Rascunho
EDIÇÃO 01 - ANO 01 - Nº 01 FEVEREIRO DE 2018 www.labjor.ufma.br
SORORIDADE NOS DIAS DE HOJE: O relacionamento entre mulheres cis e trans
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Universidade Federal do Maranhão Curso de Comunicação Social – Jornalismo Reitora: Profª Dra. Nair Portela Silva Coutinho Vice-Reitor: Prof. Dr. Fernando Carvalho Silva Diretora do CCSo: Profª Dra. Lindalva Martins Maia Maciel Chefe de Departamento: Prof. Dr. Protásio Cézar dos Santos Coordenadora de Curso: Profª Me. Luiziane Silva Saraiva Orientadora do Projeto: Profª Dra. Li-Chang Shuen Cristina Silva Sousa Diagramação: Breno Frazão
EXPEDIENTE Equipe: Alan Silva Alessandra Medina Ana Luíza Lopes Ana Paula Ramos Ananda Mayi Bianca Câmara Breno Frazão Bruna Lorrana Cynthia Carvalho Débora Ribeiro Gabriel Pereira Gaudêncio Carvalho Giovana Kury Giovana Marinho Juliana Ribeiro Lara Souza Luana Alves Maria Clara Nunes Petronilio Ferreira Sarah Bianca Stephany Pinho Thayane Maramaldo Victoria Chaves Yara Mendes Yasmin Paiva Endereço: Universidade Federal do Maranhão, Centro de Ciências Sociais – CCSo Departamento de Comunicação. Av. dos Portugueses, 1966 – Cidade Universitária Dom Delgado Bacanga – CEP 65080-805 São Luís - MA.
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Índice Editorial ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 04 A representação das mulheres no cinema ----------------------------------------------------------------------------------- 05 Veganismo na gravidez. É possivel? ------------------------------------------------------------------------------------------- 07 Padrões que alimentam a beleza ------------------------------------------------------------------------------------------------ 09 A trajetória da mulher nas revistas femininas ------------------------------------------------------------------------------ 11 A liberdade de “apenas” ser: a relação entre o empoderamento e a “maquiagem” ---------------------------- 13 Sororidade nos dias de hoje: o relacionamento entre mulheres cis e trans --------------------------------------- 14 A política e a liberdade feminina ------------------------------------------------------------------------------------------------ 19 Quebrando os padrões ------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 20 Belas, guerreiras e de fibra -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 22 Censurada ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ 25 Cadê a voz trans? -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 27 A culpa não é da vítima ------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 30 A mãe da vítima é culpabilizada ------------------------------------------------------------------------------------------------- 32 Loucos? Talvez, mas determinados a trazer uma puta matéria ------------------------------------------------------ 34 “Quando recebi a notícia, chorei... mas me conformei” ---------------------------------------------------------------- 35 Lugar de mulher é na arena ------------------------------------------------------------------------------------------------------- 38
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Editorial O suicídio de uma garota de apenas 11 anos na Inglaterra por insatisfação com sua aparência levantou o debate sobre a pressão que as mulheres, desde cedo, sentem para estar dentro de um padrão de beleza midiático. O assassinato cruel de uma criança pelo ex-companheiro da mãe causou revolta, comoção e a impressionante culpabilização da mãe da menina. Ao abrir revistas e editoriais de moda, estão lá belíssimas e magérrimas moças, geralmente brancas e loiras. Tutoriais de maquiagem e penteados estão aos montes nas revistas femininas, mas eles não têm utilidade nenhuma para a parcela da população feminina não-branca. Revistas voltadas para o público feminino naturalizam comportamentos de elite e, não raro, reproduzem a opressão que a mulher sofre na vida em uma sociedade patriarcal e hierarquizada, em que as mulheres ainda são tratadas como objetos e por isso devem aprender a agradar a ala masculina. Esses temas são tratados nesta edição da revista Rascunho. Os alunos da disciplina de Jornalismo de Revista foram desafiados a produzirem uma edição que rompesse com o padrão editorial desse segmento de revistas. Temos matérias que trazem reflexão: culpabilização das mulheres, a nem sempre fácil convivência entre mulheres cis e mulheres trans dentro do movimento feminista, moda pluz size, beleza e representatividade negra. Trazemos também uma matéria sobre a luta pela erradicação da transmissão vertical do vírus HIV de mãe para filho durante a gravidez, parto e amamentação. O olhar sensível desses jovens aprendizes de jornalismo sobre as mulheres no mundo chega agora a você, leitor, e esperamos que a leitura seja tão aprazível quanto foi produzir esta edição. Desejamos a vocês uma boa leitura! Li-Chang Shuen Cristina Editora-chefe da Rascunho
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A representação das mulheres no cinema
Ir ao cinema vai muito além de apenas entretenimento e passa a ser uma atividade de reflexão quando passamos a nos preocupar em como nós, mulheres, estamos sendo representadas nas produções cinematográficas. Se a arte imita a vida, a situação não está muito fácil para as mulheres nos filmes, assim como não está para a gente aqui na vida real. Apesar de ser muito fácil reconhecer um comportamento sexista e problemático, essas situações já foram tão normalizadas nas telas dos cinemas que ninguém mais percebe, ou finge não perceber. Isso acaba por refletir a realidade de milhões de mulheres em todo o mundo, que sofrem abusos diários, mas que se veem obrigadas a seguir em frente como se nada tivesse acontecido. Como se sentir-se ameaçada e incapaz fosse
algo normal. Não é, e não deveria ser nem nos filmes.
O Teste de Bechdel Enquanto lutamos por mais respeito, espaço e poder de voz, é importante que nos preocupemos com a forma com que somos apresentadas ao mundo através dos meios de comunicação e entretenimento. E isso envolve o cinema. Pensando nisso, foi criado o Teste de Bechdel, que possui o objetivo de avaliar a presença feminina em filmes. O teste foi inspirado em uma história da cartunista norte-americana Alison Bechdel, chamada Dykes to Watch Out For, de 1987. Filmes como Piratas do Caribe: A Vingança de Salazar, Homem-Aranha: De Volta ao Lar e Thor: Hagnarok, todos estreados em 2017, têm mais em comum do
que apenas o ano de lançamento: nenhum deles preenche os três requisitos básicos do Teste de Bechdel, que são: 1. Ter, pelo menos, duas mulheres com nome; 2. Elas devem conversar entre si; 3. Sobre qualquer coisa que não seja homens. Comumente, mulheres são representadas de forma caricata nas obras audiovisuais. São diversos os estereótipos: a ex-namorada louca, a mocinha indefesa, a esposa estraga-prazeres. Geralmente, toda a motivação das personagens mulheres gira em torno de um homem, não tendo uma vida ou uma história desvinculada dele. São personagens rasas, sem desenvolvimento, servindo apenas de acessório para o desenvolvimento da trama.
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500 Dias Com Ela e a Manic Pixie Dream Girl
O filme 500 Dias Com Ela é um exemplo perfeito desse cenário descrito anteriormente. A personagem Summer, interpretada por Zoey Deschanel existe apenas pra ensinar uma lição ao personagem Tom, do ator Joseph Gordon-Levitt. Ela não é desenvolvida, pouquíssimo se sabe sobre sua vida. O filme até cumpre a primeira regra do teste de Bechdel, que é de ter duas personagens femininas com nomes, mas já começa a desandar na segunda, já que essas personagens não conversam entre si. A personagem Summer, inclusive, é a representação perfeita de uma trope muito utilizada para representar mulheres em filmes, que é a Manic Pixie Dream Girl. O termo foi criado pelo crítico de cinema Nathan Rabin em 2005, quando fez uma análise da comédia romântica “Tudo Acontece em Elizabethtown”. Esse tipo de personagem é representada como a “garota perfeita”, mas que não é igual as outras. Ela normalmente é meio desajeitada, excêntrica e engraçada. Possui uma personalidade aventureira e desprendida. É como se tivesse saído diretamente da imaginação do personagem masculino, e serve basicamente para fazê-lo mudar sua visão de mundo e de vida. A história nunca é sobre a personagem feminina, e sim sobre o homem que casualmente encontrou com ela em seu caminho para uma vida diferente. A mulher serve apenas como um recurso narrativo.
Os filmes de heróis e as “mulheres na geladeira”
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Pouca atenção é dada a uma tendência bastante problemática que ocorre em diversas historias em quadrinhos de heróis, que é a de mulheres que tem alguma ligação emocional com o herói e são utilizadas como uma motivação para que eles atinjam seus objetivos. Essa motivação vem através do sofrimento dessas personagens femininas, que passam por todo tipo de agressão física e psicológica. O termo “mulheres na geladeira” surgiu por conta de uma situação específica de uma HQ que, literalmente, representa essa trope. Em uma das histórias do Lanterna Verde (na época Kyle Rayner), de 1994, o personagem encontra sua namorada, Alexandra Dewitt, morta, dentro de uma geladeira. O vilão a matou apenas para atingir de alguma forma o herói. Com as adaptações dessas histórias para o cinema, a trope das “mulheres na geladeira” acabou chegando aos filmes também. Esse é o caso da personagem Gwen Stacy, do filme “O Espetacular Homem Aranha: A Ameaça de Electro”. Assim como nos quadrinhos, ela morre em meio a um confronto entre o Homem Aranha e o vilão Duende Verde. Além de apresentar essa trope cruel, o filme ainda não passa no teste de Bechdel. Ele cumpre a primeira regra, já que apresenta três personagens
com nome, porém nenhuma delas se encontra e muito menos conversam entre si. Como tantas outras personagens, Gwen morre pelo simples fato de ser mulher e estar ligada de alguma forma ao herói. Toda a história de uma personagem acaba ali, sem mais nem menos, servindo apenas como recurso narrativo. A exploração da mulher através da violência gratuita acaba por normalizar esse comportamento abusivo também na vida real. Quando o imaginário coletivo vê como normal, e até aceitável, mulheres serem agredidas e mortas apenas em serviço do desenvolvimento do herói, fica fácil esse tipo de comportamento não ser considerado tão absurdo assim na vida real também. Assim como a arte imita a vida, a vida também imita a arte.
A falta de mulheres em cargos da indústria cinematográfica Grande parte da falta de representações realistas e justas de mulheres em filmes é a falta delas na indústria cinematográfica. São pouquíssimos os filmes roteirizados e/ou dirigidos por mulheres. Esse mercado, como tantos outros, ainda tem supremacia masculina. Segundo um estudo realizado pela The New York Film Academy, durante os anos de 2007 e 2012, apenas 9% dos filmes foram dirigidos por mulheres, e só 15% foram escritos por elas. Esses dados nos levam a conclusão de que grande parte das personagens femininas são idealizadas por homens, o que é bastante problemático. Um homem não sabe o que é ser mulher e, consequentemente, não consegue representar de forma congruente o que é ser mulher. E essa é a situação perfeita para o surgimento dos tantos estereótipos femininos que nada tem a dizer sobre nós. Com o avançando da luta diária por nossos direitos, vamos ocupando cada vez mais espaço na sociedade. O cinema é parte disso. Com mais mulheres no comando das produções cinematográficas, quem sabe um dia poderemos nos sentar nas poltronas dos cinemas e nos sentir confortáveis e bem representadas. Luana Alves
Veganismo na gravidez. É possível?
Seja por motivos ecológicos, de saúde ou por amor aos animais, a dieta vegana é uma opção cada vez mais comum - e aceita - hoje em dia. Mesmo assim, quando mulheres veganas engravidam, é comum ouvir a pergunta: o bebê vai se desenvolver normalmente? “Não consideramos vantagem essas dietas pra indivíduos na situação de gestação, devido à necessidade de suplementação de carne, ovos, leite, para o crescimento saudável do bebê. Principalmente na questão de deficiência da ferritina. Porém, se houver uma suplementação em nível de medicamento, a gravidez pode permanecer saudável e tranquila”, diz a nutricionista Andyara Carvalho. Os benefícios são inúmeros: menos gordura saturada e colesterol ruim, maior consumo de fibras, fitoquímicos e antioxidantes (que combatem o envelhecimento das células). Outra boa notícia diz respeito ao ácido fólico (vitamina B9), cuja suplementação (antes e no primeiro trimestre da gravidez) reduz 50% à incidência das malformações do tubo neural do bebê. Nas veganas, o nível costuma ser mais elevado, pois, como sugere o nome (vem do latim folium, ou seja, folha), sua fonte natural são as folhas verdes. Ainda assim, a suplementação é recomendada para todas as mulheres. Com tantos argumentos favoráveis é fácil mesmo concordar. Porém, nem sempre acontece. Ainda há muitos casos que médicos argumentam que não é possível a gestante continuar seu estilo de vida sem que possa prejudicar a criança. Com isto, muitas mães se veem obrigadas a comer carnes. É o caso de Thays
Nunes, mãe de Miguel de seis meses que precisou abandonar a dieta vegana. “Quando eu engravidei o profissional que me acompanhou me orientou estritamente a voltar a consumir carne. Por conta basicamente da vitamina B12. Ela é extremamente importante e pode ser adquirida com suplemento, tanto é que eu fiz a suplementação, mas ele me orientou que isso não seria o suficiente. Então eu voltei a consumir carne, em pequenas quantidades, em pequenas porções, por conta da gravidez”, conta Thays. A vitamina B12 beneficia o sistema nervoso central de muitas maneiras importantes: ajuda a manter a saúde das células nervosas e ajuda a formar a cobertura protetora de nervos, chamada bainha de mielina da célula. Isto significa que quando os níveis de vitamina B12 são baixos, quase todas as funções cognitivas podem sofrer. Ela ajuda também com digestão e saúde do coração, assim a sua deficiência pode causar desordens digestivas e a um risco aumentado para a doença cardíaca. Os alimentos de origem animal são as melhores fontes alimentares de vitamina B12, incluindo ovos, peixe, aves e carne de órgãos. Thays ficou grávida de Miguel quando já era adepta da dieta vegana, mas precisou abandonar por recomendação médica. Segundo o profissional que a acompanhou, o bebê teria problemas de desenvolvimento pela falta da vitamina B12 que só se encontra em alimentos de origem animal. Apesar da recomendação, Thays sempre questionou esta decisão: “Eu acho que se eu tivesse achado um profissional que apoiasse
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a dieta e que acreditasse de fato que isso não traria nenhum impacto na minha gravidez eu teria continuado com ela. A gente fica muito preocupada, de ‘ta’ grávida e fazer alguma coisa errada. Infelizmente aqui em São Luís eu até agora não achei profissionais que são adeptos ao veganismo e isso é motivo de preocupação”. Infelizmente, a prática do veganismo ainda não é muito bem aceita entre muitos profissionais da área da saúde. Mas já existem aqueles que reconhecem que uma grávida vegetariana ou vegana pode ter saúde plena e desenvolver um bebê sem qualquer problema, caso a dieta seja adaptada. Se houver o acompanhamento adequado as gestantes podem seguir não só durante o período de gestação, mas também durante a amamentação, as dietas citadas. Por exemplo, a quantidade ideal de cálcio diário para manter os ossos do bebê fortes é de 1000 mg. É possível atingir essa quantidade com suplementos ou com a ingestão de alimentos ricos no nutriente. Algumas opções são leite de soja fortificado com cálcio, vegetais verde-escuros e tofu com sulfato de cálcio. Thais, mesmo largando a dieta vegana segundo recomendação médica, ainda passou por muitas dificuldades. Miguel nasceu com déficit nutricional. “O meu filho nasceu com baixo peso, que é o bebê considerado pequeno pra idade gestacional. Então Miguel nasceu com 2,270kg, quer dizer, ele tava com déficit nutricional na minha barriga, só que eu tinha voltado a comer carne regularmente, desde o inicio da gravidez quando fui orientada a voltar. E ainda assim eu tive esse problema”, conta Thays.
