Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 4, 2012 ISSN: 1984-7157
1 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UNILAB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editor convidado: Ronie Alexsandro Teles da Silveira Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: Imagem de Karl Grossberg (1894-1940).
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano III, número 4, 2012
Sumário Editorial
5
Notas & Comentários John Rawls: liberalismo igualitário sem metafísica – Paulo Ghiraldelli Jr.
7
Artigos 1.Educação, imaginação e transformação:o uso dos processos educacionais complementares de socialização e individualização contra o fracasso poético – Heraldo Aparecido Silva 15 2. Dewey e a proposta democrática na educação -Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui
24
3. Isso não é uma mula:O debate entre Umberto Eco e Richard Rorty nas Tanners Lectures – Marcos Carvalho
33
Tradução Um assunto delicado: Incorruptible Flesh de Ron Athey - Jennifer Doyle (Tradução de Hugo Nogueira) 59 Entrevista com Ron Athey- Hugo Nogueira e Susana de Castro
68
Entrevista com Arthur C. Danto – Susana de Castro
72
Resenha SHUSTERMAN, Richard. Consciência Corporal. Tradução de Pedro Sette-Câmara. Rio de Janeiro: E Realizações, 2012. 352 pgs. (original: Body Consciousness: A Philosophy of Mindfulness and Somaesthetics. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. 256 pgs). Por Diana Pichinine 75
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Editorial
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Editorial
Prezado leitor, iniciamos o número 4 do terceiro ano de Redescrições com o texto “John Rawls: liberalismo igualitário sem metafísica” de Paulo Ghiraldelli Jr., que defende que a democracia é a melhor forma de garantir a expansão das potencialidades individuais, na seção “Notas&Comentários”. Na seção “Artigos”, apresentamos “Educação, imaginação e transformação: o uso dos processos educacionais complementares de socialização e individualização contra o fracasso poético” de Heraldo Aparecido Silva, que trata de aspectos da Filosofia da Educação de Richard Rorty. No mesmo campo de conhecimento, segue-se “Dewey e a proposta democrática na educação” de Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui enfatizando uma noção particular de educação como requisito para a democracia. Finalizando a seção, Marcos Carvalho Lopes apresenta o debate entre Rorty e Humberto Eco a respeito da interpretação em “Isso não é uma mula: O debate entre Umberto Eco e Richard Rorty nas Tanners Lectures”. A seção “Traduções” traz “Um assunto delicado: Incorruptible Flesh de Ron Athey” de Jennifer Doyle em tradução de Hugo Nogueira. Segue uma entrevista dada à Redescrições do próprio Ron Athey, também traduzida por Hugo Nogueira. Finalizamos a seção com uma entrevista de Arthur Danto concedida e traduzida por Susana de Castro. Finalizamos esse número com a resenha de Diana Pichinine acerca do livro “Consciência Corporal” de Richard Shusterman. A resenha nos convida a uma reavaliação contemporânea sobre o corpo humano – um assunto que tem recebido pouca atenção da tradição filosófica. Esperamos que os textos aqui apresentados possam ser de utilidade para os nossos leitores.
Ronie Alexsandro Teles da Silveira Editor convidado para esse número de Redescrições, ano 3/4
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Notas & Comentários
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JOHN RAWLS: LIBERALISMO IGUALITÁRIO SEM METAFÍSICA Paulo Ghiraldelli Jr
Resumo:Platão imaginou a cidade justa em associação a uma metafísica, isto é, uma teoria não empírica da natureza humana. Diferentemente de Platão, em nossos tempos, a proposta de Rawls é considerar a cidade justa como uma sociedade liberal democrática. Ele elabora a noção de “razão pública” como neutra em relação a qualquer doutrina metafísica, religiosa ou filosófica. Entretanto, em certo sentido, Rawls não deixa de ser platônico: uma coletividade é uma sociedade organizada em virtude de sua justiça. Quatro séculos após Locke, Rawls procurou fazer com que o desenvolvimento das potencialidades individuais dos habitantes da cidade justa tenha chance de se harmonizar com a necessária melhoria da sociedade em seu conjunto, talvez a única forma de garantir que potencialidades individuais venham realmente a dar os melhores frutos. Palavras-chave: Platão; Rawls; Virtude; Justiça; Democracia Abstract:Plato envisioned a just city in association with a metaphysical, that is, not an empirical theory of human nature. Unlike Plato, in our time, the Rawls's proposal is to consider the fair city as a liberal democratic society. He elaborates the notion of "public reason" as neutral in relation to any metaphysical doctrine, religious or philosophical. However, in a sense, Rawls does not cease to be platonic; a community is an organized society because of his righteousness. Four centuries after Locke, Rawls sought to have the development of individual potentialities of city residents have fair chance to harmonize with the necessary improvement of society as a whole, perhaps the only way to ensure that individual potential will really give the best fruits. Key words: Plato; Rawls; Virtue; Justice; Democracy Dois
pioneiros
americanos
discutiam
asperamente.
A
pendenga
dos
colonizadores era sobre maçãs. A macieira havia nascido no terreno do primeiro, mas seus galhos mais produtivos tinham avançado por cima da cerca, parando por sobre o terreno do segundo. Uma chuva rápida deitou as maçãs todas no terreno do segundo. Qual seria a medida justa para a posse das maçãs? Não conseguindo chegar a um acordo, eles buscaram ajuda na cidade, com um sábio do local. O sábio, então eleito árbitro, examinou o caso e lhes perguntou se queriam que a situação fosse resolvida “pela lei de Deus” ou pela “lei dos homens”. Puritanos até o último fio do cabelo, eles responderam quase que simultaneamente, bastante afirmativos: “pela lei de Deus, é claro!” Então, o sábio pediu a eles uma moeda e, atendido prontamente, examinou o dinheiro para certificar a autenticidade, se de fato era nítido o lado “cara” e o lado “coroa”. Feito isso, então, num impulso do polegar aliado ao indicador lançou-a ao ar, esperando-a cair na palma de uma mão e, num gesto rápido, expôs uma das faces da moeda no dorso da outra mão. Em seguida, deu todas as maçãs a um dos homens.
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É difícil encontrar alguém que, ao escutar essa história, não reclame. Como os dois litigantes, a maior parte dos ouvintes, inicialmente, também prefere a “lei de Deus”. Mas os ouvintes fazem isso apenas porque escutam somente a palavra “Deus”, e daí já julgam que o que segue deverá ser algo necessariamente bom. Depois, quando a lei da moeda lançada é aplicada, voltam a se lembrar da razão pela qual os homens inventaram suas próprias leis. Os homens perceberam que o melhor seria tentar crescentemente anular o modo aleatório das coisas ocorrerem no mundo. A loteria da natureza ou da vida social, ou seja, o que ocorre pela sorte – a “lei de Deus” – parece à nossa intuição moderna algo pouco justo. Entendemos então a razão de termos nos metido nesses casos, criando também “a lei dos homens”, ou melhor, a justiça. Modernamente, estamos já quase acostumados a tentar minorar as desvantagens advindas do que não podemos controlar e decidir, de modo a garantir liberdade e igualdade para todos – principalmente igualdade de oportunidades. Damos o nome a isso de requisito básico da “justiça social”. Na história da filosofia a ideia atual de “justiça social” tem sua ancestral na ideia de cidade justa. Assim, no ponto de partida está a Grécia antiga e no ponto de chegada a América. O filósofo grego Platão (428-347 a.C.) e o filósofo estadunidense John Rawls (1921-2002) criaram teorias da sociedade justa. São teorias antes normativas que descritivas. Não são teorias sobre o que é e, sim, teorias tipicamente filosóficas, sobre o deve ser. Mas não são narrativas utópicas, como as que vingaram no Renascimento, que mostravam cidades ideais que jamais poderiam se efetivar. São teorias que podem ser levadas adiante no sentido de guiar a construção de uma sociedade, ainda que se saiba que essa sociedade talvez não venha a funcionar à risca, como a teoria gostaria. Platão imaginou a cidade justa em associação a uma profunda metafísica, isto é, uma teoria não empírica da natureza humana. Aliás, pode-se dizer que ele criou o pensamento filosófico de tipo metafísico exatamente no contexto da sua reflexão sobre a justiça. Sua descrição da cidade justa, como se apresenta em A República, harmoniza em um só conjunto uma teoria da alma humana e uma hierarquia social. A alma humana é divida em três partes e a cidade, correspondentemente, apresenta três grandes grupos sociais fixos. A psicologia platônica indica a “alma superior” como sendo o intelecto, responsável pela capacidade racional, isto é, pelos cálculos, formulações de juízos e decisões; a “alma espiritual” abriga a disposição, o ímpeto e a coragem; finalmente, a 8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
“alma inferior” responde pelas necessidades ligadas a apetites e desejos. Essa psicologia tem como correspondente, no plano social, a hierarquia da população da cidade. Há, então, o grupo de sábios anciãos que funcionam como comandantes da cidade, o de soldados responsáveis corajosamente pela defesa externa e pela paz interna e, por fim, o de trabalhadores manuais, os artesãos e outros. A cidade justa é justa à medida que nada pode quebrar essa ordem hierárquica que lhe permite o seu ótimo funcionamento. Para tal, do grupo dos anciãos é escolhido o rei que, como todos os outros anciãos, é um filósofo. Sendo filósofo, está em contato com a verdade que, admitida como única, também é acessada pelos outros sábios, o que garante o consenso entre o grupo de governo. Desse modo, não há disputa entre as elites, ficando afastada a possibilidade de formação de partidos, cuja consequência, como temia Platão, seria a divisão da guarda e, enfim, do povo, aglutinados em torno deste ou aquele membro da elite. Uma divisão desse tipo, em partidos, acabaria conduzindo a cidade às terríveis disputas internas dilacerantes – bem conhecidas e vividas por Platão – e até mesmo à guerra civil, o que certamente seria o ápice de uma situação de injustiça. Diferentemente de Platão, em nossos tempos, a proposta de Rawls é considerar a cidade justa como uma cidade democrática, ou melhor, como uma sociedade liberal democrática. Platão não foi um democrata, obviamente. Ele está mais distante de nós, ainda, não só pela sua postura de resistência à democracia, mas também pelo seu desconhecimento da invenção tipicamente moderna chamada liberalismo, uma doutrina que, principalmente quanto à política, reformulou a noção de democracia. No entanto, há algo de Platão em Rawls. Como Platão, Rawls também vê a justiça como uma virtude. Mas, em que sentido? Platão jamais deixou de lado as quatro virtudes cardeais do mundo antigo grego: temperança, coragem, sabedoria e justiça. As três primeiras deveriam se realizar nos indivíduos enquanto que a última, a justiça, seria uma virtude própria também da cidade. A justiça seria uma virtude coletiva par excellence. Isto é, Platão assumiu a palavra “virtude” em um seu sentido específico, como quando a utilizamos para responder a pergunta “em virtude do que se é o que é isto?”. Sabia-se correto ao dizer que a cidade era uma cidade, uma boa cidade, uma coletividade funcional e harmônica se pudesse dizer, por exemplo, coisas como “Esparta é uma cidade (ou boa cidade) em virtude de sua justiça”. Nesse sentido, Rawls não deixa de ser platônico. Uma coletividade é uma sociedade organizada em virtude de sua justiça.
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Todavia, quanto a outro aspecto, Rawls não é nada platônico. Enquanto que Platão necessitou de uma metafísica (inventou-a por conta disso!1) para poder instalar a justiça como legítima, Rawls mostra-se um pensador completamente de seu tempo – o nosso tempo –, criando uma teoria normativa sem metafísica.2 Ele elabora a noção de “razão pública” como neutra em relação a qualquer “doutrina abrangente” – religiosa ou filosófica (isto é, metafísica). Isto é, Rawls não tem – e diz não necessitar – uma teoria filosófica da natureza humana e não apela (principalmente nos seus últimos trabalhos) para qualquer pretensão de universalidade quanto ao que afirma sobre sua teoria – a “teoria da justiça como equidade”. Talvez se possa dizer, para clarear o leitor já afinado com o meu próprio vocabulário, que Rawls é um tipo de “liberal ironista”, no sentido em que Richard Rorty (1931-2007) criou essa expressão: ele, Rawls, é francamente um liberal à medida que quer uma sociedade cuja política não seja aquela que permite que os mais humildes venham a ser humilhados pelos mais poderosos, mas, ao mesmo tempo, ele não tem nenhum fundamento filosófico com o qual possa condenar aqueles que, em uma sociedade liberal democrática, atuem no sentido dessa má política.3 A diferença para com Rorty, o que não implica em divergência, é que este vê a justiça como uma ampliação dos círculos de lealdade a que pertencemos na nossa vida – a família, o clã, a cidade, antes que a nação ou a humanidade –, independentemente de tipos de sociedade4, enquanto que Rawls se interessa pela justiça como o que pode regrar comportamentos políticos em sociedades do tipo liberal democrática. No interior da ideia de fornecer uma teoria normativa, ele pressupõe que pode exibir algumas regras para as pessoas avaliarem e, então, escolherem as melhores para o conjunto de sua sociedade. Essas pessoas, ele a denomina de “razoáveis”, os princípios que acolhem são as de sua “teoria da justiça como equidade”. É notório que cada uma dessas “pessoas razoáveis” de Rawls, como ele as define, deve se parecer bastante com alguém capaz de incorporar a figura do sujeito da filosofia moderna, uma construção certamente metafísica ou próxima desta. Ou seja, seguindo vários modernos (Kant à frente), poderíamos dizer que o ideal seria que todo indivíduo pudesse ser autônomo, isto é, atuar como um sujeito filosófico, aquele que é “consciente dos seus pensamentos e responsável pelos seus atos”. Todavia, Rawls não toma essa formulação em seu sentido metafísico ou filiado a uma grande metanarrativa, mas agarra-a em um sentido metafisicamente desinflacionado. Toma-a naquelas 10 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
características que podemos mais ou menos encontrar no homem empírico comum, informado, de nossas democracias contemporâneas, herdeiras do ideário e das instituições de divulgação educacional e cultural do Iluminismo. Este não seria senão aquele homem que, vivendo em uma cultura regularmente democrática, ocidental, é abordado pela lei como alguém capaz de entender e avaliar regras não só entre parceiros, mas entre ele e as instituições e, também, assumir compromissos privados e públicos, além de ser alguém que dá valor à liberdade individual de consciência, expressão e locomoção, à igualdade perante a lei e à igualdade de oportunidades, além da tolerância, é claro. Pessoas assim, razoáveis, são convocadas por Rawls para avaliar uma doutrina da cidade justa, dizendo a ela “sim” ou “não”. Essa doutrina, segundo Rawls, deve ser escolhida por essas pessoas que, por sua vez, estariam na situação que ele denomina de “posição original”, algo equivalente – mas não igual – ao que os primeiros teóricos modernos (os jusnaturalistas) chamaram de posição na situação pré-contratual. Assim, elas estariam como quem veste um “véu de ignorância”. Isto é, não teriam nenhum conhecimento (classe, orientação sexual, renda, religião etc.) que pudesse permitir qualquer certificação sobre o lugar que ocupariam na sociedade a ser regrada. Desconhecendo qual lugar ocupariam na sociedade, elas agiriam como legisladoras prudentes, muito provavelmente realizando uma “escolha racional” dos princípios que deveriam comandar essa sociedade na qual iriam viver. A aposta de Rawls é que elas normatizariam a sociedade de uma forma que mesmo o lugar dos menos favorecidos, não seria um lugar esquecido, pois, caso caíssem nesses lugares ao passarem a viver nessa sociedade, ainda assim viveriam em uma situação cujas dificuldades estariam tendo atenção social. Essa sociedade seria, segundo a aposta de Rawls, uma que pudesse garantir liberdades básicas de modo igual para todos, posições e empregos abertos a todos sob condições justas de igualdade de oportunidades, sendo que as desigualdades sociais e econômicas advindas dessa diferenciação seriam consideradas válidas somente se viessem a beneficiar coletivamente os menos favorecidos5. A ideia de Rawls é a de que um pequeno conjunto de regras (na verdade, dois princípios6) é perfeitamente condizente com o liberalismo, que pode então ser rebatizado de “igualitário”, sendo o preferido das pessoas razoáveis. Com essa formulação, Rawls acredita dar um passo a mais no sentido do aperfeiçoamento do liberalismo.
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Como sabemos, segundo a tradição britânica, com John Locke (1632-1704), o liberalismo nasceu preocupado em garantir a liberdade individual, a tolerância e, é claro, a propriedade privada. Havia alguma intenção para com a igualdade, mas não em uma relação harmônica com a liberdade. Filósofos americanos como John Dewey (1859-1956), cujos escritos serviram de base para o New Deal7, deram nova coloração ao liberalismo. Alertaram para a necessidade de afastar essa doutrina do exagerado cultivo do “individualismo”, calcado em uma exacerbada tendência de valorizar a proteção da propriedade privada e de promover a liberdade de escolha dos indivíduos, não raro em detrimento de objetivos coletivos necessários ao progresso social. Todavia, se a geração de Dewey forneceu ao liberalismo os ideais que puderam fazer os Estados Unidos se aproximar das preocupações da social democracia europeia, isso não gerou nenhuma nova teoria política normativa. Quando John Rawls trouxe à luz a sua teoria da “justiça como equidade”, não foram poucos os que aplaudiram a iniciativa, e rapidamente ela se tornou o ponto de referência dos debates americanos (e em boa parte dos países de língua inglesa) sobre filosofia política, especialmente a partir dos anos setenta.8 Vinte e cinco séculos após Platão, Rawls deu à filosofia política uma teoria da cidade justa que não visa simplesmente o funcionamento social e, sim, o não bloqueio das potencialidades individuais de seus habitantes. Quatro séculos após Locke, Rawls procurou fazer com que o desenvolvimento das potencialidades individuais dos habitantes da cidade justa tenha chance de se harmonizar com a necessária melhoria da sociedade em seu conjunto, talvez a única forma de garantir que potencialidades individuais venham realmente a dar frutos ou, os melhores frutos.
Notas 1. Ghiraldelli Jr., P. A aventura da filosofia. Barueri-SP: Manole, 2010, vol. 1, pp. 11-48. 2. Rawls age na filosofia política como Donald Davidson (1917-2003) age na epistemologia. Assim, com o mesmo espírito que Davidson usa da teoria da verdade de Tarski, que é neutra em relação às doutrinas metafísicas, Rawls usa de apetrechos dessubstantivados para sua teoria da justiça. Cf. Ghiraldelli Jr., P. Introdução à filosofia de Donald Davidson. Rio de Janeiro: Multifoco-Luminária, 2011. E mais: Ghiraldelli Jr., P. A aventura da filosofia. Barueri-SP: Manole, 2011, vol. 2. 3. Sobre Rorty e a noção de “liberal ironista”: Rorty, R. Contingency, Irony, and solidarity. Cambridge: Cambridge University Press, 1989. 4. Rorty, R. Pragmatismo e política. São Paulo: Martins – Martins Fontes, 2005. 5. A formulação disso se faz pelos chamados “dois princípios” da “teoria da justiça como equidade”: Primeiro Princípio: cada pessoa tem o mesmo irrevogável direito a completo adequado esquema de liberdades básicas, que é compatível com os mesmos esquemas de 12 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
liberdades para todos.Segundo Princípio: Desigualdades sociais e econômicas são satisfatórias em duas condições: a) Elas devem estar ligadas a empregos e posições abertos a todos sob condições de justa igualdade de oportunidades; b) Elas devem beneficiar mais os membros menos favorecidos da sociedade. Rawls. Justice as Fairness. Cambridge/Londres: The Belknap Press of Harvard University Pres, pp. 42-43. 6. Ver a nota 5. 7. A política do New Deal foi instaurada por Franklin D. Roosevelt nos Estados Unidos, para enfrentar a Grande Depressão (cujo início “oficial” se deu com a Quebra da Bolsa de Nova York em 1929). O programa de Roosevelt introduziu um tipo de política keynesiana na América, cujo programa liberal carecia completamente dos benefícios sociais que hoje encontramos no chamado Welfare State da maior parte das democracias ocidentais. Assim, se na Europa o Welfare State foi construído, mesmo que só completamente depois da II Guerra Mundial (e com ajuda de dinheiro americano), por pressão efetiva do movimento operário (dividido entre comunistas e social-democratas), ou por tradição deste, cunhada desde o século XIX, nos Estados Unidos isso se deu a partir de um acordo entre governo e trabalhadores. Com essa política de acordo entre trabalhadores sindicalizados e o governo, foram criados programas de distribuição de alimentos, programas de investimentos em infra-estrutura do país, gerando muitos empregos e, enfim, a diminuição da jornada de trabalho e a criação de programas de investimento agrícola maciço. O Welfare State americano ainda é menos acolhedor que seus equivalentes europeus, mas o que foi feito com o New Deal colocou os Estados Unidos como uma super potência em meio do século XX, o que se confirmou ainda mais após o final da II Guerra Mundial. 8. Os intelectuais brasileiros estranham os escritos de Rawls e, não raro, mesmo hoje, o tomam como novidade. É que até bem pouco tempo, ao menos até os anos oitenta, nossa literatura sobre filosofia política era predominantemente europeia, isto é, francesa, alemã e italiana. A italiana tinha certo predomínio, uma vez que o movimento partidário brasileiro tinha certo apreço pelo debate europeu entre socialistas e eurocomunistas. Assim, os livros do pensador italiano Antonio Bobbio entravam em nossas universidades antes como manuais que como ensaios posicionados. Com o fim da URSS e com toda a reformulação geopolítica dos anos noventa, houve uma recessão intelectual na Europa, até então muito centrada no debate marxista ou neomarxista. Foi assim que a literatura filosófica americana recebeu uma atenção internacional em um grau não mais visto desde os tempos de John Dewey. Foi nesse contexto que o debate da filosofia política entre liberais, libertários e comunitaristas evoluiu, ganhando o mercado editorial mundial. Começaram a aparecer traduções no Brasil dos livros de Rawls e, enfim, de seus críticos. Esse movimento não foi diferente do que ocorreu também na Europa. Recebido em 7/06/2012 Avaliado em 12/06/2012 Aceito em 22/06/2012
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Artigos
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EDUCAÇÃO, IMAGINAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO: o uso dos processos educacionais complementares de socialização e individualização contra o fracasso poético Heraldo Aparecido Silva*
Resumo: O objetivo deste trabalho é explicitar alguns aspectos da filosofia da educação de Rorty. Os aportes teóricos que fundamentaram o estudo foram: Arcilla (1997), Garrison e Neiman (2003), Rorty (1990, 1994, 1998, 1999, 2000) e Silva (2011), dentre outros. Assim, enfatizamos a filosofia da educação de Rorty a partir dos processos educacionais complementares de socialização e individualização para evidenciar sua relevância, no âmbito do uso imaginativo de narrativas, como componentes poéticos de transformação individual e social. Palavras-chave: Educação. Filosofia. Literatura. Imaginação. Narrativa. Abstract: The objective of this work is to show some aspects of Rorty’s educational philosophy. The theoretical supports that founded our study are: Arcilla (1997), Garrison e Neiman (2003), Rorty (1990, 1994, 1998, 1999, 2000) e Silva (2011), among others. Thus, we note that the Rorty’s educational philosophy from the complementary educational processes of socialization and individualization to show your relevance, in the field of imaginative use of narratives, as poetic components to the individual and social transformation. Key-words: Education. Philosophy. Literature. Imagination. Narrative.
1. Introdução
O termo pragmatismo é utilizado para designar a corrente filosófica surgida nos Estados Unidos da América, entre meados do século XIX e as duas décadas iniciais do século XX. De maneira geral, a origem do pragmatismo é atribuída a Charles Sanders Peirce (1839-1914), William James (1842-1910) e John Dewey (1859 1952), os chamados pragmatistas clássicos. Embora Peirce não tenha escrito especificamente sobre a educação, suas ideias têm reconhecidamente “aplicações educacionais imediatas”, enquanto que James e, principalmente, Dewey legaram importantes escritos para a pesquisa educacional (Garrison & Neiman, 2003, p. 23). O pragmatista norte-americano Rorty sustentava que, ao contrário do que acredita a maior parte da tradição filosófica, a política e a filosofia dependem da educação e não o inverso. Para ele a educação é constituída por dois processos distintos *
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR). Mestre em Educação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Professor de Filosofia da Educação na Universidade Federal do Piauí (UFPI), onde coordena o Núcleo de Estudos em Filosofia da Educação e Pragmatismo (NEFEP). 15 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
e complementares: a socialização e a individualização. A dificuldade reside em determinar onde termina um processo e começa outro. Consequentemente, a filosofia da educação que extraímos de seus escritos, configura um esforço no sentido de tentar determinar os limites e os pontos de intersecção entre os dois processos educacionais, articulados com a possibilidade do uso de narrativas como elemento de formação (Silva, 2011, p.526-528). Tal medida culmina numa tentativa de incentivo à manutenção de hábitos de ação que resultassem numa solidariedade humana criada através do aumento de nossa sensibilidade aos pormenores específicos da dor e humilhação que padecem outros seres humanos.
