Folheto Exposição Rubens Gerchman: Com a Demissão no Bolso

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8 de agosto de 2014 a 8 de fevereiro de 2015 Casa Daros Rio de Janeiro



apresentação

Existem coisas que não conseguimos ter Um ano mais tarde, em uns versos que intitulou “Pela rachadura”,Gerchman enunciou em quantidade suficiente e muito menos algumas das estratégias com as quais reo tempo todo.Talvez por isso, entre 1969 tornaria equipado ao Brasil: “...corte prie 1970, enquanto estava em Nova York, meiro na superfície (...), preparado para Rubens Gerchman inventou um modo de mergulhar (...) procurar no cosmos o malevar no bolso uma porção de mundo. cro no micro, sementes procurando caminho entre pedras, ser líquido bastante para Foi Hélio Oiticica quem batizou de pobrotar, numa racha do asfalto...”. cket stuff (coisas de bolso) aqueles

poemas que cabiam na palma da mão A necessidade de transcender o aflitivo imee garantia que,desde as Marmitas,as diatismo da cena brasileira na última década Caixas de morar e as Cartilhas em suda ditadura militar e o desejo de criar um perlativo, a obra de Gerchman havia espaço para o encontro e a reflexão sobre evoluído para a ideia de um engenhoarte contemporânea foram o que motivou so “construa seu próprio jogo” portátil. Gerchman, em agosto de 1975, a considerar Como metáforas sensoriais,ele colocou a proposta que recebeu de assumir a direção pequenos cubos de plástico em uma do então Instituto de Belas-Artes do Rio de caixa de madeira cada um identificado Janeiro. O dramaturgo Paulo Afonso Grisolli, com palavras de espaçosa e escorregarecém resignado diretor de cultura da Secredia subjetividade: VOCÊ, EU, SOS, ERVA, taria de Educação do estado, o havia indicado BRANCO, PRETO, CORES, HOMEM, SANpara o cargo, mas Gerchman ainda não esGUE, SOL, CÉU, MAR... E essa mínima tava totalmente convencido. Lina Bo Bardi provisão de sensações, tão intangíveis lhe disse: “Aceite! E, se achar que deve sair, quanto inefáveis, poderia servir como então peça demissão”. Gerchman conta que um tipo de talismã para levar consigo, a escreveram juntos sua carta de renúncia e, qualquer lugar e a toda hora. pronto para apresentá-la a qualquer momen-


to, levou-a já assinada durante vários anos dentro e fora da escola. Com as confeem seu bolso, como um pocket stuff. Não era rências-espetáculos e outros eventos, a um gesto de descompromisso, mas sim de informação se transformava em matéria autonomia, de liberdade de escolha. -prima fundamental para o exercício do pensamento crítico. A vontade de atuaNão é possível separar as inquietudes lizar-se constantemente não se referia artísticas de Gerchman das proposapenas aos “depósitos de informação” tas pedagógicas que ele introduziu na nem ao repertório de exercícios pedaEscola de Artes Visuais na época. A gógicos no programa de oficinas; Gerinterseção de ambas as atividades foi chman sustentava que o próprio projeto nossa bússola no modo de ordenar e da escola devia ser reformulado a cada relacionar a documentação disponível e semestre, o que incentivaria a noção de de orientar as entrevistas que alguns arte entendida como campo cognitivo e de seus colegas ofereceram. Uma das investigativo: “A viabilidade da escola grandes contribuições de Gerchman reside em sua capacidade de considefoi ter reunido um quadro de talentorar cada aluno um pensador individual, sos professores e colaboradores, afins um propositor e descobridor do que a com o propósito de “des-academizar” a arte é”. O trabalho com o corpo, com o escola e transformá-la em laboratório. cotidiano, o convívio e lazer como ferraPara estimular “novas formas de penmentas educativas, o transdisciplinar e sar”, a escola que Gerchman propunha o pluridimensional foram algumas das dava prioridade à criação de vários caestratégias que abriram espaço para o nais e fluxos de informação, que circudebate sociocultural e para um critério lavam em diferentes níveis e serviam formativo experimental que, sem excluir para consulta e reflexão de professores os “domínios da técnica”, não ficava ree alunos (ou “usuários”, como o artista duzido a ensinar a “fazer” e se ocupava costumava chamá-los) em suas ações igualmente de ensinar a “ser”.

Eugênio Valdés Figueiroa


Gerchman, o artista que testemunha e se faz presente.


Pouco após o falecimento de Rubens Gerchman, em 2008, foi criado o Instituto Rubens Gerchman (IRG) com o intuito de perpetuar e salvaguardar tanto a memória do artista quanto seu vasto acervo. A coleção do Instituto contempla um legado bastante diversificado, que vai além das obras de arte deixadas pelo artista: seus materiais de trabalho, a biblioteca pessoal, periódicos históricos, correspondências, fotografias, cromos e negativos. Profissionais de vários campos - arquivistas, museólogos, restauradores, historiadores, curadores, produtores e gestores - vêm realizando um importante trabalho de pesquisa, restauro, conservação, preservação e difusão do legado de Rubens Gerchman. Disseminar a produção artística de Gerchman - criando novos públicos, democratizando o acesso a sua obra e permitindo a leitura da própria história da arte brasileira - tem valor inestimável para os herdeiros do artista, para a equipe do Instituto e para a cultura do país. O IRG, entidade sem fins lucrativos, divulga a obra de Gerchman através de exposições, catálogos e vídeos, além do site www.rubensgerchman.org.br.

Clara Gerchman Diretora do Instituto Rubens Gerchman


Nasceu no Rio de Janeiro em 1942, estudou desenho no Liceu de Artes e Ofícios do RJ e cursou a Escola de Belas Artes em 1962, quando fez sua primeira exposição coletiva. Dois anos após, fez sua primeira exposição individual e, a partir daí, seu trajeto teve marcos impressionantes, com exposições na VIII Bienal de São Paulo, em galerias de Paris e no Museu de Arte Moderna de Buenos Aires. Em 1967, assinou a Declaração de Princípios Básicos da Vanguarda, realizou uma exposição individual no Museu de Arte Moderna do Rio e participou da Bienal Interamericana de Córdoba, da Bienal de Paris e da Bienal de Tóquio. Nos anos seguintes, participou de diversas exposições individuais e coletivas e de bienais, dentro e fora do Brasil.

Ganhou um prêmio em Nápoles pelos cartazes que pro-

Em 1973 foi feita uma exposição individual retrospectiva de seu trabalho nos Museus de Arte Moderna do Rio de Janeiro e de São Paulo. Assumiu a direção do antigo Instituto de Belas Artes na Escola de Artes Visuais, ao qual transformou na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Em 1981, ganhou do governo do Estado do Rio de Janeiro o prêmio Golfinho de Ouro – Personalidade do Ano, no setor Artes Plásticas.

táveis acervos e exposições, das quais vale mencionar

duziu para peça de Eduardo Felipo. Lançou um livro de litografias com textos de Armando Freitas Filho, intitulado Doublé Identity; no ano seguinte, lançou o livro LUTE, no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Realizou inúmeras e notáveis exposições individuais e participou de várias coletivas, dentre as quais cita-se Los Once – Futebol y Arte, no Centro Cultural Estación Mapocho, Santiago, Chile, em 2007, ano em que também participou da Feira Literária de Internacional de Paraty (Flip). Veio a falecer no ano seguinte. A memória de seu trabalho está registrada em incona Exposição Onze – Futebol e Arte África 2010 x Brasil 2014, em Johannesburgo, África do Sul, exposição esta que se realizou também em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Atualmente, o Instituto Rubens Gerchman é responsável pela catalogação, conservação e difusão do acervo de obras do artista.



EAV: cultura transplantada

“A Escola de Artes Visuais permitiu, a partir de 1976, o surgimento de toda uma produção marginalizada pelo sistema acadêmico cultural vigente, que, como sabemos, está presente em quase todos os estabelecimentos de ensino e divulgação de cultura no Brasil” (Rubens Gerchman, 1978). Em plena ditadura militar, o artista carioca Rubens Gerchman fundou e assumiu a diretoria da Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), função que exerceu entre 1975 - quando o projeto ainda estava em fase de concepção - a 1979. A EAV se tornou, a partir de então, um espaço de experimentação, divulgação e produção de arte, que naquele momento era isolada pelos mecanismos de censura do regime militar. Mas, além disso, a EAV se estabeleceu como um ambiente de livre debate entre os diferentes meios de arte, levando sempre em conta a multidisciplinaridade e a excelência de seus professores - e (por que não) de seus alunos. O grande valor dessa Escola não é sua ideia, mas as pessoas que se reuniram em torno dela. (...) Desenvolvemos um trabalho que nos revelou o maravilhoso poder do debate livre e sincero”, disse Marcos Flaksman, professor da Oficina de Cenografia entre 1975 e 1978.

Não seria possível dar conta da importância do papel de Gerchman como diretor-fundador da EAV sem voltar alguns anos na história (a sua e a do Brasil), por isso a exposição Rubens Gerchman: com a demissão no bolso começa nos anos 1960 – mais precisamente em 1966 –, com a participação do artista carioca na mostra Pare, ao lado de Antonio Dias, Carlos Vergara, Pedro Escosteguy e Roberto Magalhães. À medida que percorremos a linha do tempo, fica cada vez mais clara a postura crítica de Gerchman em relação ao que se passava no Brasil naquele momento. Em 1966, a ditadura militar começava a se firmar como um projeto de regime autoritário de longo prazo (algo que não ficou muito claro para grande parcela da população brasileira na época do golpe, em 1964). O ano de 1968 marcou a escalada da censura e da truculência do regime, culminando no decreto do AI-5, emenda que garantia ao presidente, na época o marechal Arthur da Costa e Silva, plenos poderes e institucionalizava a prática da tortura.


UM NOVO ESPAÇO PARA EXPERIMENTAÇÃO Na cultura, a década de 1960 foi marcada por movimentos de vanguarda, como o tropicalismo e o conceitualismo. Gerchman criou um vínculo forte com o primeiro: foi o autor da capa do álbum-símbolo do movimento, Tropicalia ou panis et circenses, de 1968. Um ano antes, participava da amostra Nova objetividade brasileira (MAM-RJ) com a obra Lindoneia, a Gioconda dos subúrbios, considerada emblemática do movimento, ao lado de artistas como Hélio Oiticica. Foi um tempo difícil para a sociedade brasileira, mas inegavelmente frutífero para a cultura do país. Havia uma espécie de encontro de grandes artistas e pensadores-produtores de diferentes meios… música, artes plástica, cinema caminhavam próximos: Caetano Veloso, Lygia Clark, Frederico Morais, o próprio Grechman, Cildo Meireles, Artur Barrio, Lygia Pape, entre muitos outros. Poucos meses depois do decreto do AI-5, alguns artistas se reuniram em boicote à censura do regime militar. Em 1969, Gerchman recusou-se a participar da X Bienal de São Paulo, assim como Sérgio Camargo, Oiticica e Lygia

Clark. As obras desses e de outros artistas que se negaram a tomar parte no evento foram expostas no MAN-RJ, em novembro do mesmo ano, no Salão da bússula, um marco do experimentalismo brasileiro. Assim como o Salão, outras mostras passaram a adotar um caráter político-crítico forte, como aconteceu em Belo Horizonte com Do Corpo à terra (1970), organizada por Frederico Morais, com obras que abertamente se dirigiam à violência e à tortura praticada pela ditadura militar e o Esquadrão da Morte. “Vivemos uma cultura transplantada”, disse Gerchman em 1971, época em que vivia em Nova York. Por lá ele organizou o Museu Latino-Americano e fez parte do Movimento de Independência Cultural Latino-Americana (o Micla), que sustentava o boicote à Bienal de São Paulo.

O grande valor dessa Escola não é sua ideia, mas as pessoas que se reuniram em torno dela.



NOVO CENTRO DE DEBATE DA ARTE E DA CULTURA A década de 1970 pareceu fortalecer Gerchman não só artisticamente - com sua primeira invidivual no MAN-RJ e no Masp-, mas também no campo do pensamento e do debate das artes. De volta ao Brasil, passou a escrever artigos, participou de mesas-redondas, fundou e editou a revista Malasartes ao lado de artistas e poetas como Waltercio Caldas, Cildo Meireles, Carlos Zilio e Chacal. E, em 1975, veio o convite: indicado pela arquiteta Lina Bo Bardi, Rubens Gerchman foi convidado pelo diretor-geral do Departamento de Cultura da Secretaria de Educação e Cultura do Rio de Janeiro, o dramaturgo e também tropicalista Paulo Afonso Grisolli, para participar da reformulação do Instituto de Belas-Artes, escola criada em 1950 e que desde 1966 funcionava no Parque Lage. Um pouco desconfiado com a proposta por não conseguir se imaginar ligado a atividades pedagógicas, mas ainda assim tentado com a oportunidade de abrir um espaço de discussão de arte e cultura, Gerchman disse que aceitaria o trabalho desde que estivesse livre para abandoná-lo a qualquer momento, e por isso afirmava andar sempre “com a demissão no bolso”. Começou, assim, a nova Escola de Artes Visuais. Ao iniciar o processo de reformulação da Escola, Gerchman rodeou-se de um importante time de colaboradores para orientar o programa: Celeida Tostes, Dinah Guimaraens, Helio Eichbauer, Lélia Gonzalez, Lina Bo Bardi, Lygia Pape,

Marcos Flaksman e Xico Chaves eram apenas alguns deles. A nova escola proposta por Gerchman tinha como princípio o estabelecimento de um “Depósito de Informação” (nas palavras do próprio) e um Centro Experimental de Arte; a criação de um fluxo entre a EAV e o que se passava no mundo exterior, com a organização de eventos abertos; e a reformulção - a cada seis meses - do projeto a partir das experiências de seus professores e alunos. O diálogo entre vários meios, entre aluno e professor, guiou as oficinas da EAV e é até hoje um dos diferenciais da escola fundada por Rubens Gerchman: “Quando concebi a nova Escola de Artes Visuais, pensei em sua estrutura como uma ampla rede comunicante, modificando e reorientando as diversas áreas conhecimento”. Essa permeabilidade entre as linguagens pode ser vista como um reflexo do que já acontecia na cultura nos anos 1970. A arte, através de happenings e performances, saiu de sei isolamento como expressão puramente plástica e passou a conversar com a música, o cinema, a fotografia e o teatro. Dessa mesma forma, além dos “limites” das artes plásticas, a EAV tornouse um ponto importante para o cinema naquele momento, com a Cineave, cineclube que exibia filmes que haviam sico censurados pelo regime militar ou não entravam para o circuito. A música e a poesia marginal também ganharam espaço. Os eventos abertos se tornaram uma oportunidade


de encontro entre artistas e pensadores de em 2006, Gerchman relembrou os anos diferentes meios. Em 1976, por exemplo, à frente da Escola: “A EAV se tornou um o grupo de jovens poetas Nuvem Cigana local aberto, dinâmico, multidisciplinar. ( composto por Bernardo Vilhena, ChaLançamos o jornal Lampião Gay. Abrical, Charles, Ronaldo Bastos, Ronaldo mos espaço para expressões que estaSantos e Gulherme Mandaro) lançou sua vam reprimidas pela ditadura e sofresegunda Artimanha, evento com série de mos as consequências.” espetáculos performáticos coletivos, no Em 1979, um novo governo assumiu o Parque Lage. Apenas um ano após sua comando do Rio de Janeiro, encabeçaabertura, em 1977, a EAV organizou seu do pelo governador eleito indiretamente maior festival de música: o Verão a Mil, Chagas Freitas. Com a mudança, Paulo com Jards Macalé, Milton Nascimento, Afonso Grisolli foi afastado de seu carCaetano Veloso e Gilberto Gil, estabelego na Secretaria de Educação e Cultura cendo-se também como um espaço alterdo estado. Em março do mesmo ano, nativo às salas comerciais e para profisGerchman e todos os colaboradores das sionais em início de carreira. oficinas da EAV foram demitidos. Mas, além disso, a EAV se tornou um Não é possível separar as inquietudes ponto de encontro para importantes artísticas de Gerchman das propostas críticos e artistas: Mario Pedrosa, Ferpedagógicas que ele introduziu na Esreira Gullar e Roberto da Matta eram cola de Artes Visuais na época. A interfrequentadores do Parque Lage. Até fiseção de ambas as atividades foi nossa guras internacionais, como o artista arbússola no modo de ordenar e relacionar gentino Luís Felipe Noé, quando vinham a documentação disponível e de orientar ao Rio, não deixavam de passar pela as entrevistas que alguns de seus coleEAV. Em entrevista a Fábio Magalhães,


gas ofereceram. Uma das grandes conpedagógico de Rubens Gerchman podem tribuições de Gerchman foi ter reunido ser vistos na Sala de Oficinas, ao lado um quadro de talentosos professores da exposição Com a demissão no bole colaboradores, afins com o propósito so. Lá, o visitante encontra documentos de “des-academizar” a escola e transhistóricos, fotos de diversas personaliformá-la em laboratório. Para estimular dades que fizeram parte dessa história “novas formas de pensar”, a escola que e um depoimento inédito do artista em Gerchman propunha dava prioridade à 2007 sobre o período. Um dos objetivos criação de vários canais e fluxos de indesse levantamento é revisitar esses formação, que circulavam em diferentes princípios e essas estratégias pedagóníveis e serviam para consulta e reflexão gicas através de diversas preposições e de professores e alunos (ou “usuários”, ações para o público durante o período como o artista costumava chamá-los) da exposição: oficinas, ações móveis, em suas ações dentro e fora da escola. fóruns, performances, aulas, encontros, debates e exibição de filmes fazem Foram quatro anos, muitos avanços, diparte da programação paralela que versos colaboradores e um debate exacompanha a mostra. tenso. Mergulhar nessa história é trazer à tona as inquietações e as pesquisas artísticas de Rubens Gerchman que se transformaram em princípios pedagógicos da Escola. Conceitos como casa, corpo, cosmos, cotidiano se interligavam de maneira transdisciplinar no programa desse grande “laboratório”. Detalhes das oficinas e do pensamento

A EAV se tornou um local aberto, dinâmico, multidisciplinar.



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