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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano V, número 2, 2014 ISSN: 1984-7157

1 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 1, 2013


Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano – UFRJ Baptiste Grasset - UNIRIO Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Aldir Carvalho Filho e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Editor adjunto: Frederico Graniço Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: "Mesa de estudo”. William Harnett (1848–1892).

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano V, número 1, 2013

Sumário Editorial Notas & Comentários ENTREVISTA COM ARTHUR C. DANTO – Susana de Castro Artigos O FIM DA ARTE COMO UM COMEÇO - Rachel Costa O FILÓSOFO ARTHUR DANTO COMO ANDY WARHOL - Marcia Tiburi O FIM DA ESTÉTICA – DADAÍSMO E ARTE POP - Susana de Castro UMA FÁBULA PARA ARTHUR DANTO - Fernando Gerheim e Fabio Mourilhe Tradução PRAZERES ESTÉTICOS - Carolyn Korsmeyer Resenha DANTO, Arthur. Andy Warhol. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2012, 208 páginas. por Juliana Araújo

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Editorial

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EDITORIAL Frederico Graniço

Neste número a Revista Redescrições homenageia o filósofo e crítico de arte norte americano Arthur Coleman Danto, por sua importância no debate contemporâneo sobre a arte. Danto foi professor emérito da Universidade de Columbia (Nova York) e crítico de arte da revista The Nation; até seu falecimento com 89 anos, em outubro de 2013. Abrindo esta edição, republicamos uma Entrevista com Arthur C. Danto, publicada na Revista Redescrições do final de 2012 (número 4, ano 3). As questões aí se referem à concepção de arte do filósofo, à relação existente entre o trabalho do artista e o caráter da obra já enquanto objeto concluído; trata-se também das pinturas de Jasper Johns, e sobre a caracterização artística da performance, enquanto uma nova modalidade que se apresenta no cenário da arte. Já abrindo a seção de artigos temos O fim da arte como um começo, onde Rachel Costa apresenta a teoria filosófica de Arthur Danto sobre a arte, sua questão sobre o "fim da arte", e o "fim da história". A autora apresenta a posição de Danto sobre a arte

em

seu período "clássico",

o renascimento,

a modernidade e

a

contemporaneidade, ou a "arte pós-histórica" – um momento em que a arte perde a perspectiva ontológica de um objetivo físico, e recai num pluralismo auto-reflexivo, que a aproxima da própria filosofia. Nesse enredo, a autora caracteriza e também apresenta críticas às concepções de Arthur Danto.

O filósofo Arthur Danto como Andy Warhol, de Marcia Tiburi, aprofunda sobre o mesmo tema. Se Danto considera a Pop Art como um momento de um novo paradigma na história da arte, com a especificidade de ser um ponto de autoesclarecimento completo que justifica o termo "pós-história", no sentido hegeliano de que a arte reconhece a si mesma e a todos os movimentos antecessores como contemporâneos e igualmente possíveis – migrando assim para uma arte auto-reflexiva que possui valor intelectual filosófico; por outro lado a autora do artigo traz o próprio filósofo para o centro da baila, ao tentar compreender seu movimento como um descobrimento de si mesmo. Marcia Tiburi questiona a interpretação de Danto relacionando o filósofo com o artista, a percepção com o ser percebido, entre Danto e

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Warhol. Nesse sentido, pode-se falar num Andy Warhol filósofo, que teria influenciado Danto, e num Arthur Danto artista, que teria reconhecido teoricamente o trabalho de Warhol. O terceiro artigo, de Susana de Castro, O fim da estética – dadaísmo e arte pop, contextualiza o tema com um pequeno histórico de alguns movimentos artísticos do século XX, salientando as diferenças entre o dadaísmo e a arte-pop – uma espécie de neo-dadaísmo por desenvolver os conceitos contidos no primeiro. Aqui Susana relaciona os movimentos artísticos a seus contextos históricos, e também às questões que essas correntes tinham esperança de dar conta. Fechando essa sessão, Fabio Mourilhe e Fernando Gerheim apresentam Uma fábula para Arthur Danto, onde os autores mostram as características de uma instalação fictícia em uma estação de metrô desativada; ali é narrada uma experiência estética que tem a reflexão de Danto sobre a arte como pano de fundo. O teor do trabalho acaba por confundir os conceitos padronizados sobre o que conta como obra de arte, trazendo para a perspectiva do observador a definição do que seria arte. O artista Kwame através destes questionamentos e intervenções amplia o universo artístico e abala ‘o curso unificado e os valores de mercado da arte ocidental’. Na sessão de traduções temos o 2º Capítulo (Prazeres Estéticos) do livro de Carolyn Korsmeyer: Gender and aesthetics - an introduction. Ali a autora, buscando a posição da mulher na arte contemporânea, faz um levantamento dos conceitos modernos que cunharam a discussão estética sobre o belo, e o gosto. Nessa esteira, a questão polêmica entre o significado da beleza estética é abordada, entre outros, no que se refere ao caráter da experiência estética – se deve ser apartada ou não da historicidade, dos interesses e dos desejos. Fechando este número, na seção de resenhas, Juliana Araújo apresenta uma obra de Arthur Danto sobre a arte: Andy Warhol. Ali, segundo Araújo, o interesse de Danto não se reduz a um interesse biográfico sobre o pintor, empresário e cineasta norteamericano; mas também sobre as questões filosóficas envolvidas na arte, e a polêmica questão sobre “o que torna algo uma obra de arte”. Segundo Araújo, Danto pondera que uma obra de arte não pode ser caracterizada somente a olho nu.

Frederico Graniço, editor adjunto.

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Notas & Comentários

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ENTREVISTA COM ARTHUR C. DANTO Tradução Susana de Castro

O filósofo octogenário Arthur C. Danto é um dos maiores filósofos vivos da atualidade. No Brasil duas de suas obras forma traduzidas, Transfiguração do Lugar comum e Após o fim da arte. Abaixo a entrevista que fizemos por email com ele.

Redescrições: de Platão a Heidegger os filósofos tentaram justificar a realidade especial das obras de arte. Na Origem da obra de arte, Heidegger diz, como você, que a obra de arte possui um lado bem ordinário enquanto um artefato comum, mas também possui algo além da sua materialidade, a questão, então, é determinar o que seria esse outro. A obra de arte diferente dos artefatos são alegorias e símbolos (no sentido grego dos termos), diz Heidegger. No seu livro Transfiguração do Lugar Comum, você afirma que as obras de arte são representações. A fim de entender corretamente o que são obras de arte precisamos definir o que representam. Quais são as diferenças entre o seu conceito de representação e o conceito de símbolo utilizado por Heidegger para caracterizar a tradição segundo a qual se move a caracterização da obra de arte? Você concordaria que ele está apontando para uma realidade fora do artista enquanto você não?

Danto: através da representação, uma obra de arte é limitada pelo artista e o seu entendimento. Um templo em nenhum sentido é capaz de se tornar uma edificação cristã, apesar de que quando o rei se converte ele pode decretar que o templo romano é agora uma edificação cristã. Isso pode ter ocorrido ao se colocar uma cruz na porta da frente. Em sentido algum é algo que o rei “descobre”. O arquiteto não se torna um cristão depois de sua morte. Se Heidegger está se movimentando em direção a uma realidade fora do sujeito, não há um limite para aquilo que pode ser, e nenhuma verdade de interpretação. Considere a Torre Eiffel, imagine quando conquistaram Paris os alemães tivessem declarado que ela seria a Sublimidade do Espírito Alemão. Na minha perspectiva, apenas o que está nas intenções do artista pertence ao que a obra é.

Redescrições: a arte POP algumas vezes é erroneamente descrita como um movimento artificial ou superficial, especialmente no que diz respeito às obras de Andy 8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Warhol. Você concordaria que os seus escritos sobre Andy Warhol tiveram o efeito de mostrar o quanto de trabalho árduo se escondia por trás de suas obras?

Danto: Alguma vezes é sugerido que Warhol poderia ter usado como “readymades” simplesmente caixas de cartolina. De fato, no museu de arte moderna de Stockholm inúmeras centenas de caixas foram colocadas no edifico para provocarem efeito. Warhol queria que as caixas tivessem lados e cantos nítidos. Assim, ele tinha que as ter mandado ser fabricadas de madeira, o próprio oposto do produto pronto (readymade).

Redescrições: atualmente há uma grande exposição das gravuras de Jasper Johns em São Paulo1. Como você avalia a sua contribuição para o movimento pop? Danto: Jasper Johns foi Pop no sentido em que suas imagens são realidades – números, letras, cores, alvos, bandeiras. Elas são realidades e representações ao mesmo tempo. São pintadas belamente.

Redescrições: Você conhece o trabalho de Ron Athey? Ele acaba de se apresentar sua performance “St. Sebastian/50” no Rio de Janeiro no projeto “Entre Lugares, Rio – Londres”2. Como você vê o efeito das performances para a história da arte, já que uma performance é um evento único e efêmero enquanto um quadro possui a vantagem da durabilidade?

Danto: Não conheço o trabalho de Ron Athey. Mas uma performance implica um corpo, propriedade de uma única pessoa. Marina Abramovic treina seus estudantes para realizarem suas performances. Dessa forma as performances de Marina podem fazer parte dos conteúdos do museu. Não sei como solucionar esse problema.

Redescrições: muito obrigada por essa entrevista.

1 2

A exposição “Jaspes Johns – Pares trios álbuns” está no Instituto Tomie Ohtake. Ron Athey apresentou-se no dia 23 de Junho no teatro Sergio Porto.

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Artigos

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O FIM DA ARTE COMO UM COMEÇO

Rachel Costa1

RESUMO O artigo interpreta a teoria acerca do fim da arte de Arthur Danto, apontando, ao final, críticas à proposta do filósofo, sem esquecer de mostrar em que medida a teoria se mostra frutífera para pensar a arte contemporânea. Palavras-Chave: Pluralismo, Narrativa, História.

ABSTRACT The paper interprets the theory about the end of art Arthur Danto, pointing at the end, criticism of the proposal of the philosopher, not forgetting to show to what extent the theory proves fruitful for thinking about contemporary art. Key-words: Pluralism, Narrative, History.

Introdução A afirmação acerca do fim da arte, pelo seu próprio teor, necessita ser pormenorizada. Durante as últimas décadas surgiram teorias, tanto elogiosas quanto drásticas, tendo o fim da arte ou como objetivo, ou como justificativa.Arthur Danto é um dos que afirmou o fim da arte como justificativa de um processo histórico, utilizando a filosofia hegeliana como inspiração para realização de sua própria. Este artigo pretende analisar a tese do fim da arte na perspectiva de Arthur Danto, mostrando como ele a constrói e quais são os principais problemas derivados da forma como ele o faz. As questões que surgem dessa escolha são: em quais termos essa afirmação foi feita? O que ela representa? Quais os benefícios de propor algo tão drástico? Essas questões colocam o eixo temático de desenvolvimento deste artigo.

A história em narrativas e suas particularidades

1

Sobre a autora: Graduou-se pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais no curso de Publicidade e Propaganda, e é mestre e doutora pelo Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais na linha de Estética e Filosofia da Arte. Sob orientação do Prof. Dr. Rodrigo Duarte, desenvolveu a dissertação intitulada Imagem e Linguagem na Pós-história de Vilém Flusser e a tese de doutoramento denominada Três questões sobre a arte contemporânea. Morou seis meses na França para um doutorado sanduíche na Université Paris I - Pantheon-Sorbonne, sob orientação do Prof. Dr. Marc Jimenez. É professora de Estética e Filosofia da Arte da Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais.Para mais informações: https:/uemg.academia.edu/RachelCosta e http:/lattes.cnpq.br/4437860296445521. Contato: rachelcocosta@gmail.com. 11 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Para começar a desenvolver os problemas que emergem dessas questões, é preciso partir da afirmação dantiana de que ele é um essencialista histórico, o que significa que a história, sua estrutura e o que ela representa na forma de pensar a arte, são a chave para a compreensão de sua estética. Tendo a história como a base de sua investigação, a declaração acerca de seu fim é feita no momento da aceitação de objetos exatamente iguais a objetos cotidianos como obras de arte, o que Danto chama de indiscerníveis. O fato que uma obra de arte poder ser exatamente igual a um objeto qualquer, aponta uma ruptura com o processo da história toda. O que leva ao fato de que o fim da arte não é o fim da arte propriamente dita, até porque essa seria uma declaração despropositada, já que obras de arte continuam a serem feitas e o próprio Hegel, influenciador desse tipo de posição, afirmou a morte da arte como ele conhecia e não o fim da mesma. Danto diz que Hegel nunca se preocupou com a arte do futuro, somente afirmou que a vocação da arte estava terminada em seu momento histórico. É importante compreender que a não preocupação de Hegel com a arte do futuro, não significa que ela acabou. Hegel diz que a “Idade da Arte” estava terminada, e Arthur Danto interpreta essa afirmação como: a idade da arte como ele a conheceu estava terminada (DANTO, 2004, p.84). O que acaba para Danto é a história da arte, a organização teleológica de modos de fazê-la e pensá-la. E esse fim é extremamente profícuo,

pois

se

constitui

como

uma

espécie

de

liberdade

por

autocompreensão.Autocompreensão porque a distinção física entre mimesis e realidade funciona como a base mesma da história da arte, e os indiscerníveis apontam para a impossibilidade de considerar esse critério como parte da definição de arte, porque são eles que modificam a forma como a história da arte pensava sobre a arte. O que permite declarar o fim da arte é a ideia de que só é possível responder à questão acerca da identidade da arte após o surgimento dos indiscerníveis (DANTO, 2006a, p. xix). O problema que se sobrepõe a esse é o da compreensão do que seria história nessa conjuntura.Uma característica ele explicita já em seus primeiros textos sobre o assunto, é impossível pensar a arte do futuro, pois qualquer tentativa de imaginar o que será o futuro está arraigada no próprio presente. Para exemplificar essa afirmação, Danto utiliza a série de imagens do artista francês Albert Robida, denominada “Le VingtièmeSiecle”, que tem o intuito de retratar, em 1883, como seria o mundo em 1952.

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Albert Robida, “Teatro em casa via Telefonoscópio”, 1883; “Casa suspensa e giratória”, 1883

As imagens, além de demonstrarem que toda a tentativa de imaginação se ancora, em seus pressupostos mais simples, na situação presente, mostram também que seria impossível ao artista vislumbrar que em 1915,Duchamp faria “After a brokenarm” (DANTO, 2004, p.83-4). Elas chegam a serem cômicas, pois pressupõem um mundo quase como o da série de televisão “Os Jetsons”, mas totalmente impregnado das características do século XIX. O que permiteDanto concluir que, qualquer compreensão histórica deve se dar do presente em direção ao passado e não o contrário. É exatamente isso que LydiaGoehr afirma no prefácio da nova edição de NarrationandKnowledge. Ela diz que Danto faz filosofia da história de posfácio, ou seja, que ele parte do que aconteceu para compreender o que está acontecendo agora, e não o contrário (DANTO, 2007, p. XIX). A análise dantiana da arte está fundada na análise do passado, para que este sirva como base de uma teoria que funciona para o presente e que possa almejar funcionar também para o futuro. Essa ideia se explica devido à suaclara inspiração hegeliana para a estruturação de uma história dialética. A tese do projeto dantiano pode ser resumida pela seguinte citação: “Há uma espécie de essência transhistórica da arte, sempre a mesma em todo lugar, mas ela só se revela por meio da história”2 (DANTO, 1997, p.28). A essência da arte só se torna clara com o fim da história, pois ela se mostra de acordo com as 2

“(…) there is a kind of transhistorical essence in art, everywhere and always the same, but it only discloses itself through history”. 13 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


características de cada momentoatravés da história. É a consciência dessa essência que acaba com a história, pois ela se configura como a essência por traz dos téloi particulares de cada narrativa. Aquilo que une as narrativas dentro da mesma ideia de arte é justamente a tentativa de conhecer a essência, e essa tentativa é a própria história. Segundo o filósofo, toda a história da arte, da forma como ela aconteceu, não permitiu que a filosofia da arte se desenvolvesse dentro da própria arte, pois cada período ou movimento artístico possui todo um pensamento errado sobre a totalidade da arte. Ele é errado, pois serve somente para pensar aquele movimento ou período (DANTO, 2006a, p. xiii). Assim, a história precisou terminar para que a característica filosófica da arte se tornasse clara. É nessa perspectiva que se encontra a ideia de um movimento histórico sistemático da arte rumo a sua autocompreensão. Danto entende que sua proposição corrobora o resultado alcançado por Hegel de que a arte deve ser consumida pela sua própria filosofia. Assim, a importância da arte está no fato de ela gerar uma filosofia da arte. Essa característicanão é relativa apenas à arte contemporânea, mas a toda arte produzida pelo mundo Ocidental, visto que toda ela depende de uma teoria para existir. É importante ressaltar que essa teoria não é algo externo, mas parte da própria manifestação artística (DANTO, 2004a, p.17). A diferença da arte contemporânea para os períodos da história é que esse é o momento da consciência dessa natureza filosófica, a qual sempre existiu, mas que era mascarada por características relativas a cada um dos movimentos. Danto atribui esse pensamento ao próprio Hegel, que afirma, no segundo tomo dos “Cursos de Estética”, que a arte convida ao pensamento, e isso não se relaciona com a criação de novas obras de arte, mas com a compreensão filosófica do que ela seria. Para Danto, a história da arte é uma confirmação das análises hegelianas (DANTO, 1997, p.32). Consequentemente, ele apresenta dois momentos da história da arte para, através da dialética histórica,demonstrar o terceiro, o qual responde positivamente à afirmação acerca do fim da arte (DANTO, 2004a, p.3). Os dois momentos da história são chamados de narrativas, i.e., a história da arte possui duas narrativas mestras, uma subsequente à outra. O fim da arte acontece porque, ao chegarem ao fim, cada uma delas permite a tomada de consciência sobre um aspecto essencial da arte. Otélos maior da história é atingido com os indiscerníveis, visto que eles são a consciência da característica filosófica da arte, mas eles só foram possíveis, devido a todo o 14 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


desenvolvimento histórico pregresso. Nesse sentido, a ideia de contextualização histórica da obra de arte transforma-se em chave para a interpretação de obras de arte, poissua localização, como em um gráfico de coordenadas, é condição sinequa non de sua compreensão como arte. Obviamente, pensar a história teleologicamente é uma opção restritiva, pois significa que ela possui um télos a ser alcançado, e se desenvolve com o objetivo de atingi-lo. Para minimizar a situação, Dantousa a afirmação de Hegel de que algumas partes do mundo não faziam parte do mundo histórico, para dizer que algumas formas de arte não fazem parte da arte historicamente, pois estão fora dos limites da arte (DANTO, 1997, p.26). Essa expressão, os limites da arte (thepaleofhistory), que aparece no subtítulo de seu livro sobre o assunto, também vem da filosofia hegeliana. O filósofo tem consciência das limitações de sua proposta, mas, mesmo assim, considera-a utilizável. Logo, dentro da estrutura da história da arte apenas uma forma de arte é correta, aquela que se adéqua ao télos da história.E o que caracteriza o fim da arte é, justamente, a ausência de télos, permitindo afirmar que todas as formas de arte são corretas e coexistentes (DANTO, 1997, p.27). Por isso, qualquer narrativa após o fim da arte será falsa, visto que não há uma forma histórica que se imponha (DANTO, 1997, p.28). O fim da arte não funciona como algo negativo, ou descredenciador, muito pelo contrário, funciona como o início de um período em que arte se desvincula de suas amarras históricas. Em contrapartida à estrutura hegeliana dos momentos da arte, Danto constrói narrativas que possuem algumas particularidades. A diferença principal é que o télos de Hegel, não somente está pressuposto desde o início, mas também guia o desenvolvimento da arte, ou seja, os momentos da história da arte são movimentos rumo ao télos, enquanto em Danto, as narrativas parecem uma série de acasos que deram certo, pois seus objetivos estão associados ao progresso de técnicas específicas que no fim do processo levam à compreensão da essência da arte (DANTO, 1997, p.62). Então, a história se constitui como um movimento único rumo à compreensão do que seria essencial na arte pela própria arte. Para atingir tal objetivo ele aponta a existênciadas narrativas, as quais são télos que, naquele determinado momento da história, eram considerados como a essência mesma da arte. A necessidade de progresso aparece pelo fato de que esses objetivos não demonstravam o que era, realmente, essencial na arte. Seria necessário, então, que eles fossem alcançados para que a compreensão de sua não adequação também fosse 15 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


atingida. Dessa forma, os limites da história fazem sentido dentro desse contexto, pois tudo que está fora dos limites da história, está fora da busca da arte de conhecer sua essência (DANTO, 1997, p.64). A ideia de progresso só existe quando um parâmetro é fixado como critério, senão seria somente uma espécie de evolução natural (DANTO, 1997, p.62). Então, cada narrativa funciona como uma espécie de história da arte inteira. Dessa forma, as narrativas são estruturas históricas objetivas, as quais são definidas em sua fundação (DANTO, 1997, p.43) e terminam por gerar uma leitura a-histórica da arte como um todo, por conferir essencialidade a suas características e desconsiderar todas as outras (DANTO, 1997, p.29). A organização exterior das narrativas funciona como a teoria dos paradigmas de Thomas Kuhn (DANTO, 1997, p.29). Cada narrativa é um paradigma que, ao ser superado por outro, passa por um processo de transição. Já, para pensar o interior de cada narrativa Danto utiliza a teoria do falibilismopopperiana. O crescimento do terreno da arte pode ser representado de forma narrativa porque ele se dá, progressivamente, rumo à tentativa de produzir algo que se adéque, cada vez mais, ao objetivo que a sustenta (DANTO, 1997, p.50). E, como a estrutura é progressiva, obviamente a ideia do falibilismo se encaixa, tendo em vista que cada novo movimento dentro da narrativa pode mostrar a fraqueza do movimento anterior. Então, o objetivo não está relacionado com a capacidade de dizer o que é correto ou não, mas em dizer o que já se mostra não tão adequado assim. E é exatamente por esse motivo que Danto diz que há teorias, como a de Panofsky, que não funcionam para pensar o interior das narrativas, apenas a estrutura como um todo. Panofsky constrói uma história da arte como consequência de formas simbólicas que substituem uma as outras sem caracterizar desenvolvimento (DANTO, 1997, p.65), ou seja, na perspectiva do filósofo, a teoria de Panofsky funciona para a arte do mesmo modo que a teoria dos paradigmas de Kuhn para a ciência. Para construir as narrativas Danto adota Gombrich como base teórica. Este já havia aplicado a estrutura dafilosofia hegeliana à arte atual, em seu livro “Arte e Ilusão”. Com Gombrich, o filósofo associa a história da arte à história da arte de fazer alguma coisa melhor que seus antepassados, e esse fazer é basicamente técnico (DANTO, 1997, p.50).A história da arte é uma tentativa de fazer cada vez melhor o que

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está sendo feito em cada narrativa, e a avaliação de que algo é melhor do que o algo anterior é pensada a partir do falibilismo. Utilizando essa série de referências cruzadas juntamente com a ideia de filosofia de posfácio, Danto desenvolve as narrativas a partir de seu fim, ou seja, se a história da arte é progressiva, pelo menos a história da pintura terminou (DANTO, 2004a, p.3). Isso deixa antever que ele constrói uma história especificamente da pintura e está consciente disso, porque acredita que ela funciona como uma espécie de estrutura central, na qual as outras artes atuam em posição secundária (DANTO, 1997, p.62). É importante compreender as narrativas enquanto estruturas, pois o seu conteúdo não é rígido no curso do pensamento do filósofo. Em seu primeiro texto “O fim da arte”, ele elege Vasari e Croce, respectivamente para embasarem as narrativas. Em “Após o fim da arte”, a discussão se dá com Vasari e Greenberg. Em “Whatartis”, ele troca ambas as narrativas, tanto a da modernidade, quanto a da arte tradicional. Substitui Vasari por Alberti e a teoria da pintura como janela para o mundo (DANTO, 2013, p.1), e afirma que a modernidade tem dois conceitos de abstração, os quais ele constrói sem recorrer ao Greenberg (DANTO, 2013, p.11). A segunda narrativa passa por várias opções na obra do filósofo. No próprio “Após o fim da arte”, ele afirma como narrativas modernistas, a de Greenberg e as de Malevich, Mondrian, Reinhardt entre outras (DANTO, 1997, p.28). O que significa que ele oscilou entre a afirmação de uma narrativa única para a modernidade até mesmo no livro que propõe a greenbergiana como sendo a leitura mais efetiva do período. O interessante nessa situação é que ela permite duas conclusões: a primeira, que as escolhas teóricas que constroem o objetivo de uma narrativa não são cristalizadas; e a segunda, que a ideia hegeliana de uma estrutura progressiva é o esqueleto de seu projeto filosófico, i.e., as narrativas podem ser repensadas, mas não descartadas. Além disso, as narrativas são imprescindíveis, pois ele pressupõe a necessidade de uma teoria credenciadora para cada forma de arte (DANTO, 1997, p.54). A primeira narrativa é contextualizada historicamente por Arthur Danto através da afirmação, com base na análise da obra de Hans Belting denominada “O Fim da Arte”, de que a arte antes de, aproximadamente, o século XV não era compreendida enquanto uma realização humana, mas como algo miraculoso. Só no Renascimento a arte passa a ser realização humana e ganha contornos próximos do que seria a arte atualmente. O mesmo filósofo, em seu livro “A imagem antes da Era da arte”, fala do que seria arte no pensamento contemporâneo desde os romanos até 1400 d.C. Como 17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


mostra o título de seu livro, até esse momento a relação cultural com as imagens era outra. Elas eram compreendidas como possuindo origem divina. Além disso, o conceito de artista só se torna central com Giorgio Vasari e seu livro “A vida dos mais excelentes pintores, escultores e arquitetos”3 (DANTO, 1997, p. 3). Dessa forma, os conceitos de artista e de arte, como são conhecidos hoje, somente se formam a partir da Renascença, mais propriamente com Vasari(DANTO, 2006, p. 4). Arthur Danto argumenta que o que aconteceu foi uma descontinuidade entre a arte de antes da era da arte e a arte da era da arte. Assim como há uma descontinuidade entre a arte da era da arte e a arte após o término dessa era (DANTO, 2006, p. 5). Essa análise inicia o livro “Após o fim da arte” e atesta a ideia de haver um modelo histórico da arte que começa no Renascimento, visto que a própria concepção de arte teria surgido nesse momento. O que significa que toda e qualquer manifestação artística anterior ao Renascimento foi nomeada como tal a partir de critérios elaborados posteriormente. A partir disso, Danto argumenta que não há qualquer impossibilidade de se pensar o fim da arte, pois ela possui um começo, e um começo bastante delimitado temporalmente.

