HALLINA BELTRÃO
Cardápio
CRÍTICA Uma relação de amor e ódio
Jornalista Gilles Pudlowski relata sua experiência enquanto aponta a profissionalização de chefs e comensais TEXTO Renata do Amaral
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Para que serve um crítico gastronômico?
A pergunta que compõe o título do livro de Gilles Pudlowski é uma provocação, ainda mais quando sabemos que se trata de uma obra escrita por um... crítico gastronômico. Com a escassez de bibliografia sobre o tema (não apenas no Brasil, digase de passagem), o livro do jornalista francês, lançado pela recém-criada editora Tapioca, vem a calhar tanto para quem pensa em ingressar na profissão quanto para quem costuma ler esse gênero jornalístico, que ocupa cada vez mais espaço nos cadernos de cultura e suplementos de gastronomia. Ao relembrar sua carreira, Pudlowski desfaz alguns mitos e conta anedotas curiosas sobre os bastidores do ofício. “Quando eu era jovem, em início de carreira, ser crítico de gastronomia não era um motivo de orgulho. Christian Millau e Henri Gault, meus gloriosos antecessores, levantaram o nível, sem dúvida. Sob o comando deles, não se tratava mais de louvar o ‘delicioso Fernand e sua amável Germaine’, mas de criticar cruamente um molho ou um prato, denunciar as flambagens abusivas, os molhos miseráveis, os cozimentos insistentes e os produtos de baixa qualidade. Em suma, não era apenas fazer elogios do gênero, mas atuar como os Zorros da profissão. E foi com eles que fiz minha estreia”, lembra. Hoje, Pudlowski tem seu próprio guia, o Pudlo, e colabora com revistas e jornais franceses. Foi justamente Christian Millau quem lhe contou o segredo de ser crítico gastronômico: “Nessa profissão, as pessoas sabem comer ou escrever, raramente as duas, às vezes nenhuma delas. Se você souber fazer as duas, certamente terá sucesso”. O ofício estava longe de ser incensado por seu pretenso glamour, como atualmente. “Essa profissão de louco é muito mais fácil de ser praticada hoje do que na década de 1980, quando a qualidade era ainda uma promessa, a nova cozinha (nouvelle cuisine) estava em seus primórdios, de cozimentos rápidos, caldos reduzidos, molhos leves, legumes e peixes frescos, aves rotuladas e cozinha de mercado”, afirma Pudlowski. Adorado (e às vezes invejado) pelos leitores e odiado pelos chefs e
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1 GILLES PUDLOWSKI Crítico colabora com revistas e jornais franceses, além de ter o próprio guia 2-3 MILLAU E GAULT Os dois foram responsáveis por elevar o nível da crítica na área 4 GUIAS Há os que classificam os restaurantes com notas e estrelas e os que trazem textos mais aprofundados
restaurateurs, cabe ao crítico situar as pessoas sobre o cenário gastronômico. Nesse contexto, sempre haverá os melhores e os piores. “Ser crítico e estabelecer hierarquias é uma concomitância. E isso, evidentemente, não agrada a todo mundo. Mas serve principalmente ao leitor, para esclarecer suas escolhas”, avisa. Responsável pelo prefácio do livro, o editor de gastronomia da Veja São Paulo, Arnaldo Lourençato, completa: “Há algo insubstituível no trabalho do crítico profissional: a intimidade proporcionada com a rotina do trabalho. Essa repetição sistemática de visitas permite observar a evolução de um restaurante, sua ascensão ou queda”. Um dos temas mais polêmicos, quando se fala de crítica gastronômica, é o anonimato. Ao contrário de outros produtos culturais, como um livro ou show, a refeição pode ser alterada (leia-se melhorada) pela presença de um avaliador no local. É o que defende, por exemplo, o Manual da Redação da Folha de S.Paulo, que recomenda que o profissional não se identifique. Pudlowski discorda: “O incógnito, falemos disso! Naturalmente, se ele existe, julgará o restaurante com uma discrição exemplar. Se ninguém o reconhece, ele será servido ‘como todo mundo’, sem privilégios e talvez numa mesa ruim. (...) Mas a cozinha será a mesma, e o chef não se revestirá de um talento súbito, caso o crítico seja reconhecido”.