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O que falta, na verdade, é acesso à informação, profissionais mais capacitados para atender o público atual, que possam orientar e apoiar os pacientes nas suas especificidades. Mesmo os não adeptos das dietas concordam que elas contribuem para o bem de todos, com questões éticas muito pertinentes e louváveis. E, infelizmente, por conta de falta de informação, profissionais fazem pessoas mudar suas filosofias, e isso é dar passos para trás. Frustrada, Thais deixa a reflexão “Eu acredito que o consumo de carne não necessariamente está relacionado com uma gravidez saudável, porque se eu retomei o consumo de carne e eu tive esse problema, então é uma reflexão que eu faço hoje. É algo a se investigar”. Bruna Lorrana
Padrões que alimentam a distorção
Foto: Cláudia Ferreira
Mulheres brancas, altas, com traços finos (principalmente o nariz), magras, com cabelos lisos e quase sempre loiros. Esse é o típico padrão de beleza apresentado por europeus e norte-americanos em desfiles de moda e revistas de beleza, o famoso branqueamento - termo usado para definir mulheres brancas como o padrão. Agora, será que esse “padrão” se encaixa no Brasil, um país onde a população negra de traços marcados fica em segundo lugar, perdendo apenas para a África? Apesar de o Brasil ser um país miscigenado, quando se trata de negros, várias são as mazelas que perpassam o seu cotidiano. Os índices de acesso ao ensino superior ainda são menores: conforme o Censo 2010, apenas 12,8% eram negros e 13,4% eram pardos, enquanto 31,1% são brancos, em um grupo de 15 a 24 anos. Esse Censo também traz dados que comprovam que os brancos recebem salários mais altos que os negros. A maior parte dos negros está situada na
região Nordeste, principalmente na Bahia onde 17,1% da população se autodeclara negra. Quando fazemos um comparativo do Censo 2010 ao realizado no ano 2000, podemos observar que houve um crescimento no número de pessoas que se autodeclaram negras de 6,2% para 7,6% e a população que se autodeclara branca caiu de 53,7% para 47,7%. Apesar da queda, será que racismo, exclusão e discriminação deixaram de acontecer? Essas mudanças não acontecem tão rapidamente, porém com os movimentos sociais e contestações referente à população negra, na atualidade essas discussões ganharam espaço e começaram a ser pautadas nas agendas políticas. Retratando a necessidade para a valorização da estética negra de maneira mais positiva, que não esteja ligado à sexualidade, corpo violão,cor do pecado que vá além da rotulação da negra transmitida pela massa, é valorizar todo contexto histórico de luta e principalmente de respeito a toda diversidade da mulher negra. O corpo da mulher negra brasileira muitas vezes é rotulado como preferência nacional, por ser semelhante a um violão, cintura fina, seios fartos, quadril largo. Para melhor entender a construção desse padrão de beleza instituído da mulher negra é necessário que se faça um contexto histórico. O comportamento machista, estereotipado racista e sexista e que por muito tempo foi e por vezes continua sendo um mecanismo de opressão e que trazia a mulher negra o sentimento de inferioridade e desumanidade. Na modernidade as mudanças ocorrem a passos curtos. No campo da publicidade, visões como a cor do pecado ainda predominam.
A negra tem momentos para ser retratada, por exemplo, no período carnavalesco, em alusão à nega maluca e principalmente pela visão sexualizada, como a Globeleza. As revistas femininas surgiram no final do século XVII, com a intenção de levar informações sobre moda, cozinha, beleza, comportamento, sexo, relacionamentos e diversas dicas para as donas de casa. Mesmo com diversos conteúdos, o “padrão de beleza” sempre foi uma definição básica dessas revistas. Tanto que a visibilidade dada às mulheres negras como capa e até no corpo da revista só teve maior disseminação no século XXI, muito tempo após sua aparição. O que nos leva a pensar: será que só nos anos 2000 surgiram negros pelo mundo? Cantores, atores, modelos e demais personalidades negras passaram a ser vistos a partir dessa época? Claro que não. A verdade é que esse estereótipo não vende, ou melhor, não vendia. “Acho que a exclusão ainda existe porque a revista é feita para vender, e os padrões desse tipo de revista, os protótipos que elas pregam, com uma representativade negra o temor é que a revista não seja tão aceita pela sociedade. Na atualidade, aos poucos estão colocando as mulheres negras nesse segmento, mas em um número muito reduzido, sendo que dificilmente uma campanha é feita apenas com mulheres negras ou em muitas situações entra a questão do colorismo e são inseridas negras mais claras,” ressaltou a estudante de Comunicação Social- Rádio e TVda UFMA, Beatriz Benetti. Mas vale ressaltar que, por mais que tenha outras editorias, a de beleza ainda causa grande desconforto na parce-
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la da população que não é representada. “A ausência da mulher negra na publicidade está ligada com a problemática do preconceito racial, desde que o padrão aceito pela sociedade (padrão dominante), branca, olhos claros, traços finos etc, predomina os espaços, criando assim uma barreira entre o diferente aceito, e o exótico excluído. A negra é agradável e vista dentro da sociedade como um produto de exportação, por ter curvas, volumes e chamar atenção do público (hipersexualidade de seu corpo). As Mulheres Negras obtêm rótula e propaga para benefícios, as redes falam de representatividade, mas ela se baseia em proporção, e para que haja igualdade dentro desses recursos midiáticos ainda nos falta um terço de porcentagem”, disse a estudante de Serviço Social e idealizadora do coletivo Afroculture, Karla Rocha. Yara Mendes Yasmin Paiva
Foto: Adriana Medeiros
Foto: Thais Moreira
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A trajetória da mulher nas revisas femininas Sabe aquele bronzeado arrasador da Juliana Paes? E aquela barriga sa-ra-déeeeeeerrima da Bruna Marquezine?! Amiga, senta aí que nessa edição a gente vai te ensinar isso e muito mais! Além de dicas de moda e beleza, trouxemos uma entrevista exclusiva com a Marina Ruy Barbosa contando dez dicas de como atrair o boy magia dos sonhos! (e com sérias chances de dar em casamento, aaaaaah!). Na seção “ai que badalo” a Narcisa Tamborindeguy vai ensinar tudo sobre como NÃO se comportar numa festa chique e ainda sambar na cara das inimiga! Senta, que lá vem babado! Não, você não abriu na revista errada. Essa não é mais uma edição da Nova, Claudia, Manequim, Atrevida ou similares. Mesmo assim, é possível que os enunciados acima tenham soado com certa familiaridade, “já li isso em algum lugar”... E se você for uma mulher a probabilidade de ter sido apresentada a esse tipo de conteúdo como sendo “tipicamente feminino” é ainda maior! Isso acontece porque grande parte das revistas categorizadas como “femininas” têm como temas recorrentes sexo (em geral como atrair e satisfazer o homem), moda, beleza, decoração, festas, bebês, horóscopo, espaço para desabafos amorosos, incentivo à concorrência com outras mulheres (também relacionado a busca implacável pelo “macho”), reforço e naturalização de comportamentos que são tratados como definidores do que é ser mulher. No Brasil, o segmento feminino é muito vasto, com uma grande
quantidade de títulos e publicações: estima-se que 69 segmentos de revistas são relacionados direta ou indiretamente à mulher, um mercado e tanto. A primeira revista feminina foi a Espelho Diamantino lançada em 1827, e que trazia temas variados como política, literatura, artes e moda. Apesar de ser direcionada às mulheres, ela era feita por homens (em um contexto em que apenas 14% das mulheres eram alfabetizadas). Em 1852 nasceu o Jornal da Senhoras, de propriedade da professora argentina Joana de Noronha. Essa revista apresentava como diferencial artigos de cunho feminista, o que provocou reações masculinas indignadas. As revistas mais semelhantes às que conhecemos hoje surgiram no início do século XX, com destaque para a Revista Feminina, de São Paulo, que começou como um folheto e se tornou revista em 1914 circulando até 1936. Trazia seções de culinária (“O menu do meu marido”), moda, beleza, literatura, além de troca de informações das leitoras entre si sobre saúde e questões sentimentais. Era considerada de cunho conservador e escrita em sua maioria por homens. Desde então esse modelo é intensamente reproduzido, mas nos últimos tempos tem sido também reavaliado e contestado. Prova disso são revistas como a Tpm, da Editora Trip, que aborda assuntos mais polêmicos do universo feminino e atende a uma demanda de mulheres insatisfeitas com o tratamento dado a elas na maior parte das revistas femininas. Em seu site, a Tpm se define como uma revista
que “não acredita em fórmulas prontas e mostra mulheres contemporâneas vivendo em um mundo real sem perder o bom humor e o jogo de cintura (...), algumas matérias questionam os padrões impostos pela sociedade às mulheres, como a busca pelo corpo perfeito ou uma família “margarina”, além de tabus como a descriminalização do aborto.”. Para a Mayara Luma, pesquisadora e professora dos cursos de Jornalismo, Rádio e TV e Produção Multimídia do Complexo Educacional FMU, a imprensa feminina precisa ser dinâmica: “Se revistas são mesmo representantes de épocas, é natural que acompanhem as mudanças pelas quais passam as sociedades ao longo do tempo. E se as mulheres são criaturas em transformação constante na história, é natural que a imprensa destinada a elas também precise acertar o tom com certa frequência”. É nesse momento que a
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imprensa jornalística voltada para o público feminino se encontra: de acertar o tom. Afinal, é preciso considerar que as opiniões estão divididas: há aquelas mulheres que estão satisfeitas em consumir o conteúdo de revistas que reforçam padrões de gênero, e as leitoras vorazes por conteúdos mais diversificados que ultrapassem estereótipos. Para entender melhor como anda a percepção das mulheres em relação ao que é produzido para elas, a nossa redação fez um pequeno teste: selecionamos duas capas de revistas, uma com temáticas mais atreladas a estereótipos de gênero e outra de cunho mais feminista para saber o que as leitoras pensam. Em relação ao primeiro tipo de revista a manicure de 28 anos, Tyanne Dourado, tem suas ressalvas: “Nessa revista já tem tudo que uma mulher sabe ou deve saber sobre esses temas... como fazer o cabelo crescer mais rápido e forte... você encontra em muitas outras revistas os outros tópicos que contém nela. Ia me interessar mais uma revista falando sobre os segredos dos homens, como agem e conversam sem as
mulheres por perto, como fazem seus estilos etc.. Uma revista como essa falando só de mulher, voltada para mulheres, no meu ponto de vista é boa, porém muito comum”. Já para Sara de Souza, estudante de 18 anos, o que primeiro veio à mente dela foi a forma como a revista reforça padrões: “a mulher tem que seguir um padrão, bonita desse jeito aí, usar maquiagem pra agradar os homens, saber o que eles pensam pra se adaptar a isso, ter que emagrecer de qualquer jeito, e colocam essa mulher linda aí como se fosse de um jeito que toda mulher tem que ser”. Já em relação a análise da segunda revista, de abordagem mais feminista, Tyanne fala do espanto que teve: “Essa revista me causou susto”, enquanto a estudante disse ter encontrado elementos mais reais: “Aí é mais uma realidade mesmo, que a mulher tem que ser linda do jeito que é, desde que esteja se sentindo bem consigo mesma e saudável, e que não precisa seguir esse padrão feminino de ser magra pra poder ser bonita”. O momento é de opiniões mistas e também de transição. Para
a Jornalista Poliana Ribeiro, que já foi editora de um caderno voltado para o feminino no meio impresso, é importante a mudança de lógica de grande parte das revistas femininas: “eu acho importante terem todas as discussões que estão havendo em relação à questão do papel da mulher na sociedade, a questão do empoderamento feminino, da violência doméstica, a questão de gênero, racial, acho muito importante que todas as questões sejam discutidas... a própria maternidade é muito importante e não é tão contemplada, infelizmente... Mas eu também acho que isso tem que ser feito com uma certa leveza. O que eu observo é que as vezes esse tipo de pauta, de conteúdo, ainda é discutido de uma forma muito pesada e talvez isso não seja tão atrativo pra muitas mulheres que foram educadas com as revistas Cláudia, revista Nova, enfim...”. A discussão é atual e de grande relevância já que “grandes mudanças no centro da condição feminina, naturalmente, significam também grandes mudanças na sociedade”, como afirma a professora Mayara Luma. Débora Ribeiro Giovana Marinho Giovana Kury Victória Chaves
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A liberdade de “apenas” ser: a relação entre o empoderamento e a “maquiagem”
Alta, baixa, cabeluda, careca, gorda, magra, maquiagem, sem maquiagem. Quem liga? O que nos define como mulher? Podemos ser aquilo que desejamos ou temos que ser apenas o que esperam de nós? Por que, todos os dias, incontáveis mulheres precisam se submeter aos mais variados métodos de transformação do seu corpo para caber em um modelo de beleza? Frases como “ame a si mesma”, “seja você mesma, não importa o que pensam”, ou qualquer outra que fale de amor próprio já se tornaram verdadeiros clichês, mas a mesma sociedade que parece buscar o empoderamento feminino aponta cada ruga, espinha ou cicatriz no rosto de uma mulher. Revistas especializadas trazem, constantemente, artigos sobre “a importância de amar seus detalhes”, mas, na mesma edição, há matérias e propagandas incentivam o uso exagerado de produtos para ocultá-los. Essa contradição traz à tona um importante conceito: empoderamento. E não! Não tem a ver com deixar de usar maquiagem, por exemplo. Uma mulher empoderada pode e deve escolher, pois tem o direito de usar ou não determinado produto, por se sentir confortável ou não. A grande questão é o seu bem-estar como mulher. A beleza é subjetiva, certo? Então, as pessoas estarão sempre dispostas a dar opiniões boas ou ruins, mas e você? As suas espinhas ou sardas incomodam tanto assim, ou você está apenas pensando no que vão ou não falar? Não há dúvida de que é bonito se cuidar, é maravilhoso se amar e, acima de tudo, o melhor da experiência da vida é ser realmente quem você quer ser: maquiada ou “ao natural”. Foi por pensar assim que várias celebridades criaram movimentos na internet que apoiam as mulheres a serem felizes da
maneira que bem entenderem. Um grande exemplo foi a cantora Alicia Keys que, em 2016, escreveu uma carta com algumas coisas que a incomodavam e o uso de maquiagem estava entre essas. “Não quero me cobrir mais. Nem meu rosto, nem minha mente, nem minha alma, nem meus pensamentos, nem meus sonhos, nem meus esforços, nem meu crescimento emocional. Nada.”, disse a cantora em um trecho da sua carta. A cantora americana Demi Lovato criou uma hashtag chamada de “No make up Monday”, que significa “Segunda-feira sem maquiagem”, pela qual as fãs poderiam compartilhar fotos sem maquiagem. O objetivo desse movimento era de realçar a beleza natural das mulheres. O fato é que cada mulher tem sua personalidade, tem sua maneira de ser e deve ser respeitada de qualquer maneira. Jacinete Monteiro Padro, diarista e lavradora, conta que nunca usou maquiagem, porque acha que a melhor versão de si mesma é a natural. “Eu me sinto bonita do jeito que eu sou, ao natural. Não sinto vontade de usar maquiagem e me sinto à vontade dessa maneira”, completou Jacinete.
