17 minute read

ANEXO E — ROTEIRO DO EPISÓDIO “FELIZES PARA SEMPRE”

ANEXO E — ROTEIRO DO EPISÓDIO “FELIZES PARA SEMPRE”

FELIZES PARA SEMPRE

Advertisement

PRODUTORA COSMOS AUDIOSÉRIE DURAÇÃO: 12 MINUTOS ROTEIRO: GABRIEL LUCENA

TEC: SOM DE MULHER CHORANDO.

LOC: BRUNA - Chora amiga, pode chorar. Bota tudo “pra” fora… Você sabe que ele não te merecia né?... Mas, aproveita esses dias pra sentir tudo isso e depois bola “pra” frente!

LOC: CATARINA (CHORANDO) - Eu sei, eu sei. Mas ele era o amor da minha vida, Bruna! Eu não sei como vou fazer para viver sem ele.

LOC: BRUNA - Ei! Pode parar com esse papo. Você não precisa de macho nenhum “pra” viver sua vida, não. Que conversa é essa?

LOC: CATARINA - Você entendeu! Eu posso até não precisar, mas eu quero, amiga! Não quero ficar sem ele, não sei mais viver sem ele. O que eu faço?

LOC: BRUNA - Você sabe que eu não gosto de te ver assim, né?! Olha, eu conheço uma amiga que vai numa cartomante lá no centro, ela diz que tem aqueles truques de “trago seu amor de volta em não sei quantos dias”, sabe? Eu não acredito muito nessas coisas, e nem acho que você precise! Olha pra você, Cat! Uma mulher maravilhosa. Nem combina ficar chorando por causa daquele bundão. Ele é meu irmão e eu amava ser cunhada da minha melhor amiga, mas justamente por isso eu digo que você merece coisa melhor. A gente devia era ir naquele barzinho novo que inaugurou perto do trabalho, encher a cara e arrumar uns gatinhos. “Cê” vai ver que vai esquecer dele rapidinho.

TEC: SOM DE ASSOAR O NARIZ.

LOC: CATARINA - E você acha que daria certo? Que funciona mesmo?

LOC: BRUNA - Claro! Não existe nada que uma noitada com as amigas e uns drinks não resolva!

LOC: CATARINA - Ãhn? Não, não. A cartomante. Você acha que ela consegue mesmo trazer a pessoa de volta?

LOC: BRUNA - Você focou na parte errada da conversa. Eu sei lá dessa cartomante. Essas coisas são tudo enganação.

LOC: CATARINA - Você tem o contato dela? Me passa, Bruna.

LOC: BRUNA - Cat, é sério?

LOC: CATARINA - Anda, me passa!

LOC: BRUNA - Meu deus, você deve estar ficando doida… mas vou pedir o contato dela pra minha amiga… cada uma viu…

LOC: NARRADOR - Catarina havia visto seu noivado de cinco anos acabar depois de uma briga por ciúmes. Ela sempre havia sido bem ciumenta, mas percebeu que havia extrapolado dessa última vez, quando viu o noivo arrumando as coisas e indo embora de casa. Isso acontecera já fazia pouco mais de um mês quando ela percebeu que era definitivo, pois ele não respondia mais suas mensagens e sua ex-sogra, que sempre a tratara tão bem, a aconselhara a parar de procurar pelo rapaz. Ela estava relendo as últimas mensagens de desculpas que havia mandado pelo celular, quando, dias depois, chegou à porta da cartomante que sua amiga, irmã de seu ex-noivo, Bruna, lhe passara o contato.

TEC: SOM DE CAMPAINHA.

190 LOC: NARRADOR - Um gato preto apareceu do meio dos arbustos e assustou Catarina, que já estava nervosa.

TEC: MIADO DE GATO.

LOC: CATARINA - Shh, sai gato!

TEC: SOM DE FECHADURA.

TEC: SOM DE PORTA SE ABRINDO.

LOC: SULIS - Olá. Entre, eu sou Sulis. Já estava à sua espera.

TEC: SOM DE PASSOS.

LOC: CATARINA - Obrigada. Com licença.