Diferentemente de hoje, nos anos 1980, a crítica gastronômica estava longe desse pretenso universo de glamour De todo modo, os veículos para os quais trabalha pagam sua conta. Para ele, até mesmo o contrário às vezes acontece: em vez de melhorar o prato, o chef entra em pânico e não consegue cozinhar a contento. “Aliás, a visita de um crítico gastronômico a um restaurante poderia ser comparada à de um diretor escolar a uma classe com seu professor e alunos”, diz. O que importa é que o crítico nunca esqueça sua missão: “Encontrar a fórmula ou as fórmulas que duram, que desaparecem, permanecem ou voltam, mas sobretudo que permitem identificar as vontades de uma época – esse é o papel de pedagogo que desapareceu no crítico gastronômico. Ele deve permitir ao cliente identificar seu desejo”. Se a crítica atual vem cumprindo seu papel, são outros quinhentos.
TIPOS
Além das críticas textuais, há as críticas numéricas, baseadas em notas ou estrelas, acompanhadas ou não de informações por escrito. O sociólogo americano Grant Blank, no livro Critics,
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ratings and society: the sociology of reviews, distingue dois tipos de resenhas: de procedimento (procedural review) e de conhecimento (connoisseurial review). A primeira é uma avaliação institucional que se caracteriza pela aplicação mecânica de um procedimento, cujos métodos devem ser transparentes para os leitores. Já a segunda é baseada nas escolhas pessoais do autor da crítica, que deve ser um especialista no assunto. Além de analisar o produto em si, busca contextualizá-lo. Lançado em 1972, na França, o guia Gault&Millau é uma mistura dos dois tipos. Enquanto o guia Michelin concede de uma a três estrelas, o Gault&Millau dá notas até 20 para a comida. Mas a grande diferença é que a dupla sempre caprichou nas críticas, enquanto o “guia vermelho” até pouco tempo não trazia comentário algum (e ainda hoje se destaca pela síntese). A influência deles tem sido tão grande, que inventaram a expressão nouvelle cuisine. Isso por meio de um artigo de 1973 que definia seus 10 mandamentos, tais como não cozinhar demais os alimentos, usar produtos frescos e de qualidade, evitar molhos gordurosos, cuidar da apresentação dos pratos e ser inventivos. O guia Michelin, porém, foi o primeiro a avaliar sistematicamente os restaurantes, em vez de apenas mencioná-los ou descrevê-los como seus antecessores. Criado em 1900, é considerado até hoje o mais influente guia gastronômico europeu.
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Cardápio De acordo com a empresa, a rotina de avaliação se baseia em quatro princípios desde seu lançamento: as visitas aos estabelecimentos são anônimas, a seleção de casas atende a todas as categorias de preço e conforto, o pagamento das contas garante a independência dos inspetores e existe atualização anual para assegurar a exatidão das informações. O destaque, porém, vai para os restaurantes que recebem de uma a três estrelas por sua excelência. Uma lista bem mais recente, criada em 2002, vem ganhando relevância nos últimos anos: os 50 melhores do mundo, divulgados pela revista britânica Restaurant. Os números da votação impressionam: eles dividiram o mundo em 26 regiões, cada uma com um júri de 36 membros, entre críticos, chefs, restaurateurs e foodies. No total, são 936 votantes com direito a sete votos cada um – ou seja, nada menos que 6.552 votos. Não há critérios predefinidos: os jurados podem escolher qual quiserem, desde que tenham visitado o local nos 18 meses anteriores. Três dos sete votos devem ser de fora da região do jurado. A lista é divulgada na edição de abril da revista e também em um guia anual. Em breve, os foodies brasileiros vão poder ir a um três estrelas sem sair do país: o Michelin começa a circular no Brasil em 2015, incluindo as capitais Rio de Janeiro e São Paulo. Os restaurantes DOM e Maní, respectivamente 7º e 36º na lista dos 50 melhores do mundo, devem receber estrelas. Mas, para quê, mesmo, serve tudo isso? Deixemos a palavra final aos veteranos Gault e Millau, em seu livro Gault et Millau se mettent à table: “Restaurateurs e hoteleiros, por razões que ainda nos escapam, julgam-se imunes à crítica, à exceção da complacência; eles se apoiam na lei divina e acreditam não ter defeitos ou fraquezas”, diz a dupla. Para se contrapor a isso, serve a crítica gastronômica.
