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ANEXO C — ROTEIRO DO EPISÓDIO “CADERNO DE DESENHOS”

ANEXO C — ROTEIRO DO EPISÓDIO “CADERNO DE DESENHOS”

CADERNO DE DESENHOS

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PRODUTORA COSMOS AUDIOSÉRIE DURAÇÃO: 12 MINUTOS ROTEIRO: GABRIEL LUCENA

TEC: SOM DE FÓSFORO RISCANDO. VELA ACENDENDO.

LOC: FÁTIMA - Como era o nome dele?

LOC: MARTA - João Carlos. Joca… Era assim que ele gostava de ser chamado… Joca.

LOC: FÁTIMA - Joca. Certo. Agora, me dê suas mãos.

LOC: NARRADOR - As duas estavam se aprontando para o que iria acontecer dali há pouco. Marta havia acabado de chegar na casa de Fátima. Aquele ambiente não era nada parecido com o que ela já havia visto na vida. Ou sentido. Era fevereiro, o clima no país nunca havia estado mais quente, atingindo diariamente quase quarenta graus durante o dia e beirando os trinta durante a noite. Mas ali, o ar era gélido e ela sentiu um calafrio correr por sua espinha quando tocou nas mãos da outra mulher.

LOC: MARTA - O que foi isso? Pelo amor de deus.

LOC: FÁTIMA - Isso o que? Eu não senti nada.

LOC: MARTA - Deve ter sido impressão… não está muito frio aqui? Hoje à tarde estava tão quente.

LOC: FÁTIMA - Você acha? Eu não acho.

165 LOC: NARRADOR - Uma amiga de Marta havia recomendado aquela suposta vidente para ela algumas semanas depois do que havia acontecido, mas Marta, ainda muito abalada e com a fé abalada, não tinha vontade e nem coragem de sequer cogitar aquele contato.

LOC: NARRADOR - Mas agora, com tanto tempo passado, ela achava que precisava tentar. Era a única esperança para ela. E para conseguir o que ela queria, ela faria qualquer coisa.

LOC: FÁTIMA - Você trouxe o que eu te pedi? Um objeto que pertencia a ele, ou que tenha algum tipo de ligação.

LOC: MARTA - Ah, sim, sim. Eu trouxe esse caderno. Ele gostava de desenhar, sabe? Nunca foi tão bom com as palavras, era muito tímido. Tinha poucos amigos. Mas ele desenhava como ninguém. Uma vez ele chegou a inscrever alguns desenhos em um curso da cidade e conseguiu o segundo lugar!

LOC: FÁTIMA - Segundo, é? Hum… me dê aqui, deixe-me ver.

TEC: SOM DE PÁGINAS FOLHEANDO.

LOC: MARTA - Sim, foi um grande orgulho. Ele ficou um pouco decepcionado por não ter ganhado. Se cobrava muito, sabe? Mas até foi bom… pelo menos ele não precisou subir ao palco e discursar para agradecer. Você sabe, ele não era muito bom com palavras…, mas desenhava como ninguém.

LOC: NARRADOR - Fátima folheava o caderno, vendo alguns poucos desenhos que estavam ali. Eram, realmente, muito bem feitos e dava para notar um talento nato, mas com pouca técnica. Parecia algo que uma criança prodigia faria. Ou um adolescente que gostava de rabiscar. Um rapaz adulto, talvez, se ele não tivesse se empenhado em se aprimorar durante o crescimento. Provavelmente não tinha apoio suficiente dos pais para investir no talento bruto… é, com certeza, era esse o caso.

166 LOC: FÁTIMA - Entendo, entendo… Ele era jovem, certo? Por volta de vinte e um, vinte e dois anos?

LOC: MARTA - Vinte. Ele fez vinte anos doze dias antes de… Bem, do que aconteceu.