LOC: NARRADOR - Catarina entra na casa da mulher e se arrepia ao passar ao seu lado. Mas pensa que, para ter de volta o amor de seu noivo, ela faria qualquer coisa, até entrar naquele lugar estranho. A casa estava cheia de incensos que encobriram o mal-cheiro, provavelmente dos inúmeros gatos que moravam ali. O ambiente parecia improvisado. Tinha roupas jogadas a todos os lados, como se ela tivesse acabado de se trocar para atender a porta. Louças sujas sobre os armários e tocos de velas apagadas. A mulher parecia uma charlatona, assim como Bruna havia lhe avisado.

LOC: SULIS - Sente-se.

TEC: SOM DE CADEIRA ARRASTANDO.

LOC: NARRADOR - Catarina se sentou numa cadeira à frente de Sulis. A médium tentava fazer uma cara etérea para demonstrar seriedade.

LOC: SULIS - Bom, e o que te trás aqui, na madame Sulis, meu bem?

191 LOC: CATARINA - Érr… Como eu tinha te dito, “madame Sulis”, eu peguei seu contato com uma amiga. Ela me disse que você tinha alguma simpatia para trazer a pessoa amada, ou algo assim.

LOC: NARRADOR - Catarina estava bem apreensiva. Se aquela mulher era uma vidente, com certeza não era das boas. Não só porque, se ela previa alguma coisa, então já deveria sentir o motivo de sua presença ali, mas, pombas, ela havia falado o motivo por telefone!

LOC: SULIS - Sim, sim… um rapaz, eu vejo… eram noivos, certo?

LOC: CATARINA - Sim… eu tinha te dito por mensagem, lembra?

LOC: SULIS - Claro, claro… Você está disposta a trazê-lo de volta, a qualquer custo?

LOC: CATARINA - Sim, é só me dizer o valor que eu já te transfi…

TEC: SOM DE ZÍPER.

LOC: NARRADOR - Catarina ia mexendo na bolsa para pegar o celular e fazer a transferência bancária para Sulis.

LOC: SULIS - NÃO! Não é esse tipo de custo a qual me refiro. São os custos da alma! Pois quem se atreve a mexer com o destino prescrito, deve sofrer as consequências. Tenho dito e avisado!

LOC: NARRADOR - Por um breve momento Catarina sentiu-se impactada pelas palavras de Sulis, mas, em seguida, quase caiu na risada. Aquela mulher parecia cada vez mais louca. Definitivamente não parecia alguém que poderia mexer “com o destino prescrito” e muito menos custear a alma de alguém.

LOC: CATARINA - Aham. Eu vou arriscar, sim.

TEC: SOM DE CADEIRA ARRASTANDO.

192 LOC: NARRADOR - Sulis se levantou da cadeira lentamente e foi até a cômoda ao lado, onde retirou algo que parecia um boneco de criança. Em seguida, caminhou até o outro lado e lá pegou algumas agulhas. Voltando para a mesa, ela sentou-se e Catarina pôde ver que aquele boneco de criança era, na verdade, uma pequena estátua, como se fosse a imagem de algum santo.

TEC: SOM DE OBJETO POSTO SOBRE UMA MESA.

LOC: NARRADOR - Porém, aquilo era o oposto de um santo. O boneco era a coisa mais horrenda que a menina já tinha visto na vida. Parecia a imagem saída de alguma igreja satânica. Ele não possuía rosto, apenas uma cabeça vazia, coberta pela sombra feita por um véu preto que o cobria até os pés. O véu era velho, carcomido e parecia ter sido desenterrado de algum túmulo muito antigo. Olhando pra ele, ela sentiu-se arrepiar inteira pela segunda vez desde que chegara ali.

TEC: SOM DE VENTO.

LOC: EPAMINONDAS (SUSSURRANDO) - Epaminondas.

LOC: CATARINA - Epaminondas?

LOC: SULIS - Sim, esse é o Epaminondas. Ele é o segredo e a solução para todos os seus problemas. Ele é a resposta obscura para qualquer pergunta. Ele é o poder que você precisa ter para conquistar qualquer coisa.