qualquer maneira. “Loira, morena, lisa, cacheada, ondulada, com make, sem make, sou linda de qualquer jeito”, disse a jovem de 19 anos.
Yza Lopes, estudante de pedagogia.
A jornalista Bianca Cutrim vê a maquiagem com outros olhos e, para ela, usar esses produtos pode ajudar a melhorar a autoconfiança de algumas mulheres. “Melhora a minha autoconfiança e acho que isso pode influenciar de forma positiva o meu marketing pessoal. Me sinto melhor e mais feliz”, afirmou Bianca.
Bianca Cutrim, Jornalista.
Jacinete Monteiro, lavradora e diarista.
Já Yza Samara Lopes, estudante de pedagogia, usa maquiagem vez ou outra, quando sente vontade de se arrumar ou para treinar técnicas que aprende na internet, mas que se sente bem consigo mesma de
No fim das contas, o importante mesmo é que cada mulher se olhe no espelho e goste daquilo que veja. O melhor jeito de viver é estar bem consigo mesmo. As mulheres precisam da liberdade de ser quem quiserem ser, independente de qualquer opinião alheia. Ana Luiza Lopes Sarah Bianca
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Sororidade nos dias de hoje: o relacionamento entre mulheres cis e trans O dito popular diz que há um desentendimento entre as mulheres e que elas são muito competitivas. Isso é realidade ou apenas generalização? O fato é que competições existem em todos os lugares, mas dentro do universo feminino essa competição também engloba as amizades entre mulheres cis e trans ou é uma exclusividade do grupo cisgênero? Existe sororidade entre elas? Antes de irmos ao ponto dessa discussão, é preciso entender os termos. Cisgênero (Cis) é o termo utilizado para se referir a alguém que se identifica, em todos os aspectos, com o gênero biológico ao qual foi designado ao nascer. Por exemplo, uma pessoa que nasce com o órgão sexual masculino, se expressa socialmente conforme dita o papel de gênero masculino e se reconhece como um homem (identidade de gênero), pode ser considerado um homem cisgênero. Já os transgêneros são as pessoas que não se identificam com o seu sexo biológico, mas com um gênero diferente daquele que lhe foi atribuído biologicamente. Ou seja, é uma pessoa que nasce, por exemplo, com órgãos sexuais masculinos, mas possui uma identidade de gênero feminina, assim como o papel e expressão de gênero que são social e culturalmente atribuídos às mulheres. Desde cedo, a sociedade exige que as mulheres tenham uma performance social muito bem definida: cabelos longos, unhas feitas, roupas dentro do padrão, etc. Mas o que é ser mulher? Saindo do estereótipo imposto pela maioria da sociedade, as mulheres entrevistadas nessa reportagem consideram que a figura da mulher e do papel feminino é algo construído socialmente, que se restringe a certos tipos de costumes, atitudes e características. O que foge dessas exigências se torna estranho e, a partir daí, começam os problemas. A estudante de Psicologia Larissa Dominici, mulher trans e integrante do grupo “Curta Diversidade”, explica que, quando essas questões, principalmente relacionadas à aparência da mulher, são levadas para o ambiente da amizade entre as mulheres cis e trans, é tudo mais intenso. “Quando você traz isso para amizade, se torna algo pesado. A gente ouve muito que mulheres trans são as mulheres 2.0, porque a gente não menstrua, porque toma uma coisa aqui outra ali para ficar mais bonita etc”, explica a estudante.
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Larissa Dominici, mulher trans e estudante de Psicologia.
A relação entre as mulheres toma diferentes formas, definições e visões dependendo do grupo social em que elas estão inseridas. Essa relação fica mais evidente quando se trata da vivência das mulheres nos movimentos sociais e de militância, principalmente na militância feminina. As várias vertentes que compõem o grupo de lutas e debates feminino são vastas, cada uma com um posicionamento variado sobre a composição do seu meio e a legitimidade de quem luta pela sua causa. Alguns pontos são frequentemente postos em debate e um dos principais, e que gera um grande tabu e cerca a militância feminina de dúvidas, é a questão da relação entre as mulheres transgênero e cisgênero. O espaço feminino de militância é, muitas vezes, dividido por conta dessa discussão sobre a visão que a mulher cis possui da mulher trans no movimento. Para demonstrar algumas delas, duas vertentes se mostram opostas em certos pontos: a interseccional e a radical.
Como o próprio nome conceitua, o feminismo interseccional se trata da vertente que abrange e pauta diversos tipos de opressões que são presentes no universo feminino, como machismo, racismo, transfobia, lesbofobia, bifobia, classe social, etc. A consciência e combate a cada uma dessas violências é de extrema importância nessa vertente para que haja um combate coletivo das mulheres que são vítimas. Esse ramo da militância veio como uma forma de resposta e resistência ao que era pautado nas primeiras manifestações feministas, que eram promovidas exclusivamente pelas mulheres brancas e de classe média da época, fazendo com que os outros vários tipos de opressão fossem deixados de lado, esquecidos pela sociedade e até mesmo por essa parcela das mulheres. O feminismo radical é a vertente que, assim como as outras, pauta que a mulher é oprimida pela sociedade e que se deve lutar contra essa opressão, porém, visa a emancipação da mulher e que somente a mulher emancipada fará a revolução e derrubada do patriarcado, ao passo que as demais pautam, além da emancipação feminina, o diálogo com a sociedade para
que haja a conscientização geral. A estudante de Ciências Sociais e militante do coletivo feminista Movimento Mulheres em Lutas (MML), Elane de Oliveira, de 27 anos, faz parte da vertente feminista que abriga e luta contra os vários tipos de opressões cometidas contra a mulher, seja ela cis ou trans. Identificando-se como uma mulher cisgênero, que se identifica com o gênero designado no seu nascimento, ela possui a visão de que a mulher trans possui espaço na militância feminista e que detém os mesmos direitos que a mulher cis.
“A militância é grande. Apesar de não parecer, há muitas vertentes. Tem a vertente que não aceita trans como mulher, não vê como mulher e acha que são homens que apenas gostam de se vestir como mulher. As mais radicais falam que são homens que querem tomar o protagonismo da mulher, então não permitem que façam parte de seu grupo de feministas. Tem uma outra corrente que aceita a trans como mulher, mas não aceita que tomem a frente do grupo, pois mesmo elas sendo mulheres, ao mesmo tempo são homens, então não querem que estejam na frente para não tomar o protagonismo da ‘verdadeira mulher’. Tem a vertente, a que eu faço parte e acredito, que acredita que as trans são mulheres, sim, como qualquer mulher cis, pois, como falei, a questão de gênero é algo construído, então são mulheres tanto quanto nós”, declara a estudante. Elane de Oliveira, estudante de Ciências Sociais e militante do coletivo feminista Movimento Mulheres em Lutas (MML).
Para Themis Portela, mulher cis, ativista dos direitos humanos e feminista, é muito importante que as mulheres trans saibam que podem adquirir qualquer papel dentro da sociedade, exatamente para desconstruir a transfobia, e que elas estejam inseridas no movimento feminista justamente para mostrar que são mulheres e que estão sujeitas a qualquer direito. Apesar de estar inserida na vertente radical do feminismo, a militante do movimento, que prefere se identificar como “F”, diz que tenta respeitar ao máximo a luta das mulheres trans e as vê como mulheres porque, apesar de terem lutas diferentes em certos aspectos, acha que possuem as mesmas pautas. “No feminismo radical, algumas mulheres posicionam a mulher trans de uma forma muito agressiva, invalidando a identidade dela e o fato de que ela se reconhece como mulher. Eu acredito na abolição do Gênero, mas tento respeitar ao máximo o jeito que elas se identificam, pois é uma luta muito difícil. São coisas que eu nunca passei e não sei como deve ser passar na pele, mas tento ter o máximo de empatia com elas”, explica.
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Outro ponto constantemente abordado e debatido dentro do espaço de militância feminina é a questão do “privilégio”, ou menores opressões, que a mulher cisgênero possui em relação à mulher trans. Para uma parte das mulheres cis, a mulher trans não possui alguns “privilégios” a partir do momento em que, por exemplo, em algumas ocasiões, utiliza o banheiro feminino e é vista com preconceito, ou até mesmo não o utiliza por medo de sofrer algum tipo de agressão física ou psicológica, como explica Elane: “Não sei se seriam privilégios, mas eu digo que certo desconforto menor. Nós, mulheres cis, não precisamos passar por certos
desconfortos que uma mulher trans passa. Por exemplo, eu posso usar o banheiro feminino tranquilamente, sem ninguém olhar torto pra mim, enquanto uma mulher trans, principalmente se for uma mulher trans em processo de transição, vai ser olhada de maneira torta e vai ser xingada, como já aconteceu no CCH mesmo. Ou então posso andar no meio da rua sem as pessoas fecharem a cara, fazer cara feia, ser tratada como ‘ela’ e pelo meu nome feminino, ao invés de ser tratada como ‘ele’, no masculino. Então, não diria privilégio, mas não passamos por certos desconfortos’’.