2. Educação, Imaginação e Transformação
Para Rorty, tanto a ideia de que a filosofia é relevante para a política quanto a ideia segundo a qual a filosofia é relevante para a educação deveriam, similarmente, ser colocadas sob suspeita. Entretanto, como indicaremos a seguir, tal suspeição não impede um esboço, sob a forma de proposição, de uma filosofia da educação ilustrada pelas cores neopragmatistas rortyanas. Isso porque, tanto a política quanto a educação recebem, no âmbito da filosofia de Rorty, conceituações peculiares. A política é considerada como um empreendimento em prol do desenvolvimento de instituições democráticas que servirão para o amparo e proteção dos indivíduos socialmente desfavorecidos (1997). A educação, por sua vez, é concebida como dois tipos de empreendimentos distintos, porém complementares: a socialização e a individualização. A esse respeito, Rorty (2000a) declara que a primeira vertente cabe à educação básica, enquanto que a segunda fica a cargo do ensino superior. Isso porque, a socialização cumpre um papel conectivo ao oferecer aos indivíduos os conhecimentos comuns e as noções básicas de cidadania no contexto da sociedade na qual eles estão inseridos. Já a individualização tem uma função de ruptura, visto que tentar fornecer aos indivíduos condições, através de dúvidas e incentivos, para que eles rompam imaginativamente com o quadro precedente e criem versões melhoradas de si mesmo e da sociedade. Nessa perspectiva, Rorty (1994) acompanha a perspectiva nietzscheana de que o fracasso como poeta equivale ao fracasso como ser humano. Tal fracasso seria constatado quando os indivíduos não criam para si mesmo novas e alternativas 16 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
descrições, limitando-se a aceitar passivamente as descrições impostas por outras pessoas. Assim, Rorty (1997) assevera que a única função social concebível para a filosofia é a tarefa terapêutica de ajudar as pessoas a se libertar de ideias retrógradas e a romper a crosta social. No âmbito das questões de natureza política e educacional, o principal instrumento poético de ruptura contra convenções sociais, práticas políticas e educacionais retrógradas, reside justamente na utilização imaginativa e convincente da retórica na proposição de alternativas. Desse modo, somos levados a considerar que as ações em prol da política ou da educação, não têm como agentes os protagonistas dos intermináveis debates teóricos filosóficos. Tanto na política quanto na da educação, durante o processo decisório e de busca por soluções para problemas específicos e urgentes, a filosofia não deve ser superestimada, pois, afinal de contas, o principal será definido no processo das lutas explícitas ou implícitas pelo poder. Dessa forma, podemos afirmar que o fator decisivo para as mudanças educacionais não reside na teorização filosófica, mas no âmbito das disputas travadas e decisões tomadas em diversas instâncias, como as associações, federações e conselhos de educação. Nessa perspectiva, a utilidade filosófica permanece restrita ao papel de contribuir retoricamente para tornar mais interessante um ou outro, dentre os discursos opositores. Para Arcilla (1997), a educação deve, em linhas gerais, assegurar a transferência do conhecimento de uma geração para outra. Embora tal ideia seja comum a Rorty, ele admoesta que o compartilhamento do conhecimento no ensino básico (equivalente ao ensino fundamental e ao ensino médio) e no ensino superior (graduação e pósgraduação), deve ocorrer através de dois processos educacionais distintos e complementares, denominados respectivamente de socialização e individualização. Nessa perspectiva, o termo educação é abrangido por esses dois processos que são “inteiramente diferentes e igualmente necessários” (Rorty, 1997, p. 72). A socialização contempla uma variedade de coisas que devem ser aprendidas nas escolas pelos jovens com a idade de, aproximadamente, dezenove anos. Após essa idade aproximada (que pode variar cronologicamente um pouco para cima ou para baixo), haveria caracteristicamente uma impaciente resistência ao processo educacional de socialização e, em contrapartida, uma receptividade crescente para o início do processo autocrítico de individualização. Dentre os itens constantes no aprendizado que objetiva integrar satisfatoriamente as pessoas na sociedade, podemos destacar elementos 17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
como noções básicas de higiene e saúde, a distinção entre o comportamento na esfera particular e pública, o respeito ao próximo, a alfabetização fundamental (leitura, pronúncia, escrita e interpretação de textos), as primeiras operações matemáticas (adição, subtração, multiplicação e divisão). Além disso, seria igualmente importante o aprendizado de noções concernentes aos hábitos e práticas culturais e, também, o conhecimento de certas leis e normas que previnem ou inibem atos que possam ser considerados ilícitos e prejudiciais aos próprios estudantes, seus colegas, amigos, familiares ou estranhos. Segundo Rorty (2000a, p. 121), os professores responsáveis pelo processo de socialização nas escolas deveriam incentivar seus estudantes a ler narrativas históricas e literárias com o propósito de adquirirem uma “imagem de si mesmos como herdeiros de uma tradição em prol da ampliação de liberdade e da ascensão da esperança”. A individualização ou autocriação implica, por sua vez, em uma posterior revolta contra o processo de socialização. Assim, a tarefa dos professores universitários é oferecer perspectivas alternativas e dissonantes acerca daquilo que foi aprendido de modo consensual: tanto o conhecimento convencional das matérias disciplinares quanto os valores e normas morais e políticas da sociedade. Rorty (2000a, p. 120) sustenta que tal tarefa poderia ser realizada através do contraste propiciado não por “critérios”, mas por “narrativas inspiradoras e utopias obscuras” poder-se-ia “remover as barreiras que a socialização inevitavelmente impõe”. Nessa perspectiva, ele sugere ainda que os professores da educação superior não profissionalizante devem ajudar seus alunos a perceber que “eles podem moldar a si próprios, que eles podem retrabalhar a autoimagem infligida a eles pelo seu passado, a autoimagem que fez deles cidadãos competentes, transformando-a em uma nova autoimagem (Rorty, 2000a, p. 118). Ao retornar ao tópico da educação básica, Rorty explica porque a tarefa de seus professores não deve ser contestatória. A educação primária e secundária sempre será uma questão de familiarizar o jovem com aquilo que os mais velhos consideram verdadeiro, seja isto verdadeiro ou não. Não é, e nunca será, função da educação básica desafiar o consenso prevalecente sobre o que é verdadeiro. A socialização tem de vir antes da individualização e a educação para a liberdade não pode ser iniciada antes de alguns constrangimentos terem sido impostos. Todavia, por razões bem diferentes, a educação superior não profissionalizante também não é uma questão de inculcar ou induzir à verdade. Ela é, 18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
em vez disso, uma questão de incitar dúvidas e estimular a imaginação, portanto, de desafiar o consenso predominante. Se a educação pré-universitária produz cidadãos alfabetizados e a educação superior produz indivíduos autocriados, então as questões sobre se a verdade está sendo ensinada aos estudantes pode ser saudavelmente negligenciada (Rorty, 2000a, p. 118). Nessa perspectiva, a tarefa vislumbrada para os professores do ensino superior estaria voltada para o oferecimento de cursos que combinassem “treinamento vocacional especializado e provocação para a autocriação” (Rorty, 2000a, p. 123). Dentre estas provocações oferecidas pelos professores, mereceriam destaque aquelas consideradas socialmente mais relevantes, por serem capazes de tornar vívidos tantos os êxitos quantos os fracassos do país ao qual nos consideramos cidadãos leais. Embora Rorty localize os processos complementares de socialização e individualização em âmbitos escolares distintos (no ensino fundamental e médio, por um lado, e no ensino superior, por outro), ele não deixa de reconhecer que esta demarcação não é rigorosamente fixa, visto que, em ambos os casos, pode ocorrer situações nas quais os professores responsáveis pelos respectivos processos excedam a tarefa que é supostamente tomada como regra. Estas exceções podem ocorrer, por exemplo, a partir de uma opção dos professores que, sensibilizados pela curiosidade, dificuldade ou reivindicação de seus alunos, resolvem indicar a eles onde encontrar formas de pensar alternativas ao senso comum. Outrossim, as exceções também podem originar-se em virtude da condição estrutural do ensino no próprio país dos referidos professores, por questões administrativas peculiares de sua escola ou faculdade, ou ainda pela percepção de que a socialização necessária não foi suficientemente desenvolvida e que, portanto, antes da individualização, tal tarefa precisa ser completada ainda que seja no ensino superior. Nessa perspectiva, Rorty defende que a função social das faculdades e universidades é contribuir para que os estudantes possam comparar nossa sociedade atual com sua versão pretérita a fim de verificar o inegável progresso de uma em relação à outra sem, no entanto, deixar de nos precaver contra o comodismo generalizado que imobiliza nossos pensamentos e ações. Em outras palavras, as gerações vindouras devem atentar para o fato que, a despeito dos avanços nas nossas ideias, comportamentos, instituições, leis e relações sociais, a distância entre o que podia ter sido feito e o que foi efetivamente realizado é inimaginavelmente abissal. Assim, devemos nutrir a esperança de poder fazer com que toda nova geração de estudantes 19 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
esquive-se do conformismo e passe a perceber e a combater tudo aquilo que venha a ser considerado inútil, vil e destituído de liberdade que sub-repticiamente se alastra na sociedade. A esse respeito, Rorty (2000a, p.124-125) explica que: Com sorte, os melhores deles serão bem-sucedidos na alteração da sabedoria convencional, de tal forma que a próxima geração seja socializada de um modo diferente daquele em que eles próprios foram socializados. Esperar que esse modo seja um pouco diferente é esperar que a sociedade permaneça reformista e democrática, em vez de convulsionada pela revolução. Esperar, que ela seja perceptivelmente diferente é, apesar de tudo, lembrar que o crescimento é certamente o único fim a que a educação superior pode servir e também lembrar que a direção do crescimento é imprevisível. Desse modo, no âmbito do ensino superior não profissionalizante, Rorty propõe que antes de qualquer tentativa de fixação de conteúdos, devemos priorizar a liberdade de cátedra e de ensino, a fim de que o processo crítico de auto-criação possa ocorrer. Essa advertência sugere que o processo de individualização depende profundamente de um ato de liberdade desempenhado simultaneamente. Sem tais exercícios de liberdade, Rorty adverte que os relacionamentos entre alunos e professores ficam comprometidos porque não são norteados por um viés socrático, isto é, pelo amor à sabedoria, mas são orientados pelos sentido platônico, ou seja, de amor à verdade. Na situação ideal, a prática pedagógica inspiradora ocorre em dois tipos de situação: o relacionamento dos alunos como seus professores vivos que ministram aulas e orientam; e o relacionamento com os professores mortos que se fazem notar através do legado de suas obras. Em ambos os casos, o entusiasmo recíproco entre o professor e o estudante, conecta-os em um relacionamento que tem pouco a fazer com a socialização, mas muito a fazer com a autocriação, e é o principal meio através do qual as instituições de uma sociedade liberal conseguem ser transformadas. A menos que tais relacionamentos sejam constituídos, os estudantes nunca perceberão qual é o propósito das instituições democráticas: a saber, tornar possível a invenção de novas formas de liberdade humana, admitindo liberdades, nunca antes consideradas (Rorty, 2000a, p. 126). Rorty (2000b, p. 127) sugere ainda que os professores devem “instilar dúvidas nos estudantes sobre as suas próprias autoimagens e sobre a sociedade à qual pertencem”. Segundo ele, os professores que agem assim devem ser considerados intelectuais humanistas que contribuem para tentar assegurar que cada nova geração estudantes possua uma consciência moral ligeiramente diferente da geração precedente. 20 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Tal mudança no aspecto moral das gerações vindouras em relação às precedentes deve levar em consideração que o material utilizado para tal função, as listas de leitura, devem ser planejadas a fim de preservar um tênue equilíbrio entre dois tipos de necessidade. A primeira é a necessidade que os estudantes têm de possuir pontos de referência comuns capazes de conectá-los com outras gerações e outras classes sociais. A segunda é a necessidade que os professores têm de ensinar, preferencialmente, acerca dos livros que mais instigaram e transformaram suas vidas, em vez de me meramente limitar suas disciplinas a um plano de curso previamente definido por comitês ou conselhos burocráticos. Este último aspecto assume um papel ainda mais relevante se considerarmos que a realização da referida proposta não tenderia a ocorrer de forma tranqüila, pois a liberdade acadêmica nem sempre pode vicejar nas cercanias onde predomina a sombra espectral de sua contraparte, a burocracia universitária. Por outro lado, como os professores discordam consideravelmente sobre seus cânones e heróis, os estudantes podem não aproveitar devidamente boa parte dos cursos em virtude da sobrecarga de leitura ou, pior ainda, simplesmente em decorrência da lassidão intelectual. Diante desse impasse a proposta neopragmatista consiste na ideia de que as ciências humanas devem ser mantidas em constante e rápida mudança para que continuem caracteristicamente indefiníveis, estrategicamente não administráveis e tematicamente interessantes. Nessa perspectiva, podemos acompanhamos a sugestão de Rorty (2006) e ampliá-la a fim de sustentar que não apenas a filosofia deve ser transformadora, mas também a educação (ainda que sob a forma de uma filosofia da educação).
3. Considerações Finais
A partir da compreensão das funções complementares dos processos de socialização e individualização, podemos sustentar que a tarefa social a ser desempenhada pela educação é similar ao da filosofia: ambas têm o papel de auxiliar as pessoas a modificar ideias retrógradas e hábitos nocivos, ao oferecer contrapontos narrativos novos e interessantes. A relevância das narrativas neste processo filosófico-educativo-literário pode ser vislumbrada na sugestão de Rorty (1998) de que a leitura de livros como o Novo Testamento e o Manifesto Comunista deveria ser encorajada por “pais e professores”, 21 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
pois o conhecimento de tais narrativas (e a posterior reação a ela) contribuiria para que as próximas gerações fossem moralmente melhores. De modo geral, tal percepção encerra a esperança de que as próximas gerações, ao elaborarem suas próprias narrativas sob a forma de romances, filmes, leis, instituições, entre outros legados, lembrem-se de ampliar o raio de ação do termo “nós”, por mais estranho ou louco que tal descrição ou redescrição possa parecer para muitos de seus contemporâneos. Nessa perspectiva, recordamos a proposta de Rorty (1994), segundo a qual é possível transformar o mundo, modificando nossa percepção sobre alguns aspectos dele através de narrativas tétricas ou inspiradoras. Assim, conforme foi sugerido, tal função poética poderia ser instrumentalizada pela ação pedagógica de professores que, ao desempenharem com liberdade suas aulas inspiradas por grandes professores mortos (educadores, literatos e filósofos) poderiam ajudar as novas gerações a: por um lado, desmantelar obsoletas estruturas particulares de linguagem e de crença nas quais foram socializadas; e, por outro lado, incentivar o exercício imaginativo de desencadear narrativas tanto sobre sofrimentos ou triunfos passados quanto sobre cenários sociais, políticos e educacionais alternativos, preferíveis aos atuais. Assim, parafraseando a derradeira percepção poética de Rorty (2008), não é possível termos progresso intelectual, moral ou social sem a poética da criação, isto é, sem o cultivo imaginativo de novas palavras e linguagens ou de novos usos para as mesmas.
Referências ARCILLA, R. V. Edificação, conversação e narrativa: os motivos rortianos para a filosofia da educação. In: Filosofia, sociedade e educação, Marília, n.1, p. 47-58, 1997. GARRISON, J.; NEIMAN, A. Pragmatism and Education. In: BLAKE, N.; SMEYERS, P.; SMITH, R. STANDISH, P. (Eds). The Blackwell Guide to the Philosophy of Education. Oxford: Blackwell, 2003. p.21-37. RORTY, R. Philosophy and the Mirror of Nature. Oxford: Blackwell, 1990. ______. Contingência, ironia e solidariedade. Trad. Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Presença, 1994. ______. A prioridade da democracia para a filosofia. In: Objetivismo, relativismo e verdade. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. ______. Educação como socialização e como individualização. In: GHIRALDELLI Jr., P. Filosofia da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000a. p. 81-97. ______. O intelectual humanista – onze teses. In: GHIRALDELLI Jr., P. Filosofia da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2000b. p. 99-104. ______. Duas profecias. Folha de S. Paulo, São Paulo, 24 maio 1998. Caderno Mais!, p. 7. 22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
______. Trotsky and the Wild Orchids. In: Philosophy and social hope. New York: Penguin Books, 1999a. p. 3-20. ______. Rorty, R. Ethics without principles. In: Philosophy and social hope. New York: Penguin Books, 1999b. p. 72-90. ______. Filosofia analítica e filosofia transformadora. Trad. Heraldo Aparecido Silva. In: RORTY, R. & GHIRALDELLI JR., P. Ensaios Pragmatistas: sobre subjetividade e verdade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. p. 49-73. ______. O fogo da vida. Trad. Susana de Castro. Disponível em: http://gtpragmatismo.wordpress.com/2008/08/25/o-fogo-da-vida-por-richardrorty/. Acesso em: 06 de maio de 2012. SILVA, H. A. Narrativa e educação: algumas reflexões a partir de Benjamin, Kundera e Rorty. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v.11, n.33, p.515-531.
Recebido em 12/05/2012 Avaliado em 12/05/2012 Aceito em 18/06/2012
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DEWEY E A PROPOSTA DEMOCRÁTICA NA EDUCAÇÃO Rosa de Lourdes Aguilar Verástegui* Resumo: O trabalho de John Dewey tem sido uma fonte de inspiração para as noções de democracia participativa ou deliberativa. Ele acredita que a política, ao administrar a vida pública, pode ajudar na formação de um indivíduo integrado de maneira harmônica com a natureza e a sociedade, no sentido aristotélico do zoon politikon. Analisamos sua proposta ético-política, que constitui uma nova visão idealista liberal e uma crítica ao liberalismo tradicional, sobretudo quanto à concepção de indivíduo como uma entidade independente, em concorrência com outros indivíduos. Dewey propõe uma educação com consciência, que fortalece a liberdade, propicia a integração e colaboração. Esta educação é um requisito necessário para o exercício da democracia. Palavras-chave: Dewey, política liberal, ética, democracia. Abstract: The work of John Dewey has been a source of inspiration for the notions of participatory or deliberative democracy. He believes that politics, in administering public life, can help in the formation of an individual integrated harmoniously with nature and society, in the Aristotelian sense of the zoon politikon. I reviewed your proposed ethical-political, which is a new liberal and idealistic view and a critique of traditional liberalism, especially regarding the design of the individual as an independent entity in competition with other individuals. Dewey proposes an education of conscience, which strengthens the freedom, enables the integration and collaboration. This education is a necessary requirement for the exercise of democracy. Key-words: Dewey, liberal politics, ethics, democracy.
1. Introdução
Sabemos que a vida é melhor quanto mais alargamos nossa atividade, pondo em exercício todas as nossas capacidades. Esse cuidado que vem desde Aristóteles é uma preocupação não somente do individuo, senão também da sociedade: o máximo desenvolvimento de cada um, dirigido de modo que se assegure o máximo desenvolvimento de todos. O nosso ideal é uma vida socialmente produtiva. Estudar as propostas políticas nos permite observamos a conduta coletiva e individual dos homens que se repete ao longo da história. Na procura da ordem natural da sociedade, Aristóteles conclui que a felicidade é o objetivo da vida humana. E para conseguir a felicidade o ser humano tem que colocar sua alma em concordância com a virtude (areté) e a razão. A definição aristotélica de virtude é excelência, que esta ligada à justiça, ao comportamento equilibrado, ao melhor esforço por realizar uma ação.
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Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Educação rosaguilar@hotmail.com 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
A sociedade ideal para Platão é o Estado em forma de república, segundo uma divisão que estaria mais para a divisão em castas do que para a divisão em classes, enquanto que o Estado, na formulação de Aristóteles, é o Estado democrático que abriga uma divisão específica entre os homens. Apesar das distinções entre estes filósofos, ambos estão preocupados para que o homem procure o seu melhor desenvolvimento dentro de uma sociedade ordenada. Quando lemos Dewey observamos também grande afinidade com as propostas gregas, com a preocupação ética e social de Platão e Aristóteles. A proposta pragmática de Dewey na educação é muito conhecida, mas esta não se pode entender se não vislumbramos a sua preocupação ética e política. Neste contexto, ressaltamos a coerência entre sua teoria e sua vida, sua participação em diversas atividades públicas e políticas, incluídas a presidência do sindicato dos professores e sua constante preocupação pela política norte americana e internacional, como mostram suas publicações e declarações em nome de muitas causas. Para compreender a filosofia política de Dewey temos que observar a proposta ético-política, que é uma nova visão liberal. Ele crítica o liberalismo tradicional, sobretudo a concepção do indivíduo como uma entidade independente, em concorrência com outros indivíduos. O filósofo norte-americano propõe um individualismo baseado na liberdade com responsabilidade. Para isto, o indivíduo tem que ter uma educação que oriente seu critério ético. Formar um cidadão político, no sentido de Dewey,consiste em aproximar a um liberalismo com responsabilidade social, tarefa esta que constitui um desafio para a educação.