LOC: CATARINA - Como? O que é isso? Ele falou comigo…?

TEC: SOM DE RISADA SOMBRIA SUSSURRANDO.

LOC: SULIS - Perguntas, perguntas… inútil, minha cara. O que você deveria se perguntar é: está mesmo disposta? Você disse que sim, mas, se for reconsiderar, esse é o momento. A partir daqui, entramos em um caminho sem retorno.

193 LOC: NARRADOR - Como se para confirmar a sobriedade das palavras de Sulis, uma tempestade começou a cair do lado de fora.

TEC: SOM DE CHUVA.

TEC: SOM DE TROVÃO.

LOC: NARRADOR - As chamas das velas tremeram ao vento gelado e, pela terceira vez naquela noite, Catarina se arrepiou. Como que hipnotizada pelo boneco, ela assentiu com a cabeça, concordando que estava, sim, disposta.

LOC: SULIS - Preciso de sua confirmação, primeiro com palavras, minha cara.

LOC: EPAMINONDAS (SUSSURRANDO) - Palavras…

LOC: CATARINA - Sim. Eu estou disposta.

TEC: SOM DE TROVÃO.

LOC: SULIS - Bem… muito bem... Agora, me dê a sua mão.

LOC: NARRADOR - Catarina, ainda hipnotizada, estendeu a mão, que Sulis tomou rapidamente. A menina mal piscava até sentir uma faca abrindo um corte na palma de sua mão.

LOC: CATARINA - AI!

LOC: SULIS - Um pacto de sangue sela o acordo mais sagrado… ou mais profano.

LOC: EPAMINONDAS (SUSSURRANDO) - Sangue…

LOC: NARRADOR - A mulher virou a mão ensanguentada da menina para baixo e a depositou sobre o boneco, que se manchou de vermelho.

TEC: SOM DE RISADA SOMBRIA SUSSURRANDO.

TEC: SOM DE TROVÃO (BG).

LOC: SULIS - Peça o que seu coração deseja, minha cara. Ande, diga.

LOC: CATARINA - Eu… eu quero meu noivo de volta! Ele tem que ser meu, só meu. De qualquer jeito, de qualquer forma, quero ele de volta para mim. Se não for meu, não deve ser de mais ninguém.

TEC: SOM DE VENTO FORTE.

TEC: SOM DE JANELAS BATENDO NAS PAREDES.

LOC: NARRADOR - O vento pareceu se curvar ao pedido de Catarina, e o pacto selado com sangue estabeleceu-se entre mulher e natureza. Ela poderia jurar que viu o boneco, que nem possuía um rosto, sorrir com suas palavras

LOC: SULIS (FALANDO BEM ALTO) -

“Jesus pois lhes disse: Na verdade, vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida.”

TEC: SOM DE TROVÃO.

TEC: SOM DE RISADA SOMBRIA.

LOC: NARRADOR - Tudo parecia desfocado aos olhos de Catarina, que começou a sentir-se zonza. Era como se todo o quarto girasse na velocidade do vento. Ela sentiase dançando num ritmo desordenado e fora de órbita ou tom. Como se os seus sentidos fizessem os movimentos, mas seu corpo continuasse parado. Um cheio forte e acre tomou conta de sua narina e a cor de sangue tomou conta de sua visão. Seu

195 corpo perdeu a sensibilidade e logo parecia que estava flutuando. Sua audição tornouse turva, como se estivesse embaixo d’água e sua boca sentiu um gosto amargo.

TEC: SOM DE VENTO FORTE.

TEC: SOM DE CHUVA.

LOC: CATARINA (ZONZA) - O que está acontecendo…?

LOC: NARRADOR - Numa fração de segundo, o que já estava confuso foi piorando, e logo parecia que o ambiente inteiro tinha se transformado em um pandemônio de fogo e vultos horrendos. Vozes indistintas sussurravam coisas que ela não conseguia entender.

TEC: SOM DE SUSSURROS INTANGÍVEIS.