Já Dandara Pedrita, mulher trans, ativista feminista, presidente da União da Juventude Socialista do Maranhão (UJS) e integrante da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), comenta: “Eu não sei se privilégio seria a palavra certa, mas acredito que exista, porém acho que vem de uma particularidade de algumas mulheres trans. Por exemplo, algumas delas têm o sonho de ter um filho um dia, de ficar gestante e poder ter uma criança. É um privilégio que a mulher cis possui, e depende muito do olhar da pessoa, mas que a mulher trans não pode Pedrita, mulher trans, ativista feminista, presidente da União da Juventude Sorealizar até então. Mas talvez não Dandara cialista do Maranhão (UJS) e integrante da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas seja necessariamente um privilégio. (Ubes). Também tem a questão de que nem todas as mulheres trans têm a oportunidade ou conseguem chegar até o processo de transição de sexo, pois algumas mulheres só se aceitam como mulher caso tenham uma vagina, e isso é um grande estereótipo que existe e que muitas vezes traz uma intriga entre a real definição do que é ser mulher, se é o estereótipo de que mulher é aquela que tem vagina e que gera filhos, ou se realmente ser mulher é muito mais além daquilo, de se aceitar como mulher além de ter vagina. Acho que tem muito da questão desses bens que a mulher cis pode ter e desfrutar que a mulher trans não pode”. Porém, para Themis Portela, não há privilégios entre ambas. “Pra mim, não tem privilégio. É muito mais uma questão de opressão e preconceito o que acontece. A gente sabe muito bem quem tem o privilégio na sociedade e não é a mulher. Privilégio, pra mim, é mais quando um grupo que é grande maioria se beneficia para oprimir o grupo que Dandara Pedrita, mulher trans, ativista feminista, presidente da União da Juventude Socialista do Maranhão (UJS) e integrante da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) é minoria. É o sistema que sempre favorece uma parte, e o sistema não favorece a parte da mulher cis, da mulher no geral. De acordo com os que defendem a ideia do privilégio, as mulheres já nascem com o sexo que lhe foi atribuído e elas se identificam com o gênero, e isso é o que chama de privilegio. O que acontece com as trans não é isso, é a opressão da sociedade e o preconceito. Não tem como hierarquizar que a mulher cis está acima da mulher trans. São mulheres, são iguais. Não há como hierarquizar isso”, esclarece. Sendo todas mulheres, trans e cis deveriam
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construir um feminismo conjunto, lutando pelos mesmos direitos e devidos espaços na sociedade, porém há uma forte exclusão da mulher trans de algumas vertentes do feminismo. As causas variam. Uma delas é a ideia de gênero pregado pelo “Radfem” (Feminismo Radical), que é ainda mais específico: “Vemos gêneros como classes políticas que são construídas socialmente para manter a subordinação das mulheres. Repudiamos a ideia de que ‘homens’ e ‘mulheres’ são simplesmente grupos naturais, pois não acreditamos em essência masculina ou feminina, mas que isso foi criado para que haja uma hierarquia entre as pessoas, hierarquia esta que originou o patriarcado onde homens sempre estarão no topo e as mulheres em baixo, sendo criadas como base à limitação, à submissão e à exploração”, explica Larissa de Luna no artigo “O que é, afinal, o feminismo radical’’, publicado no site Radicaliza. Elane de Oliveira explica que essa exclusão é causada devido a essa parcela do movimento feminista não entender psicologicamente, culturalmente e antropologicamente o que é ser mulher e, principalmente, pelo fato delas
ainda estarem com o machismo enraizado. “Por mais que lutem contra o machismo e não se digam machistas e sim feministas, mas no fundo elas ainda estão com o machismo arraigado. Qual é a explicação delas ainda? É algo ainda muito pejorativo, muito senso comum, que mulher não é assim, não é assado. Dizem que, para ser mulher, tem que reproduzir, se não reproduzir não é mulher, se não gera uma criança no ventre não é mulher e tudo mais; essas coisas bem machistas que
a sociedade nos coloca e que ainda estão bem infiltradas nelas, que não foram desconstruídas ainda por completo. Não que eu acredite que haja alguém que seja 100% desconstruído. Creio que sempre temos alguma coisa para desconstruir, para aprender, para desfazer certos pensamentos, fazer outros e tal. Mas essas desses movimentos feministas ainda estão com a base do machismo muito arraigada nelas”, comenta.
Imagem: Levante Popular da Juventude
Larissa Souza, mulher cis, feminista e militante do Levante Popular da Juventude, expõe sua visão sobre essa exclusão: “Sinceramente, eu não entendo porque há essa exclusão, principalmente de uma parcela que sofre tanto na sociedade, que sofre muito com o machismo e a imposição de gênero. Acho que todas as mulheres deveriam ser unidas e pautar o feminismo, por isso pauto o feminismo popular, que vem da linha do Projeto Popular para a construção de uma sociedade onde mulheres cis e trans estariam juntas na luta contra o machismo, o patriarcado, capitalismo e tudo o que acaba com os direitos das mulheres. Acho triste quando mulheres reproduzem coisas que não fazem parte da ideologia feminista. No momento em que você ataca uma mulher, você não está sendo feminista”. Tendo base a visão de “F”, o corte da parcela trans dos coletivos se dá por conta da definição de gênero que é pregada no movimento, como explica: “Acredito que o papel da mulher trans no feminismo radical cria um certo conflito na luta do movimento porque muitas ideias que elas sustentam e que acreditam vão de encontro com o que as feministas radicais pregam.” “Quando digo que o transfeminismo se relaciona com a necessidade de uma compreensão crítica do conceito de mulher, estou a dizer que é a partir do transfeminismo que conseguimos avançar rumo a Larissa Souza, mulher cis e militante do Levante Popular da desconstrução de uma existência feminina calcada na Juventude biologia, no útero e no ser mãe”, explica Helena Vieira no artigo “Vamos falar de transfeminismo?’’, publicado no site Revista Fórum. É a partir dessa visão que é dada a base para entender como a maior parte do movimento feminista e das mulheres cis que o compõem enxergam a posição da mulher trans nos coletivos e a importância de se lutar e reconhecer os direitos dessas mulheres em
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meio ao ambiente de militância, que, teoricamente, deveria ser inclusivo. “O transfeminismo tem toda importância do mundo porque, tanto um coletivo só delas, como elas dentro de um coletivo que reúna todas as mulheres, é muito importante para se reafirmarem como mulheres, para poderem se fortalecer como mulheres, fazer debates, conversar e passar isso para uma sociedade que ainda não tem conhecimento, que ainda é preconceituosa e para aqueles que ainda estão tentando se desconstruir, tentando entender. Então, uma mulher trans sozinha pode fazer alguma coisa, mas quando elas se juntam com suas iguais, elas são mais fortes, estão mais fortificadas, podem debater mais ações e podem correr atrás dos seus direitos”, explica Elane de Oliveira quando questionada sobre a importância do transfeminismo. É importante que a mulher trans esteja inserida nesse meio por conta da questão do empoderamento, que é o que o feminismo pauta. “As mulheres trans sofrem preconceito em dobro. Se uma mulher cis sofre com o machismo, a mulher trans sofre com o machismo e a transfobia. Então, no momento em que as trans se empoderam e começam a pautar o feminismo, é a revolução”, esclarece Larissa Souza. Larissa Souza, mulher cis e militante do Levante Popular da Juventude.
A visão é também compartilhada por Dandara,: “O movimento de transfeminismo é importante não apenas por trazer o debate, de tirar a dúvida da sociedade, mas também por estar pautando as principais realidades vividas pelas mulheres trans e de lutar pelos principais ideais que o movimento acredita e querem para si”.
Dandara Pedrita, mulher trans, ativista feminista, presidente da União da Juventude Socialista do Maranhão (UJS) e integrante da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes)
Portanto, apesar das divergências de pensamentos e ideologias, grande parte do movimento feminista pauta a igualdade e mulheres trans e cis lutam juntas pelo fim das opressões que são sofridas. Analisando as visões das diversas mulheres entrevistadas, a questão da sororidade entre ambas as partes é respondida. A resposta é sim, pois cada uma reconhece seu lugar nos grupos sociais e tem consciência dos caminhos a serem tomados para que haja a igualdade. “Acredito que tanto as mulheres trans quanto as cis são adeptas da sororidade. Isso se manifesta nelas quando uma compra a briga da outra para si, quando elas quebram qualquer tipo de vertente e visão disfarçada do que é realmente a sororidade na prática”, responde Dandara ao ser questionada sobre a relação de sororidade entre ambas. Alan Silva Maria Clara Nunes
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A política e a liberdade feminina “O homem é por natureza um animal político”, afirmou Aristóteles. Por esse fato a Política perpassa nossa vida independente do nível de compreensão dela. A política é responsável por nos nortear enquanto seres também sociais. Contudo, nem sempre as práticas políticas dos representantes refletem o desejo da sociedade. A agenda política do congresso brasileiro ainda não conseguiu caminhar em conformidade com o que a sociedade anseia. A grande maioria do congresso é composta por partidos e políticos de direita e levando em conta que a direita é conservadora e normalmente não é favorável a liberdades individuais e processos que venham a dar maior igualdade, a sociedade fica refém das pautas e desejos conservadores. Minorias sofrem com restrições ou não reconhecimentos de direitos e essas são batalhas que já perduram há um bom tempo. As mulheres, apesar de serem maioria da população brasileira, ainda não conseguem se fazer ouvidas ou mesmo que sejam, os efeitos dessa voz ainda não têm um peso significativo, mas, mesmo com toda dificuldade as mulheres já estão bem longe de onde costumavam estar 20, 30 anos atrás. Segundo uma pesquisa feita pela Wakefield Research o Brasil é o país que mais tem mulheres feministas com 65%, logo depois vem os EUA e a França. Em última posição está o Japão. O movimento feminista ganhou maior robustez nos últimos 15 anos no Brasil. Mas o feminismo é antigo em suas lutas no Brasil. Com essa onda feminista e com muitas lutas direitos foram assegurados e posições de destaques não só foram galgadas, mas realmente alcançadas. A quantidade de mulheres em cargos de destaque passou de 18% para 37% em 10 anos, segundo o jornal o globo.
Apesar desse avanço, o conservadorismo e a agenda política ainda impõem muitas barreiras. Já existe uma onda, crescente, a favor da legalização do aborto, por exemplo, um tema que gera muita polêmica e polariza opiniões, principalmente se os discursos contra seguirem a linha religiosa. O que também caracteriza o conservadorismo. Contudo, o aborto é principalmente uma questão de saúde pública do que ideológica. A estimativa do Ministério da Saúde é que 850 mil mulheres fazem abortos por ano no Brasil. Destas, 50 mil morrem ou ficam em estado grave em hospitais ou clinicas clandestinas. “Negar esse fato é prejudicar e submeter mais e mais mulheres a um risco muito grande. Quem mais é atingida por essa criminalização não é ouvida, a mulher”, afirma a estudante de comunicação Luana Alves. E continua: “O conservadorismo é muito prejudicial e só reafirma cada vez mais o patriarcado que é a ideia de anulação da mulher ativa. A política ainda é bem conservadora e se a mulher não tem liberdade de escolha sobre o que fazer com seu corpo em situações de aborto, por exemplo, então, não temos liberdade e continuamos apenas obedecendo”. Para Karina, que é adepta do liberalismo em todos os âmbitos, a ideia é que o Estado não deveria interferir na vida do cidadão, principalmente como o Estado brasileiro interfere. Karina diz que os malefícios dessa interferência do Estado não atingem apenas as mulheres, mas a sociedade. “O problema é, antes de tudo, social e depois se ramifica para o problema feminino”, afirma. O aborto é considerado crime no Brasil desde 1984. Mas uma lei de 1940 permitia o aborto em dois casos: O de estrupo e o de gravidez com risco á saúde da mulher. Contudo, em 2015 até mesmo essa
possibilidade passara a ser negada pelo Estado brasileiro por meio da PEC 181/2015 de autoria do Senador Aércio Neves (PSDB-MG) que ainda está em tramite. “Eu sou contra o aborto, pode parecer estranho, mas eu também sou a favor do lema “meu corpo minhas regras”, mas sobre o aborto eu sou contra. A política brasileira ainda é conservadora, isso não é um problema pra mim, sou a favor do conservadorismo em vários pontos”, diz Lorena Rodrigues, 21. Para Lorena, a esquerda vem em um crescente e está equilibrando o cenário político. “Mas no geral o conservadorismo não é maléfico”, afirma. Em uma pesquisa realizada dentro da Universidade Federal do Maranhão, por meio de questionário e aplicado sem critérios como idade ou sexo, mostrou que 100% dos pesquisados acham que o Estado interfere mais do que deveria e a agenda política prejudica a liberdade feminina sim. No campo “O que deve ser feito para mudar a agenda política conservadora?”, 64% responderam que uma mudança de políticos, principalmente da “velha guarda”. 30% não souberam responder e 6% disseram que atitudes como manifestações e ações contundentes resolveriam o problema. A pesquisa foi realizada entre os dias 03 e 07 de janeiro e teve 52 entrevistados. A política interfere e vai continuar interferindo na vida social, tentando apontar para o que deve ou não ser feito, muitas vezes independente do que a maioria quer. Porém, com a “politização” crescente brasileira e a ideia de liberdades individuais mais latentes, cabe á política tentar acompanhar os anseios sociais, na medida em que for benéfico para a própria sociedade. Gaudêncio Carvalho
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Quebrando
Mais do que manequins grandes, a moda plu
“Por vezes, eu penso que nós, mulheres com um corpo ‘fora do padrão’, não queremos coleções ‘exclusivas’ que acabam restringindo nossa criatividade na hora de nos vestir. Queremos opções plus size em todas as coleções das lojas”. Essas são as palavras de Adriana Moraes, aluna do curso de Relações Públicas da Universidade Federal do Maranhão. A estudante universitária, sempre muito antenada nas tendências, bateu um papo com a Revista Rascunho sobre o desafio de ser uma mulher com corpo fora dos padrões e ainda assim “estar na moda”. Hoje em dia, basta dar uma volta pelas ruas, principalmente dos grandes centros urbanos, e não vai ser difícil achar lojas (especializadas ou não) que vendem roupas plus size. No entanto, esse segmento só se popularizou no Brasil há menos de dez anos, por volta de 2009. Apesar da popularização ser recente, o termo surgiu nos anos 70, nos EUA, dentro da indústria da moda com o objetivo de designar manequins acima de 44 (plus=mais; size=tamanho). No entanto, somente a partir da década de 90, o termo começou a ganhar força e conhecimento do próprio público. Ao contrário do que muitos pensam, a moda plus size não surge como forma de culto à obesidade, ou incentivar o excesso de peso, mas sim como uma maneira de abraçar a diversidade dos corpos femininos. Estar fora dos padrões não significa ter o direito de vestir-se bem, ou de sentir-se bonita e elegante negado. “Eu gosto muito de moda, cabelo, maquiagem e gosto de saber as tendências, mas sei que nem tudo é pra mim. Primeiro, porque nem tudo que é lançado
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pelas marcas é pensado para as meninas fora do padrão e, segundo, porque algumas coisas eu realmente não gosto, ou não se encaixa no meu estilo. Eu vejo o que está sendo vendido e vou adequando as tendências ao meu gosto pessoal”, afirma Adriana. “Por exemplo, dizem que listras não fica bem para mulheres gordas, porque ‘listra engorda’. Mas eu AMO roupa listrada! Todo mundo que me conhece sabe disso e eu não vou parar de usar só porque as especialistas em moda e algumas pessoas dizem que listra engorda. Eu até brinco que o que engorda é aquele hamburgão que eu gosto de comer, não a coitada da listra”, continua bem-humorada.