LOC: NARRADOR - As duas mulheres estavam sentadas ao redor de uma mesa, cheia de objetos, que Marta julgava como artigos de feitiçaria. Na sala, incenso e velas acesas para todos os lados, para iluminar o ambiente, já que as luzes estavam apagadas. Já era quase de madrugada e Marta já havia se arrependido de ter ido àquele lugar desde o momento em que batera na porta e um gato, que estava na janela ao lado, se ouriçou e fugiu. Ela sentiu o corpo todo arrepiar e chegou a virar os pés para voltar por onde tinha vindo, quando a porta se abriu.

TEC: SOM DE RANGER DE PORTAS

LOC: NARRADOR - Se não estivesse tão nervosa, Marta teria caído na gargalhada ao se deparar com a figura que abria a porta. Ela usava algo que parecia saído de um filme clichê sobre bruxas, como se fosse o maior dos estereótipos, ali, ao vivo e a cores. Com um conjunto de macacão azul marinho e um robe estampado com luas e estrelas, a mulher só precisava do nariz grande e enrugado para ser uma fantasia de halloween. Mas sua expressão não era nada engraçada, e talvez tenha sido isso que fez Marta engolir em seco.

LOC: MARTA: E então!? Consegue ver alguma coisa? Ouvir? Sentir, sei lá.

LOC: NARRADOR - Marta pergunta, inquieta, depois de Fatima ficar um bom tempo analisando aquele livro de desenhos. A verdade era que ela não sabia se queria muito que a mulher visse algo, ou se temia muito que a mulher visse algo.

LOC: FÁTIMA - Você não parece acreditar muito nisso aqui, então, por que veio, Marta?

LOC: MARTA - Eu não sei, pra ser sincera. E você tem razão, eu não sei mesmo se acredito. Mas chega uma hora que a gente usa todas as cartas que tem na mão, e aí,

167 o que se faz? Abre um novo baralho e pega um coringa, né? Isso aqui é meu coringa. Eu estou desesperada, pombas! Eu não aguento mais essa dor, eu não aguento mais sentir tudo isso, está me corroendo por dentro. Eu faço qualquer coisa pra isso passar…, mas, o pior é saber que nunca vai. Independentemente do que se faça.

LOC: FÁTIMA - E o que te faz crer que isso aqui vai aliviar a sua dor?

LOC: MARTA - Eu só queria falar com ele de novo. Ouvir a voz dele. Se é que é possível.

LOC: NARRADOR - Marta diz com a voz embasbacada. Ela se emociona e as lágrimas começam a cair por seu rosto.

LOC: FÁTIMA - Bom, vamos ver o que conseguimos. Concentre-se. Tente lembrar da voz dele. Tente imaginar ele desenhando nesse caderno. Sinta seu cheiro. Concentre-se nisso

LOC: NARRADOR - As duas mulheres fecharam os olhos por algum tempo, tentando sentir alguma coisa, mas nada mudava. Marta, logo, começou a ficar inquieta.

LOC: MARTA - Eu não estou sentindo nem ouvindo nada… Isso é norm…

LOC: FÁTIMA (INTERROMPE) - Olhe!

TEC: SOM DE CADERNO SENDO FOLHEADO.

TEC: SOM DE LÁPIS RISCANDO PAPEL.

LOC: FÁTIMA - Estão tentando estabelecer uma comunicação com o lado de cá.

LOC: MARTA - Estão? Quem “estão”?

168 LOC: FÁTIMA - As forças do lado de lá, oras. Os espíritos escutaram o nosso chamado e estão se manifestando. Você pediu o contato. Eles estão tentando trazêlo.

TEC: SOM DE VOZES INDISTINTAS FICANDO CADA VEZ MAIS ALTO.

TEC: SOM DE VENTO UIVANDO.

TEC: SOM DE OBJETOS CAINDO.

TEC: SOM DE VIDRO QUEBRANDO.

LOC: NARRADOR - A esse ponto o vento estava tão forte que quebrou as janelas e fez as coisas que estavam sobre a mesa começarem a voar. Um candelabro cai sobre o tapete, que logo começa a pegar fogo.

TEC: SOM DE FOGO ALASTRANDO.

LOC: MARTA - Oh meu Deus! O que está acontecendo, meu Deus! Pare com isso, mulher, PARE COM ISSO!

LOC: FÁTIMA - Vamos, pegue aquele jarro e me ajude a apagar esse fogo, vamos, ande.

TEC: SOM DE ÁGUA JORRANDO.

TEC: SOM DE FOGO APAGANDO.

LOC: NARRADOR - As mulheres apagaram o fogo antes que ele se alastrasse por todo o cômodo. Logo, Fátima voltou a se sentar, como se nada tivesse acontecido. Ela faz sinal para Marta também se sentar, o que ela faz, receosa. O salão escureceu ainda mais por conta da fumaça que surgiu e agora as velas que resistiram sobre a mesa faziam sombras escuras e distorcidas no rosto de Fátima.

169 LOC: FÁTIMA - Volte a se concentrar, foco. A conexão não pode ser perdida. Está sentindo, não é? Está começando. Ha ha ha.

LOC: NARRADOR - Fátima começa a rir com tanta força que seu corpo começa a ter espasmos até que finalmente, o caderno voltou a abrir sozinho e parar em uma folha em branco. Riscos começaram a surgir no papel…

TEC: SOM DE GRAFITE PASSANDO RAPIDAMENTE SOBRE PAPEL.

LOC: NARRADOR - …para formar imagens, como desenhos infantis. Um girassol, uma cabana, uma nave espacial.

LOC: MARTA - É ELE! Joca! Você está aqui, é você, não é? Eu reconheceria seus traços lindos em qualquer lugar. Oh, Joca!!

LOC: NARRADOR - Marta começou a chorar ao reconhecer os desenhos de João Carlos nas páginas do caderno, mas logo as imagens começaram a se transformar em linhas tortas e grotescas. Uma bola de futebol, uma boca, uma cama, um colar com pingente em formato de cruz.

LOC: MARTA - O que é isso? Não estou entendendo o que você quer dizer, querido.

LOC: NARRADOR - As páginas passaram correndo até o final do caderno, onde rabiscos começaram a riscar as páginas inteiras freneticamente. Marta ficou ainda mais assustada do que já estava, enquanto Fátima abriu um sorriso, encarando a outra por cima da mesa.

LOC: MARTA - O que está acontecendo? Pare! PARE.

LOC: NARRADOR - Marta tentou fechar o caderno, mas recebeu um forte tapa de Fátima.

LOC: FÁTIMA - NÃO INTERROMPA!

LOC: MARTA - Então mande isso parar!!

LOC: FÁTIMA - Você o chamou Marta. Foi você quem pediu isso. Eu não chamei você aqui. Ele não chamou você aqui. Foi tudo você.

LOC: MARTA - Certo. Você está certa. Isso foi definitivamente um erro. Faça isso tudo parar. Isso não é o Joca, é apenas uma ilusão, uma piada.

LOC: NARRADOR - Fátima, com um sorriso no rosto, aponta para o novo desenho que se formava no caderno.

LOC: FÁTIMA - Isso parece uma ilusão para você, Marta?

LOC: NARRADOR - Marta olhou para baixo e viu um desenho se formando rapidamente na página em branco. Ela demorou alguns segundos para compreender o que via, mas quando viu sentiu todo o sangue esvair de seu rosto, que ficou completamente branco.

LOC: MARTA - BASTA! Pare agora com isso!

LOC: NARRADOR - Marta pegou o caderno e o jogou longe, onde o chão ainda estava molhado da água que elas usaram para apagar o fogo minutos atrás. Ela, então, começa a se levantar para ir embora

LOC: MARTA - Eu realmente não sei o que vim fazer aqui. Foi um erro. Ele se foi e nada vai trazê-lo de volta. Eu sei disso, é que…

LOC: FÁTIMA - SENTE-SE MULHER.