LOC: NARRADOR - Catarina, então, sentiu o corte de sua mão arder, e viu que o sangue escorria sem parar, como se fosse sugado por aquele boneco. Logo, sentiu que ia desmaiar. A última coisa que ouviu, antes de perder os sentidos, foi a voz de Sulis.

LOC: SULIS (SUSSURRANDO): “Portanto, qualquer um que comer este pão, ou beber o cálix do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor.”

TEC: AUSÊNCIA DE SOM. SILÊNCIO DE 3 SEGUNDOS.

LOC: NARRADOR - Catarina acordou em sua cama. A luz do sol escapava pelas frestas da cortina. Ela olhou para o relógio e se assustou. Já passava do meio-dia.

LOC: CATARINA - Nossa, que sonho bizarro. Parecia tudo tão real… me deixou tão cansada que olha a hora que acordei!

TEC: SOM DE LENÇÓIS SENDO JOGADOS.

LOC: CATARINA - E agora estou falando sozinha. Devo estar ficando louca…

LOC: NARRADOR - Catarina se levantou e foi até o banheiro lavar o rosto e fazer sua rotina matinal. Ela, então, foi até a sala e ligou a televisão para ver o noticiário enquanto se perguntava se preparava um café ou se já pulava direto para o almoço.

TEC: SOM DE TELEVISÃO LIGANDO.

TEC: SOM DE CANAIS MUDANDO.

LOC: NARRADOR - Resolveu-se pelo café, afinal estava com o estômago um pouco revirado. Provavelmente ainda abalada pelo sonho estranho.

TEC: SOM DE FOGÃO ACENDENDO.

TEC: SOM DE PANELA SENDO POSTA NO FOGÃO.

TEC: SOM DE ÁGUA FERVENDO.

TEC: SONS DE CAFÉ SENDO PREPARADO.

LOC: NARRADOR - Na televisão, o noticiário volta do intervalo comercial com uma repórter ao vivo, no meio de um tumulto em uma rodovia da cidade. Catarina pára para ouvir o acontecido, enquanto toma seu café.

LOC: REPÓRTER - E agora uma notícia trágica. Há instantes, um acidente de carro deixa casal gravemente ferido na Rodovia Principal. O carro vinha dentro do limite de velocidade, quando foi atingido por um caminhão, que, aparentemente vinha em contramão. Testemunhas dizem que “parece que ele surgiu do nada”. Os dois foram levados para o Hospital Municipal.

LOC: CATARINA - Meu Deus, que horror… Só tem louco no trânsito hoje em dia…

197 LOC: REPÓRTER - Acabamos de receber informações dos bombeiros. Aparentemente a moça não resistiu antes de chegar ao hospital. Ainda não foi identificada. O rapaz encontra-se em estado grave, mas já deu entrada no prontosocorro. A vítima foi identificada como Roberto Garcia, e está em cirurgia neste exato momento.

TEC: SOM DE VIDRO QUEBRANDO.

LOC: NARRADOR - Em choque, Catarina deixa a xícara cair e quebra-se no chão. Roberto Garcia era o nome de seu noivo.

LOC: EPAMINONDAS (SUSSURANDO) -

“Se não for meu, não deve ser de mais

ninguém”.

TEC: SOM DE MULHER GRITANDO.

LOC: NARRADOR - Desesperada, Catarina ligou para a amiga Bruna, querendo saber mais detalhes do que acontecera. Como ela era irmã de Roberto, com certeza teria notícias mais concretas.

TEC: SOM DE CHAMADA DE TELEFONE.

LOC: BRUNA (COM VOZ CHOROSA) - Alô?!

LOC: CATARINA - Alô, Bruna? Pelo amor de Deus, Bruna! O que aconteceu? Eu acabei de ver no jornal! Cadê o Roberto?! Como ele está?

LOC: BRUNA - Ah, Cat! Eu já ia te ligar para avisar. Foi tudo tão corrido, acabamos de chegar ao hospital. Cat, ele não tá nada bem. (CHORANDO)

LOC: CATARINA - Qual hospital vocês estão? Eu tô indo pra aí agora!