Representatividade na indústria
Na era das mídias sociais, em que pessoas comuns têm a possibilidade de ter a voz amplificada, muito vem-se discutindo sobre representatividade. Se antes, as grandes marcas não escutavam seus clientes, hoje a tendência é justamente o oposto. Para Adriana, o cenário atual é positivo, mas ainda precisa de mudanças. “A verdade é que nem todo mundo aceita essa quebra de padrões, ou que os grupos minorizados estão ganhando representatividade em novelas, em campanhas de grandes marcas, nas redes sociais, aparecendo em revistas e em outros lugares. Muita gente ainda se incomoda com isso. Muita coisa já mudou, mas acho que ainda tem muita coisa pra mudar. Você vê muito textão na internet, mas no dia a dia nem sempre é assim. Ainda há muito preconceito, violência e aquelas piadinhas maldosas por parte de muita gente. Porém, se incomoda,
se diminui ou trata o peso, cor, orientação sexual ou qualquer outra condição que a pessoa tenha de forma negativa, não é piadinha. É ofensa, é preconceito velado e real”, alerta.
O futuro
Apesar de toda a mudança que vem acontecendo em relação à quebra dos padrões e da auto aceitação, mulheres com corpos fora do padrão ainda precisam brigar por um espaço na grande indústria da moda. Perguntamos à Adriana se ela acredita em uma mudança no futuro. “Eu quero ser positiva e pensar que sim, que futuramente vou me reconhecer no espaço da grande indústria da moda. Porém, isso ainda está longe de acontecer. As grandes marcas, dos desfiles das semanas de moda, ainda optam por modelos magérrimas. Espero que algum estilista ou alguma marca venha e quebre com essa realidade. No entanto, algumas marcas conhecidas já abriram seus olhos para o boom das discussões sobre representatividade e passaram a colocar em voga nos seus discursos a quebra dos padrões inserindo as modelos plus size em suas campanhas, por exemplo. Entretanto, ao meu ver, eles ainda não conseguiram unir discurso e prática. Porque, o que adianta na campanha da televisão, da revista e na internet eles trazerem uma modelo plus size e dizerem ‘estamos vendendo roupas para todos os corpos e pessoas’, mas quando chegamos na loja, na hora de escolher a roupa, os modelos que deveriam ser G, GG, XG e XXG não condizem com o tamanho que deveriam ter”, conta a estudante.
os padrões
us size é uma maneira de representatividade
A Revista Rascunho acredita que todas as mulheres são lindas, independente do formato do corpo, do tom da pele ou do corte de cabelo. Mais do que “estar na moda”, o importante é estar em paz e apaixonada consigo mesma. Ana Paula Ramos Gabriel Pereira
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Belas, guerreiras e de fibra Existem aquelas mulheres que nos inspiram. Não estou falando da Jackie Onassis ou da Princesa Daiana, muito menos das modelos de capa de revista. Estou falando daquelas mulheres incríveis que são nossas mães, avós, tias. Mulheres de verdade, que passaram por muitas coisas e tem histórias lindas para contar.
Luzia Lima, 77 anos, ex-lavadeira de roupa
“Eu não conheci paixão, sei nem o que é isso. Antônio chegou lá em casa e pediu para casar comigo. Mamãe disse sim então eu casei, se ela dissesse não eu não teria casado”. Luzia nasceu em Parnaíba, interior do Piauí. Descendente de uma índia corajosa, como ela diz, que criou os filhos sozinha por ser separada do marido. De cabelos longos, lisos e negros, ela se casou aos 17 anos e veio morar com a família do marido em São Luís. “Quando a gente foi chegando, mandaram fechar as janelas do trem né, que tacavam pedra. Eu olhei pra Antônio e disse: vem cá, vocês me trouxeram foi para essa terra de doido (ela deu uma gargalhada )”. Morou por um tempo com a sogra até um dia em que se desentenderam (a sogra era ciumenta), Luzia pegou o filho embaixo do braço e ficou esperando o marido (que era estivador) sair do trabalho e exigiu uma casa só para ela. Era simples e humilde, mas era dela a casinha de taipa de um quarto que alugou e depois foi aumentando de acordo como a família crescia. Luzia teve 17 filhos. Os filhos que estudavam de manhã não podiam sujar o uniforme para poder outro irmão vestir e ir para a escola à tarde. Os cadernos era ela quem costurava . Cada filho tinha direito a uma roupa por ano, que ela fazia. Os mais novos herdavam as roupas e sapatos dos mais velhos. E assim ela conseguiu criar todos, mesmo com muita dificuldade e de muitas vezes passarem fome. “Ele era um bom marido, o mal dele foi a bebida. Tinha uma época que ele bebia até dormir e acordava pra beber. Perdeu o emprego na Petrobrás que até hoje me arrependo, porque senão estaria com uma boa pensão. Aí eu fui bater de porta em porta a procura de gente para eu lavar a roupa ”. O marido dela morreu e hoje infelizmente, só restaram 7 dos 17 filhos, mas todos bem criados e encaminhados para vida. Agora Dona Luzia roda o país inteiro junto com as mulheres da sua igreja. Eu perguntei a ela se um dia ela já tinha se imaginado viajando e conhecendo o país todo.
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“Ele dizia isso para mim (marido), “Nega, nós ainda vamos sair nós dois por aí viajando”. Ele só tinha que se livrar desse negócio de agiota, Antônio devia todo mundo. Mas agora eu posso viajar né, eu fico muito feliz por ter essa oportunidade que nunca sonhei na minha vida. Mês passado mesmo eu estava em Santa Catarina recebendo um prêmio e representando o Maranhão”. E essa é a impressão que Dona Luzia deixa nas pessoas, um sorriso inconfundível, uma mulher batalhadora, um charme e estilo incomparáveis. Como ela mesma diz, quem diria que aquela indiazinha “braba” que carregava feixe de lenha na cabeça, semianalfabeta iria estar ali ganhando prêmio? “Concha” como é chamada pelos amigos, é uma das mulheres mais gentis que já tive o prazer de conhecer na vida. Ninguém que chega na sua casa não é bem tratado. É um desses tipos de mulheres que tem o sorriso fácil e uma simplicidade nata. A beleza dessa mulher não é só externa e em quanto ela é amável. Mas principalmente na sua força. Ela chegou em casa do trabalho no sábado, tomou banho, estava toda zelosa em pentear o cabelo, deixar arrumado para sair na foto, embora ela nem tenha pedido para olhar a foto. Ela sentou no sofá da sala e começou a contar sua história. “Eu nasci no município de Itapecuru-mirim, Sapucaia, um lugar chamado Sapucaia, dentro dos matos. E a minha mãe quando foi me dar à luz, né, não tinha cama nem nada, tinha nada. Papai fez um estrado, pegou ‘uns pau’ e fez um estrado, aí botaram os panos em cima e lá eu nasci”. A mãe de Conceição teve quinze filhos, mas apenas quatro ainda estão vivos. Na versão que foi contada para ela quando criança, um casal estava procurando uma menina negra para cuidar, então sua mãe resolveu levá-la. Mas na verdade, dona Apolônia a deixou na casa do casal com a promessa de que voltaria Maria de Conceição Amorim, 53 anos, doméstica para buscar, só que nunca mais retornou. Toda vez que seu pai de criação encontrava com a mãe biológica pela estrada, tentava devolver a menina. “Toda vez que eu ia, ele me levava e levava uma cesta básica, porque na época tu sabe né, a gente passava fome. Pedia um café para um vizinho, açúcar. Mamãe disse que me enganava sabe com o quê? Que não tinha carne para me dar. Era com essas palhas secas, de casa de taipa né. Ela fazia aquela papa de mingau de farinha seca e colocava um pedacinho de palha seca e eu comia tudinho pensando que era carne, e assim cresci gorda comendo palha seca”. Mesmo com todos os problemas da sua mãe biológica, Concha estudou, cresceu com a família de criação, fez cursos de corte e costura, pintura e datilografia. O sonho dela era ter sido enfermeira, mas mesmo com seu pai disposto a lhe ajudar, ela não fez o curso e trabalha até hoje como doméstica. “Eu comecei a trabalhar desde pequena, era eu que fazia tudo dentro de casa, a primeira coisa que me deram foi uma vassoura (ela riu), esse aqui é teu serviço de todo dia. Casei-me, me invoquei com um... que era de escola né?” Depois de 14 anos de namoro (que era para ver se dava certo), ela resolveu se casar com Geomar, mesmo contra a vontade da família. Somente depois do casamento é que ela foi perceber “quem era a peça”. Ele bebia, gastava muito com bebidas e bilharina, fumava maconha, e passava o dia em casa dormindo enquanto ela trabalhava. Assim foram dez anos de casados, ela trabalhava e ele gastava tudo que ela conseguia com muito esforço. “Eu só dei falta do dinheiro num dia que fui procurar quando cheguei do serviço e não tinha um centavo mais. Aí esse dia ele chegou bêbado em casa. Teve um dia que ele chegou de tarde, ele me abusou... como se diz? Anal né? No ânus, me agarrou e me usou. Aí eu pedi o divórcio. Ainda dei parte dele, registrei um B.O. Ele quis
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vender minha casa, meus documentos da casa sumiram, depois que reapareceram, por causa do pastor que deu uma dura nele. Eu passava o dia todinho trancada nessa casa, eu e as cachorras aqui tudo trancada, com medo. Foi sem nada também. Trouxe algum benefício? Não. Tem filho? Não. Aí a advogada novinha, muito bonita a advogada, olhou para ele, olhou pra mim e assinou o divórcio. E graças a Deus hoje eu estou livre”. O agora ex-marido difamou Conceição em toda a comunidade, inclusive para sua família. Ele disse que a culpa da separação era que ela seria lésbica. Eles realmente acreditam que eu sou sapatão, a minha mãe disse que eu nasci bichada. Foi por isso que ela me largou, que eu tinha nascido bichada. E até hoje sou rejeitada pelos meus irmãos. Eu perguntei se ela tinha noção do quanto era uma mulher forte? Eu sei, mas não fui não, eu queria me matar. Todos os dias de manhã, Luzana sai com sua moto vermelha. O serviço que ela realiza não é nada convencional : senta lajota, constrói muro, arruma pia entupida ou quebrada, pinta casas e grades . E ainda por cima faz faxina. Logo que comecei a falar com ela, disse -me que não tinha nenhuma história para contar. Luzana veio de uma família bem humilde de São Luís, conheceu de perto a fome e a pobreza. Aos 13 anos saiu da casa da sua mãe para trabalhar em casa de família no sudeste e centro-oeste do país. “Dormia naqueles bancos da rodoviária, nunca ninguém soube o que eu já sofri naquela época. Teve em Brasília que o cara quis me pegar, eu dei nele, atirei na perna dele, aí foi que meu irmão foi lá mais minha mãe. A igreja me acolheu, senão eu ia acabar com ele”. Ouviu da própria mãe que preferiria que ela tivesse morrido e foi expulsa do seu quarto. Assim, essa mulher que não abaixa a cabeça para ninguém e que sempre trabalhou pra se sustentar e aos outros. Realizou o seu maior sonho: ter um quarto só seu. Hoje Luzana Silva, 50 anos, marido de aluguel Luzana divide uma casa com uma amiga e trabalha como marido de aluguel com uma clientela grande e fiel ao seu trabalho. “Todos os meus sonhos eu vim realizar aqui, eu tinha o sonho de ter um quarto que lá me foi tirado, aqui eu ganhei”. Ela nunca se casou e nunca teve filhos, nunca sequer teve um namorado ou um caso, ela quer distância de homens. “Foi taca, taca em cima de taca. Ela falava ‘acabou sua égua? Isso é pra apagar teu fogo’, que eu não prestava. Aí quando veio me falar de casamento mais tarde, eu falei ‘a senhora não apagou meu fogo?’. Uma criança, de dez anos, não sabia nem o que era fogo. Foram dias e dias de febre. Então foi isso, até hoje eu tenho trauma de qualquer homem que chega perto. Antes eu chorava quando falava essas coisas”. A família inventou boatos de que ela é uma travesti, de que é lésbica, que é ladra, que tem uma máquina de fazer ser casada e pelo trabalho não tradicional. Desde que nasce, a menina é condicionada a ser delicada. Desde que uma menina nasce, paira sobre ela o peso da maternidade e de formar uma família. Quando alguém foge a esse padrão, o preconceito é imenso. Luzana enfrentou e enfrenta muita coisa, mas ela fez questão de me pedir que: “Conta história ruim não, hoje eu conquistei minha liberdade, tenho minha filha (a sua cachorrinha Pandora). História ruim ninguém precisa saber”. Lara Souza
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Censurada
Hoje, enquanto olhava pela janela do ônibus o clipe da minha vida, tinha duas mulheres com seus bebês na minha frente falando o quanto a maternidade era uma coisa incrível. Claro, eu pensei, deve ser incrível mesmo quando você tem uma rede de apoio da família ou nada acontece de “fora do normal”. Então eu lembrei de uma outra mulher que um dia também esteve diante de uma janela pensando na sua vida. A diferença era que a janela era de um avião e ela estava chorando por ter trazido à tona aquele momento terrível de sua vida, e ainda ter sido censurada. Letycia não sabia o que era feminismo, empoderamento negro, nem nada dessas coisas de militantes de direitos humanos. Mas ela já sofria na pele o que era o preconceito, o que era ser preterida, o que era ser tratada de forma diferente no trabalho pela cor da sua pele, o que eram as brincadeirinhas sem graça e machistas no trabalho. Só que mesmo com tudo isso, ela não se dava conta do que sofria, até o dia em que apanhou do namorado. A questão é que Letycia estava grávida e quase perdeu sua filha. O agressor nem se preocupou de estar em frente a uma delegacia. É assim mesmo, eles nunca se preocupam porque sabem que a lei os favorecem. Entretanto, como dizem dos brasileiros, Letycia seguiu firme para cuidar de sua filha como mãe solo. Ela não desistiu. Agora ela sofre por ela e pela filha com o racismo. Os coleguinhas da escola podem ser muito malvados quanto ao preconceito. E agora Letycia é feminista, isso mesmo, a louca, histérica que sabe os seus direitos e luta por eles na sociedade, que quer ter voz. Agora, quando se é feminista, não se passa batido o preconceito. Mulher, mãe solo, negra, nordestina, trabalhadora, feminista. Quando sofreu a agressão, ela não percebeu a gravidade da situação, ela e sua filha poderiam ter morrido, virariam estatística. Era isso que eles queriam quando ligaram para ela naquela manhã. Uma estatística, amável, afável, para dizer “nossa que triste” e seguir a vida. Letycia foi parar em São Paulo, debaixo de maquiagem e as luzes fortes do estúdio. Tentaram ensaiá-la. Sente aqui, faça isso, fale aquilo. Mas não deu, a memória foi forte demais, ela rasgou o verbo, chocou, chorou, deixou todos sem reação, gritou Fora Temer.... ela é louca. É difícil ser uma vítima, ter sequelas, tomar remédio... é louca. Feminista, grita... é louca. Não abaixa a cabeça para opressor... É LOUCA. Louca. Taxada, rotulada. Era isso que estava escrito na cara de todos do auditório. Tira essa louca daqui. É disso que a chamam no trabalho, os homens que se relaciona, os pais dos coleguinhas de escola da filha. Louca, histérica, só por não ser a mocinha delicada e calada que todos querem. Por falar o que ninguém quer ouvir: O mundo é machista e muitas mulheres sofrem de verdade. Não aquele teatrinho de “tudo vai ficar bem” da TV, era isso que esperavam dela. Agora Letycia chorava na janela do avião ouvindo as desculpas de porque não a colocariam no ar. Ela foi censurada. Assim como todas nós somos, basta ser louca.