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CATALÃO Experiência sensorial Restaurante El Celler de can Roca frequenta listas de melhores do mundo e surpreende o público a cada garfada
Cozinha espanhola moderna,
para a revista britânica Restaurant. Cozinha criativa, para o guia Michelin. Cozinha de estilo livre, para os três irmãos que comandam El Celler de can Roca. Não é mesmo nada fácil definir qualidades que o levaram ao título de melhor restaurante do mundo em 2013 e segundo melhor em 2014 pela Restaurant, além de ter sido contemplado com três estrelas pelo Michelin desde 2009. Joan, Josep e Jordi Roca afirmam fazer parte da vanguarda criativa, sem renunciar à memória
nem ao diálogo com produtores e cientistas. Ainda assim, tantas palavras não chegam nem perto do que acontece naquela casa de Girona, na região da Catalunha, na Espanha. São necessários 11 meses de antecedência para reservar uma mesa entre aquelas paredes de vidro, cercadas por um extenso jardim. Mantendo sua tradição monossilábica, o Michelin diz apenas que “Esta casa familiar valoriza uma sala triangular, de estética moderna, envidraçada, em torno de um jardim interior e
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5 FAMILIAR
Os irmãos Joan, Josep e Jordi comandam o restaurante que já foi eleito o melhor do mundo
6 VANGUARDA CRIATIVA
Os pratos da casa, como esse cordeiro na brasa, utilizam as novas técnicas espanholas na cozinha
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uma adega singular, equipada com diferentes espaços sensoriais. Cozinha criativa de excelente nível, interessante e sugestiva” (sim, dedicam mais linhas para o ambiente do que para a comida). Por mais bonito que seja o espaço para a qual o restaurante se mudou em 2007, não é ele, definitivamente, a atração principal. El Celler de can Roca foi fundado em 1986 pelos irmãos Joan, 50 anos, e Josep Roca, 48 anos – um, cuidando da cozinha, outro, tomando conta dos vinhos e do salão. O temporão Jordi, 36 anos, veio se juntar a eles em 1998, passando a ser responsável pelas sobremesas. Não era a primeira experiência da família com restaurantes: a casa foi fundada bem ao lado do bar e restaurante Can Roca, dos pais do trio, criado em 1967 e ainda hoje de pé. A hospitalidade familiar se revela também no Celler, em que os estrelados irmãos passam de mesa em mesa para saber se está tudo bem. É surpreendente como os comensais se sentem em casa tão logo cruzam a porta. Na chegada, é oferecido um espumante da casa – que aqui
significa feito especialmente para ela pela vinícola. A mesa precisa concordar na escolha dos menus: há o Clássicos (155 euros) e o Festival (190 euros). A escolha comum se deve à duração do jantar, pois enquanto o primeiro termina em uma hora e meia, o segundo demora cerca de três horas. Optamos pelo segundo e fomos atendidas em bom português por uma garçonete simpática, mas nunca invasiva, que explicava os pratos um a um. Muitos eram pensados para ser comidos com a mão, ao contrário do que o senso comum espera de um local tão requintado. Foram 14 etapas, sem contar as várias entradas, seguidas por um café no jardim. O menu é uma amostragem de tudo que você já ouviu falar sobre as técnicas culinárias da nova cozinha espanhola, porém, o sabor dos ingredientes se sobrepõe a qualquer malabarismo. As surpresas se multiplicam. Um delicado consomê primaveril (consomê vegetal à baixa temperatura com brotos, flores, folhas e frutas). Uma inesperada salada de anêmona, concha navalha, pepino do
mar e algas escabechadas. Sabores do mar e da montanha na sardinha com papada de porco, caldo das espinhas na brasa, molho de leitão e azeite de cerefólio. Quase etéreo, mas de gosto pungente, é o sorbet de aspargos brancos e trufa. O lagostim vem ao vapor do vinho Palo Cortado com caramelo de xerez. As sobremesas são uma atração à parte. Mais surpresas na salada verde (e doce) de ervilhas, alcaçuz e funcho. A brincadeira fica por conta do sorvete de massa-mãe com polpa de cacau, lichias salteadas e macaron de vinagre de xerez. “Vocês vão provar uma sobremesa viva”, diz a garçonete. Por causa da fermentação, a massa sobe e desce. A Anarkia de Chocolate traz o doce em mais de 10 versões, intensidades e texturas. O carrinho de petit-fours que acompanha o café ou o chá (a carta de chás é quase tão extensa quanto a de vinhos) traz mais chocolates, macarons e até jujubas artesanais, mas tudo elevado a outro patamar, desconstruindo tudo que já se viu. Uma experiência que vale cada centavo. RENATA DO AMARAL
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