Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano V, número 1, 2013 ISSN: 1984-7157
1 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano – UFRJ Baptiste Grasset - UNIRIO Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Aldir Carvalho Filho e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Editor adjunto: Frederico Graniço Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: "Mesa de estudo”. William Harnett (1848–1892).
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano V, número 1, 2013
Sumário Editorial Notas & Comentários A SARDINHA ASSADA DE DESIDÉRIO MURCHO - Paulo Ghiraldelli Jr Artigos POLÍTICAS PÚBLICAS E LITERATURA (OU QUESTÕES DE (RE)PRESENTAÇÃO – Carmélia Aragão A DESBANALIZAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA NO FILME MULHERES, SEXO, VERDADES E MENTIRAS - Angelita Pereira de Lima e Maria José Pereira Rocha O FILÓSOFO E A CAIXA DE PANDOXA: CONTINGÊNCIA, LIBERALISMO E PÓSILUMINISMO EM RICHARD RORTY - Baptiste Grasset Tradução UM PENSAMENTO SOBRE O HUMOR EXTENUANTE: o Pragmatismo como uma filosofia do sentimento - Richard Shusterman Resenha GHIRALDELLI JR., P.; CASTRO, S. de. A nova filosofia da educação. Barueri: Manole, 2014. por Ronie Alexsandro Teles da Silveira
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Editorial
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Editorial Bem vindo(a) leitor(a) ao número 1 do 5º ano da Revista Redescrições, periódico organizado pelo Grupo de Trabalho em Pragmatismo e filosofia americana, vinculado à ANPOF (Associação Nacional de Pós-graduação em Filosofia). Abrimos a revista com a seção de notas e comentários trazendo um texto de Paulo Ghiraldelli questionando seu amigo professor Desidério Murcho. A questão aqui é quanto à “moralidade altruísta” e a suposta exclusão que essa faria de ações tidas como “interessadas” egoisticamente. A princípio lembrando John Rawls, Ghiraldelli toma como exemplo a atividade sindical para demonstrar, na perspectiva de um Welfare State, a possibilidade de, em alguns casos, reivindicações egoístas coincidirem com a vontade de todos. Abrindo a seção de artigos mantemos o tema sobre reivindicações de políticas públicas. O trabalho de Carmélia Aragão, Políticas públicas e literatura (ou questões de (re)presentação), traz a questão da subalternidade e a capacidade de fala – vista aqui como exercício que pressupõe capacidade criativa e enredo cultural. Através de Spivak, Nussbaum, Amartya Sen, e dos literatos Férrez e Ruffato; Aragão propõe uma perspectiva sobre a literatura que a incorpore à nossa concepção de “necessidades básicas” carentes de políticas públicas – como a saúde, educação, moradia, etc.. Seguindo essa temática sobre justiças ou injustiças não somente estruturais, mas também num nível cultural, o artigo A desbanalização da sexualidade feminina no filme Mulheres, sexo, verdades e mentiras, das professoras Angelita Pereira de Lima e Maria José Pereira Rocha, tece considerações sobre o documentário que mistura realidade e ficção. Partindo da metodologia da desbanalização do cotidiano, proposta por Paulo Ghiraldelli, procuram no filme e nas entrevistas elementos de banalização e/ou desbanalização da sexualidade feminina. Finalizamos a seção de artigos com O filósofo e a caixa de pandoxa: contingência, liberalismo e pós-iluminismo em Richard Rorty, de Baptiste Grasset; o texto é a adaptação da palestra que o professor deu no evento II Conversação rortyana, organizado pelo GT de Pragmatismo e Filosofia Americana em setembro de 2013, e é de grande aprofundamento teórico. Trata-se de uma ampla exposição da abordagem de Richard Rorty sobre a contingência na linguagem, na individualidade e na comunidade.
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Grasset torna clara a posição de Rorty sempre a relacionando com seu aspecto político de um ironismo liberal pós-fundacionalista. Na seção de traduções, seguindo esse aprofundamento teórico sobre o pragmatismo, um artigo de Richard Shusterman (filósofo que cunhou o conceito da soma-estética): Um pensamento sobre o humor extenuante: o Pragmatismo como uma filosofia do sentimento. Preocupado em considerar as influências do corpo e da corporalidade, Shusterman explana sobre o papel dado ao humor pelos pragmatistas clássicos, desde Peirce, passando por James, chegando a Dewey e até o contemporâneo Richard Rorty. O “humor extenuante” seria uma característica necessária para os desenvolvimentos estético e intelectual mais arrojados. E mesmo em Rorty, que por sua ênfase na questão epistemológica desfoca de qualquer fundamento fora da linguagem, como a experiência por exemplo; o papel desse humor pode ser percebido na descrição que faz do “poeta forte”, na necessidade privada de auto-criação. Finalizando esse número, na seção de resenhas, Ronie Alexsandro Teles da Silveira apresenta o livro A nova filosofia da educação, de Paulo Ghiraldelli e Susana de Castro. O livro aborda a questão educacional dando enfoque a seus contextos de desenvolvimento, mais interessado em seus aspectos relacionais e contingentes com a sociedade, do que com uma “teoria da educação” propriamente dita, apartada. Segundo Ronie da Silveira a leitura vale a pena; o livro aborda questões como cultura de massa, ensino profissionalizante, formação superficial, desumanização do trabalho, crise da cultura, modernidade e pós-modernidade, consumismo, bullying, ensino de artes, violência, entre outros temas. Agradecemos a atenção, a leitura e divulgação de nosso periódico! Para o próximo número estamos preparando um material temático em homenagem ao filósofo e crítico de arte norte-americano Arthur Danto, não perca! Boa leitura.
Frederico Graniço, editor adjunto.
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Notas & Comentários
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A SARDINHA ASSADA DE DESIDÉRIO MURCHO1
Paulo Ghiraldelli2
O professor Desidério Murcho levanta o argumento provocador de que vivemos em uma “sociedade de ladrões”. Qual a razão de julgamento tão negativo quanto a nós todos, no Ocidente, supondo que vivemos em estados mais ou menos ligados ao modelo do Welfare State? Murcho diz que ele não gostaria de viver em uma sociedade que tivesse como modelo de justiça o que John Rawls nos convida a fazer. Qual o convite de Rawls? Rawls nos convida a preparar uma sociedade mais ou menos como a nossa, democrática, liberal e de mercado, mas com regras de justiça bem claras. Faríamos isso sem saber em qual lugar social dessa sociedade iríamos cair, depois de regrá-la. Mas que, sem dúvida, seríamos nós mesmos que iríamos viver nessa sociedade. O filósofo norte-americano aposta que, assim propondo, agiríamos de “maneira racional”, não optando pelo liberalismo clássico, mas enveredando por um regime mais ou menos como o Welfare State. Ou seja, um regime em que os mais pobres teriam ajuda dos mais ricos, enquanto que os mais ricos poderiam se desenvolver tranquilamente, sempre, no entanto, lembrando que esse desenvolvimento não poderia se dar de modo completamente egoísta, mas segundo a responsabilidade de pagar os impostos para que a distância entre ricos e pobres não se tornasse cada vez maior. Ora, por que Murcho chama essa sociedade de uma “sociedade de ladrões”? Por que ele considera essa sociedade imoral? Ele diz que ela é imoral exatamente no sentido que Rawls diz que ela é racional. Qual a racionalidade envolvida aí? A racionalidade do interesse de cada um. Não sei que lugar irei cair na sociedade regrada, então, vou montá-la como sociedade de tipo social democrática, um Welfare State, pois se eu cair no campo dos mais pobres, ainda assim eu não estarei completamente desgraçado, terei uma ajuda estatal. Caso eu tivesse de regrar essa sociedade, mas não para eu próprio nela morar, será que eu escolheria uma sociedade baseada no Welfare State? Murcho faz essa pergunta exatamente para que se pondere o seguinte: regrar algo para nós mesmos nos faz colocar nossos interesses na jogada, defender nosso ponto de vista, “puxar a brasa para nossa 1
O professor Desidério Murcho é um amigo de longa data. Somos dinossauros do uso da internet na filosofia, como ele mesmo disse. A fala dele no evento de filosofia dos estudantes da UFRRJ foi um presente, pois foi tão gostosa e provocativa que fez com que eu escrevesse esse texto de uma só tacada, mesmo cansado. 2 Filósofo, escritor, cartunista e professor da UFRRJ. 8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
sardinha”. “Puxar a brasa para a própria sardinha”, segundo Murcho, pode ser racional, mas não é moral. O raciocínio de Murcho me parece claro e creio que ele tem razão. Todavia, ele tem razão se concordarmos com ele que racionalidade vai para um lado e moralidade vai para o outro. Ou dizendo de um modo melhor: que a racionalidade invocada no caso, a que expressa “puxo a brasa para a minha sardinha”, guarda não só características racionais, mas guarda características egoísticas. Ora, como não admitir que, sendo egoísta, não se é, ao menos em um determinado nível, imoral? Tudo resolvido então? Podemos dispensar Rawls como o campeão de justiça imoral, como Murcho parece querer decretar? O que Murcho parece deixar de lado é a questão da “fundamentação da moral”. Ele não põe em questão o que ele entende como moral. Para ele, moral é desde o início incompatível com qualquer ação que não seja puramente altruísta. Ou se é completamente altruísta, para além de qualquer mudança histórica, ou não se é moral. Posso entender isso, mas não preciso achar que isso tem de ser tomado de maneira acrítica, como sendo uma verdade que em momento algum deva ser questionada. Creio que um exemplo simples pode ser dado, no sentido de criticar isso. Trata-se de um exemplo utilizado por Mucho em sua fala. Ele diz que quando nós, professores, fazemos uma greve, nós dizemos que “a educação é importante”, e com isso queremos apenas “puxar a sardinha para a nossa brasa”, ou seja, queremos tirar do empregador, o estado, um salário maior. Concordo plenamente com ele. Mas, caso ele possa fazer uma reflexão menos objetivista e, então, levar em consideração a subjetividade de cada reivindicante, ele irá notar que vários dos professores, talvez espantosamente, não estão dizendo que “a educação é importante” sem acreditar realmente nisso. É difícil afirmar peremptoriamente que todo professor acredita que a educação é desimportante, que tanto faz termos uma sociedade educada ou não, e que estamos dizendo o que estamos dizendo, ao louvar a educação, apenas para tirar o dinheiro do estado, ou seja, para egoisticamente “puxar a brasa para a nossa sardinha”. Caso pudéssemos realmente afirmar isso, que cada um de nós, professor, é alguém incapaz de ter um discernimento sobre prioridades sociais, e que a despeito de qualquer outra coisa na sociedade, iríamos bater na tecla que ou se paga o professor com o maior salário ou então é injustiça, então Murcho estaria correto. Agiríamos egoisticamente. Mas não agimos assim. Na prática não só não agimos assim como não falamos isso. Nossos sindicatos puxam a “sardinha para a nossa brasa” dentro de um 9 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
comedimento que chega até a ser bem condescendente com outras prioridades sociais. A práxis social na qual nos inserimos não nos faz sermos turrões, sermos grevistas profissionais, nem sermos vingativos de modo a nunca mais votar naqueles que não aumentaram nossos salários a ponto de nos deixar no topo da escala salarial. Ora, se é assim, não podemos dizer que ao viver em uma sociedade livre, com sindicatos livres e com a capacidade de poder “puxar a sardinha para a nossa brasa”, somos necessariamente todos egoístas. É bem difícil aceitar que estamos em uma sociedade que poderia ser acusada de “uma sociedade de ladrões”, ou seja, uma sociedade em que cada um só tem o único interesse de roubar uma parte do outro para aumentar a sua. Não temos que dizer que a natureza humana é boa, com Rousseau, nem temos que admitir que a natureza humana é má, com Hobbes. Nem mesmo precisamos admitir que a natureza humana é sociável-e-insociável, como Kant propôs. Podemos simplesmente deixar de lado a ideia de natureza humana e apelar para uma moralidade que venha a emergir da nossa práxis social, da nossa prática ou, melhor dizendo, da nossa pragmática. Nosso vocabulário moral diz que somos corporativistas ao negociar salário, mas diz que, no caso dos professores, o corporativismo não é completamente egoísta, uma vez que nosso corporativismo, não raro, está inserido em um vocabulário moral mais amplo, da sociedade toda, pois em uma sociedade liberal como a nossa, em alguns momentos, é possível encontrar muita gente defendendo a ideia de que os professores merecem bons salários. Há momentos, sim, que a ideia de “prioridade da educação” não é hipocrisia de político no palanque e mero corporativismo egoísta de professor vendo o comício. Pela regra de Mucho, nessa hora, teríamos de dizer algo pouco razoável: “todos são morais, pois admitem a educação como um setor a ser beneficiado, mas ao mesmo tempo, pelo mesmo motivo, os professores são egoístas”. Ora, entraríamos por uma situação pouco razoável e empiricamente incapaz de traduzir alguma verdade. Desse modo, não há como tirar do campo histórico a moral de maneira que ela não possa olhar momentos em que, por tudo que sabemos, seria duro não admitir uma ação de “puxar a sardinha para a nossa brasa” como tendo o mesmo sentido e a mesma motivação (sim, a mesma motivação!) que é a ideia de benefício social geral. O que quero dizer é que se deixarmos de lado a cobrança de Murcho, no sentido de que um princípio moral como “temos de ser altruístas” seja válido aprioristicamente e para sempre, como um imperativo moral saído da consciência de 10 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
cada um, então poderemos ver que, em determinados momentos agiremos egoisticamente, e seremos criticados, e em outros momentos não, e ao mesmo tempo não seremos criticados. Há concordâncias sociais nossas, de professores reivindicantes, com as da sociedade como um todo, que nos faz todos, sinceramente, nos colocarmos na condição de altruísmo para uns (eles) e ao menos neutralidade para outros (nós). Uma situação assim seria uma situação em que diríamos: eis um momento em que vinga alguma moralidade, eis um momento em que estamos concordando e, ao mesmo tempo, adquirindo uma vantagem – uma vantagem para todos. Uma situação assim seria ao mesmo tempo de justiça e de lealdade, se quisermos aqui, para terminar, usar um termo de Richard Rorty.
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Artigos
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POLÍTICAS PÚBLICAS E LITERATURA (ou questões de (re)presentação)
Carmélia Maria Aragão1
RESUMO A partir do conceito de representação (o ato de assumir o lugar do outro numa acepção política da palavra) e re-presentação (o ato de performance ou encenação da fala) tratado por Spivak (2010) com o objetivo de pensarmos a Literatura como promotora de espaços dialógicos no combate à subalternização. Contextualizaremos a proposta de Spivak com o debate levantado por Martha Nussbaum (1995) sobre a importância da imaginação literária na vida pública, que traz a literatura como ferramenta principal para o desenvolvimento político e social. Palavras-chaves: Literatura; (re) presentação; subalternidade; espaço dialógico; imaginação.
RESUMÉ: À partir de la notion de représentation (l'acte de prendre la place d'un autre dans le sens politique du terme) et la re-présentation (l'acte de performance ou de la mise en scène de la parole) abordée par Spivak (2010) afin de réfléchir sur la littérature comme élément promoteur d'espaces dialogiques dans la lutte contre la subordination. On fera une contextualisation de la pensée de Spivak avec le débat soulevé par Martha Nussbaum (1995) sur l'importance de l'imagination littéraire dans la vie publique, ce qui met en évidence la littérature comme le principal outil de développement politique et social. Mots-clés: Littérature; (re)présentation; subordination; espace dialogique; imagination
Não foi somente a discussão sobre a postura do intelectual levantada por Spivak no livro (ou artigo) Pode o subalterno falar?(2010)2, no original, Can the subaltern speak? (1988), que me levou a procurá-la como teórica; a resposta que poderia advir dessa questão, fez-me refletir como pesquisadora. Quem trabalha na área de estudos culturais e pesquisa sobre minorias étnicas ou determinados grupos postos à margem já se fez essa pergunta, como também já questionou seu próprio lugar de fala ao lado dessas pessoas ou na frente da Academia. Tratarei aqui dessas questões e colocarei minhas dúvidas e propostas. Mas antes, é preciso dizer que: não, o subalterno não pode falar. A abordagem da subalternidade foi tratada no livro a partir da questão 1
Carmélia Aragão faz doutorado na PUC - Rio pelo programa de pós- graduação em Literatura, Cultura e Contemporaneidade. É também bolsista da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico/FUNCAP. Email: carmelia.aragao@gmail.com 2 “O artigo ‘Pode o Subalterno falar? ’, foi publicado primeiramente em 1985, no periódico Wedge, com subtítulo “Especulações sobre o sacrifício das viúvas”, recebeu notória repercussão, principalmente após ter sido publicado, em 1998, na coletânea de artigos intitulada Marxism and Interpretation of Culture (...)”. (c.f ALMEIDA, 2010: p. 12) 13 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
sacrifício das viúvas na Índia, um ritual chamado sati. Spivak descreve duas formas de discurso criadas em torno dessas mulheres sacrificadas. O primeiro é opressão da própria tradição hindu que torna a mulher um objeto do marido. O segundo está na literatura de língua inglesa, com o olhar displicente homogeneizante acerca daqueles que não faziam parte da elite colonizadora. Os nomes das viúvas sacrificadas, muitas vezes, não eram grafados na pira do sacrifício, ou os poucos que foram, perderam-se na violência epistêmica de uma tradução suja, virando um folclore sobre aqueles seres exóticos. Para a autora, esses dois discursos formam uma parede onde se encerra o subalterno, no caso, a viúva indiana que nunca pôde reivindicar seu lugar de fala. A partir desta ilustração, Spivak alerta para o perigo de se construir o outro e o subalterno apenas como objeto de conhecimento por parte dos intelectuais que almejam meramente falar pelo outro. Ela critica a postura do intelectual do “terceiro mundo” que recorre às matrizes teóricas, no caso, europeia e, ao fazer isso, é “cúmplice3” do discurso hegemônico, pois as estruturas de poder e opressão vão sendo apenas reproduzidas, mantendo o subalterno silenciado, sem lhe oferecer uma posição, um espaço onde possa falar, principalmente, no qual possa ser ouvido. Antes de utilizar o exemplo do sati, Spivak faz uma longa crítica à matriz europeia francesa, especificamente, a Foucault e Deleuze. Argumentarei em favor dessa conclusão considerando um texto de dois grandes expoentes dessa crítica: ‘Os intelectuais e o poder: conversa entre Michel Foucault e Gilles Deleuze’. [...] ambos os autores ignoram sistematicamente a questão da ideologia e seu próprio envolvimento na história intelectual e econômica. (SPIVAK, 2012: p.26-27).
A Índia e o Brasil hoje estão juntos na classificação econômica, fazem parte do bloco dos “países emergentes” com grande potencial de consumo: os BRICS. No passado, também fomos colonizados e também sofremos perdas irreparáveis. No entanto, as consequências do colonialismo na Índia ou na China, que são culturas já estabelecidas e têm seus fundamentos baseados em várias hierarquias e tradições, ocorreram de uma forma que leva Spivak, hoje, a traçar uma linha de pensamento sociológico ou filosófico para desenvolver sua abordagem da subalternidade pertencente
3
“Diante da possibilidade de o intelectual ser cúmplice na persistente constituição do Outro como a sombra do Eu [Self], uma possibilidade de prática política para o intelectual seria por a economia sobre rasura, para perceber como o fator econômico é tão irredutível quanto reinscrito no texto social.” (SPIVAK, 2012: p. 59-60). 14 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
ao contexto que lhe cabe como hindu. No Brasil, o processo de colonização misturou de tal forma, colonizador e colonizado, a partir do extermínio das populações locais, por exemplo, e, cujas consequências, por muitas razões, não nos levaram a uma abordagem da subalternidade hoje, da mesma forma que Spivak e a crítica pós-colonial4. Como falei no início, não foi somente a crítica sobre a postura do intelectual diante do Outro que me chamou no texto de Spivak, foi principalmente a distinção do termo “representação”. A autora nos traz dois sentidos dessa palavra em alemão – Vetretung e Darstellung: o primeiro, se refere ao ato de assumir o lugar do outro numa acepção política da palavra, e o segundo, a uma visão estética que prefigura o ato de performance ou encenação. Na análise de Spivak, há uma relação intrínseca entre o “falar por” e “re-presentar”, pois, em ambos os casos, a representação é um ato de fala em que há a pressuposição de um falante e de um ouvinte. Com isso, Spivak aponta para a tarefa do intelectual pós-colonial que deve ser a de criar espaços por meio dos quais o sujeito subalterno possa falar para que, quando ele o faça, possa ser ouvido. Para ela, não se pode falar pelo subalterno, mas pode-se trabalhar contra a subalternidade. Na arte, mais especificamente, na Literatura, os espaços dialógicos, de representação e re-presentação emergem de forma mais clara. A voz dos seres colocados à margem surge impressa em livros, folhetos, vídeos, reivindicando, ou seja, traçando sua identidade, seu modo de ver e viver o mundo ao redor, redescrevendo-se5. De imediato, lembro-me de Férrez e do livro Capão do Diabo (2000). De uma forma ou de outra, a Literatura pode colocá-lo em um espaço de diálogo onde ele fala e é ouvido, onde ele representa a voz da periferia de São Paulo e, ao mesmo tempo, coloca-a em cena (re-presentando-a). No entanto, no dia 08 de outubro, na abertura da Feira do livro de Frankfurt, a maior feira literária do mundo, o escritor brasileiro Luiz Ruffato chocou as autoridades locais e a delegação brasileira presente no evento com um duro discurso sobre as desigualdades do Brasil. Entre tantos exemplos e algumas experiências, a fala de Ruffato, além de ser polemicamente recente, também se direciona ao ponto onde quero chegar para justificar o título deste texto e cujo tema é Literatura e políticas públicas. 4
Paulo Freire já fazia uma abordagem da subalternidade, na década de 70, referindo-se ao “oprimido” ou ao “desenraizado” como aqueles que não possuem nenhuma autoridade semântica. 5 Redescrição é o termo utilizado por Richard Rorty para questionar os discursos legitimadores sobre a existência de uma forma verdadeira (única) de se conceber (dizer) o mundo.
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Primeiramente, o escritor se coloca como alguém que produz literatura na periferia do mundo, em um país cuja língua não tem grande alcance, e que, ironicamente, escreve para um número, cada vez mais, restrito de leitores dentro de seu próprio território. Ruffato chama atenção para nossa incapacidade de nos colocar no lugar do outro, diz que vivemos o dilema do ser humano que é o de lidar com a dicotomia eu/outro. Uma vez que a afirmação de nossa subjetividade se verifica através do reconhecimento do outro, é a alteridade que nos confere o sentido de existir. Porém o outro é também aquele que pode nos aniquilar. E, mais à frente, no último parágrafo, o autor toca no ponto, no qual muitos dos que estão aqui, que escolheram o caminho não tão economicamente rentável das humanidades acredita: no papel transformador da literatura. De origem humilde, o escritor poderia ter o mesmo destino dos que estavam com ele, o de permanecer, mas encontrou na literatura a possibilidade de um espaço dialógico pela sua capacidade de autocriação.
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade. Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro – seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual– como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora” (RUFFATO, 2013).
No entanto, com exemplos citados de Luiz Ruffato ou de Férrez podemos nos perguntar: e se levássemos esse “poder transformador” da Literatura para todos? Em primeiro lugar, não vamos pensar que ao entramos em contato com a literatura todos seremos escritores, poetas ou filósofos e assim, construiríamos um mundo melhor. Em segundo lugar, não podemos acreditar cegamente em um “poder transformador”, nos tornaríamos fundamentalistas. Como se disséssemos, parodiando o maravilhoso Augusto Matraga: “a literatura tem que mudar as pessoas nem que seja a porrete”. Quer dizer, a Literatura passaria a servir a um projeto, a um único objetivo, erro comentido pelos regimes totalitários e cujas consequências são desastrosas. 16 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
O que podemos fazer é uma aposta6 na qual podemos ganhar ou não. Porque Literatura é arte. E como toda obra de arte, ela é uma experiência estética tanto para quem faz como para quem recebe. E, contraditoriamente, por não ter nenhum objetivo, por “não servir para nada”, que ela rompe a mecânica do cotidiano, criando espaço à contingência, para o poder da autocriação, por meio de algo que pode nos parecer banal: a imaginação. Leio há algum tempo sobre políticas de desenvolvimento humano. A política de desenvolvimento humano7, segundo o próprio idealizador, Amartya Sen, foi pensada a fim de propiciar o exercício das liberdades, dando aos indivíduos a possibilidade de escolher a vida que gostaria de levar. Ou seja: uma sociedade que investe em educação, cultura, saúde, segurança, permite ao indivíduo a capacidade de pensar por si e de se empenhar por uma vida boa. E a literatura, onde apostamos nossas fichas, encontra lugar neste paradigma. A teoria de Sen pensa a cultura de duas formas. A primeira como um setor cultural que agrupa as atividades e produtos derivados dessas atividades artísticas e criativas. Ele ressalta que a criatividade é vista como a principal alternativa para o desenvolvimento humano e social. Sen discorda da ideia dos paradigmas econômicos anteriores que valorizavam a criatividade voltada apenas para a economia e a tecnologia. A segunda forma de pensar a cultura, para ele, está sob a perspectiva socioantropológica de que a cultura não se restringe apenas a produção artística, mas representa também um conjunto de valores que estão presentes em todas as interações sociais. Quer dizer: “Toda atividade humana é a expressão de uma cultura que a atravessa e é esta que nos permite dar sentido e valor às atividades humanas em termos relativos8”. Para Martha Nussbaum9, filósofa norte-americana e companheira de Sen em sua abordagem das capacidades. Ela acredita que seria necessária uma lista de funcionamentos
ou
de
propriedades
essenciais
que,
juntamente
com
Sen,
transformaram-se na lista das “capacidades humanas básicas” que, resumidamente, são: vida; saúde; integridade física; sentidos, imaginação e pensamento; emoções; razão
6
O termo “Aposta” aqui pertence ao contexto utilizado por Marcel Mauss em Ensaio sobre a Dádiva. Para ele sem a aposta, não existiria o dom e, portanto, não haveria sacrifício, gratuidade, generosidade e, muito menos, liberdade. 7 C.f. GUARÍN, 2012. 8 Idem. 9 C.f. CHAVEL, 2013. 17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
prática; afiliação; outras espécies; jogo; e controle sobre o seu entorno.10 Segundo Nussbaum investir nas humanidades é investir em seres humanos, homens e mulheres, capazes de refletir sobre seu papel como cidadão. Nussbaum aposta na imaginação como a capacidade que devemos desenvolver para criar esses indivíduos. Porque a imaginação11, como capacidade, move-nos a pensar a partir do lugar do outro, ajuda a sermos um leitor de vidas, compreendendo emoções, angústias, aspirações, desejos do outro em determinadas situações. É dessa forma que podemos tirar a Literatura da esfera privada e levá-la para a esfera pública. Portanto, ao reconhecer a imaginação como uma capacidade humana básica, deve-se trabalhar para que todos possam usufruir dela, da mesma forma que a saúde é também uma capacidade humana básica e se trabalha na implementação de políticas públicas de acesso a programas de medicina preventiva, por exemplo. No caso da imaginação são as políticas públicas de acesso ao livro, à leitura literária, a cultura, tudo que possa estimulá-la. Porque só assim poderemos ouvir vozes dissonantes como o discurso de Luiz Ruffato e a voz de tantas outras pessoas que conhecemos, que estão ao nosso lado sem tribuna, sem microfone, plateia, mas que se colocam em cena.
REFERÊNCIAS ALMEIDA, Sandra Regina Goulart de. “Prefácio – Apresentando Spivak” In: SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010; p. 7-21. CALDER, Gideon. Rorty e a Redescrição. Trad. Luiz Henrique de Araújo Dutra. São Paulo: UNESP, 2006. CHAVEL, Simone. “L'utilité sociale des humanités” Disponível em: http://www.laviedesidees.fr/L-utilite-sociale-des-humanites.html, Consultado em 01/06/2013. GUARÍN, Sergio. “Reflexiones sobre indicadores de leitura” in texto produzindo a pedido do CELALC em 04/09/2012. NUSBAUM, Martha, “La imaginación literaria en la vida pública” In ISEGORÍA: Revista de Filosofía Moral y Política nº 11, 1995, p.42-80. ________. Las fronteras de la justícia: consideraciones sobre la exclusión.Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 2007. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. Trad. Antônio Felipe Marques. Edições 70: Lisboa, 2008. 10
Tradução minha a partir de NUSSBAUM, 2007. NUSBAUM, Martha, “La imaginación literaria en la vida pública” In ISEGORÍA: Revista de Filosofía Moral y Política nº 11, 1995, p.42-80. 18 11
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RUFFATO, Luiz in “Discurso de aberto da Feira de Frankfurt”, Disponível em:: http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,leia-a-integra-do-discurso-de-luizruffato-na-abertura-da-feira-do-livro-de-frankfurt,1083463,0.htm Consultado em 08/10/2013. SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad. Sandra Regina Goulart de Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa –Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
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A DESBANALIZAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA NO FILME MULHERES, SEXO, VERDADES E MENTIRAS
Angelita Pereira de Lima1 e Maria José Pereira Rocha2
RESUMO Neste artigo as autoras analisam o filme brasileiro Mulheres, sexo, verdades e mentiras com base em sua estratégia narrativa para abordar a sexualidade das mulheres. Baseiamse no processo de desbanalização do discurso sobre o sexo. O documentário é uma narrativa que aposta no escancaramento de duas instâncias de realidade: a criação ficcional e os depoimentos de pessoas reais. Dessa forma, esta obra revela uma produção engenhosa e atual sobre as circunstâncias que envolvem o sexo, as verdades e mentiras sobre a sexualidade feminina. Adotou-se como procedimento metodológico a exibição coletiva do filme e grupo de discussão. Neste trabalho aborda-se o tema da sexualidade feminina na perspectiva da autonomia das mulheres. Palavras-Chave: Sexualidade feminina, banalização/desbanalização, cinema brasileiro.
ABSTRACT In this article, the authors analyze the Brazilian movie “Women, sex, truths and lies” focusing on the narrative’s strategy to approach the women's sexuality. They are based on the process of the undoing the trivialization of the speech on the sex. The documentary is a narrative which explicitly tries to show two realities: the ficcional creation and the real people's testimony. In that way, this work reveals an ingenious and current production on the circumstances that involve the sex, the truths and lies about the women’s sexuality. It was adopted as methodological procedure the collective exhibition of the film and a discussion group. The article approaches the theme of the feminine sexuality in the perspective of the women's autonomy. Key-word: Feminine sexuality, trivialization/undoing trivialization, Brazilian movies.
1- Introdução A proposta deste artigo aponta para a questão filosófica acerca da desbanalização do banal que, no entendimento do neopragmatismo rortyano defendido por Ghiraldelli (2012), é tarefa da filosofia. A desbanalização é um campo da Filosofia moderna que pressupõe o lançar-se ao que é banal, corriqueiro. Implica também lançarse ao cotidiano, não para iluminá-lo ou explicá-lo, mas para lambuzar-se nele e dele indagar o que ninguém indaga. Nas palavras de Ghiraldelli para fazer Filosofia
1
Professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Goiás - Bolsista da Fapeg – anja.angelita@gmail.com. 2 Professora da Pontifícia Universidade Católica de Goiás – Rocha.maze@hotmail.com. 20 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
(...) pode-se conversar sobre tudo, mas sempre mirando o que não tem de ser mirado, na opinião da maioria. Tudo é assunto para o método da filosofia: natureza, sexo, administração, dor, homem, dinheiro, cinema, poder, mulher, pobreza, aborto, conhecimento, mente, arte, violência, criança, política, arquitetura, velhice, trabalho, ensino, leis, etc. (Ghiraldelli Jr, 2003:1).
E como se faz isso? Segundo o próprio método filosófico alcança-se a desbanalização conversando sobre o banal. Quando nos propusemos construir este artigo, o ponto inspirador foi justamente o modo como o filme Mulheres, sexo, verdades mentiras discute a sexualidade feminina a partir da banalidade cotidiana e atinge versões múltiplas de sexo, prazer e feminilidade. Ao nos apoiar em Ghiraldelli, estamos cientes de que “Só sabemos que o banal perdeu sua banalidade quando a narrativa que produzimos faz com que possamos nos sentir estranhos, fora do mundo, mesmo estando vivendo no mais corriqueiro e bem conhecido mundo em que sempre vivemos” (Ghiraldelli Jr, 2011:1). Nesse sentido, estamos em busca dos estranhamentos produzidos pela película e objetivamos demonstrá-los. O filme brasileiro - Mulheres, sexo, verdades e mentirasdirigido por Euclydes Marinho, é uma obra criada em duas instâncias de realidade. Uma é o da ficção em que Laura, a protagonista, é uma cineasta que passou por uma crise no casamento durante sete anos e conheceu o prazer sexual com outro homem. Enquanto ela vive essa nova descoberta, resolve fazer um documentário sobre a sexualidade feminina com foco no prazer e nas práticas sexuais das mulheres. O filme é, nessa instância de realidade, narrado a partir dos dilemas vividos pela protagonista. A outra instância de realidade é o documentário em que a personagem fictícia, Laura, colhe depoimentos de personagens reais que falam de suas práticas sexuais, seus tabus, medos e prazeres. Tais personagens são abordadas nas ruas e em seus locais de trabalho. Isto fica evidente nas participações da taxista e da trabalhadora do sexo. Nessa perspectiva, o filme se torna uma meta narrativa à medida que a produção do documentário converte-se, em quase sua totalidade, o próprio roteiro de Mulheres, sexo, verdades e mentiras. O referido documentário é uma narrativa que aposta no escancaramento dessas intâncias de realidade: a criação ficcional e os depoimentos de pessoas reais. É um filme dentro de outro que vai se desenrolando concomitantemente. Dessa forma, esta obra nos brinda com uma produção engenhosa e atual sobre as circunstâncias que envolvem o sexo, as verdades e mentiras sobre a sexualidade feminina. 21 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
2 – A banalização do sexo e da mulher Um olhar mais acurado permite descobrir, em diferentes áreas, locais e espaços, a banalização do sexo e das mulheres: tudo é descartável e substituível. Se partirmos do pressuposto de que banal é tudo aquilo que se tornou vulgar, sem valor, sem importância e que contenha um sentido desprezível; é possível argumentar que tanto a mulher quanto a sexualidade constituem zonas de alto teor de banalização até ao ponto de objetalizar e reificar a mulher a partir do sexo e de suas representações cotidianas. Já nas cenas iniciais do documentário identificam-se algumas mulheres e objetos que remetem ao sexo os quais surgem com pequenas tarjas pretas fixadas estrategicamente sobre olhos, bocas, seios, genitálias e outras partes do corpo. As legendas em formato de tarjas têm dupla função. A primeira é a de delimitar os espaços onde são impressos os créditos e caracteres da produção do filme e a segunda é delimitar um dos campos de linguagem do filme. Elas levam à percepção da presença do interdito e do proibido no que concerne às falas, ao corpo e à exposição da temática. Esse fato também desperta curiosidade ao ponto de se perguntar: por que as faixas se inserem nesses locais e não em outros? O início da película coincide com a primeira cena do documentário; esta é constituída de depoimentos em que as mulheres já apontam para elementos banais da sexualidade, como: a pornografia, o sexo e o consumo de produtos e mercadorias sexuais. A primeira pessoa que surge na tela diz que adora filme de sacanagem e que depois de ver um filme pornô adora fazer uma pirocagem. A fala dessa mulher remete a uma prática da sexualidade que já se tornou normal e que podemos encontrar em um motel ou quando ligamos a TV. Se vamos a uma banca de jornal encontramos uma imensidão de filmes pornográficos; a Playboy tornou-se uma revista popular cheia de celebridades e artistas que se expõem nesse veículo. Outro espaço que apresenta e disponibiliza a pornografia em profusão é a internet que agora liberou também as imagens de nudez. Um exemplo de grande sucesso são os vídeos de Marcelinho lendo contos eróticos. Esses vídeos se popularizaram tornando-se hits de sucesso. Como mencionado, o filme começa com o depoimento de uma jovem negra; segue com uma mulher comportada que arruma a saia cobrindo pernas e joelhos ao 22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
mesmo tempo em que declara não gostar de sexo, que o trocaria por um amor verdadeiro. Outra entrevistada fala com intimidade sobre o “pau” e o descreve como mole, duro, pequeno, grande. Há confissões que se revelam do mais íntimo e escondido para o mais explícito, vergonhoso, sem importância e valor. A diversidade é tanta que o órgão genital masculino ganha estatuto de sujeito. Uma participante revela que o “pau” para ela é uma pessoa e o amado dela é outra. A linguagem pornográfica é banal, sendo exposta com naturalidade como se o órgão mencionado fosse uma pessoa ou um grande amigo. Em meio a essa lógica de exposição, aparece a primeira cena da ficção: a protagonista Laura (vivida por Júlia Lemertz) está posicionada em frente a uma câmera, em sua cama, narrando sua experiência sexual após sete anos de crise em seu casamento. A cineasta faz seu depoimento como se fosse personagem de seu documentário numa tentativa de igualar as duas instâncias de realidade. Ela narra as dificuldades do seu casamento e a sua experiência com um amante que conheceu casualmente em uma viagem. Nada mais banal que a crise de seu casamento para impulsioná-la a buscar uma nova relação e, ao mesmo tempo, levá-la a fazer um filme. Assim informa: “com ele tomei posse do meu tesão”, ou, “minha vagina tornou-se um órgão mais que vital”. A banalidade se faz presente também na cena em que ela discute com sua irmã e uma amiga os apelidos do órgão genital feminino: “xerequinha”, “minha Barbie”, “pombinha”. A irmã da protagonista pergunta por que falar de sexo se há tantos temas interessantes para um documentário. Argumenta que falar de vagina é sinal de mau gosto. Na sequência, a cineasta inicia a produção do documentário; sai às ruas e entrevista as pessoas. Ela pergunta: “você gosta de sexo?” Diferentes pessoas assim afirmam: sexo é sacanagem, sexo é natural, coisa fisiológica. A irmã de Laura revela que não gosta de sexo, que tem dificuldade para falar e menciona que fingia tudo com o marido. Logo após o ato ele virava para o lado e roncava. Há outra pergunta que mostra a banalidade do tema, tendo uma conotação provocativa no documentário: “Você se masturba?” Uma afirma que sim, outra que não e que tem vergonha de falar e outra que só de pensar no prazer tem uma sensação de vazio, mas acaba aprendendo e gostando da experiência; quando fica muito tempo sem sexo se masturba bastante. Completando esse assunto aparece um grupo de jovens conversando sobre a masturbação; elas falam da experiência de se masturbar no chão, sentada em canto da mesa e com outros objetos. Outra participante menciona que não se 23 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
masturba e que prefere o vibrador. Uma depoente afirma que a masturbação é uma forma de descobrir os seus pontos mais sensíveis. Uma trabalhadora do sexo relata o caso de um homem que fez sexo com uma mulher e não percebeu que ela estava dormindo. Aqui, a banalidade é expressa no seu grau máximo. O parceiro não percebeu a parceira ao seu lado. Ele vivencia o sexo de forma automática como se usasse um objeto qualquer Uma senhora idosa conta que viveu durante 40 anos sem saber o que era prazer e só descobriu o orgasmo com o seu segundo marido. Outra diz que o bom do sexo é o depois. Nesses casos, a banalidade é cotidiana e vivida por anos a fio sem a descoberta do corpo e do prazer. Em meio a todos esses depoimentos, a película retoma a narrativa ficcional quando a cineasta apresenta os motivos de fazer o filme em conversa com uma jornalista que a entrevista. Ela diz que essa produção é um trabalho, uma busca. Então declara: “Tive um bloqueio que me impedia de sentir prazeres fundamentais”. A interferência da ficção, em vários momentos, parece cumprir o papel de interpretar e justificar a banalidade que envolve o tema e, ao mesmo tempo, incorpora o drama na narrativa ficcional que é a relação obscura que Laura tem com o amante. Ele está sempre ausente, só aparece em cenas entrecortadas. Ela tem crises de ciúmes e insegurança, quer um relacionamento fixo e seguro. Assim, surge a tema da traição que se legitimou como uma prática masculina. No entanto, confirmando essa temática uma participante diz uma frase emblemática que marca esse momento: “chifre trocado não dói”. Corroborando esses depoimentos outra participante fala que não consegue ficar com um homem só. Na continuidade aparece uma taxista que comenta sobre o assunto na rotina de seu trabalho. Ela se expressa de forma desinibida sobre sexo, sexualidade, gostos, relações e fantasias. Ao dar seguimento no roteiro, Laura filma um grupo de discussão focal que se reúne à beira da piscina e discute sexo/sexualidade e relações sexuais. Elas começam revelando nome, profissão, idade e estado civil. Faz-se a primeira rodada de apresentação e uma delas começa a falar sobre suas fantasias sexuais: transar com um desconhecido no escuro, ter um orgasmo na piscina fazendo sexo e que as outras pessoas presentes sejam testemunhas. Uma das participantes informa que gostaria de transar dentro de um carro. Na sequência, uma das entrevistadas diz que realizou sua fantasia brincando de ceguinho com o parceiro. Uma participante revela que gostaria de 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
transar dentro do elevador e outra mais diz que sua fantasia é dar para três caras ao mesmo tempo. A entrevistada seguinte afirma que não tem fantasia, mas que o marido dela falou de transar com duas mulheres. Ele convidaria e queria vê-la transando com outra mulher, o que acharia lindo. O documentário prossegue e outra mulher faz seu depoimento dizendo que resolveu fazer um strip-tease e o marido não entrou na brincadeira, pois preferia ver televisão. Então ela se enfurece, joga as taças que tinha nas mãos na parede e sai sapateando. Em seguida, é apresentada a fala de uma trabalhadora do sexo que revela a sua vontade de transar com outra mulher. Uma das participantes do grupo fala que tem fantasias com mulheres e pergunta: “será que sou sapata”? Vários outros temas e assuntos são mediados pela protagonista tais como:
Há referência a denominações que recebem uma mulher que faz programa:
garota de programa, profissional do sexo, Escort e outras...
Há uma cena que mostra um passeio em sex shop no qual a dona do lugar
mostra os diferentes objetos e como funcionam.
Sexo oral: pessoas que gostam e outras não.
Orgasmo e como gozar.
Filmes pornográficos voltados para o público feminino.
Troca de casais: o swing.
No caso do swing, a forma da abordagem é a seguinte: “A fantasia é ser visto. Me excita ver um tanto de gente envolta olhando". No mesmo plano uma entrevistada aponta: “este homem me fez descobrir que eu sou mulher. Fiz de tudo - garota de programa, swing, outro homem - e me tornei uma pessoa melhor, mais segura e menos ciumenta”. Laura, em conversa com o câmera, diz que o depoimento das mulheres mexe com ela: “outras eu me identifico... outras sei lá. Aí me pergunto: por que estou fazendo esse filme? Está tudo misturado. Sei lá porque um cara me despertou sexualmente. Isso é motivo para fazer um filme”? No final do documentário alguns homens falam sobre sexo e mulheres. E, na cena final, Laura reconcilia com seu amante.
3 – A desbanalização A criação de um texto sempre gera uma tensão que só se dissolve na medida 25 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
em que se estabelece uma série de ações ou atividades que compõem o processo de elaboração. Pensa-se, escolhe-se, decide-se e traçam-se estratégias de construção ou produção do conhecimento. Para esse caso específico, a decisão recaiu no filme Mulheres, sexo, verdades e mentiras e como este poderia produzir a desbanalização tendo em vista seu conteúdo. Depois de assistirmos várias vezes ao filme e nos reunirmos com outras pessoas para discuti-lo, surge a pergunta: o filme como instrumento de análise consegue desbanalizar o banal? Se isso acontece como se dá o processo? Leitura, discussões e alguns insigths surgiram como possibilidade para desenvolver a reflexão. Um texto de Ghiraldelli (2007) no qual o autor desenvolve argumentos sobre a desbanalização do banal nos aponta um caminho para o raciocínio. A análise toma por base tirinhas da Mafalda criadas pelo cartunista Quino. Mafalda pergunta para sua mãe: “por que tem gente pobre?” Ghiraldelli analisa:
A mãe engasga. Talvez ela, a mãe, nunca tenha pensado seriamente no assunto. Talvez ela não queira pensar. Pode ser que tenha pensado, mas nunca tenha imaginado seriamente que há o que gera a pobreza. Ou ela – quem sabe? – nem sequer sonhe com um mundo sem pobres; e, então, se assim é, para ela a idéia da pobreza não é compatível com a pergunta de Mafalda. Parece esquisito querer encontrar causas e/ou razões para a pobreza, uma vez que a pobreza é algo ‘que está aí’. Como diriam alguns: pergunta de criança. Ou como diriam outros: pergunta de maluco. Ou ainda outros: pergunta de filósofo. Mas Mafalda não vê o engasgar da mãe e as reticências como uma situação de alguém que não tem resposta ou que estranha ter que encontrar uma resposta. Ao contrário, ela acredita que há uma resposta para a sua pergunta. Ela se prepara para uma resposta. O engasgar da mãe é motivo para ela achar que o adulto está se preparando para uma grande resposta. ‘Eu não suspeitava que a minha pergunta fosse tão interessante’ – é o que Mafalda diz. O pigarrear e a entonação da mãe dão o fio da meada para Mafalda: o que se imaginava banal não é banal (Ghiraldelli Jr, 2007:3).
Sob a ótica dos argumentos de Ghiraldelli, arriscamo-nos a afirmar que todo discurso do filme retrata, em primeira instância, a banalidade da sexualidade que causa estranheza e espanto para quem vê e assiste ao documentário. Esta situação se manifesta no vocabulário, nas cenas com objetos e nas falas registradas no segundo item deste texto. Foi justamente isso que chamou a atenção. Aqui cabe uma questão importante, isto é, o fato de o tema da sexualidade ter se tornado banal. Não seria porque ele envolve os tabus, os preconceitos e a moral social? Além disso, o modo de tratar desse tema numa sociedade premida pelo consumismo levaria à banalização para não ter que lidar com as questões de fundo. Nesse sentido, a desbanalização a partir do filme, a nosso ver, ocorre de duas 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
maneiras: a primeira se tomarmos o comportamento de Laura que, a partir de uma situação de crise no casamento, inicia uma busca que a leva a novas experiências e aprendizado. Essa busca provoca-lhe mudanças, bem como modifica as pessoas que concordaram em se expor ao participar do filme. Essa mudança é facilitada pela câmera, uma máquina que faz a mediação entre a pessoa que participa e a protagonista do filme/cineasta. A câmera é fundamental porque, ao mesmo tempo em que registra os depoimentos, ela tem a função de produzir uma situação de deslocamento da realidade para o campo da interpretação, permitindo a criação de novas versões. Ou seja, a depoente quando fala também atua, torna-se personagem. Como personagem, diante da câmera, ela se “liberta” de possíveis bloqueios relativos a temas que seriam proibidos se abordados fora do campo da banalidade. Assim,
com
base
em
uma
questão
pessoal
e
“fictícia”,
a
personagem/protagonista aproxima de outras pessoas “reais” não para obter respostas ao seu drama, mas para fazer perguntas. E, ao fazê-las, dá visibilidade à experiência de cada uma das depoentes. No nosso entendimento isso produz a desbanalização porque revela a experiência vivida. O vivido é o sentido experimentado na existência humana. Dessa forma, aquilo que é o corriqueiro, motivo de chacota, vai se constituindo em um discurso profundo acerca da existência da mulher no que tange à sexualidade. Por isso, o roteiro não elimina a contradição nem fabrica respostas, apenas flui conforme a própria lógica do discurso banal. A outra circunstância de desbanalização ocorre quando convidamos pessoas para ver e debater o documentário. Quantas perguntas surgiram, além do desconforto com as situações mostradas! O desconforto funciona quando o público se vê confrontado a uma rede discursiva que a priori se constitui de forma banalizada e, a partir dessa rede, vai construindo suas próprias ideias sobre o tema. Optamos por um processo de discussões relativas ao filme. Fizemos reuniões e conversas para definir o que fazer: rever o documentário, formar um grupo de discussão e logo elaborar o artigo. Com a decisão tomada passamos a executar a etapa de assistir ao filme em grupo e debater. Várias pessoas foram convidadas, mas só apareceram três. Duas jovens e um jovem. Após a exibição iniciamos uma conversa em grupo. A seguir, discutiremos alguns dos comentários apresentados no debate. O Comentarista 1 afirma: “Foi um choque ouvir certas palavras da boca feminina; mesmo eu sendo homossexual eu nunca escutei isso de mulheres. Escuto de homens”. Essa afirmação faz recordar o documentário - Sou feia, mas tô na moda – o 27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
qual discute a trajetória do Funk carioca da cineasta Denise Garcia (2005). Esse documentário produz sentimento semelhante ao do nosso comentarista quando funkeiras como Denize da Injeção e Tati Quebrabarraco cantam abertamente sobre sexo e temas só abordados por homens. Elas vêem nas suas músicas uma perspectiva de educação e libertação das mulheres e adolescentes das comunidades. Esse deslocamento é comum nos dois documentários e o maior estranhamento que produzem é a mulher falando do sexo de forma banal. No caso do funk, as funkeiras afirmam que essa é uma forma de as “meninas” se fortalecerem, deixarem de ser vítimas, tomarem consciência de seu corpo como seu e, finalmente, se protegerem do sexo inseguro. Surge, então, outra versão do funk carioca cantado para mulheres com uma função específica para a comunidade local (fora da repercussão midiática nas classes médias). No filme “Mulheres, sexo, verdades e mentiras”, na medida em que elas vão falando de suas práticas sexuais e de seus desejos, fazendo uso da linguagem banal, as depoentes retiram sua sexualidade do campo do estereótipo, do preconceito e o recolocam no campo do prazer e da existência humana. Nessa perspectiva, a comentarista 2 afirma: “Percebi o tema do empoderamento das mulheres pela esfera da sexualidade, como senhoras do próprio corpo, com autonomia”. Embora essa comentarista tenha criticado o roteiro por se basear na heteronormatividade e no “final feliz” da ficção, a sua percepção corrobora o pressuposto desta análise de que a desbanalização ocorre na medida em que se interpõem olhares e perguntas sobre o tema banalizado. A comentarista 3 aponta outro elemento importante na estratégia discursiva do filme e, assim, fortalece o processo de desbanalização: “Um aspecto interessante é o dualismo presente no filme: as irmãs gêmeas; a que trai e a que não trai etc., apontando sempre para abertura e fechamento ao mesmo tempo”. Esse comentário nos revela que a banalização torna o tema linear, fixado no estereótipo, mas, quando o filme trabalha com a dualidade e com a contradição, mais uma vez contribui para retirar a sexualidade feminina do padrão banalizado. O comentarista 1 então pergunta: “Que pessoas são essas que dão seus depoimentos? Elas representam a maioria das mulheres?” Encontramos na antropóloga Miriam Grossi (2000) um caminho para pensar sobre a sexualidade demarcada pelo tempo histórico. Podemos, assim, pensar também na historicidade das sexualidades: 28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Da mesma forma que hoje se discute se a heterossexualidade é necessária à reprodução da espécie humana, no final do século XIX, por exemplo, se pensava que o desejo sexual era característica masculina, que as mulheres copulavam apenas para as necessidades de reprodução da espécie e da família. O prazer feminino era percebido como perigoso e patológico, a passividade e a frigidez eram considerados comportamentos femininos ‘naturais’, portanto ideais. Hoje, com inúmeras contribuições da Psicanálise e dos movimentos de libertação das mulheres, o desejo e orgasmo femininos não são mais vistos como pecaminosos ou ‘antinaturais’. Vemos, portanto, que os valores associados às práticas sexuais são marcados historicamente. (Grossi, 2000:41).
As mulheres depoentes e o próprio roteiro do documentário-ficção expressam o momento histórico em que os valores da sexualidade da mulher se modificaram ao ponto de serem identificados e narrados pelas próprias mulheres, ao mesmo tempo em que foram apropriados por um sistema discursivo, consumista e banal do sexo. Há ainda nessa transição a permanência e convivência com os tabus e preconceitos historicamente estabelecidos sobre o tema. De tal forma “verdades” e “mentiras” sobre sexo e mulheres são faces de uma mesma realidade contraditória e profícua no processo de libertação da sexualidade feminina. Pode-se, ao mesmo tempo, romper com o tradicional ou desejar o padrão, como ocorre no final da ficção quando sugere a Laura um final feliz com seu amante.
4 – Conclusões Para concluir estas reflexões lançamos mão de outras pistas deixadas pelo comentarista 1: “se não existisse verdade, não existiria mentira. É só uma questão de ponto de vista”. Salientamos que filme não desvela o que seria verdade ou mentira; tudo se apresenta ao mesmo tempo como verdade e mentira. Assim acontece como a própria estratégia narrativa: ficção e documentário, sem delimitação do que seja um ou outro. Mesmo considerando-se a imprecisão dessa estratégia narrativa, é fundamental afirmar que esse exercício de imaginação e criação só foi possível graças ao estranhamento provocado pelo tratamento dado ao tema da sexualidade feminina retratada no documentário. As ações e reações ao conteúdo discursivo as quais se expressam em imagens permitiram ampliar a visão forjando diferentes leituras de gênero, do feminismo, da autonomia e da heteronomia em um processo que vai da banalização à desbanalização do banal. Assim como no documentário Sou feia, mas tô na moda, que também evidencia
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o processo de apropriação do discurso banal, essa estratégia narrativa nos revela que o simples fato de as mulheres se apropriarem do discurso banal já é um fator de deslocamento de sentido. Portanto, conforme afirmado, se se alcança a desbanalização pelo método filosófico de conversar sobre o banal e apresentar perguntas sobre o tema, o filme com sua estrutura narrativa nos permitiu identificar esse contexto. Nessa medida, na trajetória realizada descobriram-se poucas respostas, mas foram reveladas múltiplas indagações, ideias e questões não abordadas, mas que entram aqui como provocações singulares, por exemplo:
O orgasmo é o mesmo sozinho que quando se está acompanhado?
A rotina melhora ou piora?
Sexo melhora ou piora com o tempo?
Experimentar o mesmo sexo é ser homossexual?
Por que as pessoas necessitam ser rotuladas em função de suas práticas
O que é mais importante: quantidade ou qualidade?
Qual é a imagem que o homem faz da mulher?
Para a mulher, o homem existe? Que imagem existe?
sexuais?
REFERÊNCIAS GHIRALDELLI JR, Paulo. CARR, Cody Filosofia, um guia para estudantes. GoLdenberg: USP, SP:2003. Disponível em: <http://www.sel.eesc.usp.br/informatica/graduacao/material/etica/private/Filosofia_um_ guia_de_estudos.pdf> .Acessado em maio de 2012. GHIRALDELLI JR, Paulo. Filosofia para iniciantes. 2007. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/73035395/Filosofia-Para-Iniciantes> Acessado em maio de 2012. GHIRALDELLI JR, Paulo. A Filosofia como desbanalização do Brasil. 2011. Disponível em: <http://www.portalentretextos.com.br/colunas/filosofia-no-cotidiano/afilosofia-como-desbanalizacao-do-brasil,256,6967.html> Acessado em maio de 2012. GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de gênero e sexualidade. In: Estudos de gênero/Universidade Católica de Goiás. Vice-Reitoria para Assuntos Comunitários e Estudantis. Programa Interdisciplinar da Mulher- Estudos e pesquisas. Goiânia: Ed. Da UCG, 2000. GARCIA, Denise. Sou feia, mas tô na moda. Documentário, 2005.
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O FILÓSOFO E A CAIXA DE PANDOXA: contingência, liberalismo e pós-iluminismo em Richard Rorty1
Baptiste Noël Auguste Grasset2
RESUMO: O objetivo deste trabalho é exibir as bases teóricas da concepção rortyana do filosofar pós-fundacionalista. Para tal fim, cabe retratar os diversos significados da contingência em Rorty, na medida em que esta é a noção central por viés da qual ele desconstói e redescreve as categorias das grandes narrativas filosóficas para redimensioná-las de acordo com os padrões da vida democrática e da cultura liberal atuais. Ora, tamanho empreendimento, por ser profundamente antiplatônico, se depara constantemente com a tensão entre as veleidades autoritárias do conceito e a redefinição democrática do mesmo como mera opinião. Daí que haja necessidade de indagar acerca das relações entre autoridade e verdade em Rorty. Palavras-chave: Rorty, contingência, liberalismo, pós-iluminismo
ABSTRACT: The present work aims to highlight the theoretical basis of Richard Rorty's views on post-foundational philosophy. To this purpose, it is paramount to portray the many meanings of contingency, insofar as this very notion stands at the crossroad of Rorty's deconstruction e redescription of the grand philosophical narratives' categories, which intend to make the latter fit the patterns of nowadays' democratic life and liberal culture. Furthermore, given that such a project is deeply antiplatonician, Rorty's thought constantly manifests the tension between the authoritarian will of the concept and its democratic redefinition as a mere opinion. Hence we are bound to question the relation between authority and truth in Rorty's work. Keywords: Rorty; Contingency; Liberalism; post-enlightenment;
Indagar acerca do papel do reconhecimento da contingência em Rorty equivale a definir as especificidades de seu liberalismo neopragmático. Ora, à primeira vista, tal esforço não deixa de ser desconcertante por obrigar o leitor de Rorty a deparar-se com uma listagem extensa de determinações insistentemente negativas, tais como o antiplatonismo,
o
antirepresentacionismo,
o
anticorrespondentismo,
o
antifundacionalismo, o antiteleologismo, o antipositivismo, et passim. De fato, o pensamento de Rorty, nomeadamente em seus dois livros de maior fama, ressalta repetidamente e com vigor a importância, para a reflexão contemporânea, de abrir mão de toda postura de transcendência em relação à realidade humana, e, portanto, em 1
Palestra pronunciada no IFCS da UFRJ em 26 de Setembro de 2013, no âmbito das II. Conversações Rortyanas. 2 Formação acadêmica: graduação, mestrado e doutorado em Filosofia em Nantes (França). Doutorado sobre Hermann Cohen e o neokantismo de Marburgo obtido em 2002. Atividade atual: Professor do Departamento de Filosofia da UNIRIO, desde 2013. 31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
relação à linguagem e às práticas concretas da vida social e política que são o mundo humano, que saturam o horizonte do mundo humano, e delimitam a finitude do mesmo. A partir do século XVII, a revolução científica iniciada por Kepler e Galileu e, no século seguinte, Newton, consagrou a autonomia da física matemática, assim como sua independência metodológica em relação à filosofia escolástica e à metafísica de inspiração aristotélica. Daí que se pudesse esperar que o mesmo acontecesse com as revoluções políticas que, a partir do final do século XVIII, levaram certas comunidades humanas a se transformar em sociedades abertas e a edificar democracias liberais duradouras: essas revoluções políticas deveriam também ter consagrado, através da autonomia das sociedades liberais e suas práticas políticas, o reconhecimento, pela filosofia, da independência da democracia em relação a certo discurso fundacionalista que é inerente à metafísica humanista. Ora, observa Rorty, tamanho reconhecimento filosófico da independência da prática democrática em relação à filosofia não ocorreu. Enquanto os vocabulários da astronomia de Galileu ou da mecânica de Newton chegaram a gradativamente suplantar os vocabulários da metafísica, da escolástica ou da física aristotélica entre os cientistas europeus dos séculos XVII e XVIII, o vocabulário da filosofia segue reivindicando com frequência até hoje o acesso monopolístico a verdades transcendentes que justificariam seu papel de ciência suprema, isto é, de ciência dos fundamentos essenciais, eternos, a-históricos da vida humana. A questão do reconhecimento da contingência é, por conseguinte, intimamente atrelada a duas outras questões centrais do pensamento de Rorty: a questão do reconhecimento das condições políticas da prática filosófica, e a questão subsequente dos limites concretos que irão determinar a nova forma de praticar filosofia na sociedade liberal. O que é contingência? De maneira clássica, esta noção é definida como o contrário da necessidade ou como a ausência de necessidade. Um estado contingente de coisas padece de razão suficiente, ou, dito de outra maneira, padece de aptidão a explicar porque essas coisas são como elas são e não diferentes, ou porque existe algo ao invés de nada. Rorty enfatiza que o reconhecimento da contingência é inseparável da cultura liberal e, portanto, da filosofia autenticamente democrática. Por isso, ele nega que a democracia necessite de fundamentos teóricos universais, a-históricos e racionais, o que levou muitos a diagnosticar o irracionalismo de seu pensamento. Ora, já que a ideia sustentada neste artigo é que Rorty determina sim um tipo renovado, secularizado, de racionalidade, vale indagar acerca dos termos exatos desta racionalidade rortyana, ou 32 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
melhor, da racionalidade vigente nas democracias liberais contemporâneas, e que a conversação filosófica tem de expressar a sua maneira.
1. O antifundacionalismo rortyano: uma consequência filosófica da autoria política de todo logos O projeto de Rorty almeja liberar a polis da autoridade do logos, ou seja, dar a prioridade à democracia, e não mais à filosofia, e reconhecer que, nas sociedades liberais modernas, a liberdade importa mais do que a verdade. À autoridade do logos deve suceder o reconhecimento do fato político moderno, ou seja, do fato que todo logos, todo discurso é, em última análise, a expressão das liberdades concretas que regem a enunciação do mesmo. Reconhecer a autoria política de todo logos equivale a acabar com a autoridade do logos em relação a polis. Deste ponto de vista, podemos dizer que as posições antidemocráticas proferidas na República de Platão são coerentes com seu vocabulário fundacionalista, o que não significa que a parte autenticamente filosófica do platonismo (isto é, suas redescrições do mundo humano) não dependa de um tipo de liberdade que corresponde à forma democrática de conviver, debater e expor opiniões... “Autenticamente filosófica”? Esta expressão que acabamos de utilizar foi uma escolha particularmente infeliz, pois, talvez o propósito de Rorty seja, justamente, levar seus leitores a adotar uma postura pós-filosófica, quer dizer, autentica e assumidamente liberal. Tamanho propósito implica desconfiar de todo discurso que se refira a uma instância extra-humana, ou seja, desconfiar de toda narrativa grande. Por exemplo, no que tange ao platonismo, a submissão da noção de justiça à ideia do bem, que é uma ideia incondicionada, ou a-hipotética como diz o próprio Platão, manifesta exatamente a imagem arcaica, pré-liberal, do mundo humano que Rorty ambiciona ultrapassar de vez. Daí que haja também necessidade de reforma, ou até de revogação do vocabulário herdado do Iluminismo. Decerto, este vocabulário acompanhou e auxiliou o desencadeamento do processo histórico que levou à construção de democracias liberais em certas comunidades humanas, mas aos poucos ele se tornou um obstáculo para o desenvolvimento dinâmico dessas democracias, já que ele resgatou e prorrogou dualismos metafísicos e referências transcendentes, mitológicas e essencialistas oriundas do platonismo. A comunidade liberal há de alcançar a lucidez reflexiva sobre suas práticas políticas, o que implica que ela tem de admitir sua contingência irredutível.
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Rorty deixa bem claro que contingente não significa anômico. Existe sim premissas pragmáticas solidárias do conteúdo mesmo de um discurso filosófico autenticamente liberal, e da maneira de se fazer política no âmbito democrático: 1) o pluralismo inerente à livre confrontação de opiniões particulares, diversas ou até contraditórias, 2) o nominalismo inerente ao cuidado que se deve às particularidades de cada situação e de cada forma de vida humana, 3) o imanentismo inerente à particularidade das opiniões e vocabulários que animam a conversação política de tal ou tal comunidade humana, e enfim 4) o historicismo inerente à particularidade de dada comunidade humana como tal, por mais que ela seja progressista, aberta, democrática e liberal. Ora, cada uma dessas premissas não salienta senão a contingência da prática discursiva como tal, e a fortiori a contingência do discurso filosófico, o que é uma outra maneira de negar a validade do anseio filosófico pela verdade descontextualizada e pela universalidade. As premissas do discurso pós-filosófico liberal são, portanto, antifundacionais na medida exata em que almejam enfatizar positivamente as particularidades contraditórias, irredutíveis, secularizadas e históricas que caracterizam a solidariedade de tal ou tal comunidade política. Elas correspondem à ambição que deveria guiar toda reflexão liberal: é preciso que abramos mão da “convicção de que todos os valores positivos em que os homens têm acreditado têm, afinal, a obrigação de serem compatíveis uns com os outros”. A razão pela qual o neopragmatismo rortyano aparenta ter um valor primordial e principalmente negativo, polémico, isto é, anti-platônico, anti-essencialista, antirepresentacionista, provém de o pragmatismo e o platonismo constituírem “duas maneiras essenciais de atribuir um sentido à vida humana em situando-a dentro de um contexto mais amplo”. Com efeito, enquanto o platonismo submete a solidariedade da comunidade política à objetividade de verdades transcendentes e eternas, o pragmatismo submete a objetividade de verdades finitas e contingentes à utilidade social concreta das mesmas para tal ou tal comunidade solidária. A objetividade platônica, portanto, é uma realidade extra-humana, já que ela pretende fundamentar as relações intra e extracomunitárias sem que sua validade própria possa ser questionada. A política platônica se alicerça na ilusão do espelho da representação. Se um enunciado é verdadeiro na medida em que ele espelha fielmente a realidade tal como esta é em si, portanto certas hierarquias existenciais, sociais, políticas serão sempre legitimas, e outras errôneas, desprovidas de justiça. Em Platão, a realidade inteligível desempenha o 34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
papel de instância normativa cuja legitimidade provém de sua independência proclamada em relação a qualquer intervenção humana. No racionalismo platônico, cabe ao ser humano reconhecer a norma transcendente e necessária da razão extrahumana ou extra-existencial. Pelo contrário, segundo Rorty, o pensamento liberal contemporâneo tem de descartar as velhas oposições metafísicas entre substância e acidente, entre realidade e aparência, ou entre absoluto e relativo, já que a natureza mesma de tal pensamento consiste em preferir ver o mundo como “um fluxo de relações que mudam constantemente”. Daí que, sendo uma reflexão acerca das implicações de tamanha mudança constante para as instituições humanas, o liberalismo rortyano se preocupe em evidenciar a contingência da linguagem, a contingência da individualidade e a contingência de toda comunidade humana como tal.
2. O reconhecimento da contingência da linguagem, e, portanto, de toda verdade O neopragmatismo rortyano batalhou durante décadas contra a “lenda da verdade”, para utilizar uma formula do jovem Sartre. A verdade, diz Rorty, simplesmente não está lá fora, esperando por ser descoberta: “sem frases, não há verdade... as linguagens são criações humanas... portanto a verdade não pode existir independemente do espírito humano, pois... o mundo está lá, fora, mas não as descrições do mundo”. Em si mesmo, o mundo não pode ser verdadeiro ou falso. Ou ainda: “O mundo não fala. Somente nós falamos”. Aqui cabe lembrarmos que, já em 1967, Rorty distinguiu pragmatismo clássico (o de Charles Sanders Peirce, William James ou John Dewey) e neopragmatismo (o de Quine, Davidson, Putnam, Rorty mesmo ou Brandom), por viés da “virada linguística”. Através dessa expressão, Rorty destaca o fato de que nossas crenças, e portanto nossas concepções de verdadeiro e falso, dependem sempre da linguagem de certa comunidade humana em dado momento de sua evolução histórica. Não somente cada um de nós nasce no meio da conversação humana que já iniciou muito tempo antes de seu nascimento, e de cujo desfecho não será a testemunha, mas, mais precisamente, cada um de nós nasce no meio da conversação de sua cultura. Não dominamos nosso equipamento conceitual, já que somos herdeiros das dinâmicas internas e jogos de linguagem de dado conjunto de vocabulários em dado momento de sua evolução. Uma observação: a utilidade da linguagem para nós provém de sua capacidade instrumental a rearranjar ou redescrever o real. O ser humano jamais sairá da 35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
ordem da redescrição do real. Com efeito, sair da ordem da redescrição do real só poderia acontecer se desfrutássemos um acesso extralinguístico à realidade e se pudéssemos legitimamente avaliar o grau de verdade e falsidade das narrativas a partir deste saber extralinguístico. Ora, é precisamente este crivo extralinguístico, transcendente, da verdade que Rorty rejeita ao condenar o representacionismo, já que, para ser verdadeira ou falsa, a re-apresentação do real há de espelhar fielmente este, que se situa fora e além de qualquer alcance humano. A contingência, portanto, também é sinônima de imanência das narrativas, quaisquer que sejam, por estas dependerem sempre da natureza histórica e redescrivista de toda linguagem. De fato, o prefixo “re”, na palavra “redescrição”, remete ao panrelacionalismo, à parcialidade e à finitude insuperáveis dos discursos humanos. Ainda falta um belo estudo no tocante às noções de etos e de hábito em Rorty. Assim como em Hume, Bentham e Peirce, há uma dimensão estruturante do hábito em Rorty, dimensão que foge de qualquer padronização universal de cunho racionalista. Se, como Wittgenstein diz, o nosso mundo é nossa linguagem, então o hábito linguístico ou a linguagem que nos é habitual descreve (e estrutura) nosso mundo, o mundo de nossa comunidade político-linguística. Cada um de nós herda as descrições vigentes em sua comunidade. O hábito pragmático de que se trata aqui não é superficial. É o hábito tal como Hume o concebia: um comportamento interiorizado através de um conjunto de ficções úteis e eficazes, isto é, capazes de gerar facilidade de manejo, familiaridade para com o mundo e repouso espiritual. Cada um de nós pode, é claro, redescrever tais ficções, porém vai fazê-lo à sua escala, de forma periférica, e a partir de um material particular, o material de sua cultura particular.
3. O reconhecimento da contingência da individualidade considerada como autocriação poética O reconhecimento da contingência da linguagem desemboca forçosamente no reconhecimento da contingência da individualidade. Todavia, se o adversário de Rorty quando ele salienta a contingência da linguagem é principalmente o fundacionalismo platônico, que, ao separar logos e doxa, racionalidade e opinião, postula a validade extra-humana da verdade, agora que Rorty afirma a contingência da individualidade, seu adversário é principalmente o fundacionalismo moderno, de inspiração cartesiana, que, ao postular a existência autotransparente, autoevidente do sujeito pensante, e ao 36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
alicerçar nela a verdade objetiva, afirma a imediatez da ligação entre a certeza de si e a validade universal, a-histórica, descontextualizada, dos enunciados da razão. Ora, observa Rorty, por mais que, no âmbito da sociedade pré-liberal, o conhecimento de si seja uma questão sumamente consistente, contudo, no âmbito liberal contemporâneo, pós-moderno, tal exigência de conhecimento é suplantada por outra: a da autocriação da individualidade. O si liberal só tem cabimento se contextualizado, isto é, relacionado à rede sempre mutável dos vocabulários e narrativas vigentes em dada comunidade humana em tal ou tal momento de sua história. Conforme já dissemos, cada um de nós nasce no meio da conversação de sua cultura, mas, além disso, só se torna um porquanto é integrante de algum nós, de alguma cultura, isto é, porquanto irá participar desta conversação enquanto viver. Por isso, em vez da autotransparência cognitiva da consciência subjetiva cartesiana, Rorty elege uma ambição pós-romântica de autopoiesis, que é uma retomada um tanto mais prosaica do mote da criação de si do poeta forte de Nietzsche. Além disso, Rorty interpreta Freud de forma a reconduzir o conhecimento contingente do indivíduo a uma redescrição singular, genealógica, que ocorre através de reformulações marginais, ou até parasitárias, dos vocabulários e metáforas vigentes e disponíveis em dada sociedade. Enfim, Rorty utiliza Em busca do tempo perdido de Proust à guisa de mito apto a substituir a alegoria platônica da caverna para redescrever a sabedoria de forma não filosófica. O indivíduo não inventa uma nova linguagem; mas ele expressa sua singularidade via as poucas deformações que os vocabulários compartilhados em sua cultura sofrem enquanto ele está praticando a sua redescrição. A criação de metáforas novas sempre ocorre a partir da utilização da linguagem usual, situada historica e culturalmente. Ou seja: existe uma conexão permanente entre, por um lado, a dinâmica histórica e natural de um conjunto cultural particular de vocabulários, narrativas e conversações, e, por outro, a autocriação marginal e singular de cada um dos integrantes desse conjunto, autocriação que se manifesta através da retomada idiossincrática de metáforas “literalisadas”, para falar como Davidson. A evolução histórica de um conjunto de vocabulários obriga a admitir a natureza sempre parcial e relacionada do si individual, isto é, sua natureza contingente. Em contrapartida, a autocriação do si, que ocorre em suas redescrições, é, uma vez somada às outras criações singulares de sua cultura, o motor da evolução histórica dos vocabulários. Portanto, a contingência da individualidade, em Rorty, se estende à comunidade como tal. Ora, se toda comunidade humana é contingente, não é toda comunidade que assume esta contingência. Segundo Rorty, a comunidade liberal é 37 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
justamente aquela sociedade que reconhece sua própria contingência, pois, não somente tamanho reconhecimento não contradiz suas práticas políticas pluralistas, mas, além disso, na democracia, esse reconhecimento da contingência da comunidade política é tido como útil à renovação e ao dinamismo de sua vida cultural, e benéfico ao enriquecimento da conversação social.
4. O reconhecimento da contingência da comunidade como tal A necessidade normativa e transcendente que justifica a prática política platônica consiste numa relação direta, sem mediação, entre, por um lado, a existência humana dentro da comunidade, e, por outro, uma instância absoluta. Pelo contrário, há, no pragmatismo tal como Rorty o defende, uma mediação entre a existência e o mundo: tal mediação é a comunidade entendida como conjunto de certos vocabulários, de certas crenças, de certos valores. Pergunta inevitável: será que devemos detectar em Rorty as tendências relativistas que o filósofo comunitarista Michael Sandel diagnostica em Isaiah Berlin? Rorty recusa o apelido de “relativista”, pois ser relativista sempre implica sê-lo em relação a termos absolutos (neste caso, às categorias metafísicas oriundas das obras de Platão e Aristóteles). Ora, se tudo é imanente, se tudo é relativo na imanência, portanto, nada sendo absoluto nem transcendente, nada é relativo e tudo é relacional. Se nos coubesse determinar o “panrelacionalismo” proclamado e assumido de Rorty, nós diríamos que, para ele, toda cultura é parcial, particular, e se relaciona a outras culturas. Parcialidade e relacionalismo caracterizam, em Rorty, a finitude das sociedades. O que explica que, para ressaltar a contingência irredutível de toda comunidade política, ao invés do vocábulo “relativismo”, Rorty prefere recorrer ao vocábulo “etnocentrismo”, tido como “impossibilidade de se livrar de nossa herança cultural”. Mas aí uma nova pergunta surge: tal noção de “etnocentrismo” é condizente com o ideal de justiça que parece inseparável da cultura liberal ou democrática? A resposta merece ser cautelosamente elaborada: primeiro, salientar a contingência cultural de toda comunidade política não significa reivindicar a superioridade absoluta de dada etnia ou dada comunidade em detrimento às outras. Além disso, as exigências de imparcialidade e de justiça impõem lembrar-se sempre de que todo vocabulário, todo ideário, todo conjunto de crenças e narrativas valorizam certo tipo de práticas e condutas. O bem há de ser subordinado ao justo. A comunicação entre comunidades não é impedida por 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
tamanha concepção. O que se vê impossibilitado é antes a legitimidade de deixarmos de questionar (ou ver questionadas) nossas avaliações etnocentralizadas no que tange às outras comunidades humanas. Tal abertura constitui a grande diferença, a grande particularidade da sociedade e da cultura liberais. É preciso enfatizar esta especificidade do liberalismo rortyano: abertura jamais significa neutralidade. Tomemos à guisa de exemplos dois termos centrais em certas redescrições muito atrativas e muito populares nas sociedades liberais contemporâneas: a tolerância e a laicidade. Estes termos valoram a abertura intrínseca da cultura liberal, porém, justamente porque eles são com frequência tidos como imparciais, inquestionavelmente objetivos, a-históricos, válidos além de qualquer contexto particular, em nome deles, práticas e tradições culturais, religiosas, sociais divergentes ou alheias são constantemente avaliadas e hierarquizadas de forma... parcial, mitologicamente centrada e argumentada. Aqui entendemos que nas sociedades democráticas e liberais contemporâneas, existe uma tensão permanente entre, por um lado, o projeto fundacionalista oficial de arbitragem política objetiva, neutra, imparcial, e por outro, a arbitrariedade das valorações locais, parciais, particulares, historicamente determinadas. O porquê que, em várias democracias atuais, pretende justificar a coexistência
humana
de
maneira
universal,
apenas
intende
dissimular
as
particularidades e parcialidades da gestão de certa comunidade humana, isto é, o como que caracteriza um tipo de solidariedade, entre muitos outros. O fato de os fundamentos universais e as práticas particulares sempre se misturarem, o fato de o porquê universal e o como predileto serem sempre mesclados, gera uma obrigação para o filósofo liberal que compreende sua cultura, ou seja, a obrigação de elaborar um pensamento imanente, pós-fundacionalista, ironista. A cultura liberal é, decerto, uma realidade atual, mas ela também é ainda uma utopia, devido à sobrevivência de resíduos de transcendência. Por isso, a superação do platonismo por viés de novas redescrições mais ironistas e menos argumentativas, não esgota o esforço rortyano de adequar a prática filosófica à vida na cultura liberal, já que o iluminismo tem perpetuado, implícita ou explicitamente, a maior parte das metáforas metafísicas de Platão. Nenhuma sociedade, por mais que ela seja aberta, é neutra. A neutralidade ainda é postulada, mas tem de ser desmascarada, pois ela sempre justifica práticas culturais parciais e pretende inscrever o porquê destas na eternidade, isto é, além de qualquer possibilidade de questionamento. Ora, desmascarar tamanho postulado equivale a reconhecer a contingência das comunidades humanas e seus valores. A capacidade de proceder a tal tipo de reconhecimento da 39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
contingência é justamente aquilo que caracteriza a cultura liberal bem entendida; inclusive, é essa aptidão ao reconhecimento da contingência que destaca as práticas culturais parciais das sociedades liberais, por estas serem mais pacíficas e abertas em relação à pluralidade, e mais propensas à variedade e à riqueza de opiniões.
5. O pós-iluminismo como consequência filosófica do reconhecimento da contingência política A cultura liberal apenas existe de maneira inacabada, e ainda é uma utopia. Se o adversário de Rorty quando ele salientava a contingência da linguagem era Platão, se seu adversário quando ele ressaltava a contingência da individualidade a ser recriada passou a ser Descartes, agora o adversário de Rorty quando ele destaca a contingência da comunidade política como tal é Kant. Cabe lembrar aqui que Rorty caracteriza seu pragmatismo historicista como um “hegelianismo naturalizado”. É claro que a retomada de Hegel que ocorre em Rorty é bem peculiar, por consistir em uma identificação do Geist, do espírito hegeliano, com a conversação humana tida como totalidade. A partir desta identificação, com efeito, Rorty identifica o mote hegeliano da absoluidade da substância racional historicamente totalizada com a imanência insuperável da conversação humana qua totalidade. Desta forma, a imanência do idealismo absoluto é reinterpretada como imanência do pragmatismo panrelacional. Em Hegel, a diferença entre o entendimento que o indivíduo tem de sua situação e a verdade coletiva é imanente à razão absoluta ao passo que, em Rorty, a diferença entre a criação individual e a conversação geral é imanente ao etos coletivo de sua comunidade linguística particular. Não tem como um indivíduo dominar a particularidade desse hábito coletivo. Ele apenas é suscetível de redescrevê-la, ou seja, de enriquecer essa particularidade meta-individual. A dialética rortyana, portanto, seria uma dialética sem possibilidade de Aufhebung, sem verticalização de sua direção, já que ela recusa qualquer espécie de relativização do panrelacionismo linguístico e de suas inovações pelo telos racional da história. Assim como escreve Rorty em Contingência, ironia e solidariedade: “A Europa não resolveu adotar o idioma da poesia romântica, da política socialista ou da mecânica galileana, Este tipo de mudança não foi algum ato voluntário, e tampouco o resultado de algum debate argumentado. Seria preferível dizer que a Europa perdeu gradativamente o hábito de utilizar certas palavras, e adquiriu gradativamente o hábito de utilizar outras palavras”. Através de tamanha reapropriação do hegelianismo, Rorty 40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
manifesta a vertente pós-iluminista de seu antifundacionalismo, pois ele almeja ultrapassar o ponto de vista transcendental, enquanto ponto de vista que, por mais que proclame ser finito, sempre reivindica seu estatuto universal e necessário, imparcial e objetivo, a priori, para avaliar, relativizar, classificar e hierarquizar qualquer fenômeno empírico, a posteriori. Por isso, Rorty compartilha de boa parte das análises dos Frankfurtianos a respeito do Iluminismo. Ele concorda com Adorno e Horkheimer para dizer que existe, intrinsecamente ao Iluminismo como à história da filosofia em geral, uma dialética da mitologia e da racionalidade, que acaba solapando paulatinamente o próprio Iluminismo como tal. Posto isso, Rorty discorda deles quando eles defendem que, por causa do declínio crescente da consciência teórica, o liberalismo, desprovido do apoio fundacional de uma filosofia racional e entregue a suas próprias forças, tende a servir os fins do capitalismo mais desfreado, e desemboca na frieza desumana da sociedade administrada, cuja manifestação mais dramática é o totalitarismo. De acordo com Rorty, a dialética do Iluminismo é interna à racionalidade filosófica moderna, fundacionalista; mas não concerne à cultura liberal como tal, a qual consiste em um conjunto de práticas sociais e políticas concretas cuja eficácia é autoconsistente, autossuficiente e autônoma em relação ao pensamento teórico. Se a consciência teórica é moribunda, é justamente porque, enquanto referência valorativa pretensamente descontextualizada de nossas práticas cotidianas, ela é cada vez mais explicitamente inútil. Para sairmos da dialética da razão fundacionalista, basta renunciarmos às grandes narrativas e aceitarmos a inscrição do discurso filosófico na imanência democrática e liberal. Ora, no fundo, Adorno e Horkheimer ainda acreditam ser plausível uma descrição do progresso como elevação, e da verdade como universalidade. Daí que seu diagnóstico seja tão sombrio no que tange ao liberalismo pós-iluminista e, portanto, à racionalidade contemporânea. De fato, observa Rorty, eles ignoram que as crenças particulares que dada comunidade humana considera serem verdades provêm da amplitude de liberdade(s) que essa comunidade concede a seus integrantes em suas práticas sociais e políticas cotidianas. Ora, acatar a descrição fundacional da razão não é apenas ilusório e fadado ao fracasso, como é também contraproducente do ponto de vista filosófico, na medida em que essa estratégia engessa a linguagem e atrasa a criação de redescrições frutíferas do mundo humano. As liberdades funcionam. E, funcionando, elas geram a criação de verdades, ou de crenças úteis, benéficas. As liberdades não precisam mais de fundamentação por verdades a-históricas, a priori. Portanto, a filosofia pós-iluminista é aquela que, levando 41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
em conta o fim das grandes narrativas e dos grandes sistemas teóricos, vai ressaltar o primado da democracia em relação à filosofia, e da liberdade em relação à verdade. O que advém da noção de progresso na sociedade liberal contemporânea? O progresso há de ser identificado com a proliferação de uma conversação livre, democrática, enriquecida por redescrições cuja inventividade deve ser garantida pela ausência de normas, apreciações e proibições transcendentes. A variedade das opiniões privadas tem de ser incentivada por viés da liberdade total de expressão verbal, de modo a nutrir um “progresso poético, artístico, filosófico, científico e político [que sempre] é o resultado do encontro entre uma obsessão privada e uma demanda pública”. Por essa razão, o reconhecimento da contingência não é apenas uma pressuposição metodológica do filosofar na cultura liberal. É “a maior virtude dos integrantes de uma sociedade liberal”. Porquê? Simplesmente porque tal reconhecimento garante e guia o enriquecimento poético das conversações vigentes nessas sociedades. Ele possibilita uma prática social utópica, embora imanente, pois ele junta a aceitação da finitude e a exigência de eliminação dos resquícios de transcendência, isto é, a exigência de eliminação da camuflagem que um discurso atrativo, sempre parcial e particular em si, tende a vestir para reivindicar uma posição social e política privilegiada ou até hegemônica em relação aos demais discursos. Ao manifestarem e desfrutarem a liberdade de suas redescrições, os integrantes de dada sociedade liberal também participam do esforço para eliminar tais resquícios, impedir a inflação de um como particular, prevenir sua transformação indevida em um porquê, e assim manifestar que eles querem alcançar um ideal imanente onde, segundo Rorty, “não restasse nenhum vestígio de divindade, quer sob a forma de um mundo divinizado, quer sob a de um eu divinizado (...) [Tal] processo de desdivinização (...) culminaria, idealmente, em não mais conseguirmos ver nenhuma utilidade na ideia de que seres humanos finitos, mortais, e de existência contingente derivariam o sentido de sua vida de qualquer outra coisa senão outros seres humanos finitos, mortais, e de existência contingente”.
6. Conclusão: a instituição da democracia liberal vista como abertura da “caixa de Pandoxa” e as aporias filosóficas da contingência política O pós-iluminismo de Rorty é uma volta aquém do fundacionalismo racionalista, uma volta para dentro do mundo da conversação, das opiniões, para dentro 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
do mundo do Sócrates das aporias, ou até para dentro do mundo de Protágoras, cuja prática, assim como a prática de todo sofista, era, por definição, dialógica, pluralista e democrática. A prática democrática abre a caixa de Pandora das opiniões múltiplas, igualmente livres, embora não igualmente atrativas, nem igualmente convincentes. A instituição da democracia reabre a “caixa de Pandoxa” que os filósofos desde Platão têm temido com tanta constância. Por isso, Rorty convida os filósofos a silenciarem sua doxofobia característica, pois a filosofia liberal há de participar dos debates públicos sim, mas somente pode fazê-lo de maneira proveitosa a título de opinião, de conjunto particular e secularizado de ideias. O ironista que Rorty descreve em Contingência, ironia e solidariedade é o filósofo liberal maduro, livre porque liberado das descrições ultrapassadas do fundacionalismo, consciente da pluralidade e até da contradição insuperáveis dos vocabulários. O liberal rortyano se opõe tanto a um liberalismo fundacional como o de Habermas, que “almeja ser liberal sem ser ironista”, quanto ao criticismo antifundacionalista de Foucault que “almeja ser ironista sem ser liberal”. Ele parabeniza Rawls por ter preferido elaborar uma teoria explicitamente política, e não metafísica, da justiça. Claro que se pode indagar acerca das consequências políticas da neutralização da pretensa neutralidade filosófico-fundacional pelo liberalismo rortyano, na medida em que ela equivale a uma privatização da vontade de transformação radical da sociedade. Ora, podemos imaginar o que seria uma crítica marxista feita a Rorty: será que o fato da existência da democracia liberal é incontestável? Não seria ela o nome religioso que o poder e a liberdade de alguns utilizam para criar um “Nós” meramente verbal e uma cidadania simplesmente formal? E, mudando de ângulo crítico, mesmo que a democracia liberal seja realmente democrática e liberal, o que seria uma crítica ironista de forças políticas abertamente antidemocráticas, embora muito atrativas e populares? Que tipo de legitimidade imanente o ironista liberal rortyano iria poder mobilizar para formular sua crítica, se realmente a atratividade das forças acima mencionadas seduzissem a maioria? Aqui entendemos que, de fato, Rorty está certo: a existência mesma da democracia é contingente... Caso entendamos o que Rorty defende, existem duas épocas diferentes na história da humanidade e do pensamento, ou, mais exatamente, existem duas tópicas. A primeira se situa aquém da instituição da democracia; trata-se de um espaço político adequado para a filosofia fundacional funcionar, isto é, para ela ser utilmente atrativa, já que, em tamanho contexto, a filosofia pode sim desempenhar o papel social de filosofia de luta, assim como ocorreu durante os primórdios da história da democracia moderna. 43 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
A segunda tópica irrompe com a instituição do regime democrático e liberal, no âmbito de qual a filosofia de luta há de ser superada por outra maneira de se praticar reflexão teórica. Ora, o problema é que a intuição pragmática, concreta das injustiças é idêntica nas duas tópicas. Dito de outra forma: a insatisfação prática para com o estado de coisas vigente em dada sociedade particular onde se vive irá sempre deparar-se com pessoas que irão sustentar a ideia que tal estado de coisas é a normalidade a ser acatada. Talvez essas pessoas aceitem certa quantia de emendas e reformas para prorrogar aquilo que elas consideram ser a normalidade, a qual, contudo, não seria, como tal, negociável. Mas, justamente, será que a normalidade não é, sempre, em última análise, um mero decreto? Imaginemos uns insatisfeitos que reivindicariam, por exemplo, uma renovação da democracia que fosse acabar com certos traços aparentemente não negociáveis do liberalismo econômico normal, tais como a propriedade privada, em nome da liberdade. Tais insatisfeitos, por estarem lutando, não aceitariam a privatização de seu descontentamento, nem o desdobramento ironista de suas convicções privadas e suas práticas públicas, e defenderiam uma postura filosófica de luta pública, aliás legitimamente fundacionalista, já que, para eles, a democracia autêntica ainda não teria sido instituída. Com certeza, Rorty negaria qualquer consistência à distinção entre democracia e liberalismo: reconduzindo no âmbito da democracia liberal o gesto de Hegel em relação ao Estado prussiano, o autor norte-americano adota uma postura filosófico-política segundo a qual o novo apenas pode ser democrático e liberal. Por isso, se pode legitimamente desconfiar de que, por mais flexível e abrangente que o antifundacionalismo liberal aparente ser, ele não tem como dialogar com a novidade radical nem com a contingência do futuro político.
REFERÊNCIAS BLOOM, H. A angústia da influência, Rio de Janeiro, Imago, 1991 RORTY, R. Contingency, irony and solidarity, Cambridge, CUP, 1989. _____. Objectivity, relativism and truth – Philosophical papers I. Cambridge: CUP, 1991. _____. Philosophical papers III: truth and progress. Cambridge: CUP, 1998. _____.Philosophy and social hope, Penguin Books, 1999. _____.Philosophy and the mirror of nature, Princeton, Princeton University Press, 1979. _____.The linguistic turn, University of Chicago Press, 1967. 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
_____. “The contingency of community”In: London Review of Books (July 24, 1986, p.10-14). SANDEL, Michael (ed.). Liberalism and its critics (Readings in social and political philosophy). New York, New York University Press,1984.
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Tradução
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UM PENSAMENTO SOBRE O HUMOR EXTENUANTE: o Pragmatismo como uma filosofia do sentimento
Richard Shusterman1
A filosofia, entendida como a busca desafiadora pelo “conhece-te a ti mesmo”, possui uma reputação clara de ruminação, a qual os psicólogos agora freqüentemente associam a depressão2. Os filósofos muitas vezes são mal-humorados, mas suas filosofias parecem expressar uma variedade de humores que nem sempre são depressivos. Sócrates permanece o paradigma da jovialidade filosófica que perdura a ponto de empoderá-lo para confrontar a injustiça da própria execução com uma felicidade calma. Assim, se os filósofos e a filosofia nos apresentam diferentes humores, não poderia ser útil a caracterização de todo um movimento filosófico em termos de um humor específico? Neste artigo, exploraremos esta possibilidade ao tomarmos o pragmatismo como exemplo, a partir da reputação estabelecida por William James, mas sem deixar de levar em consideração outros pragmáticos fundamentais, tanto clássicos como contemporâneos. Com base no insight metodológico fundamental que James derivou do amigo Charles Sanders Peirce, o estilo da filosofia pragmática ficou marcado como uma elocução acessível e controversa, de expressão pessoal, vívida e apaixonada. Um modo impressionante pelo qual James caracterizou o pragmatismo foi como “o humor extenuante”: um humor do esforço e da boa vontade enérgicos o suficiente para suportar as dificuldades e os riscos do empenho necessário ao aperfeiçoamento da experiência. Em The Absolute and the Strenuous Life, ele escreve: “O pragmatismo ou pluralismo que defendo deve retomar uma audácia definitiva, certa boa vontade com a vida sem seguranças ou garantias”3. De modo oposto ao monismo hegeliano, que parte de uma visão embaçada para a reconciliação de todos os conflitos, males e divisões (encorajando que tiremos “férias morais”) devido à fé que em última instância o Absoluto resolva todos os problemas, James insiste que a visão pluralista contingente do “pragmatismo favorecido” deve ser substituída pela do “humor extenuante”. Na 1
Tradução da Revista Redescrições. Ver, por exemplo, Susan Nolen-Hoeksema andJannayMorrow, “Effects of Rumination and Distraction on Naturally Occurring Depressed Mood,” Cognition & Emotion 7, no. 6 (1993): 561–70. Para uma conexão do tema com a filosofia da formação “Knowthyself,” see Richard Shusterman, “Self-Knowledge and Its Discontents: From Socrates to Somaesthetics”, in Thinking through the Body: Essays in Somaesthetics (Cambridge:Cambridge Univ. Press, 2012), 68–90. 3 William James, “The Absolute and the Strenuous Life,” in The Meaning of Truth: A Sequel to Pragmatism, repr. in William James, Writings, 1902–1910, ed. Bruce Kuklick (NewYork: Vintage, 1987), 941. 2
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verdade, conforme explica, o “Pluralismo de fato apresenta a demanda a partir do momento em que subordina a salvação do mundo à energização de cada uma das muitas partes que o compõem, em meio às quais nos encontramos”. Para o pragmá pluralista pragmático, conclui, “férias morais podem constituir apenas períodos provisórios de respiração... destinados a nos preparar para a próxima luta”4. Mas, por que invocar a noção vaga e afetiva de humor quando o pragmatismo parece sugerir uma ação ou prática real e quando é precisamente por meio das últimas das noções práticas - que James (e Peirce antes dele) definem explicitamente uma nova filosofia? Alegando que “a historia do próprio nome deve demonstrar o significado do pragmatismo...” James explica que “o termo deriva da mesma palavra grega πράγμα, que significa ação, a partir da qual as palavras prática e prático tem origem”, ao mesmo tempo em que generosamente credita a Peirce a introdução do termo na filosofia a partir da ponderação de que “os nossos princípios são na verdade regras para a ação” e, conseqüentemente, de que “para desenvolvermos o sentido de um pensamento precisamos apenas determinar a conduta que é projetada para produzir, pois a significação do pensamento está na conduta”5. De fato, Peirce em um primeiro momento formula o seu princípio pragmático em termos do alcance prático e do humor imperativo: “Considere os efeitos que poderiam ser concebidos como dotados de conseqüências práticas e que tomamos como objeto das nossas concepções. Então, nossa concepção destes efeitos constitui toda a nossa concepção do objeto”6. Mas posteriormente ele penou para explicar o mesmo princípio “no humor indicativo” e explicitamente em termos de conduta: “Todo significado intelectual de um símbolo consiste na totalidade dos modos da conduta racional que condicionalmente em todas as diferentes circunstâncias e desejos possíveis incorreria na aceitação do símbolo”. As conseqüências práticas para a conduta também são centrais para uma das máximas do pragmatismo de autoria de James que diz que não devemos tolerar diferenças teóricas que não determinem práticas diferentes. De acordo com o que defende na palestra em Howison, onde introduz o pragmatismo pela primeira vez: “Não 4
James corajosamente admite a demanda pragmática por uma “mensagem salvadora” de um humor de esforço contínuo, permanente e extenuante para os fracos, preguiçosos ou “almas doentes incuráveis” diz respeito a uma inferioridade [do pragmatismo]... a partir do ponto de vista pragmático, James, “Absolute,” 941. 5 James, Pragmatism: A New Name for Some Old Ways of Thinking, in Pragmatism and Other Writings (New York: Penguin, 2000), 25 (citado como P). 6 Ver C. S. Peirce Collected Papers of Charles Sanders Peirce, 8 vols., ed. Charles Hartshorne and Paul Weiss (Cambridge, MA: HarvardUniv. Press, 1931–58). Quotations from this paragraph are from volume 5, paragraph 402 (5.402). As demais referências ao autor serão citadas como CP, entre parênteses. 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
pode haver diferença que não faça diferença, uma diferença na verdade abstrata, que não se expresse como fato concreto diferente e de diferente condução do fato ao se impor sobre alguém, de algum modo, em algum lugar e em um tempo específico”. Em outras palavras, caso exista uma parte de algum pensamento que não faça diferença nas conseqüências práticas do próprio pensamento então a parte em questão não é propriamente um elemento de significação do pensamento... “Para nós, o teste definitivo do significado de uma verdade é de fato a conduta que dita ou inspira”7. A visão pragmática de que a ação (antes da razão) é o último fundamento estruturante para todo o pensamento e para todo o significado pode ser traçada até o insight darwiniano de que os humanos são organismos vivos cujo esforço de sobrevivência requer uma prioridade da ação em relação ao pensamento e que, do mesmo modo, o papel essencial do pensamento consiste em proporcionar uma ação mais eficiente. A nossa essência humana é mais vitalmente ativa do que racionalmente reflexiva. Entretanto, existe um paradoxo para uma filosofia que advoga a primazia da ação e as conseqüências práticas sobre o pensamento: por definição a imagem da filosofia como uma atividade essencialmente contemplativa, cujas instâncias reflexivas e deliberativas requerem certa distância crítica da ação e de fato certa inibição da mesma. Considerem as observações pertinentes de Maurice Merleau-Ponty, que destaca o problema ao explicar porque a “filosofia titubeia”. “A partir do momento em que é uma expressão em ato, a filosofia trata de si mesma ao deixar de coincidir com aquilo que expressa e de se distanciar em favor do próprio sentido... Desse modo, ela é trágica, pois leva consigo o seu contrário. Ela nunca é uma ocupação séria... O filósofo da ação é, talvez, aquele mais distanciado da ação, pois para falar da ação com rigor e profundidade, é necessário que não se deseje agir”8. A inibição da oposição entre o pensamento e a ação constitui um topos familiar do qual a mais famosa expressão literária é a queixa de Hamlet de que “a consciência nos faz a todos covardes e, assim, o vigor natural da resolução é arrastado pelos moldes pálidos do pensamento” de modo que nossas “iniciativas perdem o nome de ação” (III.i). Além disso, mesmo quando não reprime a ação, a deliberação reflexiva do pensamento tende a retardá-la, a desacelerá-la ou a torná-la mais hesitante. De onde, então, obtemos a energia física para a ação se o pensamento não é o 7
James, “Philosophical Conceptions and Practical Results,” University Chronicle (Univ.ofCalifornia) 1, no. 4 (1898): 292. A mesma sentença é repetida sem variações em Pragmatism, 27. 8 Maurice Merleau-Ponty, “In Praise of Philosophy,” in In Praise of Philosophy and Other Essays, trans. John Wild, James Edie, and John O’Neill (Evanston, IL: Northwestern Univ.Press, 1970), 58–59. 49 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
seu motor eficiente? A resposta de James é afeto: nossa natureza passional, nossos sentimentos, emoções ou humores. Ele chegou a essa resposta de uma maneira profundamente experimental, através da principal crise existencial que teve na vida, que o condenou a um período de depressão longo e paralisante durante os estudos universitários e os primeiros anos da vida adulta, ameaçando impossibilitar qualquer carreira de sucesso. A depressão de James era de natureza filosófica, incitada pelo medo de que a doutrina científica de escopo universal da materialidade casual pudesse impedir, de modo determinante, o exercício do livre arbítrio e assim o poder de sua volição para superar um atoleiro depressivo. Para registrar em um caderno a descoberta de sua estratégia para superar a sua “crise”, James escreve: “O meu primeiro ato de livre arbítrio consiste em acreditar no livre arbítrio. Pelo restante do ano me absterei do que for simples especulação e Grüblei contemplativa, em que a natureza se compraz e cultiva voluntariamente o sentimento da liberdade moral ao ler livros que a favoreçam assim como por meio da ação”. Mas de onde alguém pode tirar a energia para romper com tal hábito (e humor) da contemplação? Partindo de uma “iniciativa excepcionalmente passional” James responde (seguindo Alexandre Bain) e “coloca [isto] enquanto necessário para a aquisição de [novos] hábitos” bem como da liberação de hábitos antigos9. Então, nossa natureza afetiva ou passional é a conexão entre os atos volitivos, mesmo quando se trata dos nossos processos de pensamento. Se o sentimento é a ponte necessária entre o pensamento e a ação, então o humor é o que proporciona uma orientação afetiva geral ao moldar o que sentimos de modo seletivo encorajando algumas coisas com reciprocidade e frustrando outras. Se quisermos uma filosofia que possa ultrapassar a simples análise da ação ao advogar a sua primazia, mas que também persuada de maneira efetiva em direção à ação concreta, então devemos buscar uma filosofia cuja principal característica seja ativa de modo intenso e enérgico. Para James isso significa uma filosofia do “humor extenuante” conforme o termo “extenuante” denota enorme energia e esforço vigorosos, e deriva das palavras gregas e latinas para atuação efetiva, vigor, entusiasmo, desejo ardente e força superior que anseia por irromper em ação. James segue Nietzsche ao insistir que a filosofia - apesar de todas as
9
Ver Henry James, ed., The Letters of William James (Boston: AtlanticMonthly Press, 1920), 1: 147–48. 50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
reivindicações de racionalidade e objetividade universal – é, em última instância, uma expressão pessoal de como o filósofo percebe a realidade através do escopo da experiência, em conjunção com o prisma da personalidade. “Uma filosofia é a expressão da personalidade mais íntima de um homem, e todas as definições de universo não são senão as reações deliberadamente adotadas dos seres humanos em relação ao universo... existem tantas perspectivas, modos de sentir a energia... da vida, aplicada em alguém pela soma da personalidade e da experiência e... [em termos da] atitude mais funcional de alguém”10, conforme James escreve em A Pluralistic Universe, um dos diversos trabalhos em que fala do humor extenuante que sem dúvida traz a sua atitude filosófica preferida. Muito antes de indicá-lo e de discuti-lo em termos de um “humor extenuante” em suas publicações James identificou esse humor de fundo ou sentimento como a força ativa e empenhada subjacente a toda sua teoria, descrevendo-a em termos vividos e somáticos em uma carta particular à sua esposa Alice, em meados de 1878:
A atitude que me é característica envolve sempre um elemento de tensão ativa, de sustentar a mim mesmo, por assim dizer, confiando nas coisas externas para que desempenhem o seu papel em favor de uma harmonia plena, mas sem qualquer garantia de que o farão. Torne uma garantia e a minha consciência imediatamente transforma a atitude a partir da consciência psicológica estagnada e sem propósito. Retire a garantia e eu sinto (tendo em vista que sou um überhaupt vigoroso) certo tipo de êxtase profundamente entusiástico, de vontade amarga de fazer e sofrer qualquer coisa que possa ser fisicamente traduzida em um tipo pungente de dor no peito (não ache graça disso - pois para mim este é um elemento essencial de toda a coisa!) e que, embora seja um mero humor ou uma mera emoção para os quais não posso dar formas em palavras eles me certificam a si mesmos como o princípio mais profundo de toda determinação ativa e teórica que possuo11.
Além disso, estas observações claramente prefiguram a trilha somática bombástica da teoria da emoção de James (famosamente formulada em seu primeiro livro intitulado The Principles of Psychology, 1890)12: que mudanças corporais não são apenas conseqüências das emoções, mas uma de suas partes constitutivas. Durante muito tempo marginal, a teoria é crescentemente respeitada hoje, em grande parte por conta dos avanços recentes na neurociência. Além disso, a pesquisa na área confirma a intuição de James de que um sentimento forte proporciona um importante motor para a ação e também para o pensamento. De acordo com o neurocientista Antonio Damasio “emoção/sentimento, atenção e memória de trabalho interagem intimamente para constituir a fonte para a energia tanto da ação externa 10
James, A PluralisticUniverse, in William James, Writings, 639. The Letters of William James, 1:199–200. 12 James, The Principles of Psychology (Cambridge, MA: HarvardUniv. Press, 1983) (citado comoPP). 11
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(movimento) quanto da ação interna (animação do pensamento, raciocínio)13. Constituindo sua atitude fundamental para a filosofia e para a vida, o humor extenuante é repetidamente invocado por James, mesmo antes de o autor ter identificado oficialmente o pragmatismo como uma filosofia e declarado a sua aliança com o mesmo. Em sua análise do desejo em The Principles of Psychology, James contrasta “o humor simples e descuidado ao humor extenuante”, explicando de que modo o último nos impele em direção à ação decisiva (PP 1140). O mesmo contraste reaparece em The Moral Philosopher and the Moral Life (1891), em que James argumenta que “A diferença profunda prática na vida moral de um homem consiste na diferença entre o humor tranqüilo e o humor extenuante”. O primeiro promove nosso “encolhimento a partir de uma doença presente” e esforço, enquanto o humor extenuante, em contrapartida, faz com que nos tornemos bastante indiferentes à doença presente, já que um ideal maior é contemplado”. Ele promove a energia necessária para “a vida dura e para ultrapassar o jogo da existência em suas possibilidades mais agudas de entusiasmo”. Se algumas vezes e em algumas pessoas “são necessárias as paixões mais selvagens para que isto ascenda”, então, sua presença promove reciprocamente enorme excitação emocional (P 2060 – 62). Em Varieties of Religious Experience (1902) James destaca mais uma vez como o humor extenuante proporciona o estímulo necessário para a ação; como sua “excitabilidade emocional é extremamente importante na composição do caráter energético” por conta do seu “poder particularmente destrutivo sobre as inibições” que tantas vezes nos impedem as ações. Ele ainda o identifica com “seriedade”, definindo-o como “boa vontade para viver com energia, embora a energia traga a dor...; porque quando o humor extenuante está em alguém, o objetivo é romper com alguma coisa, não importa com quem ou com o quê”; de fato, “o próprio eu inferior com suas atividades de amansamento animal deve ser frequentemente o alvo e a vítima do humor extenuante”14. Em Pragmatism (1907) James utiliza o termo “seriedade” em vez de “sinceridade” para caracterizar a atitude do esforço melhorístico e extenuante por meio do qual “um genuíno pragmático... deseja viver dentro de um esquema de possibilidades incertas... e de pagar pessoalmente, caso necessário, para a realização dos ideais que
13
Antonio Damasio, Descartes’ Error: Emotion, Reason, and the Human Brain (New York:Avon, 1995), 71 (hereaftercited as DE). 14 James, The Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature (New York: Penguin,1985), 264. 52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
elabora” (P 130). Esta identificação do humor extenuante com a seriedade pode ser traçada até a obra The Principles of Psychology, em que ele descreve que “o humor particular ao qual denominamos seriedade, significa a vontade de viver com energia, embora a energia traga sofrimento” (PP 942), prefigurando sua caracterização como sinceridade em Varieties. Se o humor extenuante é central para o pragmatismo de James e, ainda, se proporciona (através da energia vigorosa, promotora da ação e emocional) uma conexão efetiva do pensamento com a conduta capaz de radicalizar a filosofia da ação tornando-a menos paradoxal, então tal humor (com as suas consequências teóricas e práticas) também encontra uma expressão importante em outros pensadores pragmáticos? Poderia o pragmatismo, então, ser descrito de maneira útil como uma filosofia proeminentemente afetiva bem como uma filosofia prática? Como os pragmáticos proeminentes compreendem o papel do humor e do sentimento e inferem esta dimensão afetiva juntamente às noções de força e esforço que refletem o humor extenuante?
II
O que é um humor? Assim como os humores se diferenciam dos sentimentos distintos ou das emoções explícitas por serem mais vagos e indefinidos, o próprio conceito de humor permanece vago e ambíguo. O seu significado é complicado pelo fato de possuir uma raiz etimológica dupla, que deriva tanto do termo germânico emocional para Mut quanto da palavra latina modos para designar modo, método ou caminho. Nossa noção gramatical de humor (imperativo, indicativo, interrogativo, etc.) deriva da última raiz e sugere uma questão de estilo, conduta, gênero de elocução, em vez de uma ideia de afeto. Certamente, podemos associar entoações afetivas com diferentes humores gramaticais (talvez dúvida ou curiosidade no interrogativo e impaciência no imperativo), mas este conceito gramatical (como a tradicional classificação dos silogismos categóricos por humor que Peirce usa extensivamente) não tem uma conexão essencial com o humor no sentido afetivo e psicológico como é a minha preocupação aqui. A distinção entre os termos afetivos de humor, sentimento e emoções são vagos, confusos e contestados não apenas na vida cotidiana, mas também entre os acadêmicos especializados na área sendo que os pragmáticos aos quais me refiro não
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tomaram um cuidado especial para distinguir entre os termos de modo explícito15. No entanto, parece de grande ajuda fornecer um sentido geral das maneiras mais comuns de distinguir entre os mesmos. Os humores geralmente são entendidos como mais penetrantes, contínuos e gerais do que as emoções ou os sentimentos. Além disso, enquanto emoções e sentimentos16 são tipicamente considerados como intencionais (no sentido de que são essencialmente sobre alguma coisa) os humores “não tem uma intencionalidade essencial” de modo que podem existir sem estarem relacionados a alguma coisa em particular, mas unicamente provendo “a tonalidade da cor” para estados de consciência que possuem um objeto intencional, tal como uma emoção ou raiva (ou ansiedade) em ser menosprezado ou um sentimento de vergonha (ou humor) diante da gafe de alguém17. Algumas vezes as emoções são consideradas mais claras, mais definidas e mais intensas do que os humores, mas, em contrapartida, são mais voláteis e tendem a aparecer e a desaparecer repentinamente. Por fim, tanto as emoções e quanto os sentimentos são muitas vezes considerados como mais somáticos ou psicológicos na expressão do que os humores que, em contraste, são considerados mais cognitivos e psicológicos, mais uma função da mente do que do corpo. Embora minha discussão do humor venha a ter foco em seu uso pragmático, e assim em sua aplicação inglesa, não posso deixar de demonstrar que a sua última distinção poderia ser trazida à tona ao levarmos em consideração as linguagens do Romance, em que os termos para humor (como “humeur” ou “humor”) retomam a antiga teoria dos fluidos corporais como determinantes das nossas personalidades, perspectivas e atitudes. Ao invés de ser marcado por discussões separadas, o humor é tratado em conjunto com a emoção e com o sentimento pelos pragmáticos clássicos, como parte de uma dimensão geral do nosso afeto. Nos dois enormes volumes de Principles of Psychology, o “humor” sequer aparece no índice extensivo do livro, enquanto a “emoção” e o “sentimento” estão presentes. No entanto, James emprega o termo com freqüência no livro, resumidamente notando uma variedade de diferentes humores. Além dos humores extenuante ou sério, e do descuidado ou do descomplicado, ele 15
Para uma discussão detalhada do assunto ver Christopher J. Beedie, Peter C. Terry e Andrew M.Lane, “Distinctions Between Emotion and Mood,” Cognition and Emotion 19,no. 6 (2005): 847–78. 16 Sobre esse ponto ver, por exemplo, Damasio, The Feeling of What Happens: Body and Emotion in the Making of Consciousness (New York: Harcourt, 1999), 286, 341n–342n; PaulEkman, “Moods, Emotions, andTraits,” in The Nature of Emotion, ed. Paul EkmanandRichard J. Davidson (Oxford: Oxford Univ. Press, 1994), 56–58; Davidson, “On Emotion, Mood, and Related Affective Constructs,” in The Nature of Emotion, 51–55. 17 John Searle, The Rediscovery of the Mind (Cambridge, MA: MIT Press, 1992), 140. 54 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
menciona “o humor reverencial”, “o humor fatalista”, “o humor desconfortável”, “um humor de interesse”, “uma disposição de espírito feminina” e, de modo mais geral, “humores emocionais” ou “humores mentais”, mas sem realmente defini-los. Nem tampouco articula as diferenças entre humores aparentemente contrastantes aos quais se refere como “humor habitual” versus o “humor momentâneo” ou “humores orgânicos” versus “humores mentais”. Estas categorias de humor não possuem uma essência definidora única. Em lugar disso, cada humor em cada uma das categorias deveria possuir a sua composição particular porque cada uma possuirá suas próprias expressões emocionais e, por isso, corporais. Porque James afirma em seu capítulo sobre as emoções que nossos “humores, afetos e paixões... são na verdade constituídos e criados por estas mudanças corporais às quais ordinariamente denominamos expressões ou conseqüências” e assim se “fôssemos nos tornar corporalmente anestéticos [nós] deveríamos ser excluídos da vida dos afetos” (PP 1068). Cada emoção de alegria, por exemplo, terá a sua expressão corporal particular, dependendo dos hábitos somáticos, da constituição e das condições circunstantes da pessoa que tem o sentimento de alegria - as condições incluindo assim o objeto ou causa da alegria. Esta é a razão pela qual James pensa que não deveríamos focar nossos esforços em definir ou classificar precisamente as diferentes emoções. E o mesmo acontece com as categorias do humor (porque a sensação do humor reverencial de um diferirá da de outro em modos somáticos significantes). Antes de tentar definir precisamente o que o humor é (e como as suas variedades são individuadas e classificadas), nos parece mais útil, ao estilo pragmático, nos focarmos no que o humor causa. Como, por exemplo, ele funciona para os três fundadores do pragmatismo, Peirce, James e Dewey? Considerem os seis modos seguintes que distingui, apenas em favor da claridade da exposição, mas considerando que nitidamente eles se sobrepõem.
1.
O humor colore nossa sensibilidade ao dar à experiência sua tonalidade
básica. James nota como o humor molda a nossa sensibilidade e altera a nossa apreciação do que percebemos. Nós experimentamos as coisas de diferente maneira diferentes humores orgânicos. O que era brilhante e excitante torna-se enfadonho, entediante e inútil” (PP 226). Esta função de qualidade tonal é tão básica que Peirce usa a noção de humor para caracterizar os princípios mais fundamentais da experiência: a sua “tricotomia” do primeiro, do segundo e do terceiro, que aplicou de modo engenhoso e sistemático aos diversos campos de investigação que estudou. Ao explicar o seu 55 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
extensivo “uso da tríplice divisão” ele reivindica que “as idéias de primeiro, segundo e terceiro... são tão amplas que devem ser observadas mais como humores ou tonalidades de pensamento” (CP 1.355). A primeiridade é definida basicamente como “presencidade”, no sentido mais concreto de iminência, da imediata “qualidade do sentimento” sem qualquer implicação conceitual ou relacional (CP 1.304). Para explicar esta noção, Pierce invoca a ideia de “humor poético que se aproxima do estado no qual o presente aparece como se estivesse presente” nele mesmo “independentemente do passado e do futuro” (CP 5.44). Se a primeiridade é descrita em termos de sentimento então a secundidade é caracterizada pelo “elemento de Esforço”, a noção de resistência que a realidade decide para os nossos sentimentos imediatos que incluem os desejos (CP 5.45). Para ter um senso desse esforço extenuante, de acordo com Peirce, “Imagine que você está fazendo um grande esforço muscular de, digamos, investir com toda a sua força contra uma porta entreaberta” sendo que “o sentido de esforço não pode existir sem a experiência da resistência” (CP 5.45; CP 8.330). O ponto de Peirce é que a imposição da realidade sobre a nossa consciência imediata por meio da simples “força bruta” é algo que estimula um esforço para encontrar a sua resistência, evocando assim, em algum sentido, um humor extenuante para realizá-lo (CP 5.315). A terceiridade envolve uma relação mediada entre a qualidade imediata da primeiridade e os esforços plenos da secundidade, uma relação que lida com a resistência por meio do pensamento e da representação. 2.
Uma segunda forma fundamental das funções do humor na teoria
pragmática é por meio da estruturação do pensamento a partir de uma afinidade com o humor. Esta estrutura envolve não apenas a seleção de elementos para o pensamento como também a sua articulação, distinção, direção, seqüenciamento e unificação na experiência. O que guia a direção de nossa associação de ideias no fluxo de consciência (uma metáfora que James tornou famosa ao contrastar com as imagens mais mecânicas e descontínuas de uma linha ou corrente de pensamento)? O que mantém o percurso do nosso pensamento pela rota desejada e sustém nosso foco no tópico escolhido em seu propósito? Para James, trata-se de uma qualidade sentida a partir da experiência, “um humor de interesse” com “um sentimento limítrofe de relações” e “embora o humor seja vago ainda, agirá do mesmo modo, jogando um manto de sentida afinidade sobre tais representações, entrando na mente em função de adequá-la, tingindo com o sentimento 56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
de tédio ou discórdia tudo aquilo com o que não se relaciona” (PP 250). O humor recebe bem as ideias que se harmonizam com o seu tom e com a sua tendência sentida, que dão “um sentido de apoio” do seu interesse ou preocupação, enquanto ele resiste a ideias que trazem “discórdia” ou “impedimento do tema”, que são pouco simpáticas a “margem de afinidade” do humor. O elemento mais importante dessas margens na estruturação do pensamento não é cognitivo, mas afetivo e estético, “o simples sentimento de harmonia ou de discórdia, de uma direção certa ou de uma direção errada” (PP 250 - 51). John Dewey segue James de perto nesse ponto, ao tornar o sentimento imediato qualitativo do humor da experiência não apenas a fundação de sua estética, como de toda a teoria da experiência e do pensamento coerente. O humor, Dewey argumenta, proporciona a qualidade de sentimento que unifica a diversidade do nosso input sensorial em um papel coerente da experiência ao selecionar o que se encaixa com cada humor, do mesmo modo como proporciona a tendência direcional, o foco, a energia para o progresso rumo à própria conclusão. “Todo humor predominante exclui automaticamente tudo o que desfavorável a ele... Ele estende os tentáculos para aquilo com o que é cognato, para as coisas que o alimentam e o acompanham na compleição. Apenas quando a emoção morre ou se quebra em fragmentos dispersos os materiais ao qual ela é alheia podem entrar na consciência”18. Ao afirmar que o humor se estrutura pela seleção, Dewey enfatiza aqui (e em outras partes) o papel crucial do humor de proporcionar unidade ao pensamento e à experiência, uma unidade cuja expressão paradigmática está na plenitude enriquecedora das obras de arte. O humor, de acordo com Dewey, é a experiência afetiva que dá forma à criação e apreciação da arte: “o artista e o expectador começam do mesmo modo com o que podemos chamar de apreensão total, um papel qualitativo inclusivo”, que (citando Schiller na composição poética) ele descreve como “um estado de humor musical peculiar” que precede “a ideia poética” com a sua articulação nas partes concretas do poema. Além disso, Dewey insiste que não apenas o humor “vem primeiro como persiste na forma de substrato depois das distinções [das partes] emergentes; de fato elas emergem como distinções do mesmo” (AE 195 – 96). Em resumo, Dewey vê o humor como provedor da estrutura, da experiência implícita, que a filosofia da mente contemporânea progressivamente reconhece como
18
John Dewey, Art as Experience (Carbondale: Southern Illinois Univ. Press, 1987), 3 (citado comoAE).
57 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
necessária para que façamos sentido do que está em primeiro plano como o conteúdo do pensamento. A qualidade envolvente e penetrante do humor gera uma sensação de quais elementos da nossa experiência devem estar articulados ou enfatizados como os objetos focais da consciência; por exemplo, quais palavras ou imagens deveriam ser selecionadas como apropriadas na criação de um poema ou destacadas enquanto o lemos; quais ideias no trabalho deveriam ser individuadas e como poderiam ser seqüencialmente organizadas. “A qualidade penetrante e indefinida de uma experiência é aquela que liga todos os elementos definidos, os objetos dos quais estamos focalmente cientes, tornando-os inteiros” (AE 198). Nossa evidência pra isso, segundo Dewey, “é o sentido constante das coisas como pertencentes ou não pertencentes ao trabalho, de relevância, um sentido que é imediato” antes do que um produto da reflexão, mesmo ainda que a reflexão possa ser usada para formular e para julgar o valor dessa coisa percebida como pertinente ou impertinente. Para tal, a reflexão em si mesma precisa ser guiada pela qualidade unificada na experiência estruturada no humor da qual temos um sentido “imediato” (AE 198).
Embora o seu poder enriquecedor, vivificante e
unificador seja particularmente evidente em obras de arte,definindo essencialmente a experiência estética, Dewey percebe a experiência da qualidade unificadora do humor como necessária a todo pensamento e experiência coerentes. Esta é a razão pela qual ele eleva a experiência estética de modo distinto para o entendimento da experiência como um todo (AE 278). Além disso, para Dewey este sentimento qualitativo produz do mesmo modo a energia inspiradora e a coloração emocional aos diferentes elementos e fases da experiência estética, bem como sua direção unificadora: “isto vivifica e anima, este é o espírito da obra de arte” (AE 197). Na condição de uma experiência “vaga e indefinida” isto não pode ser nomeado ou articulado como uma parte específica da obra, embora modele, selecione, unifique e anime todas as partes que a compõem; e como a alma ou o espírito “nos quais a obra particular é composta e expressa”, é isto o que “marca [a obra] com individualidade”. Como a primeiridade de Peirce, esta “qualidade penetrante que corre em todas as partes de uma obra de arte e que as conecta em uma totalidade individualizada pode ser “intuída” apenas de modo emocional, ou seja: “pode apenas ser sentida” ou “imediatamente experimentada” (AE 196-97). 3.
Ao selecionar ideias em termos de uma harmonia com seu afeto, o humor
determina não apenas o conteúdo intelectual, mas também a emoção. Isso explica o 58 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
poder de persistência do humor. Ele seleciona as associações que podem servi-lo e sustentá-lo. “Os mesmos objetos não rememoram os mesmos associados quando estamos alegres e quando estamos melancólicos”, escreve James. “Na verdade, nada é mais surpreendente do que a nossa inabilidade completa para mantermos a sequência das imagens alegres quando estamos com o espírito deprimido. Tempestades, escuridão, guerras, imagens de doença, pobreza perecendo de modo aflitivo e incessante a imaginação dos melancólicos”. Em contraste, “aqueles de temperamento sanguíneo” encontram no próprio pensamento “associações [imediatas] nas quais as flores competem com a luz do sol”. Até mesmo a mesma pessoa reagirá com diferentes sentimentos ao mesmo objeto ao encontrá-lo em ocasião de um estado de humor muito diferente. James confessa como a própria reação emocional a Os Três Mosqueteiros mudou radicalmente quando ele leu o livro “deprimido e doente” e, portanto, incapaz de apreciar “seus espíritos animais alegres” (PP 543). Dewey segue James não apenas ao perceber como “o humor automaticamente exclui tudo aquilo com o que não tem congruência”, mas também ao reconhecer o problema que representa para a vontade. Já que, para o pragmatismo, somos essencialmente mais ativos do que criaturas racionais (porque a nossa sobrevivência requer mais ação do que pensamento), nossa consciência é implicitamente impulsiva e, assim, temos a tendência natural de agir de acordo com qualquer ideia que nos venha à mente. Se o afeto do humor seleciona ideias em termos de congenialidade e reforço da tonalidade e da direção do humor, então romper o domínio deste humor ao introduzir um pensamento de oposição, tonalidade hostil requer um esforço especial, envolvendo um sentimento capaz de segurar a ideia oposta na consciência e romper com o humor dominante. Assim, em contraste com a visão clássica da vontade que faz uso da razão para suplantar o sentimento e o desejo, a visão pragmática reconhece que o poder da vontade envolve a geração de sentimento ou desejo suficientes para manter “a ideia da ação sábia vindo antes do mental” quando o humor que prevalece é hostil a ela e tem a intenção de dissipá-la ou de suavizá-la19. 4.
Para o pragmatismo o humor não molda apenas nossas ideias e emoções,
como também nossas crenças, as ideias nas quais confiamos e que guiam nossa ação. Isto acontece porque o sentimento, mais do que a razão, faz com que acreditemos; nosso senso básico de realidade, de acordo com James, é uma questão mais afetiva do que 19
Dewey, Ethics (Carbondale: Southern IllinoisUniv. Press, 1985), 188 (citado comoE). Dewey está citando o capítulo de James “Will” in The Principles of Psychology (PP 1167). 59 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
reflexiva. No sentido comum, “no qual é dito de uma coisa possuir mais realidade do que outra e ser mais crível, a realidade significa simplesmente a relação com a nossa vida emocional e ativa” (PP 924). Geralmente acreditamos em alguma coisa quando “a crença está em consonância com um humor emocional que no momento em questão domina a consciência”, e mesmo as crenças não razoáveis podem ser sustentadas com tenacidade quando o apelo emocional é muito poderoso. Para a maior parte das pessoas “Conceber com paixão é eo ipso afirmar” e resistir a essa pressão emocional sustentando-se em uma posição crítica “é o mais alto resultado da educação” e da autodisciplina (PP 936-37). Mais uma vez Dewey ecoa o mestre: “O padrão utilizado para medir o valor das sugestões que brotam na mente não está em congruência com os fatos, mas com a congenialidade emocional... Estão em consonância com o humor dominante?”20 James, entretanto, permanece o pragmático mais radical em relação ao poder da convicção, mesmo reivindicando (equivocadamente, na minha opinião) que “onde quer que haja um conflito de opinião e diferentes visões somos obrigados a acreditar que o lado mais verdadeiro é o lado que sente mais e não o lado que sente menos”21. 5.
O sentimento, para James, não apenas é um trunfo em relação aos nossos
hábitos de crença racional, como ainda subjaz nosso sentido próprio de razão e na capacidade de raciocínio. Como psicólogo e filósofo cum laude, James defende que um filósofo sabe quando encontrou uma concepção ou solução racional “conforme ele reconhece todo o resto, por meio de certas marcas subjetivas com que é afetado” por certo sentimento que James denomina “o sentimento de racionalidade”, que envolve “um forte sentimento de tranqüilidade, paz e repouso”, decorrente de se atingir uma simplificação, ordenação, unidade e clareza. “A transição de um estado confuso e perplexo para a compreensão racional é cheia de alívio e de prazer”. James identifica o
20
Dewey, Reconstruction in Philosophy (Carbondale: Southern IllinoisUniv. Press, 1982),83. Quanto a Peirce, embora ele insista no método científico crítico como a forma superior para fixação da crença em matéria científica, ele também reconhece que em assuntos do cotidiano a maioria das pessoas não usam este método crítico e, geralmente, procedem bem por confiar nos instintos, reações, habituais e emocionais, que, tendo sobrevivido no processo evolutivo, não podem, portanto, ser geralmente mal adaptada às nossas necessidades práticas. 21 James, “On a Certain Blindness in Human Beings,” (P 268). A noção de ser"obrigado a acreditar" no contexto de seu argumento é de duplo sentido: de que não somos simplesmente impelidos psicologicamente a acreditar, mas que também temos esse sentimento verdadeiro de ordem cognitiva porque o sujeito que se debruça mais sobre um assunto realmente "sabe mais" do que um observador imparcial. Para mais interpretação a crítica de James sobre estas questões, ver Shusterman, Body Consciousness: A Philosophy of Mindfulness and Somaesthetics (Cambridge:Cambridge Univ. Press, 2008), 15–152. 60 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
prazer com “as duas grandes necessidades estéticas da nossa natureza lógica: a necessidade de unidade e a necessidade de clareza”22. James, com presciência, ainda argumenta que o sentimento, como mecanismo do pensamento, proporciona a energia e o foco necessários para a argumentação racional. “Se a focalização da atividade cerebral é o fato fundamental do pensamento racional, vemos porque o interesse intenso ou a paixão concentrada fazem com que pensemos de modo tão mais verdadeiro e profundo... Quando não estamos ‘focalizados’ somos dispersos; mas quando completamente apaixonados nunca nos desviamos do ponto. Nada exceto imagens congruentes e relevantes surgem” (PP 989-90). A neurociência contemporânea confirma este ponto de vista. Desde que não haja o “teatro cartesiano” em que todo o input do cérebro encontra-se para um processamento simultâneo, o pensamento humano funciona “pela sincronização de conjuntos de atividade neural em regiões separadas do cérebro” através da “conexão de tempo” de imagens em diferentes lugares “dentro de aproximadamente a mesma janela de tempo”. O que requer “manutenção da atividade em diferentes lugares pelo tempo necessário para que sejam feitas combinações significantes e a razão e a tomada de decisões aconteçam” (DE 94-96). A energia afetiva essencial das emoções, dos sentimentos e dos humores que envolvem uma dimensão corporal essencial não serve apenas “como intensificador para o trabalho contínuo da memória e da atenção”, mas também facilita a “deliberação pelo destaque de algumas opções” ao mesmo tempo em que elimina outras em termos de um ajuste com o humor da nossa experiência e com o seu senso de direção conforme expresso em sentimentos corporais sentidos de maneira vaga ou “fabricantes somáticas” (DE 174, 198). De acordo com Damasio, puro sangue frio racionalista, o sangue frio dos seus pacientes com danos cerebrais, fariam a “paisagem mental” da memória de trabalho não apenas “desesperançadamente plana”, mas também “muito escorregadia e insustentável pelo tempo requerido... do processo do raciocínio” de modo que poderíamos “perder o rastro” ou direção falhando em atingir um resultado racional efetivo (DE 51, 172-73). 6.
Para a teoria pragmática clássica, as funções adicionais do humor
estimulam a ação por meio da força afetiva. Esta função (prontamente enfatizada na primeira seção desse artigo) é facilitada pela afeição especialmente forte e enérgica, que
22
James, “The Sentiment of Rationality,” in Collected Essays and Reviews (London: Longmans,1920), 84, 99. Eu discuto o solo estético da teoria da racionalidade de James em mais detalhes em Shusterman, “The Pragmatist Aesthetics of William James,” British Journal of Aesthetics 51, no. 4 (2011): 347–61. 61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
James nomeou humor extenuante. Pensar por si só não produz o fazer. A reflexão, a deliberação e a racionalização de fato inibem a ação conforme Dewey (mais uma vez depois de James) insiste: “todo pensamento exercita pela própria natureza um efeito inibidor. Ele retarda a operação do desejo e tende a suscitar novas considerações que alteram a natureza da ação para a qual alguém se sentiu originalmente impelido” (E 189). Se a famosa afirmativa de James de que a “consciência é impulsiva em sua natureza íntima” e assim naturalmente conduz à ação, então isso é porque ele identifica a consciência como o sentimento em lugar do mero pensamento, e o sentimento como o motor dinâmico. Além disso, ele acrescenta a condição de que o sentimento da consciência “deve ser suficientemente intenso... para excitar o movimento” notando que a “intensidade de alguns sentimentos é praticamente apta a estar abaixo do ponto de descarga” para a ação (PP 1134, 1142). Promovendo um sentimento forte o suficiente para que um pensamento gere uma ação, o humor extenuante também aumenta a força de vontade; para a “verdadeira força da vontade” e, de acordo com Dewey, não trabalha apenas reprimindo o desejo com o efeito inibidor do pensamento crítico. Preferencialmente, ele “une pensamento e desejo” ao ligar o desejo a um “final melhor que o pensamento descreve”, guiando deste modo a ação com o “desejo reflexivo”. O sentimento de desejo “fornece a direção” ou o motor a partir do momento em que o “simples pensamento não conduziria à ação; o pensamento deve ser assumido em um desejo e impulso vitais em função de ter corpo e peso na ação” (E 190). A ação não deveria ser estreitamente construída aqui em termos de tarefas práticas. Para o pragmatismo, a investigação teórica (seja na resolução de problemas científicos ou comuns) é em si mesma uma forma de ação que demanda energia. De fato, o caráter investigativo do pragmatismo, formulado pela primeira vez por Peirce, retrata a investigação nos termos extenuantes de um esforço para remover a dúvida, mas de modo bastante distinto do que encontramos em Descartes. Para além do estilo cartesiano da dúvida metodológica, que começa ao se duvidar de tudo que não podemos afirmar com certeza, Peirce insiste: “Deve haver uma dúvida real e viva, sem a qual toda discussão é inútil” (CP 5.376.1-2). A certeza lógica absoluta não é necessária: “Quando a dúvida [real] cessa, a ação mental sobre o sujeito chega ao fim e, caso continuasse, seria sem um propósito” (CP 5.376.1-3). O que Peirce quis dizer com “dúvida real e viva” foi um afeto distinto, uma dimensão sensorial arraigada em nossa herança somática darwiniana, como é nossa 62 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
necessidade de resolver as dúvidas com crença para que possamos guiar nossas ações. Porque precisamos agir em função da sobrevivência e precisamos de crenças que direcionem nossas ações, não podemos sobreviver quando permanecemos em um estado de real dúvida. Assim, a dúvida é experimentada em um nível sensorial e somático como uma irritação perturbadora que o organismo deve remover pelo alcance de uma crença que dê fim ao estado de dúvida paralisante e irritante, capaz não apenas trazer alívio como de possibilita a ação. “A dúvida é um estado difícil e insatisfatório a partir do qual lutamos para nos libertar e passar ao estado da crença; enquanto a última é um estado calmo e satisfatório que não desejamos evitar ou modificar porque ele apazigua ao mesmo tempo em que guia a ação. “A dúvida não tem o mínimo efeito ativo, mas nos estimula a investigar até o momento em que é destruída” (CP 5.373). De modo surpreendente, Peirce define a investigação como esforço para acabar com o sentimento irritante gerado pela dúvida. “A irritação da dúvida causa um esforço para a obtenção de um estado de crença. Eu devo dar a este esforço o nome de Investigação, embora devamos admitir que nem sempre se trata da melhor designação” (CP 5.374). A dúvida, então, é um humor desconfortável e irritante ao qual procuramos superar através de um esforço que demanda um humor extenuante para sustentar o esforço investigativo que nos devolve ao humor mais agradável da crença. De fato, em vez de buscar o verdadeiro conhecimento, nosso verdadeiro objetivo a partir da investigação é alcançar um melhor sentimento - o mais calmo e prazeroso humor da crença. “A irritação da dúvida é o único motivo imediato para o esforço para que se alcance a crença. Para nós, é certamente melhor que as nossas crenças sejam tais que possam verdadeiramente guiar as nossas ações de modo a satisfazer nossos desejos; e a presente reflexão fará com que rejeitemos cada crença que não pareça concebida para garantir o resultado. Mas o faz apenas por criar uma dúvida no lugar da referida crença. Entretanto, com a dúvida começa o esforço, e com o fim da dúvida o esforço termina” (CP 5.375). É claro que uma vez que uma crença surge ela é estabelecida por meio da investigação, outras questões ou novas dúvidas inevitavelmente surgirão, mesmo que a a partir da crença que acabou de ser adquirida.
III
São todas as perguntas, incluindo as levantadas pela filosofia, uma luta contra a dúvida? Para algumas pessoas o projeto de filosofar sem sair da poltrona parece mais 63 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
próximo dos passeios proporcionados pela curiosidade especulativa fácil, da absorção completa ou da contemplação atenta proposta pelos gregos da qual derivamos o nosso conceito de teoria. Mas, a despeito da imagem contemporânea da filosofia como especulação livre e ociosa, o humor extenuante está profundamente arraigado à tradição filosófica e está é, talvez, uma das razões pelas quais James pode dar ao seu livro Pragmatismo subtítulo de A New Name for Some Old Ways of Thinking. Se por um lado Sócrates formou a filosofia como uma disciplina que se fez da luta, do esforço e do auto-sacrifício para melhorar a si mesmo na busca pela verdade - e na expressão corajosa dessa mesma verdade – é preciso lembrar que ele não escreveu livros. Na verdade, o modelo filosófico antigo que estabeleceu nos parece mais fundamentado sobre a bravura na vida do que na excelência na escrita, mesmo em se tratando de um ideal calcado em uma síntese simbiótica entre bios e logos. De acordo com o que defendo em Practicing Philosophy, o pragmatismo pode ser visto como uma possibilidade de reviver a ideia da filosofia como vida, que ultrapassa os exercícios textuais23. Devemos nos lembrar também que tanto para James quanto para Peirce a investigação filosófica molda-se a partir da experiência proporcionada pela investigação científica, que envolve esforços físicos para além da poltrona. Mas, do mesmo modo, a ideia de investigação baseada no humor extenuante pode estar relacionada às doenças crônicas que sofreram e que transformaram até mesmo a filosofia baseada na simples leitura e na escritura em um enorme esforço24. Antes de finalmente me voltar para o pragmatismo contemporâneo, tomando Richard Rorty como seu mais proeminente exemplar, gostaria de levantar uma questão a partir do humor extenuante, que trata do afeto e da ação ao sugerir a necessidade pragmática do humor extenuante. O sentimento, o humor e a emoção não são os únicos termos de afeto. A paixão é outro dos seus termos importantes, pois se relaciona com um humor que implica certa intensidade. Se o sentimento forte é o motor da ação e as paixões são reconhecidamente fortes então por que o pragmatismo, como uma filosofia que trata especificamente da ação, se alinharia com o humor extenuante e não com o 23
Shusterman, Practicing Philosophy: Pragmatismand the Philosophical Life (New York:Routledge, 1997). 24 Para doenças persistentes de James, incluindo dores de cabeça, "neurastenia", e doenças do coração, ver Body Consciousness, 136–39, 176–79. Para a longa luta de Peirce contra a "neuralgia, então neuralgia trigeminal medicamente denominada facial", que envolve "intensa, e às vezes insuportável dor aguda" e que exigia Peirce o uso de éter, ópio e morfina como paliativos, ver Joseph Brent, Charles Sanders Peirce: A Life (Indianapolis: Indiana Univ. Press, 1993), 14, 15, 40, 105. Peirce descreveu a sua diligência extenuante como “Peirce-verança” or “Peirce-stência.” 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
sentimento apaixonado de modo mais geral? Se James não identifica a filosofia pragmática da ação como uma filosofia de paixão podemos inferir que a razão não é simplesmente de conotação sexual, dos sentimentos puritanos remanescentes que o faziam evitar as discussões sobre erotismo e até mesmo a postular um "instinto antisexual". A razão mais provável é que o humor normalmente conota um longo período de afeto ou de uma disposição sustentada em um estado que incentiva certos tipos de sentimentos e, por isso, se queremos sustentar e afetar a produção de ação de modo permanente ao invés de relegar a ação ao impulso fugaz, precisaremos de um humor intenso, não de um momento de paixão. A partir do momento em que o humor é durável, a disposição a chave, então porque não falar do "clima apaixonado", quando pode sugerir durabilidade e intensidade? O problema aqui é que a paixão muitas vezes se define como o oposto da ação. Como a sua etimologia demonstra (do latim passio, ou seja: um sofrimento duradouro relacionado ao pathos grego), a paixão sugere ser mais passividade do que atividade, pois constitui algo que uma pessoa é submetida ou sofre, e não que alcance de modo ativo. Ao contrário do conceito de sentimento, a paixão não tem uma forma verbal que indique a sua atividade ou o seu agente. O poder da paixão é frequentemente retratado como aquele que subjuga o agente ou que paralisa vontade para a ação correta, conforme o senso comum sugere com a noção de "escravo da paixão". As paixões da morbidade, da dor ou do desespero podem ser extremamente imobilizadoras minando todo a nossa energia capaz de produzir uma ação. O projeto pragmático de um melhorismo vigoroso requer,mais do que qualquer feito potente, uma energia duradoura capaz de afetar ao traduzir a intensidade do poder dinâmico e positivo da ação. Essa é uma prescrição para o humor extenuante.
IV
Richard Rorty, o principal motor em renovar a reputação do pragmatismo na filosofia e teoria literária do final do século XX, difere radicalmente dos pragmáticos clássicos ao rejeitar veementemente todo o conceito de experiência - um conceito que é, inegavelmente, fundamental para Peirce, James e Dewey. Em lugar disso, Rorty postula a linguagem como meio essencial, substância e marco de admissibilidade da filosofia e da nova literatura histórica. Segundo ele, a experiência é muito ambígua, de difícil descrição e constitui uma noção filosófica confusa para uma aplicação eficaz; usá-la 65 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
levaria a esperança do subjetivismo ou a um mito fundamentalista igualmente equivocado de um dado puro (aquém da linguagem e, portanto, além de lingüística e das mudanças culturais) que prometeria uma objetividade absoluta incapaz de cumprir. O fato de que Rorty parte do pragmatismo clássico para rejeitar a experiência e restringir filosofia à lingüística para muitos é representativo de sua formação analítica. Mas isso não é de todo verdade, pois muitos dos bons filósofos analíticos reconhecem um papel para os dados provenientes da experiência não linguística, como qualia e “sentimentos brutos”, sendo que alguns são alvos da crítica rortiana. Embora muito do trabalho analítico inicial de Rorty (antes de se voltar ao pragmatismo) esteja focado na filosofia da mente, ele fala muito pouco sobre o humor e, à semelhança dos pragmáticos clássicos, não distingue claramente entre o humor e outras formas de afeto. Na verdade, ele tipicamente agrupa os humores em conjunto com outros estados mentais que não são claramente afetivos25. Por exemplo, ele argumenta que "as crenças, desejos, humores, emoções, intenções" são tomados como estados mentais, pois normalmente tratamos os relatos sobre eles como praticamente incorrigíveis, enquanto sensações e pensamentos constituem estados mentais mais paradigmáticos a partir do momento em que os relatos em primeira pessoa sobre eles são pensados como completamente incorrigíveis; e o autor prossegue distinguindo ainda mais "crenças e desejos e humor" de determinados “sentimentos brutos, imagens mentais e pensamentos", quando os primeiros são disposicionais (e, portanto, sustentados) e os últimos são "como eventos”. O humor não é um conceito importante para Rorty e sua filosofia, a noção jamesiana de humor extenuante nunca é invocada, embora esteja claramente expressa nas maneiras que usa para destacar a força, o afeto e o esforço – elementos que se unem para formar esse humor26. O predicado "forte" aparece em três conceitos-chave que Rorty deriva da teoria 25
Richard Rorty, “Incorrigibility as the Mark of the Mental,” Journal of Philosophy 67, no.12 (1970): 399–424; and Philosophy and the Mirror of Nature (Princeton, NJ: Princeton Univ.Press, 1979), 66–67. Em linha com seu fisicalismo não-redutivista geral, que reconhece a autonomia relativa do mental, mas não como algo que existe como alguma coisa separada, misteriosa ou substância existente em algum reino além do nosso universo espaço-temporal, Rorty na maioria das vezes fala de humor como mentalismo em lugar de registro encarnado. Mas ele ocasionalmente conecta vontade de condições fisiológicas, observando, por exemplo, em Rorty "explicação da dependência de nossa disposição em nosso sistema endócrino." “Freud and Moral Reflection,” in Essays on Heidegger and Others (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1991), 146. 26 A ideia de humor extenuante, no entanto, está implícita no contrário, quando Rorty nos exorta a sermos sérios e "concretos" em "política real" de "formas de aliviar a miséria e superar a injustiça", em oposição ao "clima de relaxamento", podemos tomar a "política cultural", onde "não importa o quão abstrato, hiperbólico, transgressivo ou lúdico que nos tornamos." Rorty, “The End of Leninism, Havel, and Social Hope” in Truth and Progress (Cambridge:Cambridge Univ. Press, 1998), 231–32. 66 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
literária de Harold Bloom, mas que reinterpreta de modo criativo: "leitura errada forte", “poeta forte” (ambos explicitamente introduzido por Bloom) e “forte textualismo” (que Rorty introduz no desenvolvimento de sua ideia pragmática de má interpretação na filosofia). Sem dúvida, todos esses conceitos podem ser rastreados até as noções nietzscheanas da interpretação inovadora e cultural de superação do gênio criativo, que expressa uma vontade tenazmente viva de poder, sendo que estas mesmas noções podem, por sua vez, ser rastreadas até as ideias de Emerson de uma auto-superação contínua, criativa, auto-expansiva e autossuficiente que permite que a cultura humana progrida em círculos de constante expansão nos indivíduos de gênio produtivo e poder espiritual. Para Rorty, a forte leitura errada expressa a estratégia pragmática de que a interpretação não precisa tentar ser fiel ao texto em termos de revelar a intenção autoral ou mesmo ser fiel aos significados originais e aos valores expressos através do pensamento do texto por meio do humor extenuante. Em vez disso, ao se empenhar em um texto, este tipo de leitor “está nele pelo que pode tirar, não para a satisfação de conseguir algo correto”. Em uma “leitura errada forte", explica Rorty, o intérprete não pergunta ao autor ou ao texto sobre as suas intenções, mas simplesmente molda o texto em uma forma que irá servir a sua própria finalidade. Ele faz com que o texto se refira a tudo o que é relevante para esse propósito. Ele faz isso através da imposição de um vocabulário27. Essa imagem violenta e até mesmo vigorosa de dominação certamente relembra a perspectiva jamesiana de que o humor extenuante libera uma energia transformadora para ação melhorística que pode "trazer dor", já que "quando o humor extenuante está em alguém,o objetivo é quebrar alguma coisa, não importa quem ou o quê” com o objetivo de efetuar a transformação desejada. Rorty introduz a noção de “textualismo forte” ao defender a “leitura errada forte” de uma crítica epistemológica que enfrenta repetidamente: a ideia de que os verdadeiros significados dos textos são ignorados. O pragmatismo de uma resposta “textualista forte” responde que os textos, incluindo o mundo como texto (e para Rorty não há outra maneira de o mundo poder ser experimentado de modo significativo), não são objetos fixos, autônomos, cuja verdadeira identidade ou significado permanente cabe à filosofia descobrir. Em lugar disso, tanto os textos quanto a realidade são possibilidades, cujo significado é criado por meio de novas interpretações. Seu significado e sua natureza estão em disputa porque, como diria James, eles estão sempre 27
Rorty, Consequences of Pragmatism (Minneapolis: Univ. of Minneapolis Press, 1982), 151(citado comoCoP). 67 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
"no fazer", de modo que a “interpretação errada forte” ou mesmo o intérprete pragmático que se esforça para extrair o que deseja não estão sendo falsos com o verdadeiro significado do texto, pois não existe tal coisa. Textos são apenas possibilidades permanentes de utilização e, portanto, passíveis de re-descrição, releitura e manipulação "para servir aos nossos interesses” (CoP 153). Podemos impor novos vocabulários a textos existentes em função de torná-los mais úteis e para criar a partir de tais manipulações textuais, vocabulários ainda mais recentes e interpretações que avancem nossos interesses e enriqueçam nosso repertório para a vida. O esforço contínuo de auto-superação na produção contínua de novas interpretações e vocabulários torna o “textualismo forte” o verdadeiro herdeiro de Nietzsche e James ( CoP152). Como o humor extenuante jamesiano exige que o pragmático viva sem o conforto de um Absoluto que em última análise garanta a verdade derradeira e harmonize todos os conflitos e diferenças, então “o textualista forte está tentando viver sem esse conforto" de alguma verdade objetiva sobre o assunto e ainda sem "o conforto do consenso" (CoP152). Além disso, assim como o humor extenuante jamesiano nos exorta à luta incansável melhorística em que “férias morais podem constituir apenas períodos provisórios de respiração... destinados a nos preparar para a próxima luta”, então o textualismo forte de Rorty exige um humor extenuante para a reinterpretação interminável e a criação contínuas, reconhecendo alegação do pragmatismo de que "todos os vocabulários, mesmo que de nossa própria imaginação liberal são locais históricos de repouso temporário ‘no curso das’ lutas de homens finitos" ( CoP158). O poeta forte de Rorty está firmemente baseado na ideia de Bloom da "angústia da influência do poeta forte, seu horror de se entender apenas como uma cópia ou uma réplica” e sua luta agonística para a auto-validação a e autocriação através de novas formas de linguagem que expressem sua revolta, não só contra os poetas que o influenciaram, mas contra a própria morte individual, criando uma linguagem que vai sobreviver à sua morte e demonstrar sua individualidade”. Mas Rorty estende a noção de poeta forte "para além daqueles que escrevem versos" para incluir não somente outros literatos, mas também “cientistas fortes” (Newton e Darwin) e “filósofos fortes”(Hegel, Nietzsche e Heidegger) e “o revolucionário utópico” (Marx)28. Neste "sentido genérico do fabricante de novas palavras, o modelador de novas línguas",
28
Rorty, Contingency, Irony, and Solidarity(Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1989)60–61; citado como CIS. 68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Rorty celebra o novo poeta "como a vanguarda das espécies", que precisa ser "tão forte quanto qualquer ser humano puder ser" em função de "se tornar um indivíduo, no sentido em que o gênio forte é o paradigma da individualidade", e que se torna um indivíduo resistindo aos vocabulários tradicionais através dos quais a sociedade procura descrever cada um em detrimento de se esforçar "para fazer um por si mesmo para reescrever [as contingências que o criaram] . . . em termos que sejam, mesmo que apenas marginalmente, os seus próprios". (CIS 20, 24, 43) É claro que "mesmo o poeta mais forte é parasita dos seus precursores" no que diz respeito aos recursos lingüísticos, mas ele simplesmente "adota" e "modifica" a língua dos predecessores em função de recriá-la para si próprio. Os vocabulários finais acarinhados que os poetas fortes lutaram uma vida inteira para conseguir são simplesmente “munição para ser colocada através do mesmo moinho dialético” próprio do esforço para se tornar um poeta forte, um "criador forte, a pessoa que usa as palavras como elas nunca foram usadas”, a fim de estabelecer "uma especificidade própria", sem a qual “ninguém pode de fato ter um eu" (CIS 24, 28 , 76, 41). Tal esforço exige um humor extenuante para estimular e sustentar os atos radicais de transformação lingüística que envolve um potencial de dor: não só a dor infligida a si mesmo na luta contra as formas tradicionais do falar e do pensar, mas também a dor causada por uma sociedade que se ofende pelo desejo de preservar a santidade e domínio exclusivo de vocabulários estabelecidos (com seus valores e ideologias inerentes) que o poeta forte quer a partir de uma própria. Ao contrário de James, que estava completamente comprometido com os ideais militares de ousadia e espírito de luta, Rorty (que escreveu após duas guerras mundiais, Auschwitz, Hiroshima, o stalinismo e o Vietnã) está profundamente preocupado com a minimização da dor que a ação do humor extenuante poderia causar. Sua profundamente criticada “distinção entre o humor extenuante no público e no privado” pode ser lida como uma tentativa de resolver este problema (CIS 83): libertar o humor extenuante para fins particulares de enriquecimento pessoal, mas limitá-lo nos danos sociais para com os outros. Podemos encorajar uma pessoa a bater em textos canônicos de outras pessoas e abusar de vocabulários caros aos autores justificando o papel do poeta forte de produzir os seus novos textos e suas novas palavras, de modo a criar-se como um indivíduo distinto e assim, alcançar a redenção, no âmbito privado pessoal. No entanto, a esfera pública não deve ser um campo de batalha de poetas fortes concorrentes esforçando-se para impor suas próprias visões políticas distintas e idiossincráticas. Aqui 69 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
os valores primordiais não são os de autocriação individualista através da novidade distinta, mas sim aqueles de democracia liberal governada por práticas consensuais que promovam liberdades básicas de todos e forneçam proteção contra a crueldade e a dor. “Também aqui, no entanto, Rorty afirma a luta, já que para” pragmáticos a luta moral é contínua com a luta pela existência" e "o que importa para os pragmáticos é a elaboração de maneiras de diminuir o sofrimento humano e aumentar a igualdade humana"29. Mas mesmo se o consenso de regras institucionais compartilhadas devam reger a esfera pública liberal e proteger a sua ética de liberdade e respeito, Rorty se recusa firmemente a assentar a ética na razão. Trata-se sim do sentimento vencedor como o terreno subjacente para o consenso ético que gera o nosso compromisso com os direitos humanos e outros princípios morais centrais. De acordo com ele, tais compromissos morais não podem ser efetivamente justificados pelo apelo à racionalidade universal porque as pessoas de outras culturas não parecem compartilhar nossas crenças éticas básicas (e, portanto, por exemplo, acham plenamente justificável o tratamento de mulheres ou crianças de uma forma que achamos moralmente condenável), elas são perfeitamente capazes de realizar todos os tipos de dificuldades de tarefas racionais; por isso, sua imoralidade, segundo ele, não é o produto de irracionalidade, mas sim de sentimentos defeituosos, a sua incapacidade de sentir suficientemente por aqueles que abusam ou oprimem. Em um sentido mais geral, no que diz respeito à espécie, o que faz de nós seres humanos mais morais do que outros animais, segundo ele, é que "podemos sentir por cada um uma extensão muito maior do que os animais podem", e o progresso moral é, portanto, "um progresso de sentimentos", através do qual aprendemos a sentir mais por mais tipos de pessoas30. Devemos, portanto, abandonar a busca filosófica antiquada e sem esperança por princípios racionais universais para fundamentar nossas crenças morais e convencer os outros de sua verdade e, em vez disso, "concentrar nossas energias na manipulação de sentimentos, na educação sentimental" que "faz as pessoas de diferentes tipos suficientemente bem familiarizadas umas com as outras, de modo que se tornam menos tentadas a julgar os diferentes de si mesmos como apenas quase-humanos", e permitem uma empatia “com o lugar de desprezados e oprimidos" (TP 176, 179) .
29 30
Rorty, Philosophy and Social Hope (New York: Penguin, 1999), xxix. Rorty Truth and Progress (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 1998) 176, 181 (citado comoTP). 70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Como a persuasão moral é basicamente uma questão de "manipulação retórica" de sentimento, não de "verdadeiro argumento de validade" para Rorty a visão utópica não consiste em um mundo governado por mentes perfeitamente racionais que sigam regras perfeitamente razoáveis, mas sim "uma civilização global em que o amor é praticamente a única lei"31. Ao defender uma força transformadora rigorosa quanto um sentimento empático sensível, Rorty reflete o tipo de integração das atitudes duras de espírito e concurso de espírito através do qual James definiu o caráter pragmático básico, uma síntese que também é evocada na noção de humor extenuante que sugere tanto força como sentimento. Peirce, James e Dewey também comemoram o primeiro poder do amor para promover o progresso moral (CP 6,287-317; "What Makes a Life Significant” P 287 , AE 351). O pragmatismo, então, em todas as suas conotações de dureza, sangue-frio e ação funcional é muito mais uma filosofia de sentimento, pois o sentimento não é apenas necessário para ação, mas também é um elemento essencial da felicidade do ser humano: não apenas através dos sentimentos de amor e de beleza, mas de outros afetos positivos, incluindo os prazeres da saúde e da cognição. No entanto, o pragmatismo tem boas razões para insistir na sua auto-imagem como uma filosofia da ação, não só porque a ação real é crucial para o pragmatismo de postura essencialmente, mas por uma questão de sentimento32. Esta é a razão pela qual a própria qualidade dos sentimentos corre o risco de ser danificada ou corrompida quando esses mesmos sentimentos são vetados de uma expressão na ação concreta, cujos aspectos sensórios retroalimentam nossos estados afetivos através do mesmo tipo de circuito sensório motor. Um humor extenuante que nunca se mostra em ação perderá sua qualidade inata de extenuante.
31
Rorty, Philosophy as Cultural Politics (Cambridge: Cambridge Univ. Press, 2007), 53; andRortyand Gianni Vattimo, The Future of Religion (New York: Columbia Univ. Press, 2005),40. A ênfase de Rorty no sentimento torná-lo mais sensível a teoria somática, uma vez que o afeto é essencialmente encarnado. Analizo criticamente sua rejeição do pensamento somático (incluindo o projeto pragmático de SomaEstética) in Pragmatism and Cultural Politics: From Rortian Textualism to Somaesthetics,” New Literary History 41, no. 1 (2010), 69–94. 32 James insiste na dimensão moral na argumentação contra o "hábito excessivo de ler romances e de ir ao cinema", que produz "verdadeiros monstros", como o "choro de uma senhora russa sobre os personagens fictícios em um jogo, enquanto seu cocheiro é congelado até a morte no assento do lado de fora. "Ouvir" música, para aqueles que não são nem artistas de si mesmos, nem musicalmente talentosos o suficiente para apreciação de uma forma puramente intelectual", pode criar um risco moral "efeito relaxante sobre o personagem. Uma pessoa se torna cheia de emoções que passam habitualmente sem referência a qualquer ação, e assim a condição inerte sentimental é mantida. Para James este é um problema moral, cuja "solução seria que nunca mais ninguém sofresse em um show sem que aquilo fosse uma conversão pra vida” (PP 129–30). 71 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Resenha
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RESENHA GHIRALDELLI JR., P.; CASTRO, S. de. A nova filosofia da educação. Barueri: Manole, 2014. Ronie Alexsandro Teles da Silveira1
O livro de Paulo Ghiraldelli e Susana de Castro, ao contrário do que o título pode sugerir ao leitor, não propõe uma nova filosofia da educação. Pelo menos não no sentido de expor uma teoria completa sobre o assunto. O livro não tem esse tipo de pretensão. Seu objetivo é de considerar a educação como objeto do pensamento filosófico ali onde ela aparece em nossa sociedade, e do modo como ela aparece. Eu me arriscaria a dizer que os autores dessa nova filosofia da educação não quiseram retirá-la do seu contexto e preferiram deixá-la onde ela sempre esteve, emaranhada na sociedade, nas suas formas historicamente constituídas e, portanto, envolvida em uma diversidade enorme de fatores que sempre a influenciaram e por ela foram afetados. Então, não espere o leitor encontrar no livro uma “teoria da educação” no sentido tradicional do termo. Entendo o livro como um esforço para se pensar a educação como uma instância social privilegiada, que nos permite um acesso a todo o resto da malha social, mas sem transformar esse privilégio em um objeto abstrato e separado do restante. O livro de Susana de Castro e Paulo Ghiraldelli é um roteiro para quem quer entender os problemas da educação no mundo atual. Parte dele se detém em concepções históricas que foram adotadas pela educação, mas em geral isso é usado como recurso para se chegar a questões atuais e pertinentes ao nosso país. Assim, o conteúdo do livro também não se resume a algum tipo de história da filosofia da educação. Trata-se de um livro que se dispõe a pensar a educação, como ela se apresenta no mundo em que nós vivemos. Não pense o leitor que esse tipo de material é comum no Brasil. Eles quase não existem por aqui porque os filósofos brasileiros raramente se ocupam com as circunstâncias sociais que os cercam. Não é o caso de me alongar nisso, mas nós, os filósofos brasileiros, temos nos empenhado muito em nos apropriarmos das ferramentas filosóficas para interpretar o mundo e deixando a interpretação para mais tarde. Tão tarde que talvez apenas outra geração possa realizá-la. O livro de Paulo 1
Universidade Federal do Cariri. Grande Barbalha, Setembro de 2013.
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Ghiraldelli e Susana de Castro não foge a essa responsabilidade com o presente e com o nosso país. Por se ocupar da educação a partir de suas próprias circunstâncias sociais é que essa nova filosofia da educação é bem vinda. Nela não se parte de um conjunto de conceitos que vão tecendo um quadro acabado e definitivamente estruturado que demonstra, afinal, que os autores estavam certos em usar os conceitos que usaram. O quadro que os autores pintam é fragmentário e, entendo eu, essa é uma de suas virtudes principais. Eles focam problemas específicos ligados à educação, segundo a maneira como esses se apresentam na sociedade. Seria exaustivo fazer um sumário empobrecedor aqui de todas as questões que o livro suscita em função da quantidade de tópicos que ali são tratados. Para piorar a situação do resenhista, como já mencionei, todos os elementos tratados funcionam como eixos que lançam luz sobre outras questões com as quais a educação está envolvida. Citarei rapidamente apenas aqueles eixos de problemas ligados à educação atual e que julgo mais importantes: cultura de massa, ensino profissionalizante, formação superficial,
filisteísmo
cultural,
superficialidade,
desumanização
do
trabalho,
humanismo (o velho e o renovado), crise da cultura, modernidade e pós-modernidade, consumismo, domínio exercido pela ciência, sentido da formação universitária, bullying, ensino de artes e violência. Gostaria de ressaltar dois exemplos aleatórios para não ficar em generalidades. Esses exemplos me parecem importantes por dizerem respeito a alterações na maneira como temos estruturado a educação escolar no Brasil. Susana de Castro propõe a inclusão das artes nos currículos escolares como forma de aproximar o ensino do estilo de vida contemporâneo. Paulo Ghiraldelli defende a inclusão do erro nos processos de aprendizagem para que a sala de aula tenha, afinal, alguma coisa a ver com a vida. Observe que em ambos os casos se afirma, implicitamente, que a escola tem se convertido em um ambiente isolado, que julga possuir uma lógica própria e que paira solta no ar. Ela parece um ambiente abstrato, sem o qual nada se perderia de importante. Por isso mesmo, talvez faça muito mais sentido tratar da educação no varejo e sob as circunstâncias sociais em que ela se apresenta do que submetê-la a uma teoria geral – exatamente a rota que foi adotada no livro. Uma teoria geral da educação tenderia a reafirmar a independência e o isolamento da educação e conceder a ela uma independência que ela não deve possuir. 74 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013
Portanto, um dos méritos do livro de Susana de Castro e Paulo Ghiraldelli é que eles tentam fornecer à educação a carne e o sangue que parece lhe faltar hoje – pelo menos no ambiente escolar. Entendo que é um diagnóstico do livro a afirmação de que o ambiente escolar brasileiro é artificial e funciona desarticulado e isolado do restante da sociedade. Se o leitor pretende ter uma noção dos problemas atuais por que passa a educação, especialmente no Brasil, sugiro a leitura do livro de Paulo Ghiraldelli e Susana de Castro. Talvez você não encontre ali respostas definitivas. Mas certamente se deparará com uma agenda que nos coloca de frente com aquilo que está em jogo na educação atual. Você não apenas terá uma visão da situação contextual em que a educação se encontra hoje, como terá em mãos um exemplo de como podemos ser filósofos e pensar a sociedade brasileira.
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano V, número 1, 2013 ISSN: 1984-7157 Editores: Aldir Carvalho Filho e
Susana de
Castro Editor adjunto: Frederico Graniço
www.ppgf.org
www.gtdepragmatismo.com
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