braço e perde a reviravolta. O repórter atrasado tenta arrancar o atropelador dos tentáculos das perguntas da rival, deu sorte porque o corpo estirado no chão recobrou a consciência, engrolou uma sequência de consoantes e começou a reivindicar pontuação inverossímil. Contando o número de hematomas e estimando a extensão e a profundidade de arranhões, resmungando; o velho mal levantou e vira presa dos repórteres. O alto entabula com a grávida um pré-assunto sobre o aguçamento das sensibilidades física e emocional na gestação, pretexto para um convite para um caldo de cana ali na rodoviária mesmo, ela concorda: os dois se afastando notam cada vez menos o murmúrio, nem chegam a ouvir o velho ressuscitado contar para a câmera da aposta feita com um amigo, velho e desenganado também, ganha quem colecionar mais machucados sem morrer. Depois de prometer ao proprietário do carro pagar os danos e depois de acompanhar, como prometeu, o repórter ao estúdio para uma exclusiva na qual tentarão explicar como uma queda de uns cinco metros, da altura da marquise, não matou o velho; ele pretende ligar para o seu amigo, que alegou doença para não ir filmar a façanha do dia, e contar sobre o aumento da coleção e a consequente tomada da liderança. A repórter entrou no carro de reportagem brava, tendo, durante a desmontagem do tripé, o seu pé fincado por uma das hastes, culpa do cameraman.
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~ variacao #8 ´
Bruna Maria Carioca, formada em Letras e mestranda em Literatura Portuguesa (UERJ). Acaba de escrever seu primeiro romance, que foi selecionado, em 2010, pela Fundação Biblioteca Nacional para receber amparo do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa durante o término de sua escritura. Tem alguns contos selecionados em antologias a serem publicadas em 2011. Foi 3º lugar no concurso de contos promovido pela Casa do Novo Autor Editora, em março de 2011. Tem textos publicados em sites como Revista Germina Literatura e no Blog do Jornal Plástico Bolha. Além disso, edita este projeto aqui. Enquanto não publica seu romance, ela bloga sobre leituras e afins em http://blog.brunamaria.com.
“Os que avançam de frente para o mar E nele enterram como uma aguda faca A proa negra dos seus barcos Vivem de pouco pão e de luar.” Lusitânia, Sophia de Mello Breyner Andresen
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Lisboa
L
embro de casa toda vez que vejo o mar. Há a presença de todas as histórias possíveis nesta visão plácida, à distância, na qual a água parece um espelho intacto, imóvel. Reflete os sonhos que às vezes perco. Não raro desejo tomar um navio, e voltar. Voltar: para a casa que abriga a primeira linha de uma história universal. Mas, estou aqui. E isso custa muito. Portanto, determino não sentir este lampejo de fuga, esta disposição de saudade. Assim, centro-me e fico. Quando for mais tarde, estarei em um desses bondes, como os antigos. Há um encontro marcado e, dessa vez, prometi comparecer. Será hora de devolver as chaves do apartamento. Será hora de definir um novo dia que possa, quem sabe, acabar com a recordação de fraquezas tão mais visíveis com a incidência da luz que vaza pelas brechas da cortina. Quando vejo o mar, assim de longe como vejo agora, tenho desejo de partir sem me despedir. É como o último presente que se pode dar: nunca terminar, deixar para sempre em contínuo, sem que eu devolva as chaves, sem que eu ouça as últimas determinações, sem que eu tenha de difundir as sentenças que reafirmam que, sim, nós falhamos, nós sempre falhamos em algum ponto, e que teremos que descobrir uma forma de coabitar a mesma
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cidade, de redescobrir as nossas peles, de nos esconder em outros cafés. O mar que vejo, eu vejo de longe. É o meu fracasso. Está estampado no verde-azul tão calmo que se define à distância. Não me cabe o esforço do movimento, a audácia da partida. A coragem não pode me consolar. E fico. Ficando, eu penso. E é provável que, partindo, eu vá dar no mesmo lugar em que estou, apenas com a diferença de ângulos: espelho reverso — eu, ele, mar, bondes e cafés refletidos, estampados para onde quer que eu vire o espelho. De noite, quando as luzes acenderem, a cidade terá um céu imenso, longe do brilho das lâmpadas, e eu descerei do bonde na viela pouco iluminada. Alguém me espera. Deixarei as chaves do apartamento em um dos bolsos de seu paletó. As palavras serão excesso. Daremos um último beijo, mecânico, amor de hábito, maquinal. E um bonde escuro estará parando como a me esperar para a volta. Eu tomarei este bonde, sem olhar para trás. Voltarei. Voltarei toda a história, todo o caminho, até tornar a ver o mar, ancorada no breu indefinido de uma noite. — Onde é mesmo que nós estávamos? E não haverá nenhuma estrela no céu.