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Agressão contra mulher gestante Você deve pensar : quem em plena sanidade mental bateria em uma mulher grávida? Infelizmente, a violência contra a mulher não diminui no período da gestação. Cerca de 13% de mulheres relatam o aumento da violência e severidade durante esse período. As denúncias de mulheres grávidas são de 20% podendo chegar até 25% depois do parto. Segundo a OMS no “Informe Mundial sobre a Violência e a Saúde”, a mulher que sofre agressão durante a gravidez acaba trazendo consequência sérias físicas e psicológicas para ela e seu filho. Muitas mulheres grávidas que são violentadas sexualmente nem chegam a fazer o pré-natal, aumentando o índice de infecções vaginais e outros problemas que podem, inclusive, prejudicar o parto. Além do estresse emocional que a gestante tem que suportar que pode acarretar em quadros de depressão e ansiedade, ou uso excessivo de cigarro e álcool. Além do mais, a violência que uma grávida sofre pode antecipar seu parto, o bebê nascer com baixo peso ou se tornar uma gravidez de alto risco. Por isso é muito importante que a mulher faça o pré-natal, onde pode ser identificada a violência e assim tratada além da denúncia do agressor, para que a mulher possa receber o devido cuidado. Lara Souza
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Cadê a voz trans? Para começo de conversa, a representatividade em seu conceito amplo significa representar politicamente os interesses de alguém no âmbito social. Já mulher transgênero é aquela pessoa que se identifica como sendo do gênero feminino embora tenha sido biologicamente designada como pertencente ao gênero masculino. Introduzidos os conceitos, podemos questionar: as revistas femininas abrem espaço para a representatividade trans? As revistas femininas acompanharam a evolução das mulheres, desempenhando um importante papel na difusão de ideais. Além disso, estão cada vez mais segmentadas, isto é, os periódicos femininos estão cada vez mais se direcionando para um determinado tipo de mulher. E para saber se as mulheres trans estão sendo contempladas nas edições de revistas femininas, cincos trans expressam aqui seus pensamentos sobre o conteúdo produzido para o gênero feminino.
De acordo com a cabeleira Penélope Fernanda Soares, a mulher trans não tem voz de representatividade na mídia. “Não temos voz em lugar nenhum. Agora que está surgindo uma pequena visibilidade devido ao sucesso de determinados cantores, fora isso, não temos visibilidade. Nossa sociedade não foi criada para abraçar os LGBTs e muito menos as travestis e transexuais”, afirmou Penélope Fernanda Soares, acrescentando que as revistas ideais são aquelas que não fazem separação de mulher cis e mulher trans.
Cabeleireira Penélope Santos
Para a programadora Nikki Ferreira, o cenário da falta de representatividade é o mesmo que afirmou Penélope Fernanda Soares. Ela diz que a mídia se utiliza de pessoas cis para representar mulheres trans. “Não temos voz nas revistas femininas, falta mais representatividade trans na mídia em geral, os meios de comunicação se utilizam de pessoas cis para representar mulheres trans, subestimando a capacidade de mulheres trans e às vezes deslegitimando a própria identidade das meninas. Admitindo ou não, existe preconceito e machismo nessa sociedade patriarcal e cisnormativa que a mídia se encontra, excluindo chances das trans de mostrarem seu potencial na produção de conteúdo”, afirmou.
Progamadora musical Nikki Ferreira
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O segmento de revista feminina é o que possui a maior quantidade de títulos e publicações. Estima-se que 69 segmentos de revistas são relacionados direta ou indiretamente à mulher. Em contrapartida aos números, a musicista Ana Flávia acredita que as mulheres trans são apagadas das publicações referentes ao gênero. Ela diz que “a falta de representatividade vem justamente do apagamento e ostracismo que pessoas trans e travestis têm sofrido de maneira sistemática e estrutural. Nossas corporalidades e vivências são tidas como inválidas dentro da cisheteronormatividade. O ideal hoje nas revistas são temáticas referentes à libertação da mulher - cis ou trans – ao invés de artigos voltados exclusivamente à beleza e moda. Não que seja algo ruim em si, mas tenho a sensação que tudo produzido para o público feminino tem esse foco, o que faz parecer que o ser mulher é voltado exclusivamente a futilidades”, afirma a musicista que, assim como Penelópe, acredita que uma revista exclusivamente para o público trans não seria interessante, visto que o objetivo é inclusão e inserção de todas na sociedade.
Ana Flávia ainda afirma que o foco da maioria das revistas femininas é cisheteronormativo. “Pelo que acompanho de revistas, pouquíssimas publicações tiveram algo relacionada à mulher lésbica ou bissexual e muito menos ainda a mulher trans - hetero, bi, lésbica, pan, etc. Além dessa questão, são pouco abordados aspectos das múltiplas vivências femininas e o modelo de beleza eurocêntrico se faz presente em quase todas as revistas. Gostaria de ver um conteúdo mais sério dentro dessas publicações que falassem sobre a condição da mulher em um dos países que mais se mata mulheres, sejam cis ou trans”, afirmou. Musicista Ana Flávia
Trazendo outro aspecto da falta de representatividade trans nas revistas, a acadêmica de psicologia Edenagela Larissa, acredita que a competitividade entre mulheres cis e trans é um fator para enfraquecimentos do movimento trans na mídia. “Não considero que pessoas trans têm voz em revistas femininas. A competitividade entre mulheres cis e trans ainda enfraquece nosso espaço nos canais de comunicação, e essa situação me entristece, visto que ambas lutam contra uma sociedade para sejamos tratadas com equidade de gênero”, contou Edenagela Larissa.
Estudante de Psicologia Edenagela Larissa
E finalizando as opiniões e argumentos, a influencer digital Isa Momora relatou que como mulher é representada pelos assuntos abordados nas revistas, mas como mulher trans é uma voz silenciada, já que mulheres cis falam por ela. “Os assuntos que as revistas femininas falam, principalmente quando a questão é insegurança, relações com homens ou como o corpo feminino deve ser se aplicam a mim. Sinto-me representada enquanto mulher, porque eu escolho ler algumas revistas e me identifico com as histórias das mulheres que escrevem, afinal eu passo pelos mesmos questionamentos. Ao mesmo tempo, vejo que existe um silenciamento enorme das mulheres trans na grande mídia. Então com certeza eu não me sinto representada enquanto mulher trans. Está em alta falar sobre transexualidade e mulheres trans na mídia, mas a gente ainda Influencer Isa Momora não é parte integral dessas revistas, justamente porque não há muitas trans escrevendo pra revistas femininas e por enquanto somos apenas assunto. A gente não faz parte do pessoal que comunica na grande mídia, é por isso que mesmo quando o conteúdo é sobre nós, ele é escrito para pessoas cis, não é escrito para nós”, relatou a influencer digital.
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Questionamento sanado, resta agora aos produtores de conteúdos das revistas femininas atentarem para situação e abrirem espaço para novos olhares e assuntos do mundo feminino.
Breve perfil Meu nome é Penélope Fernanda Soares, esse vai ser meu nome social quando aprovado. Sou cabeleireira e acredito que ser mulher trans é muito difícil, todos os dias quando levantamos é uma nova guerra na sociedade preconceituosa em que vivemos. Meu nome é Nikki Fereira, tenho 21 anos, sou programadora, tradutora e intérprete. Ser mulher trans é ser mulher ao quadrado. Além de enfrentar lutas diárias para garantir nosso espaço, temos que enfrentar uma árdua batalha para legitimar nosso gênero, ou melhor, não deixar que nos deslegitimem. Ser mulher trans é transcender essa grande máquina binária cisnormativa opressora, percorrendo um caminho geralmente solitário e com vários obstáculos para ser você mesma.
Meu nome é Ana Flávia, tenho 33 anos e sou musicista. Ser mulher trans é uma questão bem subjetiva, dadas às diversas narrativas e construções individuais de cada uma. Em linhas gerais a vivência de uma mulher trans é marcada pelo preconceito e isolamento social, causado principalmente pela noção arraigada de gênero e sexo que temos em nossa sociedade. Eu me chamo Edenagela Larissa, sou estudante de psicologia e modelo. Ser mulher trans, para mim, diferente de tudo que as pessoas são acostumadas a falar/ouvir, é uma das maiores maravilhas do mundo - não ausentando o fato de que é uma vida bastante complicada por diversos aspectos -, mas ainda sim, é maravilhosa. Ser quem eu sou, independe de qualquer outro tipo de julgamento e ser empoderada com tal é de uma autoafirmação e segurança imensurável. Eu me chamo Isa Momora, sou mulher trans desde os 17 anos, trabalho como influencer digital e trato sobre as questões trans no meu canal no YouTube. Alessandra Medina Cynthia Carvalho
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___ A culpa não A cada 11 minutos, uma mulher é estuprada no Brasil. Assustador não é mesmo!? Mas essa é a realidade. Um estudo feito pelo Banco do Brasil afirmou que é mais fácil uma mulher, com idade entre 14 e 44 anos, ser estuprada do que ser vítima de câncer ou algum acidente. No nosso país, essa realidade é repetida, infelizmente. Em 2015, eram 130 mulheres estupradas por dia no Brasil, e detalhe, na pesquisa, os dados mostram que apenas 10% das mulheres tem coragem de denunciar. Mas não para por aí! 70% dessas vítimas eram crianças. Ano retrasado, 2016, os dados de mulheres estupradas só fez aumentar : passou a ser 135 mulheres estupradas por dia no país. Em um país machista e misógino como o Brasil, dados assim continuam sendo assustadores e preocupantes. Em 2017, o país registrou 10 estupros COLETIVOS por dia. Ter o corpo invadido por uma só pessoa já é horrível, agora, imaginem por mais de uma e ao mesmo tempo. Na cidade de Uruçuí (PI), uma adolescente de 15 anos, grávida, foi estuprada por três outros adolescentes, e o namorado ainda foi morto na sua frente. Quatro rapazes, na Baixada Fluminense (RJ), estupraram uma garota de 12 anos em uma comunidade. Além de estupradas, algumas acabam mortas, como uma mulher de 31 anos, em Santo Antônio do Amparo (MG), que foi violentada por quatro rapazes e morta, quando estava indo para a sua casa. Os números que são veiculados são apenas uma parcela, visto que a violência sexual é historicamente subnotificada e nem todas as vítimas procuram hospitais ou a polícia. O aumento de casos de estupro coletivo é impactante. Um crime de bando, de um grupo de homens que violentam uma mulher. Apesar de os debates sobre os direitos das mulheres terem se intensificado, provocados por casos de repercussão nacional como o estupro coletivo de uma garota em uma favela, no Rio de Janeiro, em maio de 2017, praticamente um terço da população brasileira ainda acha que a culpa da violência sexual é da vítima. Um em cada três brasileiros culpa a mulher pelo estupro, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 42% dos homens acham que o estupro acontece porque a vítima não se dá ao respeito ou usa roupas provocativas. O que mais impressiona é que 32% das mulheres entrevistadas concordaram com essa afirmação. A pesquisa mostra, também, que 65% da população brasileira têm medo de ser vítima de estupro. Entre as mulheres, o dado chega a 85%.