LOC: NARRADOR - Surpresa, Marta voltou a se sentar onde estava. Seus olhos se arregalaram de susto e medo. O rosto de Fátima parecia alterado, assim como sua voz. Parecia que todo o ambiente mudou no ato do grito da mulher. As velas que iluminavam o lugar, se apagaram, deixando as duas no completo breu, até que um vento muito forte…

TEC: SOM DE VENTO FORTE.

TEC: SOM DE JANELAS BATENDO.

TEC: SOM DE CORTINAS VOANDO COM O VENTO.

LOC: NARRADOR - …abriu as janelas e as cortinas, iluminando o rosto das mulheres. Foi aí que Marta viu que, onde antes estava o rosto analista de Fátima, agora se encontrava uma expressão que ela nunca tinha visto antes. Ainda era Fátima, mas ao mesmo tempo era outra coisa. Uma versão feia, grosseira e grotesca do rosto de Fátima. Os olhos, quase pretos, olhavam para Marta, que abria a boca, horrorizada, sem conseguir gritar.

LOC: MARTA - O que…?! Mas… FÁTIMA!! Não!! O que... Por que está me olhando assim?

LOC: NARRADOR - Fátima, ou o que quer que estivesse naquele lugar, abriu o sorriso mais feio e horroroso que já se viu, debochando do medo de Marta. Daquela boca saiu uma risada que congelaria todos os nervos e ossos que o escutassem.

LOC: FÁTIMA - HA HA HA HA HA HA HA.

LOC: MARTA - PARE COM ISSO! O QUE ESTÁ FAZENDO? QUEM... O QUE É VOCÊ? MULHER ENDEMONIADA!!! EU VOU EMBORA DAQUI.

LOC: NARRADOR - Novamente, Marta se levantou para sair e novamente uma voz diferente, saindo de Fátima, a fez se sentar.

LOC: FÁTIMA (JOCA) - Olá, mamãe.

LOC: MARTA - João Carlos? Meu filho?? JOCA?? É.. é você mesmo? Meu filho?!

LOC: FÁTIMA (JOCA) - Sim, sou eu. Não estava me chamando? Aqui estou, mamãe.

172 LOC: NARRADOR - O corpo de Fátima tremia da cabeça aos pés e a voz de Joca saia por sua boca, misturada com a voz de Fátima e como se estivesse sendo transmitida por uma estação de rádio com muitas interferências. Era como se a conexão entre os dois estivesse por um fio de ser rompida, mas resistindo para se manter.

LOC: MARTA - Meu filho, ah, meu filho!

LOC: NARRADOR - Marta estava quase completamente fora de si. Os olhos arregalados e chorando enquanto jogava as mãos para o alto e para baixo em um movimento sincronizado. Ela parecia alucinada e tentou chegar perto de Fátima, que a empurrou de volta à cadeira, levantando-se pela primeira vez desde que aquela cena havia começado.

LOC: FÁTIMA (JOCA (OU O QUE QUER QUE SEJA AQUILO) - NÃO ENCOSTE NESSE CORPO SUA PUTA IMUNDA. AFASTE ESSAS MÃOS NOJENTAS DE MIM. EU SINTO NOJO DE VOCÊ, NOJO!

LOC: NARRADOR - Aquilo gritava, cuspindo no rosto de Marta, que estava estupefata, quase tentando se encolher na cadeira.

LOC: FÁTIMA/JOCA - Eu sempre soube que você nunca me deixaria em paz. Mas pensei que uma corda no meu pescoço teria sido suficiente para me afastar de você. Pelo visto não foi. Você queria saber como eu estava, mamãe? Dizem que os suicidas vão para o inferno, não é mesmo? Bom, eu nunca acreditei muito no inferno, mas com certeza aqui não é nenhum paraíso.

LOC: MARTA (COM A VOZ TREMENDO) - Filho, por que está falando assim?