O caminho para o fim A narrativa de Vasari se inicia com o objetivo Renascentista, a partir da invenção4 da perspectiva, de produzir obras o mais equivalentes à realidade que lhes dão origem. O que torna o Renascimento parte de uma narrativa é que a arte grega é utilizada como influência, mas as imagens produzidas são melhores no que se refere à adequação ao referente (DANTO, 1997, p.48), ou seja, Danto encontra no Renascimento um objetivo e o atribui à arte imitativa como um todo. Assim, a finalidade da primeira narrativa é realizar a aproximação entre representação e realidade e, por isso, é denominada “equivalência ótica” (DANTO, 2004, p.86). O que significa que existe na história da arte um progresso técnico em prol da ilusão do movimento e esse progresso a organiza (DANTO, 2004a, p.4). O fato de o filósofo ter escolhido Vasari como teoria embasadora da primeira narrativa não é aleatório, mas também não é definitivo. O que deve ser observado é que 3

Le Vite de Piu Eccellenti Pittori, Scultori e Architettori. Eu uso a palavra invenção, mas o Danto no texto “O fim da arte” coloca a possibilidade de a perspectiva ser algo natural que deve apenas ser descoberto (2004a, p.4-6). 18 4

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o que interessa para configurar a narrativa é a ilusão do movimento. Com Alberti a proposta continua a mesma, pois utiliza a ideia contida em seu livro “Da Pintura”, e que foi apropriada por Gombrich, da pintura como janela para o mundo, não devendo haver diferença entre olhar para uma pintura e olhar para o mundo. A primeira narrativa chega ao fim com a invenção da fotografia, pois o télos perde o sentido com a existência de um instrumento que o efetiva (DANTO, 2004, p.87). A fotografia alcança a retratação da realidade o mais fidedignamente possível e o cinema alcança a ilusão do movimento (DANTO, 2013, p.3), apenas subentendida na fotografia. Eles expressam o alcance do objetivo de Alberti, pois no início da reprodução de imagens em movimento as pessoas não conseguiam diferenciar a imagem, da realidade, correndo e se abaixando para projeções de trens ou aviões. Logo, a arte convencional perdeu sua função de representação da realidade, assim como seu objetivo, e, por isso, o mundo da arte é redefinido (DANTO, 2004a, p.11). Com o objetivo de contextualizar historicamente o surgimento do modernismo e, consequentemente, justificar a escolha de uma narrativa, Danto cita Roger Fry e sua teoria do modernismo como o fim da imitação e o início da criação em arte. Uma nova narrativa surge, porque a anterior se mostrou equivocada em sua compreensão do que seria a essência da arte. É através de Fry que Danto explicita a contribuição da primeira narrativa, por ele associar a arte a algo pensável e não imitado (DANTO, 1997, p.53), ou seja, o alcance do objetivo da primeira narrativa leva à compreensão de que não está no aspecto técnico a essência da arte. Com isso, a ilusão do movimento passa a ser apenas uma característica e não parte de sua essência. Acontece que a dificuldade de eleger uma narrativa para a modernidade é bastante grande, pois o período tem mais de mil manifestos vanguardistas diferentes, e o que os une é justamente a busca pela definição do que seria arte. Através da eleição de critérios e modos de fazer específicos, cada um deles leva à afirmação de que aquela e nenhuma outra mais seria a verdadeira arte, a essência da arte (DANTO, 1997, p.28). Para tanto, Danto trabalha com uma noção de estilo específica. Ao entender estilo como um conjunto de propriedades de um determinado movimento, que são, posteriormente, utilizadas para definir filosoficamente arte, ele vai chamar os modos de fazer arte de cada vanguarda de estilos. Até porque a mimesis não é um estilo durante o período da arte tradicional, mas sim, a resposta para a pergunta o que é arte. Ela só passa a ser um estilo durante o modernismo (DANTO, 1997, p.46).

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E, dentre os vários estilos que fazem parte do período, Danto, a partir de Greenberg, afirma que todos possuem uma mesma tendência, a tendência à abstração. O porquê de escolher Greenberg como base teórica da narrativa modernista só tem uma resposta possível: a estrutura de sua filosofia possui as características necessárias para isso, ela funciona como antítese e pressupõe uma história progressiva. A teoria de Croce possui a dificuldade de não ser progressiva, o que o levou a Greenberg. Acredito que devido à série de críticas recebidas pela escolha do último, ele propôs uma nova leitura, mas sua leitura também considera a abstração como télos da modernidade artística5, ou seja, a ideia de que todos os estilos vanguardistas apontam para uma mesma tendência permanece. Greenberg caracteriza o modernismo como o momento de a arte se autoquestionar (DANTO, 1997, p.67). Ele compreendeu que o objetivo dos movimentos é criar uma nova forma de arte, e, com isso, tentou criar a sua própria definição (DANTO, 1997, p.68). Seu argumento sustenta que há uma característica fundacionalista na modernidade que leva cada medium da arte a eliminar as características emprestadas de outros media (DANTO, 1997, p.69). A característica do medium pintura é denominada planaridade, ou seja, a essência da pintura está na exploração

da

qualidade

bidimensional

da

tela

e,

com

isso,

eliminar

a

tridimensionalidade tomada emprestada da escultura. Logo, a planaridade não exclui a representação, exclui apenas a ilusão espacial (DANTO, 1997, p.68). E é justamente a busca pela pureza de cada meio, que Danto afirma ser o télos da narrativa moderna. O fim da arte acontece no momento em que os indiscerníveis surgem, ou seja, no momento do desenvolvimento da história da arte em que um objeto exatamente igual a outro objeto do cotidiano ganha status de obra de arte. Danto afirma que isso ocorre em 1964 com a exposição da Pop Art em Nova York, em que Andy Wharol expõe a Brillo Box6. A questão é: porque os indiscerníveis surgem? Segundo Danto, porque a planaridade alcançou a tautologia. Seu principal exemplo para afirmar a característica tautológica da planaridade na década de 1960 é o artista Daniel Buren: 5

A teoria greenbergiana traz muitas dificuldades, mas a principal delas é o fato de desconsiderar vários dos movimentos artísticos modernistas. Sua discussão com o surrealismo e o fato de ter ignorado Duchamp são exemplos disso. 6 Em diferentes textos, Danto aponta datas distintas para demarcar o início da arte pós-histórica. Em alguns momentos ela se dá na década de 1960, outros na década de 1970 e até 1980. Independentemente dessa marcação oscilante, a Brillo Box se constitui como um indicador do novo processo, pois ela é o primeiro exemplo da pluralidade criativa. A partir de então, a sensação de não pertencimento a uma narrativa se consolida (DANTO, 1997, p. 5). 20 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Daniel Buren, “Murs de peinture”, 1966-7 Buren é um artista conceitual que leva a ideia da bidimensionalidade ao extremo. Ele pinta listras coloridas de exatamente 8,7 centímetros de largura intercaladas por 8,7 centímetros de branco. Danto afirma que com a repetição contínua de listras exatamente iguais, Buren atesta o fim da pintura (DANTO, 1997, p.138). E, como a pintura é o veículo da história, não é uma surpresa que ela fosse atacada (DANTO, 1997, p.114). Logo, o fim da narrativa modernista acontece quando a distinção entre pinturas e meras paredes não é mais possível. Danto explica que a consciência da essência da arte é fruto de um caminho de erros que vão sendo abandonados a partir do momento em que se toma consciência dos mesmos e essa estrutura progressiva só termina quando são conhecidos seus limites (DANTO, 1997, p.107). E, o que vem à tona com o fim da narrativa modernista são esses limites. O fim da narrativa leva à compreensão de que aceitar a arte como arte significa também aceitar a filosofia que a credencia (DANTO, 1997, p.30). Essa é a contribuição da narrativa para o conhecimento da essência da arte. A arte tradicional permitiu, ao chegar a seu fim, a dissociação das técnicas ilusionistas, abrindo para a necessidade de compreender qual seria então a característica da arte enquanto tal. A modernidade, ao tentar encontrar essa essência mostrou a característica teórica e histórica de qualquer obra de arte, em qualquer tempo. O fim da história se dá com o esgotamento do objetivo histórico e a consciência das duas coisas que as narrativas trouxeram à tona, e ambas podem ser visualizadas na Brillo Box. A Brillo é tanto um posicionamento a respeito da relação entre ilusão e realidade, quanto requer uma base teórica que a possibilite, pois sem a última ela é apenas uma caixa qualquer. Além disso, Warhol não somente se apropriou da caixa de Brillo, mas também se apropriou

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do trabalho de outro artista. James Harvey, artista abstrato,é o designer responsável pela caixa de Brillo. A questão que se coloca a partir disso é: o que caracteriza uma obra de arte? A resposta certamente não é a capacidade de fazê-la ou a característica técnica daquilo que foi feito. Essa é a chave para a compreensão da filosofia dantiana. Portanto, Danto mostra que o fim da arte é a autoconsciência da verdade filosófica da arte (DANTO, 1997, p.122) e a pós-história é o fim do progresso e da inevitabilidade histórica (DANTO, 1997, p.73). Assim, o fim da arte é uma reivindicação sobre o futuro da arte, pois reclama que a história progressiva chegou ao fim (DANTO, 1997, p.43).

A arte após o fim da história da arte Ficou claro que o fim da arte não implica sua extinção, mas sim o fim de um processo histórico. Dessa forma, é necessário investigar o que é a arte após o fim da história da arte. Danto vai denominar o novo período de pós-histórico, ou seja, ele dá continuidade à sua influência hegeliana, adotando a terminologia cunhada por Kojève, em sua Introduction à lalecture de Hegel, de 19477. Ao contrário de Hegel, que não falou sobre o que seria a arte após a sua morte, essa é a principal tarefa de Arthur Danto. Dando sequência à proposta hegeliana, o tempo pós-histórico é a confirmação da tese hegeliana de que a arte morreria por se transformar em filosofia, com a diferença que mesmo ela tendo se transformado em filosofia, ela continua sendo arte. Parece contraditória a afirmação, mas duas coisas auxiliam o filósofo a sair de uma possível dificuldade: o conceito de mundo da arte e a compreensão de que a característica filosófica da arte está no fato de a arte ter se tornado sua própria filosofia. O conceito de mundo da arte permite pensar a arte stricto sensu, ou seja, mesmo que a arte tenha se transformado em filosofia, as manifestações artísticas são diferentes das filosóficas, o que justifica não somente sua continuidade, como também sua diferença. O fato de a arte ter se tornado sua própria filosofia implica que a arte realiza um movimento de autoanálise, ou seja, ela é filosófica porque assumiu essa responsabilidade ao se dar conta de que essa é sua essência. Por conseguinte, a arte pós-histórica possui características diferentes das duas narrativas anteriores, primeiro por não implicar progresso e segundo por propor 7

Emuma entrevista Danto afirma ter participado dos cursos de Kojève na década de 1950 em Paris. 22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


pensamento, ou seja, o tempo pós-histórico coloca fim às modalidades deônticas (DANTO, 1997, p.141) e à divisão entre sujeito e objeto, não importando “(…) muito se a arte é filosofia em ação ou se a filosofia é arte em pensamento” (DANTO, 2004a, p.19). A questão que se coloca é porque adotar um adjetivo diferente para tratar da arte atual se, no caso das narrativas, ele adotou os adjetivos tradicionais, clássico e moderno? Danto explicita a necessidade de marcar essa diferença no primeiro capítulo de “Após o fim da arte”. Para tanto, ele considera outros adjetivos utilizados, como moderno, contemporâneo e pós-moderno. Afirma que o termo moderno não é utilizado referindo-se apenas à questão temporal, assim como contemporâneo também não o é (DANTO, 1997, p. 9). A fraqueza do termo contemporâneo fez com que o termo pósmoderno fosse criado. Sua fraqueza está justamente no fato de que ele não demarca um estilo e é justamente isso que torna o termo interessante para as artes visuais do momento (DANTO, 1997, p. 11-12).Para exemplificar essa questão Danto ilustra a capa do “Após o fim da arte” com o trabalho do artista David Reed:

David Reed, “Fotografia de Vertigo de Alfred Hitchcock, (1958), com inserção da pintura de David Reed #328”, 1990-93

Reed troca a imagem de fundo de uma pintura qualquer em um quarto de hotel de uma cena de Hitchcock, por umapintura sua e projeta a cena em uma instalação montada igual ao quarto do filme (DANTO, 1997, p. xi). Segundo Danto, a “pintura” de Reed mostra a diferença entre o moderno e o contemporâneo, pois no primeiro existia a necessidade de manter a pureza do meio, o que não acontece com o segundo. Isso pode ser percebido na afirmação de Arthur Danto de que não há critério estilístico na arte contemporânea que permita a confecção de uma narrativa acerca do 23 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


período. A caracterização da arte como pós-histórica se dá justamente por isso (DANTO, 2006, p.15). A modernidade possui uma relação com a história da arte de continuidade, o que leva à proclamação da morte da arte clássica. Isso não faz sentido na contemporaneidade, pois tudo que já foi feito está à disposição para ser refeito (DANTO, 1997, p. 5). A ideia de adequação à contemporaneidade, ou de a arte merecer o adjetivo pós-histórico está diretamente relacionada com a ausência de narrativa, ou seja, com a pluralidade. Esse seria o espírito do tempo atual. O contemporâneo é uma espécie de narrativa mestra, uma forma de usar estilos disponíveis (DANTO, 1997, p. 10), isto é, a era pós-narrativa é caracterizada pela existência de inumeráveis possibilidades artísticas, sendo que o artista não precisa escolher apenas uma (DANTO, 1997, p.148). “Então o contemporâneo é, na perspectiva de alguns, um período de desordem informacional, uma condição de perfeita entropia estética. Mas é, também, um período de quase perfeita liberdade. Hoje não há mais os limites da história”8 (DANTO, 1997, p. 12). Portanto, o fim da história é a liberação para que os artistas possam fazer o que quiserem (DANTO, 1997, p.125). Tudo se tornou possível, até a visão de Danto do futuro da arte é uma probabilidade (DANTO, 1997, p.123). A estrutura pluralista do fim da arte é uma “torre de babel de conversações artísticas não convergentes” (DANTO, 1997, p.148). Assim, não existe critério a priori para a arte pós-histórica (DANTO, 2006, p.7), e, por isso, Arthur Danto diz que nem pós-moderno, nem contemporâneo são adjetivos suficientes para designar a arte que está sendo produzida agora (DANTO, 2006, p.14-15). Toda organização, em prol de uma definição acerca dos critérios que determinam um período artístico, está diretamente associada com a necessidade de pressupor um critério ontológico, que permita realizar a atitude valorativa de afirmar que um objeto é obra de arte e outro não é. E isso é exatamente o que Arthur Danto pretende com a pressuposição de uma arte pós-histórica, ele diz que “[p]arte do que significa o “fim da arte” é a libertação do que se encontrava para além do limite, em que a própria ideia de um limite – uma barreira – é excludente (...)” (DANTO, 2006, p.11).

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“So the contemporary is, from one perspective, a period of information disorder, a condition of perfect aesthetic entropy. But it is equally a period of quite perfect freedom. Todaythereis no longerpaleofhistory” 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Desse modo, a verdade filosófica atual é que “(...) não existe arte mais verdadeira que nenhuma outra, e nem um único modo de estar”9 (DANTO, 1997, p.34). O que leva ao questionamento que constitui o cerne da investigação dantiana: qual a diferença entre uma obra de arte e algo que não o é quando não há nenhuma diferença perceptiva entre ambos? (DANTO, 1997, p.35). O problema filosófico migrou da pergunta o que é uma obra de arte, para o porquê de um objeto como outro qualquer pode ser considerado como obra de arte, pois só com a resposta da segunda a primeira questão pode ser alcançada. Logo, são duas as consequências da consciência de sua própria essência: a arte não tem mais como responsabilidade a sua própria definição e não há aparência necessária para uma obra de arte (DANTO, 1997, p.36). É preciso mais que a capacidade de ver, ler ou escutar para apreciar a arte (DANTO, 1997, p.158), pois não há possibilidade de identificar condições necessárias e suficientes para os predicados estéticos (DANTO, 1997, p.159).Portanto, o estilo não serve como condição para a definição de arte, visto que fisicamente (estilisticamente) duas obras de arte podem ser muito próximas, mas terem estilos (significados incorporados) completamente diferentes.O que faz de sua proximidade física algo apenas casual (DANTO, 1997, p.167). Obviamente, essa pluralidade indefinida possui um limite. A afirmação de que tudo é uma obra de arte não é condizente com a perspectiva essencialista de Danto. Ao mesmo tempo, a pluralidade é característica constituinte da arte pós-histórica. Essa dificuldade é resolvida através da afirmação de que tudo pode ser arte, mas nem tudo é. Logo, a pluralidade de estilos de toda a história da arte está disponível, mas eles não podem ser reproduzidos (DANTO, 1997, p.197), devem ser contextualizados, porque imaginar uma forma de arte é também imaginar uma forma de vida 10 (DANTO, 1997, p.202).

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Como Danto é um essencialista, considero necessária a tradução do verbo ser para o português levando em consideração as outras possibilidades verbais menos permanentes, como o caso de estar, parecer, ficar, haver e existir. 10 Ramme argumenta que, em “O mundo da arte”, Danto combina historicismo com o conceito de formas de vida de Wittgenstein. “Forma de vida pode significar, entre outras coisas, o conjunto de ações que acompanha um jogo de linguagem ou que constitui uma linguagem, mas pode significar mais amplamente o conjunto de condições sociais ou culturais que produz e sustenta uma linguagem” (RAMME, 2009, p.201). Ela defende que, a ideia de contextualização histórica que fundamenta o conceito de Mundo da Arte é uma derivação da teoria Wittgensteiniana através do seguinte argumento: “Como a história da arte acabou em 1964, com a Brillo Boxde Andy Warhol, Danto reformula a sua tese dizendo que a arte se relaciona agora não com um momento histórico, mas com uma forma de vida” (RAMME, 2009, p.203). 25 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


(...) Uma forma de vida é algo vivido e não apenas conhecido. Para que a arte desempenhe um papel em uma forma de vida, deve haver um sistema bastante complexo de significados no qual ela faz isso, e pertencendo a uma outra forma de vida significa que se pode compreender o significado das obras de arte de uma forma de vida anterior somente reconstituindo o mais relevante sistema de significado que consigamos 11(DANTO, 1997,p.203).

Assim, utilizar o modo de fazer arte de Da Vinci é uma coisa, fazer uma cópia de Da Vinci é outra completamente diferente (DANTO, 1997, p.198). Porque ao fazer a mesma coisa que ele fez, na verdade, o que se faz é apenas uma reprodução sem significado, visto que é possível copiar a técnica, mas não a forma de vida de um determinado período. Inclusive, a relação com a história se dá de forma exterior, é preciso que se aprenda minimamente sobre aquela determinada forma de vida para apreciar outros períodos artísticos (DANTO, 1997, p.203). Apesar de a história ter chegado ao fim, a necessidade de contextualização histórica continua a vigorar (DANTO, 1997, p.44). Nesse momento, o caráter filosófico da arte é verificável enquanto pressuposto ontológico da mesma, e ele só se apresenta devido às conjunções do processo histórico no qual ela se encontra. É como mostrou o filósofo em relação ao artista Albert Robida, ou seja, cada manifestação artística é fruto do processo histórico no qual se encontra, mesmo que esse tenha chegado a seu fim. Deste modo, “[é] parte do que define a arte contemporânea, que a arte do passado esteja disponível para uso tal qual desejado pelos artistas. O que não lhes está disponível é o espírito no qual a arte foi feita”12 (DANTO, 1997, p. 5). Essa é a única restrição do período pós-histórico (DANTO, 1997, p.199). É justamente pela junção da contextualização histórica com a impossibilidade de eleição de critérios físicos que Danto afirma que a história da arte precisa ser progressiva. Isso porque a escolha de diferentes obras de arte, de diferentes períodos e que se assemelham na superfície, apenas diz que elas se assemelham fisicamente, nada mais (DANTO, 1997, p.163). Os conceitos de mundo da arte e de matriz estilística são incompatíveis (DANTO, 1997, p.165), pois a informação histórica é necessária para a apreciação da obra (DANTO, 1997, p.168).

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“(…) a form of life is something lived and not merely known about. For art to play a role in a form of life, there must be fairly complex system of meanings in which it does so, and belonging to another form of life means that one can grasp the meaning of works of art from an earlier form only by reconstituting as much of relevant system of meanings as we are able”. 12 “It is part of what defines contemporary art that the art of the past is available for such use as artists care to give it. What is not available to them is the spirit in which the art was made” 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Portanto, o conceito de paradigma de Kuhn, adotado por Danto para compreender a relação entre as narrativas, mostra-se bastante propício nesse caso. Para o filósofo, obras de arte clássicas e modernistas continuam a fazer parte do mundo da arte pós-histórico. Isso porque eles são remanescentes dos paradigmas passados, apesar de serem contemporâneos. Nesse sentido, não haveria qualquer propósito em obras de arte como essas, além de diversão imediata (DANTO, 1997, p.34). E, em relação às teorias, Danto é um tanto mais ousado. Apesar de não afirmar, peremptoriamente, ele acredita que sua teoria é a embasadora do paradigma pós-histórico. Tanto que afirma: “Minha única reivindicação sobre o futuro é que este é o estado final, a conclusão de um processo histórico, cuja estrutura torna-se visível de uma só vez"13 (DANTO, 1997, p.46). Logo, após o fim da arte nada vai acontecer, pois com o fim do progresso, não existem mais estágios a serem alcançados (DANTO, 1997, p.140), ou seja, se nada vai acontecer seu paradigma perdurará indefinidamente.

Análise crítica Em primeiro lugar é preciso confessar que devido às enormes dificuldades trazidas pelo modo como Danto propôs sua filosofia da história da arteescolhi um caminho de análise que considerei profícuo, eliminando todos os argumentos que não se mostrassem estritamente necessários para o desenvolvimento do mesmo. O caminho escolhido, o foi, tendo como objetivo final alcançar um dos principais argumentos da filosofia dantiana em relação à arte contemporânea: a pluralidade. O que precisa ser respondido é porque chegar à pluralidade pelo caminho da história se Danto a subentende em todos os seus textos? Defendo que, dentro da proposta dantiana, a pluralidade só é possível de ser sustentada por meio de sua análise da história. Isso porque antes da tese do fim da história seu essencialismo o fez propor características estilísticas para a arte, como também, a retomada da ideia de gênio. Em “Após o fim da arte” o filósofo deixa claro, como foi exposto acima, que a ideia mesma de estilo é incongruente com a pluralidade. Isso, em detrimento de ter utilizado o estilo como critério tanto em seu texto “O mundo da arte”, quanto em “A transfiguração do lugar comum”, sua principal obra filosófica. É com a história queDanto consegue colocar a

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“My only claim on the future is that this is the end state, the conclusion of an historical process whose structure it all at once renders visible” 27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


pluralidade como pressuposto da ausência de narrativa sem que essa se choque com seu essencialismo. O problema está em como ele o faz. O filósofo, ao propor narrativas, as escolhe de “outras pessoas”. Ele parece querer mostrar o realismo dessas narrativas ao afirmar, implicitamente, que não é somente ele quem pensou a arte nesses moldes, mas que a história da arte “é” dessa forma. O problema é que as narrativas, mesmo que sejam citadas como pertencentes a outras pessoas, foram construídas por ele. Não existe a possibilidade de afirmar que Vasari construiu uma narrativa. O que Vasari fez foi uma teoria que se adéqua à forma como Danto compreende a história e ele o elegeu para justificar e esclarecer o seu ponto de vista. Ao montar a narrativa de Vasari, Danto deixa entrever uma característica realista, ao afirmar que a perspectiva é algo natural ao homem. Mesmo que os artistas tenham tido que dominar a técnica, ele considera que sua percepção é instantânea, ou seja, com a hipótese da perspectiva como algo natural.Danto pressupõe que a capacidade de ver esse tipo de ilusão é universal e inata. Ele tenta defender a fidelidade ótica através de sua universalidade, dando exemplos de culturas que também a buscavam. E, como é algo natural, o progresso rumo a seu desenvolvimento também parece natural. Os problemas que derivam da adoção desse ponto de vista são que, ele confunde o desenvolvimento técnico com o “desenvolvimento” da arte, pressupõe o progresso como condição inerente a essa forma de arte, coloca a perspectiva como a única forma de arte coerente e explicita sua relação naturalista da percepção estética. A segunda narrativa mostra-se ainda mais restritiva que a primeira, ao desconsiderar grande parte da arte mundial, inclusive a europeia, como parte do que Greenberg entendia como a tendência da produção artística. Dessa forma, a eleição de tal paradigma parece ainda mais arbitrária que a anterior, mostrando que ele é, no mínimo, insatisfatório para se pensar a arte, pois a planaridade não tem sequer a desculpa de ser natural à percepção humana. O principal livro de Greenberg utilizado para a construção da narrativa é “Arte e Cultura”, de 1965, onde ele desenvolve o caminho da arte rumo à abstração. A arte moderna é tomada como consciência coletiva do que a arte pode ser, sendo Pollock aquele que atinge esse objetivo. Várias críticas podem ser feitas a essa proposta. A primeira é que é impossível reduzir a arte moderna à planaridade, a segunda que Greenberg trabalha com uma noção essencialista de arte que ele não explica, a terceira que ele tenta transformar a análise de um movimento em 28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


análise da arte como um todo, a quarta que sua teoria não serve nem como ontologia nem como história da arte, pois ele não explica seu essencialismo e propõe uma história que não corresponde à história da arte, a quinta que a planaridade é, no máximo, a essência do medium pintura; e por último, a sexta, o crítico Harold Rosenberg falou da abstração em termos quase contrários aos do Greenberg e propôs a expressão “actionpainting”, o que mostra a fragilidade da utilização da teoria greenbergiana, a qual Danto respeita e elogia com frequência, como explicação de um período controverso e multíplice como foi a modernidade. Na história da arte, tradicionalmente14, foram elencadas especificidades e características para cada período bastante claras. E elas foram tomadas, erroneamente, como definições para a mesma. Erroneamente porque, se considerarmos as características de um período como uma definição da arte, várias das obras de arte realizadas naquele mesmo período não serão consideradas enquanto tal. Como exemplo, o italiano Giuseppe Arcimboldo.

Giuseppe Arcimboldo, “Primavera”, 1563

A obra de Arcimboldo não se adéqua às características do Renascimento e foi produzida nesse momento. Como Arcimboldo, é possível apontar vários outros artistas que, apesar de não se adequarem ao período, fizeram obras de arte. Então, o problema 14

Existem outros modos de pensar a história da arte, como por exemplo, a história da arte anacrônica de George Didi-Huberman (ver: O que vemos, o que nos olha, São Paulo, Editora 34, 1998) e Panofsky com sua história da arte como sucessão de formas simbólicas, sendo a análise de cada uma individual e determinada por um processo de três etapas (ver: Estudos em Iconologia: temas humanistas na arte do Renascimento. Lisboa: Estampa, 1986.). Apesar de que, no Brasil e em outros países do mundo, os estudos de história da arte são realizados, principalmente, utilizando como referência as obras de Giulio Argan e Ernest Gombrich, ambos adeptos da periodização e determinação clara e distinta de movimentos específicos. 29 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


não está, necessariamente, na forma como a história da arte é feita, mas na forma como ela é interpretada. É dentro dessa perspectiva que, a crítica à estrutura de narrativas da história criada por Danto pode ser compreendida. A ideia de limite da história é por si só elucidativa. Arcimboldo, por exemplo, estaria fora dos limites da história, pois não se adéqua ao télos da mesma. O problema é que as narrativas têm propósitos criados posteriormente, como que “descobertos” pela contemporaneidade. O progresso pressuposto em ambas é dificilmente justificável. Afirmar a existência de um progresso técnico que gera modificações devido a sua utilização é uma coisa, aquestão é que Arthur Danto estende a ideia de progresso da técnica para a história, dentro do espírito hegeliano. A dificuldade dessa afirmação está no fato de que a própria história da arte a nega. Dentro da minha perspectiva, é impensável afirmar o Barroco como uma tentativa mais bem sucedida de representar a realidade do que o Renascimento, e é exatamente isso que está implícito na progressividade histórica das narrativas.A conjectura de que a arte progride rumo a uma representação cada vez mais fiel da realidade, mostra-se no mínimo inócua se forem recordados, minimamente, os períodos da história da arte e suas características. O mesmo acontece ao considerar a abstração. Como afirmar que Pollock representa um progresso em relação aGorky? Logo, a questão que coloco é a seguinte: é realmente necessário propor uma estrutura tão questionável para justificar a afirmação acerca do fim da arte? Sim e Não, depende da perspectiva. A primeira resposta seria a correta se pensarmos na ideia de fim como diretamente vinculada à história, o que considero ser a perspectiva dantiana, mesmo acreditando na segunda resposta como a mais coerente. Isso porque ele propõe formas diferentes para cada uma das narrativas. Sua perspectiva é de que a história acabou, e se a história acabou deve existir um motivo inerente à própria essência da história que justifique isso. Não se pode esquecer que o filósofo é essencialista, ou seja, que não acredita em modificações que não se adéquem à essência própria das coisas. Dessa forma, seria possível se abster das narrativas específicas, mas não das narrativas em si. Se a resposta for não, pode-se considerar que o caráter progressivo da história em Arthur Danto serve apenas como suporte para correspondência do advento do fim da arte. A ideia da autoconsciência da arte pressuposta na filosofia hegeliana como justificação da aproximação da mesma da verdade do espírito absoluto é expressa, na filosofia dantiana,por meio da aproximação entre arte e filosofia. Logo, essa 30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


aproximação culminaria no fim da história, ou, no fim da arte. Retirando do todo apenas esse núcleo duro, existem duas possíveis leituras, uma que se caracteriza como uma releitura da própria estrutura teleológica dantiana, e outra que funciona como uma espécie de tentativa de salvação da sua teoria do problema que o progresso implica. A primeira leitura se refere ao problema da representação que acompanha toda a história da arte e que vem à tona com os indiscerníveis. Se se compreende a representação como o verdadeiro télos da história, então a estrutura hegeliana pode ser utilizada ipsis literise as narrativas passam a ser dispensáveis, pois pode-se pensar em termos de períodos como no caso do sistema hegeliano. O problema dessa opção é que o início seria a arte grega, e a teoria da mimesis como imitação, a antítese aconteceria no período da arte tradicional com a teoria da mimesis como representação e o fim seria alcançado com Duchamp ao unir o imitado e seu referencial na mesma obra de arte, ou seja, as demarcações dantianas deixam de ser válidas. A segunda leitura tem objetivo salvacionista. A arte pós-histórica poderia ser justificada enquanto resultado de um processo histórico não teleológico ou progressivo, pois mesmo sem isso os indiscerníveis podem vir a fazer parte da história da arte, e é nesse momento que seu caráter propriamente filosófico se apresenta. O que não pode ser pensado é a justificação de tal teoria sem historicidade. Ela pode ser pensada dentro de outro viés, porque a importância real das narrativas para a configuração de um momento pós-histórico está no fato de que todo período/estilo/narrativa da história da arte pressupõe uma definição de arte de acordo com os pressupostos de aparência do objeto artístico, isso se forem consideradas as artes visuais, como costuma fazê-lo o próprio Arthur Danto. E qualquer tentativa de fazer tal tipo de definição recai no problema de não abarcar a pluralidade do mundo da arte atual, principalmente, após os indiscerníveis. O que configuraria, da mesma forma, a emergência dos mesmos, como o fim da história da arte, pois, a partir do momento em que qualquer coisa pode ser uma obra de arte, a história da arte enquanto fisicalidade deixa de fazer sentido, e uma nova forma de pensar a arte surge. Por último, é necessário falar sobre a ideia dantiana de que a sua filosofia é a última teoria da arte. Essa proposição vai contra ele próprio, pois em “O fim da arte”, como foi mostrado, afirma não ser possível falar sobre a arte do futuro. Além disso, ele comete o erro de aplicar à arte pós-histórica a estrutura objetiva que atribui à história. Isso porque as narrativas da forma como ele as criou são facilmente enquadráveis nessa ideia, mas a arte pós-histórica é a arte sem história, então não há como pressupor uma 31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


estrutura objetiva para ela e ele o faz. E essa estrutura objetiva é a afirmação de que tudo é possível (DANTO, 1997, p.44). Seria plausível argumentar que isso dá amplitude suficiente para qualquer coisa e penso que isso foi o que Danto imaginou, o que ele não imaginou é que a estrutura histórica da forma como ele montou, não existe mais e, na verdade, nunca existiu. O que significa que a ausência de progresso não leva necessariamente à estagnação e, ao contrário do que ele pensou, a sua não é e nem será a última filosofia da arte. A ausência de progresso apenas retira o télos, o que não se relaciona, em nada, com o fato de que coisas acontecem no tempo e se modificam nesse mesmo tempo. Ao propor uma condição para a arte pós-histórica, ele tenta aliar o pluralismo ao essencialismo, o que se mostrou inoperante. Danto caiu em sua própria armadilha.

Conclusão Portanto, em detrimento das dificuldades geradas pela proposta dantiana, sua tese acerca do fim da arte aponta vários caminhos propícios para pensar a arte contemporânea. A tese do pluralismo, aliada à ausência de periodização e de características estilísticas, permitevislumbrar a necessidade de reestruturação da forma como a história da arte é construída. Acredito, inclusive, que a precariedade das narrativas que constituem a história auxilia nessa questão. Além disso, a necessidade de pensar a arte para além de suas características físicas abre espaço para construções filosóficas cada vez mais intricadas à própria produção artística, haja vista a dificuldade do próprio Danto de separar arte e filosofia.

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O FILÓSOFO ARTHUR DANTO COMO ANDY WARHOL Marcia Tiburi

RESUMO O presente artigo pretende mostrar como a análise de Andy Warhol feita por Arthur Danto expõe uma espécie de meta-teoria da própria filosofia de Arthur Danto. Minha hipótese é que Danto usa Warhol para explicar a si mesmo. Arelação entre arte e filosofia - questão fundamental da obra de Danto- corresponde à relação entre o próprio Danto e Andy Warhol. Em última instância, é possível que, por meio da análise dessas relações, possamos entender o nexo entre o fazer artístico e filosófico em nosso tempo, apontando para novas compreensões tanto da arte quanto da filosofia. Palavras-Chave: Arthur Danto, Pop Art, Andy Warhol, filosofiacontemporânea, estética

ABSTRACT This article aims to show how the analysis that Danto does of Andy Warhol outlines a kind of meta-theory of the former’s own philosophy.My hypothesis is that Danto uses Warhol to explain himself. The relation between art and philosophy – fundamental question of Danto’s work – corresponds to the relation between Danto himself and Andy Warhol. Ultimately, it is possible that, through the analyses of these relations we understand the link between the artistic and philosophical work in our timing pointing to new comprehensions both art and philosophy. Key-words: Arthur Danto, Pop Art, Andy Warhol, contemporary philosophy, aesthetics

O filósofo Arthur Danto como Andy Warhol Neste artigo pretendo comentar aspectos do que Arthur Dantodiz sobre Andy Warhol na intenção de mostrar como Arthur Danto, ao falar da arte de Warhol, constrói uma espécie de meta-teoria de sua própria filosofia. Em termos bem simples, quero dizer que,de certo modo, Danto usa Warhol para falar de si mesmo. Warhol seria, de certo modo, em termos talvez não tão simples, mas muito correntes, o “alterego” de Danto. Isso pode significar que, filosoficamente falando, Danto seja, de certo modo, o duplo de Warhol. Nosso problema aí seria entender o que pode querer dizer “de certo modo” quando comparamos esses dois personagens, considerando que são duas pessoas muito diferentes e compará-los enquanto pessoas seria um projeto inútil e sem sentido. 34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Por isso, quero pensar evidentemente não em suas pessoas físicas, mas em suas posições como personagens culturais: Warhol como artista, Danto como filósofo. A expressão “de certo modo” nos ajuda nesse ponto, pois por meio dela se indica no uso corrente, algum aspecto específico da relação entre uma coisa e outra. Ora, “de certo modo” indica o que é e não é, o que é sob um certo aspecto e não é , sob outro. Levando isso em conta, creio ser possível justificar a tese da meta-teoria, ou, em termos mais adequados, do metaposicionamento, da obra de Danto e partir da obra de Warhol. Danto vê na arte de Warhol uma posição filosófica das mais avançadas. Se sua filosofia nasce a partir de Warhol, como veremos, creio que, falando no artista, ele posicione sua própria filosofiacomo algo que ele não espera que seja menos avançada filosoficamente do que a arte filosófica de Warhol. O que Danto alcança em termos filosóficos desde que empreende uma investigação e uma atenção sobre Warhol é o que precisamos tem em vista. Danto desenha um Andy Warhol totalmente seu, mas podemos dizer que é o melhor retrato que se poderia fazer de um artista como Andy Warhol cuja complexidade não poderia ser deixada de lado, justamente porque essa complexidade relaciona-se ao mais simples, ao que há de mais “banal”. Warhol fez arte a partir do mais banal, o que, por muitos motivos, jamais seria chamado de “arte” se este procedimento de denominação e de definição não fosse ele mesmo, de certo modo, artístico e filosófico. Verdade que uma definição dessas nunca é produzida apenas por uma pessoa ou grupo institucionalizado tais como filósofos e artistas. Esse tipo de definição vem de uma época, por um desejo coletivo que se expressou no que foi chamado desde então de Pop Art. O que Danto diz sobre Warhol é um retrato que faz de Warholenquanto artista um personagem filosófico ímpar. Esse personagem é único, mas ao mesmo tempo, ambíguo: filósofo e artista, o que ele produz em termos de obra, na visão de Danto, não tem precedentes. No entanto, creio que é possível afirmar que a filosofia de Danto, como Dantomesmo sabe, também não tenha precedentes. E não o tem porque a filosofia de Danto se deve a muito do que Warhol provocou em sua visão e posicionamento em relação ao mundo. Danto deriva de Warhol, mas não apenas em um sentido histórico como se uma teoria da arte necessariamente surgisse para dar conta da interpretação de uma obra. O que Danto diz de Warhol, o modo como desenha o retrato de Warhol, serve para que desenhe o seu próprio. Quero dizer com isso que se o procedimento de Warhol é filosófico enquanto ele é artista, o procedimento de Danto é artístico enquanto ele é 35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


filósofo. Ora, por meio desse retratofeito por Danto sobre Warhol se pode definir o que é um artista e um filósofo. Semelhante a Sócrates, Warhol é alguém que muda um paradigma. Pelo menos mudou o paradigma de Danto, como veremos. Essa mudança implica que o retrato feito sobre o artista é ao mesmo tempo um autorretrato do filósofo. Tendo isso em vista, creio ser possível ver em Danto um filósofo pop, do mesmo modo como Andy Warhol foi, enquanto artista, e para Danto, um filósofo pop. Na construção desse argumento que envolve pensar a autorreferencialidade de Danto em relação a Warhol (sendo este último o eixo, o dispositivo e o objeto que permite a Danto ver-se a si mesmo, e a nós “outros” vermos Danto), é preciso levar em conta um aspecto elementar que não perde de vista o “certo modo” com o qual podemos pensar esta relação: que Arthur Dantonão foi um artista como Andy Warholé um artista, do mesmo modo como Andy Warhol não foi um filósofo como Arthur Danto foi um filósofo. Esse fato que poderia estragar o meu argumento é o fato mais importante que o justifica, justamente, por certo mecanismo sustentado na “ambiguidade” entre obra e vida, entre obra de arte e coisas ordinárias e entre artista e filósofo, sobre o qual falaremos. Quando digo que Danto não era artista, penso em seu posicionamento profissional e institucional. Mas Dantoque fora em certo momento de sua vida um artista em sentido institucional, poderia ter continuado sendo artista, pois começou uma carreira como artista, embora tenha desistido dela. Ou seja, podemos partir do pressuposto de que Danto diz que Warhol era um filósofo, enquanto não se pode dizer que Danto fosse um artista, embora pudesse ter sido se tivesse construído outro futuro para si nesta direção. No entanto, levando a sério o argumento de Danto, vemos que ele diz que Warhol é um filósofo não em um sentido profissional ou institucional. Mas em um sentido inusual e inusitado. E até mesmo em um sentido irreverente. A irreverência da designação do artista como filósofo é, ela mesma, um ato que podemos chamar de “pop-filosófico”, um ato de Pop Art aplicado, ou incorporado, à filosofia de Danto. O que nos leva a pensar que talvez ele estivesse produzindo os seus textos não apenas com intenções analíticas em relação a Warhol, mas tentando mostrar o avanço concreto no tempo presente e o futuro da própria filosofia em relação ao advento da arte, bem como, em outro sentido, buscando entender Warhol em um sentido dialógico, tentando, digamos assim, espelhar-se nele para expor as motivações e potencialidades da filosofia 36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


enquanto tal e da sua própria. Neste sentido é que tentarei mostrar que Danto, mesmo não sendo artista no sentido institucional, era um artista no sentido de ser um “filósofo pop” como Andy Warhol era um “artista pop” que, enquanto artista,era filósofo. A pergunta que norteia este texto e que, a meu ver, pode ajudar a pensar o destino da filosofia contemporânea – ou o que já vem acontecendo com ela há certo tempo - é justamente aquela que se constrói levando em conta que tipo de filósofo é um artista pop para entender que tipo de artista é um “filósofo” como Danto,desde que o advento da Pop Arte de Andy Warhol como artista tem que ser levado em conta para pensar o que é a própria filosofia de Danto e, não creio seja exagero dizer, a filosofia como um todo. Em termos muito simples, podemos nos colocar a pergunta: o que é a filosofia depois da PopArt?Que foi a meu ver a pergunta essencial que a filosofia de Danto se colocou. Mas podemos pensá-la em um sentido universal. Quem são os filósofos depois de Andy Warhol? Esse é um problema de definição. E o problema de definição é um dos mais importantes problemas tanto para Arthur Danto quanto para o Warhol de Danto que estamos começando a analisar.

O artista enquanto personagem define a filosofia Na intenção de demonstrar minha hipótese seguirei de perto o que Arthur Dantodiz acerca da Pop Art a partir de seu texto “Pop Art e Futuros Passados” (DANTO, 2006B). Neste texto analisando o “vergangeneZukunft”, “o futuro como apareceu naquele momento passado àqueles para quem ela era presente”(2006B, p. 128) ele pensa na relação tensa entre a escola de Nova York, os abstracionistas tais como Pollock, De Kooning, Rothko e outros, e os realistas. A questão de Danto é tentar entender como os realistas – que se viam sem futuro - teriam algum futuro possível diante do futuro prometido totalmente aos abstracionistas.Hoje, talvez nós não consigamos imaginar como uma figura como Hopper pudesse em sua época ser alguém meio marginal. E ele era enquanto o abstracionismo da escola de Nova York se colocava como a tendência dominante. A divisão entre abstração e realismo tinha, segundo Danto, uma “intensidade quase teológica” (2006B, p. 133). A abstração era a lei e o realismo uma prática quase herética. Bom, já neste ponto chegamos a uma questão que é preciso elaborar: Danto afirma que havia uma “correção estética” que “cumpria o papel que

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veio a ser desempenhado pela correção política de nossos dias”. E ele segue: “as ações de Hopper e seus companheiros transmitem a indignação e o choque que todos os livros conservadores sobre o politicamente correto hoje provocam” (2006B, p.134). O abstracionismo era a norma estética contra a qual o realismo nada podia. E o que acontecia é que os realistas, inevitavelmente, sentiam-se ameaçados em sua existência diante da ideologização do abstracionismo. Isso não iria durar muito, porque tanto um como outro dos modos de fazer arte seriam logo superados. O que é curioso, e a meu ver não podemos deixar passar, é que Danto compare esse sentimento de ameaça dos realistas ao “modo como os professores foram ameaçados com a perda do cargo efetivo, ou ao menos sentiram-se temerosos dessa perda, a menos que seus programas e seu vocabulário de sala de aula fossem adequados” (2006B, p.134). Essa questão proposta por Danto enquanto pensa em abstracionistas e realistas, em Hopper e Greenberg, nos ajuda a entender uma questão filosófica que não é pouco importante: a questão institucional da filosofia. E neste sentido, no lugar da filosofia acadêmica em relação a outras formas de fazer filosofia. Na verdade, do ponto de vista acadêmico não há outra forma de fazer filosofia. E isso é o que a configura não apenas como instituição escolar, mas como “instituição” legal no sentido “falogocêntrico” do termo. Do mesmo modo que, para pintores acadêmicos, a arte ou seria acadêmica - e seria pintura -, ou não seria nada, a filosofia ainda hoje ou é acadêmica ou não é nada. Se pensarmos a filosofia acadêmica em sua metodologia dominante que se propõe como “história da filosofia”,qualquer outra forma de fazer filosofia parece absurda. Pois bem. Aqui é que o argumento de Danto se torna mais interessante, porque é neste lugar da disputa entre os defensores dos expressionistas abstratos, como Clement Greenberg, e seus oponentes, aqueles que defendiam ainda o realismo, que as coisas se tornam surpreendentes. As tendências estavam preocupadas com seu próprio futuro e não percebiam o que estava acontecendo em seu tempo presente. E foi aí, justamente, que as coisas aconteceram de um modo inesperado para todos. A Pop Art surgiu aí neste exato ponto, como que de surpresa. Danto comenta que a Pop Artnasce meio ligada ao expressionismo (“impulsos dissimulados sob respingos e escorrimento de tintas”), mas logo afirmando-se como algo particular. Ao mesmo tempo, os artistas do movimento Pop se interessam por Hopper, não faltando quem visse nele um precursor do movimento. Neste ponto, devemos voltar à comparação que fiz com a filosofia acadêmica ou institucional: não podemos dizer que haja um equivalente no mundo da 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


filosofia acadêmica entre realismo ou abstracionismo, como filosofia crítica ou analítica, hermenêutica ou fenomenológica. Não se trata, no caso dos movimentos filosóficos da tradição que conhecemos, de uma disputa por pontos de vista ou por tendências que, dentro dos cursos, se estabelecem por afinidade. Mas talvez a Pop Artesteja acontecendo na filosofia e, perdidos entre “abstracionismos” e “realismos”, estejamos perdendo o que mais importa ter em vista, não mais na arte, que costuma estar adiante da filosofia, mas na filosofia que, desde que foi inventada, sempre chega tarde em relação à arte. Quero dizer com isso que o que Danto– para quem as mudanças culturais se manifestam primeiro na arte (DANTO, 2008, p. 27) nos mostra é que alguma coisa que ficou velha na arte também pode ter ficado velha na filosofia. Danto vai até a história da pintura nos anos 50 e começo dos 60 para mostrar que a questão da Pop Art é muito mais delicada. Ela é mais do que histórica, no sentido da narrativa da história como grande narrativa. Ela é filosófica. É justamente neste sentido filosófico que a Pop Art seria, para Danto, o “movimento de arte mais crucial do século” (2006B, p. 134). É neste sentido que ele também dirá que a PopArt desempenha “o papel filosoficamente principal” na narrativa da história da arte moderna (2006B, p. 135) que ele também ajuda a construir sobretudo ao levantar a questão do fim da arte. Do mesmo modo é que ele afirmará que “a pop marcou o fim da grande narrativa da arte ocidental ao trazer à autoconsciência a verdade filosófica da arte. Que ela foi uma mensageira improvável da profundidade filosófica é algo que prontamente reconheço” (2006B, p. 135) afirma Danto, com todas as letras para que se entenda de uma vez e sempre seu posicionamento. Danto diz tudo isso acerca da Pop Art para poder contar sua própria relação com a história na qual nasceu a Pop Art, mas insere-se neste ponto, de um jeito muito peculiar, no qual creio ser possível reconhecer a banda de Moebius que se cria entre o artista e o filósofo definindo, ao mesmo tempo, o lugar mutuamente criado do artista e do filósofo. Creio que é neste ponto, com o nascimento da Pop Art que Danto consegue inscrever seu lugar como pensador que é artista, embora seja pensador. Danto, neste texto, pede licença para inserir-se na narrativa como alguém que viveu aquele momento, alguém cujo testemunho nós temos que valorizar enquanto leitores respeitosos. Ele conta essa história em outros textos, sempre no mesmo tom, mas aqui ele é bem definitivo. Ele justifica o modo como vai se apresentar, afirmando que “artistas, quando mostram seus slides e conversam sobre seus trabalhos, de um modo característico relatam momentos decisivos em seu desenvolvimento” (2006B, p. 136).Ele fará o 39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


mesmo. Danto justifica que sua vida como filósofo começou no momento em que foi convidado a falar sobre a Pop Art. Ele mesmo conta como deveria ter sido artista (e aí avalia o seu vergangeneZukunft) e como acabou sendo filósofo. Relatando sua vida naquele momento, ele comenta como seu trabalho como artista não cabia nem no abstracionismo, nem no realismo. O surgimento da Pop Art, que Danto descobriu por meio de uma revista de arte, o que era comum naquela época, o deixou, como ele mesmo afirma, “aturdido”. A ponto de que ele deveria se tornar filósofo, o que já vinha fazendo, deixando de ser artista no sentido institucional. Penso que se pode dizer que ele não poderia ser um artista como Andy Warhol era, mas havia nele algo de artista que permitia que ele fosse um filósofo como Andy Warhol. A meditação de Danto, neste ponto, é bem importante para os fins dessareflexão. Em suas palavras ele diz “eu sabia que se tratava de um momento surpreendente e inevitável, e compreendi imediatamente, em minha própria mente, que, se era possível pintar algo como aquilo (...) então qualquer coisa era possível” (2006B, p. 136). Para Danto, a questão do futuro das artes, das correntes, havia se dissipado. E ele segue dizendo “para mim, isso significava que não havia nenhum problema, como um artista, fazer o que quisesse fazer” (grifo meu, p. 136). O texto neste ponto, fica um pouco truncado. Mas podemos considerar que Danto fala de si como “um artista” que ele de fato era, para em seguida dizer que “a partir daquele momento eu era obstinadamente um filósofo”. Um filósofo era o efeito de um artista que poderia fazer o que quisesse. O que ele quis fazer, como artista, a meu ver, foi tornar-se filósofo. Depois, ele conta que em 1984 passou a ser crítico de arte. O que fez Danto querer ser filósofo – e depois crítico de arte - e deixar de lado a carreira de artista no sentido institucional,pode ser, e certamente é, uma pura escolha pessoal. Mas é também mais do que isso. Danto está, na construção de sua avaliação crítica sobre a parte importante não apenas na narrativa do artista, mas na autonarrativa do filósofo que deixou de ser artista e passou a ser um filósofo, ao mesmo tempo agindo como artista na produção de uma filosofia.O crítico de arte que ele foi era um modo de ser filósofo diante da arte, não sendo mais artista, mas isso só foi possível quando ele agiu “como artista” fazendo o que quisesse fazer. Danto percorre toda a banda de Moebius que ele constrói com Warhol para ser uma coisa sendo outra, do mesmíssimo modo que Warhol é filósofo enquanto artista e que a obra de arte é uma coisa que não se parece nada com uma obra de arte desde que Warhol decidiu fazer coisas como obras de arte. 40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Ora, Andy Warhol é, na visão de Danto, um artista como filósofo. Danto, neste momento, se espelha no modo como se expressa o artista quando faz a sua narrativa, e no advento da Pop Art como um momento impressionante,para pensar a si mesmo como filósofo enquanto há ainda nele algo de artista. Algo considerável filosoficamente porque metodologicamente interessante. Ora, Danto conta ao leitor que muda o sentido de sua escolha profissional, ou seja, deixa de ser artista, justamente no momento em que descobre a Pop Art. Deixa de ser artista para tornar-se filósofo em um sentido muito próximo do ato e da performance geral de Andy Warhol que era o artista enquanto filósofo. Danto passa de um lado a outro, do mesmo modo que percebe que, conscientemente ou não, Warhol o faz. Isso fica claro no texto sobre “O filósofo como Andy Warhol” (2001, p. 107) quando ele fala que o elemento filosófico da Pop Art que encantou Danto elaborou-se como um “via negativa”. Danto afirma que Warhol não disse o que era arte, mas “abriu caminho para aqueles cujo trabalho fosse providenciar teorias filosóficas”, ou seja, abriu pela via negativa, sem imaginar, caminho para ele, Arthur Danto que é uma espécie de continuador de Warhol: se o artista é filósofo, o filósofo também é artista. De um lado, parece claro que Danto não poderia ter se tornado filósofo se a Pop Art não o tivesse impressionado tanto a ponto de que ele tenha deixado de ser artista em sentido institucional e estrito quando ela surgiu. Que surja um filósofo na via negativa do artista é algo que parece estar claro. De outro lado, por Andy Warhol ser um personagem tão fundamental nesse processo, de um lado ele parece o alter ego de Danto, de outro ele é o personagem emblemático, como um dia foi Sócrates, e paradigmático do gesto que, de algum modo ou por diversos caminhos,de certa maneira “forma” ou “faz” de alguém um “filósofo”. Sem dúvida que está em jogo aí a compreensão do que é filosofia, de quem é o agente da filosofia, de quem a põe em cena, de quem a aciona. Ora, quem define o que é filosofia e quem pode ser o filósofo depois que aprendemos que o discurso filosófico é altamente sofístico e ligado ao poder de dizer a verdade? Até Warhol as coisas pareciam decisivas, mas a história não tinha acabado. Nem a da arte, nem a da filosofia. Poderíamos a partir de Andy Warhol pensar não apenas um fim da história da arte como fez Danto, mas também um fim da história da filosofia como grande narrativa? Penso que não é nada absurdo pensar que Danto nos leva a este desafio. Andy Warhol é o personagem de Danto. Ele o tem em tão alta conta que sabe perfeitamente que mesmo que Andy Warhol não tenha definido a arte, conseguiu com 41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


suas brincadeiras mostrar “como a forma da questão filosófica deve ser” (2001, p. 106). A forma da questão filosófica já havia sido discutida por Wittgenstein com a proposta das “piadas” das quais Danto tanto gosta. Mas também no retorno ao ordinário e aos “conteúdos desprezados e rejeitados” (2001, p. 110). Aqueles conteúdos banais ligados à simples vida. Andy Warhol como artista foi muito importante para a arte, mas igualmente importante para a filosofia que, até hoje, não percebeu a importância das questões postas em cena por Warhol. Wittgenstein seria quem mais teria se aproximado disso. E, diz Danto acerca de Warhol: “fazendo isso, ele invalidou alguns milênios de investigações indevidamente conduzidas”. Danto não explica muito bem como, mas segundo ele “foram as imagens do pop que o habilitaram a fazer isso”. Creio que isso pode ser explicado se compararmos Warhol com Sócrates não porque ele tenha feito nada de semelhante a Sócrates em termos de temas ou métodos, mas porque como Sócrates ele foi um personagem que criou a maioria das questões filosóficas que conhecemos. Quero dizer com isso que Warhol está para Sócrates assim como Danto está para Platão. Danto poderia ter dito isso sobre Wittgenstein, mas Wittgenstein não foi tão longe quando Warhol. Warhol fez a Brillo Box e isso muda tudo o que se pensava sobre arte, mas também sobre filosofia e algumas de suas questões mais cruciais. Danto comenta o momento em que encontrou a Brillo Box quase num tom testemunhal.A Brillo Box é um verdadeiro talismã filosófico para Danto. Em seu livro chamado Andy Warhol (2012) ele simplesmente afirma ter “amado” a Brillo Box (p. 14) num tempo em que muitos diziam que aquilo não era arte. Ele a comenta muitas vezes. A Brillo Box talvez seja, em temos de imagem, tão emblemática da filosofia comouma dia foi a famosa Navalha de Ockam. Danto dedica a esta Brillo Box páginas e páginas de seus livros. É como se ela fosse não uma caixa, mas a verdadeira pedra filosofal da contemporaneidade, de um tempo pós-histórico para a arte e para a vida como um todo. Se Warhol foi, segundo Danto, um adorador do ordinário, Danto também o é e é um adorador do modo como Warhol sem querer colocava questões nada ordinárias a partir de coisas ordinárias. A Brillo Box é esta coisa que reúne ordinário e extraordinário no mesmo tempo e espaço impedindo-nos de decidir o que pesa mais. Warhol colocou em alta o mundo banal com esta caixa de sabão que é uma obra de arte e é esse mundo banal que ele “celebrou do jeito que ele era” (2001, p. 109). E assim confundiu tudo. E nessa confusão conseguiu não apenas transformar a arte em reflexão filosófica, mas a 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


vida em arte, digamos assim. A vida é o que se pensa em última instância quando se vê uma caixa de sabão Brillo que não é uma caixa de sabão Brillo. Danto percebeu bem cedo que essa era a questão de Warhol, a relação entre as coisas bobas da vida e as coisas não bobas da vida que queremos representar por meio das chamadas “obras de arte”. Ele viu que alguma coisa nova - realmente nova, seja lá em que sentido se possa dizer isso - tinha aparecido, deixando outras coisas realmente velhas. Uma dessas coisas velhas, era o debate de seu tempo. Danto viu que “a inteira estrutura do debate que havia definido o cenário artístico de Nova York até aquele ponto deixara de vigorar” (2006B, p. 137). Neste ponto do texto que citamos acima, ele comenta que todas as teorias discutidas até então, não davam conta do novo fenômeno. Vemos que o velho problema da “obra de arte” e da “arte” continua em cena. Danto pretendia dar conta dessa coisa nova que os outros não estavam dando conta. Mas o modo como o fez define, a meu ver, não apenas uma tarefa hermenêutica da filosofia – em particular da estética - em relação à arte, mas uma modificação no próprio lugar ocupado pelo filósofo enquanto alguém que se desloca do seu lugar para poder ocupar um outro lugar. É este deslocamento que se trata de levar a sério. Neste sentido, é que me parece claro que se Danto fala de “O filósofo enquanto Andy Warhol”, para compreender o que ele quer dizer e o efeito do que ele diz, podemos também falar de “O filósofo enquanto Arthur Danto”, mas desde que levemos em conta que antes - e atravessando esse posicionamento filosófico - há “O artista enquanto Arthur Danto”. “O artista enquanto deixou de ser artista”. Um jeito de entender isso é dizer que o filósofo – seja lá o que isso queira significar - não será mais o mesmo depois do advento da Pop Art.Outro jeito de pensar é o seguinte: assim como o filósofo não existia antes de Sócrates, ou existia de um modo diferente, ele não é mais o mesmo depois da existência de Andy Warhol. Ou pelo menos do Andy Warhol de Arthur Danto. E quem encena essa nova performance é justamente Arthur Danto. Lendo Danto conseguimos entender quem é esse filósofo depois da Pop Art, depois, sobretudo, de Andy Warhol. Isso nos leva a pensar junto com Danto, mas sobretudo “depois” de Danto. Essa ambiguidade entre Warhol e Danto pode ser proveitosa como poderemos ver. Depois de Arthur Danto o filósofo pode se colocar questões tais como a do lugar do artista quando, deixando de ser artista, deslocando-se de seu lugar, ele se torna filósofo. Em 1964,Danto escreve seu artigo inaugural como filósofo da arte, “O mundo da Arte” (2006A) que, segundo ele, nunca foi citado para a discussão sobre o Pop, mas 43 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


que se tornou, segundo suas palavras “a base para a estética filosófica da segunda metade do século 20” (2006B, p. 137). Danto diz isso avaliando a distância entre os mundos da arte e da filosofia, por mais que esses mundos sejam filosoficamente próximos. A grande relevância da Pop Art será, para Danto, que por meio dela é que “a arte mostrou qual era a questão propriamente filosófica sobre si mesma” (2006B, p. 138), aquilo de que a forma de Warhol fazer arte é a forma própria das questões filosóficas. Danto traduz essa questão levando em conta a velha teoria platônica sobre a arte: “o que faz a diferença entre uma obra de arte e algo que não o é, se, na verdade, ambos se parecem exatamente?”. Danto afirma que essa diferença não pode ser colocada se “alguém pudesse ensinar o sentido de “arte” por meio de exemplos, ou enquanto a distinção entre arte e realidade parecesse perceptual, como a diferença entre a pintura de uma cama em um vaso e uma cama real” (2006B, p. 138).A questão que é superada é a mimesis com a qual Platão e toda uma tradição até Vasari (arte representacional) e depois até Greenberg (condições para a identificação da arte). O que a Pop Art coloca em cena é um outro mundo da arte que a própria arte não conseguia ver até a Pop Art, na qual a necessidade de uma identidade filosófica para a arte não estava mais em jogo (daí o fim da arte e da história da arte enquanto grande narrativa sobre a arte). Diante dessa nova fase, como sabemos, o que importava para Danto é que “os artistas estavam livres para fazer tudo o que desejassem fazer”. Os filósofos também. Se a história da arte estruturada como narrativa tinha se acabado, valeria a pena colocar a mesma questão para pensar a filosofia: que a história da filosofia enquanto grande narrativa explicativa também tenha se acabado desde Warhol e desde Danto enquanto continuador de Warhol. A filosofia que surge a partir de Danto – o artista enquanto filósofo, e, mais ainda, o filósofo enquanto artista – implica a possibilidade do filósofo estar livre para fazer “tudo o que desejasse fazer”. E o que Danto deseja fazer? Ele fez o que ele desejou, como sabemos, ele virou filósofo. O modo como conseguiu isso foi uma teoria da arte que o coloca em espalhamento com o artista. Mas isso nos lega uma questão: se o artista de certo modo equivale ao filósofo – e vice versa – a Pop Art pode corresponder a um novo “movimento” na filosofia? Ela poderia dizer respeito à algo como Pop Filosofia? Ora, assim como Danto entende que Warhol era pós-histórico no sentido de Marx e Engels – aquele tempo em que se poderá fazer coisas como pescar e escrever 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


sem ter que ser pescador ou escritor. Do mesmo modo, se tentamos entender o empreendimento filosófico de Danto, talvez seja possível perceber que ele está interessado naqueles que “não são o que são e são o que não são”. Ele está interessado nesse tempo que está para além da “identidade”. Um tempo em que ele mesmo será filósofo ou artista sem precisar ser filósofo ou artista. Ou seja, ele está interessado em um poderoso deslocamento que altera o sentido de uma identidade. O surgimento da Pop Art tem a ver com o tempo pós-histórico em que o fim da história põe as coisas todas – inclusas identidades em geral - em outro lugar. Esse tempo que podemos resumir como sendo um tempo de crise de identidades, um tempo em que a cultura também foi vivida como contracultura, implica outra arte e, até mesmo uma outra filosofia que não se distinga mais da arte ou das outras atividades da vida. Um tempo em que a irreverência entra em cena, forjando o próprio termo “Pop” e que põe a irreverência como uma prática comum é um tempo a ser pensado. Talvez este seja um tempo cínico em que não há mais lugar para falsificações. A Pop Art será, para Danto, parte de “um momento cataclísmico” (2006, p. 146) que põe em cena outros valores e desejos e não necessita mais de grandes ídolos e de grandes sistemas de pensamento explicativos do mundo.

Transfiguração Um conceito fundamental na obra de Danto pode dar conta do sentido de Pop pelo qual ele mais se interessa e que, creio, explica a sua posição como filósofo enquanto artista. Trata-se do conceito de transfiguração. Neste ponto, gostaria de pensar o conceito de transfiguração em 2 sentidos. Em primeiro lugar no sentido próprio de Danto, tendo em vista o que ele diz dealgum emblema da cultura popular que se transforma em arte. Não se trata, portanto, do Pop enquanto elemento que é colocado na arte elevada, como uma citação de um cartaz ou jargão publicitário como nas pinturas de Hopper, por exemplo. Mas de seu potencial transfigurativo como quando a imagem de Marylin Monroe é colocada numa moldura dourada e transformada em ícone. Danto fala da transfiguração como um conceito religioso. E neste ponto ele oferta o seu sentido mais essencial: a “adoração do comum” (2006B, p. 142). A adoração do comum é a própria transfiguração. Coisas do campo do “comum”, coisas “comuns”, “coisas que significavam muito para as pessoas” (2006, p.

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143) foram alçadas a temas da arte e, assim, elevadas a um lugar respeitável simbolicamente. Neste ponto, o conceito de transfiguração que quero usar pode ser aplicado não apenas a coisas comuns, mas também a pessoas comuns, ou a designações e classificações comuns. O lugar que o próprio Andy Warhol ocupa no panteão de Danto tem a ver com o fato de que Danto transfigurou um artista em filósofo. Andy Warhol era um artista muito ordinário. O artista mais banal que poderia haver. Andy Warhol estava longe de ser um virtuose, um gênio no sentido corrente. Ele parecia, neste sentido, o mais comum dos sujeitos. O mais comum dos sujeitos que gostava dos mais comuns dos objetos. Foi o artista ligado ao mais comum – ele mesmo comum, mas também alguém que era já um “adorador” do comum - que guardava um potencial inusitado e altamente filosófico. Danto percebeu esse potencial transfigurador em Warhol. Warhol não era bem isso nem bem aquilo. Warhol era, neste sentido, sua própria obra: “aquele persona era ela mesma um de seus trabalhos” (2001, p.114). Por meio desse procedimento, de mostrar o potencial de transfiguração de Warhol, ele transfigura seu objeto comum e ordinário que é Andy Warhol na prática.É deste modo que podemos dizer que depois de Danto, Warhol nunca mais será o mesmo, assim como depois de Warhol,Danto como filósofo pode passar a existir em um novo sentido, não sendo nunca mais o mesmo. Danto não apenas se coloca diante de seu “duplo”, sendo ele mesmo sujeito e objeto de Warhol. A ambiguidade os une num jogo de espelhamento em que definir um e outro se torna mais complexo do que parece porque um já não existe sem o outro. E consegue, neste lance de dados involuntário, sinalizar para a filosofia que se faz – ou que se pode fazer - em nossos dias. O que digo aqui faz sentido se perceberemos que, na sequência desta argumentação de Danto, sobre o futuro passado da Pop Art, Danto segue explicando qual seria a “contrapartida filosófica” da Pop Art. Para justificar isso ele usa um argumento de Panofsky ao comentar a unidade de certas manifestações da cultura. Danto falará de uma tonalidade comum entre artes visuais e filosofia em meados do século 20. A filosofia analítica de Wittgenstein e Austin seria aquela que sinalizaria para certo “fim” da filosofia enquanto metafísica. Danto cita Austin para falar do arsenal de “palavras comuns” que interessam a um filósofo como ele, preocupado com coisas fundamentais e, ao mesmo tempo, as mais simples da vida, como o ato de falar e tentar entender o que se diz. Danto comenta que a filosofia depois do fim, assim como a arte depois do fim, poderiam se colocar a serviço da humanidade de um modo direto. E ele 46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


dá como exemplo a mosca a sair da garrafa de Wittgenstein, que é o equivalente contemporâneo da alegoria da caverna de Platão. De comum entre Pop Art e a filosofia analítica está o fato da revolta contra a tradição em nome da vida real. Ambas são criações culturais libertadoras. Contra a metafísica, contra a religião, contras as utopias distantes, o sentimento geral das pessoas dentro da cultura quando surgiu a Pop Artera o de algo urgente. A Pop Art foi o nascimento de uma nova consciência quanto aos “benefícios da vida comum”. E, em Danto, isso será altamente político, porque sem essa consciência, que a própria televisão trouxe para a Alemanha oriental, por exemplo, não haveria queda do Muro de Berlim.É, portanto, a “mudança na trama da sociedade” o que está em jogo. Quando surge a Pop Art ela aparece como a irrupção de um modo de ver o mundo totalmente outro enquanto ao mesmo tempo ficamos atentos, ligados e irônicos em relação ao próprio mundo. Se a arte antes olhava para um mundo que não estava presente, o outro mundo da arte, o mundo da Pop Art é um mundo totalmente presente, exposto na superfície que é suficientemente profunda para um filósofo artista e pra um artista filósofo.

A transfiguração - Andy Warhol ou Arthur Danto Em seu texto “O filósofo como Andy Wahrol” (2001) Danto faz uma brincadeira falando da inteligência filosófica de Warhol que para ele tinha uma “grandeza extasiante”. Segundo Danto, “ele não tocava alguma coisa sem com isso também tocar as fronteiras do pensamento, pelo menos do pensamento sobre arte” (2001, p. 100). Ainda, segundo Danto, Warhol contribuiu para a história da arte colocando “a prática artística no nível de uma autoconsciência filosófica jamais atingida”. Danto citará a famosa ideia de Hegel acerca do “Espírito Absoluto” quando arte e filosofia são dois momentos que coincidem. Warhol, o mais debochado e aparentemente superficial dos artistas teria conseguido uma coisa tão pomposa como essa, mas sem pompa alguma. Danto tentará falar da estrutura filosófica da arte de Warhol, mas fará não procurando a narrativa grandiosa da história da arte da qual ela faria parte, e sim, buscando entender o que ele afirma como “pensamento que ela nos trouxe à consciência” (2001, p. 100). Levando a sério Warhol como filósofo,Danto diz que ele “violou todas as condições tidas como necessárias a uma obra de arte mas, ao fazer isso, revelou a essência da arte” (p. 100). É neste sentido que a Pop Art traz uma

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consciência à tona, uma consciência da arte como filosofia. No texto citado encontramos a exposição da lógica do procedimento artístico de Warhol que explica porque esse procedimento é filosófico. A ambiguidade é a questão de Warhol enquanto é explorada por Danto. Trata-se da ambiguidade entre arte e realidade. Os exemplos de Danto são o filme Empire ea inevitável Brillo Box. O filme é por demais conhecido: o edifício Empire State é filmado por horas sem que nada aconteça. Para explicar a ambiguidade como “método” de Warhol,Danto usa um exemplo imaginário de um filme feito a partir do livro “Ou/ou” de Kierkegaard no qual aparece apenas a página de rosto do livro. A ambiguidade que interessa a Danto é aquela que se verifica no livro enquanto “objeto físico” e enquanto “objeto significante”. Warhol explica que “essa ambiguidade transfere-se imediatamente para o conceito de alguma coisa ser baseada em algo” (2001, p. 101). Lembremos da questão posta um pouco antes, o fato de Danto ser baseado em Warhol. Então, Danto aproveita para explicar isso com um aforismo de Warhol: “o que os filósofos tem a dizer sobre a realidade é normalmente tão desapontador quanto uma vitrine em que se lê um letreiro dizendo ‘Passa-se roupas aqui’. Se você entrasse com as suas roupas para ser passadas ali se sentiria um idiota, porque era apenas um letreiro que estava sendo comercializado”.

A coisa e a mensagem que ela manda demonstram uma ambiguidade que é ao mesmo tempo uma brincadeira sobre a qual as obras de Warhol se erigem. O exemplo do filme feito a partir do livro “Ou, ou” nos faz saber que Danto explora o método de Warhol inserindo-o no seu jogo com a filosofia. Também ele quer brincar. Também ele é capaz de inventar. Afinal ele é um filósofo que só pode sê-lo enquanto é um efeito dos procedimentos filosóficos de Warhol. Ele é um filósofo que leva a sério o trabalho filosófico “como artista”. Na sequência Danto assume a brincadeira dando o exemplo de um homem que fosse a um mercado buscar uma caixa de sabão Brillo e tivesse entrado numa galeria onde a obra estivesse exposta valendo uma fortuna, e de outro homem que fosse a uma galeria procurando as caixas de Brillo sendo que, na verdade, teria entrado no mercado onde elas não valiam muito. A ausência de diferença perceptual poderia desapontar os visitantes da Galeria Stableonde a obra foi exposta em 1964 em seus propósitos de verem uma obra de arte e encontrarem uma mera coisa, embora a obra de arte não fosse uma mera coisa no sentido da mera coisa. Danto comenta esse problema para levantar a questão de que se a arte enviava ao sublime e extraordinário, Warhol faz 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


a arte remeter ao “banal” e ao ordinário encontrando nesse novo modo de ser algo totalmente outro. O mais interessante desse tipo de exemplo é que arte e realidade entram em um jogo que confunde tudo. As Brillo Box “se apropriam de uma indagação filosófica entre arte e realidade, questionando, com efeito, por que, se elas são arte, as caixas de Brillo no supermercado, que não tem nenhuma diferença perceptível delas, não o são” (2001, p. 103). É, para Danto, o critério perceptivo que animou a arte por séculos e séculos o que cai por terra. A brincadeira baseada na ambiguidade põe em cena um outro jeito de pensar a arte e a vida. A meu ver, essa brincadeira por ambiguidade acontece já no primeiro livro de Danto que leva justamente o título de “A Transfiguração do Lugar-Comum” e que foi publicado em 1981. No prefácio desse livro Danto conta sobre o título do livro. Ele teria copiado o título de um livro escrito por uma “freira de passado duvidoso” que era personagem de um romance de Muriel Spark. O livro escrito por essa freira se chamava justamente “A Transfiguração do Lugar-Comum”. Ele comenta que esse livro que ele queria que se tornasse famoso também fosse uma transfiguração do lugar comum enquanto o próprio livro era um objeto comum que transfigurava o comum. O livro era a Transfiguração que ele almejava. Aquilo que Warhol teria feito com sua obra, Danto queria fazer com seu livro. O próprio livro “A Transfiguração do Lugar-Comum” é ao mesmo tempo que uma brincadeira, um modo de colocar a questão filosófica depois de Warhol. Ele é uma citação do livro de Spark e do livro da freira no livro de Spark. É uma brincadeira com camadas de significação. Mas é também a própria coisa que não é mais a mesma coisa. “A Transfiguração do Lugar-Comum” é como a Brillo Box e como o filme Empire. Ele é, não custa repetir, a forma própria da questão filosófica tal como Danto descobriu em Andy Warhol. Por isso, não apenas o conteúdo complexo, que não há espaço para resumir aqui, mas a própria capa, a superfície, importa tanto para Danto. Contando sobre as capas de seus seríssimos livros anteriores Danto nota como escolheu a capa de “A Transfiguração do Lugar-Comum”, o que a meu ver, deflagra seu procedimento artístico – baseado na brincadeira da ambiguidade - no gesto de transfigurar o lugar comum que é o livro da transfiguração do lugar comum: “pensei em usar a imagem de uma das pinturas de Jim Dine, onde se vê uma gravata listrada pintada acima das palavras ‘Universal Tie’. O título ‘Universal Tie’ nos pareceu deliciosamente ambíguo, aludindo simultaneamente às gravatas que os homens usam no mundo inteiro quando querem estar bem vestidos e a um conceito filosófico – o de causação universal, que liga tudo o que há no mundo em um único sistema. E uma gravata na sobrecapa se prestava a um trocadilho visual. O livro deveria ter muitos exemplos

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tirados da arte contemporânea e um estilo ágil e recheado de piadas. (2005, p. 14)

Ele segue dizendo que queria fazer um livro só com piadas, como teria sido a sugestão de Wittgenstein. Oportuno e eterno, como, segundo Danto, deveria ser a filosofia. Mas ele declara que o livro deveria ter um “duplo enfoque”: “mais filosófico do que a maioria dos livros escritos para leitores não versados em filosofia”e “mais voltado para as preocupações correntes do mundo da arte do que a maioria dos livros escritos para um público de filósofos” (p. 14). Danto conta nesse livro a mesma história sobre o momento de nascimento da Pop Art explicando seu lugar naquele momento histórico. Mas aqui ele explica que não tinha interesse de fazer Pop Art – como artista ele era por demais ligado à visão da pintura dos artistas dos anos 50 – enquanto ao mesmo tempo se interessava demais pela Pop Art. Assim, experimentando também uma certa ambiguidade em relação à arte é que ele escolhe seguir fazendo filosofia. A arte se torna uma espécie de pano de fundo da experiência filosófica de Danto. De fato, ele repete a história toda contada no texto sobre Pop Art e futuros passados (2006B). Mas neste livro seu lugar como artista fica ainda mais claro, não mais como artista visual, ou pintor, mas como escritor, alguém interessado em “uma prosa de qualidade estética”: “se alguém decide tornar-se escritor, é melhor que tenha gosto pelas palavras” (2005, p. 13). E arremata: “não me parece haver nenhuma incompatibilidade entre a verdade filosófica e a habilidade literária”. É por conta desse exercício de liberdade literária enquanto liberdade filosófica que Danto escreverá o seu Transfiguração como um diálogo com personagens que toma como modelo o romance “Jacques, o fatalista” de Diderot.Isso é inusitado em Danto, mas é o seu gesto inaugural como filósofo, o momento em que ele publica seu grande livro. Assim, buscando uma teoria da arte como teoria da representação e percebendo que a arte não era uma representação como qualquer outra Danto chega à conclusão de que a obra de arte é um veículo de representação que “corporifica” seu significado. Eis o que é o livro da Transfiguração. Danto mesmo afirma jamais ter desenvolvido esse conceito de corporificação e aponta para a chave para compreender a corporificação que seria a interpretação como uma tarefa do crítico. No mesmo livro ele falará que a “interpretar uma obra é propor uma teoria sobre o assunto de que ela trata, sobre seu objeto”(2005, p. 183) levando em conta elementos que podem ser identificados no quadro sem ao mesmo tempo projetar na obra de arte alguma coisa que lhe é exterior. Isso nos faz pensar que, aplicando sua própria teoria a ela mesma, a transfiguração é a 50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


própria “coisa” da transfiguração. Interpretá-la é dar-se conta do que ela é. É prestar atenção no que ela nos apresenta. Para concluir, gostaria apenas de levantar ainda um aspecto. Ora, a obra, qualquer obra, nos apresenta alguma coisa. Danto nos apresenta Warhol enquanto o representa. O Andy Warhol de Arthur Danto poderia ser também o Arthur Danto de Andy Warhol. Warhol nos faz pensar na própria teoria de Warhol em seu famoso livro de filosofia chamado “A filosofia de Andy Warhol, de A a B e de volta a A”(2008), começa com um texto de introdução que traz um subtítulo sugestivo: “Como Andy assume seu Warhol”. Creio que podemos usar este subtítulo para pensar “Como Arthur assume seu Danto”. Penso neste caso na relação entre A e B exposta por Warhol, na sua maneira debochada, mas também irônica, e neste sentido ambígua, de dizer uma coisa dizendo outra. De dizer desdizendo. A e B são, neste caso, personagens que explicam bem a ambiguidade e, neste sentido, também a transfiguração enquanto ato por meio do qual uma coisa torna-se outra coisa: o comum não é mais comum, o incomum fica comum, o banal que é deplorável pelos artistas e que seria tarefa da arte revelar torna-se adorável. E adorável teologicamente falando. Isso pode ser visto no texto de Warhol quando o personagem A se explica a B: “eu sou tudo o que meu álbum de recortes diz que eu sou” (p. 23).B é alguém, sabemos pela narrativa de A com que começa o texto. A, segundo ele mesmo, não é ninguém. B ajuda A, segundo A, a matar o tempo. Mas isso tudo o que A diz de si mesmo e de B é só um jeito de Warhol debochar de tudo, de todos os que se levam a sério, debochando de si mesmo. Danto não foi o A nem o B de Warhol, pode parecer que ele se levou mais a sério do que Warhol, mas por isso mesmo é que não se levou tão a sério. O modo como Danto levou a sério Warhol na contramão de tantos, sobretudo se levamos a sério o que a filosofia institucional e acadêmica pensa de si mesma e o lugar subalterno em que põe a estética, então Danto foi o mais debochado dos filósofos. Ele foi o próprio filósofo enquanto Andy Warhol que ele procurou entender. Que possamos a partir dele entendermo-nos a nós mesmos, é uma questão a pensar se quisermos, também nós,construir uma filosofia para o nosso tempo.

REFERÊNCIAS DANTO, Arthur. A Transfiguração do Lugar Comum. Vera Pereira. São Paulo: 51 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Cosacnaify, 2005. DANTO, Arthur. Andy Warhol. Trad. Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2012. DANTO, Arthur. O filósofo como Andy Warhol. Originalmente publicado em Philosophizing Art. SelectedEssays. Berkeley: UniversityofCalifornia Press, 2001. P. 61-83. http://www.cap.eca.usp.br/ars4/danto.pdf pesquisado em 29/04/2014. DANTO, Arthur. O Mundo da Arte. In Artefilosofia. Ouro Preto. N1. P. 13-25. Julho 2006 A http://www.raf.ifac.ufop.br/pdf/artefilosofia_01/artefilosofia _01_01_mundo_arte_arthur_danto.pdf Pesquisado em 30/04/2014. DANTO, Arthur.Pop Art e Futuros Passados. In Após o Fim da Arte. A Arte Contemporânea e os Limites da História. Trad. Saulo Krieger. São Paulo: EDUSP, Odysseus, 2006 B. FEITOSA, Charles. O que é isto – Filosofia Pop? In Nietzsche e Deleuze. Org. Daniel Lins. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001. P. 95-104. FEITOSA, Charles. Explicando a Filosofia com arte. Rio de janeiro: Ediouro, 2004. WARHOL, Andy. A filosofia de Andy Warhol. De A a B e de volta a A.Trad. José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008.

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O FIM DA ESTÉTICA – DADAÍSMO E ARTE POP Susana de Castro

RESUMO Qual a relação entre arte e gosto popular? A obra de Danto nos mostra como a arte pop revolucionou a arte ao aproximar o objeto de arte dos objetos comuns. Neste trabalho são feitas as relações entre o dadaísmo e a arte pop mostrando-se as principais características dos dois movimentos. Palavras chaves: arte pop. Andy Warhol, readymades

ABSTRACT What is the relationship between art and popular taste? Danto's work shows us how pop art revolutionized the art when approached the art objects to the common objects. This work make relations between Dadaism and pop art, making clear the main features of the two movements. Key-words: pop art, Andy Warhol, readymades

Segundo Arthur Danto (2006, p. 45), os readymades do dadaísta Marcel Duchamp representaram uma profunda desconexão entre arte e estética. Marcam o início do fim da era estética. Fim este que só se completaria cinquenta anos depois, com as caixas de Brillo Box do artista pop Andy Warhol. Para os dadaístas, de maneira geral, a ideia de uma arte pura, voltada para a apresentação e contemplação do belo, não fazia mais sentido, face os horrores da Primeira Grande Guerra (1914-1918). Como continuar a dedicar-se a retratar o belo, captar o efêmero, expressar os sentimentos, quando as potências europeias levavam para o front de batalha 65 milhões de soldados, dos quais 20 milhões não sairiam vivos da guerra? A Guerra pôs em questão o compromisso ético do artista de continuar a agradar uma sociedade com suas obras, quando a elite que apreciava e comprava suas obras era a mesma responsável pela morte de milhares de pessoas. Não poderia haver desconexão entre arte e sociedade. Neste momento de caos moral, não haveria mais espaço para arte. O máximo que se poderia fazer, seria criar peças fortuitas, produzidas ao acaso, e feitas para terem vida curta e não para mofarem nos museus. É com este espírito rebelde e irreverente que Marcel Duchamp cria, entre 1913 e 1915, seus readymades. Peças criadas a partir de objetos comuns do cotidiano às quais Duchamp atribuía um novo sentindo ou sentido algum. Duchamp põe em xeque a imagem do artista romântico

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inspirado que cria a partir da sua própria imaginação, em meio à solidão e ao sofrimento. A arte podia ser feita com qualquer coisa desde que expressasse o olhar crítico do artista. As obras de Duchamp eram feitas a partir de produtos manufaturados. O que os transformava em obra de arte, era apenas uma ideia, o conceito introduzido pelo artista na obra. A partir do momento em que ele escolhe o produto entre tantos outros, dá-lhe um nome, ele deixou de ser um exemplar, entre vários do mesmo tipo, para tornar-se outra coisa. Ao deslocar os produtos manufaturados de seu espaço original e inverter sua disposição, como nas obras Fonte e Roda, Duchamp impregna de ironia os símbolos do avanço da civilização ocidental.

Roda (1913)

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Fonte (1917)

Da mesma forma como Duchamp com seus readymades dialogava criticamente com a sociedade belicista de sua época, os artistas pop da segunda metade do século XX insistiam que a arte deveria dialogar com a cultura de massa contemporânea. Os artistas pop, chamados, por alguns, de neodadas ou neorrealistas, dialogavam em suas obras de maneira irônica com a sociedade de consumo que surgia após a Segunda Guerra Mundial. O contraste entre o racionamento e a escassez do período entre as duas grandes guerras, e durante as guerras, e a abundância do pós-guerra, a intensificação da presença dos meios de comunicação de massa, como o cinema, a televisão e as revistas de grande circulação, na vida do cidadão comum, a invasão maciça da propaganda como mecanismo de criação de desejo de consumo, entre outras coisas, modificaram profundamente a sociedade americana e inglesa, locais de origem da arte pop1. A obra de Eduardo Paolozzi, É um fato psicológico que o prazer melhora a sua disposição, de 1948, marca o começo dessa nossa sensibilidade estética.

1

David McCarthy (2004) situa o trabalho dos ingleses ligados ao coletivo The independent group, como Richard Hamilton, Eduardo Paolozzi, Peter Black, entre outros, como os precurssores do movimento na Inglaterra na década de 50. 55 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Eduardo Paolozzi, É um fato psicológico que o prazer melhora a sua disposição (1948)

Antenados com as suas sociedades e impregnados pelas imagens de seus produtos, como eletrodomésticos, comida enlatada, revistas em quadrinhos, filmes, fotografias, os artistas não podiam deixar de retratar em suas obras esse ‘novo’ espírito, hedonista, urbano. Mas com esta aproximação entre propaganda, consumo, vida urbana e arte, os artistas pop amplificaram a concepção dadaísta de que a arte não poderia estar separada da vida. De um lado, compartilhavam como o dadaísmo da desmistificação do artista. Este não era mais considerado como alguém especial que estaria em contato com as fontes únicas do ser. Ao contrário, porque se apropriavam de imagens veiculadas nos meios de comunicação de massa, os artistas pop questionavam a ideia da manipulação única dos materiais na obra. A obra de Roy Lichtenstein, Pincelada (1965) é uma paródia dessa concepção romântica da obra de arte como resultado exclusivo da ação do artista.

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Roy Lichtenstein,Pincelada (1965)

O movimento artístico que antecedeu o nascimento do pop da década de sessenta nos EUA, foi o expressionismo abstrato, representado, entre outros, por Jackson Pollock. As obras destes artistas, além de abstratas, eram marcadas por um estilo chamado de gestual, pois nelas se podia perceber a marca da ação da pincelada do artista. Nelas a presença do artista ficava em primeiro plano, sua marca era inconfundível.

Jackson Pollock, Convergence, 1952

Um outro aspecto que distinguia a arte pop do expressionismo abstrato era o uso de técnicas de reprodução da imagem, como a serigrafia, o que tornavam a obra ainda menos ‘original’. Essa técnica foi utilizada por Andy Warhol e Roy Lichtenstein, entre outros. Os artistas pop utilizavam-se de fotos de revistas, imagens de histórias em quadrinhos, fotografias de artistas famosos, e com essa reprodução de algo já existente, criavam ao mesmo tempo um reconhecimento e um estranhamento, pois as imagens estavam deslocadas de seu local original. A imagem original, saturada pela sua exposição em massa, era facilmente reconhecida pelo apreciador da obra. Esse 57 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


reconhecimento imediato servia como um veículo de aproximação direta do espectador com a obra. Por outro lado, a repetição da imagem da mídia na obra de arte e o seu reconhecimento provocavam o efeito de‘espelho’. Aqueles eram produtos e imagens do tempo presente.

Ainda que, em larga medida, a arte pop possa não ter tido o mesmo espírito não conformista e anti-burguês do dadaísmo, pois não questionava diretamente a transformação da sociedade em uma sociedade do lazer, e dos cidadãos em consumidores, por outro lado, ao aproximar suas obras da sensibilidade da época, sensibilidade esta marcada pela ‘estética do descartável’, os artistas pop seguiam a ‘filosofia’ de arte dadaísta, na medida em que quebravam a separação entre gosto popular e gosto refinado, entra arte popular e arte refinada. Diferente do expressionismo abstrato, gestual, não realista, que convidava seus apreciadores a uma experiência quase religiosa com a arte, os artistas pop trouxeram a arte da rua, de massa para dentro da esfera exclusiva das belas artes. Em várias de suas obras, Arthur C. Danto reitera a importância dos quadros e esculturas de Andy Warhol para a filosofia da arte. Desde Platão, perguntava-se “o que é arte?”, desde Warhol, a pergunta da filosofia da arte é “o que faz com que dois objetos indiscerníveis do ponto de vista material e ótico possam, no entanto, ser diferentes? Um ser arte e o outro não?”. Somente com essa segunda formulação, continua Danto, podemos fazer verdadeiramente filosofia da arte. O marco referencial para essa mudança é a exposição em 1964 na Galeria Stable em Nova Iorque das caixas de Brillo 58 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Box de Warhol. As caixas empilhadas com a logomarca da esponja Brillo como se estivessem no armazém do supermercado à espera de serem abertas e seus produtos colocados nas prateleiras, não se diferenciavam em nada das caixas originais de empacotamento, a não ser pelo material, de madeira e não de cartão.

Enquanto o objeto comum serve a finalidades práticas, o objeto de arte está carregado de significado. Interpretá-lo implica recorrer a uma série de ocorrências culturais e biográficas. É nesse sentido que a arte no sentido figurativo e belo morre definitivamente, e o que resta é apenas a arte que se pensa a si mesma e aos símbolos culturais que cercam a época do artista. Essa transformação da arte pela arte pop, sua ruptura com as barreiras entre a arte popular e a as belas artes, refletia uma transformação profunda na sociedade. A pop art representou o rompimento com o espírito do modernismo (Danto, 2009, p. 31; Wyss, 2004, p. 21), que não admitia a mistura de estilos, tendências, motivos e orientações. É evidente que outras correntes e estilos artísticos, como, por exemplo, o cubismo, já operavam com as coisas redundantes do cotidiano, como bule de café, garrafas, instrumentos musicais. Também o dadaísmo questionava propositadamente o bom-gosto com peças provocativas e efêmeras. Porém, tanto o cubismo, quanto o dadaísmo representam movimentos de vanguardas. Seus representantes consideravam-se os eleitos da arte, aqueles que traçariam o caminho mais verdadeiro das artes do futuro. Ainda que possamos dizer que a pintura pop foi precursora de um novo caminho nas artes, não seria correto identificar artistas como Andy Warhol com propostas vanguardistas, pois sua obra é o avesso da ideia do artista como o interlocutor especial com os sentidos mais puros da arte. Sua obra quer propositadamente seguir o gosto popular e suas ideias 59 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


não objetivam projetar na obra uma subjetividade profunda do artista. No caso de Warhol a técnica da serigrafia utilizada em muitas de suas obras lhe permitiu imprimir justamente o sentimento de alheamento e indiferença que as aproximam de uma obra industrial, produzida e reproduzida mecanicamente, quase sem a intervenção direta da mão direta do artista. Como Warhol disse algumas vezes, sua vontade era a de aproximar cada vez mais a sua produção artística da industrial e comercial, e transformar-se ele mesmo em uma máquina. Mas ainda que tenha se distanciado do ideal do artista engajado com uma busca muito especial de sentido, podemos dizer que sua obra e sua persona revolucionaram o mundo das artes e da sociedade de tal maneira que ainda que a pintura pop tenha acabado nos anos 60 e cedido lugar para outras correntes, a nossa era ainda é a era de Andy Warhol, pois sua persona perdurou como um ícone que marcou o comportamento da sociedade americana de uma maneira geral (Danto, 2009, p.x, p.4). Ele ampliou bastante o universo dos cultivadores da arte. Ele se tornou conhecido entre pessoas que sabiam pouca coisa sobre arte. De certa maneira ampliou bastante o alcance da arte, retirando-a do domínio exclusivo dos museus. Quando em 1965, o Instituto de Arte Contemporânea da Universidade da Pensilvânia inaugurou uma retrospectiva de sua obra, uma multidão de pelo menos duas mil pessoas apareceu, não para ver a exposição, mas para encontrá-lo pessoalmente. Como os artistas de uma banca de rock famosa, ele e seus amigos tiveram que se refugiar no teto do prédio.

REFERÊNCIAS DANTO, Arthur C. The abuse of beauty. Aesthetics and the Concept of Art. Chicago: Open Court, 2006 (4 reimpressão) -----------------. Andy Warhol. New Haven &Londres: Yale University Press, 2009. ------------------. The Transfiguration of the Commonplace, a philosophy of art. Cambridge, Londres: Harvard University Press, 1981. McCarthy, David. Arte Pop. São Paulo: Cosac Naify, 2004 (2a reimpressão).

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UMA FÁBULA PARA ARTHUR DANTO Fernando Gerheim1 e Fabio Mourilhe2 "Quanto tempo ainda terei de esperar para que meus olhos possam novamente contemplar as maravilhas do cosmos em mudança constante?” (Surfista Prateado)

RESUMO Este artigo explora vetores do pensamento de Arthur Danto com os meios da ficção, tendo por princípio um pensamento por imagens. Questões como a definição da arte são articuladas ao atual contexto da arte contemporânea, investigando narrativas não hegemônicas a partir do desmonte das ideias de moderno/primitivo, puro/híbrido, central/periférico. Palavras-chave: arte contemporânea, Arthur Danto, híbrido/puro

ABSTRACT: This article explores vectors of Arthur Danto’s thought through fiction, with means of thinking through images. Issues such as the definition of art are articulated with current context of contemporary art, investigating non-hegemonic narratives from the dismantling of ideas of modern / primitive, pure / hybrid, center / periphery. Key words: Arthur Danto, contemporary art, hybrid/pure

Como se sabe, a teoria da arte moderna narra a passagem da forma para o signo e da mimeses para a arte abstrata, no início do século XX.3 Um dos fenômenos mais interessantes decorrentes dessa ruptura, ocorrido pouco depois, foi a expansão dadaísta da experiência estética para a não-arte. A consequência da antiarte foi que o mundo hoje está cheio de pós-dadaístas flanando pelas ruas como estetas do acaso. Apesar do comportamento antissocial, eles não causam escândalo. Parecem não querer nada além de contemplar o espontâneo lirismo de manchas de mofo nas paredes, frutas fantasmas 1

Fernando Gerheim é professor e pesquisador da Escola de Comunicação da UFRJ, professor permanente no Programa de Pós-Graduação de Artes da Cena e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ. Doutor em Literatura Comparada (UERJ) e autor de Signofobia (2012) e Linguagens Inventadas – palavra imagem objeto: formas de contágio (2008). 2 Fabio Mourilhe é doutor em filosofia (UFRJ), pesquisador, autor de diversos livros e organizador dos Colóquios Filosofia e Quadrinhos. Foi professor temporário no IFCS/UFRJ em 2012 e realizou estágio de doutoramento sanduíche no Dorothy F. Schmidt College of Arts and Letters na FAU em Boca Raton, EUA, em 2013 com Richard Shusterman. 3 Ver “A crise da representação”, in: Arte e crítica de arte. Giulio Carlo Argan. Editorial Estapa, Lisboa, 1988. 61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


em sombras de árvores, rastros de freadas de pneus como citações no texto da realidade, a casual linha branca de algum líquido derramado por acidente sobre o piche preto do asfalto como uma grafia cursiva primitiva. Esses dândis anacrônicos, por isso contemporâneos, vagam imersos na fruição de não-obras, tirando valor de eternidade do efêmero, sujo e aleatório. A percepção sensível para eles é uma abertura ao cômputo total em formação de sentidos livres. A capacidade de submeter contextos fortuitos a uma redução fenomenológica leva os seus felizes praticantes a uma époche da qual retornam transformados. Pela dispersão, formam um antimovimento. Nessa operação, todo praticante é desautorizado. A origem não ocidental de Kwame4 fez com que fossem sobressaltados, além do caráter fenomenológico, os de crítica social-institucional da arte e operação discursiva. Contemplativo diante da não-obra, Kwame obstrui a passagem. Ele não quer asilo na multidão. É apenas mais um que celebra em silêncio, na floresta urbana de símbolos, nostálgico e inconveniente, o que nada além do seu olhar afirma. Mas seu gesto foi compreendido erroneamente como a deriva urbana de um artista não-ocidental. Foi-lhe imputado o feito de traduzir a crise psicogeográfica situacionista em termos de um modernismo híbrido. O fato é que o alto nível de profissionalismo lhe deu direito autoral sobre sua flânerie em essência intangível. O mesmo rótulo de “arte híbrida” em nome do qual o trabalho de Kwame foi consagrado o mantinha na periferia do curso unificado da arte. Apesar de ser o elogio volátil da incerteza, o artista assinou uma modalidade de percepção, uma maneira de olhar. Pessoas citavam seu nome ao apontar incidentes estéticos similares nas ruas. Era um tipo de experiência artística coletiva. Como previra Duchamp, a arte passara para o lado do receptor, que a tudo, com seu olhar, com sua atitude, poderia tornar estético. Cada artista expandia a arte abocanhando um pedaço a mais do mundo. Os críticos observaram que Kwame não deslocava um objeto industrial produzido em série para o mundo da arte, e sim um evento, único, situado no espaço público, e tal deslocamento era feito para esse mesmo espaço, público e anônimo, consistindo a não-obra apenas no gesto de apontar para esse lugar e essa situação específicos e evanescentes. Essa redução última através de um olhar de tipo especial

4

[Nota do editor] Kwame é um personagem fictício que criamos para falar das ideias de Danto articuladas ao contexto contemporâneo da arte. Decidimos adotar uma forma de reflexão que não excluísse o pensamento por imagens e metáforas, mais próxima do ensaio, no sentido de Benjamin, que por isso é citado na bibliografia, embora não o seja no texto. [Texto informado pelos autores.] 62 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


tinha uma técnica extremamente rigorosa, a ponto de identificar Kwame para além dos eventos que ele elegera como não-arte merecedora de fruição estética. O valor estético dependia do olhar, não da obra, mas o olhar só podia revelá-lo em cada obra específica, dependendo dessa materialidade efêmera para existir. Kwame reintegrava arte e vida como, segundo especialistas, nas culturas primitivas. Mas o próprio Kwame não concordava inteiramente com isso. À maneira de um colega que assinava antebraços, barrigas e outras partes do corpo das pessoas que transformava em obras de arte, complementando seu gesto com a firma reconhecida num documento imperecível, Kwame passou a emitir como única prova de seus trabalhos um “certificado de incerteza” constando de uma descrição sucinta, por escrito, da não-obra. Essa estratégia, segundo ele, o protegia do alargamento da arte ao âmbito da cultura e de sua perigosa combinação de excessos de vagueza e norma, nos quais seu próprio trabalho se apoiava. A cena internacional aplaudiu mais uma vez, para assim mantê-lo dentro dos limites do pluralismo controlado. Não sabemos se a resposta ao trabalho seguinte de Kwame é daquele tipo que provoca um comportamento ao mesmo tempo reflexivo e sensível, em que transcendência e imanência dão as mãos e giram numa ciranda, uma servindo de contrapeso para a outra rodopiar veloz, passando o que estava num lado para o outro e vice-versa. Estamos suficientemente familiarizados com o tipo de pensamento da crítica, mas, como diz Danto, “vivemos numa atmosfera em que o paradigma da resposta artística é repentino e sub-racional, como um clarão ofuscante" (Danto, 2001, p. x). Talvez o ritmo que melhor descrevesse a reação à obra de Kwame fosse o espiral e intermitente. O artista preparou um trabalho nos subterrâneos de uma estação de metrô desativada. Espalhou gadgets de última geração pelo chão, nas paredes, pendurados no teto, entre os trilhos. A disposição alternava caos e ordem, mas ambos convergiam para um andaime num recuo da estação. As tecnologias de comunicação haviam sido reprogramadas e emitiam vozes e imagens que pareciam transmissões ao vivo. Um tablet pendurado no teto por um fio bailando na altura dos olhos dizia pelas fendas luminosas de sua tela sensível ao toque: Definir arte como “qualquer coisa” seria para Danto (2003, p. 18) uma resposta pouco abrangente que aponta para uma desilusão. O motivo pelo qual isso ocorre é que, por muito tempo, se assumiu que as obras de arte seriam constituídas por um conjunto restrito e exaltado de objetos, que qualquer um poderia identificar como tal.

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Uma mesma mensagem de texto, como se fosse um SMS, se repetia nas telas de todos os smartphones que, juntos, formavam poliformas de linhas descontínuas para serem vistas-lidas. “Porque, referindo a si mesma, deveria esta ser uma obra de arte, quando outra coisa exatamente igual a essa ... é uma peça do encanamento industrial?” (Danto, 2005, p. 195). Outro texto soava do outro lado da linha daquele outro smartphone jogado aleatoriamente no chão:

Apesar da beleza ser a base dos conflitos entre arte tradicional e de vanguarda, e a beleza, na visão de Danto (2005b, p. 191), continuar sendo a qualidade estética que é um valor fundamental, existe também uma ampla gama de qualidades estéticas, ou predicados estéticos, do belo e do sublime ao feio e nojento.

Além disso, havia calculadoras por toda parte com letras no lugar de cifras.

De dentro dos bueiros, saíam sons de palavras que pareciam um único texto espalhado no espaço: 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


A ideia de que um poema “não deve significar, mas ser” está muito presente nas últimas décadas, mas falta sutileza filosófica à dicotomia que ela impõe. O que ela falha em reconhecer é que o ser da obra de arte é o seu próprio significado. Arte é um tipo de pensamento, e experimentar arte consiste em pensamentos que se envolvem com pensamento. (Danto, 2001, p. x) As grandes obras de arte são aquelas que expressam os pensamentos mais profundos. Tratálas apenas como meros objetos estéticos distancia inteiramente do que faz a arte tão central para as necessidades do espírito humano. (Danto, 2001, p. x)

Outros trabalhos com meios telemáticos pronunciavam vozes que soavam em tons variados, alteradas por efeitos. As frases também apareciam em diversos formatos nas telas de Ipads jogados pelos cantos:

“O coeficiente da arte não é um dado informacional.” “Itinerário

de um texto sonoro-espacial.” “Cuidado com o

ao longo

vão entre o trem e a

“Narrativa nômade por espaços fragmentários.” “O que seria um texto site specific? Escrita espacial.” “Espaços experimentados transitivamente, uma coisa depois da outra.” “A fisicalidade do local é ao mesmo tempo um vetor discursivo, desenraizado, fluido, virtual.” “Padrão de movimento cibernético.” plataforma.”

Na hora do pico de público, Kwame subiu no alto do andaime no recuo da estação. Ele estava nu. Um murmúrio correu pelas galerias subterrâneas. Diante dos convidados emocionados com sua presença literalmente física, Kwame revelou:

Meu trabalho é lido como uma convergência de crítica institucional com política de identidade multicultural. Minha origem determinou esta visão. Agora vou completar o trabalho tirando minha própria máscara de último grito primitivo para outra vez o ocidente recuperar a pureza e expiar a culpa. Eu gostaria que o meu trabalho não fosse julgado segundo nenhum critério da história da arte ocidental ou da periferia, da religião ou da secularização, do gueto ou do universal, da magia ou do belo, da pré ou da pós-história. Meu trabalho tampouco é para ser exposto ou performado. Ele não está integrado na minha realidade como expressão genuína da cultura local. Seu contexto é o pós-colonial da globalização. Eu não tenho raiz, apenas rotas. Minha modernidade não é híbrida porque não há modernidade pura. Eu não preciso pedir desculpas a ninguém. Eu me aproveitei do pseudopluralismo para manipular, a meu modo, a exuberância irracional e a dissonância cognitiva da cena e do mercado internacional de arte. Autodenuncio-me sem culpa: meu trabalho está orientado para burlar o controle surdo sobre o processo de globalização. Se não há conceito unificado de arte, eu posso alterar a significação histórica da história da arte. Isso fará ruir o mercado de arte.

O mundo da arte tentou rebaixar Kwame por seu “conteúdo e valor qualitativo incertos”, mas era tarde. Estava realizada a última das utopias. Assim Kwame terminou seu discurso:

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A hipótese de que eu faço arte pode ser considerada verdadeira se e somente se considerarmos que a arte é uma caixa fechada que os envolvidos no processo de comunicação têm na mão. Não se sabe se há algo dentro da caixa. O significado é um núcleo impenetrável, um salto no abismo de ser o seu próprio pressuposto. Tudo o que temos são formas de significar e de fazer arte

Aqui termina a história de como Kwame abalou o curso unificado e os valores de mercado da arte ocidental.

REFERÊNCIAS ARGAN, Giulio Carlo. Arte e crítica da Arte. Lisboa: Editorial Estampa, 1988. BELTING, Hans. Arte híbrida? Um olhar por trás das cenas Globais, Arte & Ensaios, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, ano IX, no. 9, 2002, p. 166. DANTO, Arthur Coleman. Beyond the Brillo Box: The Visual Arts in Post-historical Perspective. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1992. ______________________. The abuse of beauty: aesthetics and the concept of art. Chicago: Open Court, 2003. ___________________. Unnatural Wonders: essays from the gap between art and life. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2005a. ___________________. Symposium: Arthur Danto, The Abuse of Beauty. Embodiment, Art History, Theodicy, and the Abuse of Beauty: A Response to My Critics. In: Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy. Vol. 48, No. 2, 189–200, April 2005b. ___________________. Wake of Art: Criticism, Philosophy, and the Ends of Taste. London: Routledge, 2013. ___________________. The Madonna of the future: essays in a pluralistic art world. Berkeley: University of California Press, 2001. ___________________. A idéia de obra-prima na arte contemporânea, Arte & Ensaios, Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais EBA, UFRJ, ano X, no. 10, 2003, p. 84.

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Tradução

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GENDER AND AESTHETICS - AN INTRODUCTION1 CAPÍTULO 2 - PRAZERES ESTÉTICOS Carolyn Korsmeyer Tradução Oswaldo Carvalho Revisão Inês Araújo Filosofias que desenvolveram ideias sobre as belas artes e um domínio distinto de valor estético no início do período moderno tornaram-se textos fundamentais para a teoria estética contemporânea, e este capítulo analisa algumas das mais influentes. Veremos que na medida em que importou distinções de gênero para os conceitos de beleza, sublimidade, prazer, e a própria estética, estas teorias contribuíram para intensificar a ideia de que ambos, artistas e os melhores juízes críticos de arte, são idealmente masculinos. Mais adiante, no Capítulo 3, também veremos que todos esses fatores tiveram uma importância considerável para a prática de mulheres artistas, porque dentro dos discursos relativamente abstratos de estética filosófica existem redes de conceitos que descrevem e prescrevem os limites de como as mulheres devem agir, como devem pensar e sentir, e as qualidades que elas devem cultivar na arte e na vida. Em outras palavras, existe uma oscilação entre a dimensão abstrata do discurso e suas implicações e, às vezes, imediatamente em ramificações práticas. Vamos começar com algumas informações gerais sobre o ambiente filosófico em que os modernos conceitos centrais em estética foram articulados.

A Estética "Estética" é um termo cunhado pelos filósofos para designar um tipo de experiência para a qual não havia termo vernacular adequado2. Quando o termo "estética" foi utilizado pela primeira vez na filosofia alemã, no século XVIII, ele

se

referia ao que era considerado como um nível de cognição que se recebe da experiência sensorial imediata antes da abstração intelectual que organiza o conhecimento geral. Mas logo foi revisto para referir de forma mais ampla à visão particular que uma forte 1

Nova Iorque e Londres: Routledge, 2004. Alexander Baumgarten introduziu o termo em suas Reflexões Sobre a Poesia [1735], trad. Karl Aschenbrenner e William B. Holther (impresso em Berkeley e Los Angeles: Universidade da Califórnia, 1954). "Estética" vem de uma raiz grega referindo-se a percepção sensorial. O termo entrou para a língua inglesa no início do século XIX. 68 2

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experiência de beleza transmite. O imediatismo, singularidade e intimidade de ambos, experiência sensorial e beleza, indicam mais uma intuição particular do conhecimento geral. Como as teorias foram formuladas para explicar a ideia de um domínio especial de prazer estético, o termo eventualmente tornou-se (no século XIX), o rótulo de uma área específica do estudo filosófico: a estética. Esta coincidência de denominação e desenvolvimento da teoria levou alguns estudiosos a declarar que a estética é originária do século XVIII, o que seria um exagero. No entanto, este período testemunhou profundas discussões do prazer e dos objetos de prazer que fundamentaram muitas das abordagens modernas para a apreciação crítica e para a arte. O papel central do prazer na teoria estética é facilmente compreensível se se examina o termo clássico da aprovação estética: beleza. O que é a beleza? Quando alguém chama um objeto de bonito, ao que se refere? Isto sempre coloca uma espécie de quebra-cabeça, porque os objetos de beleza são tão diversos que é difícil de localizar uma única qualidade que eles compartilhem. Um poema é bonito, um cisne é bonito, assim como uma música, um gesto, uma pessoa. Alguns filósofos, com destaque para Platão, têm defendido que "beleza" nomeia a qualidade possuída por todos esses objetos e em virtude da qual eles são belos3. De acordo com tal análise esta qualidade, embora misteriosa e difícil de identificar com precisão, é objetiva, o que significa que ele reside no próprio objeto e não é dependente da resposta de um observador para a sua existência. Outros filósofos têm sido mais céticos sobre a presença de uma qualidade objetiva em coisas bonitas, presumindo que o que compartilham não é uma propriedade específica, mas a capacidade de evocar uma resposta em um sujeito — a pessoa que os achar bonitos. Por uma série de razões, esta última abordagem, mais "subjetiva" da beleza ganhou impulso no final do século XVII e persistiu como um tema de debate intenso durante todo o século XVIII. O catalisador geral disso foi a ascensão do empirismo, uma filosofia que defende que todas as nossas ideias são, em última análise, originadas na experiência sensorial. Como não há nenhuma qualidade sensível simples de beleza, reivindicações empiristas, este valor é mais bem entendido como uma ideia composta a partir da percepção de várias qualidades sensíveis dos objetos mais a sensação de prazer4. Por exemplo, encontrar um belo pôr-do-sol envolve perceber sua vermelhidão

3

(2) Discussão mais prolongada de Platão de beleza ocorre no Simpósio, especialmente o discurso de Diotima discutido no Capítulo 1. (N.T. vide página 20.) 4 John Locke, por exemplo, Ensaio sobre o Entendimento Humano [1690] (impresso em Freeport, NY: 69 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


intensa, os feixes que irradiam do sol em um horizonte escuro, e assim por diante, juntamente com a sensação de prazer que eles despertam. Não há nenhuma razão empírica ou científica para pensar que "belo" é o nome de uma qualidade de tais objetos eles mesmos; é um efeito subjetivo que envolve o despertar do sentimento. A ênfase no prazer levanta alguns problemas, porque o prazer parece ser fundamental para respostas individuais, mesmo idiossincráticas, mas a beleza parece ser (38) mais que uma questão de capricho puramente subjetivo. Além disso, era bastante aceito no início do período moderno que o prazer acontece quando algum desejo é satisfeito, e que os desejos tendem a ser egoístas e autointeressados. Genericamente falando, eles sustentam e promovem a própria situação pessoal, seja física ou social. O exemplo mais simples de prazer por este modelo seria o prazer corporal de comer; comer é agradável quando se está com fome e o desejo de comer é agudo. Ainda mais pertinente para apreciação de gênero é a aptidão do desejo sexual para este modelo: o prazer vem quando o desejo é despertado, e então satisfeito. Não só a beleza é pressuposta na ligação de prazer e desejo, mas também qualidades de valor tais como bondade e virtude morais, pois elas também envolvem algum tipo de resposta de prazer ao invés de referência a qualidades objetivas tais como bondade. Enquanto alguns filósofos (notadamente Thomas Hobbes) endossaram a ideia de que a atividade humana é alimentada por impulsos egocêntricos, e que os valores qualitativos indicam a satisfação direta ou indireta de desejos egoístas, muitos consideram isso como uma descrição perigosa e imprecisa da atividade e do caráter humanos. Eles se esforçaram para fornecer critérios comuns para respostas ao prazer que delimitam o egoísmo idiossincrático do desejo pessoal. Na estética, esta tarefa consiste em estabelecer um "padrão de gosto"5. Embora houvesse muitas teorias diferentes dirigidas a essa questão, a maioria compartilhou uma tendência a separar prazer de um tipo estético de outros tipos de avaliações, tanto as sensuais, as práticas e até mesmo as morais 6. (Como vimos no último capítulo, a associação de beleza com virtude manteve-se forte, e qualidades morais foram as últimas entre outros valores a se separarem da estética.) O termo "gosto" é central nos debates sobre a resposta estética à arte e para a

Livros para Bibliotecas, 1969) Livro 2, Capítulo 12, Seção 5: 281. 5 Peter Kivy, "Estudos Recentes e a Tradição Britânica: Uma Lógica do Gosto – Os Primeiros Cinquenta Anos" in George Dickie e R.J. Sclafani (eds), Estética: Uma Antologia Critica (impresso em Nova York: St. Martin, 1977): 626-42. 6 Alguns realizaram uma busca conjunta de fundamentos estéticos e morais, tais como Francis Hutcheson, Uma Investigação Sobre a Origem de Nossas Ideias de Beleza e Virtude (1725). 70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


natureza. O sentido literal, gustativo de gosto nunca foi considerado um "senso estético", isto é, um sentimento que proporcione prazeres estéticos ou que tome como seu objeto uma obra de arte. (As razões para essa exclusão, as quais estão cheias de significado de gênero, são exploradas no Capítulo 4.) No entanto, a linguagem do gosto fornece sim metáfora chave para o entendimento da apreensão e apreciação estéticas. Várias características do sentido gustativo são deixadas de lado. A ideia de uma região distinta de experiência estética tem origem no reconhecimento de que há encontros imediatos, singulares, que produzem visão de si e prazer. O sentido do paladar também requer experiência íntima, imediata; e mais, gosto raramente ocorre sem um componente de prazer-desprazer para a sensação. Além disso, como na apreciação da poesia, música ou outras artes, pode-se desenvolver o (gosto do) paladar para que as preferências alimentares tornem-se mais refinadas e sofisticadas (39) e se tenha prazer na sutileza e complexidade do sabor. Estas estão entre as características do sentido gustativo que combinam com seu uso em contextos estéticos. Gosto também é inegavelmente "subjetivo", tanto que é isso que se quer dizer com a expressão, “gosto não se discute." Esta máxima indica a tendência a confundir uma experiência subjetiva com aquela que também é relativa a indivíduos diferentes, isto é, aquele que não compartilha padrões de adequação ou precisão. O chamado problema de gosto que ocupou escritores no século XVIII foi a forma de reconhecer a subjetividade do gosto e ainda manter uma base para padrões de gosto quando se fala de arte. Porque não importa quão central o prazer seja questão na apreciação e julgamento estéticos, uma arte é melhor que a outra, e, portanto, algum gosto é melhor do que o outro gosto. Como isso funciona?

Gosto e beleza A beleza não é a única qualidade discutida nestas teorias, porque a linguagem crítica geralmente se refere mais precisamente à harmonia, ao equilíbrio, à inteligência, e ainda mais exatamente aos descritores de obras de arte individuais. Mas a beleza é o alvo mais geral de aprovação estética, bem como aquela que se manifesta marcada pela complexidade de gênero, e por isso vai ser o centro desta discussão. A análise de beleza vai de mãos dadas com conjecturas sobre a possibilidade de discernir ou sentir a beleza,

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isto é, com bom gosto. Às vezes, os pensadores especulam sobre as qualidades comuns nos objetos de beleza, mas sem recorrer a uma qualidade objetiva, indiscutivelmente identificável como beleza, muitos filósofos tendem a apelar para a natureza humana comum para posicionar um padrão de gosto. Um dos escritores mais famosos que analisaram a natureza humana a fim de compreender preferências de gosto e seus fundamentos foi o empirista David Hume. Em seu ensaio "Do Padrão do Gosto" (1757) Hume foi cauteloso em sua abordagem para a localização de um padrão, pois ao contrário de muitos de seus contemporâneos ele relutou em nomear as propriedades em objetos que causam o prazer do gosto. Que existem tais propriedades parece óbvio, mas absteve-se Hume de identificá-los como fez, por exemplo, Edmund Burke, Francis Hutcheson, ou William Hogarth. Hutcheson argumentou que a beleza é causada pela percepção de uma qualidade de composição que chamou de "uniformidade entre variedade"; Hogarth, um pintor e gravador, bem como um teórico, partiu da "linha da graça", uma curva suave em forma de S de certas proporções matemáticas7. Todos os casos de beleza, seja na natureza, pessoas, ou artefatos, exibem linhas curvas em algum grau, reivindicava Hogarth. (40)

Figura 4 William Hogarth, "A Linha da Graça". Detalhe d´après Placa I, A Análise da Beleza, 1753.)

Como Hume sem dúvida reconheceu, tal objetivo se correlaciona com o sentimento daquilo que hoje chamamos prazer estético (o termo "estética" não foi usado em Inglês até o início do século XIX ) apenas descreve um determinado arco de formas agradáveis e, portanto, tem uso limitado na resolução do problema de gosto. Eles são insuficientes para dar conta de todas as belezas visuais, e muito menos para os prazeres

7

(6) Francis Hutcheson, Um Inquérito Sobre Beleza, Ordem, Harmonia, Design [1725], ed. Peter Kivy (The Hague: Martinus Nijhoff, 1973): 40; William Hogarth, A Análise da Beleza [1753], ed. Ronald Paulson ((impresso em New Haven, CT: Yale University, 1997). 72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


da música ou poesia. Portanto, Hume concentrou-se nas tendências comuns que ele acreditava que foram embutidas na natureza humana para explicar tendências entre pessoas com educação e formação para concordar sobre questões de gosto ao longo do tempo. Ele descreveu em detalhes as qualidades da constituição humana que possibilitam a educação e desenvolvimento de juízos para discernir sobre os objetos de avaliação, incluindo o que ele chamou gosto “delicado" (ou sensível). A teoria de Hume é uma das teorias deste período onde a presença de gênero é bastante sutil e pouco destacada8. Detectamos isso principalmente em observações incidentais que sugerem que ele retrata o modelo de juiz como homem, uma indicação de que ele tenha importado para sua noção de gosto algumas das distorções de gênero já presentes em conceitos da natureza humana. Veremos em breve, com mais detalhes, como o gosto de gênero opera, mas primeiro vamos adicionar às nossas considerações alguma evidência mais explícita da valência do gênero de valores estéticos. Existem teorias em que nós encontramos não só gênero, mas sexo abertamente em cena na análise de beleza, incluindo uma que foi publicada no mesmo ano que a de Hume, de Burke Investigação Filosófica sobre aa Origem de Nossas Ideias de Sublime e Beleza (1757). Burke não era o escritor mais influente no florescente campo da estética, um laurel que deve ir (como outros tantos) para Kant. Mas há algo a ser dito em favor de nem sempre discutir a filosofia moderna em termos de Kant, e Burke tem outra vantagem: a base do gênero para a beleza não está nem um pouco escondida em sua teoria. Na verdade, ele localiza o gatilho causal para a beleza numa origem erótica. (41)

Burke sobre a beleza Em contraste com Hume, que se concentra quase que exclusivamente sobre a natureza humana, Burke passa muito tempo examinando os objetos de gosto, analisando a raiz que desencadeia o prazer da beleza. Grande parte de sua Investigação é dedicada 8

(7) Hume é um pouco incomum nisso, ele não se baseia principalmente na razão, uma posição que algumas feministas entenderam apropriada. Veja Anne Jaap Jacobson (ed.), As Interpretações Feministas de David Hume ((impresso em University Park, PA: Pennsylvania State University, 2000). Para gênero em "Do Padrão do Gosto", veja Carolyn Korsmeyer, "Conceitos de Gênero e Padrão de Gosto de Hume" in Peggy Zeglin Brand e Carolyn Korsmeyer (eds), Feminismo e Tradição em Estética ((impresso em University Park, PA: Universidade do Estado da Pensilvânia, 1995): 49-65; Marcia Lind, "Índios, Selvagens, Camponeses e Mulheres: A Estética de Hume" in Bat-Ami Bar On (ed.), Engendrando o Moderno: Leituras Críticas Feministas na Filosofia Ocidental Moderna ((impresso em Albany: State University of New York, 1994): 51-67. 73 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


a descobrir quais as características do mundo que afetam o corpo e a mente de maneiras regulares e previsíveis, excitando as paixões e os seus prazeres e dores decorrentes. Ele compartilha com outros escritores de sua época a presunção de que respostas afetivas são semelhantes entre as pessoas e as diferenças são relativamente desvios menores de uma norma. "Existe em todos os homens uma lembrança suficiente das causas naturais originais de prazer, para capacitá-los para trazer todas as coisas oferecidas para os seus sentidos para esse padrão, e para regular seus sentimentos e opiniões por ele"9. De acordo com Burke, respostas afetivas básicas são praticamente reações automáticas a estímulos externos. Como muitos de seus contemporâneos, Burke divide a maior parte das respostas estéticas em dois tipos: o belo e o sublime. (Vamos aprofundar sobre o sublime no Capítulo 6; aqui ele é apresentado como um ponto de comparação com a beleza). Beleza é uma espécie de prazer; a resposta mais difícil do sublime é realmente fundada na dor, especialmente a profunda dor emocional de terror que, sob certas condições, pode ser convertida em "prazer". Estas respostas podem ser classificadas ainda de acordo com sua preocupação com a sociedade ou com a autopreservação. Sociedade é o reino da beleza e das preocupações com a vida e a saúde; a autopreservação (ou ameaças à autopreservação) fornece o reino do sublime. A taxonomia continua com a subdivisão da "sociedade" em sociedade entre os sexos e sociedade em geral. As conotações heteroeróticas implícitas desde o início emergem explicitamente na discussão das relações entre os sexos, onde Burke encontra a fonte fundamental de beleza. Animais, Burke afirma, experimentam unicamente a paixão da luxúria. Mas o homem mistura isso com qualidades sociais, "que direcionam e aumentam o apetite que ele tem em comum com todos os outros animais." Qualidades sensíveis determinam o que ele acha bonito10. Esta resposta estética primitiva está abaixo da razão e do controle racional. Algumas coisas, e beleza pessoal é apenas uma em várias (incluindo mímesis), simplesmente agradam por causa da maneira que nós somos feitos sem qualquer intervenção da faculdade de raciocínio, mas apenas a partir de nossa constituição natural, a qual a providência enquadrou de tal (42) modo a encontrar o prazer ou deleite de acordo com a natureza do objeto, em tudo o que diz respeito aos 9

Edmund Burke, Investigação Filosófica sobre a Origem de nossas Ideias do Sublime e do Belo [1757], ed. James T. Boulton (impresso em Notre Dame, IN: University of Notre Dame, 1968): 15. 10 Ibid.: 42. 74 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


propósitos de nosso ser11.

E, como os teóricos desde Platão, Burke acredita que a beleza não desperta apenas prazer, mas amor. Os tipos de objetos que achamos belo, diz Burke, são pequenos, limitados, curvos, suaves, gentis no contorno, e delicadamente coloridos. Isto é verdade para uma flor ou uma forma abstrata ou um corpo humano. Por outro lado, os objetos sublimes são ásperos, irregulares, sem limites, poderosos, temíveis e escuros; eles ameaçam a vida mais que sugerem a sua perpetuação. As características gerais, abstratas de qualquer objeto belo são extrapoladas a partir da beleza do corpo feminino. Burke é eloquente quanto a essa beleza, quando manifestada no pescoço de uma mulher e seios: "A suavidade; a leveza; o volume fácil e insensível, a variedade de superfície, que nunca é para o menor espaço a mesma; o labirinto enganoso, através do qual o olho instável desliza vertiginosamente..."12 Como se para esfriar seu ardor, bem como sua prosa, ele invoca a linha formal de graça de Hogarth como uma confirmação, mas isso pode ser lido igualmente bem como implicando gênero na própria linha serpentina matemática. A conexão de prazer estético com o desejo erótico e a óbvia base do gênero da apresentação de Burke de beleza (para não mencionar o seu presumível viés racial e cultural, pois ele exclui pele escura como belo) é suficientemente óbvia que a crítica feminista está, talvez, quase fora de questão. Mas a sua teoria é tão central, um exemplar da estética moderna, que também podemos vê-lo como um paradigma de formas de pensar que aparecem por todo o campo em formas mais sutis, em que atitudes masculinistas e eurocêntricas estão mais encobertas. Tal tem sido o argumento daqueles que afirmam que mesmo a beleza pura, desinteressada de Kant deve ser entendida como um véu para a fonte heteroerótica operando no subsolo. A análise de Burke também indica por que a teoria feminista tem frequentemente uma relação conflituosa com o conceito de beleza, ou seja, por causa da tendência a concentrar-se na objetivação da aparência das mulheres13. 11

Ibid.: 49. Veja também 92–107. Ibid.: 115. 13 Veja Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo [1949], trad. H. M. Parshley (New York: Vintage Books, 1989): 729–30. Para a crítica da rejeição do belo em ambos, feminismo e modernismo, veja Wendy Steiner, Venus no Exílio: A Rejeição do Belo na Arte do século XX (impresso em New York: The Free Press, 2001). Para beleza das pessoas e os valores do feminismo, veja Peg Zeglin Brand (ed.), Beleza Importa (impresso em Bloomington: Indiana University, 2000); Diana Tietjens Meyers, O Gênero no Espelho: Imaginário Cultural e Agencia de Mulheres (impresso em New York: Oxford University, 2002). 12

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Se todas as teorias estéticas se assemelhavam à de Burke, então haveria pouca controvérsia sobre a valência do gênero do valor estético básico de beleza. Mas teorias diferem consideravelmente umas das outras, mesmo quando elas são produto da mesma época cultural e, em muitas das possibilidades eróticas para o prazer, foram efetivamente excluídas da categoria de genuínas respostas estéticas. São estes os progenitores mais influentes dos ideais de contemplação estética que foram amplamente defendidas no final do século XIX e (43) início do século XX. Indiscutivelmente, o teórico mais influente do Iluminismo do século XVIII foi Emmanuel Kant.

Kant sobre o juízo de gosto Na realidade, Kant também especulou que a origem do prazer estético estava na atração erótica, mas que esta fonte original é descartada logo no início da história humana à medida que a civilização desenvolve uma estética mais sofisticada e distanciada dos prazeres. Como se antecipando a Freud, Kant observa que a folha de figueira era uma manifestação da razão em que começou o controle dos sentidos que tornou o puro prazer estético possível14. Esta observação caprichosa ocorre em um ensaio não considerado entre os mais significativos de Kant, e a análise de beleza em seu (ensaio) mais importante Crítica da Razão (1790) é consideravelmente mais neutra. Kant teve especial influência sobre a adoção de um qualificador que veio para descrever o prazer estético, desinteressado. Ao contrário de Hume, que era principalmente preocupado com padrões de gosto na literatura e na arte, Kant entrou na discussão de prazer estético com objetos da natureza e formas abstratas como seus objetos paradigmáticos de beleza, especificamente do que chamou de beleza "absoluta", que é o objeto do julgamento "puro" de gosto. Sua abordagem para a localização de um padrão para o gosto era de desqualificar a partir da experiência puramente estética qualquer prazer que se referisse à satisfação do desejo ou a realização de um objetivo. Como consequência, a antiga ligação entre os valores da beleza e da bondade foi afrouxada consideravelmente, porque sua análise distingue prazeres estéticos de aprovação moral em termos mais fortes do que tinha até então sido pensado. Embora Kant de um modo um tanto opaco chame a beleza de o "símbolo da moralidade", em a 14

Kant, “Princípio Conjectural da História Humana” [1786], trad. Emil L. Fackenheim, in Kant na Hisória, ed. Lewis White Beck (Indianapolis: Hackett, 1963): 57. 76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Crítica do Juízo o prazer que constitui beleza é distinto e sui generis15 (Para o reino dos juízos morais Kant formulou uma lei moral universal rigorosa que anula qualquer impulso para o relativismo subjetivo na ética)16. Além disso, ele explicitamente separou prazer estético dos prazeres dos sentidos, ampliando assim a clivagem (presente desde a antiguidade) entre os prazeres dos sentidos corporais e prazeres estéticos17. Prazeres estéticos de sentido incluem prazeres eróticos, que são claramente o produto da satisfação - real ou imaginária - de desejo sexual. Eles também incluem prazeres gustativos. Gosto propriamente dito por comida e bebida, observou ele, é meramente sensual; esses prazeres são o resultado da satisfação de alguma necessidade física. Mas prazeres estéticos têm nada a ver com o corpo, nem mesmo absolutamente com a (44) satisfação de qualquer interesse pessoal. Juízos estéticos são livres de interesse, ou, para usar o termo atual mais comum, eles são "desinteressados"18. "Desinteressado" não significa que nós não nos importamos nada com eles, mas significa que o nosso prazer não está enraizado na promoção pessoal ou gratificação - na satisfação de um dos nossos desejos. No relato de Kant do puro juízo de gosto, este termo também significa que nenhum conceito do objeto está em uso quando julgamos o belo, ou seja, não o estamos avaliando como um excelente exemplo de seu tipo, mas apreciando sua forma singular, uma vez que estimula a harmonia entre a imaginação e o entendimento19. (Uma razão pela qual a maioria das obras de arte tem beleza "dependente" ou "aderente" mais que beleza "livre" ou "absoluta", de acordo com Kant, é que se deve empregar determinados conceitos na avaliação da arte. Ou seja, devem-se empregar ideias sobre como um objeto, evento ou pessoa deve ser

15

Kant, Crítica do Juízo [1790], trad. Werner Pluhar (Indianapolis: Hackett, 1987) §59. Veja Ted Cohen, “Por que a Beleza é um Símbolo de Moralidade” in Ted Cohen e Paul Guyer (eds), Ensaios sobre a Estética de Kant (impresso em Chicago: University of Chicago, 1982): 221–36; para análise feminista desta reivindicação, veja Jane Kneller, “A Dimensão Estética da Autonomia Kantiana;” Marcia Moen, “Temas Feministas em Lugares Improváveis: Relendo a Crítica do Juízo de Kant;” Kim Hall, “Sensus Communis e Violência: Uma Leitura Feminista da Crítica do Juízo de Kant” todos em Robin May Schott (ed.), Interpretações Feministas de Emmanuel Kant (impresso em University Park, PA: Pennsylvania State University, 1997): 173–89, 213–55, 257–72. 16 Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes [1785] trad. James W.Ellington (Indianapolis: Hackett, 1993). 17 Este ponto está desenvolvido no Capítulo 4. Veja também o Capítulo 2 de Fazendo Sentido do Gosto: Comida e Filosofia, de Carolyn Korsmeyer, (impresso em Ithaca, NY: Cornell University, 1999). Também de Carolyn Korsmeyer, “Percepções, Prazeres, Artes: Consideriando a Estética” in Janet Kourany (ed.), Filosofia na Voz Feminista (impresso em Princeton, NJ: Princeton University, 1998): 145–72. Algumas das ideias presentes nesse capítulo foram primeiramente desenvolvidas nesse ensaio. 18 Kant, Crítica do Juízo: 53. Para a história nestes termos, veja Jerome Stolnitz, “Sobre a Origem do Desinteresse Estético,” Jornal de Estética e Crítica de Arte, Winter, 1961: 131–43. 19 Na terminologia idiossincrática de Kant, o juízo de gosto está baseado na forma sem propósito de um objeto sem conceito algum de propósito. Crítica do Juízo, §11. 77 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


representado). Kant não está meramente estipulando uma diferença entre prazeres "superiores" e "inferiores" quando ele distingue entre os prazeres estéticos e sensuais, embora seja um resultado adicional de sua análise. Em vez disso, seu raciocínio é impulsionado por seu esforço para resolver o problema de gosto. Kant procurou descobrir para a beleza e a sensação de prazer estético razões para uma espécie de universalidade e necessidade paralelas aos fundamentos que ele tinha anteriormente estabelecido para o conhecimento empírico e as diretrizes morais. São suas as mais fortes e mais rigorosas normas de gosto, muito mais fortes do que as de Hume, pois a este último bastava encontrar os princípios gerais que indicam em geral uma tendência a concordar em questões de gosto. Kant queria descobrir os fundamentos para uma verdadeira universalidade da resposta estética. Esta é uma razão pela qual ele exclui prazeres corporais, ele acredita que eles são muito idiossincráticos e pessoais para se chegar a um acordo. Pelo menos até certo ponto a descrição de prazer de Kant como um meio para identificar a qualidade estética parece conformar-se com a experiência familiar. Pode-se reconhecer que o desempenho de alguém em uma peça para piano é mais bonito do que o seu, por exemplo, mesmo se a outra pessoa ganhou um cobiçado prêmio de recital. Se aquela beleza é reconhecida através do prazer, então esta instância de prazer claramente não tem nada a ver com a satisfação de seus desejos. Deixando de lado seu interesse em ganhar o prêmio possibilita o prazer estético da performance do outro concorrente. Eu estou revendo apenas uma pequena parte da teoria de Kant aqui, mas nós podemos ver, mesmo com o que até aqui expusemos que, descartando todos os desejos e interesses pessoais, o que permanece para dar conta dos prazeres estéticos são os elementos da mente que todos nós possuímos. Um prazer subjetivo é tornado universalmente disponível. (45) Se seguirmos com Kant na purificação do prazer estético e dos juízos de gosto, estipulando que eles estão livres de desejo, então pode parecer que o gênero desapareceu deste debate, porque todos os traços das raízes eróticas para a beleza parecem ter sido expurgados. Podemos, portanto nos sentir confiantes que as alegações sobre universalidade da capacidade de juízos de gosto são verdadeiramente neutros quanto ao gênero pelo menos nos termos desta marca de filosofia. Mas, como se pode provavelmente antecipar, o gênero não é tão facilmente deixado para trás. Para resolver 78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


esse problema vamos considerar o conceito de gosto em contexto mais amplo.

Gosto de quem? Padrões ideais para o gosto são personificados numa figura de linguagem comum no século XVIII: o homem de gosto ou homme de goût, termo corrente na França. Pode-se perguntar o quão literal “homem” ou “homme" deveria ser; foi o gosto considerado uma conquista apenas dos homens? Realmente não, pois o gosto foi exaltado e exercido por toda a respeitável sociedade, inclusive nos salões de França que eram recepcionados e supervisionados por mulheres, e se espalhou como um ideal popular com o crescimento e a ascendência social da classe média. Além disso, gosto implica refinamento e desenvolvimento de sensibilidades do homem de bom gosto e supunha-se que poderia suavizar suas arestas e fazer o seu temperamento mais adequado às qualidades "femininas”. O conceito de gosto ou discernimento estético foi, talvez, ainda mais abertamente ajustado de acordo com as diferenças de posição social, de classe e educação do que com o gênero. E, embora os escritores normalmente confiassem as suas observações aos colegas europeus, há também uma presunção implícita e profunda quanto à raça no escopo do termo20. Encontra-se a destituição ocasional do "negro" ou "índio" ou "oriental", como improváveis de participar dos refinamentos dos julgamentos estéticos, embora houvesse também alguma rivalidade mútua entre eles; um antigo escritor britânico criticou o “Gótico" (alemão) pelo seu gosto equivocado em arquitetura21. Por outro lado, embora as mulheres fossem consideradas capazes de desenvolver bom gosto, sem dúvida o modelo do juízo estético ideal, o árbitro de gosto, era implicitamente masculino, porque as mentes e os sentimentos dos homens eram considerados como mais amplamente capazes que os das mulheres. Aqui encontramos mais uma vez a combinação de pressupostos teóricos e as normas sociais que produzem a opinião que os poderes mentais superiores são assimetricamente exercidos em machos e fêmeas. A maior facilidade mental dos homens, supostamente, os torna mais capazes de juízos de gosto em assuntos complicados, de acordo com (46) a tradição filosófica; e 20

David Bindman, Dos Primatas a Apolo: Estética e a Ideia de Raça no século XVIII (Ithaca, NY: Cornell University Press, 2002); Lind, “Índios, Selvagens, Camponeses e Mulheres,”; Adrian M. S. Piper, “Xenofobia e Racionalismo Kantiano” in Schott, Interpretações Feministas, 21–73; Hall, “Sensus Communis e Violência.” 21 Hutcheson, Um Inquérito: 77. 79 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


a suposição com raízes sócias de que a experiência das mulheres é apropriadamente mais estreita do que a dos homens, significa que elas não têm a capacidade suficiente para tornar o seu gosto em temas mais difíceis com a mesma perspicácia que os homens provavelmente têm. A distinção entre o gosto "feminino" por coisas que são bonitas e encantadoras, e um gosto "masculino" pela arte que é mais profundo e difícil, muitas vezes foi observado na literatura deste período. A distinção de Burke entre o pequeno, cheio de curvas, encantos da beleza feminina e as complicadas tendências masculinas para temas exigentes e coisas sublimes reflete o pensamento popular. Como Kant colocou em uma de suas primeiras obras, Observações sobre o Sentimento do Belo e Sublime (1763), o estreito âmbito da beleza caracteriza a sensibilidade de uma mulher, enquanto que um homem deve esforçar-se para a compreensão mais profunda do sublime22. Ambas são capacidades positivas, mas é o último que alcança o âmbito mais profundo e ordenado - esteticamente, artisticamente, epistemologicamente e moralmente. Há outra particularidade na ideia de gosto masculino e feminino que melhor revela a posição inferior deste último. Entre os termos de crítica que eram comumente usados na avaliação de obras de arte, uma das mais infamantes era “afeminado”. Artistas do sexo masculino foram os únicos a quem estes termos negativos foram aplicados, para um trabalho de qualidade similar por uma mulher seria simplesmente ser feminina e, assim, encantadora e inferior. Não há equivalente variação negativa no “masculino” para servir como a contrapartida de ”afeminado" que é um termo pejorativo empregado com suficiente ônus que se percebe o quão ao contrário das mulheres criadores masculinos aparentemente deveriam ser. (Alan Sinfield vai mais longe a ponto de chamar afeminado de uma “construção misógina" que é projetada para patrulhar as fronteiras da masculinidade.)23. Rótulos como "viril" eram termos de

22

Kant, Observações sobre o Sentimento de Belo e Sublime [1763], trad. John. Goldthwaite (impresso em Berkeley and Los Angeles: University of California, 1960): 78–9. Veja Mary Bittner Wiseman, “Beleza Exilada” e Jane Kneller, “Disciplina e Silêncio: Mulheres e Imaginação na Teoria de Gosto de Kant” ambos em Hilde Hein e Carolyn Korsmeyer (eds), Estética na Perspectiva Feminista (impresso em Bloomington: Indiana University, 1993): 169–78 e 179–92; Paul Mattick, Jr., “Belo e Sublime: ‘Totemismo Sexual’ na Constitutição da Arte” in Brand e Korsmeyer, Feminismo e Tradição na Estética: 27–48; Cornelia Klinger, “Os Conceitos de Sublime e de Beleza em Kant e Lyotard” in Schott, Interpretações Feministas: 191–211. Alguns estudiosos rejeitam a exclusão das mulheres da sublimidade e argumentam pelo “feminino sublime.” Veja Capítulos 3 e 6. 23 “Efeminação... é uma construção misógina em que a sexualidade dos homens é policiada pela acusação de deslizarem na razoabilidade própria que supostamente constitui virilidade, na frouxidão e fraqueza convencionalmente atribuídas às mulheres”. Alan Sinfield, Políticas Culturais — Leitura Gay (impresso em Philadelphia: University of Pennsylvania, 1994): 32. Para um estudo mais histórico desses 80 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


louvor e não conotavam masculinidade exagerada. Iremos ver no próximo capítulo como as polaridades entre gosto feminino e masculino deveriam para servir não só para rebaixar as mulheres como delineadoras do gosto, mas também para criticar e truncar as oportunidades das mulheres de participarem nas artes. O conjunto de conceitos que envolvem gosto, padrões e prazer desinteressado tem sido objeto de muita análise crítica nos últimos anos. Partilhados, mesmo universalmente, padrões de gosto foram concebidos no momento da sua formulação para serem fundados na natureza humana comum. Estreitar o foco do prazer estético para uma zona livre de desejo pessoal serviu como uma maneira de se livrar das diferenças entre as pessoas, de modo que os seus prazeres comuns pudessem ser exercidos. A este respeito, a estética do Iluminismo pode ser considerada uma filosofia bastante democrática, pois por definição da natureza humana deve ser a mesma em todos nós. E ainda claramente nem todos foram considerados (47) candidatos a ser árbitro de gosto ou um participante dos mais altos prazeres estéticos. As capacidades comuns existentes na natureza humana precisam ser desenvolvidas e aperfeiçoadas, para poder apreciar os melhores produtos da cultura, e isso requer um grau de boa fortuna, educação e privilégio. Esses atributos felizes nunca foram distribuídos igualmente nas sociedades, e na Europa do século XVIII, apesar da popularidade dos ideais políticos da democracia, havia marcadas discrepâncias de disponibilidade do tipo de educação e mobilidade econômica que foram reconhecidas como fundamentais para o desenvolvimento de gosto refinado. Como alguns críticos apontaram buscar estabelecer normas para a fruição artística pode ser visto como uma tentativa de regular e homogeneizar os prazeres de acordo com um indicador que reflete preconceitos de diferenças de classe, para não mencionar preferências nacionais e raciais 24. Ao promulgar a existência de normas para prazeres subjetivos, as preferências das pessoas que já estavam culturalmente credenciadas, por assim dizer, tornou-se o padrão a ser emulado. Ideias sobre gosto e beleza, não importa o quão assídua a tentativa de universalizar padrões e "purificá-los" de parcialidade e preconceito, parecem inelutavelmente absorver valores sociais dominantes. termos, veja de Sinfield O Século Selvagem: Efeminação, Oscar Wilde, e o Momento Gay (impresso em New York: Columbia University, 1994): Capítulo 2. 24 Paul Mattick, Jr. (ed.), Século XVII Estética e Reconstrução da Aret (impresso em Cambridge: Cambridge University, 1993); Terry Eagleton, A Ideologia da Estética (Cambridge, MA: Blackwell, 1990); Luc Ferry, Homo Estética: A Invenção do Gosto na Era da Democracia, trad. Robert de Loaiza (impresso em Chicago: University of Chicago, 1993); Pierre Bourdieu, Distinção: Uma Crítica Social do Juízo de Gosto, trad. Richard Nice (London: Routledge, 1994 [1979]). 81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Teorias da atitude estética Enquanto o estabelecimento de um fundamento para o gosto universal deve enfrentar as críticas que tais missões impõem ao invés de descobrir padrões, outros aspectos dessas tentativas expandiram a gama de objetos que podem ser considerados de mérito estético. Abordagens pós-kantianas, também chamadas de teorias da “atitude estética”, estenderam a prescrição de Kant pelo prazer desinteressado além das regiões puras para as quais ele divisou, e prescreveram uma atitude a partir da qual somente qualidades estéticas, seja de arte ou natureza, possam ser apreendidas. Teorias da atitude estética recomendam que a melhor maneira para alcançar prazer estético é assumir uma desinteressada e contemplativa instância que serve para limpar a mente de preconceitos e preocupações pessoais, abrindo nossas sensibilidades às qualidades estéticas – formal, expressiva, imaginativa – disponíveis para o espectador, leitor ou ouvinte atentos. Enquanto uma familiaridade educada com as artes fornece um fundo de conhecimento que faz a apreciação sofisticada possível, o imediato pré-requisito para apreciação é a de repouso, a postura distanciada, reflexiva. O filósofo do século XIX, Arthur Schopenhauer, cuja teoria foi precursora das abordagens da atitude estética, foi mais longe a ponto de considerar a contemplação estética como uma fonte rara de alívio das pressões da (48) vontade individual; considerou experiências de beleza capazes de clarear a consciência de existência com todos os seus problemas. Contemplação estética pura remove seu objeto da história e de todas as relações que tem com qualquer coisa fora dela. A experiência estética ideal, de acordo com Schopenhauer, é aquela na qual a consciência mesmo de sua identidade pessoal recua no ato de absorção estética. (Sua afinidade com filosofias indianas e budistas clássicas é evidente nesta idéia.) O desaparecimento da consciência do indivíduo representa uma versão extrema do observador mais genérico e desinteressado que se pode imaginar. Schopenhauer descreve este estado:

Assim, se, por exemplo, eu contemplo uma árvore esteticamente, ou seja, com olhos artísticos, e, então, não a reconheço, mas sim sua Ideia, é imediatamente sem importância se é esta árvore ou seu antepassado que floresceu mil anos atrás, e se o contemplador é um individual, ou qualquer outro em qualquer lugar e em qualquer tempo. 25 25

Arthur Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação [3ª edição 1859], vol. I, trad. E. F. J. Payne (New York: Dover, 1969): 209. 82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Schopenhauer é explícito quanto ao interesse sexual ser uma das atitudes que interrompem a contemplação e invadem a vontade inquieta em uma experiência, por isso para ele, pelo menos, há uma clara diferença entre o prazer estético e os prazeres onde o desejo opera. (A misoginia de Schopenhauer também está em jogo em alguns dos seus comentários. Ele se refere às mulheres como o sexo "antiestético")26. Em termos menos radicais (e menos onerados metafisicamente), esta abordagem do valor estético foi propagada por mais de um século. Para alguns filósofos, a "atitude estética" foi o fator crucial para capacitar a discernir as propriedades únicas e intrínsecas da arte e para separá-las da confusa influência de outros interesses e valores. Em um texto influente de meados do século XX, Jerome Stolnitz afirma que só nos livrando de interesses práticos, sociológicos ou históricos podemos apreciar as coisas - incluindo a arte - por seu valor intrínseco. Ele define a atitude estética como "atenção desinteressada e simpática na contemplação de qualquer objeto de consciência que seja, em seu benefício próprio"27. A atitude recomendada permite a percepção da dificuldade da arte, induzindo a ignorar o desconforto ou a desaprovação moral, a fim de apreciar o que o artista realizou. Deste modo, também reconhece a expectativa de que um artista poderia ter expressado algo único que exige mente e coração abertos para descobrir e apreciar. Esta abordagem pode defender uma zona de experiência, elevando o valor estético a um grau igual ou mesmo mais alto do que os costumes sociais. Em meados do século XIX, por exemplo, (49) Charles Baudelaire começou a escrever poesia (Les Fleurs du Mal), que era bonita mas violava expectativas morais familiares, pressionando a distinção entre normas morais e estéticas. E, como veremos no Capítulo 5, a noção de puro valor estético independente do conteúdo da arte também contribuiu para defesas formalistas de estilos não representacionais quando eles estavam entre as principais inovações polêmicas em pintura e escultura. Em tempos mais recentes vimos transgressões extremas de códigos morais em obras de arte defendidas por causa de sua beleza, beleza que só pode ser apreciada se adotarmos uma atitude estética desinteressada. (Esta foi uma defesa corrente – e bem sucedida –das fotografias homoeróticas polêmicas de 26

Schopenhauer, “A Fraqueza da Mulher” in Rosemary Agonito (ed.), História das Ideias nas Mulheres (New York: G. P. Putnam’s Sons, 1977): 199. 27 Jerome Stolnitz, de Estética e Filosofia da Crítica de Arte (1960). Esta citação retirada de trechos em Philip Alperson (ed.), A Filosofia das Artes Visuais (impresso em New York: Oxford University, 1992): 10. 83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Robert Mapplethorpe durante as controvérsias jurídicas em torno de exposições de seu trabalho em 1990.)28. Em outras palavras, a destreza formal e beleza da arte podem fornecer um valor estético que substitui o demérito moral de seu conteúdo, e apelar para essa distinção às vezes tem sido fundamental para o desenvolvimento social e até mesmo justificação legal de obras de arte fora da lei. Mas essa virtude estratégica também tem um lado problemático, aquele que é pertinente para as críticas feministas da ideia de contemplação desinteressada. Quando Stolnitz define uma atitude estética, ele determina que "a percepção é direcionada para o objeto em si mesmo e que o espectador não está preocupado em analisá-lo ou fazer perguntas sobre o assunto."29 No entanto, é precisamente a proibição de fazer perguntas que fez com que muitas críticas feministas rejeitassem esta tradição na estética. Não se limita a tornar o observador peculiarmente aquiescente, ele situa como uma categoria de propriedades não estéticas muitos dos aspectos da arte que fornecem o seu significado. Quando a obra de arte em questão tem uma carga sexual, como é o caso com a representação de nus, a divisão entre as propriedades estéticas e anestéticas sufoca perguntas sobre papéis sociais, poder e controle sexual, como veremos em breve. Além disso, abordagens críticas que enfatizam o valor da forma (linha, composição, combinação de elementos) sobre o conteúdo (o objeto da arte) têm permeado várias disciplinas artísticas, especialmente no século XX. Como musicóloga Susan McClary observa em sua disciplina que "a musicologia declara fastidiosamente questões de significação musical como fora dos limites para os envolvidos em legitimar bolsas de estudos. Ela assumiu o controle disciplinar sobre o estudo da música e proibiu até mesmo perguntar acerca das questões mais fundamentais relativas ao significado."30 Construindo a estética nesses termos isoladores leva a ignorar seu significado social e seu poder, incluindo o seu poder para manter a representação da mulher no encalço do que Cornelia Klinger chama de ”ideologia estética" em consonância com a subordinação social e a exploração de (50) mulheres.31 Ambas, obras de arte e as 28

Rebecca Schneider, O Corpo Explícito na Performance (London: Routledge, 1997): 14. Stolnitz, Estética: 12. 30 Susan McClary, Finais Femininos: Música, Gênero, e Sexualidade (impresso em Minneapolis: University of Minnesota, 1991): 4. 31 "O objeto de interesse da arte e o conceito de uma estética filosófica estão intimamente ligados aos mesmos pressupostos metafísicos, universalistas, e essencialistas da tradição filosófica Ocidental que aparecem altamente suspeitos a partir de uma perspectiva feminista em relação a outros domínios da formação da teoria de dominação masculina." Cornelia Klinger, “Estética” in Alison M. Jaggar e Iris Marion Young (eds), Um Compannheiro para a Filosofia Feminista (Malden, MA: Blackwell, 1998): 344. 84 29

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pessoas que as apreciam, devem ser consideradas em todas as suas relações especificamente históricas, a fim de melhor entender como obras de arte alcançam significado. Enquanto restabelecer essa base mais ampla para compreender os riscos da arte diminui tanto o desinteresse como a universalidade da apreciação estética, isso também restabelece um aspecto da arte que, por vezes, torna-se silenciado na tradição estética, mas que certos teóricos desde Platão têm abordado: o seu poder.

Críticas feministas da percepção estética Talvez em nenhum lugar a ideologia da contemplação desinteressada extrema é mais questionável do que quando aplicada às pinturas de nus femininos, que uma estudiosa feminista argumenta virtualmente definirem a pintura nas belas artes moderna.32 Ideologias estéticas que removeriam a arte de suas relações com o mundo disfarçam a sua capacidade de inscrever e reforçar as relações de poder. Com as artes visuais, essas relações se manifestam na visão em si: a forma como é retratado em um trabalho e a forma como ela é induzida e dirigida ao observador fora do trabalho. Considere por exemplo a pintura de Jean-Léon Gérôme intitulado Mercado de Escravos Romano (c.1884). Este assunto, que apresenta tanto carne feminina vulnerável e um cenário exótico, era um tema popular para pintores daquele tempo; Gérôme, ele mesmo, pintou seis versões deste tema.33 A pintura retrata uma jovem escrava em leilão diante de um grupo de potenciais compradores masculinos a examiná-la. Espectadores dessa pintura podem ter reações diferentes; eles poderiam estar escandalizados, ultrajados, envergonhados ou excitados pelo tema, e ao mesmo tempo eles podem achar que é muito bem proporcionada e finamente pintada. Pelo menos algumas daquelas respostas resultam do que Stolnitz consideraria uma inadequada atitude moral que interfere com a percepção estética. A atitude estética apropriada permite que se transcenda o desconforto moral e apreciem-se tais qualidades formais como as curvas

32

Lynda Nead, A Fêmea Nua: Arte, Obscenidade e Sexualidade (London: Routledge, 1992), Part I. Nead critica a influente análise de Kenneth Clark do nu em O Nu: Um Estudo da Arte Ideal (London: John Murray, 1956). Para uma análise da mostra da influência do nu na arte do século XX, veja Carol Duncan, “As Tetas Quentes do MoMA” in Carolyn Korsmeyer (ed.), Estética: A Grande Questão (Malden, MA: Blackwell, 1998): 115–27. 33 Linda Nochlin examina o Mercado de escravos de Gérôme e outras pinturas nas quais o poder do sexo é o tema, em “Arte das Mulheres e Poder” em Mulheres, Arte, Poder e Outros Ensaios (New York: Harper and Row, 1988): 1–36. Veja também a discussão de “olhares” múltiplos na pintura e literatura in Rosemary Geisdorfer Feal e Carlos Feal, Pintura na Página: Abordagens Interartísticas nos Textos Hispânicos Modernos (impresso em Albany: State University of New York, 1995): 202–5. 85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


sensuais do corpo da mulher contra o fundo escuro do mercado. Mas, mesmo se admitirmos que tal apreciação distanciada pode suprimir o desconforto da consciência dos compradores de carne feminina, seria necessário um ato de total cegueira e entorpecimento da mente extinguir a consideração crítica de gênero e erotismo nesta pintura. Ou seja, o desinteresse pode descartar o preconceito e interferências moralizantes, mas isso não faz e nem deve levar a ignorar o que está, obviamente, acontecendo na pintura, nem o pintor (ou o próprio filósofo, neste caso) provavelmente aprovaria tal ignorância deliberada do que ele teve, provavelmente, o cuidado de descrever. Considere apenas (51)

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Figura 5 Jean-Léon Gérôme, Mercado de Escravos Romano, c. 1884. Museu de Arte Walters, Baltimore 37.885 .

quão complexo é o fenômeno de "olhar", como ele opera em uma imagem como esta – não só como nós os espectadores a consideramos, mas também como perspectivas de visualização são representados dentro da pintura. A direção dos olhos das figuras retratadas para a menina em leilão são exemplos particularmente nada sutis do escrutínio voraz. Os acúmulos de olhares dos homens veem a menina em seu estado mais exposto, pois só vemos suas costas. Parte da experiência desta pintura envolve perceber que nós não podemos ver o que eles fazem, e que a menina está dolorosamente colocada não apenas como propriedade vendável, (52) mas também para o prazer excitante de todos os que a observam. Percebe-se que ela sente ser vista. Ela protege o rosto, incapaz de retornar seus olhares. Sua pele pálida vulnerável se destaca contra a multidão sombreada, o que, em contraste, parece escuro e predatório. Para alguns espectadores esta pintura pode ser muito desconfortável para ser agradável de todo; em termos de atitude estética, eles são incapazes de alcançar o desapego moral necessário para apreciar as suas qualidades artísticas. Ou, possivelmente o prazer que um espectador encontra na beleza desprotegida da garota, e seu estado angustiante pode ser furtivo, relutante, mesmo um pouco vergonhoso, seu interesse erótico difícil de reprimir. Em qualquer caso, uma consideração completa da operação da visão deve considerar a sua ligação com o desejo, e parte dessa conexão é notada por sua própria resposta ao erotismo e sadismo mordaz da imagem. Enquanto uma total atitude política ou moral em relação a esta pintura de fato pode enfraquecer a própria valorização da sua arte, a ideia de uma atenção completamente "desinteressada" para este tipo de obra soa ou muito difícil de manter ou um pouco de mistificação, uma vez que o interesse está presente em uma espécie de apreciação deslocada e abstrata mas ainda erótica – da beleza. As figuras pintadas e o espectador estão todos em relações dinâmicas, e são estes que ilustram a dimensão da autoridade da visão em si. Neste caso, o poder evidente é a predominância bastante convencional de espectadores do sexo masculino sobre uma mulher vulnerável. A experiência da beleza é, supostamente, desinteressada, ainda que representações de nus femininos, muitas vezes acentuem seu desejo sexual e desejo sexual é um "interesse" óbvio. Alguém poderia, portanto, suspeitar que a atitude desinteressada recomendada sirva como uma salvaguarda contra o desejo, especificamente o desejo heterossexual masculino, a fim de 87 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


manter as mulheres objetos próprios do juízo estético, juntamente com a pintura, esculturas e cenários. A análise da visão e do que se tornou conhecido como "o olhar masculino" presume que a habilidade de olhar para os outros é uma indicação de poder sexual e social.34 Teorias do olhar enfatizam a atividade da visão, o seu domínio e controle do objeto estético. Estas teorias rejeitam a separação do desejo do prazer, restabelecendo o erótico e cobiçoso olhar para o núcleo da beleza. A posição de visualização imaginativa prescrita para o espectador de uma pintura como a de Gérôme é, sem dúvida, tanto masculina como heterossexual. Como Laura Mulvey coloca, às mulheres é atribuído o status passivo de ser vista, ao passo que os homens são os sujeitos ativos que olham.35 Na medida em que secretamente convence espectadores a assumir o requisito de atitudes do olhar, a arte exerce autoridade e tem domínio sobre a maneira como pensamos sobre nós mesmos e o mundo pela apresentação do assunto. Como Naomi Scheman afirma: (53)

A visão é o sentido mais adaptado para expressar. . .desumanização: ela funciona à distância e não precisa ser recíproca, ela fornece uma grande quantidade de informações facilmente categorizadas, ela permite que o observador localize com precisão (apontar) o objeto, e fornece ao olhar, uma maneira de fazer o objeto visual estar consciente de que é um objeto visual. A visão é política, como é a arte visual, seja lá o que (mais) isso for. 36

Em nenhum lugar é o poder da visão de forma mais acentuada do que o ilustrado em uma pintura com um tema que pode ficar como um emblema crítico do olhar masculino, como o retrato de Artemisia Gentileschi de Susana e os Velhos (1610). A história de Susanna é retirada do Antigo Testamento Apócrifo e conta a história de uma bela mulher que, durante o banho, era observada por dois dos poderosos Anciãos da comunidade. Eles exigiam favores sexuais e ameaçaram contar ao marido, o rei, que ela era adúltera, se ela não obedecesse. Ela não o fez e foi salva por Daniel. No entanto, 34

Teorias do olhar desenvolvidas mais amplamente na teoria do cinema feminista. O ensaio de galvanização para essa perspectiva é de Laura Mulvey, “Prazer Visual e Narrativa de Cinema,” Screen 16: 3 (Outono, 1975): 6–18. Para isto, bem como refinementos de sua visão original, veja de Mulvey Visual e Outros Prazeres (London: Macmillan, 1989). Para uma seleção de teorias de filmes feministas, veja Mary Ann Doane, O Desejo pelo Desejo (impresso em Bloomington: Indiana University, 1987) e Femmes Fatales: Feminismo, Teoria do Filme, Psicanálise (New York: Routledge, 1991); E. Ann Kaplan (ed.), Psicanálise e Cinema (New York: Routledge, 1990); Constance Penley (ed.), Feminismo e Teoria do Filme (New York: Routledge, 1988). Para pintura, veja Griselda Pollock, Visão e Diferença: Feminilidade, Feminismo e as Hisórias da Arte (London: Routledge, 1988). 35 Mulvey, “Prazer Visual e Narrativa de Cinema.”. 36 Naomi Scheman, “Pensando acerca da Qualidade da Arte Visual das Mulheres” in Engendramentos: Construções de Conhecimento, Autoridade, e Privilégio (New York: Routledge, 1993): 159. 88 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


não foi a sua salvação, mas o momento em que foi espiada em seu banho, que se tornou um dos temas favoritos da pintura Renascentista e Barroca. Este ponto da história não só é dramático na narrativa, mas também está pronto para permitir que o espectador da pintura possa olhar junto com os anciãos para Susanna se banhando inocentemente. Ao contrário de muitas outras versões deste tema em que Susanna é retratada antes que ela descubra que sua privacidade foi violada, a representação de Gentileschi deste tema retrata dramaticamente o desamparo e o horror virtuais de Susanna a se ver exposta. Sua nudez é estranha e dolorosa, em vez de estimulante. (Deixo ao leitor especular sobre a relevância do gênero do artista para a forma que o poder do olhar é retratado e solicitado por esta pintura.) As teorias do olhar também desafiam o pressuposto de que o público modelo para a arte é um espectador genérico universal, observando a perturbação potencial de apreciação naqueles tempos quando o ponto de vista prescrito pelo objeto não está de acordo com a posição de sujeito do espectador. Dizer que uma "posição imaginativa" é prescrita significa que a obra de arte dirige o espectador a considerar o trabalho de uma forma particular, isto é, especificamente de uma maneira que privilegia um espectador masculino como o espectador autorizado de arte e juiz de sua qualidade.37 Prestar atenção às complexidades da representação é mais do que uma crítica social; ela ressalta nossa apreciação das obras de arte, pois só tomando conhecimento do poder da visão a pessoa se capacita a descobrir as possibilidades para diferentes vantagens de "olhar." De fato, a consciência de que um ponto de vista masculino é mais ou menos padrão para o gênero do nu nos alerta (54)

37

Veja também John Berger, Maneiras de Ver (New York: Penguin, 1972); James Elkins, O Objeto Contra-ataca: Na Natureza de Ver (San Diego, CA: Harcourt Brace, 1996); Nead, A Fêmea Nua; Norman Bryson, Michael Ann Holly, e Keith Moxey (eds), Teoria Visual: Pintura e Interpretação (impresso em Cambridge: Polity, 1991).

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Figura 6 Artemisia Gentileschi, Susanna e os Anciãos, 1610. Coleção Schonborn, Schloss Weissenstein, Pommersfelden, Alemanha (Foto Marburg / Arte Resource, NY)

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(55) para a diferença na maneira que Gentileschi representou o momento da descoberta de Susanna, porque este quadro é menos evidentemente dirigido ao voyeur masculino do que acontece com a pintura de Gérôme. É também um alerta para a presença de outros modos de olhar, como a possibilidade do desejo homoerótico nas obras de Michelangelo, Caravaggio e outros que colocam o corpo masculino para o prazer visual. Reconhecer tudo isso não implica necessariamente a rejeição completa da tradição estética mais antiga. Mesmo uma postura desinteressada de sucesso, se isso significa que não se deve prematuramente condenar a arte por causa de seu conteúdo, não necessariamente cancela as discrepâncias de perspectiva que cada diferente apreciador tem da obra de arte. Ou seja, pode haver uma grande variedade de perspectivas sobre uma obra, as quais qualificam como desinteresse aquelas em que se suspende o envolvimento prático e a avaliação moral, a fim de apreciar as qualidades intrínsecas de apresentação de uma obra. O espectador alerta está ciente de como um trabalho sugere pontos de vista de apreciação, mas aquele ponto de vista não é necessariamente adotado.38 Esta é uma qualificação importante para qualquer presunção prematura que diga haver um único "olhar masculino" que é prescrito pela arte. Mas tornar-se consciente de como o "olhar" opera em arte visual dramatiza o fato de que os espectadores ativos são variados e interpretam a arte e seus valores a partir de uma multiplicidade de perspectivas. A reintegração do desejo nas teorias do prazer estético agora, provavelmente, domina o discurso crítico. Entre as acusações dirigidas contra os legados do Iluminismo, a conclusão antiuniversalista também é forte. Muitos concordam que para entender como a arte é considerada deve-se atender a posições sociais mais específicas e não apenas postular um "espectador ideal". Este pressuposto descreve muitos trabalhos recentes de crítica nas ciências humanas e sociais entre os estudiosos que concluíram que não só um ponto de vista neutro e universal é impossível, mas que qualquer tentativa de formulá-lo será distorcida pela classe, gênero, perspectiva nacional e histórica do formulador. Ideais universalistas foram substituídos pelo valor da perspectiva particular consciente da sua situação na sociedade e na história, sem 38

Kaja Silverman complica as teorias do olhar em Subjetividade Masculina às Margens (New York: Routledge, 1992). Veja também Bell Hooks, “A Oposição do Olhar” in Olhares Negros (Boston: South End Press, 1992): 115–31. Cynthia Freeland, “Teoria do Filme” in Um Companheiro para a Filosofia Feminista (Malden, MA: Blackwell, 1998): Capítulo 35. Mary Devereaux, “Textos Opressivos, Leituras Resistentes, e o Espectador de Gênero” in Brand and Korsmeyer, Feminismo e Tradição na Estética: 121–41. 91 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


pretensão de universalidade.39 O que tem sido articulado sobre a visão e o olhar é sugestivo da estrutura de apreciação estética em si, ou certamente sobre a estrutura dessas teorias de apreciação. Aos objetos estéticos é atribuído o papel passivo de serem olhados mais que do olhar ativo; eles são objetos apresentados para o escrutínio do bom gosto do observador. Em um nível mais abstrato, pode-se postular que o gênero está estruturalmente no trabalho na diferença entre o objeto passivo (56) da percepção e o observador ativo. Combinado com o pensamento de gênero que permeia a narrativa de beleza do século XVIII, esta relação estrutural pode assumir o que poderíamos chamar a forma do gênero no relacionamento entre sujeito e objeto, uma estrutura que possui traços paralelos àqueles obtidos entre posições masculinas e femininas mais literalmente descritas.40 É certo que a estrutura da apreciação estética entendida nestes termos é muito mais adequada para certos tipos de arte do que para outras. Ela postula uma disjunção do espectador de arte que não vai servir, por exemplo, para artes participativas em que grupos de dança ou canto atuam juntos. A tradição das belas artes e das teorias estéticas que a subscrevem não ignora totalmente esses tipos de arte, mas as teorias do gosto são teorias de especialistas mais que de participantes, e assim vemos aqui uma perpetuação de suposições sobre que tipos de artes são modelos centrais para a teoria estética.

Resumo O legado do Iluminismo do século XVIII foi poderoso e tenaz, formulando uma série de desenvolvimentos em estética que ainda estão em uso hoje, incluindo a ideia controversa que o valor estético é independente e às vezes supera a avaliação moral. Ao mesmo tempo, podemos encontrar gênero e preconceitos culturais operando 39

Contextualização ou posicionalidade são um componente de grande parte da filosofia pós-moderna. Uma declaração feminista influente é de Donna Haraway, “Conhecimentos Situados: A Questão da Ciência no Feminismo e o Privilégio da Perspectiva Parcial,” Estudos Feministas 14:3 (Outono, 1988) 575–96. 40 Algumas feministas argumentam que a distância da visão perpetua um ideal de supremacia. Para diversas perspectivas da visão, veja Barb Bolt, “Lançando Luz Sobre a Matéria,” Hypatia 15:2 (Spring, 2000): 202–16; Luce Irigaray, Uma Ética da Diferença Sexual, trad. Carolyn Burke and Gillian C. Gill (impresso em London: Athlone, 1993); Martin Jay, Olhos baixos: a difamação da Visão no pensamento francês do século XX (impresso em Berkeley and Los Angeles: University of California, 1993); Evelyn Fox Keller e Christine R. Grontkowski, “O Olho da Mente” in Sandra Harding e Merrill B. Hintikka (eds), Descobrindo a Realidade: Perspectivas Feministas em Epistemologia, Metafísica, Metodologia,e Pilosofia da Ciência (Boston: D. Reidel, 1983): 207–24; Cathryn Vasseleu, Texturas da Luz: Visão e Toque em Irigaray, Levinas, e Merleau-Ponty (London: Routledge, 1998). 92 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


na busca por normas estéticas universais, e com esses preconceitos há boas razões para suspeitar que gosto "universal" requer a imposição de alguns conjuntos de normas culturais e supressão de outros. Esta é uma maneira óbvia de interpretar a distinção entre cultura "alta" e "popular". Pensadores iluministas tiveram algumas boas razões para rejeitar o desejo como o alicerce para todos os prazeres e para salvaguardar uma zona de valores estéticos distintos. O isolamento das qualidades estéticas de suas dimensões sociais, no entanto, e que se tornou uma tendência entre os teóricos posteriores, embota o poder da arte. Como as críticas feministas observaram, as idéias sobre percepção desinteressada tendem a elevar as qualidades formais acima das de conteúdo e significado social. As críticas da percepção puramente estética e especulações sobre o “olhar” restabelecem não só desejo e satisfação na função da percepção, mas também reconhecem a autoridade cultural da arte para perpetuar relações de poder. Enquanto os usos de visões feministas na teoria e arte contemporâneas serão retomados nos Capítulos 5 e 6, no próximo capítulo, precisamos relembrar a (57) atmosfera bastante permeada de gênero na estética nos séculos XVIII e XIX, uma situação em que o belo e passivo objeto permanece como uma contraparte feminina para a atividade do artista do sexo masculino. Como veremos esta descrição não permanece com segurança dentro da zona da teoria, mas exerce influência prática sobre o que as mulheres realmente podem fazer. Combinado com o aumento das ideias sobre arte que foram discutidas no Capítulo 1, os ideais estéticos do período moderno contribuíram para um clima em que a participação das mulheres nas artes era preocupante e difícil. Vamos agora nos voltar para a consideração de como a teoria estética subscreve a prática artística. (58)

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Resenha

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RESENHA DANTO, Arthur. Andy Warhol. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2012, 208 páginas. Juliana Araújo Para reconhecer a emblemática figura de Andy Warhol não é necessário deter algum conhecimento sobre o mundo da arte. Warhol, tratou de temas muito familiares a qualquer pessoa, sua matéria-prima era basicamente o cotidiano, e em particular, o estilo de vida americano, fator que lhe garantiu o posto de ícone. Diferente do que o título pode vir a inculcar, uma possível pretensão biográfica, o que Arthur Danto se dispõe a realizar ao longo da obra é uma análise essencialmente filosófica do que torna Andy Warhol um artista tão insigne. Danto teve seu interesse pela filosofia da arte desperto, após visitar a segunda exposição de Warhol na Stable Gallery, em 1962, foi nesse momento que conheceu a Brillo Box, obra que fez com que o filósofo investigasse os motivos que possibilitam qualquer coisa ser considerada arte e por que isso constituiria um problema filosófico. Segundo Danto, o livro é o reconhecimento de uma dívida que teria com Warhol, pois, foi por influência de sua obra que teria escrito A transfiguração do lugar comum. No livro, vemos o nascimento de um artista que sempre esteve consciente da própria aparência, que desde muito cedo delimitou seus objetivos de forma extremamente concisa e que abraçava os valores vigentes de sua época. No início dos anos 60, Warhol se submeteu a uma mudança na própria aparência visando ser aceito no mundo do arte e no mundo gay, ele estava disposto a fazer o que fosse necessário para alcançar a fama que almejava em Nova York, para isso, o apoio da mídia era fundamental. É possível apontar com precisão o momento de transformação na vida de Warhol que contribuiu para despontá-lo rumo a condição de ícone, entre os anos de 1959 e 1960, ele deixou de ser apenas um artista comercial bem sucedido para se juntar a vanguarda nova iorquina ocupando um lugar de destaque, essa transição é ilustrada pela obra Antes e depois. Com essa obra, o artista alterou radicalmente a forma de compreendermos a arte, não apenas por reproduzir uma imagem comercial, mas, por tornar imperceptível a diferenciação entre uma criação de arte banal e uma criação de arte culta. Com o rompimento da fronteira entre a arte banal e culta, vimos a arte, antes 95 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


distanciada da vida, estabeler um vínculo com o cotidiano. Para o autor, Warhol criou uma imagem icônica da própria vida. Danto enfatiza que, quando Warhol passou a ser reconhecido como ícone cultural, não foi algo que limitou-se apenas a uma transição biográfica, mas também, representou uma transição social, visto que, seu trabalho passou pelo crivo e foi considerado relevante por aqueles que ocupam a importante função de monitorar as fronteiras da arte, ou seja, curadores, marchands, críticos, colecionadores e outros artistas. A partir dessa questão, o autor aborda a necessidade de reconhecimento e aceitação, quando uma nova corrente artística surge, pelo mundo da arte vigente no período. Afinal, o que fez com que propagandas passassem a ser consideradas obras de arte? O ponto fundamental, a partir da interpretação proposta por Danto, deve se basear na análise dos recortes da cultura comercial feitos a partir da intervenção do artista, todos eles tocam em questões que dizem respeito aos “pequenos contratempos humanos”. Para qualquer problema, por mais superficial que seja, os anúncios fornecem uma solução, o que os tornariam arte, seria sua projeção simultânea onde poderíamos obter uma imagem da condição humana. O motivo da facilidade de compreensão e a identificação popular das imagens utilizadas pela pop art se tornam claros quando pensamos nesse ponto, as obras de arte do movimento projetavam o próprio mundo que por nós é habitado. Portanto, a grande questão já não era mais “O que é arte?”, mas, sim, “Qual a diferença entre duas coisas, exatamente iguais, uma das quais é arte e a outra não?”. Danto diz que não há uma explicação óbvia para o fato de tantos artistas na década de 60 terem pensado e executado suas obras a partir de imagens do domínio popular, o que não chegou a constituir um movimento, mas representou uma intensa agitação cultural que viria a transformar a vida artística de Nova York. Com o crescente número de artistas criando a partir de influências similares, Warhol precisava fazer algo que ninguém ainda tivesse feito utilizando recursos da cultura comum. Diversas histórias remetem ao processos de criação artística de Warhol, uma delas, diz respeito a apropriação das ideias de outros pelo artista. Danto faz questão de deixar claro que colaborar com uma ideia e pensar no processo de execução de uma obra são coisas bem distintas, mesmo que o artista se apropriasse em algum momento da ideia de outro, isso não tiraria seu crédito na obra. 96 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


Warhol passou a trabalhar em suas obras buscando dar a impressão de que elas foram produzidas por meios mecânicos, as pinceladas expressionistas tinham definitivamente ficado no passado, uma vez que seu objetivo era representar uma lata de bebida ou alimento, por exemplo, não havia necessidade de intervir na imagem realizando qualquer acréscimo. A uniformidade e a previsibilidade da cultura comercial, fascinavam Warhol, uma lata de sopa Campbell é igual para todos, não importa sua origem ou posição social. A fama de Warhol permaneceu mesmo com o término do movimento pop, ele atingiu um elevado patamar que nenhum outro artista do seu tempo conseguiu. Sua obra se tornou inseparável de sua imagem, ele foi capaz de promover uma profunda alteração no conceito de arte, e ainda, criou um estilo de vida totalmente novo. Em 1964 ocorreu mais uma significativa mudança nos rumos da carreira de Warhol, também foi a época em que alugou uma antiga fábrica para ser seu centro de operaçõess, surgindo assim, “The Factory”, que acabou se tornando mais do que um espaço de criação. Pessoas que se identificavam com o espiríto dos anos 60 podiam vivenciar de forma intensa a experiência desse estilo de vida. A Factory era o ambiente perfeito para atrair jovens desajustados, Warhol gostava de observá-los e usá-los como fonte de inspiração. Foi pensando no processo de produção mecânico que tanto o interessava, que o nome do seu espaço de trabalho foi escolhido. Danto nos apresenta Gerard Malanga, assistente de Warhol, como fonte principal para conhecermos a confecção da Brillo Box e a organização industrial da Factory. Quando a ideia de reproduzir as caixas surgiu, o artista percebeu que trabalhar com a superfície de papelão seria inviável, logo, pensou em utilizar madeira, recorrendo com isso, aos serviços de marceneiros. Danto nos mostra a importância do trabalho na concepção de arte que o artista possuia, comprar as caixas direto com os fabricantes não era uma ideia plausível para ele, seu desejo nunca foi o de executar ready-mades. Embora o resultado da obra parecesse mecânico, Warhol valorizava os acidentes que poderiam ocorrer durante o uso da tinta e jamais os corrigia. As caixas nos guiam à grande questão filosófica, as Brillo Box de Warhol pareciam idênticas com as que eram encontradas nas prateleiras dos supermercados, alguém que não estivesse consciente do que vinha sendo produzido pela arte de vanguarda não seria capaz de ver arte nas caixas. Vemos então a necessidade de conhecer algo da história da arte recente para compreender o porquê de uma caixa ser arte e a outra não. O autor prefere não se aprofundar na questão filosófica da ontologia 97 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano V, Número 2, 2014


das obras de arte, contudo, deixa claro que, pela aparência similar das caixas, o que confere o reconhecimento como obra de arte de um objeto deve ser imperceptível a olho nu. Quando o autor aborda as produções cinematográficas de Warhol, o compara a Sócrates. Segundo ele, o artista se interessou pela essência das coisas, e assim como o filósofo e seus companheiros, propôs diversas questões e as testou. O cotidiano continuava a fasciná-lo e com o intuito de eliminar interferências do seu próprio olhar, não manipulava a filmadora durante as gravações, ele a focalizava sobre o tripé e se afastava de imediato, seu objetivo era captar as coisas como realmente eram. Para Danto, o filme Empire, de 1964, é assim como a Brillo Box, uma obra prima filosófica. Warhol passou a vida cercado de pessoas intensas, inconsequentes, criativas e desequilibradas. Nos momentos finais do livro, Danto reproduz um relato de Warhol, onde o artista admite que foi por sorte que nada desastroso tivesse ocorrido devido as companhias que mantinha. Sorte que mudou em 1968, o autor trata a tentativa de assassinato que ele sofreu como sua primeira morte. Com o término do anos 60 muita coisa mudou, de certo modo, o artista sentia que a nova década chegava acompanhada por um vazio, ninguém sabia ao certo o que deveria fazer, nem mesmo tinham a menor suspeita do que viria a seguir. Por um momento, a pintura passou a ser excluída do meio acadêmico e das exposições, o que mudou esse posicionamento, no mínimo equivocado, foram as criações de Duchamp, Warhol e Beuys. Não faria o menor sentido condenar a pintura, uma vez que, esses artistas provaram que qualquer coisa poderia ser arte. Já com a carreira efetivamente consolidada e mesmo com toda instabilidade do mercado dos anos 70 e 80, Warhol se dedicou intensamente a business art. Gravuras e pinturas eram o que basicamente movimentavam a maior parte dos lucros da Andy Warhol Enterprises. Danto encerra o livro, enfatizando, mais uma vez, a importância da obra de Andy Warhol para a filosofia. Para ele o artista possuía uma mentalidade que era naturalmente filosófica, e com a Brillo Box, fez uma importante contribuição para os novos rumos da filosofia da arte, as caixas sugeriam a possibilidade de estarmos diante de uma obra de arte sem termos essa consciência. No dia 22 de fevereiro de 1987, Andy encontrou sua segunda e última morte.

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REFERÊNCIAS DANTO, A. A Transfiguração do lugar comum. Tradução: Vera Pereira. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2010. __________. The art world. Journal of Philosophy, v.61, p. 571-584. WARHOL, A. A Filosofia de Andy Warhol: (De A a B e de volta a A). Tradução de José Rubens Siqueira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2008.

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norteamericana Ano V, número 2, 2014 ISSN: 1984-7157

Editores: Aldir Carvalho Filho e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Editor adjunto: Frederico Graniço

www.ppgf.org

www.gtdepragmatismo.com

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