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_ o é da vítima PEC 181 Já ouviu falar da Proposta de Emenda Constitucional que pretende criminalizar o aborto em todos os casos no Brasil? Ou melhor falando, na PEC 181? A Comissão Especial da Câmara dos Deputados aprovou em novembro de 2017 uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que põe em risco as formas de aborto previstas atualmente pelo Código Penal. A PEC, originalmente, tratava da extensão da licença maternidade assegurando um maior tempo de licença-maternidade para as mães que tenham filhos prematuros. Mas, motivado pela bancada evangélica, o deputado Jorge Taudeu Mudalen (DEM-SP) sugeriu uma nova redação, que impede a realização de qualquer tipo de aborto no país, inclusive aqueles que são legalmente previstos no Código Penal de 1940, que permite o aborto em caso de risco de vida para a mãe e em caso de estupro (artigo 128, incisos I e II, do Código Penal). Vale lembra que em abril de 2012 o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que não é crime a interrupção da gravidez quando o feto apresentar má formação do cérebro. Lembra-se ainda que a maioria desses votos são de HOMENS. Homens que estão decidindo sobre a vida das mulheres. Breno Frazão
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A mãe vítima é culpabilizada
“Tribunal online” culpa e julga mãe de Alanna/ Ilustração: Gabriel Sá
Contar para alguém que foi vítima de violência é constrangedor. Assim como contar para alguém que a filha foi violentada e morta pelo ex-companheiro da mãe. A culpa pelo crime foi posta nos ombros da mulher no tribunal das redes sociais. Culpada por ser vítima. Essa afirmação introduz o caso da menina Alanna Ludmila, de 10 anos, que desapareceu no dia 1º de novembro de 2017 e que depois de dois dias foi encontrada morta no quintal da própria casa. O caso repercutiu e comoveu São Luís. No decorrer das investigações a população compartilhou informações sobre o possível paradeiro da menina e fomentou a discussão de que a mãe da criança, Jaciane Borges, era culpada pelo crime. As fakes news que eram viralizadas informavam que a mãe de Allana estava próxima a casa quando o crime aconteceu, porém em depoimento ela afirmou que estava em uma entrevista de emprego, afirmação que era posta em dúvida por populares. Sua inocência foi comprovada através de uma câmera de segurança que mostrou que ela esteve na entrevista de emprego no mesmo horário em que seu ex-companheiro, Robert Serejo Oliveira, violentou, matou por asfixia e ocultou o corpo da menina Allana. Além da culpa colocada na mãe da menina em comentários e falsas notícias, ela recebeu ameaças de linchamento e apedrejamento por parte da multidão durante o velório da filha, mesmo após Robert Serejo ter confessado o crime. Populares justificavam a ação dizendo que Jaciane era culpada do relacionamento com Robert e ausência da casa onde o assassinato ocorreu.
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O comportamento da população durante o episódio reforça o conceito de revitimização: o sofrimento continuado ou repetido da vítima de um ato violento. A revitimização pode acontecer imediatamente ou mesmo depois de anos do fim da ocorrência por meio de interrogatórios, conversas ou ações midiáticas, como as que culpabilizaram a mãe de Allana. Segundo a delegada do Departamento de Feminicídio do Maranhão, Viviane Azambuja, a revitimização ou culpabilização de casos como o de Jaciane Borges acontecem com grande frequência porque ainda vivemos uma sociedade em que o patriarcado reina. “Estes comentários e comportamentos são culturais, nossa sociedade é patriarcal, machista. Essa cultura machista é quem faz com que a mulher seja culpada por tudo. É claro que vão sempre aparecer pessoas para culpá-la porque botou um homem dentro de casa, culpá-la porque deixou a filha sozinha. A mulher é vítima, porém carrega nas costas a responsabilidade daquilo que o agressor cometeu”, pontuou a delegada, acrescentando que “os comentários e afirmações nas redes sociais criam uma situação de risco para aquela pessoa que está sendo revitimizada e o problema é como a sociedade recebe e repassa as falsas informações, afinal as pessoas querem fazer justiça com as próprias mãos, esquecendo que a culpa da agressão é do agressor, a culpa de um estupro é do estuprador, a culpa de um feminicídio é do assassino”. A Constituição Brasileira deu um salto legal importante no que toca à proteção de crianças e adolescentes, considerando a doutrina da proteção integral, no artigo nº 227 pode-se ler que “é dever da
família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. A tripartição da responsabilidade pelas crianças e adolescentes, compreende família, Estado e sociedade como “instâncias reais e formais de garantia dos direitos elencados na Constituição e nas leis”, como explica Heloisa Helena de Oliveira, colunista do Congresso em Foco. Tal descentralização do dever de cuidar os sujeitos de direito ainda em sua fase de desenvolvimento é, no entanto, um entendimento jurídico que não está amplamente difundido em nossa cultura. A expressão mais aguda disso talvez seja a extrema cobrança dirigida às mulheres para que zelem pela segurança de seus filhos - como extremo é o rechaço quando o controle sai das mãos da mãe. A responsabilidade quase exclusiva atribuída às mães por seus filhos é um aspecto que inviabiliza uma maternidade sadia e um ambiente saudável para o desenvolvimento dos filhos em função da tensão e estresse gerado pela impossibilidade de partilhar as preocupações e medidas necessárias para garantir o algo complexo, como é o desenvolvimento pleno de um ser humano.
O estágio mais avançado desse problema pode-se perceber em casos como o vivenciado pela mãe de Alanna Ludmila. Deste modo, a culpabilização consiste em um processo no qual a mulher é duplamente vitimada: por uma violência primeira e, em seguida, pelo depósito da responsabilidade pelo que lhe ocorreu “em sua conta”, fazendo com que a mulher sofra encargos de sua condição.
Outros casos de culpabilização da vítima
A renomada nadadora brasileira Joanna Maranhão, após revelar em 2008 que havia sido abusada desde os oito anos de idade por seu treinador, sentiu na pele a culpabilização. O ex-técnico processou ela e a mãe por calúnia. A publicitária Natacha Orestes relatou nas redes sociais em 2015 que foi estuprada pelo ex-namorado durante um encontro casual. Após queixa-crime movida pelo agressor e indeferida pelo Ministério Público de Jundiaí em São Paulo, ela agora responde por danos morais por não ter registrado um boletim de ocorrência na época. Cynthia Carvalho Lara Silva Stephany Pinho
“A culpa da agressão é do agressor, a culpa de um estupro é do estuprador, a culpa de um feminicídio é do assassino” 33
Loucos? Talvez, mas determinados a trazer uma puta matéria
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Fazer essa reportagem não foi fácil. Posso considerar como uma das mais difíceis que tive que fazer. Não porque me desloquei mais de 800 km, de São Luís à Imperatriz, mas justamente por causa do assunto: O pré-natal de mulheres grávidas com HIV. A princípio quem está lendo esse texto pode estar me chamando de louco. Afinal, qual a “bagagem”que um aluno de graduação tem para construir uma matéria dessas? Eu vos respondo : NENHUMA! Mas temos coragem. Acho que isso define bem a aventura que começou muito antes da viagem. Quando recebemos a notícia de que teríamos que fazer uma reportagem para uma revista feminina, ficamos alegres. Afinal, poderíamos fazer uma matéria simples, como: “Azul ou vermelho? Qual a melhor cor para pintar a sua unha no dia do primeiro encontro?”. Mas a ideia que nos foi apresentada era justamente fugir desse tipo de texto. Buscamos então assuntos que afetam diretamente a mulher brasileira. E por força do destino (ou pautas caindo em massa), resolvemos mostrar aos leitores da Rascunho como é o pré-natal de mulheres portadoras do HIV no sul de um dos Estados mais pobres da federação. Daí, você deve estar se perguntando mais uma vez: Por que Imperatriz?. Escolhemos essa cidade justamente por conta de um preconceito. O segundo maior município do Estado, com mais de 700 mil habitantes, fica localizado bem no portal da Amazônia. Por ali, passam as estradas e ferrovias importantes do país. Assim, pensávamos que a razão para o alto índice de HIV tinha como uma das principais causas a sua localização. Mas nas primeiras entrevistas, a nossa tese acabou sendo destruída. Descobrimos que a razão principal é um problema que afeta o país inteiro (principalmente no norte e nordeste): a centralização da saúde. O Serviço de Atendimento Especializado em Infecções Sexualmente Transmissíveis (SAE em IST/Aids) de Imperatriz atende quase todo o sul do Estado, e principalmente parte do Tocantins e Pará. Isso faz com que nas pesquisas do Ministério, a cidade acabe ficando com uma das mais altas do incidências perdendo apenas para a capital. Com isso, praticamente todos os pacientes com HIV da região realizam o tratamento ou em Imperatriz ou Açailândia. Essa quantidade de pacientes acaba por exigir demais dos hospitais da cidade. Assim, quando chegamos ao Hospital Macrorregional Materno Infantil, nos deparamos com uma dura realidade. A reforma de ampliação que o Governo do Estado estava realizando no espaço fez com que o Regional (como é popularmente conhecido) ficasse mais apertado. Naqueles corredores, não havia a distinção entre a portadora do vírus ou não. Todas eras iguais, na pele, no sotaque, no assunto, na longa espera pela consulta. Um verdadeiro contraste com a vida fora daquele pequeno espaço. Logo que entramos no hospital, ficamos esperando a liberação da coordenadora do SAE para que prosseguíssemos a reportagem. Durante essa espera, várias pessoas entraram na sala. Mas uma me chamou atenção. Era uma mulher de no máximo 30 anos. Nervosa, ela queria urgentemente falar com a Assistente Social, que ainda não havia chegado. Logo que vi a sua reação, deduzi que tinha acabado de receber o resultado do teste de HIV. Era incrível a sua agitação. O nervosismo. O olhar estava carregado com uma viagem solitária quem nem os melhores viajantes poderiam descobrir onde exatamente ela estaria. Você deve estar também querendo saber o que ela pensou, ou qual a verdadeira razão para tamanha agitação. Mas infelizmente, a minha vergonha não deixou que eu descobrisse. Foi essa infeliz que também impediu de tirar fotos mais elaboradas das nossas entrevistas. Andando por aqueles corredores com uma câmera enorme pendurada no meu pescoço, me senti um verdadeiro ET carregado uma arma super potente. Todas me olhavam, e poucas queriam tirar foto. Durante a entrevista que Bianca estava fazendo com as mulheres me senti um inútil, sem utilidade alguma. Assim, no tédio da espera, comecei a brincar com a câmera, na tentativa de alcançar de de alguma maneira a foto de capa da reportagem. Sem aguentar mais, invadi a sala que conseguimos para entrevistar as mulheres. Bianca estava em completo ócio, esperando a última consulta do médico Pedro Mário acabar. Nesse local, era possível ouvir todas as recomendações que o profissional passava ao casal atento. Olhei para a minha parceira e avisei que estava decidido a acompanhar a última entrevista. Nessa hora, o belo casal sai da sala. Brancos, altos, belos. Bianca, com a destreza de uma mulher, logo convidou a elegante mulher para a pequena sala. Ao ser confrontada com o tema da nossa reportagem, a morena balançou. Mesmo com as investidas da jovem, ela se recusou a dar entrevista, e logo foi salva pelo marido que afirmava categoricamente que ela não portava o HIV. Saímos do hospital cansados, mas felizes. Cheios de planos, e muitos planos. Na viagem de volta, falávamos como seria, quais falas deveríamos colocar, quais não. Foi a melhor experiência que eu tive. Afinal, tudo aquilo que líamos nos textos dos grandes jornalistas pudemos colocar em prática , mesmo que em uma dimensão pequena. Quando você começar a ler a matéria, entrará em contato com a vida de pessoas comuns, mas que guarda um segredo por conta de um sociedade dura e marginalizados. Ouvir de mães que o seu maior medo era um parente da família descobrir a doença é chocante, revoltante e alarmante. Precisamos urgentemente mudar as nossas atitudes e principalmente nossas mentalidades. O preconceito só poderá ser vencido quando as pessoas conhecerem o real lado da doença. Petronilio Ferreira
“Quando recebi a notícia, chorei… mas me conformei”
O vírus HIV chegou ao Brasil ainda na década de 80. É um marco tanto para a medicina quanto para a cultura do país. Hoje, mais de 30 anos depois, o que a população ainda conhece sobre o vírus está envolto em uma verdadeira camada de preconceito e desinformação. Consequência de uma era em que grande parte dos infectados morriam precocemente em decorrência da Aids. Segundo dados do Ministério da Saúde, no Brasil do século XXI mais de 827 mil pessoas vivem com a doença. Desse total, 7901 são grávidas. É na cidade de Imperatriz, no sudoeste de um dos Estados mais pobres da federação, que grande parte das grávidas soropositivas do interior do Tocantins, Pará e Maranhão vão fazer o pré-natal. Até os 3 anos de vida, a pequena Gabriela era uma criança saudável. Corria, brincava, pulava. Mas essa realidade foi modificada com a chegada de uma doença misteriosa. Foram várias as idas e vindas ao hospital. A mãe, Ana Lúcia, preocupada com o estado da filha que até então perdera muito peso, tomou uma decisão drástica: atravessar mais de 624 km, de Sítio Novo até Teresina, em busca de tratamento no Hospital Getúlio Vargas. Porém a viagem chegou tarde demais : Gabriela veio a falecer poucos dias depois de ser internada na UTI do hospital. Com a notícia da morte, veio outra bem mais preocupante: a criança havia morrido de Aids. Hoje, grávida de 3 meses a mãe ainda lembra com pesar a perda da filha. Essa gravidez é a terceira, e traz consigo uma esperança: “A gente sempre quis
ter mais um… e a gente sempre teve uma expectativa de ter uma menina. Uma vontade de dentro mesmo. E aí aconteceu… estamos torcendo para que seja menina”, disse contente, acariciando a barriga. Lucia conta que depois do resultado ela passou a tomar todos os cuidados com a sua saúde: dorme cedo, se alimenta direito e deixou de beber. Todavia, há pouco mais de 18 anos, quando soube que Gabriela morreu em decorrência de Aids, nada disso passou pela sua cabeça. “Fiquei sabendo (que tinha HIV) quando fizeram exame na minha filha. Fiquei tão chocada na época, porque não existia muito exames e informação. E eu também nem me importei a procurar me tratar nem nada... Só que eu e meu marido sabia mos. Mas foi só quando eu engravidei do meu segundo filho é que eu resolvi começar o tratamento”, confessa ela. Para realizar o pré-natal Ana Lúcia viaja mais de 141 km, de Sítio Novo até Imperatriz. É nessa cidade que fica localizado o Hospital Regional Materno Infantil. Quem passa em frente ao Regional, como é conhecido, talvez não saiba que aquele é a principal maternidade do Sul do Maranhão. Apenas uma placa de reforma indica o nome do hospital que realiza mais de 5 mil atendimentos a pacientes do Pará, Maranhão e Tocantins. Logo na entrada da pequena estrutura, uma salinha se destaca. Esse é o espaço reservado para o Serviço de Atendimento Especializado (SAE) em Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST)/Aids. É no SAE do Regional que são atendidas mães e crianças soropositivas, além de crianças expostas ao vírus. “As mulheres que atendemos aqui já vêm testadas de outras unidades. Mas são locais que não oferecem o tratamento,
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como: Davinópolis, Governador Edison Lobão, Buriticupu, Bom Jesus das Selvas, Açailândia…”, afirma a Assistente Social, Socorro Marques.
A salinha de poucos metros quadrados poderia passar despercebida se não fosse a plaquinha de identificação
Essa rotina de viagens já é conhecida por Maria de Jesus, 38 anos. A barriga preponderante era o maior sinal de que a pequena cidade de João Lisboa ganhou um novo morador no início de novembro. João Pedro, quinto filho da lavradora, nasceu bem. Mas nem sempre felicidade esteve presente. Foi durante a bateria de exames do pré-natal que Maria descobriu que era portadora do vírus HIV. Recém saída de uma relação amorosa um pouco conturbada, ela revela que quase entrou em depressão. “Assim que eu descobri que estava grávida desse bebezinho comecei a entrar em depressão. Só não tive mesmo por causa dos vizinhos”, revelou a lavradora. No Brasil, um dos exames exigidos durante o pré natal é o teste de HIV. Isso tem ajudado a diminuir a transmissão vertical, que acontece de mãe para filho. Por outro lado, segundo o Boletim HIV/Aids do Ministério da Saúde de 2016, tem crescido o número de grávidas infectadas pelo vírus. Em 2015 foram registrados 7901 casos em todo o país. Desse total, 20,9 % pertencem à região nordeste. Ainda segundo o boletim, 30,1% das gestantes possuem o ensino fundamental incompleto. Isso acaba dificultando o entendimento da própria doença. “Quando recebi a notícia, chorei… mas me conformei”, afirma Maria. Assim como a maioria das mulheres, Maria de Jesus pouco conhecia sobre a doença. “Eu sabia que a Aids não tinha cura, então fiquei pensando se eu iria morrer… pensando nos meus filhos pequenos”, lembra a lavradora. Para Ana Lúcia, o início do tratamento não foi fácil. “Eu só sabia que era uma doença que matava. No início foi um verdadeiro pavor… medo de morrer, sabe?”, rememora Lúcia. O medo da morte é uma constante para quem é portador do vírus HIV. Nos primeiros anos da pandemia
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no Brasil, ainda na década de 80, quem era infectado pelo vírus tinha pouco tempo de vida. “Naquela época nem AZT tinha. O que fazíamos era tratar as doenças oportunistas”, relembra o médico Pedro Mário. Foi ele que em 1988 atendeu o primeiro caso de Aids em Imperatriz. Nesse mesmo tempo, a cidade sofria com um surto epidêmico de malária. “Quando alguém aparecia com febre intermitente e calafrio, a primeira coisa que a gente pensava era em Malária”, afirma Pedro. Havia 4 anos que o médico, que hoje é o ginecologista do SAE em IST/Aids do Regional, chegou em Imperatriz. Ele atendia a pacientes como Clínico Geral. Dentre esses casos, um chamou a atenção. Era um rapaz que vivia na cidade, mas trabalhava em Amarante do Maranhão. Apresentando todos os sintomas de malária, logo ele foi internado, tratado e poucos dias depois recebeu alta. Porém, não demorou muito para que o trabalhador da antiga SUCAM voltasse a ser internado com os mesmos sintomas. “Como ele era funcionário da SUCAM, o pessoal de São Luís soube que ele estava doente e mandaram-no para Teresina”, relembra o médico. Foi no Hospital de Doenças Infecto Contagiosas (HDIC) que descobriram que o que o rapaz sofria não era Malária, mas Aids. “Como ele era amigo de um amigo meu, eu tentei proteger esse menino de todas as formas…acabei virando amigo dele”, conta Pedro. O médico então deixou de lado o profissional para proteger seu paciente do gigantesco preconceito que a doença carrega. Essa triste realidade perdura até os dias atuais. “Ninguém da minha família sabe que eu tenho o vírus”, afirma Maria de Jesus, que não gosta de contar a ninguém sobre a sua doença, pois tem medo do que as pessoas irão falar. “Eu tenho uma amiga que ela tem também o vírus. Aí meu primo, que todo o tempo vai lá em casa para olhar o bebê, fica chamando ela de criminosa… Então eu fico pensando assim: Se eu contar pra ele, ele vai fazer o mesmo comigo, né? Então, fico na minha ”, completa Maria, que acredita que se um dia o primo souber, talvez ele nunca mais vá à casa da lavradora.
A longa espera
Quando Maria de Jesus foi internada no Hospital Regional para dar luz a João Pedro diversos cuidados foram tomados . “Aqui a gente já prepara a paciente para interromper a gravidez antes que entre em trabalho de parto. Então, já marcamos o nascimento do bebê entre
38 e 39 semanas ”, explica o ginecologista Pedro Mário. É durante a internação que Maria recebe o soro com AZT. Isso diminui a carga viral da paciente. “Fazemos a cesária o mais rápido possível, com o máximo cuidado para que a criança não entre em contato com o sangue da mãe. Logo após o nascimento, o neonatologista já faz a higiene da criança, para retirar qualquer resíduo de secreção ou sangue ”, complementa o médico. Assim, a criança nasce saudável. O próximo passo é o cuidado com a criança. Quando João Pedro nasceu, começou a receber AZT líquido, como uma profilaxia contra a exposição ao vírus que teve durante o parto. Serão ao todo 4 semanas. Porém, é a partir do nascimento que começa um grande dilema para as mães soropositivas: elas não podem amamentar o próprio filho. Essa foi a difícil realidade de Ana Lúcia quando teve o segundo bebê. “Às vezes as pessoas chegavam e perguntavam: ah você não vai dar de mamar? Aí era a maior complicação pra mim poder explicar. As vezes eu só falava: Não, é porque o médico falou que era melhor não amamentar já que a minha primeira menina tinha morrido”, relembra Lúcia.
Socorro, que já está há muitos anos trabalhando como Assistente Social do SAE, já viu muitos casos curiosos. “Nós tivemos o caso de uma paciente que largou todo o medicamento que ela usava. Ela foi para a igreja e se sentiu curada. E ela acabou transmitindo para a filha dela porque amamentou”, relembra. Ela ainda alerta para a banalização da doença. “Hoje, como o medicamento é tão eficiente, as pessoas já não tem tanto medo. Até mesmo não conhecem as consequências da doença”, afirma Socorro. Muitas vezes o paciente desacredita que está doente. “Quando a pessoa vai se sentir doente de HIV, ela já está com doenças oportunistas. Às vezes já tem mais de 10 anos que está infectado”, pontua a assistente social. Ao final de 1 ano e meio, João será novamente testado. Esse é o momento crucial tanto para a criança quanto para a mãe. Se o resultado se tornar positivo, é o sinal que a pequena criança será mais uma paciente do serviço. Alí, ela receberá os cuidados até a adolescência, quando passará a ser atendida no SAE em IST/ Aids para adultos. Ana Lúcia passou por essa situação quando teve seu segundo bebê. “O tratamento para ele demorou 1 ano e 6 meses. Eu vinha sempre com ele no médico, fazendo exames, pra ver se não tinha acontecido alguma coisa”, afirma. Assim como ele, grande parte dos filhos de mulheres soropositivas que nascem no Hospital Regional Materno Infantil são negativados após esse período. “Aqui (no Regional) nós não temos nenhum caso de pessoas que fizeram o tratamento direitinho, a partir da 14ª semana, ou até mesmo depois, e fizeram a dose de AZT durante o parto, que a criança ficou contaminada. Isso mostra que a quimioprofilaxia é realmente importante”, afirma o ginecologista Pedro Mário. Esse pequeno dado tem um grande significado: mesmo com todas as dificuldades, o Brasil pode sim zerar a transmissão vertical do vírus. Bianca Câmara Petronilio Ferreira Thayane Maramaldo
Em reforma, o Hospital Macroregional Materno Infantil parece pequeno para a gigantesca quantidade de atendimentos realizados por mês
Infelizmente, nem todas as mulheres seguem o mesmo exemplo da lavradora. “Muitas vezes as mães amamentam por que não aceitam a doença, né? E você não tem como fazer a vigilância, porque ela saiu de alta do hospital. Elas têm a recomendação de não amamentar, mas não seguem”, lamenta a assistente social Socorro Marques. Além da aceitação, a assistente social ressalta que os motivos socioeconômicos também interferem na continuação do tratamento. “Existe municípios que tem que encaminhar as pacientes, e por falta de políticas públicas eficientes, acabam não enviando”, pontua a profissional. A consequência disso, segundo ela, é que muitas acabam abandonando o tratamento por conta dos gastos com o deslocamento para Imperatriz.
Médico Pedro Mário
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Lugar de mulher é na arena Por eras afastadas do pulsante mundo futebolístico, as mulheres dominam cada vez mais os gramados e as arenas e combatem o preconceito de uma área predominantemente masculina.
A receita de bolo da sociedade perfeita é clara: menino bate bola, menina faz balé. De estereótipo em estereótipo, constroem-se dois mundos totalmente distintos que, bem ou mal, ditam o fazer social: o feminino e o masculino. O rapaz, uma promessa, bate bola. A moça, seminua, vira musa de time de futebol e estampa calendários. Quando não, pari o “filho da p***” do juiz. Apesar da crescente presença de mulheres nas arquibancadas nos últimos anos e da inserção de times compostos por elas no mercado do futebol – 16 dos 20 times que disputaram a série A do Campeonato Brasileiro em 2017 possuem times voltados às mulheres –, dados coletados em 2016 pela Revista Gênero e Número revelam que o gol feminino vale menos comparado ao masculino: cada bola na rede da jogadora cinco vezes melhor do mundo Marta vale cerca de R$ 12,2 mil, em contraste aos R$ 905 mil que caem na conta de Neymar Jr por gol feito, conclui a pesquisa. O campo não é, de fato, o melhor lugar para ser mulher. Mas o cenário está mudando. A torcedora Cheyla Moraes é prova: colunista do blog Mulheres em Campo, especializado no futebol por e para mulheres, e líder da torcida organizada Raiz Feminina, do Sampaio Corrêa, a jornalista conta que a ida ao estádio – um verdadeiro parto social – tem começado uma reviravolta paralela à ascensão de mulheres em outros espaços onde, antes, o masculino predominava. “O preconceito, por mais que a gente tente quebrar, ainda é grande dentro dos estádios, inclusive fora também. Mas mudou muito, até mesmo pelo fato de as mulheres irem mais aos estádios”, comenta a boliviana (título dado aos torcedores do time maranhense). Ao contrário de Cheyla, frequentadora assídua de estádios desde criança e tricolor de berço, o cenário das arquibancadas releva uma gama de torcedoras que passaram a frequentar as arenas por influência e, na maior parte do tempo, acompanhadas dos maridos ou namorados e filhos. É o caso da cantora e torcedora do Sampaio Mayara Freitas: “Eu me aproximei através do meu esposo. Vim pela primeira vez e gostei, agora sou torcedora fanática”, contou, após um breve período de relutância para falar à reportagem. “É que eu não entendo muito de futebol”, antecipou. Apesar disso, Mayara reconhece que o preconceito ainda é forte, mas
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que “a mulherada tá chegando pra assumir o território”. Seja por influência dos companheiros ou de forma orgânica, nas bilheterias, no campo ou na torcida, as mulheres têm dado passos decisivos para adentrar o mundo futebolístico, que pulsa a cada bola na rede, e mostram que lugar de mulher é na arena. Juliana Ribeiro
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