LOC: FÁTIMA/JOCA - POR QUE? Porque quem deveria estar aqui, nesse lugar imundo, podre e malcheiroso, é você, mamãe. Mas quer saber de uma coisa? Eu prefiro mil vezes apodrecer aqui do que passar mais um dia vivendo do teu lado. Se eu pudesse voltar no tempo…

173 LOC: NARRADOR - João Carlos foi se aproximando, usando o corpo de Fátima, até alcançar o pescoço de Marta com as mãos, onde ele começou a apertar lentamente.

LOC: FÁTIMA/JOCA - …eu teria apertado aquela corda no meu pescoço quantas vezes fosse preciso, porque sentir ele roçando minha pele foi menos degradante do que todas as vezes que você me tocou, mamãe.

LOC: NARRADOR - O rosto de Marta, antes pálido, começou a roxear conforme ela ia perdendo o ar. Quando seus olhos começaram a ficar vermelhos, o filho soltou as mãos de seu pescoço e ela sofregou para recuperar o fôlego.

LOC: FÁTIMA/JOCA - Era o seu jeito de me amar, você dizia. Porca desgraçada. Esse agora é meu jeito de te amar.

TEC: SOM DE TAPA NO ROSTO.

LOC: NARRADOR - O tapa no rosto de Marta foi tão forte que a mulher caiu da cadeira, o que fez João gargalhar. Ele passou uma das pernas por cima do corpo dela, que continuava paralisado no chão, e a olhou de cima.

LOC: FÁTIMA/JOCA - Engraçado te ver deitada embaixo de mim. Era assim que você me via? Era assim que você se sentia? Sua desgraçada.

TEC: SOM DE CUSPIDA

LOC: NARRADOR - João cuspiu no rosto da mulher com todo o desprezo que sentia.

LOC: MARTA - Joca, pelo amor de Deus…

LOC: FÁTIMA/JOCA - Sabe, eu não tive a oportunidade conhecer esse tal Deus, acho que ele não existe onde eu tô, mas eu tenho certeza que ele ficaria enjoado de ver o nome dele saindo dessa sua boca imunda. Eu sei que eu fico. Mas, falando em Deus, tenho um conhecido do lado de cá que tá muito ansioso para cuidar de você, mamãe.

TEC: SOM DE FOGO.

TEC: SOM DE RISADAS DEMONÍACAS E GRITOS DESESPERADOS.

LOC: MARTA - O que é isso?!

LOC: NARRADOR - Desesperada, Marta teve sua primeira reação desde que João aparecera ali. Ela foi rastejando no chão até encostar na parede atrás de onde tinha caído. Um cheiro horrível de carne apodrecida exalava no lugar.

LOC: FÁTIMA/JOCA - Gostou do aroma? Das músicas? É assim que eu vivo agora, mamãe, graças a você. Mas o cheiro de podre não me deixa nem um pouco enojado como o do seu suor deixava… Que cena patética, você encolhida nessa parede… Eu não sei se acho graça ou se sinto pena… na verdade, eu só não desejo que você morra agora porque, se eu estiver no inferno, e eu tenho certeza que é pra onde você vai, eu não quero ter que te encontrar lá.

TEC: SOM DE CHORO.

LOC: FÁTIMA/JOCA - PARE DE CHORAR. NÃO ADIANTA! Quantas vezes eu não chorei, implorei para você parar? Para não me tocar? Para não tirar minhas roupas? LÁGRIMAS NUNCA TE IMPEDIRAM, MAMÃE.

LOC: NARRADOR - Cenas distorcidas do passado começam a passar na frente dos olhos de Marta, causadas pela força que emanava dos demônios que se apossavam daquele lugar. Joca, por volta de nove ou dez anos, chorava, enquanto Marta passava a mão em sua perna.

TEC: CHORO DE CRIANÇA.

LOC: NARRADOR - João, no corpo de Fátima, ajoelhou-se na frente de Marta, pegou suas mãos com violência e apertou contra os peitos.