2. O problema da liberdade e a individualidade
Dewey rejeita a visão da vida social e política como um agregado de interesses privados conflitantes. Em vez disso, ele propõe formar indivíduos relacionados e integrados, porque “sociedade significa associação; relaciona o convívio com a ação para a melhor realização de qualquer forma de experiência” (EDMAN, p.84). A individualidade pode ser sustentada apenas onde a vida social é entendida como um organismo, em que o bem-estar de cada parte está ligado ao bem-estar do todo. Dewey critica o liberalismo clássico por conceber o indivíduo como algo dado, que já está acabado, para a sociedade e para a visualização das instituições sociais. Em vez disso, ele argumenta que, as instituições sociais não são meios para os indivíduos 25 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
obter algo, elas são meios para a criação de indivíduos. Quando o liberalismo clássico trata o indivíduo como "algo dado” erra em sua visão essencialista, porque o indivíduo não é nada fixo, dado pronto. O indivíduo é ser em construção, que vai sendo e consegue isto não isoladamente, mas com a ajuda e apoio das condições culturais e físicas. Em realidade Dewey vê que o meio social forma a disposição mental e emocional dos indivíduos exerce uma influência educativa ou formativa de modo inconsciente e desligado de qualquer propósito estabelecido - entendendo meio social, como as condições econômicas, instituições jurídicas e políticas, bem como a ciência e a arte. O liberalismo clássico formula sua ética a partir da abstração do indivíduo do contexto social. Se o indivíduo é pensado como existente antes das instituições sociais, então aparentemente, é mais fácil garantir a liberdade do indivíduo em termos apenas da remoção das barreiras externas na ação individual, tais como as restrições legais à liberdade de expressão. Assim, “na tradição clássica, a lei e a razão estão intimamente ligadas como pai e filho. Conquanto essa máxima atribua à lei uma origem e autoridade que nada tem a ver com a liberdade” (EDMAN, p.270). Dewey explica que a mera ausência de restrição externa não é uma condição suficiente para a liberdade no sentido em que este último é um valor para os liberais. Para o liberalismo clássico ou individualismo velho, o indivíduo é visto como rodeado por um cordão de proteção de direitos, que define a sua liberdade. A liberdade é tomada como a ausência de alguma restrição intencional sobre a capacidade do indivíduo de perseguir seus objetivos escolhidos. Para Dewey, essa visão negativa da liberdade é a raiz dos defeitos sociais, éticos e políticos desta forma de individualismo. E é também a crítica que Bobbio faz ao capitalismo paternalista, que acredita que a solução é o estabelecimento de mais leis e direitos, o que nos tem levado a uma situação que ele denomina “a era dos direitos”, na qual todos lutam pelos direitos e estes estão crescendo cada vez mais, desequilibrando os deveres, pois ninguém quer assumir responsabilidades. As responsabilidades cabem ao estado, a população só quer conquistar direitos. O que é valioso sobre a liberdade não é sua forma negativa, como a ausência de interferência, mas a forma positiva de poder ser um eu individualizado. Dewey entende a liberdade em um sentido "positivo", que consiste não apenas na ausência de constrangimentos externos, mas no fato positivo da participação numa ordem social 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
eticamente desejável. Para ele, os homens não são isolados, são átomos sociais, mas somente são homens nas relações intrínsecas com os outros, e o Estado os representa na medida em que se tornaram organicamente relacionados entre si, ou são dotados de unidade de propósitos e interesses. Mas o estado e as leis são legítimos na medida em que protegem a dignidade humana, sendo assim “as leis e o código podem estar errados, e o indivíduo pode ter o direito a seu favor, recusando-se a obedecê-los” (DEWEY, 1964, p. 76). A individualidade permite que o cidadão discorde de uma lei ou tradição, permitindo que ele se destaque e diferencie do resto como um ser consciente que pode questionar aquilo que agride seus interesses. A história nos mostra que o progresso moral foi conquistado graças àqueles que foram contra o que consideraram injusto nas tradições ou leis e que na época foram considerados imorais ou até criminosos. O conceito de individualidade em Dewey é complexo, porque a individualidade é reflexiva, social e deve ser exercida, a fim de ser apreciada. A individualidade consiste na capacidade e vontade por parte de uma pessoa de refletir sobre ela ou, sobre seus próprios objetivos e projetos, e revisá-los. Existe individualidade nas distintas respostas ao ambiente e cada pessoa apresenta uma forma diferente e particular de sentir os impactos do mundo. Para os liberais, a individualidade consiste na capacidade pessoal para a escolha a qual está intimamente ligada à liberdade. Tanto a liberdade como a individualidade são sociais. A liberdade é a realização das potencialidades pessoais que ocorrem somente em associações enriquecidas pelos outros. A liberdade é o poder de ser um “eu” individualizado, contribuir de forma distintiva e desfrutar de maneira particular dos frutos da associação. A liberdade, então, só é possível em uma forma canônica de ordem social, em que todos participem na formação das condições de vida em comum. Dewey propõe o conceito de “exercício” da liberdade, em vez de uma “oportunidade” de liberdade. Assim, eu estou de posse de minha liberdade só se eu realmente agir desta maneira. Ele vê a liberdade no ato, não na potencia, ou seja, não existe o “teoricamente livre” senão o “livre na prática”. O valor da liberdade individual requer a reconstrução da ordem social através da participação e da democracia, que Dewey vê como algo intrínseco a este valor. Dewey tem sido uma fonte de inspiração para as noções de democracia participativa ou deliberativa. Ele é antielitista, e argumenta que a capacidade de poucos sábios para discernir o interesse público tende a ser distorcida. A participação democrática não é considerada unicamente como um suporte contra o governo das 27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
elites, mas, também, como uma forma de liberdade individual. Ademais, a democracia não é simplesmente uma forma de governo, ela se constitui num ideal social e pessoal, não apenas uma propriedade das instituições políticas, mas de uma ampla gama de relações sociais. O ideal democrático é comum a uma série de esferas sociais, no meio industrial, bem como no civil e político. Para que a democracia seja eficaz é necessária a existência de uma cidadania participativa que a educação ajuda a forjar. Dewey coloca uma ênfase especial na importância da educação pragmática para a democracia.
3. A ética, a educação e a ação social
Dewey argumenta que os valores podem ser vistos como construções para resolver problemas práticos. Um valor passado foi construído para resolver um problema em um conjunto de circunstâncias e pode extrapolar sua utilidade, tornando-se um obstáculo para o desenvolvimento das pessoas. Isso, Dewey acredita, é o caso com respeito aos valores do liberalismo clássico. Estes têm bloqueado a capacidade de resolver problemas sociais de forma compatível com o compromisso do liberalismo, que tem por núcleo à liberdade individual. É desta forma que as palavras de ordem do liberalismo, em um período, podem tornar-se os baluartes da reação nos próximos. Nenhum professor pode ser apolítico, isto é, indiferente diante das diversas possibilidades que se oferecem a seu aluno. Se o professor tenta aliviar os problemas de desequilíbrio social e individual, que são sintomas que indicam a necessidade de encontrar o verdadeiro sentido à educação, ele deve procurar o crescimento ou evolução dele próprio e de seus alunos, como destaca Dewey: Desde que a evolução é a característica da vida, a educação está toda no desenvolvimento; outra não é sua finalidade. O valor da educação escolar está na intensidade com que ela cria o desejo de aperfeiçoamento contínuo, proporcionando os meios de concretizá-lo. (DEWEY, 1959).
Acreditamos que o equilíbrio humano pode conseguir-se graças à educação. De acordo com Dewey a experiência educativa pode ser propiciada pela escola, desde que essa instituição seja regida por princípios democráticos e integradores. Uma educação que procura o equilíbrio humano pode ajudar a constituir uma sociedade formada por diversos grupos sociais, que por sua vez estão constituídos por indivíduos diferentes. Mas, apesar da individualidade e a liberdade que os caracterizam, 28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
esses indivíduos têm algo em comum, o respeito pelos valores morais. Isto permite que seus interesses sejam compartilhados por todos. Para Dewey, a democracia é a condição para que a educação promova o aprimoramento da vida social e humana; respeitando a pluralidade e, ao mesmo tempo, procurando interesses comuns. A educação deve ter um fim social, de tal maneira que: Um programa de estudos, que tenha em vista as responsabilidades sociais da educação, deve apresentar situações cujos problemas sejam relevantes para a vida em sociedade e, em que se utilizem as observações e conhecimentos para desenvolver a compreensividade e o interesse social. (DEWEY, 1959, p. 212) A importância da educação está em que ela ajuda diretamente nos problemas sociais relevantes. A preocupação com a responsabilidade social é fundamental em Dewey, tanto que ele considera “o maior perigo que ameaça o trabalho escolar é a ausência de condições que tornem possíveis a impregnação de espírito social” (DEWEY, 1959, p. 393). Se quisermos um ser humano equilibrado, devemos procurar que sua formação seja justa, isto é, teórica e prática, seja coerente com sua problemática social e, que estas possibilidades não fiquem unicamente como uma prática escolar, senão que: Deve haver continuidade entre o aprendizado escolar e o extraescolar. Deve existir livre interação entre os aprendizados. Isto só é possível quando existem numerosos pontos de contato entre os interesses sociais de um e de outro. (DEWEY, 1959, p. 394) Se a escola não cumpre este papel social, ela se converte em uma organização fora da realidade. A educação deve ajudar o aluno a não ter medo do poder do Estado, a aprender a exigir dele e a não ambicionar o poder como forma de subordinar seus semelhantes. A união entre teoria e prática é fundamental para o conhecimento porque este só atinge a maturidade quando se aplica. Um conhecimento científico fora da realidade é estéril. Dewey chama ação social à exigência da liberdade positiva ou individualidade, em condições industriais modernas. A identificação da liberdade com a individualidade, no sentido de Dewey, permite que os meios necessários para alcançar a individualidade devem ser entendidos como condições necessárias de liberdade. Ao longo de sua vida, ele argumentou que a educação é fundamental para permitir o surgimento de cidadãos livres, que possuam individualidade.
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Dewey se baseou em uma ampla gama de fontes para reforçar a sua concepção de ação social, no entanto, vale ressaltar o caráter liberal e democrático desta concepção. Ele era antiautoritário, no sentido de que não acreditava que os direitos liberais protegidos em nome da liberdade individual (como as liberdades de expressão, pensamento, movimento, e assim por diante) devam ser dispensados. Individualidade, como um ideal ético, exige que as pessoas encontrem seu próprio caminho, não tendo doutrinas particulares ou papéis sociais que lhes sejam impostos. A individualidade só abre a possibilidade da ação política em nome da liberdade, mas nunca deve ser imposta. (EDMAN, 1960). A democracia deve ser entendida como a proteção dos interesses populares e como a expressão da individualidade. A democracia envolve a expressão de interesses por parte dos eleitores, posto que, o voto ajuda a proteger os indivíduos das elites. Além da participação, é necessária a deliberação. Neste sentido, Dewey sublinha a importância da discussão, da consulta, persuasão e debate democrático na tomada de decisões. Estes processos alargam e aprofundam o conhecimento público sobre os problemas em discussão, e ajudam a informar sobre as necessidades sociais. A expressão “cidadania” vem sendo empregada não apenas para definir a pertença a uma determinada organização estatal, mas também para caracterizar os direitos e deveres dos cidadãos. Na filosofia do direito encontramos duas interpretações contrárias e conflitantes acerca da cidadania ativa. Na tradição liberal do direito natural, que remonta a Locke, cristalizou-se uma compreensão individualista e instrumentalista do papel do cidadão; ao passo que a tradição republicana da doutrina do estado que remonta a Aristóteles, gira em torno de uma compreensão ética comunitária desse papel. As pessoas vivem em comunidades com limites e obrigações, que podem ser de diferentes tipos. Somente uma cidadania democrática que não se fecha num sentido particularista, pode preparar caminho para um status de cidadão do mundo, que já começa a assumir contornos em comunicações políticas de nível mundial. A cidadania é uma resposta à questão “quem sou eu?” e “o que devo fazer?” a partir do momento em que sou introduzido na esfera pública. A pertença a uma comunidade política fundamenta obrigações especiais, a lealdade a uma determinada comunidade a qual se expressa através da vontade de sacrificar-se em benefício da comunidade. As próprias potências mundiais não podem mais ignorar a realidade dos
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protestos que atingem dimensões planetárias. O estado de cidadão do mundo deixou de ser uma quimera, mesmo que ainda estejamos muito longe de atingi-lo. Dewey comenta sobre a educação grega, que se apresenta de forma bastante compacta, dado que todos os domínios estabelecem relações de interdependência. E um dos fatores que nos permite entender este tipo de pedagogia já se encontra inserido em sua própria nomeação: enkyklios paidéia, da qual deriva a palavra “enciclopédia”. O autor ressalta o caráter social da educação na Grécia antiga: De acordo com os interesses de uma vida verdadeiramente compartida ou associada, tornam-se então, esses recursos, o cabedal positivo da civilização. Se a Grécia, com um restrito acervo de nossos recursos materiais, perfez uma digna e nobre carreira intelectual e artística, foi porque trabalhou, para fins sociais, com os recursos de que dispunha. (DEWEY, 1979, p. 40). Dewey observa que unicamente com a ciência e a técnica não se faz florescer uma sociedade, é preciso uma consciência política e social que integre a todos seus membros num mesmo fim. A preocupação de Dewey por uma educação que ajude à formação humana e que, a sua vez, consiga um equilíbrio social, isto é, uma democracia, é evidente em suas obras. A união que faz este autor entre filosofia e educação, como uma oportunidade de refletir e uma necessidade de crescer, ressalta a importância da prática dentro do conhecimento. O bem agir, tão defendido pelos gregos antigos, vinculava o saber a uma prática: a formação de hábitos morais e de atitudes responsáveis, integradas com os fins da sociedade. O exercício do poder demanda, pois, um sentido moral, sem o qual podese ter gênios sem caráter, cientistas sem ética e cidadãos desumanos. Poder-se-ia perguntar se é possível ensinar valores e como fazê-lo. Respondemos: não é nas solenes declarações de princípios que se manifestam a solidariedade. Não se aprende solidariedade, a não ser sendo solidário na vida cotidiana. Considerações finais A democracia é vista como a melhor maneira de lidar com os conflitos de interesses em uma sociedade. A política democrática não é simplesmente um canal através do qual podemos afirmar os nossos interesses, mas um fórum ou o modo de atividade em que podemos chegar a uma concepção dos nossos interesses. A democracia é experimental para Dewey, na medida em que permite, ou deve permitir, um questionamento profundo das ideias e correções da ordem estabelecida.
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Dewey tem uma concepção de democracia não convencional. Ele acredita que as sociedades complexas e industrializadas podem ser caracterizadas por um alto nível de harmonia entre os interesses de seus membros, através da discussão pública e da comunicação. A cidadania está em crise, tanto na representação como na participação. O exercício livre das faculdades morais dos indivíduos tem como consequência o pluralismo moral e cultural. Não é a sociedade que garante a virtude de seus membros, por isso acreditamos que é necessária uma discussão sobre a cidadania e seu exercício. Devemos tentar erradicar o sistema de educação livresco, tão isolado da vida, que é antes prejudicial, do que vantajoso. Estreitar os vínculos entre ética e cidadania nos leva a esclarecer os vínculos entre filosofia e política. A ética não constitui um código abstrato repleto de comandos e regras incontestáveis. A ética não constitui um sistema ideal que seja coerente em teoria mas impossível na prática. A filosofia se materializa na educação, na reflexão fértil que é capaz de nos enriquecer e melhorar. Fora da educação, a filosofia se converte numa reflexão erudita, estéril, livresca. A teoria tem que estar unida à prática, ela a torna real. A prática tem que ter um fim social, para que o crescimento humano não seja um crescimento egoísta, senão um crescimento social; e, também, para que o homem possa atingir a tão desejada felicidade e não unicamente o prazer. Com efeito, para que o indivíduo alcance o equilíbrio e possa ter a oportunidade de viver numa sociedade equilibrada, esta educação deve ser uma oportunidade para todos. Referências ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Mario de Gama Kury. Brasília: UnB, 1997. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2000. DEWEY, John. Democracia e educação. Tradução de Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. 3° ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. _______. Experiência e Educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. _______. Teoria da vida Moral. Tradução de Leônidas Gontijo de Carvalho. São Paulo: IBRASA, 1964. EDMAN, Irwin. John Dewey: sua contribuição para a tradição americana. Rio de Janeiro: Editora Fundo de Cultura, 1965. Recebido em 25/5/2012 Avaliado em 15/06/2012 Aceito em 18/06/2012
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ISSO NÃO É UMA MULA: O debate entre Umberto Eco e Richard Rorty nas Tanners Lectures Marcos Carvalho Lopes* Resumo: O artigo contextualiza e avalia o debate entre Umberto Eco e Richard Rorty sobre limites da interpretação. Esta polêmica ocorreu nas Tanners Lectures de 1990 e está editada no livro Interpretação e Superinterpretação. Jonathan Culler participa do embate defendendo e tentando aplicar a desconstrução de Jacques Derrida. O que está em jogo em primeiro plano nesta contenda é a validade da distinção entre uso e interpretação, defendida por Eco e rejeitada por Rorty. Em segundo plano, a discussão coloca em questão a forma de lidar com o universalismo interpretativo, comum na pósmodernidade. Palavras-chave: Eco; Rorty; Interpretação; Desconstrução; Pragmatismo; Abstract: The article analyzes and evaluates the debate between Umberto Eco and Richard Rorty about the limits of interpretation. This controversy occurred in the Tanners Lectures of 1990 and is published in the book Interpretation and Overinterpretation. Jonathan Culler participates in this battle defending and trying to apply the deconstruction of Jacques Derrida. What is at stake in the foreground in this clash is the vality of the distinction between use and interpretation, defended by Eco and rejected by Rorty. In the background, the discussion calls into question how to deal with the interpretive universalism common in post-modernity. Key-words: Eco; Rorty; Interpretation; Desconstruction; Pragmatism;
1. Introdução: da semiose hermética e do fascismo eterno
O trabalho de Umberto Eco na década de 80 voltou-se contra o que o autor italiano identificou como sendo uma “síndrome do segredo”, que de forma intensa a partir da década de 70 passou a afetar tanto o cotidiano da vida social, quanto os trabalhos teóricos na filosofia e, principalmente, na crítica literária. Se a tendência de Richard Rorty é sempre desconectar os problemas filosóficos contemporâneos das questões que estimulavam o filosofar no passado, Umberto Eco se move em direção contrária, buscando desvendar continuidade e perenidade nos problemas que afetam o saber humano. Assim, ao lidar com a ascensão de uma perspectiva teórica que valoriza excessivamente a dimensão do leitor, desconsiderado o autor e o contexto do discurso, Eco busca desenvolver uma narrativa que demonstre os perigos políticos e sociais desse irracionalismo, tentando desvelar suas raízes mais
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Doutorando em Filosofia na UFRJ marcosclopes@gmail.com
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remotas. Eco pergunta de forma provocativa: “Há alguma coisa que una um homem admirável, místico, profundo, como Marcílio Ficino a Hitler?”, o autor responde negativamente, mas salienta que é assim quando se examina o caso de forma superficial, porém a semelhança aparece quando se considera a lógica pela qual se está autorizado a crer em qualquer coisa na base de semelhanças superficiais. O místico e o fascista estariam unidos por exercer esse tipo de interpretação paranoica (ECO apud SCHIFFER, 2000, p. 256). O romance de Umberto Eco O Pêndulo de Foucault é uma sátira a esse fascismo eterno, identificado pelo autor italiano na busca irracional de desvendar em todas as coisas sinais de um grande segredo oculto. Ao submeter todos os aspectos do universo a uma perspectiva paranoica de interpretação, cairíamos na armadilha do fascismo. Tal fascismo eterno acenaria tanto na hora em que abrimos os jornais para procurar no horóscopo o caminho que os astros indicam para nossa vida, quanto quando nos submetemos a perspectivas fundamentalistas de qualquer espécie. O trabalho teórico de Umberto Eco também segue esse caminho de critica ético-política ao irracionalismo que estaria presente em certas posições filosóficas pósmodernas. Isso aparece explicitamente nos ensaios coletados em Os Limites da Interpretação e na obra Interpretação e Superinterpretação. É nesta segunda obra que está coligida o conteúdo das Tanners Lectures de 1990, em que o mago de Bolonha debate com Richard Rorty, Jonathan Culler e Cristine Brooke-Rose. O livro contém três conferências de Eco, a crítica feita a elas pelos três conferencistas e a réplica do filósofo italiano. Nesse artigo vou enfocar os pontos principais do debate entre Eco e Rorty, como apareceram em Interpretação e Superinterpretação. De início cabe descrever, resumidamente, a argumentação de Umberto Eco nas três conferências iniciais desse encontro. Primeiramente, veremos como Eco busca no hermetismo e na gnose as origens da síndrome do segredo, que hoje afetaria tanto certas perspectivas de interpretação, quanto trariam consigo perigosas consequências políticas; ao tentar legitimar o irracionalismo como fonte de poder. A seguir, veremos como o filósofo italiano faz sua defesa da intenção da obra (intentio operis) como caminho para negar os excessos interpretativos.
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1.1 Uma arqueologia da síndrome do segredo: a semiose hermética Em sua primeira conferência, intitulada “Interpretação e História”, Umberto Eco pretende “revisitar as raízes arcaicas do debate contemporâneo sobre o significado (ou pluralidade de significados, ou a ausência de qualquer significado transcendental) de um texto” (ECO, 1993, p. 29-30). Seu objetivo é buscar as fontes do irracionalismo pósmoderno e do que chamou de fascismo eterno. Nesse passo, Eco deixa de lado a questão sobre se o mundo é um texto que pode ser interpretado ou se é o texto que nos dá a imagem do mundo. O que o autor põe em questão é a própria possibilidade de conhecimento racional: se o mundo tem um significado fixo, uma pluralidade de significados ou não tem significado nenhum. O que está em jogo para Eco é a defesa da herança greco-romana de racionalidade, que apesar de não possuir uma definição que seja indiscutível (como mostra a história da metafísica Ocidental), ainda hoje domina a ciência, a lógica, a matemática e a programação de computadores. (ECO, 1993, p. 33) Tal modo de racionalidade fundar-se-ia no modus ponens (se p, então q; mas p, logo q), que para garantir sua causalidade unilinear deve vir acompanhado de três princípios: principio de identidade, principio de não-contradição e principio do terceiro excluído (ECO, 1993, p. 31-32). Tais princípios seriam a garantia, se não de “uma ordem fixa do mundo, pelo menos um contrato social” (ECO, 2004, p. 51). Tais princípios de racionalidade teriam sido apropriados pelos romanos e estendidos ao plano jurídico. A própria civitas dependeria do reconhecimento de seus limites: essa contenção garantiria a proteção de Roma ante a ameaça dos bárbaros. Essa ordem de racionalidade grecoromana fundamentaria nossa ordem social. Contudo, os gregos também nos trouxeram como herança sua atração pelo apeíron (o infinito, indeterminado), que ganha personificação no mito de Hermes, pai de todas as artes e ao mesmo tempo deus dos ladrões, que nega todos os princípios de racionalidade e povoa o mundo de mistérios e magia. O hermetismo, surgido no século II, buscaria o conhecimento em similitudes e analogias, tomando o universo como uma “grande parede de espelhos, onde cada objeto individual reflete e significa todos os outros” (ECO,1993, p. 37). Nesse contexto, a busca do conhecimento se confunde com a veneração da obscuridade, como explica Umberto Eco: A tentativa de buscar um significado geral inatingível leva à aceitação de uma interminável oscilação ou deslocamento do significado. Uma planta não é definida em termos de suas características morfológicas e funcionais, mas com base em sua 35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
semelhança, embora apenas parcial, com outro elemento do cosmos. Se ela se parece vagamente com uma parte do corpo humano, então tem significado porque se refere ao corpo. Mas aquela parte do corpo tem significado porque se refere a uma estrela, e esta tem significado porque se refere a uma escala musical e isso porque esta, por sua vez, refere-se a uma hierarquia de anjos, e assim por diante ad infinitum. Todo objeto seja terrestre ou celeste, esconde um segredo. Toda vez que um segredo é descoberto, referese a um outro segredo num movimento progressivo rumo a um segredo final. Entretanto, não pode haver um segredo final. O segredo último da iniciação hermética é que tudo é segredo. Por isso o segredo hermético deve ser um segredo vazio, porque todo aquele que pretende ter revelado qualquer tipo de segredo não é ele mesmo iniciado e parou num nível superficial de conhecimento do mistério cósmico. O conhecimento hermético transforma o teatro do mundo inteiro num conhecimento linguístico e, ao mesmo tempo, nega à linguagem qualquer poder de comunicação. (ECO, 1993, p. 37-38) À forma de interpretação fundada na busca paranoica por analogias e similitudes Eco chama de semiose hermética. Tal perspectiva de prática interpretativa do mundo e dos textos sobreviveu de forma marginal na Idade Média, foi redescoberta pelo humanismo renascentista, sendo que, paradoxalmente, contribuiu para a criação de seu maior adversário, o racionalismo científico moderno. Como aponta Eco, em termos históricos “é impossível separar o fio hermético do fio científico, ou Paracelso de Galileu” (ECO, 1993, p. 40). Esse viés irracionalista sobrevive ao Renascimento e fecunda tanto as estéticas românticas quanto o ocultismo oitocentista, acenando na obra de autores diversos como Goethe, Yeats, Schelling, Heidegger, Jung, dentre outros. Para Eco “não é difícil reconhecermos em muitas concepções pós-modernas da crítica a ideia do deslocamento contínuo do sentido” (ECO,2004, p. 27).1 Ao lado da semiose hermética, outra herança grega se somaria na construção da síndrome do segredo: a gnose. Por essa perspectiva mística, vivemos em um mundo abortado, construído por um demiurgo atabalhoado, onde toda procura por um conhecimento verdadeiro apenas desloca o segredo e refaz a obscuridade. O gnóstico se vê como lançado no mundo, em exílio, a existência pare ele é um mal, despreza seu corpo e até mesmo a atividade reprodutora. Por perceber sua desventura, o gnóstico se considera como alguém que está numa posição superior em relação aos que não conhecem esse mistério: é uma religião aristocrática, de senhores e não de escravos. 36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
É um empreendimento tentador buscar traços da herança gnóstica em vários aspectos da cultura moderna e contemporânea, seja no heroísmo romântico, seja no existencialismo ou nas teorias que atribuem todo o mal da sociedade a outros grupos sociais e concedem ao iniciado a posição mágica de quem deve ser um agente na redenção do universo (marxismo, nazismo, etc.). O gnóstico rejeita o tempo e a história, como na descrição dessa seita que inspira o conto de Jorge Luis Borges “Tlön, Ucbar, Orbis Tertius”: “para um desses gnósticos o visível universo era uma ilusão ou (mais precisamente) um sofisma. Os espelhos e a paternidade são abomináveis (mirrors and fatherhood are hateful) porque o multiplicam e divulgam”(BORGES, 1998, p. 476).2 É de Jorge Luis Borges, no conto “Pierre Menard, autor do Quixote” a provocativa sugestão de que “a arte estagnada e rudimentar da leitura” se enriquece muito a partir da “técnica do anacronismo deliberado e das atribuições errôneas” (BORGES, 1998, p.498). Por essa “técnica”, que Eco chamaria de semiose hermética, poderíamos ler a Odisseia como se esta fosse posterior a Eneida ou Imitação de Cristo como se fosse obra de Céline ou James Joyce (BORGES, 1998, p. 498). Borges, um autor que dizia ler melhor do que escrevia (PINTO, 2004, p. 117), apontava para a ideia de que “todo julgamento é relativo, e a critica é uma atividade tão imaginativa quanto a ficção e a poesia”(MONEGAL,1980, p. 80). A poética da leitura desenvolvida na obra do escritor argentino antecipou a ênfase dada ao leitor nas perspectivas críticas pósmodernas, que dentro de uma mística da interpretação ilimitada, pretendem “sovar” o texto (como diz Rorty) para fazer com que este se adeque as suas intenções (intentio lectoris) (ECO, 2004, p. 31). Os praticantes da semiose hermética, conscientes da incapacidade da linguagem para a comunicação, tomam a leitura como um jogo em que a vontade do leitor se sobrepõe a intenção do autor, tornado-se um “Super-homem que compreende a única verdade, isto é, que o autor não sabia do que estava falando, porque a linguagem falava em seu lugar”, sua vitória consistiria “em fazer com que o texto diga tudo, salvo aquilo em que o autor pensava”, o Eleito sabe “que o verdadeiro significado de um texto é o seu vazio” e que a semiótica é um complô dos que querem nos convencer que “a linguagem serve para a comunicação do pensamento” (ECO, 2004, p. 32). Dentro dessa caricatura da semiose hermética Eco encaixa a perspectiva de Harold Bloom e Geoffrey Hartman, mas pondera que “referências explicitas são ao fim e ao cabo, as menos interessantes exatamente porque estão lúcida e criticamente patentes” (ECO, 2004, p.31). 37 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Eco quer que deixemos de lado a pretensão gnóstico-romântica de nos tornarmos heróis rejeitando o mundo e a comunicação com os outros e tentemos ser coerentes em nossas interpretações: “se há algo a ser interpretado, a interpretação deve falar de algo que deve ser encontrado em algum lugar, e de certa forma respeitado” (ECO, 2003, p. 50-51).
1.2 Em defesa da intenção da obra Em sua segunda conferência, “Superinterpretando textos”, Eco tenta explicar o que chama de superinterpretação (overinterpretation), ou seja, como se dão os excessos interpretativos que promovem leituras paranoicas. A questão para Eco é tentar responder a pergunta sobre a partir de qual critério “concluímos que uma determinada interpretação textual é um exemplo de superinterpretação?” (ECO, 2003, p. 61). Quanto a esse ponto, o mago de Bolonha tenta se valer de um principio popperiano, ou seja, apela para a possibilidade de falsificação. Para ele, se não existem regras que ajudem a definir quais são as melhores interpretações, “existe ao menos uma regra para definir quais são as “más”” (ECO, 2003, p. 61). Qual seria essa regra? De forma alguma o filósofo italiano dá uma resposta clara para essa pergunta. De início ele fornece mais algumas características que estariam presentes em leituras paranoicas, que seguem a semiose hermética. A superinterpretação age estendendo ao máximo o critério de similaridade, fazendo da ideia de que “de um certo ponto de vista, todas as coisas têm relações de analogia, contiguidade e similaridade com todas as outras”(ECO, 2003, p. 57), motivo para exercer uma leitura que tenta tirar de uma relação mínima o máximo possível. Para ler textos, ou o mundo, de modo paranoico é necessário criar para si um método obsessivo, que elabora abduções que não possuem a mínima possibilidade de serem verificadas, ou que, partindo de um indício mínimo propõe hipóteses fantásticas/fantasiosas. Por vezes, recorrendo a um principio de facilidade, que faz abduções apressadas a partir de indícios que não são verificados ou promovendo um excesso de perguntas, superestimando coincidências que poderiam ser consideradas de modo mais econômico. Por vezes, esses excessos interpretativos promovem uma falsa transitividade, tomando uma consequência como sendo sua própria causa, ou seja, promovendo uma deriva hermenêutica em que o significado se desloca de modo inconsequente: “se A mantém uma relação x com B, e mantém uma 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
relação y com C, então A deve ter uma relação y com C” (ECO, 2003, p. 60). Eco lembra que tanto detetives quanto cientistas devem produzir abduções tomando um indício como signo de outra coisa, mas o autor aponta que, para fazer isso de maneira econômica, devem levar em conta três condições: quando não pode ser explicado de maneira mais econômica; quando aponta para uma única causa (ou uma quantidade limitada de causas possíveis) e não passa um número indeterminado de causas diferentes; e quando se encaixa com outro indicio. (ECO, 2003, p. 57)
O critério de economia proposto por Umberto Eco para limitar os excessos interpretativos do leitor é apontar para a possibilidade ou não da hipótese de leitura ter respaldo no texto como todo, compreendendo-o como um organismo coerente. O leitor faz apostas interpretativas que devem ser confirmadas pela isotopia semântica relevante.3 do texto. Contudo, é necessário que o critério de relevância adotado não seja demasiadamente genérico. Eco mostra como esse critério de relevância é importante mesmo na interpretação de metáforas, que, para o autor italiano se constituem a partir de similaridades semânticas. Por exemplo, a afirmação “Aquiles é um leão” é considerada válida na medida em que reconhecemos que ambos são corajosos e ferozes, no entanto, seria insensato procurar no herói grego uma cauda. Por outro lado, uma metáfora como “Aquiles é um pato” tomada para apontar para o traço comum de ambos serem bípedes tende a ser rejeitada, já que não se trata de uma similitude relevante, uma vez que muitos outros animais possuem esta característica. Vale dizer que, para Eco, a compreensão de metáforas nos dispõe a ver o mundo de modo diferente, “mas para interpretá-la cumpre-nos perguntar não por que mas como ela nos mostra o mundo de um modo novo” (ECO, 2004, p. 122). Um intérprete pode decidir tomar qualquer enunciado como metafórico de acordo com sua competência enciclopédica, contudo, a interpretação só será considerada legítima se o texto permitir tal hipótese de leitura (ECO, 2004, p. 123). Para o filósofo italiano, “entre a intenção inacessível do autor e a intenção discutível do leitor, está a intenção transparente do texto, que invalida uma interpretação insustentável”(ECO, 2004, p. 93). Eco traz para a intenção do texto o adjetivo da “transparência”, mas seria esta uma construção ante a qual não cabe ambiguidades? A relação tri-relativa que Peirce advoga como necessária para a semiose (entre signo, objeto e interpretante) é transportada para o texto por Eco, para quem a leitura deve levar em conta a intenção do autor (intentio auctoris), a intenção da obra (intentio operis) e a intenção do leitor (intentio lectoris), sendo que, como para o pioneiro do 39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
pragmatismo norte-americano, tal relação de triangulação de modo algum poderia resolver-se numa relação entre pares (ECO, 2004, p. 35). A intenção do texto só é possível de ser encontrada a partir de uma leitura que desenvolve uma conjectura acerca do autor-modelo, assim, “o texto é um objeto que a interpretação constrói no decorrer do esforço circular de validar-se com base no que acaba sendo seu resultado” (ECO, 2003, p. 75-76). Eco fala aqui do “antigo e ainda válido circulo hermenêutico” (ECO, 2003, p. 76). Para checar a intentio operis o método proposto pelo filósofo italiano é verificar se a interpretação se adequava ao texto, quando este é visto como um todo coerente. Assim, as sedutoras propostas de Jorge Luis Borges, para que leiamos a Imitação de Cristo como se essa fosse uma obra de Céline, ainda que possa ser vista como estimulante intelectualmente, é rejeitada como uma má leitura, por não encontrar respaldo na obra quando essa é vista em sua totalidade (ECO, 2003, p.76). Nessa dialética entre intentio operis e intentio lectoris qual o espaço e como se configura a intentio auctoris? Essa é a questão que Umberto Eco tenta responder em sua terceira conferência (“Entre o autor e o texto”). Este é um passo fundamental para complementar a proposta do filósofo italiano de uma triangulação necessária ao processo de interpretação e não deixar texto e leitor em uma relação dual. Eco apela para a competência do leitor no sentido de lidar com a linguagem como um tesouro social, o que implicaria em observar não apenas uma determinada língua enquanto conjunto de regras gramaticais, mas também toda a enciclopédia que as relações daquela língua implementaram, ou seja, as convenções culturais que uma língua produziu e a própria história das interpretações anteriores de muitos textos, compreendendo o texto que o leitor está lendo .(ECO: 2003, p.80)
Esta percepção da linguagem como um tesouro social aponta para uma dimensão transcendental de validação que se apóia em um patrimônio comum de pensamentos. É a essa enciclopédia cultural, assim como a coerência do texto como um todo, que se deve recorrer para se definir se uma interpretação é legítima ou não. Quando uma leitura não leva em conta esses fatores não interpretamos o texto: fazemos uso dele. Usos podem servir como exercícios imaginativos ou de fruição, contudo, são leituras que desconsideram a triangulação proposta por Eco como mecanismo falibilista para dizer que uma dada leitura é inválida. Mas quem diz o que é uso e o que é interpretação? A questão de autoridade que emerge da pergunta sobre limites da interpretação permanece aberta4. Se a interpretação válida é a que é sustentada pelo texto, o texto por si só não é verdadeiro nem falso. 40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Ficamos “presos” no inevitável círculo hermenêutico e temos que admitir que não existe nada que nos possa fazer sair dele.
2. O debate das Tanners Lectures
Depois das três conferências feitas por Eco, o texto de Interpretação e Superinterpretação traz as críticas de Richard Rorty e Jonathan Culler e um ensaio de Cristine Brooke-Rose. A intervenção de Brooke-Rose não nos interessa nesse trabalho, uma vez que seu texto não trata do debate teórico, mas da obra ficcional de Umberto Eco, classificando o romance O Pêndulo de Foucault como uma história palimpsesta (realismo mágico). Em verdade, como nos diz Sthepan Colli, as discussões nas Tanners Lectures seguiu acalorada depois das apresentações dos textos destes autores, tendo como tema central a “resistência a exposição convincente da visão pragmatista feita por Rorty” (COLLI, 1993, p. 17). A inquietação se justifica pela maneira provocativa com que o filósofo norte-americano expressa o seu monismo, em que todas as coisas são objeto de uso – num estranho universo, em que todas as pessoas manipulam tudo, mas não são de forma alguma manipuladas – e questões sobre como interpretar a regra são negligenciadas como supérfluas. Rorty em sua exposição, afirma que tentou ler O pêndulo de Foucault como uma sátira antiessencialista, uma paródia do estruturalismo e de sua busca por desvelar na cultura esquemas que funcionariam como os esqueletos para os corpos (RORTY, 1993, p. 105). A atitude de “caridade interpretativa” de Rorty consistiria em ler Eco numa posição de camaradagem, de tal forma que esse autor poderia ser visto como um colega pragmatista. O filósofo norte-americano explica que, com essa leitura de O pêndulo de Foucault queria encaixar Eco na sua própria obsessão: na narrativa semi-autobiográfica que Rorty chamou de “trajetória do pragmatista”. No entanto, ao se deparar com a obra teórica de Eco, Rorty percebeu que essa leitura não poderia se sustentar, já que o pensador italiano mantinha distinções dualistas, como a feita entre uso e interpretação. Para Rorty, tais distinções seriam resquícios de uma postura essencialista aristotélica em relação aos textos e colocaria o mago de Bolonha como mais uns dos que esperam de alguma maneira desvelar o secretum secretorum dos textos. Eco continuaria sendo vítima da obsessão metafísica de tentar construir espantosos sistemas que tentam 41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
descrever a realidade como ela é. A argumentação de Rorty tenta atacar o dualismo uso/interpretação e propor o abandono de questões essencialistas em relação à linguagem. O texto do filósofo americano expõe determinados tópicos de maneira rápida, o que em parte se justifica porque o autor não quis repetir o que havia escrito sobre interpretação em artigos como “Textos e Amostras” e ‘”Investigação enquanto recontextualização: uma avaliação antidualista da interpretação”5, assim como, a diferenciação entre público e privado presente no livro Contingência, Ironia e Solidariedade. Para os objetivos de nosso trabalho, é relevante recorrer a esses textos anteriores para entender melhor a proposta de Rorty e construir um diálogo entre esse autor e Umberto Eco. Para tanto, tratarei inicialmente de como Rorty e Eco criticam a Desconstrução. Nas Tanners Lectures, a defesa de perspectivas desconstrutivistas de crítica literária é feita por Jonathan Culler. Não é tema de nosso artigo tratar detidamente desse embate, porém não poderíamos silenciar a voz de Culler e sua contundente defesa da superinterpretação. A seguir vamos reconstruir a forma como Culller e Rorty lidam com o dualismo interpretativo proposto por Eco e, por fim, trataremos da réplica do filósofo italiano.
2.1 Crítica à Desconstrução
No Dicionário de Filosofia de Cambridge encontramos a seguinte descrição para a desconstrução, demonstração da incompletude ou incoerência de uma posição filosófica, usando conceitos e princípios de argumento cujo significado e uso são legitimados somente por esta posição filosófica. A desconstrução é, portanto, um tipo de análise interna conceptual na qual o crítico implícita e provisoriamente adere à posição criticada (AUDI, 2006, p. 222).
A desconstrução tornou-se uma espécie de movimento a partir da obra do filósofo francês Jacques Derrida (1930-2004), considerado a principal figura do movimento pós-moderno (AUDI, 2006, p. 218). Tanto Umberto Eco quanto Jacques Derrida são herdeiros críticos do estruturalismo: enquanto o filósofo italiano faz a epifania de uma “estrutura ausente” negando a existência de uma “Estrutura objetiva” e falando de “estruturas” que continuamente seriam criadas pela prática interpretativa, o pensador francês não se contenta em denunciar o realismo ontológico do estruturalismo 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
e ataca a pressuposição de um significado transcendental que permearia toda a metafísica ocidental. Na interpretação de Richard Rorty, a obra de Jacques Derrida parte da pergunta, “Admitindo que a filosofia é um gênero de escrita, por que é que esta sugestão encontra tanta resistência?”. Em seu trabalho, o filósofo francês colocaria essa questão de forma mais direta perguntando “O que os filósofos que tem objeções a está caracterização pensam que é escrever, para acharem tão ofensiva a noção que é isso que estão a fazer?” (RORTY, s/d., p. 155). Derrida se voltaria contra uma tradição que escreve contra a escrita, buscando fazer de seu texto uma epifania, uma iluminação teórica que mostra o que é o ser em seu ser, uma escrita que põe fim à própria escrita. Marcaria essa procura por uma escrita que demonstre o ser em seu ser, a ideia do livro como um objeto fechado em si mesmo, que nos traria o tratamento exato de um determinado assunto. Contra esta pretensão, Derrida proclama um textualismo extremo, onde “não há nada fora do texto”, que se junta a uma postura contextualista que aceita o “uso de qualquer texto para interpretar qualquer outro texto” (RORTY, s/d., p.157). Com isso o filósofo francês ataca a ideia de que existam quaisquer “palavras sagradas” no horizonte pré-ontológico, uma linguagem antes da linguagem, que não poderia ser contextualizada ou dita. Para Rorty, Derrida age em relação à linguagem da mesma forma que os secularistas agem em relação a Deus: não apresentam nenhum argumento e apenas lamentam que a palavra seja utilizada com tanta frequência (RORTY, s/d., p. 159). Rorty, em sua tentativa de ver Derrida como um “colega pragmatista”, faz uma leitura desse autor que o percebe como uma espécie de profeta da cultura literária, tomando uma postura que afasta questões epistemológicas e quebra os dualismos da tradição metafísica. Em Consequências do Pragmatismo o filósofo norte-americano chega a identificar pragmatismo e desconstrução dentro do rótulo maior de filosofia pós-filosófica. Contudo, ao se deparar com a questão de como combinar moralidade pública e autocriação privada o pensador norte-americano recua e segrega a desconstrução a essa última esfera: ela não teria utilidade na discussão política, mas seria importante em nossa autoformação romântica e na crítica irônica dos vocabulários tidos como finais. A leitura de Rorty é polêmica, já que a maioria dos que se dizem descontrutivistas procuram na obra de Derrida uma espécie de método. Esta é a posição, por exemplo, de Johatan Culler que, por isso mesmo, não aceita a ideia de Rorty de um 43 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
abandono da epistemologia. Contudo, Culler e Rorty se alinham na crítica aos professores que, como representantes do machismo filosófico, continuam a sustentar que estão buscando a verdade. O filósofo norte-americano celebra a força dessa aliança dizendo que “pode ser que as únicas desculpas que Culler ou eu temos para permanecer no negócio advinham de pedantes adoravelmente antiquados como esses” (RORTY, 1999, p. 120). Rorty e Culler estão unidos contra a ideia de que a verdade é o objetivo da investigação e na crítica à divisão que Eco traça entre uso e interpretação. Contudo, Eco e Culler estão de mesmo lado quando se assombram diante da ideia de Rorty de que deveríamos deixar para trás qualquer forma de estudo acerca de como os textos funcionam e nos contentar em usufruí-los, de modo hobbessiano, guiados por amor ou aversão. Culler critica a ideia de Rorty de que os estudos de literatura teriam como único objetivo ampliar nosso horizonte de identificação ética: “ele consegue imaginar as pessoas usando a literatura para se conhecerem – com certeza um uso importante da literatura – mas não, ao que parece, para descobrir algo sobre a literatura” (CULLER, 1993, p. 140). Culler em seu livro Sobre a Desconstrução: teoria e crítica do pósestruturalismo aponta dois motivos para rejeitar a identificação que Rorty fazia entre pragmatismo e desconstrução: (1) a noção pragmática de verdade como assertibilidade apelaria ao consenso, o que vai contra a prática de leitura desconstrutiva, que aponta para o fato de que tal convenção é feita a partir da exclusão das vozes minoritárias; (2) a atitude do pragmatismo em relação à investigação reflexiva, ao negar que podemos sair de nossa comunidade de referência e que, por isso, não deveríamos colocá-la em questão em nossa investigação, difere da atitude desconstrutivista. A desconstrução, nas palavras de Culler, “repudia a complacência a que o pragmatismo pode conduzir”, lembrando que eles podem estar certos ao afirmar que “a investigação teórica não leva a novos fundamentos”, mas erram ao rejeitar essa tarefa, “pois ela leva, sim, a mudanças em hipóteses, instituições e práticas” (CULLER, 1997, p. 177). A ideia de excluir o debate em torno de estruturas, em favor de um consenso, carnavalescamente construído num diálogo ininterrupto, por meio de um sincretismo em que deixamos para trás o mundo da Verdade única em favor do relativismo literário (RORTY, 1999, p. 105), ignora a questão da hegemonia. Quem diz o que é o consenso ao qual todos devem ser persuadidos/manipulados por “nós” pragmatistas 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
autoindulgentes de democracias liberais ricas? Desta forma, caímos no risco de um conservadorismo, onde o conflito é substituído pela recusa de diálogo e a argumentação cede espaço para imagens reconfortantes. A ideia pragmatista de Stanley Fish e Rorty de comunidades interpretativas e sua negativa de discutir questões teóricas em torno de aspectos epistemológicos é, para Culler, uma tentativa de recolher a escada através da qual esses autores alcançaram reconhecimento acadêmico e impor uma situação onde a questão da hegemonia não entra em jogo. Explica Culler que ao negar uma estrutura pública de debate em que os jovens ou marginalizados pudessem contestar a visão daqueles que atualmente ocupam posições de autoridade nos estudos literários, ajuda a tornar essas posições inatacáveis e na verdade confirma uma estrutura vigente negando que haja estrutura (CULLER,1993, p. 142).
O fato de que podemos usar um determinado programa de computador não significa que ao estudá-lo não possamos o aperfeiçoar: o estudo literário, para Culler, estaria ligado à tentativa de obter esse tipo de conhecimento. Culler ironiza as críticas de Rorty e Eco para com a desconstrução por ambas serem opostas. Enquanto Eco a considera uma perspectiva interpretativa extremamente ligada à posição do leitor, abrindo espaço para uma deriva incontrolável do significado; Rorty acredita que a moda da desconstrução, principalmente quando ligada ao nome de Paul de Man, mantém uma postura epistemologizante que procura desvelar “por trás” da textualidade estruturas que estariam nela, ou seja, a leitura descontrutivista somente identificaria o que já está no texto (CULLER, 1993, p. 143). Rorty não critica a deriva hermenêutica da desconstrução, o problema para ele esta na pretensão de desvelar algo de essencial por meio de um método especial. Culler acredita que as objeções de Rorty são mais acertadas que a de Eco: o filósofo italiano teria perdido seu foco por conta de sua obsessão por limites ou fronteiras (CULLER,1993, p. 143). Explica Culler que para a desconstrução “o significado é limitado pelo contexto – em função de relações internas ou entre textos – mas que o contexto em si é ilimitado” (idem), deste modo, sempre existem novas possibilidades de recontextualização e não podemos estabelecer limites. Quanto à crítica de Rorty, Culler a considera pertinente: para ele a desconstrução não quer mesmo jogar fora os dualismos da filosofia ocidental nem superar a metafísica, sua tarefa estaria orientada a questionar pressupostos e desconstruir as tentativas ilusórias de superar toda superação. Poderemos perceber melhor a diferença entre Rorty e Culler no modo de lidar com os dualismos no próximo
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tópico, quando trataremos do modo como estes autores avaliaram a distinção usointerpretação proposta por Eco.
2.2 Sobre visões dualistas da interpretação
Em sua intervenção, Jonathan Culler se propõe a defender o que Umberto Eco havia chamado de superinterpretação (overinterpretation). A argumentação de Culler quanto a este tópico é convincente e aponta para o fato de que a “superinterpretação é mais interessante intelectualmente do que a interpretação “segura” e moderada” (CULLER, 1993, p. 131). O “excesso de assombro” que estaria presente em leituras desse tipo, representa para Culler uma postura de curiosidade intelectual que é muito útil e deveria ser estimulada em meios acadêmicos. O desconstrutivista norte-americano acredita que Eco desenvolve uma falsa analogia ao pensar na interpretação como algo que produziria em excesso resultados adversos: como se fosse uma forma de alimentação que depois de um certo nível traria efeitos colaterais. Para Culler, as interpretações falham muito mais por falta de assombro, quando ocorre uma “subinterpretação”, levando em conta apenas poucos elementos do contexto analisado, do que quando ocorre o contrário. Culler acredita que o dualismo que Eco descreve entre uso e interpretação poderia ser substituído, com vantagens, pelo dualismo proposto por Wayne Both entre compreensão (understanding) e supracompreensão (overstanding). Para comprender um texto deveríamos ter em relação a ele uma atitude como a que Eco pede de seu leitormodelo, fazendo ao texto as perguntas que ele propõe. Já quando propomos ao texto perguntas que ele não propõe construímos dele uma supracompreensão. A supracompreensão pergunta pelo que a obra pressupõe, não diz, suprime etc. Desse modo, Culler pretende mostrar que o que Eco chama de “excesso de assombro” é um caminho frutífero para a critica literária, como atestam suas melhores obras ou mesmo o trabalho do pensador italiano. O que explica a analogia de Eco entre o hermetismo e as teorias
críticas
pós-modernas
senão
uma
atitude
de
supracompreensão/
superinterpretação? Já Richard Rorty não pode aceitar o dualismo entre uso e interpretação postulado por Umberto Eco. Esse tipo de divisão traria resquícios essencialistas que repõe a separação entre algumas frases que seriam consideradas mais certas que outras. 46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Os dualismo analítico/sintético e esquema/conteúdo acenariam como pressuposto da posição de Eco. Tal postura contradiz a posição antiessencialista, naturalista e holística que Rorty defende a partir de sua interpretação da filosofia da linguagem de Quine e Davidson. Na perspectiva pragmática, no processo de investigação o pensamento se move entre a dúvida e a certeza como através de um espectro que parte do branco para o preto: tentar estabelecer o limite exato onde começa o cinza é uma tarefa ingrata para a qual não possuímos critério algum (PALÁCIOS, 1996, p. 32). Como observa Rorty, “não se pode formular uma regra sem dizer o que supostamente seria quebrá-la” (RORTY, 1997, p. 117), se não possuímos esse tipo de critério a própria questão sobre limites da interpretação é vista como inútil. Seguindo essa direção pragmática, diante de qualquer dualismo, o filósofo norte-americano tenta desenvolver uma redescrição holística, interpretando-o como um esboço “momentaneamente conveniente de regiões ao longo de um espectro, ao invés de uma recognição de uma divisa ontológica, ou metodológica, ou epistemológica” (RORTY, 1997, p. 119). É esse tipo de dissolução que Rorty tenta fazer com a distinção entre uso e interpretação. A argumentação de Rorty segue o mesmo caminho que o autor norteamericano traçou no artigo “Textos e amostras”, quando tentou dissolver a distinção feita por E. D. Hirsh entre significado, visto a partir do texto em sua integra, e significância, que seria o significado do texto quando visto a partir de outros contextos (RORTY, 1997, p. 122). Para Rorty, as divisões propostas por Eco e Hirsch se assemelham por tentar separar propriedades relacionais e propriedades não-relacionais. Para a visão pragmatista naturalista de Rorty, uma crença só pode ser substituída por outra crença, de tal modo que, não podemos conceber propriedades intrinsecamente não-relacionais, assim como não existe espaço para a divisão entre fato e linguagem, signo e não-signo, natureza e cultura. Em sua argumentação contra Hirsch, Rorty tenta turvar o dualismo entre textos e amostras. Para este, tradicionalmente se pensa no conceito de objetividade a partir do modelo do tratamento que a ciência natural dá para amostras, enquanto a ideia de interpretação é debatida quando se fala de textos. A ideia de Rorty é que, insistindo no paralelismo na maneira de lidar com textos e amostras, a maioria das controvérsias em torno da objetividade da interpretação poderiam ser eliminadas (RORTY, 1997, p. 119). Para tanto, Rorty elaborou como artifício heurístico uma espécie de quadro em que coloca em paralelo textos e amostras e desenvolve um espectro em relação à forma de 47 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
lidar com eles:6 TEXTOS (coisas feitas) AMOSTRAS (coisas encontradas) Significados de “significado” Significados de “natureza” I. Os caracteres fonéticos ou gráficos de uma I. A aparência sensorial e a alocação espaço inscrição (a filologia está aqui em questão). temporal de uma amostra (a busca por evitar as ilusões da percepção é o foco aqui). II. Como o autor responderia, sob condições II. A essência real da amostra que se ideais, à questão sobre a inscrição que está espreita por detrás de suas aparências – expressa em termos que ele pode entender de como Deus ou a natureza descreveriam a chofre. amostra. III. Como o autor responderia sob condições III. A amostra enquanto descrita por aquele ideais, a nossas questões – questões para as setor de nossa ciência “normal” que é quais ele precisaria ser reeducado se as especializada em amostras desse tipo (por quisesse entender (pensando, por exemplo, exemplo, uma análise de rotina feita por um em um primitivo que viesse a ser educado químico, ou a identificação de rotina feita em Cambridge, ou em um Aristóteles que por um biólogo). tivesse assimilado Freud e Marx), mas que são facilmente inteligíveis para uma comunidade interpretativa dos dias de hoje. IV. O papel do texto em algumas das visões IV. A amostra enquanto descrita por um revolucionárias de uma pessoa qualquer revolucionário científico, ou seja, por acerca da sequência de inscrições à qual o alguém que quer refazer a química, ou a texto pertence (incluindo sugestões entomologia, ou qualquer outra área do revolucionárias sobre que sequência é essa) - saber científico, de tal modo que as análises por exemplo, o papel de um texto de químicas ou taxionomias biológicas Aristóteles em Heidegger, ou de um texto de correntemente “normais” são reveladas Blake em Bloom. como “meras aparências”. V. O papel do texto sobre algumas das visões V. O lugar da amostra, ou desse tipo de de uma pessoa qualquer acerca de algo amostra, na visão de uma pessoa qualquer, diverso do “gênero” ao qual o texto pertence quando essa visão é diversa da visão da – por exemplo, sua relação com a natureza ciência a que essa amostra tem sido do homem, os propósitos de minha vida, os assinalada (por exemplo, o papel do ouro na políticos de nossos dias e assim por diante. economia internacional, na alquimia do século XVI, na vida fantasiosa de Alberich, e assim por diante, enquanto oposto a seu papel na química). O quadro teria em seu lado esquerdo significados de “significado” e do lado direito significados de “natureza”, contrapondo diversas formas de tratar textos e amostras. Rorty explica seu quadro dizendo que no nível I teríamos algo como o dado (o texto de Aristóteles é apenas uma coisa “que é encontrada em uma certa página, tendo uma forma visual quando impressa nessa fonte”) (RORTY, 1997, p. 123); no nível II teríamos a “intenção do autor” ou a essência do real; no nível III a interpretação que por exemplo Werner Jaeger faz de Aristóteles colocando-o no contexto das interrogações contemporâneas ou um exame de rotina feito por um bioquímico; no nível 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
IV teríamos uma amostra sendo tratada por um revolucionário científico ou Aristóteles sendo lido por Heidegger; já no nível IV os textos e as amostras seriam tomados pragmaticamente em relação aos propósitos de uma pessoa qualquer. A diferença primordial entre textos e amostras apareceria quando observamos o nível II do quadro: enquanto não faz sentido pensar em “essências reais” quando se fala em amostras, a ideia de intenção do autor pode ser de algum interesse quando falamos de textos. Para Rorty, a única diferença interessante entre textos e amostras “é que não sabemos como formar e defender hipóteses sobre as intenções do autor no primeiro caso, mas não no outro” (RORTY, 1997, p.121). As amostras só podem ser analisadas nominalmente, por meio de descrições linguísticas, dessa forma, a idéia do realismo ontológico de buscar conhecimento perfeito é uma tentativa desafortunada de transferir para as ciências naturais o modo de “conhecimento simpático, que nós ocasionalmente temos, do estado mental de outra pessoa” (RORTY, 1997, p. 122). Para Rorty, é um erro tentar privilegiar um nível de análise ou considerar que nalgum exista algo de intrinsecamente mais relevante ou perguntar pelo que permanece o mesmo em qualquer nível de análise. O que é necessário é o saber-fazer que nos possibilite nos movermos de um nível para o outro de acordo com nosso objetivo e não a procura de substratos eternos. Rorty acredita que ao invés de buscar esse tipo de visão essencialista deveríamos “dissolver tanto os textos quanto as amostras e transformá-los em “nós” dentro de tramas transitórias de relacionamento” (RORTY, 1997, p. 124). Para Rorty, a epistemologia não pode fornecer critérios que nos permitam dizer que uma determinada interpretação é melhor que outra. Isso somente poderá ser decidido pelo tempo, não mais na chave metodológico-ontológica, mas na ético-política (RORTY, 1997, p. 149). Para o filósofo norte-americano, o teste de uma determinada teoria, seja ela sobre a justiça, sobre o significado ou sobre a verdade estaria em “sua capacidade de ser coerente com a melhor obra que esteja correntemente sendo feita, por exemplo, tanto em bioquímica quanto em critica literária” (RORTY, 1997, p. 126). O principal argumento de Rorty contra a distinção feita por Eco entre uso e interpretação é de que não podemos falar da coerência interna de um texto de um modo independente da leitura que fazemos dele, ou seja, a distinção entre intentio operis e intentio lectoris não é clara. Para o filósofo norte-americano a coerência de um texto é construída pela leitura tendo em vista o objetivo a que esta se propõe. Uma leitura semiótica ou desconstrutiva ofereceria apenas mais um contexto em relação ao qual o texto poderia ser descrito, mas em nada desvelaria algo como a essência real do que ele 49 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
diz. Aplicando seu holismo entre textos e amostras, Rorty argumenta utilizando exemplos de “objetos não-flexíveis”, com o intuito de atacar a ideia aristotélica de que existiriam para cada objeto características mais ou menos essenciais que teriam aplicações “objetivas” e usos “subjetivos”. Rorty ironiza a ideia de que usar uma chave de fenda para fixar parafusos seria sua “função objetiva”, enquanto utilizá-la para abrir caixas de papelão ou para coçar os ouvidos seriam imposições de nossa subjetividade.7 Essa distinção subjetividade-objetividade não tem grande valia de um ponto de vista pragmático: mais importante é saber o que estamos querendo fazer e como podemos fazê-lo. Outro exemplo que Rorty oferece é o do uso de um programa de computador como um editor de textos: podemos muito bem tentar usar um para fazer nossa declaração de renda. Para nos demover desse propósito pouco adianta que nos expliquem algo sobre as sub-rotinas utilizadas no desenvolvimento do programa: mais fácil seria mostrar que existe outra ferramenta mais adequada para esse propósito e que a utilizando economizaríamos tempo. O pragmatista norte-americano faz um paralelo entre a ideia de tentar desvelar “como um texto funciona” e “como um programa funciona”: ambos os conhecimentos seriam inúteis para a maioria das aplicações práticas de programas e textos. Para Rorty, não devemos tratar textos como algo que possui uma essência não relacional, pare ele Ler textos é uma questão de lê-los à luz de outros textos, pessoas, obsessões, informações, ou o que quer que for, e depois ver o que acontece. O que acontece pode ser algo fantástico e idiossincrático demais para nos preocupar – como provavelmente é o caso de minha leitura de O pêndulo de Foucault. Ou pode ser estimulante e convincente, como quando Derrida justapõe Freud e Heidegger, ou quando Kermode justapõe Empson e Heidegger. Pode ser tão estimulante e convincente que se tem a ilusão de que se está vendo agora do que realmente trata um determinado texto. Mas o que estimula e convence é uma função das necessidades e propósitos daqueles que são estimulados e convencidos. Por isso me parece mais simples descartar a distinção entre uso e interpretação, e apenas distinguir os usos feitos por diferentes pessoas para diferentes propósitos. (RORTY, 1993, p. 124)
Contra a proposta naturalista de interpretação, Rorty indica dois tipos de argumentos: o da tradição aristotélica que separa o agir e o teorizar; e da distinção kantiana entre valor para as coisas e dignidade para as pessoas, que apontaria para a imoralidade de usar instrumentalmente uma produção humana como um texto (tratado então como uma pessoa honorária). Ambas as objeções não fazem sentido da perspectiva pragmática que Rorty defende. Para o filósofo norte-americano não existe nenhuma “distinção filosófica interessante entre explicação e entendimento, ou entre explicação e interpretação” (RORTY, 1997, p. 148). Exaltando a “espontaneidade à 50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
custa da receptividade”, Rorty não quer traçar nenhuma distinção entre aparência e realidade, abrindo espaço para a imaginação e para a construção de novas recontextualizações. O único dualismo que Rorty considera relevante, ainda que tomado também como um espectro, é o entre a leitura metódica (que já tem um fim definido) e a leitura inspirada (que procura inventar seu próprio fim, não possuindo a priori esse alvo). O que há de interessante nessa divisão rortyana é o fato de denunciar o aspecto prosaico de leituras baseadas em certos padrões críticos metodológicos que se prendem em demasia a mostrar o domínio de uma técnica (psicanálise, análise do discurso, semiótica, desconstrução etc.) pouco se importando com o texto que está “enquadrando”. Contrapondo-se a escolástica decadente destes modos de lidar com textos, Rorty defende que a leitura deve ser motivada por algum tipo de identificação, um sentimento de amor ou de ódio que permita que nós mesmos entremos em jogo e não o método. Para Rorty, é quando tentamos buscar um método privilegiado, uma teoria que nos corrija o olhar, que caímos no ocultismo por acreditarmos estar adquirindo a chave de todos os segredos, criando uma grande diferença entre “entender algo corretamente e torná-lo útil” (RORTY, 1993, p. 127). 2.3 A réplica de Umberto Eco: “Isso não é uma mula!”.
Em sua réplica, Umberto Eco se ocupa basicamente de tentar refutar a posição de Richard Rorty. Com sua costumeira ironia, o filósofo italiano defende com veemência a idéia de que ao analisar textos não podemos nos furtar de fazer referência a um nível meta textual. Eco flagra Rorty tomando esse tipo de atitude quando o filósofo norte-americano aponta possíveis incoerências entre a obra teórica e a obra ficcional do pensador italiano. Implicitamente, o que sustenta essa objeção de Rorty é a procura de uma “estrutura comum”, uma regra que fundaria todos os textos de Eco. Também é pressuposto do pragmatista norte-americano a idéia de que podemos tratar todos os textos de um mesmo autor como se esses fizessem parte de um corpo textual que deveria ter algum principio de harmonia. Rorty estaria então procurando questionar a coerência de algo que funcionaria como um esqueleto para os textos de Eco. Para o escritor italiano, buscar esse tipo de visão panorâmica que “une as partes com o todo” é uma atitude que não pode ser censurada, já que seria mesmo uma espécie de necessidade da inteligência humana. Um tipo de postura de questionamento de 51 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
pressupostos que é intelectualmente necessário, estando presente na escritura de obras como A Filosofia e o Espelho da Natureza: como apontou Jonathan Culler, ao se negar a discutir fundamentos, Rorty quer jogar fora a escada pela qual conseguiu alcançar sua posição de prestígio no meio acadêmico. Para Eco, a distinção feita por Rorty entre textos metódicos e textos inspirados não é pertinente. O pensador italiano não vê distância em termos de criatividade entre Kant, Sófocles, Aristóteles ou Goethe: a diferença entre eles estaria na atitude proposicional, entre o texto teórico, que na maioria das vezes busca apontar para uma conclusão coerente e o texto estético, que vive de sua abertura para a pluralidade de interpretações, dentre as quais, seus leitores podem optar. Eco pondera que podem existir tanto textos teóricos abertos, assim como textos criativos que apontam para uma conclusão. Eco parece ter em vista aqui uma distinção entre discurso sério e não-sério, semelhante a que está presente nos debates entre Searle e Derrida: não podemos propor seriamente a ausência de diferença entre discurso sério e não-sério. Contra a tentativa feita por Rorty de turvar a distinção entre intentio operis e intentio lectoris, Eco toma como contraexemplo a leitura que o autor norte-americano faz de seu romance O pêndulo de Foucault. Rorty não está lidando com a textualidade em geral, mas com uma determinada obra, que tem Umberto Eco como autor empírico: o texto continua sendo um parâmetro para determinar se sua interpretação é aceitável ou não (ECO,1993, p. 166). Eco procura mostrar que Rorty fez uma leitura parcial de seu romance, prestando atenção somente aos exemplos em que se satiriza a paranoia dos que buscam desvendar um “Plano” que encobriria o “segredo dos segredos” e deixando de lado as críticas aos excessos de interpretação desenvolvidos nos diálogos entre Lia e Causabon. Eco confessa que nestes diálogos apresentava suas próprias conclusões e esperava que eles apontassem para o que ele, como autor empírico, pretendia que fosse a conclusão didática do romance. A leitura passional feita por Rorty oculta o fato de que o filósofo norteamericano sabia que poderia ter lido o texto de outras maneiras, respeitando “outros aspectos evidentes da manifestação textual linear” (ECO, 1993, p. 167). Apesar de sempre sermos influenciados pelas paixões em nossas leituras, Umberto Eco acha necessário que não limitemos nossa percepção da obra à reação afetiva. Podemos ler um romance aos vinte anos e adorar certo personagem que consideraríamos aos quarenta detestável: para além desse tipo de apreensão sentimental, existe a textualidade da obra 52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
que pode ser utilizada para se questionar como o texto possibilitou a dupla leitura (ECO, 1993, p. 168). Em sua intervenção Johathan Culler lembrou o teórico francês Roland Barthes, para quem “as pessoas que não releem condenam-se a ler a mesma história em todos os lugares” (CULLER, 1993, p. 145), presas em sua interpretação aos aspectos que lhes provocam fácil identificação, reconhecendo somente “o que já pensam ou sabem” (CULLER, 1993, p. 145). Sendo assim, um tipo de leitura que acolhe ou regurgita sumariamente o que analisa, tomando por base ódio ou amor, é de pouca valia para que ocorra uma ampliação do “nós”, como Rorty espera que a literatura funcione em sua utopia liberal. Se não frequentamos a obra com o olhar atento para compreender o que ela pode nos oferecer de diferente, perdemos a possibilidade de utilizar a literatura como um mecanismo de ampliação da identificação moral. Eco concorda com a afirmação do filósofo norte-americano de que “toda propriedade que imputamos é não intrínseca, mas relacional” (ECO, 1993, p. 168), no entanto, o autor italiano pondera que sempre estamos falando de uma determinada relação. Para garantir alguma forma de objetividade Eco volta a defender uma forma de “triangulação” no trabalho interpretativo, que leve em conta (1) a textualidade da obra; (2) a intenção do leitor e (3) a enciclopédia cultural em que a obra se inscreve. O autor insiste na importância deste último ponto: seria a aceitação por parte da comunidade interpretativa que ofereceria uma espécie de garantia de que as hipóteses interpretativas são aceitáveis. A sociedade deve educar seus membros para que eles reconheçam que tipo de conjectura deu bons resultados no passado. Isto inclui tanto prevenir as crianças para não brincarem com fogo ou facas, quanto tomar cuidado para com as utopias geniais, mas impraticáveis, como por exemplo, eram para seus contemporâneos os visionários projetos de Leonardo da Vinci de máquinas voadoras. Eco lembra que assim como existem pertinências absurdas, existem pertinências impossíveis: quando Rorty diz que poderia coçar o ouvido com uma chave de fenda, descreve uma ação que a maioria da comunidade provavelmente não recomendaria tomando por absurdo; já, tentar classificar uma chave de fenda como algo redondo é impossível. O exemplo mostra que não é verdade que tudo serve: só podemos considerar relevantes as características detectáveis por um observador normal – mesmo que ninguém as tenha detectado até então – e só podemos isolar as características que parecem perfeitamente relevantes ao ponto de vista de um determinado propósito (ECO, 1993, p. 170).
Eco indica para uma diferença pertinente no modo de relacionar textos e amostras e os juízos da comunidade interpretativa. Seguindo Peirce, sabemos que ao 53 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
lidar com “coisas encontradas” procuramos gerar em relação a elas hábitos de ação que sejam capazes de prever seu comportamento em determinadas condições. Se depois de muitas tentativas se percebe que a idéia da comunidade de alquimistas de que poderíamos transformar ossos humanos em ouro não consegue alcançar o resultado esperado, qualquer de seus membros pode negar a validade da hipótese. Já quando estamos falando de coisas como interpretações de textos, a questão se desloca, porque lidamos com interpretações anteriores do mundo e também porque seus resultados não podem ser testados por meios intersubjetivos (ECO, 1993, p. 175). Ainda assim, podemos falar de graus de aceitabilidade para as interpretações, na medida em que a comunidade considera suas hipóteses mais ou menos fundamentadas. Estudar como um texto funciona nos permite compreender quais aspectos podem ser tomados como pertinentes “para uma interpretação coerente” (ECO, 1993, p. 171), e quais aspectos são tidos como marginais. Eco repete o argumento de Culler de que estudando como as regras funcionam poderíamos aperfeiçoar nossa forma de lidar com textos e programas de computador. Além disso, acrescenta que saber como textos funcionam não serve apenas para que os escritores escrevam melhor: esse tipo de conhecimento seria uma genuína fonte de prazer, ainda que diferente do gozo de quem usa os textos como mescalina e se deixa levar pelo “deboche do pensamento” (o “play of musement” de Peirce), identificando beleza e diversão, sem buscar ou questionar qualquer saber. O filósofo italiano abraça uma espécie de darwinismo cultural como meio para avaliar se uma interpretação é bem sucedida ou não. Para Eco interpretações poderiam ser reconhecidas como ruins “porque são como uma mula, isto é, incapazes de produzir novas interpretações ou por não poderem se confrontadas com a tradição de interpretações anteriores” (ECO, 1993, p. 177). Para Eco é justamente porque é possível esse tipo de avaliação por parte da comunidade que faz sentido autores como ele, Rorty, Culler e Brooke-Rose contraporem suas opiniões em debates como os dessa Tanners Lectures.
3. Conclusão
Em sua réplica, Umberto Eco deixa de fazer uma divisão rígida entre uso e interpretação, chegando mesmo a concordar com Culler quanto à importância teórica da 54 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
superinterpretação. O autor dá ênfase como grande critério para separar boas e más interpretações à avaliação da comunidade interpretativa, o que faz com que Eco se aproxime de Rorty e se afaste da posição desconstrutiva. Contudo, Eco ataca o holismo naturalista de Rorty, ao insistir na existência de características mais ou menos pertinentes na avaliação de um texto ou amostra. Neste ponto se encontra para mim o cerne da disputa entre Eco e Rorty: a afirmação do filósofo norte-americano de que a maioria de nossas crenças é verdadeira, mas nunca podemos ter certeza de quais são falsas, é anti-intuitiva, já o pensador italiano, ao rejeitar essa perspectiva holista repõe a divisão entre sentenças mais ou menos corretas e com elas a divisão esquema-conteúdo. Com Rorty lidamos diretamente com os textos, mas ficamos cegos epistemologicamente, já que não temos nenhum critério objetivo (para além de nossa comunidade interpretativa) para avaliar interpretações. Para garantir a possibilidade da verdade objetiva existe a necessidade de que o falante, no ato de comunicação, leve em conta a concepção que o intérprete tem de suas palavras, assim como no diálogo entre leitor e autor é necessário construir a intentio operis. Neste ponto, a teoria semiótica da interpretação de Umberto Eco se assemelha à posição de Donald Davidson contra Rorty: é preciso desenvolver algum tipo de triangulação para que as possibilidades de conhecimento sejam preservadas. 8 Sem este tipo de diálogo não é possível qualquer forma de consenso e corremos o risco de cair em um solipsismo renovado (que dá espaço para o relativismo total). Com Eco retomamos a distinção esquema-conteúdo e a divisão entre um plano de constituição semântica e um plano de avaliação epistemológica e assim, garantimos a possibilidade de dizer que certas interpretações são impossíveis. Esse tipo de divisão esquema-conteúdo é mesmo fundamental para se pensar a semiótica, assim como, para que a tarefa de crítica às “regras” da comunidade possa ser tomada como relevante. O problema da perspectiva de Eco está em seu apelo ao instituído, que pode gerar um conservadorismo dogmático, que anteciparia uma negativa a qualquer projeto de inovação: o pensador italiano, apesar de suas ressalvas em sentido contrário, aproximar-se-ia de ser mais apocalíptico do que integrado. A busca por restringir qualquer traço de intencionalidade é uma forma de tornar o método mais importante que a investigação e suas motivações. Esse aspecto é negligenciado pela posição de Eco e primordial na visão de Rorty: a intenção da leitura, que se liga a pergunta “Que quero fazer com esse texto?”. Essa interrogação anda lado a lado com a percepção dos pressupostos da comunidade interpretativa na qual o intérprete está inserido. 55 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Podemos dizer que Rorty está preocupado em garantir a liberdade de criação e interessado em abrir espaço para a imaginação; já Eco preocupa-se com possibilidades de avaliação e procura critérios para preservar a racionalidade. Os dois concordam em que para avaliar a criação e avaliar a avaliação temos como único critério o tempo (em uma perspectiva de darwinismo cultural): o importante é que a interpretação não seja como uma mula, ou seja, estéril. Referências: ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago”. In: A Utopia Antropofágica. São Paulo: Globo: Secretária de Estado da Cultura, 1990. AUDI, R. Dicionário de Filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus, 2006. BORGES, Jorge Luis. Obras Completas de Jorge Luis Borges. vol.1. São Paulo: Globo, 1998. CAESAR, Michael. Umberto Eco: Philosophy, Semiotics and the Work of Fiction. S/d. Polity Press, 1999 CULLER, J. Sobre a Desconstrução: teoria e crítica do pós-estruturalismo. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Ventos, 1997. ECO, Umberto. Os limites da Interpretação. 2ª ed. São Paulo Perspectiva, 2004. [1990] _________. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. _________. Kant e o Ornitorrinco. Rio de Janiero: Record, 1998. _________. O pêndulo de Focault. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1989. LOPES, Marcos Carvalho. Sobre limites da interpretação: um debate entre Umberto Eco e Richard Rorty. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Ciências Humanas e Filosofia, 2007. _____. “Umberto Eco: da Obra Aberta para os limites da interpretação”. In: Redescrições – edição comemorativa. Rio de Janeiro: Multifoco, 2010. PALÁCIOS, Gonçalo Armijos. “Peirce e a refutação do ceticismo”. Filósofos. UFG, ICHL. v.1 n.2 Goiânia: UFG, 1996. p.67-89. PINTO, Júlio Pimentel. A leitura e seus lugares. São Paulo: Estação Liberdade, 2004 RORTY, Richard. Ensaios sobre Heidegger e outros. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999. _______. Objetivismo, Relativismo e Verdade. Rio de Janeiro: Relume: Dumará, 1997. _______. Consequências do Pragmatismo. (Ensaios: 1972-1980). Lisboa:Instituto Piaget. s/d. SCHIFFER, Daniel Salvatore. Umberto Eco: o labirinto do mundo – uma biografia intelectual. São Paulo: Globo, 2000. SILVA FILHO, Waldomiro José da. “Davidson, a Metáfora e os Domínios do Literal.” In: Utopia y Práxis Latinoamericana. Año 6, n. 15 . 2001. _________. “Porque não sou relativista”, Ideação. Feira de Santana, n.11, p. 73, jan. Junho. 2003. Notas 1. Poderíamos reconhecer elementos dessa semiose hermética na proposta antropofágica de Oswald de Andrade, que apontava para o irracionalismo bárbaro como a forma genuína de pensar no Brasil: 56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
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“Filiação. O contato com o Brasil Caraíba. Ou Villegaignon print terre. Montaigne. O homem natural. Rousseau. Da Revolução Francesa ao Romantismo, à Revolução Bolchevista, à Revolução Surrealista e ao bárbaro tecnizado de Ketserling. Caminhamos. /Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará./ Mas nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós” (ANDRADE: 1990, p. 48.). Não é a toa que Eco chama o Brasil de selva das semelhanças em seu romance O pêndulo de Foucault. Julia Kristeva toca com clareza o problema do entrecruzamento entre a dimensão melancólica e abertura para construir o diferente “A semiologia, que se interessa pelo grau zero do simbolismo, é inevitavelmente levada a esse interrogar não somente sobre o estado amoroso, mas também sobre o seu obscuro corolário, a melancolia, para constatar ao mesmo tempo que, se não existe escrita que não seja amorosa, não existe imaginação que não seja, aberta ou secretamente, melancólica.”(KRISTEVA: 1989, p. 13 ). Dessa forma, é da insatisfação com o mundo a sua volta que surge a imaginação, que tem sempre traços de melancolia. Se a pergunta que move o livro de Eco O pêndulo de Foucault é a sobre “quanto de interpretação pode alguém tolerar sem cair presa de alguma síndrome de conspiração?”, poderíamos reescrevê-la em termos que consideram a fala de Kristeva questionando quanto de melancolia a interpretação pode suportar sem tornar-se esquizofrênica. Diante das encenações (topics) que o leitor propõe em sua leitura (a partir de questões como “De que diabos estão falando?” e abduções, “Provavelmente estão falando disto”) constitui-se certo nível de isotopia, de coerência interpretativa. A ideia de isotopia semântica relevante não determina que existe uma leitura essencial do texto, mas que ele permite validar certas inferências e negar outras. Embora o texto possa estar aberto para infindáveis leituras, nem todas serão consideradas válidas. c.f CAESAR: 199, p.150-151. Ambos publicados em RORTY, 1997 O quadro a seguir foi adaptado a partir de RORTY, 1997, p. 120-121. A ideia de coçar o ouvido com uma chave de fenda parece ter sido um arroubo oral de Richard Rorty. Posteriormente o filosofo norte-americano teria pedido ao editor que retirasse o exemplo da versão final de seu texto. Isso explica por que Eco em sua réplica cita essa proposta como absurda. Eco relembra tal exemplo em sua obra Kant e o Ornitorinco. (ECO, 1998, p. 48 ). A semelhança entre Umberto Eco e Donald Davidson neste ponto é destacada pelo filósofo Waldomiro José da Silva Filho em uma nota de seu artigo “Davidson, a metáfora e os domínios do literal” (2001). Assim como, no artigo “Por que não sou relativista?” (2003) o filósofo afirma a necessidade de um processo de triangulação como o defendido por Davidson para salvar o pragmatismo atual da ameaça relativista.
Recebido em 07/06/2012 Avaliado em 16/06/2012 Aceito em 18/06/2012
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Tradução
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UM ASSUNTO DELICADO: Incorruptible Flesh de Ron Athey1 Jennifer Doyle
Ron Athey encenou Incorruptible Flesh: Dissociative Sparkle em Nova Iorque em primeiro de maio de 2006. Nesta obra Athey deita por seis horas em uma plataforma feita de grandes cilindros de metal. Seu corpo está coberto de loção para bronzear e vaselina. Ele está empalado por um taco de beisebol. Ganchos presos em tiras de couro perfuram vários pontos do seu rosto para retrair a pele transformando a sua face em uma dolorosa máscara. Seu saco escrotal está cheio de líquido – o que o transforma em uma massa feminina, aquosa e cor-de-rosa2. Em seu texto sobre o artista, Amelia Jones observa que as performances de Athey exploram uma “ética de incorporação” que se inicia com um “despojamento do corpo”, liberando o corpo masculino, em particular, dos códigos da norma patriarcal para insistir na sua permeabilidade, sua fragilidade e adaptabilidade. Mary Richards, de forma semelhante, descreve Athey como um artista anti-fálico que reapresenta seu corpo que vasa e é penetrável e vulnerável3. De fato, nesta performance, Athey está engordurado, inflado e violado. Adentrando o espaço, o recepcionista da galeria avisa aos espectadores que eles podem tocar o artista usando luvas e vaselina como lubrificante. Globos de discoteca fazem a galeria brilhar. Isto é a única coisa que Athey pode ver. Na realidade, os ganchos puxam sua pele para trás para que seus olhos permaneçam abertos – ele pode apenas olhar fixamente para o teto, sem piscar. Eu permaneci durante todo o tempo da apresentação pingando soro nos seus olhos. A maior parte do tempo, a plateia permanece à distância observando uma pessoa ocasionalmente colocando luvas e se aproximando do corpo do artista. O verdadeiro “show” nesta performance não é o corpo de Athey, mas nossa relação partilhada com este corpo. Para Francesca Alfano Miglietti, as performances de Athey exploram “a maneira complicada, sutil, desconcertante, aprendida e aconchegante que nos torna visíveis uns aos olhos dos outros”4. Isto é verdadeiro em Dissociative Sparkle, mas o circuito não é formado entre o artista e seus espectadores, e não é uma cena alegre com a qual todos se identificam e trocam olhares cúmplices. Athey pode ser visto pela plateia, mas neste trabalho, ela não pode ser vista por ele. A conexão com o público é interrompida pelo fato de que Athey não pode ver os espectadores. Ao se aproximar da mesa, você se dá conta que ela é relativamente alta e que o rosto de Athey está preso à 59 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
estrutura da cama, limitando a sua visão ao espaço diretamente acima e em frente dele. A situação de Athey (deitado e penetrado) é completamente visível, mas as suas sensações (eu imagino uma dor e um desconforto alucinógenos e um tédio meditativo) não estão disponíveis para a audiência (sem uma troca de olhares, é difícil confirmar o que supomos que ele esteja “sentindo”, podemos apenas especular de forma empática). Temos um acesso desconcertante ao seu corpo. O corpo é apresentado de forma agressiva ao espectador, mas o acesso é regulado de forma estrita. Uma violência erótica e um corpo são associados a uma desfiguração – ele se recusa a oferecer o rosto como um ponto em que o espectador possa focar5. Este trabalho explora uma violência social latente contra o corpo e, ainda mais, associa um corpo “sem rosto” com sexo6. A suspensão do corpo de Athey entre um globo de discoteca e um taco de beisebol sugere as conexões de medo e desejo entre heterossexuais e gays, entre a masculinidade fóbica e a queer. Mas Incorruptible Flesh: Dissociative Sparkle não representa literalmente um ataque homofóbico. Um ato violento é evocado e transformado neste tableau vivant – invocado e encenado como uma fantasia erótica sado-masoquista. Entrando na sala somos confrontados com um corpo se acomodando a uma situação impossível. Quando nos aproximamos do corpo nu, perfurado, imobilizado, inflado e empalado de Athey, esperamos o acontecimento de algo dramático. Mas o encontro é estranhamente anticlimático. O toque não produz um insight, nem uma mudança epistemológica. Durante a performance, nossa relação com a exibição de Athey se acomoda, nos reconciliamos com o seu estado e começamos a participar de uma manutenção coletiva do seu corpo. Dissociative Sparkle incita nossa participação na sua trama. Você é um espectador? Um assistente? Um supervisor? Um enfermeiro? Você precisa desviar o olhar? A performance ativa os circuitos de prazer e desejo que percorrem as cenas de submissão e poder. A performance é visivelmente sexual, mas sua relação com o prazer sexual é prolongada de forma dolorosa. O desconforto do corpo do artista desperta o nosso desconforto e força a distração da nossa atenção para outro lugar. Nossas mãos passeiam pelo corpo de Athey apenas porque não sabemos o que mais podemos fazer. O mais estranho nesta performance não é a exibição do corpo de Athey, mas o hesitante movimento coletivo em direção a esse corpo, em direção a Athey. Minha experiência da performance foi modulada por minha função de prestar 60 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
cuidados. A cada dez minutos ele precisava que pingassem soro fisiológico nos seus olhos. Demorei a perceber que isso fazia parte da performance – pelo menos no sentido de que oferecia à audiência uma pista de como preservar o seu corpo. Eu fui convocada a exercer um papel que é recorrente nas obras de Athey – o de uma assistente, geralmente feminina (que pode ser Athey em drag) cujas ações, como Lydia Lunch observou, podem “ilustrar a natureza cruel e impessoal dos supostamente responsáveis por “cuidar”7. Se eu estava cuidando dos seus olhos era para manter a linha entre o suportável e o insuportável. No entanto, não era para curar, mas para manter a tortura. As observações de Lynch a respeito das ambiguidades relativas à manutenção do corpo de Athey são importantes. Neste caso ela estava se referindo a “Nurse’s Penance”, uma secção da performance de 1992 Martyrs and Saints. Mary Richards descreve essa performance da seguinte forma: Começa com um hospital profusamente iluminado por uma luz desconfortavelmente brilhante. Há um grupo de atores “doentes” no palco. Alguns em macas, outros em cadeiras de roda, todos em um estado deplorável tendo sido retirados de sacos mortuários. Athey e seus coadjuvantes encenam a dor e a humilhação do corpo abjeto e exposto através de enfermeiras grotescas, brutais e caricatas que realizam em público exames intrusivos e fisicamente degradantes. Parece que as enfermeiras agem dessa maneira apenas porque só assim é possível manter uma distância psicológica que as permita sobreviver mentalmente ao horror. “Isto é, as enfermeiras também 8 sofrem ou se “penitenciam” através dos cuidados aos pacientes... ” .
Martyrs and Saints foi produzido em um dos anos mais difíceis da epidemia de AIDS em relação ao seu impacto na cena queer, da qual Athey fazia parte. Ele escreveu o texto de “A Nurse’s Penance” um dia depois de David Wojnarowicz morrer de AIDS, enquanto refletia sobre qual seria a “penitência” daquele que cuida por ser incapaz de impedir a morte de quem estava sob seu cuidado9. No mesmo ano ele escreveu o obituário do seu amigo e colaborador Cliff Diller (cofundador do Club Fuck!, um dos espaços em que Athey desenvolveu o seu trabalho). Ele lembrou o afeto de Diller pelas “mulheres fortes” que lhe atenderam no seu leito de morte. Athey escreveu, “Deusas arquetípicas, ninfas da floresta, skinheads, punks, todas expressando o seu amor. Elas deram comida na boca, massagearam, rasparam sua cabeça, conversaram, rezaram e confirmaram o seu amor”. A essa altura, todos estavam familiarizados com a rotina: “Somos a visita e o leito de convalescença”, ele escreve no obituário de Diller, “Nós sobrevivemos”10. Esta última frase é uma referência a sua participação com Diller no projeto de Karen Finley Momento Mori de 1992 no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles (MOCA). A instalação de Finley era dividida em dois quartos, o “Quarto das mulheres” e o “Quarto do Memorial”. O último incluía camas de hospital, algumas com pacientes recebendo seus amigos e outras vazias. Diller e Athey participaram como 61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
voluntários desse segundo quarto. Ele escreve, “Nos sentamos no museu, seminus, relaxados e conversamos abertamente enquanto as pessoas nos olhavam assombradas”. Eles leram em voz alta, um para o outro, Memories that Smell Like Gasoline de Wojnarowicz. A primeira apresentação de Martyrs and Saints, que Athey cita como sua primeira apresentação “teatral” (no sentido de não ter acontecido em um clube), foi encenada um mês depois de Diller morrer. Para muitos que participaram dessa obra foi uma maneira de lidar com a dor. Explorar a relação entre a superação e a dor, entre a própria dor e a dor dos outros, entre o prazer e a dor que é uma constante no trabalho de Athey e ressoa a arte de praticamente uma geração de artistas que foi forçada a assimilar rapidamente a morte de amigos, amantes, mentores e ídolos. Incorruptible Flesh: Dissociative Sparkle é uma extensão de Incorruptible Flesh (A Work in Progress), de 1996 um trabalho em colaboração com o artista Lawrence Steger. Quando o trabalho foi encomendado pelo Centro de Arte Contemporânea de Glasgow, ambos eram HIV positivo e Steger estava doente. Incorruptible Flesh é composto de uma série de tableaux customizados que sugerem uma história sobre beleza, doença e decadência, preservação e corrosão. O trabalho faz referência a cirurgias psíquicas (como as praticadas nas Filipinas), curas espirituais e rituais de luto. Steger morreu em 1999. O Centro de Arte Contemporânea pediu que Athey revisitasse o trabalho no seu décimo aniversário. Implícito no convite estava uma exigência de que o artista confrontasse a ausência de Steger. O nome de Athey é frequentemente associado em discussões sobre “arte sobre AIDS”, no entanto o que isso significa em relação ao seu trabalho não vai além de afirmar que ele é HIV positivo e que o fato de seu trabalho frequentemente usar o sangue torna o seu trabalho “sobre AIDS”. Athey foi diagnosticado HIV positivo em 1986 e sobreviveu a um número chocante de amigos e colaboradores. Ele trata do assunto em uma entrevista com um dos seus colaboradores recentes, o artista e pesquisador, Dominic Johnson. Athey explica: A AIDS destruiu o meu mundo, então, como seguir adiante? E como lidar com minha própria doença? Ainda tenho dificuldade de planejar o futuro. Fui diagnosticado HIV positivo em 1986 – uma sentença de morte antes do coquetel. [Em meados de 1990] eu já tinha vivido dez anos depois daquela sentença e tive que enfrentar a morte de muitos amigos. (Sendo usuário de drogas injetáveis e gay, eu tinha um número particularmente alto de amigos doentes). E ídolos que nunca conheci também morreram: a morte de David Wojnarowicz me deixou devastado. Escrevi uma frase, “Os melhores já estão mortos”, e senti isso durante um tempo. Essa depressão foi o gatilho para o que chamo de “faísca da dissociação”, que para mim se manifestou primeiro na grandiosidade da Torture Trilogy. Naqueles três trabalhos, todos os participantes (doentes e cuidadores) retornam aos quadros de martírio Cristão: minhas apropriações do esoterismo e 11 definições de cura simultaneamente tornaram-se sombrias e foram ampliadas . 62 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Membros da audiência em busca de uma história literal da AIDS no seu trabalho tem dificuldade de encontrá-la. Muitos dos elementos de Dissociative Sparkle são citações diretas de trabalhos anteriores (os genitais inflados, o globo de discoteca, a pose). Para atender ao pedido de retornar à sua colaboração com Steger, Athey escolheu encenar uma extensão da última cena de Incorruptible Flesh, como forma de meditar sobre a “depressão” e sobre a “faísca da dissociação”. A performance terminava com Athey exibido em uma prancha, seus genitais como de uma “Vênus”, enquanto Steger entoava palavras de “iluminação e libertação” (como um crítico descreveu)12. Então, quando Athey deita em uma mesa durante as seis horas da apresentação de agora, ele prolonga essa imagem e levanta a questão sobre como um artista pode revisitar um trabalho feito em colaboração depois da morte do colaborador – além disso, um trabalho que já antecipava explicitamente a doença, o cuidado e a morte no seu enquadramento textual e visual. Quando entramos no espaço da apresentação, encontramos Athey esperando em um estado que melancolicamente recusa a ausência de Steger. Ele cria um espaço não para ser preenchido, mas para ser partilhado13. Todavia, isso não significa que o tom da apresentação é ditado por um luto. Se alguns espectadores se aproximam do seu corpo de forma solene, outros são mais lúdicos e outros – na realidade, a maioria espera de forma entediada e levemente desconfortável, porque não havia cadeiras. Amigos apoiam-se nas paredes e ficam conversando, fofocando e reclamando. Ao final da noite, o clima muda novamente, para o de um sentimento perverso e lúdico por estarmos juntos. Ao final das seis horas, o desamarramos e ele desmonta em meio a risos e aplausos amigáveis. Nos Estados Unidos, o trabalho de Ron Athey apareceu de forma proeminente nas culture wars14 dos anos 90. De fato, desde 1994, ele raramente se apresentou em seu país de origem. Sua carreira é estranha: ele é ao mesmo tempo bastante conhecido, mas mantido à distância. À medida que o patrocínio público tornou-se uma questão política no seu país, incluí-lo em programações ficou perigoso. A história da recepção do seu trabalho nos EUA é complicada: suas primeiras apresentações teatrais surgiram em relação direta com a crise da AIDS (Martyrs and Saints foi, em parte, um memorial ao seu colaborador Cliff Diller). As apresentações do começo dos anos 90 receberam resenhas em jornais e revistas gays, assim como em publicações underground como Infected Faggot. A importância da AIDS como um contexto para entender o seu 63 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
trabalho não pode ser desprezada. Mas as suas raízes também se encontram na cena punk e hard-core de Los Angeles, na cena gay (da discoteca aos clubes de fetiche) e na história evangélica e pentecostal da região (ele foi criado pelas mulheres da sua família como profeta). Ele trabalha nas margens de todos esses mundos. Ele foi banido, por exemplo, de um dos clubes de rock mais famosos da cidade porque encenou uma crucificação durante um show do Christian Death (uma influente banda de “death metal”); a sua primeira performance (em colaboração com Rozz Williams, se apresentando como Premature Ejaculation) é famosa por ter sido repulsiva (Athey e Williams atiraram animais atropelados na plateia). Seu trabalho pode ser “queer”, mas não é classicamente camp nem glam, apesar de sua sensibilidade beber nessas duas fontes. Seu trabalho já desafiava antes de ser associado a AIDS e à cena sadomasoquista. A expectativa é que seu trabalho deve ser político e que esse sentido político deve ser óbvio. A expectativa é de que é algo literalmente sobre AIDS e homossexualidade porque Athey é gay e HIV positivo. Sim, o trabalho de Athey é sobre HIV e AIDS. Mas, o que significa afirmar isso – e como isso pode ser relacionado aos outros aspectos questionadores do seu trabalho? Athey explica que o mais difícil dessa peça não é o taco de beisebol nem os ganchos que perfuram a sua pele. É o desconforto de deitar durante cinco horas em uma cama intensamente desconfortável. Os espectadores que aceitaram o convite de tocar o artista parecem intuir isso – massageando os seus membros, tocando suas costas, levantando o peso do seu corpo dos cilindros onde era possível. Parece que o que torna essa apresentação algo que ele é capaz de suportar é justamente esse alívio. O toque que aparece é consistentemente cuidadoso, maternal e sentimental (mesmo quando oferecido por homens)15. Ver mulheres cuidando de Athey não é apenas uma reprodução do cuidado ser atribuído às mulheres. É um reconhecimento do número de mulheres que sofreram o impacto da AIDS e de como a pandemia transformou as mulheres que pertenciam a círculos queer em ativistas e em administradoras de cuidados16. Athey já trabalhou com um pequeno exército de butches, mulheres queer e transgênero desde o começo dos anos 90 (como Julie Tolentino [que apareceu e produziu alguns dos seus trabalhos teatrais] e Stosh Fila [também conhecida como Pig Pen] que apareceu em 1992 na sua performance de Martyrs and Saints assim como na apresentação de Minneapolis). Mesmo trabalhos solo como Self Obliteration Solo ou Dissociative 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Sparkle frequentemente incluem um trabalho de apoio. Mulheres queer comparecem fora do foco de atenção para ajudar – pegar “espetos”, ajustar amarras, fazer com que tudo funcione da melhor maneira possível. Quando perguntado sobre a presença frequente de figuras femininas no seu trabalho, Athey faz referência a representações de martírio – as imagens de santas tendem a mostrá-las sozinhas sofrendo uma violência mutiladora. Elas sofrem em isolamento. Um santo masculino, no entanto, geralmente é apresentado nos braços das mulheres que vão cuidar das suas feridas ou enterrá-los. O seu trabalho explora (e complica) este aspecto do desempenho masculino – a sua absoluta dependência do trabalho (frequentemente afetuoso) das mulheres. Quando entramos na galeria Athey já está sendo exibido, como um zumbi. Ele é um objeto passivo para nossa atenção e nossa relação com o seu corpo segue um roteiro. Ele está acompanhado do recepcionista que implicitamente modela o comportamento que deve ser seguido: esperar e cuidar dele. Uma maneira de fazer companhia espelha a outra. Ela parte de um lugar diferente – assim aciona um conjunto de instintos sociais diferentes. Nessa interação encontramos os desafios da cultura em público para a qual Butler chama atenção em Precarious Life – uma cultura que configura algo além de um pedido de reconhecimento da integridade física – ela escreve: “Se estou lutando por autonomia, não estou também lutando por outra coisa, por uma concepção de mim mesmo invariável na comunidade, impressa em mim pelos outros, mas que também imponho aos outros de uma maneira que não sou inteiramente capaz nem de controlar nem de prever?”17. Ron Athey não apenas exagera a vulnerabilidade do seu corpo, ele o torna erótico abertamente. Não é místico. É uma recusa carnal de um olhar para o céu, uma insistência tanto na mágica quanto na banalidade da carne. É aquilo em que o corpo se transforma debaixo da “faísca da dissociação” do globo de discoteca, do apelo estranho e engraçado das pérolas sendo puxadas de dentro do seu ânus, ou a “revelação” da sua carne ferida; o ordinário do toque e franca brutalidade da enfermeira. Ele confronta o feminino fisicamente com o seu corpo: os genitais moles, inflados, aquosos, o interior penetrado, tudo úmido, mole, sangrando e brilhando – é mais do que antifálico. Nesta apresentação, o corpo de Athey é a incorporação dicotômica de um corpo violado. Quando ele estende ao seu público um convite a tocálo, ele torna externa a relação do espectador com o corpo penetrado, mas também confronta o nosso desejo de rejeitá-lo. O que torna o trabalho ainda mais difícil é o fato 65 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
de ser uma apresentação sado-masoquista, a cena inteira é formatada como expressão de um desejo e necessidade. Incorruptible Flesh: Dissociative Sparkle não é “sobre” AIDS em nenhum sentido tradicional da palavra “sobre”, também não é exatamente “sobre” lembrar Steger, nem o trabalho preserva sua memória. Ele não “conta” esta história; ele nos absorve na estrutura da história. Athey escolhe não fazer um trabalho “sobre” a morte de Steger, mas de trabalhar a partir da última pose da sua apresentação com Steger. E lá ele espera por ele. Lá ele espera por sua própria morte, já deitado como um morto. Nós ensaiamos esse relacionamento com o passado e com o futuro juntos. É aqui que o trabalho é assombrado de forma mais explícita por sua história. Uma apresentação como essa não é um ato político da mesma maneira que uma marcha de protesto é, mas não deixa de ser, nem é de maneira menos potente, um ato determinado de resistência política.
Tradução de Hugo Nogueira
Notas: 1. Este texto faz parte do livro Hold It Against Me: Difficulty and Emotion in Contemporary Art (Duke University Press, 2013). Foi cedido pela autora para a tradução e publicação pela Redescrições. 2. Algumas pessoas leem essa imagem, que ele produziu de diversas maneiras em várias das suas apresentações como uma imagem de castração. Mas também é possível ler como uma representação exagerada das propriedades antifálicas do pênis, sua maleabilidade, flexibilidade e umidade. 3. Ver Amelia Jones, “Rupture” em Parachute 113 (2004), pp. 71-81, e sua discussão do trabalho deAthey em Self Image: Technology, Representation and the Contemporary Subject (New York: Routledge, 2006), pp. 179-182, e Mary Richards, "Ron Athey, AIDS and the Politics of Pain" em Bodies, Space and Technology Vol. 3, No. 2 (2003), Web, http://people.brunel.ac.uk/bst/vol0302/index.html (acessado em 6/2012). Ver também Dominic Johnson, "Ron Athey's Visions of Excess: Performance After Georges Bataille" em Papers of Surrealism, Issue 8 (Spring 2010), pp. 1-12, e Gilles Lazare, "An Endless Insurrection," em Coil Issues 9-10 (2000), disponível na Internet em: http://proboscis.org.uk/people/gileslane/Insurrection.pdf (acessado em 6/2012). 4. Francesca Alfano Miglietti, Extreme Bodies: The Use and Abuse of the Body in Art (Milan: Skira, 2003), p. 46. Judith Butler, Precarious Life, p. 134. 5. Judith Butler retira o título do seu livro Precarious Life da discussão que Levinas faz sobre “a face do outro”. Butler cita o filósofo quando ele imagina que a face representa “a extrema precariedade do outro”. Ela expande esse postulado: “Responder à face, entender o seu significado, implica em reconhecer o que há de precário em outra vida, ou ainda, a precariedade da própria vida. Isso não pode ser uma revelação... sobre minha própria vida... precisa ser uma compreensão da precariedade do Outro”. Butler também retira de Levinas a seguinte distinção: “o humano não é representado pela face. Na realidade, o humano é afirmado indiretamente na própria disjunção que torna a representação impossível, e essa disjunção é veiculada na impossibilidade de representação. Para que a representação possa veicular o humano, a representação precisa não apenas falhar, mas apresentar esse fracasso”. (144). 6. Para mais informações sobre “desfiguração” e o discurso sobre sexo e poder, ver Mandy Merck, In Your Face: Nine Sexual Studies (New York: New York University Press). 66 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
7. Lydia Lunch, "The Violent Disbelief of Ron Athey" em Will Work for Drugs (New York: Akashic Books, 2009) 141-150, 142. 8. Mary Richards, “Ron Athey, AIDS and the Politics of Pain”. Martyrs and Saints também inclui uma representação de São Sebastião em que uma mulher queer, tatuada e pierced é perfurada por flechas e depois cuidada por Athey que veste um espartilho apertado e um vestido branco que evoca a líder evangélica Aimee Semple McPherson. 9. No programa de uma apresentação de maio de 1993 de Martyrs and Saints (Randolph Street Gallery, Chicago) Athey escreve, “Eu escrevi ‘Nurse’s Penance’ um dia depois que David Wojnarowicz morreu de AIDS. Foi durante meu sentimento de luto e perda pela sua morte – e por me dar conta que todos os meus modelos estão mortos ou morrendo – que muitas imagens deste trabalho foram criadas”. Ver também Tom Liesegang, “Perforating Saint”, uma entrevista com Ron Athey para Fad Magazine Issue no. 30 (Fall, 1993), 48-49, em que Athey explica: “Por exemplo, quando David Wojnarowicz morreu, eu tentei imaginar como seria para uma enfermeira que amasse realmente o seu paciente ser incapaz de salvá-lo. Qual seria a sua penitência?”. John Edward McGrath escreve sobre “A Nurse’s Penance” em “Trusting in Rubber”, TDR VOl 39, No 2, pp 1-20. McGrath enfrenta a dificuldade do trabalho de Athey diretamente e é uma excelente introdução sobre o seu trabalho mais complexo. Também contém uma breve, mas importante observação sobre a maneira como Athey utiliza o som: Ele se inspira na sua cultura de clubes, “A música de Athey estimula os nossos corpos, atua em nossas emoções como uma droga”, ela “nos leva a esquecer do passado, a pensar apenas na pulsação do momento, este momento em que somos ao mesmo tempo excessivamente estimulados e sentimos que não temos tudo aquilo que gostaríamos”. (30-31). 10. Um trecho maior dessa passagem merece ser lido: “Parecia haver uma obsessão daqueles próximos a ele de estarem presentes no momento da sua morte. No quarto do hospital algumas semanas antes eu presenciei uma série de ataques de mau humor de Cliff. Ele estava com raiva por causa da meningite, PCP, CMV, uma cirurgia para remover a sua glândula biliar entre outras coisas. Estava com medo de que ele morresse amargo e com ódio. Mas aconteceu uma experiência de cura. Cliff sempre teve relações especiais com mulheres fortes e elas estavam presentes. Deusas arquetípicas, ninfas da floresta, skinheads, punks, todas expressando o seu amor. Elas deram comida na boca, massagearam, rasparam sua cabeça, conversaram, rezaram e confirmaram o seu amor... E para completar esses últimos dias, um homem em quem Cliff estava interessado passou a noite dois dias antes da cirurgia – e eles passaram a noite se chupando”. Ron Athey, “Cliff Diller, 1964-1992”, LA Weekly (30 de outubro – 5 de novembro de 1992), p. 45. 11. Dominic Johnson, "Perverse Martyrologies: An Interview with Ron Athey", Contemporary Theatre Review, Vol. 18, No. 4 (Autumn 2008), pp. 503-13. Ver também Ron Athey's "Deliverance" em Acting on AIDS: Sex, Drugs & Politics (New York: Serpent's Tail, 1997) pp. 430-444. 12. Mary Brennan, crítica de Incorruptible Flesh (in progress) em 10 de Fevereiro de 1996, The Herald (Glasgow, Scotland). 13. John McGrath escreve: “Athey interrompe uma teatrialização do espaço da morte, desautoriza um imaginário da morte que cria um espaço especial para ela, além dele, para além da linha”. Ver “Trusting in Rubber: Performing Boundaries during the AIDS Epidemic”, TDR vol. 39, no. 2 (Summer, 1995), pp. 21-38. 14. [N.T.] Trata-se da proibição de fundos federais destinados à arte que retratava a homossexualidade. 15. Foi neste ano que Athey começou a trabalhar como massagista profissional. 16. Ver os capítulos de Ann Cvetkovich sobre o ativismo contra a AIDS e sobre o impacto da crise de AIDS sobre as ativistas lésbicas em An Archive of Feelings: Trauma, Sexuality, and Lesbian Public Cultures (Durham: Duke University Press, 2003). 17. Judith Butler, Precarious Life, p. 27.
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ENTREVISTA COM RON ATHEY
Hugo Nogueira e Susana de Castro
O artista de performance Ron Athey esteve no Rio de Janeiro em junho quando se apresentou a sua performance “St. Sebastian/50” dentro do projeto “Entre Lugares – Rio–Londres” no teatro Sergio Porto. Ele concedeu a entrevista abaixo por email.
Redescrições: Por que você decidiu tornar-se um massagista profissional? Você vê uma relação entre o seu trabalho como massagista e o seu trabalho artístico? Ron: Eu trabalhei no jornal LA Weekly durante 18 anos, fui jornalista, editor assistente e responsável pela agenda cultural. Em função de incorporações e demissão dos jornalistas culturais (pagos), eu tive que decidir o que fazer em seguida. Sempre tive uma compreensão intuitiva sobre o corpo e um grande conhecimento de anatomia. Eu comecei como a maioria: fazendo um treinamento básico para trabalhar em um SPA. Eu queria um treinamento para fazer massagem profunda dos músculos. Depois de alguns cursos e 100 horas de prática, eu estudei o sistema terapêutico Rolfing. Existe uma relação com o meu trabalho artístico porque cria um equilíbrio. Porque me permite trabalhar com um corpo diferente, explorar, encontrar e consertar problemas de alinhamento, circulação e nós, espasmos, pontos de gatilho. Estabelecendo uma zona de equilíbrio com a prática autocentrada da arte.
Redescrições: Qual a relação que você vê entre o seu trabalho e o dos artistas Robert Mapplethorpe e Leigh Bowery? Ron: É difícil fazer uma comparação com o Mapplethorpe ainda que ele tenha tornado aquilo que era extremamente privado em algo público, transformando em uma fantasia. Mas ele fez isso contrapondo à forma, uma estratégia que passou a ser reproduzida por muitos fotógrafos que vieram depois. A dedicação completa de Leigh em realizar um conceito ainda é uma grande inspiração. Ninguém foi capaz de superá-lo. Ele arrombou as portas das maneiras de se apresentar em termos de proporção e de sacanear com as noções de gênero (gender fuck)!!! Eu o vi pela primeira vez no clube Taboo em minha primeira visita a Londres em meados dos anos 80. Um bom exemplo da dificuldade de contextualizar um artista que não utiliza os meios tradicionais. O que fazer com alguém 68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
que é uma personalidade do mundo da moda em um clube? Depois participou como convidado em algumas coreografias do Michael Clark; fez algumas apresentações em galerias e virou musa do pintor Lucien Freud, de repente todo mundo queria voltar no tempo para procurar a narrativa do QUE ele tinha feito.
Redescrições: Você concorda que o seu trabalho não recebe a atenção que merece? Ron: Eu realmente me pergunto por que estou escrevendo uma monografia sobre mim mesmo com mais de 300 páginas. Mais de 30 anos de apresentações registrados em imagens. Para estabelecer um contexto, esclarecer os fatos? Eu não sei o que pode acontecer ao se fazer isso. Uma das minhas paranoias que já está se concretizando através da Internet é a tendência “redux” (retrospectivas que reduzem as obras para serem apresentadas de uma só vez) no campo da performance, alimentada pela artista Marina Abramović, em que tudo passa a ser domínio público. Minha compreensão sobre a importância de tornar meu trabalho público é informada pelo fato de ter trabalhado na mídia e ter me relacionado superficialmente com a Academia. Será que eu quero a publicidade comum = redução do meu trabalho a sensacionalismos e a modismos ou trabalhos acadêmicos = uma bolha que tem como intermediários professores e alunos? Jornalismo cultural inteligente: raro! Para que curadores, programadores, instituições apoiem o meu trabalho...? A maioria deles deveria ser substituída! Quando frustrado eu já anunciei publicamente uma lista dos que deveriam ser fuzilados. Como pode a maioria dessas pessoas entediadas e tediosas continuarem nesses cargos para sempre? O que as autorizou a tornaram-se promotoras perversas de uma cultura que, precisamos aceitar, é formada por suas escolhas seguras e “inteligentes” e suas decisões eventuais de parar de apoiar a única opção entre duas ou três de uma cidade qualquer? Por que aceitamos essa hierarquia? Em termos gerais, essa é a minha frustração, eu penso que a maioria dos “promotores perversos de cultura” não tem paixão pelo que fazem, eles apenas seguem as tendências tediosas uns dos outros.
Redescrições: Beatriz Preciado no seu livro Manifesto Contra-Sexual afirma que seu trabalho é contra-sexual porque reflete uma abordagem não construtivista da sexualidade onde o corpo é o locus de mudanças tecnológicas. Você a conhece? Concorda com o que ela diz? Ron: Eu conheci a Beatriz Preciado em novembro na Associação Emmetrop em Bourges na França e a tenho acompanhado durante algum tempo, porque alguns dos 69 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
meus amigos e ídolos trabalharam com ela: Annie Sprinkle, Del LaGrace Volcano, Lydia Lunch, Diana Pornoterrorist, Lazlo Pearlman. Eu gosto do termo “contra-sexual”, mas o conceito de “pós-humano” não me diz nada, nem o de “corpo obsoleto” de Stelarc. Eu entendo que podemos pensar em um corpo sem órgãos, mas isso é mais uma cisão do que uma nova fase. Pode me chamar de simplista, mas eu penso que quanto mais nos afastamos do corpo, mais precisamos nos aproximar dele novamente e usá-lo. Redescrições: Na sua performance “St. Sebastian/50” eu vi dois temas combinados: sexualidade e religiosidade. Mas você não está “falando” da sexualidade e da religiosidade ordinárias. A palavra que me vem à mente é: êxtase. Você concorda que você está tentando reproduzir um estado de êxtase religioso? Ron: Sim, a verdade sobre a minha infância é que não fui forçado a participar dos rituais Pentecostais da minha família, dos quatro filhos eu fui o único que se dedicou a ponto de praticar os dons do espírito: a profecia, a glossolalia e psicografia. Eu era inclinado ao êxtase! Quando deixei a crença e a igreja, a vibração se manteve. Após décadas de trabalho, eu percebi que eu continuo realizando sequências de ações para despertar, sustentar esse estado de êxtase, e que talvez esse estado de êxtase seja mais importante do que a iconografia que eu uso. O “Sebastian” foi um retorno a um trabalho anterior, o que corresponde mais à minha pesquisa é o ciclo de auto-obliteração que eu concluí em dezembro.
Redescrições: Os espectadores tem a impressão de que você está em transe. É isso mesmo? Ron: Sim, há diferentes camadas. A de estar fazendo a performance em frente a uma audiência acessando algo que vai além de um “roteiro”. Os estados mais profundos que são despertados tanto pela dor quanto pela sensação de estar sangrando. São as camadas mais profundas que são mais imprevisíveis, no sábado (23/06/12) os técnicos pularam duas ou três vezes o ponto de puxar as cordas ou iluminar, muitas coisas deram “errado”, então eu tive que lutar para não tentar controlar que não estava acontecendo da maneira planejada, mas no final tudo deu certo.
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Redescrições: Notei que há uma conexão entre o seu trabalho e práticas de BDSM. Se isso está correto, você poderia explicar qual a importância dessas práticas para você? Você diria que através delas é possível transcender o eu? Ron: As práticas BDSM me ensinaram muitas das ações corporais que utilizo. Eu também dei as informações sobre as minhas apresentações ao meu médico para ter uma perspectiva da medicina, mas as informações corretas sobre injeção de soro fisiológico no saco escrotal, os cuidados em relação à saúde e segurança envolvidos no piercing, etc., vem, em grande medida, da prática de BDSM ou das instruções sobre modificações corporais. Redescrições: Você diria que a “castração” que aparece no seu trabalho aponta para a possibilidade de uma sexualidade que não gira em torno do falo, um tipo de sexualidade descrita por Freud como perverso-polimorfa – anterior a uma diferença sexual binária, um momento em que o corpo inteiro é fonte de prazer? Ron: Acredito que só uma pessoa tinha percebido isso antes, o arremedo de castração em Deliverance e no auto fisting de Self-Obliteration. O falo é distorcido, apagado ou ignorado. A interpretação dos atos sexuais das apresentações é ampliada para além do que é prazeroso/sexy. Os atos sexuais também são uma entrada psíquica e neurológica no êxtase.
Redescrições: muito obrigada pela entrevista!
Tradução de Hugo Nogueira
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ENTREVISTA COM ARTHUR C. DANTO Susana de Castro
O filósofo octogenário Arthur C. Danto é um dos maiores filósofos vivos da atualidade. Duas de suas obras foram traduzidas no Brasil: Transfiguração do Lugar Comum e Após o Fim da Arte. Abaixo a entrevista que fizemos com ele por email.
Redescrições: de Platão a Heidegger os filósofos tentaram justificar a realidade especial das obras de arte. Na Origem da Obra de Arte, Heidegger diz, como você, que a obra de arte possui um lado bem ordinário enquanto um artefato comum, mas também possui algo além da sua materialidade, a questão, então, é determinar o que seria esse outro. A obra de arte diferente dos artefatos são alegorias e símbolos (no sentido grego dos termos), diz Heidegger. No seu livro Transfiguração do Lugar Comum, você afirma que as obras de arte são representações. A fim de entender corretamente o que são obras de arte precisamos definir o que representam. Quais são as diferenças entre o seu conceito de representação e o conceito de símbolo utilizado por Heidegger para caracterizar a tradição segundo a qual se move a caracterização da obra de arte? Você concordaria que ele está apontando para uma realidade fora do artista enquanto você não? Danto: Através da representação, uma obra de arte é limitada pelo artista e o seu entendimento. Um templo em nenhum sentido é capaz de se tornar uma edificação cristã, apesar de que, quando o rei se converte, ele pode decretar que o templo romano é agora uma edificação cristã. Isso pode ter ocorrido ao se colocar uma cruz na porta da frente. Em sentido algum é algo que o rei “descobre”. O arquiteto não se torna um cristão depois de sua morte. Se Heidegger está se movimentando em direção a uma realidade fora do sujeito, não há um limite para aquilo que pode ser, e nenhuma verdade de interpretação. Considere a Torre Eiffel, imagine quando conquistaram Paris os alemães tivessem declarado que ela seria a Sublimidade do Espírito Alemão. Na minha perspectiva, apenas o que está nas intenções do artista pertence ao que a obra é.
Redescrições: a arte POP algumas vezes é erroneamente descrita como um movimento 72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
artificial ou superficial, especialmente no que diz respeito às obras de Andy Warhol. Você concordaria que os seus escritos sobre Andy Warhol tiveram o efeito de mostrar o quanto de trabalho árduo se escondia por trás de suas obras? Danto: Algumas vezes é sugerido que Warhol poderia ter usado como readymades simplesmente caixas de cartolina. De fato, no museu de arte moderna de Stockholm inúmeras centenas de caixas foram colocadas no edifício para provocarem efeito. Warhol queria que as caixas tivessem lados e cantos nítidos. Assim, ele tinha que as ter mandado ser fabricadas de madeira, o próprio oposto do produto pronto (readymade).
Redescrições: atualmente há uma grande exposição das gravuras de Jasper Johns em São Paulo1*. Como você avalia a sua contribuição para o movimento POP? Danto: Jasper Johns foi Pop no sentido em que suas imagens são realidades – números, letras, cores, alvos, bandeiras. Elas são realidades e representações ao mesmo tempo. São pintadas belamente.
Redescrições: Você conhece o trabalho de Ron Athey? Ele acaba de apresentar sua performance “St. Sebastian/50” no Rio de Janeiro no projeto “Entre Lugares, Rio – Londres”**. Como você vê o efeito das performances para a história da arte, já que uma performance é um evento único e efêmero, enquanto um quadro possui a vantagem da durabilidade? Danto: Não conheço o trabalho de Ron Athey. Mas uma performance implica um corpo, propriedade de uma única pessoa. Marina Abramovic treina seus estudantes para realizarem suas performances. Dessa forma as performances de Marina podem fazer parte dos conteúdos do museu. Não sei como solucionar esse problema.
Redescrições: muito obrigada por essa entrevista. Tradução de Susana de Castro
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A exposição “Jaspes Johns – Pares trios álbuns” está no Instituto Tomie Ohtake Ron Athey apresentou-se no dia 23 de Junho no teatro Sergio Porto.
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Resenha
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RESENHA SHUSTERMAN, Richard. Consciência Corporal. Tradução de Pedro Sette-Câmara. Rio de Janeiro: E Realizações, 2012. 352 pgs. (original: Body Consciousness: A Philosophy of Mindfulness and Somaesthetics”. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. 256 pgs). Diana Pichinine* “O corpo expressa a ambiguidade do ser humano, tanto como sensibilidade subjetiva que experiencia o mundo, quanto como objeto percebido nesse mundo... Assim, tanto sou corpo como tenho corpo”.
“Consciência Corporal” é o novo título de Richard Shusterman traduzido no Brasil. Ele leva adiante o projeto de reafirmar o valor da estética pragmatista, expresso por Dewey em “Art as Experience”, de 1934. Esse projeto possui dois momentos: um primeiro que defende a legitimidade estética da arte popular e que acena na direção da defesa da arte como “parte de uma reforma social” (SHUSTERMAN, 1998, p. 13). Isso traz um novo fôlego à vocação pragmatista de fazer da reflexão estética a promoção de uma práxis progressista, permitindo à filosofia retornar à compreensão do homem como ser cultural. Ao mesmo tempo isso possibilita uma definição mais democrática e significativa da arte na medida em que ela abrangeria o aspecto prático, incluindo o social e o político como suas dimensões. Num segundo momento esse projeto se volta ainda mais especificamente para o entrecruzamento das questões ética e estética, é o momento em que o conceito de Somaestética é devidamente formulado e torna-se o eixo central a que se referem uma série de teorias e práticas terapêuticas que ambicionam proporcionar “uma consciência corporal mais aprimorada”, capaz de aumentar “o conhecimento, a performance e o prazer”. Nesse ínterim os conceitos de consciência corporal, consciência somática crítica, autouso somático, cuidado de si, formas corporais de subjetividade, intuição somaestética, reflexão somática, autoconsciência somática, autopercepção somática, são ativados simultaneamente. É em “Consciência Corporal” que isso é feito.
*** “A consciência corporal é sempre mais do que a simples consciência do próprio corpo”.
Shusterman inicia o texto realizando um diagnóstico somaestético da condição do homem na cultura contemporânea, que julga estar sofrendo “cada vez mais de *
Diana Pichinine é professora do IFRJ e doutoranda em Filosofia no PPGF-IFCS/UFRJ.
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problemas de atenção, de superestimulação e de estresse”, e propondo a somaestética como uma filosofia terapêutica, por acreditar que uma consciência corporal mais aprimorada pode nos ajudar a resolver esses problemas, e ao mesmo tempo “aumentar o conhecimento, a performance e o prazer” corporais. Shusterman quer deixar claro que se o corpo é o local em que o poder social pode se expressar, em que o ethos e os valores podem ser exibidos fisicamente, ele também é o lugar em que a performance e as competências de percepção de um modo geral podem ser refinadas, “a fim de aprimorar a cognição e as capacidades para a virtude e para a felicidade”. Daí porque ele faz uma ressalva conceitual (fundamental para a própria definição de somaestética) ao enfatizar que prefere falar de soma do que de corpo (para enfatizar que seu interesse é “pelo corpo vivo, senciente, com sentimentos e propósitos, e não por um mero corpus físico de carne e osso”). Mas ao definir corpo como uma complexa estrutura ontológica que é “simultaneamente objeto material no mundo e subjetividade intencional dirigida ao mundo”, ele deixará clara a sua intenção não de inverter, mas de tentar transcender a velha dicotomia entre corpo e mente, de um lado, e entre estética e prática, de outro lado. 1 Quando finalmente Shusterman parte para a definição do conceito, ele define Somaestética da seguinte forma: “um arcabouço disciplinar” para o qual convergem práticas e saberes que se propõem a um uso prático, a saber: “o estudo crítico e o cultivo melhorativo de como experienciamos e usamos o corpo vivo (soma) como lugar de apreciação sensorial (estesia) e de autoestilização criativa”, ou ainda como a “disciplina que recoloca a experiência do corpo e da reestilização artística no coração da filosofia enquanto arte de viver”. (p. 44) Aos que objetariam que vivemos numa cultura que já presta atenção demais ao corpo e que por isso sofreria de uma “consciência corporal de proporções monstruosas”, Shusterman contra-argumenta: o “autouso aprimorado” pelas técnicas de reflexão somática não é uma contradição (em relação ao fato de a cultura contemporânea dispensar ao corpo uma excessiva atenção) pois, diferentemente do hedonismo narcísico que vivemos, o que essas técnicas pretendem é promover uma capacidade maior de fruição, pois “o soma é claramente um lugar experiencial chave (e não apenas um meio) do prazer” (p. 31). Vivemos num mundo altamente tecnificado em que constantemente travamos contato com novas ferramentas tecnológicas cujo uso, por sua vez, envolve “novos usos 76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
do corpo (posturas e hábitos)” (p. 41). Assim, quanto mais informações e mais estímulos sensoriais nossas tecnologias nos fornecerem, “maior a necessidade de cultivar uma sensibilidade somaestética capaz de detectar e cuidar de ameaças de sobrecarga estressante”. Um exemplo prático disso é a epidemia de problemas somáticos desencadeada pelo uso prolongado do computador na vida das pessoas no cotidiano contemporâneo: “da vista cansada e das dores nas costas e no pescoço a diversos tipos de tendinite, à síndrome do túnel do carpo, e a distúrbios causados por esforços repetitivos”. O que ocorre é que mesmo os “projetos ergonômicos” que podem ajudar na identificação do mau uso somático por meio da autopercepção somática e do automonitoramento dependem de uma maior “autoconsciência somática”, e nem eles são capazes de “curar os abusos dos maus hábitos posturais” (p. 42). É ainda na introdução que Shusterman nos põe a par da estrutura da obra. Sua intenção é dedicar um capítulo a cada um dos autores que, de acordo com a sua visão, desenvolveram uma teoria somaestética (intencionalmente ou não) no século XX. Assim, Foucault, Merleau-Ponty, Simone de Beauvoir, Wittgenstein, William James e John Dewey são os filósofos estudados em “Consciência Corporal”. A estrutura da resenha respeitará a divisão de capítulos feita pelo autor.
*** No capítulo um “A Somaestética e o Cuidado com o Eu – O caso de Foucault”, Shusterman resgata o projeto foulcaultiano de “renovar a antiga concepção da filosofia como modo especial de vida, e insistir em sua expressão distintivamente somática e estética”. Os textos-base para essa análise são “A História da Sexualidade” e os últimos “cursos” no Collège de France, onde o filósofo e historiador francês elabora os conceitos de “estética da existência”, “tecnologias do eu” e “cuidado de si”. Para Shusterman, a percepção fundamental de Foucault acerca do corpo como “lugar dócil e maleável à inscrição do poder social” mostra todo o potencial de uma interpretação política do soma, chegando mesmo a apontar para a “questão da justiça”, na medida em que a questão do poder se torna inadiável: o poder se inscreve negativamente (de modo coativo) sobre o corpo na forma da sua disciplinarização (designação das restrições/limitações do seu uso), mas também positivamente (de modo propositivo) servindo de base a formas positivas de subjetivação através das quais ele se reproduz. E o mais importante a ressaltar é que essa microfísica do poder que repousa 77 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
sobre os hábitos e sentimentos corporais constituídos se reproduz sem a menor necessidade de tornar-se explícita na forma de leis. Assim, para além daquilo que a reflexão de Foucault nos permite compreender das estratégias sociais de docilização e domesticação corporal para fins políticos (sua biopolítica), interessa a Shusterman realizar uma crítica (no sentido kantiano) da somaestética pragmática de Foucault 1, a fim de inferir pistas de como, a partir do exercício de práticas somáticas alternativas, questionar e reverter os efeitos de poder a que o soma se vê submetido inconscientemente. As duas principais formas de transgressão pensadas (e vividas) por Foucault e analisadas por Shusterman são as relacionadas ao sexo sado-masoquista e ao uso de drogas. Shusterman fará sérias objeções às duas. Quanto ao sexo: Foucault parte do princípio de que deveríamos buscar uma dessexualização do prazer de modo a desacorrentá-lo da “monarquia do sexo”, a partir do aprendizado e uso de técnicas de “erotização do corpo”, e é no sadomasoquismo que ele identifica maior empenho nessa direção. Para Shusterman a idealização feita do sadomasoquismo por Foucault apresenta dois limites: primeiro, ela mantém o sexo no centro de sua Erótica, portanto não foge à “monarquia do sexo” como pensa ser capaz; segundo, a “fraqueza imaginativa” do sexo sadomasoquista trai sua “deficiência quanto à autoestilização criativa”. (68) Quanto ao uso de drogas, Shusterman alerta para o fato de que Foucault reduz demais nossa gama de prazeres na medida em que defende exclusivamente os prazeres mais intensos, que identifica com o uso de drogas pesadas e com a prática do sexo sadomasoquista. “Revelando uma anedonia crônica, Foucault rejeita aquilo que chama de ‘aqueles prazeres medianos que compõem a vida cotidiana’”, afirmando: “‘é preciso que um prazer seja incrivelmente intenso, ou para mim, não é nada’”. Assim, o verdadeiro
prazer
estaria
identificado
estritamente
com
experiências-limite
avassaladoras, relacionadas à morte, ela mesma à “experiência-limite definitiva” (p. 72). Shusterman vê nesses pressupostos foucaultianos do prazer um sintoma dos nossos tempos marcados por certo dandismo e pelo “extremismo sensacionalista” que tende a provocar nas pessoas o mau hedonismo da “insatisfação crescente”, e a embotar nossa percepção e acuidade afetivas e nossa consciência somática através da exigência de intensidades extremas de prazer: “O resultado é uma necessidade patológica, se banal, de hiperestimulação, para que se possa sentir que se está realmente vivo”. (p. 77).
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No capítulo dois, “O corpo silencioso e manco da filosofia – Déficit de atenção somática em Merleau-Ponty”, Shusterman nos apresenta uma ambiguidade latente na reflexão do fenomenólogo francês acerca do corpo, pois se de um lado é verdade que na história da filosofia ninguém oferece “tantos argumentos sistemáticos e persistentes quanto Merleau-Ponty para provar a primazia do corpo na experiência e no sentido humanos”, por outro lado, o autor da “Fenomenologia da Percepção” teria sido incapaz de escutar o corpo no que ele tem a dizer de si mesmo nas “sensações autoconscientes, nos sentimentos sinestésicos ou proprioceptivos explícitos”, que compõem o universo da “consciência e ou reflexão somática”, incorrendo, portanto, no que ele denomina de “silêncio somático” (p. 93). Diferentemente do “somatismo hiperbólico” presente, a seu ver, por exemplo, na reflexão de Nietzsche, que, realizando uma “lógica da inversão”, insiste em que, inversamente do que propõe a tradição filosófica, não é o corpo que é o servo ou instrumento da mente, mas “a mente (que) é essencialmente um instrumento do corpo”, Merleau-Ponty encara o corpo em suas limitações, e extrai dessa experiência de limitação uma potencialidade humana fundamental, visto encará-la como uma “moldura focalizadora essencial de toda nossa percepção, ação, linguagem e compreensão” (p. 95). No entanto, nem mesmo a consciência disso o torna sensível àquilo que o corpo usa como sua linguagem própria, ainda que muda, silenciosa, a saber o que Shusterman denomina de “sensações somáticas explicitamente conscientes”, também denominadas “percepções proprioceptivas explícitas”, ou ainda “percepções somaestéticas”.1 Ao descrever o papel do conceito de consciência pré-reflexiva e enfatizar a relevância da intencionalidade em seu nível não discursivo no contexto da fenomenologia de Merleau-Ponty, Shusterman problematiza a atitude do fenomenólogo de celebrar como “primal” e “miraculosamente infalível” o nosso senso corporal espontâneo “normal”, argumentando que podemos afirmar a unidade e a qualidade irrefletida da experiência perceptual primária ao mesmo tempo em que defendemos a consciência corporal reflexiva. Ou seja, Shusterman enfatiza (ele tenta responder, ponto a ponto, os sete argumentos de Merleau-Ponty contra a ênfase demasiada na Somaestética) que longe de obscurecer o irrefletido, a reflexão somática “não pretende excluir a priori a percepção e o hábito irrefletidos”, mas identificá-los para aprimorá-los e retreiná-los. Por outro lado, Shusterman deixa claro estar consciente dos limites que a própria reflexão somaestética se coloca quando reconhece que “jamais pretende alcançar uma transparência total de nossa intencionalidade corporal”. 79 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
No capítulo três sobre a somaestética de Simone de Beauvoir (“Subjetividades somáticas e subjugação somática: Simone de Beauvoir sobre gênero e idade”), Shusterman observa que, diferentemente de Merleau-Ponty, a filósofa francesa não transforma
a
percepção
corporificada
num
“ideal
normativo
universal
de
espontaneidade”, visto que tende a enfatizar a multiplicidade de suas formas experienciais (por exemplo, aquela baseada na diversidade de gênero), bem como o caráter histórico e político das “normas somáticas” que as guiam1. Dessa forma, ao invés de privilegiar a generalização da “experiência fenomenológica de machos, adultos e privilegiados no auge da vida” como a base de sustentação de um universalismo ahistórico (como acusa Merleau-Ponty de ter feito), Simone de Beauvoir, atenta “às hierarquias de poder historicamente dominantes”, nos descreve os “mecanismos sutis pelos quais as subjetividades diferentemente corporificadas são subjugadas por meio de seus corpos”, nos mostrando, por exemplo, como as diferenças corporais distintivas das mulheres e dos idosos “são percebidas como negativamente marcadas em termos de poder social, refletindo a dominação masculina”. É com essa “abordagem voltada para o futuro, ativista e melhiorista de Beauvoir de nossa natureza humana aberta e maleável” que Shusterman se identifica, e na qual busca elementos de fortalecimento para a sua Somaestética (p. 130). Shusterman aborda “a rica filosofia somática de Beauvoir” nas duas obras nas quais ela desenvolve sua somaestética analítica (”O Segundo Sexo” (1949) e “A Velhice” (1970)), projeto que critica por repousar sobre uma ambiguidade fundamental: a de oscilar entre uma definição de corpo como ação/transformação (“O corpo não é uma coisa, mas uma situação”); e outra que o torna um mero elemento da ordem da facticidade, “mera carne, imanência material inativa, objeto contingente passivo que é definido e dominado pelo olhar subjetivamente ativo dos outros” (p. 135). Essa última definição do corpo como destinação, e não como instrumento de libertação, é a que encontramos na descrição que a filósofa francesa faz dos diferentes momentos da vida em que a mulher vê seu corpo invadido por outro ser humano, ou sua liberdade tomada pela “servitude” a outro ser humano (ela dá como exemplo de “servidão” os cuidados que os recém-nascidos demandam). Esse ciclo que comanda uma “invasão inexorável” do corpo feminino em regime de “escravidão à espécie” só teria fim, segundo a autora, com a menopausa, ou seja, quando o corpo feminino se 80 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
desvincula em definitivo do ato da procriação. Nessa perspectiva, “a questão mais importante sobre a mulher e sobre seu corpo não é aquilo que ela é histórica ou biologicamente, mas aquilo que ela pode tornar-se” (p. 139). O papel da somaestética no contexto do pensamento de Beauvoir é o de, por um lado, promover uma crítica da ideologia subjacente aos estilos tradicionais de beleza feminina, que reforçam a imagem da mulher como “presa frágil, fraca e de carne”; e de outro lado, atuar ativamente no desenvolvimento de novos ideais somaestéticos. Beauvoir tem clareza de que a total emancipação feminina não poderá ser obtida apenas com indivíduos isolados que pratiquem o cultivo somático, mas quando um esforço político coletivo for capaz de promover a evolução econômica da condição da mulher e do seu envolvimento ativo na política, único meio capaz de projetar sua liberdade inteira “por meio da ação positiva na sociedade humana”. Em suma, ela argumenta que a emancipação da mulher não pode depender da mudança do corpo individual, mas apenas da “mudança da situação mais ampla que define aquilo que o corpo e o eu das mulheres podem ser” (p. 146). Shusterman ainda aborda a questão da somaestética da velhice no pensamento de Beauvoir. Para a fenomenóloga francesa, a velhice é um fenômeno exterior a nós, que é sempre experienciada como “algo alheio”, e mesmo imposto sobre o eu pelo olhar dos outros, de modo análogo à forma como a mulher tem sua identidade de “Outro inessencial” imposta a si pelo “olhar masculino privilegiado e definidor”. A tragédia do velho é a de que “muitas vezes ele não consegue fazer o que deseja”, mas, afirma Shusterman, ainda assim ela não enxergou o benefício que as disciplinas somáticas podem trazer na medida em que permitem ao velho desenvolver a capacidade performativa e, portanto, obter o reconhecimento pessoal pleno, dado, sobretudo, ao fato de vivermos em uma sociedade na qual a “funcionalidade” é um valor fundamental (p. 168). No capítulo quatro, intitulado “A Somaestética de Wittgenstein – Explicação e melhoramento na filosofia da mente, na arte e na política”, Shusterman tenta nos recuperar da tendência a interpretar negativamente, numa leitura apressada, o papel dos sentimentos somáticos na filosofia de Wittgenstein. Ele argumenta que, na medida em que Wittgenstein define o problema da vida como “objeto central da filosofia”, e a filosofia, por sua vez, como envolvendo as tarefas do autoaprimoramento e do autoconhecimento então, conclui ele, a Somaestética tem muito a contribuir com a 81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
filosofia de Wittgenstein, principalmente se levarmos a sua reflexão para além dele mesmo, na direção propositiva de descobrir e ampliar esses sentimentos e usá-los de modo eficaz em nosso autoaprimoramento. Não se trata somente de admitir a existência das sensações somaestéticas, mas de identificá-las e usá-las para alcançar o núcleo de nossas emoções e de nossa vontade na direção do autoconhecimento (necessário ao autoaprimoramento)1 e do autodomínio, e aí entramos no terreno da ética. A situação existencial básica que o corpo nos coloca é ambígua pois, se de um lado “somos limitados pelos constrangimentos e pela fraqueza de nossa carne mortal”, de outro é através do corpo que desenvolvemos nosso “senso de dignidade humana, de integridade e valor”. Shusterman então argumenta longamente apresentando seus argumentos em prol do potencial ético e político da mente alerta somaestética, visto que, entre outras coisas, o aprimoramento da consciência somaestética pode ajudar a “reconstruir nossa atitudes, hábitos de sentimentos”, dando-nos maior “flexibilidade” e aprimorando nossa “tolerância social” e nossa “compreensão política” (p. 203). No capítulo cinco “Mais perto do centro da tempestade – A filosofia somática de William James”, Shusterman afirma que embora seu principal trabalho sobre o corpo seja da fase de juventude (“The Principles of Psychology”, 1890), a obra de William James dá “muito mais atenção à consciência corporal do que filósofos somáticos mais famosos como Nietzsche, Merleau-Ponty ou Foucault”. Talvez por isso o capítulo dedicado a ele seja o maior de todos do livro, com sessenta e quatro páginas! Shusterman levanta três possíveis razões para James jamais ter abandonado a reflexão sobre o corpo em toda sua obra: 1) sua tentativa de ser pintor; 2) sua sensibilidade particular para a influência ubíqua do corpo em nossos estados morais e mentais (sua biografia revela a vida de um homem permanentemente envolvido em problemas de saúde associados a alterações de ordem emocional, ou seja, males psicossomáticos – “meu triste sistema nervoso” - que se tornarão seu principal objeto de estudo na vida); 3) o fato de sua formação em medicina lhe permitir suprir a ausência de um especialista em filosofia da mente (com uma “abordagem científica da mente”) nos quadros docentes do Departamento de Filosofia de Harvard, aonde trabalhava desde 1880, só que no Departamento de Medicina. O conceito em torno do qual a filosofia de James gira é o de “hábito”, e não há melhor conceito para iniciar a investigação da “conexão corpo-mente”, dado que os 82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
hábitos podem ser tanto corporais quanto mentais. A função do hábito é a de realizar para nós automaticamente tudo o que antes demandava pensamento, tempo, esforço. O hábito é definido por James ainda como “ação corporificada”. O pai da escola pragmatista atribui ao corpo disciplinado pelo hábito um papel que vai muito além dos “esforços éticos pessoais de autoaprimoramento”. O hábito sustenta a estrutura social por meio da qual ele mesmo se estrutura, e onde “os esforços individuais encontram seu lugar e seu limite” (p. 217). Dessa forma, fica evidente seu caráter de agente de conservação social que busca nos manter “dentro dos limites da ordem”. Infelizmente nesse momento temos que admitir a posição extremamente conservadora exibida por James, pois dentre as vantagens da existência de hábitos sociais, a que ele mais enfatiza é a de” impedir as diversas camadas sociais de misturar-se” (p. 218). Shusterman chama a atenção para atualidade das teses de James do ponto de vista do desenvolvimento ulterior da neurociência contemporânea. Ele cita os trabalhos de Antonio Damasio que sustentam que há uma base corporal para as modulações de afeto que caracterizam a consciência humana. Algo como uma paisagem corporal estaria presente como estruturadora, em última análise, da própria consciência. Assim, seria possível dizer que o corpo nos oferece “a base da unidade do pensamento”, o que inauguraria, a nosso ver, algo como um cogito corporal. Um dado novo trazido pela psicologia jamesiana é o papel inédito ocupado pela paixão na economia da vida racional: de inimiga (tal como vista pela tradição) à colaboradora ativa da vida da consciência. Assim, infere-se que “além do sentimento do eu espiritual nuclear, o corpo oferece o núcleo inicial do interesse próprio, e a faixa final desse interesse efetivamente determina e escopo ético do eu” (p. 235). Nessa linha de problematização do grau de autonomia da consciência frente ao corpo, James chega a afirmar que a consciência certamente existe no sentido de que temos pensamento, mas não no sentido de uma substância contínua que amarraria os pensamentos, que independesse de seu conteúdo ou de objetos. Comparando a vida da consciência à própria função vital da respiração, James, denomina-a como nada além do que “o fluxo de minha respiração”. Ao “eu penso” kantiano, James opõe o “eu respiro” como a base de seu “fluxo de consciência”. Apesar de toda ênfase colocada na essência corporal dos afetos, James reserva à vontade uma natureza puramente mental, ao que Shusterman contra-argumenta que atos da vontade envolvem esforços de imaginação e, portanto envolvem também alguma espécie de atividade e de meios corporais. Mas, o que mais causa curiosidade em sua 83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
filosofia é que depois de realizar uma verdadeira exortação à “introspecção somática”, e de autonomizar a vontade do jugo do corpo, ele termina promovendo o elogio da fé transcendental na medida em que faz repousar sobre a “Providência sobrenatural” a recompensa do esforço de relaxamento, sem o qual não alcançaríamos a tão almejada “extensão de nossas faculdades individuais” (p. 262). No capítulo 6, “Redimindo a Reflexão Somática – A filosofia de corpo-mente de John Dewey”, Shusterman argumenta sobre a grande novidade conceitual trazida por Dewey à reflexão somaestética, a saber, o conceito “corpo-mente”.
1
Segundo
Shusterman, antes do contato com a filosofia de James, Dewey teria incorrido numa perspectiva idealista da interpretação da relação corpo-mente na medida em que afirmava que “o corpo enquanto órgão da alma é resultado da atividade transformadora e criadora da própria alma”. Mas, após esse contato, pode-se dizer que Dewey procurou aplicar o naturalismo biológico de James, oferecendo uma perspectiva ainda mais unificada do corpo e da mente, buscando transcender a tradicional dicotomia. Ele rejeitou também a ideia de que a vontade fosse algo puramente mental, que independesse do corpo. Na verdade, contrariamente a James, Dewey não concebia a consciência como uma instância privada, mas como uma faculdade cuja natureza é “essencialmente social” (p. 274-6). Também diferentemente de James, Dewey acreditava na eficácia da introspecção somática não só para fins analíticos, mas também práticos, ultrapassando o critério jamesiano e afirmando o valor prático da autoconsciência somática. Assim, Dewey constata que “nossa ação é sempre corporal e mental”, e que “no lugar de uma interação entre um corpo e uma mente, temos um todo transacional de corpo-mente”. Mas é preciso realçar que essa integração é mais uma conquista do que um dado e que “as condições sociais” ocupam papel de destaque nesse processo. É nesse espírito que ele faz uma dura crítica à divisão social do trabalho que insiste em separar o trabalho físico e não intelectual do trabalho puramente intelectual: “os dois extremos refletem ‘desajuste’, um desvio daquela integralidade que é a saúde”. É preciso enfatizar, portanto, que na concepção de Dewey enquanto a mente permanece no âmbito dos eventos naturais, a consciência é inaugurada pela condição linguística que nos lança no reino da Cultura (p. 281). Boa parte desse capítulo está voltada para a apresentação da Técnica de 84 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
Alexander e da influência que ela exerce sobre Dewey enquanto “método sistemático para a reconstrução inteligente do hábito por meio do guiamento daquilo que ele chamou de ‘controle consciente construtivo’”. É de fundamental importância perceber, portanto, que está no “hábito” a origem das próprias ideias que convertem desejos em vontades (p. 293). Dewey nos apresenta, então, a “técnica da inibição consciente do livre arbítrio”, que se baseia na ideia de que é preciso realizar uma força inibidora dos hábitos adquiridos a fim de redimensionar a nova vontade, a partir de um “controle primário”, cujo foco inicial consistiria no treinamento da coordenação postural na área da cabeça e do pescoço. Nessa seara da determinação dos hábitos convenientes a uma expansão total da unidade corpo-mente, Dewey observa ainda que “a verdadeira oposição se dá entre hábitos rotineiros não inteligentes (“fixos e cegos”) e hábitos inteligentes ou artísticos (“sofisticado e inteligente”, “flexível e sensível”), e não, como comumente se pensa, entre hábito e razão (entendida como “controle consciente”) (p. 308). Em suas conclusões, Shusterman nos adverte de que está presente na retórica perfeccionista de Alexander um “individualismo extremamente orgulhoso e estreito alimentado por uma fé humanista cheia de hybris arrogante” (p. 319). A percepção reflexiva de nossos corpos nunca pode parar na pele, pois não podemos sentir apenas o corpo, separado de seu “contexto ambiental”.
Por ser constituído de “relações
ambientais”, o eu é, na verdade, um ente “transacional” (p. 321).
*** “Consciência corporal” é um título muito bem-vindo às estantes de diferentes profissionais que se interessam pelas questões da corporeidade, da estética, da psicologia, da ética, e da biopolítica, sobretudo porque preenche um vazio na literatura nacional existente sobre o tema. Seu texto prima por nos apresentar, sob a perspectiva de diferentes autores, as pedras-base da reflexão contemporânea (não apenas pragmatista) sobre o corpo e a relevância da sua participação na interação do homem com seu meio-ambiente. Além disso, ao fazer sua análise cuidadosa da filosofia somática de autores dos mais diferentes matizes, ele nos proporciona um panorama comparativo sem igual sobre o tema da consciência somática. Suas conclusões finais podem não nos trazer grande novidade em relação ao que foi desenvolvido no livro, mas isso talvez se deva ao fato de que seu interesse tenha sido justamente o de apresentar a questão e não fechá-la. Nesse sentido, pode-se dizer que ele cumpre perfeitamente o 85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 3, Número 4, 2012
papel a que se pretendia no programa de trabalho apresentado anteriormente em “Pragmatist Aesthetics: Living beauty, Rethinking Art”, pois traz o embasamento teórico-conceitual de que a disciplina teórico-prática somaestética se ressentia. Num mundo como o nosso em que o imaginário social está recheado de respostas prontas e imediatamente mercantilizáveis e em que os livros de autoajuda pululam como cogumelos carnívoros nas prateleiras das livrarias, nos oferecendo respostas prontas aos maiores enigmas da existência, o livro de Shusterman bate como uma brisa fresca, pois convoca o leitor a um exercício de reflexão filosófica sobre os limites existentes entre consciência e corpo, e sobre a capacidade do corpo de produzir inteligibilidade e subjetividade, sem, ao mesmo tempo, aliená-lo da angústia necessária a toda e qualquer tomada de consciência Nada do que esse texto nos oferece como solução para o enigma da boa vida é dado de antemão ou pode ser “exportado” como manual, mas sim o resultado de uma tarefa, a tomada de consciência corporal, cujas demandas certamente vão muito além da leitura do livro. A leitura de “Consciência Corporal” é também proveitosa no sentido de nos abrir para uma nova dimensão da tarefa socrática do “Conhece-te a ti mesmo”, a dimensão corporal. Após ter acompanhado o itinerário que o corpo percorre na tradição da filosofia ocidental, da negação socrático-platônica à hipérbole nietzschiana, e aproveitando-se das lições da psicologia pragmatista, Shusterman faz do corpo não um instrumento para, mas um modo de identidade e de constituição de subjetividade. Diferentemente da tradição, mas também de muitos dos seus críticos, a Somaestética pretende resgatar definitivamente o corpo como elemento basal e constituidor da ipseidade humana, que de nenhuma forma encontra-se em contradição com a vida da consciência.
Referências SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte: O pensamento pragmatista e a estética popular. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998. (tradução de Pragmatist Aesthetics: Living beauty, Rethinking Art. Oxford: Blackwell, 1992). _____. Art as Religion. The Journal of Aesthetic Education, vol. 42, n. 3, Outono 2008, pp. 1-18. Tradução de Inês Lacerda Araújo para essa revista. Disponível em: http://www.gtpragmatismo.com.br/redescricoes/redescricoes/ano3_03/trad.pdf
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano III, número 4, 2012 ISSN: 1984-7157
Editor Convidado: Ronie Silveira Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
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