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~ variacao #9 ´
Luisa Geisler Seu livro de estreia, Contos de Mentira, foi agraciado com o Prêmio SESC de Literatura 2010/2011. Luisa já ganhou um ou outro concurso literário, publicou em uma ou outra antologia e revista, já fugiu de casa e arrancou os sisos. No momento, estuda Relações Internacionais e faz monitoria de pesquisa em Conjuntura Econômica. Escreve. Nasceu em 1991 em Canoas (RS).
â&#x20AC;&#x153;the flesh covers the bone and they put a mind in there and sometimes a soul, and the women break vases against the walls and the men drink too much and nobody finds the one but keep looking crawling in and out of beds. flesh covers the bone and the flesh searches for more than flesh.
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thereâ&#x20AC;&#x2122;s no chance at all: we are all trapped by a singular fate. nobody ever finds the one. the city dumps fill the junkyards fill the madhouses fill the hospitals fill the graveyards fill nothing else fills.â&#x20AC;? Alone With Everybody, de Charles Bukowski
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Feliz ´ Aniversario
A
s tias haviam permanecido no carro, Sofia e a mãe só buscaram o bolo, questão de minutos. Saíram da confeitaria, a mãe carregando, com as duas mãos, a caixa. No banco do carona, Juliana, a prima, destravou as portas. Emagrecera muito desde a última vez que ela e Sofia viram-se. Os óculos de sol, a janela escancarada, o calor de trinta graus e a camiseta de mangas longas da prima eram uma contradição. As duas tias, ambas com IMC de classificação de, no mínimo, obesidade mórbida, empurraram-se para que Sofia entrasse no carro banco de trás ao lado delas. A mãe de Sofia insistiu que ela colocasse o sinto de segurança. Sofia colocou-o, ajustou a postura, sentiu o apertão no peito. Ajustou as pernas com dificuldade no banco de trás do carro. As tias apertavam-se, grunhindo a cada movimento de Sofia. Enquanto a mãe colocou devagar a caixa de papelão no colo de Sofia, encheu Sofia de recomendações. A caixa gelada pesava no colo de Sofia. Sofia mexeria mais as pernas se pudesse, se não tivesse um metro e oitenta. Um metro e oitenta que se tornaram um metro e oitenta só de pernas. O banco vibrou enquanto a mãe ligava o carro e dirigia-se à casa de Juliana e da tia. Juliana permaneceu em silêncio, futricou nas mangas, puxou-as para cima das mãos.
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As tias voltaram à conversa em voz alta com a mãe de Sofia. Falavam da festa. O calor deixava marcas de suor nas roupas das tias, na região das axilas. Sofia concentrava-se no bolo dentro da caixa. O bolo da prima era bonito, sim. Coberto com confetes coloridos, o recheio tinha camadas coloridas das cores do arco-íris e o glacê era magenta. O peso pressionava as pernas de Sofia, machucava. As pernas das tias pressionavam Juliana contra a porta. As tias falavam dos salgadinhos, da festa, dos convites, da decoração da casa, telefonemas, de quem viria à festa, de quem não viria, xingavam os ausentes com palavrões. — É claro que não é aniversário dela — disse uma tia —, mas nem por isso as pessoas tinham que deixar de comparecer. É um momento especial a todos. — A mãe de Sofia disse: — É que muita gente se magoou. Acham que é coisa de gente mimada. — E não vir quer dizer o quê? Juliana pediu, sua voz baixa, pediu que mudassem de assunto, que falassem de outra pessoa. A tia voltou a falar dos salgadinhos de festa. O carro abafara-se com a espera sob o Sol. As pernas da tia ao lado apertavam cada vez mais Sofia contra a porta do carro e contra a gordura da tia. Sofia sentia suas pernas mergulharem no tecido adiposo, a gordura da tia abraçava o raquitismo de Sofia. Sofia respirou fundo, sentindo o cheiro do aromatizador de lavanda. Náusea. Faltava-lhe ar, faltava-lhe ar, todo o ar do carro e o das janelas escancaradas eram supérfluos, faltava-lhe ar dentro do pulmão, ela nunca encheria o peito de ar por completo, faltava-lhe silêncio. Sofia inspirando e expirando, repetindo para si que tudo ficaria bem, a umidade do bolo atravessando a caixa atravessando a calça jeans até as coxas magras. Juliana virou o pescoço para trás, o cinto de segurança