175 LOC: FÁTIMA/JOCA - Ainda te dá tesão pegar no meu corpo? Ou esse corpo é muito envelhecido para você? Tem muitas rugas para você? Acho que você prefere alguém mais novo, não é? Eu não te excito mais, mamãe?

LOC: MARTA (CHORANDO, EXAUSTA) - Pare, por favor, pare.

LOC: FÁTIMA/JOCA - Você quem me chamou aqui, mamãe. Eu não vou a lugar algum. Mas você pode ir, se quiser.

LOC: NARRADOR - João pegou um pedaço grande do vidro da janela quebrada que estava no chão, levantou-se e colocou sobre a mesa, onde antes as mulheres estavam reunidas. O caderno ainda estava ali, aberto com aquele desenho grotesco exposto. Foi em cima dele que o vidro ficou pousado.

TEC: SOM DE OBJETO SENDO COLOCADO SOBRE PAPEL.

LOC: NARRADOR - Marta acompanhou todos os movimentos com os olhos, como se estivesse hipnotizada, e lentamente começou a se levantar. Seus olhos viam sem parar a lembrança de entrar no quarto do filho, procurando carinho, e encontrá-lo pendurado pelo pescoço, numa corda presa a um ventilador de teto que ele havia instalado pouco tempo atrás. Seu grito de desespero ainda ecoava…

TEC: SOM DE MULHER GRITANDO (BG).

LOC: NARRADOR - … ainda ali. Ela achava que iria enlouquecer com a imagem do filho pendurado. Todos a consolavam, dizendo quão boa mãe ela havia sido e que aquilo não era culpa dela. Ela acreditava. Para ela, não havia dado nada além de amor para o filho.

LOC: FÁTIMA/JOCA - Você nunca chorou por ter perdido um filho. Você chorou por ter perdido seu brinquedinho. Por não ter mais alguém para usar. Sua mente é tão doentia, que você realmente acredita que isso era amor… Os meus colegas tinham medo de monstros e filmes de terror durante a infância. De monstros atrás do armário

176 ou embaixo da cama. O meu monstro era real. E me buscava na escola. Me levava nas festinhas. Quer saber, mamãe? Você foi o pior monstro de filme de terror de todos.

LOC: NARRADOR - Ainda atônita, Marta chega à mesa e pega aquele pedaço de vidro. Ela olha para o rosto de Fátima e vê o filho, com a cabeça torta, caída, pendurada. Finalmente, ela encosta o vidro no pulso, onde sua veia pulsava, parecendo querer fugir ou pedir socorro antes da perfuração.

LOC: FÁTIMA/JOCA - E aqui, de novo, alguma pessoa normal faria isso por remorso, mas eu acho que você não é humana o suficiente para sentir isso. Você vai fazer isso porque acha que vai poder me encontrar aqui onde eu estou. Acredite, mamãe, nem os demônios que me torturam querem lidar com você. O lugar que te espera é muito pior do que o que me encontrou. Tem um lugar especial no inferno para monstros como você.

LOC: NARRADOR - Quando o vidro começou a rasgar a pele do pulso, Marta viu seu sangue escorrer, quente, assim como suas lágrimas. Sentiu-se sufocada e percebeu que estava cercada de criaturas horrendas, sem rosto e com correntes pesadas atrás de si. Elas sorriam ao vir buscá-la.

LOC: FÁTIMA/JOCA - Vai pro inferno.

LOC: NARRADOR - O corpo de Marta caiu no chão, onde antes estivera sob o corpo de Fátima, tomado pelo filho, e o pulso, aberto e pulsante jazia sobre o desenho de uma criança chorando sobre a cama, com uma mulher nua sobre ele. Abaixo deste, o órgão genital distorcido de uma mulher, com a palavra “PORCA IMUNDA” em caixa alta escrita por cima. Agora, as letras e os desenhos estavam pintados de vermelho escuro.

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