LOC: BRUNA - Cat, eu não sei se você deveria vir, eles só estão permitindo a família aqui por enquanto…

198 LOC: CATARINA - Mas eu sou praticamente da família! Somos amigas desde crianças, sua mãe sempre me tratou como filha. Além disso eu sou noiva dele há 5 anos, porra!

LOC: BRUNA - Cat, vocês não eram mais noivos, você sabe disso… E outra... ah, deixa pra lá.

LOC: CATARINA - Fala Bruna, termina o que ia dizer.

TEC: SILÊNCIO.

LOC: CATARINA - Bruna… quem era aquela mulher no carro junto com ele?

LOC: BRUNA - Ah Cat… Eu ia te contar! Eu sei que devia ter contado, mas ele me pediu…

LOC: CATARINA - Eu não acredito…

LOC: BRUNA - Eu ia te falar, eu juro! Ele só pediu um tempo, você sabe, você sempre foi meio ciumenta… Ele tinha medo de que você fosse surtar ou algo assim. Porque você meio que não aceitou até hoje que vocês tinham terminado… Eles se conheceram faz algumas semanas e ele tinha trazido ela aqui em casa pra apresentar pra mamãe. E aí aconteceu isso… (CHORANDO)

LOC: CATARINA - Você tem razão. É melhor eu não ir. Pelo visto eu não significo nada pra você mesmo. Muito menos pra ele. Ele não iria querer me ver quando acordar.

LOC: BRUNA - Cat, não fala ass…

TEC: SOM DE LIGAÇÃO DESCONECTADA.

LOC: NARRADOR - Catarina desligou o telefone e jogou-se na cama, chorando o dia inteiro.

TEC: SOM DE MULHER CHORANDO (BG).

LOC: NARRADOR - Horas se passaram e ela não conseguia fazer nada além de chorar e pensar naquele boneco e em Roberto. “Não vai ser de mais ninguém” ele repetira suas palavras. Aquilo não havia sido um sonho, então?

LOC: CATARINA - Oh meu Deus! O que foi que eu fiz?

TEC: SOM DE MENSAGEM CHEGANDO NO CELULAR.

LOC: NARRADOR - Como se fosse uma resposta, uma mensagem chegou em seu celular. Era Bruna. De início ela não quis visualizar, ainda estava muito chateada com a amiga que escondera tudo isso dela. Mas algo fez com que ela olhasse, e ao olhar, Catarina sentiu o sangue gelar e seu mundo inteiro sair de foco. “Ele não resistiu” dizia a mensagem.

LOC: CATARINA (GRITANDO DESESPERADA) - NÃOOOO!! MEU DEUS, NÃO!!

LOC: NARRADOR - Mais algumas horas se passaram até Catarina conseguir ter algum tipo de reação e levantar de sua cama. Arrasada, ela decidiu que precisava ver Roberto pela última vez e pedir desculpas por tudo. Mas, aquele momento deveria ser apenas entre os dois, então esperou ficar tarde o suficiente para ter certeza de que a mãe e a irmã já não estariam no necrotério. Aquela despedida deveria ser particular.

TEC: SOM DE CARRO EM ALTA VELOCIDADE.

LOC: NARRADOR - Durante todo o caminho até o necrotério, Catarina chorou, rezou e implorou por perdão divino.

LOC: CATARINA (CHORANDO) - É tudo culpa minha. Meu Deus!

TEC: SOM DE CARRO PARANDO.

200 LOC: NARRADOR - Quando chegou ao local, tudo estava escuro. Provavelmente já haviam fechado. Ela entrou por uma das portas que ainda não haviam sido lacradas e andou em silêncio, seguindo as placas que indicavam o caminho para onde os corpos recém falecidos estavam.

TEC: SOM DE PORTA PESADA SE ABRINDO.

LOC: NARRADOR - Ao abrir a porta, um frio instalou-se em seu corpo. Uma maca, solitária, estava no meio do cômodo, como se a esperasse. Porém, a maca estava vazia, exceto por um lençol desarrumado sobre ela.

LOC: CATARINA (CHORANDO) - Oh não! Cheguei tarde demais.

LOC: ROBERTO - Catarina.