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impedindo-a de virar-se inteira. Juliana olhou para Sofia por trás dos óculos de sol. Os óculos de sol cobriam metade do rosto e metade da expressão. Com um sorriso literalmente amarelo, Juliana disse com a voz baixa: — Tá tudo bem aí contigo? Fazia apenas uma semana que Juliana voltara para casa. A umidade do bolo atravessava a caixa e atravessava regata de Sofia, grudava na barriga. Juliana perdera tantas aulas na universidade, talvez o semestre inteiro, reprovaria por faltas. Sofia sentira a falta da prima durante Antropologia IV, quis dormir durante todo o pós-estruturalismo. O celular tocara num dia de calor idêntico. Sofia lembrava que naquele dia vestira um moletom a mais do que precisava e passou calor no hospital sem poder tirá-lo. Sofia não se recordava se o calor pertencia àquele dia ou aos moletons. Mas o corpo inteiro suara. Parecia a Sofia que tudo aquilo fazia anos, mas foram semanas. Sofia recebendo a ligação dos tios no meio da tarde, convocaram ela e a mãe ao hospital. Os tios deveriam estar em viagem, mas sentiram-se culpados de deixar Juliana sozinha. A família deveria viajar em conjunto, como sempre fizera. Voltaram. Na sala de espera, as lágrimas emolduravam os discursos de “e se…”, jogando as culpas em todos os lugares e pessoas. — A culpa foi daquele merdinha — a mãe de Juliana passou os dedos sobre os olhos — eu sei que foi… — A mãe de Sofia alcançava um lenço, o qual a mãe de Juliana afastava num tapa: — Não tô chorando. — A mãe de Sofia continuava estendendo o lenço, insistia que o médico dissera que o pior já passou, Juliana estava bem, estava ali. Quando eram pequenas, Sofia e Juliana gostavam de dançar atrás da casa, perto da laranjeira apodrecida. A tia derrubaria a laranjeira para aumentar a garagem. Juliana
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chorou trancada no quarto ao saber da laranjeira. Juliana sempre fora sensível demais. Sofia sorriu, o bolo pesando-lhe no colo. O carro vibrava com o movimento do motor, movimento das ruas. O cheiro de suor que vinha das tias e dela mesma não a incomodava. O mormaço do carro, a umidade que ela mesma lançava em sua camiseta regata, em sua testa, em torno de seu cabelo loiro preso num curto rabo-de-cavalo, nada daquilo a incomodava. Sorriu para Juliana. — Tudo ótimo.
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Este livro foi licenciado com uma Licença Creative Commons Atribuição - NãoComercial SemDerivados 3.0 Brasil. © As Variações Literárias, RapaDura Edições, 2012 Capa (concepção): bruna maria Capa e Proejto Gráfico mauro siqueira
Os personagens e as situações descritas nessa obra fazem parte do domínio da ficção, não se referindo, assim, a pessoas e/ou fatos do âmbito da realidade.
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ M813p Maria, Bruna (org.) As Variações Literárias / Bruna Maria, (org.) ; Rio de Janeiro: RapaDura Edições, 2012. 87p. ; 12x21 cm ISBN 978-85-509-1921-9 1. Literatura brasileira contemporânea. 2. conto. I. Maria, Bruna. II. Título. 12-0813
CDD: 869.93
Este e-book foi composto em fontes Impact e Typical Writer, para títulos e destaques e para o texto Iowan Old Style.
variação
s. f. 1. Ato ou efeito de variar. 2. Mudança, modificação. 3. Pop. O mesmo que delírio. 4. Mudança numa ordem de fatos. 5. Astron. Desigualdade do movimento lunar. 6. Biol. Aparecimento num indivíduo, ou num grupo de indivíduos de um carácter novo que não pertence tal qual a qualquer dos antepassados. 7. Fís. Mar. Ângulo que faz a agulha magnética com a linha dos pólos (declinação). 8. Mús. Ornatos num trecho, de modo que conservam os elementos do tema principal. 9. Gram. Parte variável de uma palavra; flexão.
(Fonte: Dicionário Priberam)
Junte todas as definições acima — e suas variantes — àquilo que é literário; àquilo que é da literatura; àquilo que é e que pode ser literatura. E, a partir desse mote, invista em derivações. Ou melhor: em variações — eis a proposta de AS VARIAÇÕES LITERÁRIAS. Com variações criativas e textuais, publicadas mensalmente, queremos revisitar, como releitura, obras já publicadas. A verossimilhança com a ficção de origem não é fundamental — mas é a base, é o ponto de partida para a elaboração da nossa ficção da ficção. Queremos vivenciar leituras sobre uma obra através de uma forma de escrever. E, assim, homenagear autores e suas obras à medida que as releituras literárias-inventivas-ficcionais sejam publicadas.
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