CONTR A A
gourmetização DA VIDA Qual a distância que separa o churrasquinho na laje da varanda gourmet? E as fotos do chambaril e do menu degustação? Texto RENATA DO AMARAL
118 | artÁLSRUWR #3 2013
O anúncio surge em página inteira no jornal de maior circulação do Recife, com a assinatura de uma das maiores construtoras locais. É um apartamento de quatro quartos, dos quais duas suítes, surpreendentemente encaixados em 125 a 132 m2, no Bairro de Boa Viagem, perto da praia de mesmo nome. Mas não é nem o número de quartos nem a proximidade do cartão-postal da cidade o destaque da propaganda, mas, sim, a YDUDQGD JRXUPHW, expressão grafada em letras enormes. Três fotos ilustram a página. A menor traz o prédio, de quase 30 andares. Em outra, um casal sorri enquanto segura taças de vinho tinto. Abaixo, uma pseudocozinha aberta, com direito a armário, pia e mesa de jantar para seis lugares, ilustra o que deve ser o destaque do imóvel. Se a expressão for levada ao pé da letra, a varanda acima é um “indivíduo que é bom apreciador e entendedor de boas mesas, de bons vinhos e se regala com finos acepipes e bebidas”, segundo o 'LFLRQiULR +RXDLVV GD /tQJXD 3RUWXJXHVD. É parente do gastrônomo, “aquele que aprecia com gosto e conhecimento os prazeres culinários”, e do gourmand, “aquele que ama a boa mesa” ou “aquele que come em quantidade e/ou com avidez; glutão, guloso”. Para a :LNLSHGLD, menos confiável, mas talvez mais ligada ao espírito da época, JRXUPHW “é o nome que se dá a uma cozinha ou produto alimentar (incluindo bebidas) que estejam associados à ideia de KDXWH FXLVLQH ou alta cozinha, evocando assim um ideal cultural, associado com as artes culinárias”. A enciclopédia colaborativa on-line ressalva que o termo também é usado, “mais raramente”, para pessoas de paladar apurado e com conhecimento da gastronomia. Para alguns, ressalta ainda, traz em si um teor negativo, ligado ao esnobismo. O pobre terraço, sabe-se, não é nada disso. Mas a “personificação” do espaço
2013 artÁLSRUWR #3 | 119
pode inspirar reflexões sobre o contexto da gastronomia, hoje, tantas vezes mais ligado ao VWDWXV e ao “ver e ser visto” do que à comida em si. Não é em busca de um churrasquinho na laje que vai o público-alvo desses imóveis, mas provavelmente do “ideal cultural”, citado no verbete da :LNLSpGLD. Não basta ter um apartamento caro em um bairro valorizado: é preciso ter um espaço adequado para receber os convidados e fazê-los perceber que, se você tem uma varanda JRXUPHW, logo você é um JRXUPHW. Não se trata, é claro, apenas de uma questão linguística ou etimológica. Muito menos a culpa pode ser atribuída apenas às coitadas das varandas. O adjetivo está em toda parte, até mesmo em uma grande livraria no shopping mais badalado da cidade, cujo HVSDoR JRXUPHW funciona para receber aulas experimentais com FKHIV de cozinha e lançamentos de livros sobre comida. Nem um simples hambúrguer ou cachorro-quente consegue mais se livrar do rótulo, pois já existem várias lanchonetes autoproclamadas JRXUPHW, por aí. Até mesmo o brigadeiro, aquele docinho bem brasileiro, presente em toda festa de criança, hoje em dia só é digno de consideração se for JRXUPHW. E ai de quem perguntar o que há, afinal, de tão requintado na tradicional (e irresistível) mistura de leite condensado, chocolate em pó e manteiga. A tentativa de valorizar o produto por meio do rótulo JRXUPHW termina, ao contrário, por banalizá-lo. Num mundo em que tudo é JRXUPHW, nada é gourmet. Se um leitor grifa todos os parágrafos de um livro, como saber para onde focar a atenção? Pouco importa, porém, o fato de um produto ser JRXUPHW – talvez fosse mais apropriado dizer SDUD JRXUPHWV – ou não. O que salta aos olhos é como funciona o consumo como porta de entrada para um estilo de vida (pretensamente) baseado no que vem sendo definido como bom gosto na contemporaneidade. Como acontece nas redes sociais, não basta degustar um prato, é preciso mostrar para todo mundo a foto em FORVH do quitute. Que não pode ser confundido nunca com um NLWXW de boi enlatado, pois esse tipo de ingrediente é banido, em regras não escritas, por aqui.
120 | artÁLSRUWR #3 2013
Por acaso, já se viu na rede social de compartilhamento de imagens Instagram ou mesmo no Facebook alguém postando fotos de rabada ou feijoada? Sarapatel ou buchada, talvez? A maioria das fotos com a KDVKWDJ LQVWDIRRG traz, ao contrário, pratos difusos, indefinidos e com aparência ditada pela QRXYHOOH FXLVLQH. Aquela passada rápida no GULYH WKUX de uma lanchonete de rede não é digna de ser registrada, mas somente as incursões tidas como verdadeiramente gastronômicas. Louças coloridas, receitas fotogênicas, ingredientes leves, de preferência divulgados perto da hora das refeições, para causar comentários famintos e elogiosos. Um ou outro internauta arrisca se espantar com o tamanho das porções diminutas, mas ainda assim poucos saem do padrão estético aceitável para as fotos de comida. Considerado o pai da gastronomia e com pretensões de fundar uma ciência gastronômica, o francês Brillat-Savarin, já em 1826, define-a como “um ato de nosso julgamento, pelo qual damos preferência às coisas que são agradáveis ao paladar em vez daquelas que não têm essa qualidade”. O hedonismo começa a ser valorizado e “os conhecimentos gastronômicos são necessários a todos os homens, pois tendem a aumentar a soma de prazer
que lhes é destinada”. Para ele, porém, não bastava querer ser gastrônomo: algumas pessoas simplesmente nasceriam predestinadas à gastronomia, outras não. Estatura média, olhos brilhantes, testa pequena, nariz curto, lábios carnudos e queixo arredondado seriam traços comuns aos gastrônomos, na avaliação sem qualquer embasamento científico do autor. Tais características externas sugeririam uma pessoa com órgãos mais delicados e maior capacidade de atenção para saborear os pratos que lhe são oferecidos. A regra teria suas exceções, pois existiriam também gastrônomos não por fisiologia, mas por condição. À época de Brillat-Savarin, os médicos, os religiosos e os homens de letras e de finanças eram presenteados com guloseimas sem fim. Impedidos de resistir a tais tentações, essas categorias profissionais acabariam por adentrar no campo da gastronomia justamente por causa desses presentes. É interessante notar que Brillat-Savarin confessa ter por objetivo fundar as bases teóricas da ciência da gastronomia, mas baseia suas hipóteses somente em observações específicas e pontuais. Sua defesa serve hoje apenas como curiosidade algo bizarra. Será indispensável, em breve, ser o feliz proprietário de uma YDUDQGD JRXU-
2013 artÁLSRUWR #3 | 121
PHW para ser aceito? Na sociedade de consumo atual, novas “necessidades” chamam a atenção. O sociólogo Don Slater resume: “Meus conhecimentos e necessidades serão completamente diferentes, dependendo de eu estar lidando com um meio ambiente em que eu caço e coleto alimentos (onde construo o mundo em termos de comestível e não comestível, perigo YHUVXV presa fácil, relativamente à necessidade da fome), ou com um ambiente onde posso ir jantar fora, ou fazer um lanche rápido, preparar uma refeição num forno micro-ondas, exigir ingredientes orgânicos e assim por diante. O que quero dizer é que não tenho simplesmente mais opções para satisfazer a mesma necessidade (fome); tenho necessidades muito mais numerosas”. A necessidade, porém, muitas vezes se constitui mais com base no outro do que em si próprio. O também sociólogo Pierre Bourdieu define o gosto com ênfase na distinção. Bourdieu vai de encontro à concepção de gosto como simples sensação física, para se ater à formação do gosto na sociedade contemporânea. Assim ele deixa de ser visto como uma espécie de “iluminação” destinada a poucas pessoas, para passar a ser compreendido de acordo com as dinâmicas sociais. O autor considera que nada confere mais distinção
122 | artÁLSRUWR #3 2013
do que ser capaz de preocupar-se com as escolhas cotidianas, tais como o cardápio, o vestuário ou a decoração da casa. Nesse caso, o destaque vai além da matéria, ou seja, do alimento em si, para chegar à maneira de servi-lo e à etiqueta à mesa. Sua análise indica oposição entre as classes inferiores e superiores na escala social, sempre de forma relacional: enquanto as primeiras privilegiam a quantidade, as segundas prezam pela qualidade. É a oposição entre o “gosto de necessidade”, destinado a oferecer energia para o trabalho braçal, da forma mais efetiva e econômica possível, e o “gosto de liberdade ou de luxo”, apropriado para resultar em prazer de degustação. Cabe lembrar que o que mais determina o gosto de alguém é justamente a negação do gosto do outro, como se apenas o próprio fosse o correto, o adequado, o “bom gosto”, enfim. Eis porque, segundo Bourdieu, a aprendizagem na infância, no lar, não consegue ser substituída pelo ensino formal no caso da alimentação: o aprendizado seria forçado, e não natural. A cada posição no espaço social corresponde um estilo de vida diferente, que funciona como uma espécie de reflexo do capital social e econômico sobre o capital simbólico dos bens de consumo. Saber se determinado indi-
víduo bebe espumante, água mineral, vinho Bordeaux, champanhe ou uísque é suficiente, segundo o autor, para caracterizá-lo socialmente, até mais do que suas escolhas no universo artístico. Quando se fala do gosto de luxo, por exemplo, ocorre o que Bourdieu chama de estilização da vida, “decisão sistemática que orienta e organiza as práticas mais diversas, escolha de um vinho e de um queijo ou decoração de uma casa de campo”. As escolhas são pensadas não por serem as mais desejadas, mas por conferirem distinção a quem escolhe. No que depender da propaganda, existe, sim, uma nítida escala de valores entre quem opta pelo vinho tinto na YDUDQGD JRXUPHW e quem prefere a cervejinha na praia, sem maiores luxos. Não podemos perder de vista, porém, o outro lado possível dessa história, justamente o mais instigante: a cozinha – ou seja lá que nome se dê a esse novo cômodo – passa a ser reconhecida como um espaço fundamental da casa, onde o preparo da comida se agrega à oportunidade de reunir as pessoas. Apenas mais uma prova do lugar central que a gastronomia ocupa hoje. Que as varandas sejam, pois, espaços de sociabilidade e convívio entre os comensais, antes de tudo, sem necessidade de rótulos demarcatórios de um estilo de vida pensado somente para impressionar.
RENATA DO AMARAL é jornalista, professora e doutoranda em Comunicação.
2013 artÁLSRUWR #3 | 123