LOC: NARRADOR - Do lado oposto do cômodo, sob as sombras, a voz de Roberto ecoou até a menina, que, com um susto, se virou para ver.

LOC: CATARINA - Ro-Roberto?

LOC: NARRADOR - Com um passo lento e arrastado, Roberto foi saindo do meio das sombras em direção à Catarina. A moça, ainda assustada, deu um passo em sua direção, mas estancou ao sentir o mal cheiro que vinha do rapaz.

LOC: ROBERTO - Catarina.

LOC: CATARINA - Eu n-não entendo. A sua irmã me disse que…

LOC: NARRADOR - Catarina se calou quando, finalmente, Roberto chegou à luz e se fez ser visto. A imagem era horrenda. Seu cabelo estava raspado pela metade, onde os médicos abriram para tentar desinchar o cérebro. A metade que sobreviveu estava desgrenhada, parecendo palha. Ele usava uma camisola de hospital que, há esse ponto, estava cheia de manchas de sangue seco, escurecendo. Os braços estavam roxos e, em vários pontos, era possível ver vestígios de seus ossos, tão fundo eram

201 os ferimentos. Ele mancava, pois um dos pés havia sido amputado, e na parte que ainda restara e era visível por cima do curativo, estava preta, gangrenando. Era possível jurar que estava cheia de moscas e outros insetos comendo a carne apodrecida que estava aberta. Mas, Catarina não pôde olhar tempo suficiente para conferir se os insetos eram reais. Ela estava mais chocada com a visão do rosto à sua frente.

LOC: CATARINA - Oh meu Deus! OH MEU DEUS!

TEC: SOM ESBARRANDO EM ALGO.

TEC: SOM DE RODINHAS DESLIZANDO.

LOC: NARRADOR - Catarina praticamente correu de costas e tropeçou na maca, derrubando o lençol que ainda estava ali. Roberto, ainda naquele ritmo trôpego, foi se aproximando. Ele estendeu a mão e Catarina viu seus dedos inchados e ensanguentados apontar para ela.

LOC: ROBERTO - Catarina.

TEC: GRITO DE MULHER APAVORADA.

LOC: NARRADOR - Ao falar o nome de Catarina, a boca de Roberto se abriu mostrando a língua recortada e ausência quase completa de dentes. Um dos olhos estava enfaixado, mas o olho visível a encarava, o glóbulo tão inchado que parecia saltar de seu rosto. Envolta dos curativos a pele era tão escura que chegava quase ao preto, e no restante do rosto se misturava uma mistura de roxo e vermelho sangue que fez o estômago dela se revirar. Uma das orelhas havia sido arrancada e no lugar, restava apenas um buraco de carne podre, como se os médicos tivessem desistido de tentar tampar todos os ferimentos. Novamente ele disse o nome dela e a língua ficou caída para fora, numa expressão aterrorizante.

LOC: ROBERTO - Catarina.

202 LOC: NARRADOR - E então, mais uma vez, Catarina ouviu suas próprias palavras reproduzidas pela voz daquele boneco que tomara seu sangue e cumprira sua promessa.

LOC: EPAMINONDAS -

“De qualquer jeito, de qualquer forma, quero ele de volta para

mim.”

LOC: ROBERTO - Eu voltei por você, Catarina.

LOC: NARRADOR - Horrorizada, Catarina se deu conta do que estava acontecendo. Roberto havia morrido por causa do seu pedido. Roberto voltara do reino dos mortos por causa do seu pedido. Ele estava ali, podre por fora, morto por dentro, apenas a sombra do que fora um dia. E estava chamando por ela.

LOC: CATARINA - O que f-foi que eu fiz?

LOC: NARRADOR - Com o tempo que ela ficou paralisada, Roberto havia avançado até quase conseguir encostar os dedos estendidos nela. Foi então que ela conseguiu se mover. Correndo, ela atravessou até a parede ao lado, abriu a janela e subiu no parapeito.

LOC: CATARINA - Me perdoe, meu amor. Me perdoe.

TEC: SOM DE CORPO CAINDO AO CHÃO.

This article is from: