Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 1, 2012 ISSN: 1984-7157
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UNILAB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editor Convidado: Ronie Silveira Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: A Queda de Ícaro – Brueghel (1558)
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 1, 2012
Sumário Editorial Notas e Comentários Por que eu preciso tanto ir ao Brasil - Hans Ulrich Gumbrecht (Trad. Marcelo de Mello Rangel e Thamara de Oliveira Rodrigues). p.7
Artigos A reconstrução da Filosofia, da Democracia e da Educação como experiência reflexiva - Darcísio Natal Muraro p.11 Experiência e Natureza: lições deweyanas à prática docente na escola pública braseileira - Marcela Calixto dos Santos e Leoni Maria Padilha Henning p.35
Dossiê Hans-Ulrich Gumbrecht Sem culpa de vencer, sem medo de sofrer – Susana de Castro
p.55
História e Modernidade em Hans-Ulrich Gumbrecht - Marcelo de Mello Rangel e Thamara de Oliveira Rodrigues p.63 A presença sentida do passado: arquitetura, preservação e cronótopos - Luara França
p.72
Tradução No amplo presente - Hans Ulrich Gumbrecht (por Inês Lacerda Araújo).
P.81
Resenha GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e Estagnação: Ensaios Escolhidos. Introdução e organização Luciana Villas Bôas; Tradução Luciana Villas Bôas, Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012. Por Marcello de Mello Rangel p.96 SEARLE, J. Liberdade e Neurobiologia. Reflexões sobre o livre-arbítrio, a linguagem e o poder político. São Paulo: UNESP, 2007, 101 páginas. Por Lauren de Lacerda Nunes e Gabriel Garmendia da Trindade p.102
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Editorial
EDITORIAL Neste número, Redescrições dedica um dossiê a Hans Gumbrecht. Ele é professor de literatura da Universidade de Stanford, foi aluno de filósofos, teóricos da literatura e historiadores fundamentais ao século XX - entre eles Hans-Georg Gadamer, Hans Robert Jauss, Wolfgang Iser e Reinhart Koselleck. Vários de seus livros já foram traduzidos para o português, dentre eles, Produção de Presença, Modernização dos Sentidos, Em 1926: vivendo no limite do tempo, Elogio da beleza atlética e, recentemente, Graciosidade e estagnação. No final de agosto de 2012, esteve no Rio de Janeiro e, a convite de professores do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ, inaugurou o “Laboratório de Filosofia Política e Metafísica: Politeia” com duas conferências no IFCS: Depois de 1945 - Latência como origem do presente e Como e porque a estética pode nos ajudar a entender a fascinação com o esporte. O “Dossiê Gumbrecht” contém textos de autores brasileiros, que abordam várias facetas de sua obra, uma tradução de trechos de seu último livro Our Broad Present a ser lançado ainda neste ano nos EUA, uma resenha de seu último livro lançado no Brasil, Graciosidade e estagnação, e um pequeno texto seu no qual relata alguns momentos de sua passagem mais recente pelo Rio de Janeiro. Além disso, o presente número de Redescrições traz um artigo sobre as implicações pedagógicas do conceito de experiência na obra de Dewey, um outro artigo sobre o sentido da educação filosófica e uma resenha do livro de Searle sobre as relações entre Neurobiologia e liberdade. A equipe de Redescrições deseja a todos uma boa leitura!
Ronie Alexsandro Teles da Silveira Editor convidado
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Notas e Comentรกrios
POR QUE EU PRECISO TANTO IR AO BRASIL Hans Ulrich Gumbrecht
Quando eu vi os colegas da UFRJ que foram ao Galeão no início da manhã da segunda-feira, 20 de agosto, eu percebi que nós não nos conhecíamos, o que é incomum entre as minhas muitas idas ao Rio, onde tenho ensinado e dado conferências, desde 1977 quase todos os anos e em diversas instituições acadêmicas. Normalmente, nos meus primeiros encontros no Brasil, sou recebido com o abraço de um amigo – mas às vezes meus amigos não podem me encontrar no aeroporto, porque estão ocupados e sabem que eu, de algum modo, me localizo no Rio. Nossa conversa não foi nada mal naquele dia 20 de agosto, uma sequência comum de alusões gerais e vagas sobre determinadas questões políticas, onde todos, antes de tudo, tentavam evitar a irritação própria ao tema – por outro lado, embora nunca tivéssemos nos encontrado, à medida que conversávamos, passamos de uma conversa precária e tensa a uma confortável e verdadeiramente relaxante. Minha primeira conferência era já na tarde do dia de chegada. Dado que as universidades brasileiras estavam em greve, um número razoavelmente grande de pessoas apareceram para ouvir o que eu tinha a dizer sobre a década que se seguia a 1945, e sobre minhas observações, dentro desse período, a respeito de uma mudança na construção coletiva do tempo e no que nós continuamos a chamar de “história” até os dias de hoje. Mas a conversa não parecia despertar a atenção, a discussão seguinte permaneceu apenas cortês. O que me lembro e mais gostei naquela noite de início de primavera, foi o grande pátio do bonito e ligeiramente decadente edifício no centro histórico do Rio, onde está localizado o Departamento de Filosofia da UFRJ. Eu apreciei estar rodeado por suas altas paredes – como se uma inspiração pudesse se abater. Mas nenhuma inspiração veio no primeiro dia. O dia seguinte foi de escrita em meu quarto de hotel feio e ruidoso, com sua visão trivial para os fundos e nada de extraordinário veio naquelas quatorze horas de trabalho. Eu terminei o que precisava terminar e me senti solitário. Uma conferência e um diálogo brandos, mas perfeitamente aceitáveis, esperavam por mim no dia seguinte, quarta-feira. “Mas qual foi o objetivo de viajar milhares de milhas?”, eu pensava
Texto original em inglês, intitulado – “Why I so need to go to Brazil”. Traduzido por Marcelo de Mello Rangel e Thamara de Oliveira Rodrigues. 7 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
enquanto esperava pela minha colega, novamente, em frente ao hotel para me pegar com o seu carro. Ela não chegou no momento em que pensei que tivéssemos combinado; poderia ser que ela também tivesse dúvidas sobre o quão significativo e útil tudo isso poderia ser, eu pensava enquanto olhava para cada carro que passava tentando encontrar um rosto familiar. Antes de minha segunda conferência, no terceiro dia de minha estadia - eu deveria dar um seminário em seu curso sobre Heidegger e “A Origem da Obra de Arte”, um texto que eu acreditava conhecer bem. Eu não deveria fazer nada de especial, eles estavam apenas tentando tirar o máximo proveito da minha presença, meus colegas me disseram (e eu sempre me sinto lisonjeado com palavras como essas). Estávamos em menos de 10 pessoas numa pequena sala em algum lugar no final de uma escada estreita, sentados ao redor de uma mesa, e a partir do momento no qual eu comecei a falar senti uma expressiva resistência intelectual no ar. O que eu sempre gostei muito sobre esse ensaio é a sua descrição do antigo templo grego que, como um catalisador, faz com que você veja o céu de um modo nunca antes visto, com que ouça as ondas do oceano como nunca ouviu antes, com que sinta a terra sob os seus pés como nunca sentiu antes. Isso, eu insisto, era um dos modos e das cenas do que Heidegger poderia ter desejado expressar através da frase “desencobrimento do Ser” (“unconcealment of Being”). Todos ao redor da mesa ouviram respeitosamente e ninguém parecia estar impressionado com o que eu acabara de dizer. Alguém perguntou se a “Origem” seria um ensaio mais distanciado de “Ser e Tempo” do que eu tinha dito – e, acima de tudo, se não era sobre o “mundo” e sobre a “terra” juntos como “desencobrimento do Ser” (“unconcealment of Being”), e não sobre uma totalidade notável de dimensões, que não necessariamente estão juntas apenas por terem sido visualizadas como um conjunto. Eu nunca tinha pensado sobre a possibilidade dessa totalidade e menos ainda sobre esta totalidade enquanto “Ser” “Sein”, eu fiquei seduzido quando alguém então descreveu conceitualmente e em detalhes intrigantes e vigorosos o impacto no interior da Catedral de Chartres – que retivera um pouco de sua força original ao longo dos mais de oitocentos anos de existência (embora não tenha sido construída por pessoas como nós e para o nosso “mundo” do início do nosso século XXI). De repente, foi isso que eu ouvi e aprendi, e quando, uma hora mais tarde, nós descemos aquela escada estreita novamente, eu tinha descoberto uma dimensão completamente nova do texto de Heidegger e, talvez, até mesmo de sua filosofia em 8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
geral. Mas eu não quero escrever sobre o conteúdo de minha descoberta aqui, este não é um tratado filosófico nem mesmo em sua forma mais diminuta. Tudo o que eu quero dizer é que, naquela noite, quando eu estava tomando outro café ainda no profundo e belo pátio, estava tão claro para mim, novamente, por que é que eu sempre tenho de voltar ao Brasil. Esta intensidade dos momentos intelectualmente decisivos quando eu menos espero por eles, acontece comigo sempre que estou lá, e eu não mereço isso, eu apenas posso deixar que isto aconteça.
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Artigos
A RECONSTRUÇÃO DA FILOSOFIA, DA DEMOCRACIA E DA EDUCAÇÃO COMO EXPERIÊNCIA REFLEXIVA Darcísio Natal Muraro UEL – Universidade Estadual de Londrina dmuraro@uel.br RESUMO: O debate sobre o ensino de Filosofia no Brasil tem se pautado por uma argumentação voltada preponderantemente para a defesa daquilo que pode ser chamada de ensino da “tradição filosófica” ou do desenvolvimento da habilidade de pensamento. Invariavelmente essas abordagens do ensino da filosofia se convertem num exercício retórico, reduzindo o filosofar a uma arte literária fechada que não ilumina nem transforma a confusão em que a criança e o jovem encontram em suas experiências de vida. Pretendo argumentar neste artigo que a educação filosófica pode ser pensada em outro patamar, estabelecendo como seu objeto primeiro de reflexão o campo contínuo, interconectado e conflituoso da experiência de vida. Para desenvolver minha argumentação, tomo como referência a compreensão da filosofia tal como desenvolvida nas principais obras de John Dewey, como uma atividade social e cultural de valor indispensável, uma vez que ela tem a tarefa de pensar os problemas da experiência presente. A filosofia passa a habitar a experiência gerando e vitalizando os sentidos. Seguindo essa linha de argumentação, a filosofia tem duas tarefas a cumprir: primeira, ela deve fazer a indagação que leva à reflexão crítica da experiência, detectando e delineando as interpretações e classificações que a sobrecarregam, de forma a permitir a clarificação e a emancipação desses preconceitos infundidos na cultura; segundo, a investigação filosófica, diagnóstica e projetiva, deverá localizar e interpretar os conflitos éticos, políticos, educacionais que ocorrem na experiência de vida, de forma a projetar meios para resolver tais problemas. Ambas as tarefas pressupõem o diálogo e a democracia na criação de uma forma de vida social com liberdade de inteligência para problematizar, investigar, partilhar e comunicar os sentidos da experiência. A filosofia empírica que se almeja para a educação filosófica é a filosofia da, na e para a experiência. A filosofia empírica tem como preocupação criar aquela atitude de amor pela contínua busca da significação humana mais profunda da experiência, rompendo com a tendência da cultura de massa que busca manter os indivíduos na superficialidade do consumismo. Somente assim a filosofia poderá criar raízes na experiência e ser uma fonte de reflexão transformadora das situações problemáticas cumprindo sua função educativa de promover o crescimento da própria experiência, rompendo com a condição mero conteúdo a ser transmitido ou habilidade a ser treinada como produto de consumo para fins externos. PALAVRAS-CHAVE: Filosofia. Democracia. Experiência. ABSTRACT: The debate over the teaching of philosophy in Brazil has been based by an argument turned mainly to the defense of what might be called the teaching of "philosophical tradition" or of the development of thinking skills. Invariably these approaches of the teaching of philosophy become a rhetorical exercise, reducing the philosophizing to a literary art that does not illuminate or transforms the confusion into which children and youth are in their life experiences. I intend to argue in this article that the philosophical education can be thought of in another level, establishing as its primary reflection object the field continuous, interconnected and conflicting life experience. To develop my argument, I take as reference the understanding of 11 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
philosophy, as developed in the major works of John Dewey, as a social and cultural activity of essential value, since it has the task of thinking about problems of present experience. The philosophy inhabits the experience generating and vitalizing the meanings. Following this line of reasoning, the philosophy has two tasks to perform: first, it should do the quest that leads to critical reflection of experience detecting and delineating the interpretations and classifications that burden it, in order to allow clarification and emancipation of these prejudices infused in the culture; second, the philosophical research, diagnostic and projective, should locate and interpret the ethical, political and educational conflicts, that occur in the life experiences in order to design ways to solve such problems. Both tasks require dialogue and democracy in the creation of a form of social life with freedom of intelligence to question, investigate, share and communicate the meanings of experience. The empirical philosophy that aims to philosophical education is the philosophy of, in and for the experience. The empirical philosophy is to create concern that attitude of love for the continuous quest for deeper meaning of human experience, breaking with the trend of mass culture that seeks to keep individuals in the superficiality of consumerism. Only in this way, philosophy can take root in the experience and to remain as a source of transformative reflection of the problematic situations and not remain merely content to be taught and transmitted as a consumer product for external purposes. Key-words: Philosophy. Democracy. Experience. 1.Introdução O debate sobre o ensino de Filosofia no Brasil tem se pautado por uma argumentação voltada preponderantemente para a defesa daquilo que pode ser chamada de “tradição filosófica” ou, mais explicitamente, defende-se o ensino de filosofia como o estudo da história da filosofia, estudo da filosofia pelos filósofos, ou estudo dos problemas dos filósofos, ou a reflexão sobre os temas das diversas áreas do pensamento filosófico e, ainda, de forma mais divergente, o desenvolvimento de habilidade de pensamento. Invariavelmente essas abordagens do ensino da filosofia se convertem num exercício dialético, reduzindo o filosofar a uma arte literária fechada que não ilumina nem dirige a confusão em que a criança e o jovem encontram-se imersos em suas experiências de vida. Pretendo argumentar nesse artigo que a educação filosófica pode ser pensada em patamar, ou seja, estabelecendo como seu objeto primário o campo contínuo, interconectado e conflituoso da experiência de vida. Para desenvolver minha argumentação tomo como referência a compreensão da filosofia como uma atividade social e cultural de valor indispensável, uma vez que ela tem a tarefa de pensar os problemas da experiência presente, tal como elaborado por John Dewey. Início com uma breve referência à vida deste pensador que pode iluminar nossa reflexão. Dewey declarou, em sua breve biografia, intitulada Do Absolutismo ao Experimentalismo, que os problemas sociais foram a fonte inspiradora de seu 12 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
pensamento: “Os interesses sociais e os problemas desde um período muito cedo constituíram uma apelação intelectual para mim e me forneceram o alimento intelectual que muitos parecem ter encontrado principalmente em questões religiosas” (DEWEY, 1930, p. 20). Ele nasceu e viveu num período de grandes transformações da sociedade norte-americana: urbanização, industrialização e centralização econômica, imigrações e inúmeros problemas sociais. A emergência desses problemas contrastava com uma educação marcadamente centrada na transmissão de conteúdos. O aluno dessa escola devia exercitar sua memória repetindo fórmulas e adotar a conduta moral imposta pela autoridade escolar. A filosofia da época girava em torno da repetição do pensamento filosófico europeu. Dewey vislumbrou outras tarefas para a filosofia e a educação: pensar os desafios e problemas concretos de sua sociedade. É neste sentido que se pode entender filosofia como “amor à sabedoria”, ou seja, pensar os problemas que se originam dos conflitos e dificuldades da vida social. Para ele, a tarefa premente era reconstruir a filosofia como forma de pensar os significados mais profundos da experiência, a fim de conduzir inteligentemente o agir humano. Mas por que reconstruir a filosofia? O pensamento filosófico havia enveredado pelos caminhos da metafísica ou de um exercício da razão em busca das origens e finalidades absolutas, distanciando-se dos problemas da experiência. Neste sentido, ele se posicionou: “A filosofia repudia investigações sobre origens e finalidades absolutas, a fim de explorar valores específicos e condições específicas de sua produção” (DEWEY, 1965, p. 13). A filosofia como arte de pensar restrita a um pequeno grupo de especialistas não cumpria sua função social, ética e política. Era necessário romper com este enclausuramento da filosofia e reaproximar a filosofia da sua finalidade primeira, que é a de pensar os problemas da vida: “[...] a filosofia deverá se tornar um método de localizar e interpretar os mais sérios dos conflitos que ocorrem na vida, e um método de projetar meios para tratá-los: um método de diagnóstico e prognóstico moral e político” (Idem, p. 18). Além disso, a filosofia deveria pensar os problemas da educação e aqueles que envolvem a conduta da mente humana. Em todos os casos, a filosofia não poderia ficar restrita ao mero exercício especulativo da metafísica, mas ter na prática sua fonte de validação: “[...] uma filosofia que tem a modesta pretensão de trabalhar para projetar hipóteses para a educação e a conduta da mente, individual e social, está, desse modo, sujeita a provar na prática as idéias que ela propõe” (Idem, 1965, p. 18)
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O método de filosofar consiste na própria atividade do pensamento no processo da dúvida-investigação e transformação da situação experienciada. Dewey deixou explícito que analisando como pensamos podemos inferir algumas etapas comuns no processo de pensar que ele denominou “pensamento reflexivo”. A primeira etapa do processo reflexivo é sentir uma situação como indeterminada, caótica, confusa ou duvidosa. O que ocorre na situação é um conflito, desajuste ou bloqueio da interação entre o indivíduo e meio (natural e social). A situação indeterminada é sentida na forma de um estranhamento que desperta o pensar. A segunda etapa implica a decisão de querer interpretar os dados da situação para definir o problema, tendo-se, então, uma situação problemática. Para superar o método de tentativa e erro e tornar o ato de pensar numa experiência autenticamente reflexiva, são necessários dois movimentos, nesta etapa: examinar os dados oriundos da observação atenta da situação que origina o ato de pensar, para retirar dela os dados relevantes, e, por outro lado, buscar as informações, conhecimentos e conteúdos acumulados em experiências anteriores do sujeito ou da cultura. Nessa etapa do processo reflexivo os conhecimentos acumulados nas experiências anteriores, assim como os conhecimentos acumulados na cultura (os conteúdos das áreas de conhecimento) são extremamente importantes para interpretar a situação e orientar a investigação no processo de elaboração das hipóteses. Esses dois movimentos articulados permitem localizar e definir a situação e o problema. Na etapa seguinte, a reflexão continua com a elaboração de hipóteses e suas consequências como soluções possíveis para o problema. A situação evolui para uma situação hipotética. A conclusão do processo reflexivo consiste na elaboração de um plano de ação para por à prova a hipótese (verificação) e transformar a situação problemática, gerando, assim, um novo conhecimento. Pensamento reflexivo é a atividade inteligente que exige esforço consciente e voluntário para reconstruir a experiência através da investigação: “O pensamento reflexivo faz um ativo, prolongado e cuidadoso exame de toda crença ou espécie hipotética de conhecimento, exame efetuado à luz dos argumentos que a apóiam e das conclusões a que chega.” (DEWEY, 1979, p. 18, itálicos do autor) Dewey identifica a atividade de pensamento reflexivo como sendo a própria atividade da investigação, conforme podemos ver em sua definição de investigação: A investigação é a transformação controlada ou dirigida de uma situação indeterminada em outra que é de tal modo determinada nas suas distinções e relações que a constituem que converte
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os elementos da situação original em um todo unificado. (DEWEY, 1960, p. 104, itálicos do autor) Para esse autor, o pensar reflexivo permite dar um salto no desconhecido a partir do que é conhecido pelo processo da inferência, da interpretação, da suposição, da observação cuidadosa. Ele disse: “[...] um pensamento (o que uma coisa sugere, e não a coisa tal como se apresenta) é criador, é uma incursão no novo. Ele subentende alguma inventividade” (DEWEY, 1979b, p. 174). O novo, familiar de alguma forma, é visto sob nova luz, sob diferente uso dado ao mesmo na busca de transformação da situação problemática. A novidade que o pensamento produz consiste na percepção de novas relações para as coisas familiares, permitindo a contínua reconstrução da experiência. Praticamente todos os conhecimentos como as descobertas científicas, invenções, teorias e as produções da arte resultam desse processo. O mesmo ocorre no campo da filosofia, num processo contínuo de reconstrução. A tentativa de Dewey foi de reconstruir a filosofia fazendo, por lado, a crítica ao distanciamento da reflexão filosófica da experiência e, por outro lado, propondo que a investigação filosófica, na forma de pensamento reflexivo, se ocupasse de pensar os problemas éticos, políticos, lógicos e educacionais da experiência presente. Isto tem consequências importantes para o ensino de filosofia, como argumentou Henning (2011, p. 166): Focalizando a nossa atenção ao ensino de Filosofia, parece que Dewey estaria nos aconselhando a investir na investigação constante das nossas ideias e crenças, no exame crítico, preocupando-nos em desenvolver um pensamento bem fundamentado e justificado em razões sobre cuja elaboração teríamos um pleno domínio e controle das conclusões a que estaríamos chegando. Tal esforço intelectual seria notadamente de nossa própria autoria – embora devendo sempre sermos orientados e ajudados pelo professor, um colaborador indispensável e um profissional capacitado, no que diz respeito à construção dessa autonomia.
Segundo Dewey, o pensamento reflexivo não é uma forma lógica externa à experiência, fornecida pela mente ou pelo pensamento, mas construído no próprio processo da investigação da experiência problemática. Acompanhemos o argumento do autor no excerto a seguir: [...] o pensamento não significa algum estado transcendental ou ato introduzido subitamente dentro de uma cena natural prévia, mas que as operações do conhecimento são respostas naturais do organismo, que constitui conhecimento em virtude da situação de dúvida na qual ele surge e em virtude do uso da investigação, reconstrução e controle sob o qual é colocado (DEWEY, 1953, p. 332, tradução nossa).
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Assim, é possível inferir que, para ele, o objeto primário da investigação filosófica, a sua genuína habitação, seja o campo contínuo, interconectado e conflituoso da experiência individual e social. A reconstrução da filosofia significava que para realizar sua tarefa ela deveria habitar a experiência humana, ater-se aos problemas reais da vida, diante da avalanche das transformações. Conforme nos disse Dewey: Essa mudança não implica numa [sic] diminuição da dignidade da filosofia, não significa a remoção da filosofia de seu lugar altaneiro, sublime, para o de um rude utilitarismo, significa, isto sim, que sua função primordial é a de racionalizar as possibilidades da experiência, especialmente a da coletividade humana (DEWEY, 1958, p. 130, tradução nossa).
Esta citação nos coloca diante do problema de entender como o autor pensou esta função da filosofia de “racionalizar as possibilidades da experiência”. Desta forma, o trabalho a seguir consiste em compreender a concepção de experiência do autor.
2.Experiência e filosofar
A concepção de experiência é uma das categorias centrais para entendermos o filosofar. Ela é a origem e lugar de todo processo de filosofar. Com a filosofia habitando a experiência, Dewey pretendia superar os dualismos tradicionais das filosofias que separavam a experiência do conhecimento e, por consequência, todas as demais divisões, como inteligência e ação, inteligência e emoção, teoria e prática, saber e fazer, espírito e corpo, trabalho e lazer, etc. Estas filosofias dualistas têm sua origem na divisão social das classes – classes doutas e classes trabalhadoras, ricos e pobres, os que mandam e os que são mandados – uma vez que refletem a condição social da sua existência. Esse dualismo serve também para legitimar a continuidade dessa divisão de classes. A sua crítica às filosofias dualistas tem essa dupla função: a necessidade de reconstruir a filosofia por meio da reconstrução da concepção de experiência e recolocar a prática do filosofar como condição da vida democrática, exigindo a reconstrução da educação. Cabe recuperar neste momento o conceito de educação do autor: “[...] é uma reconstrução ou reorganização da experiência, que esclarece e aumenta o sentido desta, e também, a nossa aptidão para dirigir o curso das experiências subseqüentes” (DEWEY, 1979b p. 83, grifos do autor). Neste primeiro momento, concentrarei o estudo para a para a seguinte questão: como Dewey concebia a experiência? 16 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
A sua concepção de experiência está intimamente relacionada à própria vida. Nesse sentido, é necessário retomar a base biológica da vida. A condição de possibilidade da vida é o ambiente natural e social. Disse Dewey: “um organismo não vive em um meio, vive em virtude de um meio circundante” (DEWEY, 1960, p. 25, itálico do autor). A experiência vital consiste, segundo o autor, “[...] primariamente de relações ativas entre um ser humano e seu ambiente natural e social” (DEWEY, 1979b, p. 301). Em sentido mais geral, o ambiente da experiência é a própria natureza, que inclui a cultura como manifestação das suas próprias potencialidades. A experiência é da natureza, e como tal ocorre na natureza e no organismo humano – que também é um objeto natural – representando como as coisas são experienciadas1. A experiência consiste nessa interação vital de organismo e meio que combina dois elementos: um ativo, no qual a experiência é uma tentativa prática, um agir sobre o objeto do meio em que ela transcorre, em alguma direção circunstanciada no espaço e no tempo; o outro reativo, no sentido de que a experiência é um sentir ou sofrer as consequências do objeto sobre nós, originando uma significação. Há sempre uma combinação entre aquilo que podemos fazer sobre as coisas e a mudança produzida reagindo sobre a vida do organismo. Disse Dewey: O organismo atua sobre as coisas que o rodeiam, valendo-se de sua própria estrutura, simples ou complexa. Em sua conseqüência, as mudanças que produzem nesse meio circundante reagem a sua vez sobre o organismo e sobre suas atividades. O ser vivente sofre as conseqüências de seu próprio agir. Esta íntima conexão entre agir e sofrer ou padecer é o que chamamos experiência. O agir ou o sofrer, desconectados um do outro, não constituem nenhum dos dois a experiência. [...] Uma coisa vem a sugerir e a significar a outra. Temos, pois, uma experiência em um sentido vital e significativo. (DEWEY, 1958, p. 110-111).
A simples ação-reação que resulta numa modificação física, desacompanhada da relação de causa-consequência, é admitida como experiência, mas é desprovida de valor. A simples atividade, disse Dewey, é dispersiva, centrífuga, dissipadora2. Em outra passagem ele esclareceu melhor a importância da reflexão, que acresce de valor a experiência: “1) A experiência é, primariamente, uma ação ativo-passiva; não é, primariamente, cognitiva. Mas 2) a medida e valor de uma experiência reside na percepção das relações de continuidades a que nos conduz” (DEWEY, 1979b, p. 153, itálicos do autor). O processo de estabelecer a relação de continuidade implica perceber que uma
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Cf. DEWEY, 1958, p. 4a. Cf. DEWEY, 1979b, p. 152.
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coisa “sugere” ou “significa” a outra no curso da experiência. Infere-se aqui o trabalho do pensamento que, por meio da linguagem, capta o sentido que constitui a experiência. Separar um aspecto do outro – a ação e a reação que são geradores do significado – é destruir o processo da experiência. Por exemplo, o ato da criança de por o dedo no fogo efetivamente se constituirá em experiência quando se associa a dor sofrida como consequência desse movimento, de tal maneira que por a mão no fogo passa a significar queimadura, dor, sofrimento, algo a ser evitado pelas mudanças que o fogo ocasiona. A presença do pensamento no processo da experiência é condição para que ela seja acrescida de significação e para que resulte em aprendizado, formando, assim, o conjunto de noções de cada indivíduo3. Sem captar o significado que se dá pela conceituação, a experiência perderia completamente sua possibilidade de crescer, ampliar e ser transmitida, portanto, de ser educativa. Dewey enfatizou a importância da conceituação no trabalho pedagógico de condução da experiência educativa: [...] em toda fase de desenvolvimento, cada lição, para ser educativa, deveria conduzir a uma certa dose de conceptualização de impressões e idéias. Sem essa conceptualização ou intelectualização, nada se ganha que possa contribuir para uma melhor compreensão de novas experiências. (...). tal intelectualização é o depósito de uma idéia, definida e geral a um tempo. Educação, em seu aspecto intelectual, e obtenção de uma idéia do que é experimentado são expressões sinônimas (DEWEY, 1979a, p. 155/6, itálicos do autor).
O valor da experiência está nas relações de continuidade lógica e prática que ela permite que sejam construídas. A reflexão é o esforço intencional para descobrir as relações entre a coisa que fazemos e a consequência que resulta desta ação, estabelecendo a continuidade entre ambas e destas para futuras ações. Pensar, para ele, “[...] é o discernimento da relação entre aquilo que tentamos fazer e o que sucede em consequência. Sem algum elemento intelectual não é possível nenhuma experiência significativa” (DEWEY, 1979b, p. 158). Na experiência reflexiva ou experimental, que difere da experiência de erro-acerto, a observação é ampliada, conforme declarou Dewey: “Analisamos para ver com justeza o que existe entre as duas coisas, de modo a ligar a causa ao efeito, a atividade e a conseqüência” (DEWEY, 1979b, p. 158). É nesta espécie de experiência que surge o elemento intelectual, ao procurar descobrir minuciosamente as relações entre os atos e suas conseqüências. Tal forma de proceder, ativa e inteligente, ocorre desde a infância, pois quando, disse Dewey, o infante “[...] começa a esperar, começa a considerar alguma coisa atual como sinal de alguma coisa 3
Cf. DEWEY, 1979b, p. 153. 18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
que vai se seguir está, embora de modo muito simples, a formar juízos. Pois toma uma coisa como prova de uma outra, reconhecendo, assim, uma relação entre ambas” (DEWEY, 1979b, p. 159). É possível, assim, ampliar o domínio sobre as coisas suprindo a falta de algumas condições necessárias para determinado efeito, ou mesmo eliminando algumas causas que produziriam efeitos indesejáveis. O elemento intelectual que surge do processo de descobrir as relações entre nossos atos e o que acontece em consequência deles aumenta o valor da experiência, por tirá-la do fragmentário, do isolamento e da dispersão. A qualidade da experiência está na própria transformação, que opera no sentido de ampliar as possibilidades da vida, ou seja, permite maior participação e comunicação. Significados e valores são extraídos, preservados e colocados a serviço de novas experiências. Acerca desta mudança no curso da experiência, afirmou Dewey: “Quando o ato de tentar ou experimentar deixa de ser cego pelo instinto ou costume, e passa a ser orientado por um objetivo e levado a efeito com medida e método, ele tornase razoável – racional” (DEWEY, 1979b, p. 300). E o sentido de racional no curso da experiência é que “A razão deixa de ser faculdade remota e ideal, e significa todos os recursos por meio dos quais a atividade se torna fecunda em significações” (DEWEY, 1979b, p. 304). A experiência não é mais mera abstração de fatos, mas empírica, experimental, ou seja, atividade prática dirigida pelo conjunto de significações hipoteticamente concebidas pela reflexão. O filosofar sobre a experiência é este esforço deliberado para, como disse Dewey, “[...] tornar explícito o elemento inteligível de nossa experiência” (DEWEY, 1979b, p. 159). Desta forma, o pensar muda a maneira do agir humano, que passa a ser orientado por um fim em vista, hipotético, ou seja, torna possível estabelecer as relações entre meios e objetivos e/ou valores da ação. Os impedimentos para o crescimento da experiência eram, para Dewey, a rotina e os procedimentos caprichosos. A primeira porque é escrava dos “hábitos passivos”, dos automatismos e deixa as coisas como estão. Os segundos porque se prendem ao ato momentâneo e desprezam as associações das ações com as energias do ambiente. Todos falham no mesmo ponto: “[...] recusam-se a reconhecer sua responsabilidade pelas futuras consequências oriundas da ação atual” (DEWEY, 1979b, p. 160). Estas responsabilidades somente podem ser conhecidas e assumidas pelo esforço da reflexão que cria os significados da experiência: “A reflexão subentende 19 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
também interesse pelo desenlace – uma certa identificação simpática de nosso próprio destino, pelo menos imaginativamente, com o resultado do curso dos acontecimentos” (DEWEY, 1979b, p. 161). Consequentemente, em termos educacionais, a reflexão deveria se constituir como um princípio da aprendizagem. Aprender é aprender a pensar de forma que o pensar se transforme no método de aprender, isto é, um hábito ativo capaz de reconstruir os hábitos passivos. Pensar, como processo ativo de investigação da situação problemática da experiência, gera a compreensão e transformação da experiência e não o acúmulo de dados na memória, para que sejam lembrados mais tarde, se solicitados. Por isso, a educação tem essa exigência radical: pensar. E o tipo de pensamento que interessa à educação é o pensamento inquiridor: “Pensar é inquirir, investigar, examinar, provar, sondar para descobrir alguma coisa nova ou ver o que já é conhecido sob prisma diverso. Enfim, é perguntar”. (DEWEY, 1979a, p. 262). O conceito de experiência de Dewey fundamenta-se na unidade de pensamento e ação, da vontade e da intenção de transformar uma situação problemática e da continuidade entre o passado, presente e futuro. Porém, ele alertava que as coisas podem ser experienciadas sem que o ato se caracterize como uma experiência, pois a distração e dispersão impedem a percepção das relações entre as coisas4. Temos uma experiência, disse ele, “[...] quando o material experimentado segue seu curso até sua realização. Então, e só então, ela é integrada e delimitada, dentro da corrente geral da experiência, de outras experiências” (DEWEY, 1953, p.34). Neste sentido, podemos inferir que há interdependência entre as experiências na medida em que as significações apreendidas servem de instrumento para se pensar as novas situações experienciais. Disse Dewey: Quanto mais aprende um organismo – isto é, quanto mais resultam retidos e integrados, na fase presente de um processo histórico, os termos anteriores – tanto mais tem que aprender se quiser seguir adiante; caso contrário, temos catástrofe e morte. Se a mente é um processo mais de vida, um processo mais de registro, conservação e uso do que foi conservado, então deve ter traços empiricamente: o de uma corrente em movimento, de mudanças constantes, que, contudo, têm um eixo e direção, articulações, associações, assim como iniciações, hesitações e conclusões. (DEWEY, 1958, p. 282)
Em outra passagem, o autor argumentou pela importância que tem o acúmulo de experiência para a constituição do próprio “eu”: [...] o processo do viver é contínuo; tem continuidade por ser um processo permanentemente renovado de ação sobre o meio e exposição à ação dele, juntamente com a instituição de relações entre o que se faz e o que se sofre. Portanto, a experiência é necessariamente cumulativa, e seu conteúdo ganha 4
Cf. DEWEY, 1953, p. 34. 20 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
expressividade por causa da continuidade cumulativa. O mundo que experimentamos no passado se torna parte do eu que age e sofre a ação em outras experiências. Em sua ocorrência física, as coisas e eventos experienciados passam e acabam. Mas algo de seu significado e valor é preservado como parte integrante do eu. Através dos hábitos formados na interação com o mundo também habitamos o mundo. Ele se torna um lar, e o lar faz parte de nossa experiência cotidiana. (DEWEY 2010, p. 211-212).
O contínuo acúmulo dos significados das experiências permite que a observação e o julgamento vão se tornando cada vez mais ampliados e minuciosos. O pensar resulta em conhecimentos, mas estes têm valor na medida em que podem ser usados para fecundar novas experiências. A experiência combina, assim, um duplo movimento do pensar, o retrospectivo e o prospectivo, necessários para a continuidade da vida num mundo em contínua mudança. Uma experiência tem uma consumação e não uma cessação: há continuidade entre as experiências e um acúmulo de significações graças à linguagem: “A experiência é o resultado, o sinal e a recompensa desta interação do organismo e o ambiente, que quando se realiza plenamente transforma a interação em participação e comunicação” (DEWEY, 1953, p. 22). O registro simbólico da experiência permite a sua ampla comunicação. Desta forma, a experiência passada enriquece a experiência presente, dando a estas novas direções e significados. Além disso, a experiência deixa de ser uma coisa isolada e se conecta com a experiência da própria humanidade possibilitando a continuidade social. Para Dewey, os significados se tornam possíveis devido à linguagem, que um instrumento que permite a associação humana: “Significados não viriam à existência sem a linguagem, e linguagem implica dois “eus” (selves) envolvidos em um empreendimento conjunto e partilhado” (DEWEY, 1958, p. 299). Desta forma, podemos inferir que as significações construídas nas experiências implicam um modo de agir social: por um lado implica o aprendizado da linguagem como um instrumento que permite a continuidade da significação das experiências do indivíduo pelo processo de generalização e acúmulo das mesmas; por outro lado, permite a comunicação dos significados no grupo tornando possível a participação do indivíduo com o grupo, constituindo a vida associada. Nessa perspectiva, a comunicação 3 disse Dewey, “[...] quando o seu uso estabelece uma genuína comunidade de ação” (DEWEY, 1958, p. 185). A comunicação modifica as formas orgânicas de agir, transforma os acontecimentos em objetos ou coisas com uma significação. As significações
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introduzem novas qualidades na experiência: do ponto de vista social, temos a dimensão da cultura, e, do ponto de vista individual, a origem do “eu” ou da própria mente. A cultura é tanto condição como produto da linguagem. O ambiente cultural, ao atuar modificando a conduta orgânica, dota esta de propriedades intelectuais. O desenvolvimento da linguagem neste ambiente cultural é a chave para compreender esta transformação da conduta humana. Dewey colocou da seguinte forma esta questão: A transformação do comportamento orgânico em comportamento intelectual, caracterizado por propriedades lógicas, é produto do fato de que os indivíduos vivem em um ambiente cultural. Este viver os força a assumir em seu comportamento o ponto de vista dos costumes, crenças, instituições, significados e projetos que são pelo menos relativamente gerais e objetivos. [...] A linguagem ocupa um lugar destacado e exerce uma função peculiarmente significativa no complexo que forma o ambiente cultural. Ela é em si mesma uma instituição cultural. [...] Ela é (1) a agência através da qual outras instituições e hábitos são transmitidos, e (2) ela permeia tanto as formas como os conteúdos de todas as demais atividades culturais. Além disso, ela tem a sua própria e distintiva estrutura que pode ser abstraída como uma forma. (DEWEY, 1960, p. 45).
A linguagem foi concebida, na filosofia deweyana, como o instrumento da cooperação social e estabelece a continuidade entre a origem e desenvolvimento das significações. Dewey coloca a linguagem como o “instrumento dos instrumentos”5, ou seja, o próprio uso dos instrumentos está sujeito às condições aportadas na linguagem em virtude de sua capacidade representativa ou de sentido. A aptidão para responder às significações no contexto social de uso e empregá-las para guiar a ação no grupo, não se limitando às reações dos contatos físicos, torna possível a experiência inteligentemente dirigida, diferenciando a ação do homem do comportamento dos demais animais. As ações conjuntas dos seres humanos são possíveis graças à presença de sinais. Diz Dewey: “No ser humano, esta função passa a ser linguagem, comunicação, discurso, em virtude da qual as conseqüências de uma forma de vida se integram na conduta de outra” (DEWEY, 1958, p. 230). A comunicação promove um amplo aprendizado de hábitos em número e complexidade: Comunicação não apenas aumenta o número e variedade de hábitos, mas tende a ligá-los sutilmente e, eventualmente a sujeitar a formação de hábitos, em um caso particular, ao hábito de reconhecer que novos modos de associação irão exigir um novo modo de uso dele (DEWEY, 1958, p. 231).
A formação de hábitos coloca para o ser humano um número crescente de necessidades e o leva a um novo relacionamento com o mundo. Os hábitos levam o indivíduo a fazer buscas e experimentalismos, a fazer variações e expor-se ao erro e 5
Cf. DEWEY, 1958, p. 186 22 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
fracasso. Mesmo nesse caso, tal exercício aumenta a susceptibilidade, sensibilidade e capacidade de responder ao erro ou fracasso. A mediação social criada para a formação dos hábitos é a educação. A concepção de educação deweyana tem o pensar como princípio da aprendizagem. Pensar é o princípio educativo, para Dewey: “[...] é evidente que a educação, quanto a seu lado intelectual, está vitalmente relacionada com o cultivo da atitude do pensar reflexivo, preservando-o onde já existe, e substituindo os métodos de pensar mais livres por outros mais restritos, sempre que possível” (Dewey, 1979a, p. 85, itálicos do autor). Ele defendeu que a função da educação é a formação de hábitos “[...] a educação consiste na formação de hábitos de pensar despertos, cuidadosos, meticulosos” (Dewey, 1979a, p. 86, itálicos do autor). Faz Nessa perspectiva, faz sentido defender o desenvolvimento do hábito do filosofar desde os primeiros anos de escolaridade, permitindo à criança lidar com esse aspecto de sua experiência.
3.A reconstrução da Filosofia
O problema colocado anteriormente da reconstrução da experiência se converte no problema de reconstrução da filosofia, ou mais especificamente, como declarou Dewey “... um estudo da experiência de vida por meio da filosofia” (DEWEY, 1958, p. 37). Um estudo que penetre no interior da experiência, exprimindo os profundos conflitos e as infindas incertezas da civilização, buscando descobrir uma nova ordem de relações não patentes e fornecendo claridade à própria experiência. Introduzindo um novo significado à experiência, a filosofia passa a fornecer um método para a experiência comum dos homens. Portanto, a tarefa da filosofia é ajudar a clarificar os significados ou sentidos ou direções na experiência. Neste sentido, afirma Dewey acera desta primeira tarefa da filosofia: “Sua primeira incumbência é clarificar, emancipar e estender os bens inerentes às operações da experiência naturalmente originada” (DEWEY, 1958, p. 407). Por isso, ela tem amplo valor humano e libertador, na medida em que sugere direção inteligente à ação, à emoção e ao relacionamento social. Por outro lado, a experiência está saturada com classificações e interpretações produzida pelas reflexões das gerações passadas e que parecem material fresco e ingenuamente empírico, mas são convencionalismos. São apelos ao preconceito e ao
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fanatismo.6 Se, mesmo desconhecendo as fontes e a autoridade dos conceitos produzidos na história, eles forem considerados preconceitos, independentemente de serem verdadeiras ou falsas, a filosofia seria a crítica dos preconceitos. Assim, a outra tarefa da filosofia em continuidade com a anterior é a de detectar e refletir sobre os resultados das reflexões passadas expressadas nos conceitos que usamos e que se encontram soldados aos materiais da experiência de primeira mão, ou seja, tornaram-se hábitos ou habituais. A filosofia desnuda intelectualmente os hábitos adquiridos na assimilação da cultura. Seu papel é inspecionar criticamente esses hábitos para ver do que são feitos e de que nos servem adotá-los, contribuindo com o avanço inteligente da própria cultura. Caso contrário eles frequentemente ofuscam e distorcem a própria experiência: Uma filosofia empírica é, de qualquer modo, algo como despir-se intelectualmente. Não podemos nos despojar permanentemente dos hábitos intelectuais que contraímos e vestimos quando assimilamos a cultura de nosso tempo e de nosso lugar. Mas o progresso inteligente da cultura exige que abandonemos alguns desses hábitos, que os inspecionemos criticamente, a fim de descobrir sua constituição e seu uso para nós. Não podemos retornar à primitiva ingenuidade. Não obstante há uma ingenuidade cultivada dos olhos, dos ouvidos e do pensamento, a qual é atingível, mas só pode ser adquirida através da disciplina de um pensamento rigoroso (DEWEY, 1958, p. 37).
A “disciplina de um pensamento rigoroso” denota a tarefa crítica da filosofia diante do conhecimento de seu tempo e espaço: “[...] objetiva a crítica das crenças, instituições, costumes, política com respeito a seu significado sobre o bem” (DEWEY, 1958, p. 408). Desta forma, a crítica aos preconceitos significa para Dewey “[...] clarificação e emancipação, quando eles são detectados e atirados fora” (DEWEY, 1958, p. 37). Dewey concebe a filosofia como sendo inerentemente crítica, entendendo que ela tem uma posição distinta entre os vários modos de crítica em geral: ela é a crítica da crítica. A necessidade da crítica advém da tendência dos conceitos se tornarem rígidos compartimentos não comunicativos e, portanto, não interativos. Dewey menciona a variedade de especializações como a ciência, a indústria, a política, a religião, a arte, a educação, a moral, etc. que, quando se institucionalizam ou profissionalizam, se isolam e se petrificam. Daí a necessidade da tarefa crítica da filosofia: A super-especialização e a divisão dos interesses, as ocupações e os bens criam a necessidade de um meio geral de intercomunicação, de uma crítica mútua em torno da tradução de uma região ilhada da experiência à outra. 6
Cf. DEWEY, 1958, p. 33. 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Assim, como um órgão de crítica, a filosofia resulta, com efeito, um mensageiro, um oficial de conexão, fazendo reciprocamente inteligíveis as vozes que falam línguas provincianas, e desta forma, ampliando e retificando as significações de que estão grávidas. (DEWEY, 1958, p. 410).
Diante do perigo do homem se perder diante da avalanche de especialização científica, Dewey previu o papel da filosofia como promotora de um diálogo que permite recompor um cenário completo, abrangente e integral. Ao mesmo tempo, a filosofia pode orientar o homem na escolha dos valores que lhe garantem a continuidade da vida. A filosofia como crítica ou a filosofia experimental, como postulada por Dewey, significa uma prática radicalmente diferente da metafísica. A filosofia não nasce de algum impulso especial ou de um setor separado da experiência. Ela se origina da “[...] totalidade da condição do homem, esta situação humana cai integralmente dentro da natureza” (DEWEY, 1958, p. 421). Portanto, a crítica faz sentido quando ela considera a importância da natureza: “Observar, registrar e definir a estrutura constitutiva da natureza não é, pois, uma questão neutra ao ofício da crítica. É o esquema preliminar do campo da crítica, cujo principal alcance é permitir a compreensão da necessidade e natureza da função da inteligência” (DEWEY, 1958, p. 422). Considerando o que foi exposto acerca de pensamento e experiência, podemos identificar algumas conseqüências para a reconstrução da filosofia. Por um lado, a filosofia faz perguntas para promover a crítica dos conceitos e valores que usamos para compreender a própria experiência situada num contexto espaço-temporal, sóciocultural; por outro, ela pergunta pelos conceitos e valores que precisam ser criados ou reconstruídos como instrumentos necessários para controlar e conduzir inteligentemente a experiência diante dos problemas e conflitos que a afetam radicalmente. A compreensão sem o controle nos colocaria na situação de expectadores ou contempladores de um mundo estático, o controle sem compreensão nos leva à escravidão ou alienação. Ambas as tarefas pressupõem o diálogo e a democracia na criação de uma forma de vida social com liberdade de inteligência para problematizar, investigar, partilhar e comunicar os sentidos da experiência. Nessa mesma linha, Amaral inferiu que a tarefa da filosofia propugnada por Dewey é ajudar o homem a lidar com o presente, o atual, o existencial que é problemático, cheio de arestas e difícil de manejar: “Dewey clama pela participação ativa da filosofia nas lutas e nos debates da vida de seu tempo. Exige mesmo que ela 25 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
entre no palco onde se desenrola a luta do homem pela sobrevivência com o fito de ajudá-lo a encontrar a justa solução para os problemas” (AMARAL, 1990, P. 110) A filosofia empírica que se almeja para educação filosófica é a filosofia da, na e para a experiência. Filosofar sobre a experiência poderá transformar radicalmente a vida da criança e do jovem na medida em que lhes permite assenhorear-se intelectualmente de sua experiência, ou de sua vida. A filosofia experimental tem como preocupação criar aquela atitude de amor pela contínua busca da significação humana mais profunda da experiência rompendo com a tendência da cultura de massa que busca manter os indivíduos na superficialidade do consumismo. Somente assim, a filosofia poderá criar raízes na experiência permanecendo como fonte de reflexão e transformação e não mero conteúdo a ser ensinado e transmitido como produto de consumo para fins externos. No entendimento de Amaral (1990, p. 112): “[...] o papel que Dewey efetivamente atribui à filosofia, isto é, de ser um método de resolver problemas, em suas relações com as condições reais da vida presente.” Isto porque, segundo essa autora, esses problemas que a filosofia é chamada a lidar dizem respeito “[...] à necessidade de conciliar suas crenças sobre valores que devem dirigir a conduta. (AMARAL, 1990, p. 112). Essa discussão nos leva a explorar um campo especial de problemas que são os que se originam das relações entre experiência e democracia, ou em sentido mais amplo, as relações entre filosofia e educação, pensamento e democracia.
4.Experiência, democracia e educação
A concepção deweyana de democracia se baseia em dois critérios: o interesse comum e a interação e reciprocidade cooperativa entre pessoas e grupos. A maior ou menor graduação de presença destes critérios torna a vida mais ou menos social ou antisocial, amplia ou impede a endosmose social. Conforme expõe Dewey: “Os dois critérios para aferir-se o valor de alguma espécie de vida social são a extensão em que os interesses de um grupo são compartidos por todos os seus componentes e a plenitude e liberdade com que esse grupo colabora com outros grupos” (DEWEY, 1979, p. 106). Dewey estabelece estreita relação entre estes critérios e o desenvolvimento intelectual. A expansão da vida mental é dependente do crescente contato social ou cultural e com o meio físico. Neste sentido, Dewey alerta que diante da inexistência dos 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
critérios mencionados na vida social, a experiência perde em significação, pois fica restrita a poucos estímulos para o pensamento se sentir desafiado à pesquisa: “A falta do livre e razoável intercâmbio, que nasce de vários interesses compartidos, desequilibra o livre jogo dos estímulos intelectuais. Variedade de estímulos significa novidade, e novidade significa desafio e provocação à pesquisa e pensamento” (DEWEY, 1979, p. 91). Consequentemente, o isolamento e rotina significam restrição para a vida social: “A verdade fundamental é que o isolamento tende a gerar, no interior do grupo, a rigidez e a institucionalização formal da vida, e os ideais estáticos e egoístas” (DEWEY, 1979, p. 92). Para Dewey, a coexistência em boa medida destes dois critérios caracterizam uma sociedade democraticamente constituída. Nasce daí o conceito de democracia, para Dewey: “Uma democracia é mais do que uma forma de governo; é, essencialmente, uma forma de vida associada, de experiência conjunta e mutuamente comunicada” (DEWEY, 1979, p. 93) Numa sociedade democrática, o primeiro critério proposto, o dos interesses comuns compartilhados, significa a ampliação em quantidade e variedade dos pontos de participação e, mais importante ainda, aumenta a confiança no reconhecimento de que tais interesses recíprocos são os que devem servir de direção e controle social. Interesse comum, na explicação deweyana, significa a necessidade de cada indivíduo pautar suas atividades tendo em vista as ações dos outros, e levar em conta estas condutas para orientar e dirigir as suas próprias. A extensão para o maior número de indivíduos deste critério, mostra o alcance da democracia, pois, como observou Dewey, “[...] equivale à supressão daquelas barreiras de classe, raça e território nacional que impedem que o homem perceba toda a significação e importância de sua atividade” (DEWEY, 1979, p. 93). O segundo critério de uma sociedade democrática, o da interação e reciprocidade cooperativa com outros grupos, torna possível a cooperação mais livre entre os grupos sociais. Por isso, é possível desenvolver hábitos sociais necessários ao processo de adaptação contínua, tendo em vista a necessidade de ajustamento às novas situações problemáticas criadas pelos intercâmbios. Quantidade e variedade de intercâmbio proporcionam a diversidade de estímulos para o indivíduo reagir, variar seus atos, liberando energias que ficariam reprimidas numa convivência em grupo fechados e com restrições inibidoras. Dewey identifica que as características da sociedade democrática são fruto das 27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
ações
humanas
no
desenvolvimento
da
indústria,
comércio,
migrações,
intercomunicação e resultado do domínio das energias naturais pela ciência. A continuidade e ampliação da vida social democrática dependem do esforço voluntário. Mas isto somente se consegue com a educação. Desta forma, a democracia e educação constituem os pilares da vida social. Uma educação deliberada e sistemática é mais condizente com a comunhão democrática em que os interesses se interpenetram e se regulam mutuamente proporcionando progresso ou readaptações. Uma sociedade democrática somente será eficiente se a vida associada dos concidadãos for uma experiência onde os significados são construídos e comunicados numa ação conjunta. Repudiando a autoridade externa, política e intelectual, governantes, líderes e cidadãos regulam suas ações a partir dos critérios da democracia. Daí ser a democracia um princípio que, como forma de vida, deve afetar completamente o ser humano: A idéia de democracia é mais ampla e mais completa do que suas possíveis aplicações nos mais felizes dos casos. Para ser realizada, ela deve afetar todos os modos de associação humana: família, escola, indústria, religião. E mesmo no que tange a arranjos políticos, as instituições governamentais são apenas um mecanismo de fixar numa idéia canais de operação efetiva (DEWEY, 1991c, p. 148).
Por isso, a democracia é um ideal amplo e aberto em permanente reconstrução. A sociedade democrática é a única capaz de permitir a livre e necessária comunicação da experiência entre os indivíduos proporcionando a continuidade da vida social. A sociedade democrática é o espelho do próprio organismo humano. Para sobreviverem, os seres humanos mantêm contínua interação com o ambiente (escala biológica). No âmbito social, a interação exige associação e cooperação comunitária, ações mediadas pela comunicação com os outros membros da espécie. Para Dewey, a sobrevivência humana significa sobrevivência social que se realiza através do pensamento inteligente do homem. A própria inteligência tem origem na cooperação social, conforme pensa Dewey: “[...] inteligência é um bem, um ativo social que se reveste de função tão pública quanto é, concretamente, sua origem na cooperação social” (DEWEY, 1970, p. 77). A inteligência é o instrumento socializador por excelência e adequado para atuar com eficácia no sentido de restabelecer a continuidade da experiência. A cooperação social é uma necessidade natural, inata para a sobrevivência do ser humano e se manifesta nas demandas por companhia, emulação, organização para
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atingir fins comuns, expressão e manifestação estética, a necessidade de governar, etc. 7 A inteligência nasce e se desenvolve a partir desta condição humana e se torna um poderoso recurso para a vitalidade social. É o recurso que a raça dispõe como mediador dos conflitos: “A condição efetiva para a integração de toda divergência de fins e de todos os conflitos de crenças está em nos darmos conta de que a ação inteligente constitui o único recurso definitivo da humanidade, em qualquer campo” (DEWEY, 1929, p. 252). A ação inteligente só é possível se houver essa estrutura social sensível aos conflitos sociais e que permite a investigação pública dos modos de resolver os conflitos da vida associada e comunitária. Desta forma as crenças adquirem valor e a experiência individual pode adquirir significações universais, ao se integrar ao todo da sociedade e nela se imortalizar. Por sua vez, a inteligência está sempre em crescimento: Não é a inteligência uma coisa que se adquire de uma vez e para sempre. Ela está em constante processo formativo, e sua conservação requer constante alerta na observação das conseqüências, requer um espírito compreensivo empenhado em aprender, bem como uma coragem decidida a promover reajustamentos (DEWEY, 1958, p. 109).
Um sistema não democrático, como a escravidão ou a ditadura, coloca empecilhos para o desenvolvimento da inteligência, pois determina um padrão de comportamento e reprime ou elimina as manifestações que fogem do mesmo. O que se cultiva nesses sistema é a rotina e não a observação, reflexão, reajustamentos. Se a inteligência está em crescimento, dentro das fragilidades históricas, na mesma via estão a liberdade e a democracia. Para Dewey: A liberdade que é a essência da democracia é, sobretudo, a liberdade de desenvolver a inteligência; [...] Em qual extensão nós somos realmente democráticos será, no final, decidido pelo grau pelo qual as ameaças totalitárias existentes despertam-nos para a mais profunda lealdade à inteligência pura e indefinida, e às intrínsecas conexões entre ela e a livre comunicação: o método da conferência, consulta e discussão no qual elas tomam lugar, a purificação e a associação dos resultados líquidos das experiências da multidão de pessoas (DEWEY, 1991, p. 276).
Liberdade é, para Dewey, um conceito essencialmente social e intrinsecamente ligado à inteligência. Sua definição de liberdade está relacionada à capacidade de poder fazer que implica a capacidade de poder refletir: “[...] liberdade não é precisamente uma idéia, um princípio abstrato. É poder, poder efetivo de fazer coisas específicas. Não existe liberdade em geral; liberdade no sentido amplo. Se alguém quiser saber qual a condição da liberdade em um determinado momento, alguém tem que examinar o que as pessoas podem fazer e o que não podem fazer” (DEWEY, p. 1946: 111, itálicos do 7
Cf. DEWEY, 1946, p. 184.
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autor). Dewey insiste que o sentido da liberdade não deve ser confundido apenas com a liberdade de movimento (ir e vir), mas que sua mais plena significação encontra-se no pensamento: A única liberdade de importância duradoura é a liberdade de inteligência, isto é, liberdade de observação e de julgamento com respeito a propósitos intrinsecamente válidos e significativos. O erro mais comum que se faz em relação à liberdade é o de identificá-la com liberdade de movimento, ou com o lado físico e exterior da atividade. Este lado exterior e físico da atividade não pode ser separado do seu lado interno, da liberdade de pensar, desejar e decidir (DEWEY, 1997, p. 61).
A liberdade de pensar, desejar e decidir é desenvolvida quando se aprender o método da inteligência, ou seja, adquire-se o hábito de pensar reflexivamente que é o método democrático, ou método da inteligência cooperativa. Estamos falando do método empregado pelas ciências que é um poderoso instrumental de controle, criado pela inteligência humana e se constitui num desafio para ser utilizado analogamente na solução dos problemas referentes à conduta humana. Desta forma, o ser humano aprende a aprender, adquire a autonomia de pensamento ou auto-educação proporcionando o crescimento e contínuo amadurecimento. O sistema democrático é o que oferece as melhores possibilidades para o desenvolvimento da inteligência, uma vez que ele torna possível a ação compartilhada, a cooperação, a experiência inteligente investigativa e livremente comunicada. Os sistemas autoritários repelem a atividade reflexiva, diz Dewey: “Onde quer que impere a autoridade, o pensamento é tido como duvidoso e nocivo” (DEWEY, 1958, p. 144). Por sua vez, o método da inteligência é o método que alimenta a democracia, e, portanto, seria útil estar presente na educação para formar os hábitos investigativos ou o pensamento reflexivo. Desta forma, a construção deste hábito deve se constituir num princípio educativo, proporcionando uma auto-educação permanente por se constituir num aprender a aprender como forma de autogoverno, que pressupõe um contexto de liberdade e democracia. Neste sentido, Ghiraldelli, analisando o pensamento Deweyano, afirmou esta íntima conexão entre filosofia, educação e democracia: John Dewey entendia que a verdadeira educação era ‘crescimento’ em favor da diversidade e, sendo assim, só podia existir na democracia, dado que a democracia era entendida por ele como uma experiência histórica capaz de fazer proliferar pessoas e comportamentos mais variados. A filosofia, uma vez reconstruída, responderia a suas velhas perguntas epistemológicas e axiológicas à medida que usasse a educação como um ‘banco de provas’, observando a vida educacional. Esta, por sua vez, geradora de 30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
comportamentos, pessoas, situações variadas e ricas, não poderia ser senão o campo mais fértil para uma investigação empírica para responder perguntas do tipo ‘como se processa o conhecimento?’ e ‘como são gerados os valores?’ (GHIRALDELLI, 2002, p. 40)
O debate acerta do crescimento é muito caro na obra de Dewey a ponto de se constituir num critério moral e educacional. A experiência educativa é aquela que gera crescimento e, a experiência deseducativa é aquela que provoca parada no crescimento. Crescimento significa a possibilidade de reconstruir a experiência. O crescimento só é possível na medida em que a experiência estabelece contato com as outras experiências. Nesse sentido, o conhecimento acumulado ao longo da história, devidamente inserido no processo reflexivo da experiência do aluno, é valioso porque é fator de crescimento das experiências das novas gerações. Henning, comentando as idéias de Dewey, se posicionou neste mesmo sentido: O autor chama a atenção ao nosso olhar, como educadores, o qual não poderá se distrair jamais do horizonte de “crescimento” da criança, que deverá se constituir pela atração às futuras experiências, num movimento permanente de obter cada vez mais desenvolvimento. Desse modo, cada conhecimento só é valioso, educacionalmente, se impulsionar esse crescimento (HENNING, 2011, p. 141).
Para Dewey, a democracia tem significado moral e ideal: “Temos de ver que democracia significa a crença de que deve prevalecer a cultura humanística; devemos ser francos e claros em nosso reconhecimento de que a proposição é uma proposição moral, como qualquer idéia referente a dever ser” (DEWEY, 1970, p. 212, itálicos do autor). O significado moral e ideal da democracia foi extraído por Dewey da própria estrutura original da natureza humana. A natureza humana é constituída de inteligência como instrumento que a espécie dispõe para conduzir sua experiência. O método da inteligência é o método ou hábito do pensar reflexivo, método também da vida democrática. A defesa feita por Dewey do significado moral e ideal da democracia implica também a defesa da inteligência ou pensamento reflexivo e, por sua vez, da educação como modo de vida permeado por esses três valores: pensamento, liberdade e democracia. Defender um significado moral e ideal para a democracia é defender a própria vida. Conforme Amaral: “[...] crença no modo de viver democrático, como o mais humano de todos, o único verdadeiro porque o único que responde pelas necessidades vitais do homem, uma vez que a seu ver a própria estrutura biológica do ser humano está organizada segundo os mesmos princípios democráticos” (AMARAL, 1990. p. 115).
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O autor explicita a significação moral e ideal da democracia mostrando que a democracia: “[...] exige de todos uma retribuição social e porque se proporciona, a todos, oportunidade para o desenvolvimento das suas aptidões distintivas. O divórcio dos dois objetivos na educação é fatal à democracia; a adoção da significação mais restrita de eficiência priva-a de sua justificação essencial” (DEWEY, 1979, p. 133). Decorre daí o valor da educação, pois é por meio dela que se pode proporcionar a todos a possibilidade de se aquinhoarem dos benefícios sociais e desenvolverem suas aptidões individuais, e exige, também, de todos a respectiva retribuição social. Para Dewey, a educação deve propiciar um ambiente favorável para que cada indivíduo tenha a possibilidade de desenvolver sua natureza potencialmente social. Da mesma forma, a reflexão da filosofia sobre as necessidades humanas na luta pela sobrevivência deve ser regida pelos fins e valores democráticos para a garantia dos mesmos. A filosofia deverá ser o corolário da democracia. Assim sendo, a fé na democracia guarda íntima relação com a fé na experiência inteligente e na educação. A fé na democracia representou, para Dewey, a possibilidade de que através da comunicação da experiência, a Grande Sociedade se transformasse numa Grande Comunidade, revigorando o sentido público da investigação dos conflitos sociais através do método da inteligência, do pensamento reflexivo e inquiridor, que permite reconstruir e expandir os significados da experiência. Este esforço para extrair da extensa obra filosófico-educacional de Dewey parte de sua proposição de reconstruir a filosofia a partir da idéias de reconstrução da experiência, da inteligência e da democracia pode contribuir para pensar o problema do ensino da filosofia. Nesta perspectiva, inferimos que a aula de filosofia deveria operar o processo reflexivo no interior da experiência do estudante compreendendo que essa experiência é real, unitária, única e conflituosa, e que inclui necessariamente o pensamento e a ação. Neste sentido, a aula de filosofia deixa de ser uma atividade de contemplação expectadora do conhecimento, como tradição dogmática, e o converte num instrumento que passa a habitar e transformar experiência do educando, gerando e vitalizando os sentidos e possibilitando mudanças sociais significativas. A aula de filosofia passa ser uma atividade investigativa, experimental, ou seja, uma atividade de pensamento reflexivo que leva a tomar consciência da situação através da pergunta, da problematização e da criação de hipóteses. O papel da reflexão filosófica é localizar e interpretar os conflitos éticos, políticos, lógicos, estéticos e 32 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
educacionais que ocorrem na experiência vida, de forma a projetar meios para resolver tais problemas e reconstruir a experiência. Essa atividade pressupõe o diálogo e a democracia na criação de uma forma de vida social com liberdade de inteligência para problematizar, investigar, partilhar e comunicar os sentidos da experiência. Filosofar sobre a experiência poderá transformar radicalmente a vida do estudante na medida em que lhes permite assenhorear-se intelectualmente da experiência, aprendendo estabelecer os nexos de continuidade entre o conteúdo e o método, a filosofia e as demais disciplinas, a vida escolar e a vida em sociedade. A filosofia experimental pode criar atitude de amor pela contínua busca da significação humana mais profunda da experiência rompendo com a tendência da cultura de massa que visa manter os indivíduos na superficialidade do consumismo. A filosofia poderá criar raízes na experiência permanecendo como fonte de reflexão, exame crítico e transformação e não mero conteúdo a ser ensinado e transmitido como produto de consumo para fins externos a experiência.
Referências: AMARAL, Maria N. C. Pacheco. 1990. Dewey: Filosofia e experiência democrática. São Paulo: Perspectiva/EDUSP. DEWEY, John. The quest for certainty: a study of the relation of knowledge and action. 12 ed., New York: Minton, Balch & Company, 1929. 318 p. ______. From absolutism to experimentalism. In: ADAMS, G.P., MONTAGUE, W.P. Contemporary American philosophy, vol. II. New York: The Macmillan Co., 1930. p.12-27. ______. Experience and education. New York: The Macmillan Company, 1939a. ______. Essays in experimental logic. New York: Dover publications, 1953. 444p. ______. Experience and nature. New York: Dover Publications, Inc., 1958. 443p. ______. Logic. The theory of inquiry. New York: Henry Hold and Company, 1960. 546p. ______. The influence of Darwin on Philosophy and other Essays in contemporary Thought. Bloomington: Indiana University Press, 1965. 309p. ______. Como pensamos como se relaciona o pensamento reflexivo com o processo educativo: uma reexposição.Tradução: Haydée Camargo Campos. 4ª ed. São Paulo: Nacional, 1979a. Atualidades pedagógicas; vol. 2. 292 p. ______. Democracia e educação. Tradução: Godofredo Rangel e Anísio Teixeira. São Paulo: Nacional, 1979b. Atualidades pedagógicas; vol. 21. 416p. ______. The latter works of John Dewey, 1925-1953:1939-1941 (LW). Edited by Jo Ann Boydston. Volume 16. Carbondale: Sounthen Illinois University Press, 1991a. 523p. ______. The latter works of John Dewey, 1925-1953: 1949-1952. (LW). Edited by Jo Ann Boydston. Volume 16. Carbondale: Sounthen Illinois University Press, 1991b. ______. The public and its problems. 12a. ed. Ohio: Ohio University Press, 1991c. 236 p. 33 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
______. A arte como experiência. Trad. Vera Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2010. GHIRALDELLI JR, Paulo. O que é filosofia da educação – uma discussão metafilosófica. In: GHIRALDELLI JR, Paulo. (org.) O que é filosofia da Educação? 3ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. pp. 7-87. HENNING, Leoni Maria Padilha. Contribuições ao ensino de Filosofia no Brasil partir dos princípios deweyanos sobre educação. In: Educação em Revista, Marília, v.12, n.1, p.155-168, Jan.-Jun., 2011.
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EXPERIÊNCIA E NATUREZA: LIÇÕES DEWEYANAS À PRÁTICA DOCENTE NA ESCOLA PÚBLICA BRASILEIRA1 Marcela Calixto dos Santos2 Leoni Maria Padilha Henning3 RESUMO: No primeiro capítulo do livro Experiência e Natureza, John Dewey (18591952) explora os conceitos de “experiência” e “natureza” mostrando-os de forma interrelacionada considerando a vida do ser humano e, principalmente, quanto ao aspecto cognitivo. Por estas razões, ele argumenta em favor da necessária consideração da relação intrínseca entre experiência e natureza, de forma a defender a utilização do método empírico nas pesquisas científicas, uma vez que para o autor, não há sentido no dualismo entre teoria e prática. Diante desta exposição, nos esforçamos para tentar relacionar tais princípios filosófico-educacionais em sua aplicabilidade numa realidade limitada pela falta de recursos materiais e financeiros, como no caso das escolas públicas brasileiras - onde muitos professores, acabam por restringir suas aulas apenas às explicações teóricas, se atendo somente ao campo da experiência secundária. Das ideias deweyanas que foram expostas, podemos extrair algumas lições para a prática docente, que muito podem ajudar a melhorar e aperfeiçoar o trabalho educacional de muitos professores, especialmente os de instituições públicas. Considerando que os seres humanos estão a todo o tempo experienciando e, por este motivo, podemos observar que experiência é vida, um dos caminhos possíveis para o professor, a nosso ver, seria tentar envolver o conteúdo escolar na realidade das experiências ordinárias de seus alunos, mostrando que existe relação entre ambos. Dessa maneira, o professor pode ensinar esses alunos a tirar proveito desses conhecimentos, compartilhá-los entre si, somando-os aos conhecimentos adquiridos fora da escola, para aplicá-los em suas respectivas vidas cotidianas. Palavras-chave: Experiência, Educação, Dewey, Prática Docente, Método Empírico. ABSTRACT: In the first chapter of the book "Experience and Nature", John Dewey (1859-1952) explores the concepts of "experience" and "nature" showing that they present a interrelated feature, considering the human life and, mainly, as the cognitive aspect. For these reasons, he argues in favor of the necessary consideration of the intrinsic relationship between experience and nature, defending the utilization of the empirical method in scientific research, since for the author, there is no sense in the dualism between theory and practice. Before this exposure, we strive to try to relate the philosophical-educational principles in its applicability into a reality limited by the lack of material and financial resources, as in the case of Brazilian public schools - where many teachers end up restricting their classes only to theoretical explanations, sticking up only to the field of secondary experience. From the deweyanas ideas that have been exposed, we can extract some lessons for teaching practice, that can greatly help to improve and increase the educational work of many teachers, especially those of public institutions. Considering that human beings are continuously experiencing and for this 1
Artigo aperfeiçoado a partir do texto Experiência e Natureza: Algumas contribuições á Prática dos Docentes Sul-americanos que foi publicado nos anais do I Congresso Latinoamericano de Filosofia da Educação: Identidade e Diferença da Filosofia da Educação na América Latina, 2011. 2 Docente atuante nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental na Rede Municipal de Ensino de Londrina e Discente do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: mcs.ela@gmail.com. 3 Professora Orientadora, atuante no Departamento de Educação da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: leoni.henning@yahoo.com 35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
reason, we can observe that experience is life, one of the possible ways for the teacher, in our view, would be to try to involve the school contents in the reality of ordinary experiences of their students, showing that there is a relationship between both. By that way, the teacher can teach these students to take advantage of this knowledge, to share them with each other adding them to the knowledge acquired outside school and applying, them in their respective everyday lives. Key-words: Experience, Education, Dewey, Teaching Practice, Empirical Method. Apresentação
A partir de leituras realizadas sobre algumas obras de John Dewey (1859-1952), percebemos no conceito de “experiência” um ponto central a ser compreendido se quisermos apreender bem a proposta e as análises realizadas pelo filósofo, como também, se nos empenhamos a avançar em nossa compreensão sobre as teorias pedagógicas, uma vez que nelas esta noção é frequentemente encontrada apresentando, contudo, sentidos mesmo sutilmente diversos. Neste artigo buscamos centrar nossos esforços na busca pela compreensão do conceito acima referido, e para isso, destacamos o livro Experiência e Natureza (1980) do qual tomamos o 1° capítulo para análise. O título deste capítulo é “Experiência e método científico” e nele Dewey explora os conceitos de “experiência” e “natureza” relacionados entre si em relação à vida do ser humano e, principalmente, quanto ao seu aspecto cognitivo. Por estas razões, é nesse capítulo que ele argumenta em favor da necessária relação da experiência e natureza, de forma a defender a utilização do método empírico nas pesquisas científicas. Contudo, o autor adverte quanto à dificuldade para se realizar um trabalho dessa natureza uma vez que o dualismo entre teoria e prática, dentre outras expressões de dualismos, gerou um fosso cada vez mais aprofundado desde a separação estabelecida primordialmente entre esses dois elementos. Entendemos que uma compreensão mais ampla, quiçá mais satisfatória, em relação à complexidade do conceito de “experiência” requer estudos rigorosos, os quais devem levar em conta o conjunto de ideias elaboradas pelo autor. Para tentar realizar um cuidadoso exame e exercitar um estudo dessa natureza, retomaremos algumas concepções localizadas nos livros Democracia e Educação (1959) e Experiência e Educação (2010) com o intuito de ampliarmos a nossa compreensão e elucidarmos com maior precisão a noção de experiência contida e integrada no panorama maior de sua construção filosófica. 36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Ampliando os objetivos deste estudo, intentamos contribuir com a formação docente tomando por base os princípios filosófico-educacionais expostos e discutidos, sugerindo ainda tais conhecimentos como componentes importantes à atuação profissional, mas tentando, contudo, provocar uma reflexão enriquecida pela própria situação em que os professores realizam o seu trabalho. Situação frequentemente dotada de importantes prejuízos pela falta dos recursos básicos que deveriam estar presentes no processo de ensino-aprendizagem. Daí o nosso interesse em apreendermos as sugestões de Dewey, relacionando-as a essa problemática concreta da situação imperante numa considerável parcela da educação latino-americana, com especial ênfase, na realidade brasileira.
1. Experiência e Natureza e o Método Empírico
De início, é importante destacarmos que Dewey (1980, p. 3) denomina a sua filosofia como “[...] naturalismo empírico, ou empirismo naturalista, ou [...], humanismo naturalista”. Ao tentarmos entender as razões que levaram este intelectual a utilizar tais designativos em relação à filosofia que elabora, tomamos em conta a constante e intrincada relação que o autor faz entre o homem e a natureza, em cujo âmbito natural de vivência e sobrevivência do primeiro o impele a agir, sofrer as ações do meio e reagir, interpretando assim a vida que aí se desenvolve e o fazendo sempre pela perspectiva natural. Considerando estas razões, para Dewey (1980), a experiência é o ponto de partida e o método para lidarmos com a natureza. Deste modo, a experiência está estreitamente interligada à natureza, e, por isso, ambas se constituem como conceitos centrais a serem entendidos na estrutura da linha filosófica advogada pelo autor. Observemos a seguinte citação: Apenas é possível esperar revelar, no decurso da discussão considerada como um todo, as significações que estão aderidas a “experiência” e “natureza”, e desta maneira insensivelmente produzir, desde que se seja afortunado, mudança nas significações previamente aderidas a elas. Este processo de mudança pode ser acelerado pelo chamar a atenção para outro contexto, no qual natureza e experiência convivem harmoniosamente juntas – onde a experiência apresenta-se a si própria como o método, e o único método, para atingir a natureza, penetrar seus segredos, e onde a natureza revelada empiricamente (pelo uso do método empírico na ciência natural) aprofunda, enriquece e dirige o desenvolvimento posterior da experiência (DEWEY, 1980, p. 3).
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A partir desta citação, compreendemos que a experiência é um termo que, para o autor, não possui apenas uma significação, mas sim está atrelado a diversas significações. Um destaque que podemos mostrar diante disso é que a experiência não pode existir sem a natureza, pois é o convívio harmônico das duas que fará com que a experiência se constitua racionalmente como o “método” para alcançar a natureza, compreendendo-a de maneira mais profunda. Isso porque a teoria e a investigação científica só podem ser validadas se, além de tudo, estiverem conectadas à experiência e à natureza, considerando que, as teorias filosóficas devam ser formuladas com base nas experiências. Na sequência, tentaremos elucidar melhor esta concepção.
1.1 A Noção Deweyana de Experiência
No livro Democracia e Educação (DEWEY, 1959), o autor nos esclarece que as diversas e infinitas interações estabelecidas entre os seres vivos - objetos naturais e parte integrante da natureza - com as coisas, permitem que a experiência ocorra. Neste contexto, em meio às inumeráveis experiências que acontecem na natureza, há aquelas, oportunizadas pelos órgãos dos sentidos do nosso corpo natural em interação com a ambiência na qual a vida opera, que nos permitem a percepção destas experiências. Diante destas explicações, Dewey (1980, p. 4) nos aponta que o: [...] material experienciado é o mesmo para o homem de ciência e para o homem da rua. O último não pode acompanhar o raciocínio intermediário sem preparação especial. Contudo, estrelas, pedras, árvores e coisas comuns são o mesmo material de experiência para ambos.
Assim, compreendemos que a experiência humana é constituída nas diversas interações do homem com as coisas, as quais são naturalmente experienciadas. Portanto, no mundo, existem relações que conectam e afetam os seres vivos de diversas maneiras: estes seres se relacionam entre si e também se relacionam com as coisas e com os fenômenos, de maneira que acabam se encontrando numa condição íntima com a natureza. A ciência é historicamente constituída graças às teorias engendradas nas experiências dos seres humanos com a natureza, pois estas teorias incentivam e proporcionam oportunidades de análise sobre o caráter das coisas. Por tais razões, Dewey (1980, p. 5) declara que “Não é a experiência que é experienciada, e sim a 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
natureza – pedras, plantas, animais, doenças, saúde, temperatura, eletricidade, e assim por diante”. Neste sentido, a experiência é indefinidamente elástica, tendo em vista que, concomitantemente, ela se desenvolve de forma a penetrar profundamente a natureza. A consequência ou a dedução – no caso, a teoria – provém desta extensão da experiência, que nos ajuda a conhecer melhor a natureza. Para entender melhor as experiências humanas, Dewey (1980) as classifica analiticamente entre primárias e secundárias. A “experiência primária” constitui-se pelo contato direto com os objetos naturais – “[...] o sol, terra, plantas e animais da vida comum, diária” (DEWEY, 1980, p. 7) - enquanto que a “experiência secundária” é fruto deste contato, que, por meio da reflexão, constitui-se como um produto derivado e refinado. Assim, é possível significar as coisas e ligá-las num sistema global, de forma a estabelecer relações entre as coisas, as quais, pela aparência, pareciam “particularmente isoladas” (DEWEY, 1980, p. 8). Não obstante, é fundamental destacarmos que, segundo as explicações do filósofo, esses produtos derivados devem se voltar à natureza a fim de terem sua validade testada, pois caso contrário, a permanência deles no campo da investigação reflexiva e dirigida pode engendrar dissimilaridades no entendimento de seus resultados em relação à realidade natural, tornando-os desconexos do mundo e totalmente ineficazes para a lida compreensiva dos humanos em suas respectivas realidades. Atentando para os princípios filosófico-educacionais deweyanos que foram expostos até o presente momento, principalmente sobre o caráter da experiência secundária, percebemos que as elucidações aqui referidas já podem embasar um princípio da teoria pragmática deweyana que prega que a experiência deve ser enriquecida no cotidiano do aluno. Para Dewey (1959, p. 83, grifos do autor), a educação “[...] é uma reconstrução ou reorganização da experiência, que esclarece e aumenta o sentido desta e também a nossa aptidão para dirigirmos o curso das experiências subseqüentes”. É a partir das possibilidades atuais que estão disponíveis ao aluno, que ele poderá enriquecer suas experiências de forma a aperfeiçoá-las e multiplicá-las, contribuindo então, de maneira consequente, para o aperfeiçoamento de si e da sociedade. Resta somente assinalar (o que merecerá depois maior atenção) que a reconstrução da experiência tanto pode ser social como pessoal. [...]. Estas [as comunidades progressivas] se esforçam por modelar as experiências dos jovens de modo que, em vez de reproduzirem os hábitos dominantes, venham a adquirir hábitos melhores de modo que a futura sociedade adulta seja mais 39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
perfeita que as suas próprias sociedades atuais. Há já tempos que o homem vem sentindo a extensão em que a educação conscientemente praticada pode eliminar manifestos males sociais fazendo os jovens seguir caminhos que não produzam aqueles males – como também não lhe tem faltado a intuição de que a educação pode tornar-se um instrumento para realizar as mais belas esperanças humanas. Entretanto, estamos sem dúvida longe de compreender a eficácia potencial da educação como agente edificador de uma sociedade melhor, de compreender que ela não só representa o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, mas também da futura sociedade que será constituída por eles (DEWEY, 1959, p. 85-86, acréscimos nossos).
Para Dewey, a experiência é íntegra e seus caracteres pertencem tanto ao gênero da “vida” quando ao gênero da “história” - o que lhe atribui um sentido duplo, mas que é indiviso em sua plenitude. “Vida denota uma função, uma atividade compreensiva, em que organismo e ambiência acham-se incluídos” (DEWEY, 1980, p. 10) e que se desenvolve pela interação das condições internas com as externas, como por exemplo, “[...] ar respirado, alimento consumido, terreno percorrido [...] pulmões respirando, estômago digerindo, pernas caminhando” (DEWEY, 1980, p. 10), constituindo a nossa experiência mais fundamental. Já em relação à história, o autor nos explica que ela é “amplamente conhecida”, tendo em vista que, além de se objetivar ao ser humano, ela também diz respeito à Terra, que é o ambiente em que ele vive, ou seja, ela diz respeito à trajetória da vida do ser humano realizada no universo e que se encontra consecutivamente em mudança. Vivendo e experienciando o mundo! [...] as proezas realizadas, as tragédias sofridas; também o comentário humano, registro, a interpretação que inevitavelmente se seguem. Objetivamente, a história compreende rios, montanhas, campos e florestas, leis e instituições; subjetivamente, inclui propósitos e planos, os desejos e emoções, através dos quais aquelas coisas são administradas e transformadas (DEWEY, 1980, p. 10).
1.2 A Experiência em relação à educação
Para Dewey (1959, p. 2), além do aspecto físico, a vida se manifesta ao mesmo tempo no âmbito social, tendo em vista que ela “[...] subentende costumes, instituições, crenças, vitórias e derrotas, divertimentos e ocupações”. Embora a auto-renovação da vida seja indefinida - pois todos os seres nascem e morrem - é pela dependência das necessidades pessoais que os seres vivos estão continuamente se readaptando ao ambiente e, consequentemente, propiciando o surgimento de espécies mais adaptadas aos seus obstáculos, frente aos quais as precedentes espécies lutavam.
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A partir desta lógica, explica-nos Dewey (1959), a vida está essencialmente relacionada com a experiência e com a educação. E é por meio da comunicação que as pessoas constantemente adquirem e compartilham as experiências dos mais diferentes tipos e formas. Portanto, o ambiente e o meio proporcionam as condições necessárias para que uma atividade se realize ou se iniba. O autor (DEWEY, 2010) nos alerta, entretanto, para a existência de experiências deseducativas, a saber, aquelas que engendram consequências não frutíferas ao indivíduo, apresentando-se com perfil qualitativo e/ou construtivo, mas que impedem e distorcem o amadurecimento das experiências vindouras. Em suas palavras: Experiência e educação não são diretamente equivalente uma a outra. [...]. Uma experiência pode ser de tal natureza que produza indiferença, insensibilidade e incapacidade de reação, limitando, assim, as possibilidades de experiências mais ricas no futuro. Uma outra experiência pode aumentar a destreza de uma habilidade automática, de forma que a pessoa se habitue a certos tipos de rotinas, limitando-lhe, igualmente, as possibilidades de novas experiências. Uma experiência pode ser imediatamente prazerosa e, mesmo assim, contribuir para a formação de uma atitude negligente e preguiçosa que, desse modo, atua modificando a qualidade das experiências tudo o que elas podem proporcionar. Outras experiências podem ser tão desconectadas umas das outras que, embora agradáveis e até excitantes, não se articulam cumulativamente. A energia se dissipa e a pessoa se torna dispersa. Cada uma das experiências pode ser vigorosa, intensa e ‘interessante’, mas, ainda assim, a falta de conexão entre elas pode gerar artificialmente hábitos dispersivos, desintegrados e centrífugos (DEWEY, 2010, p. 27).
Nesse sentido, para Dewey (2010, p. 38), “Toda experiência é uma força em movimento. Seu valor só pode ser julgado com base em para que e em para onde ela se move”, sendo também por essência, social, pois “[...] envolve contato e comunicação” (DEWEY, 2010, p. 39). A qualidade da experiência é determinada pelo aspecto da continuidade (influência sobre as experiências futuras) e, também, pelo aspecto da imediaticidade que ela deve manifestar implicando em revelar se no determinado momento em que ela está ocorrendo é agradável ou desagradável (DEWEY, 2010). Considerando que estamos contínua e sucessivamente experienciando e que a vida é educativa, pois sempre estaremos aprendendo, o filósofo declara que “[...] o problema central de uma educação baseada na experiência é selecionar o tipo de experiências presentes que continuem a viver frutífera e criativamente nas experiências subseqüentes” (DEWEY, 2010, p. 29). Os planos educacionais são fundamentais para que as atividades escolares não fiquem soltas, desconectas umas das outras, proporcionando experiências deseducativas. Assim, considerando a relevância de o educador construir um plano educacional para 41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
saber o que fazer e como fazer em meio ao processo de ensino aprendizagem, ele deve ter claro o conceito de experiência, para que possa tomar “[...] decisões acerca das matérias curriculares, dos métodos de ensino e de disciplina, bem como dos recursos didáticos e da organização social da escola [...]” (DEWEY, 2010, p. 29). A educação planejada em conformidade com as experiências dos alunos e, consequentemente, “[...] com os princípios do crescimento, o que é natural” (DEWEY, 2010, p. 31), segue um princípio aparentemente mais simples. Contudo, “Descobrir o que é realmente simples e agir de acordo com essa descoberta é uma tarefa extremamente difícil” (DEWEY, 2010, p. 31), pois faz parte de um processo lento e árduo de formação. Tomando em conta essas considerações principais, na sequência tentaremos problematizar a reação do método empírico desta perspectiva no campo de ação educacional, tentando não negligenciar, em nossa análise, as diversas condições desfavoráveis em relação à teoria, uma vez que há fatores singulares que tecem a realidade educacional brasileira. Desse modo, buscamos trazer uma singela, porém significativa contribuição reflexiva para a prática do educador leitor.
1.3 Problemática da prática docente e os ensinamentos de Dewey
Perante esta resumida exposição, uma das maiores inquietações possivelmente surgidas na mente do leitor gira em torno da problemática de como aplicar esses princípios a uma realidade limitada por precariedades materiais e financeiras - como no caso de muitas escolas públicas em nosso país. Diante desta realidade, muitos professores acabam por restringir suas aulas apenas às explicações teóricas e às necessidades mais imediatas. Então, nos perguntamos: como o professor poderá enriquecer as experiências pessoais de seus alunos nestes casos? Como possibilitar a reconstrução da experiência, avançando para uma experiência reflexiva ou secundária? E ainda, como aplicarmos esses princípios empíricos em meio ao processo de ensinoaprendizagem, estabelecendo relações entre a teoria e a prática no bojo dessas determinadas situações? Sem dúvida, eis aqui um grande desafio instigante que requer rigorosos estudos e reflexões. Contudo, intentamos poder encontrar uma “possível” resposta de Dewey para esta problemática ainda no capítulo supracitado. Para este autor, os objetivos da experiência secundária que são obtidos pela reflexão, 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
[...] definem ou delineiam uma vereda pela qual o retorno às coisas experienciadas é de tal sorte que o significado, o conteúdo significativo daquilo que é experienciado ganha uma força enriquecida e expandida por causa do caminho ou método pelo qual foi alcançado (DEWEY, 1980, p. 8).
Considerando essa citação para a nossa realidade, uma das soluções embasada nesses princípios advogaria o papel do professor enquanto condutor do aluno, de modo que este aprenda a aproveitar os inúmeros conhecimentos informativos, os quais ele tem acesso na escola e também fora dela. Assim, primeiramente, o professor deveria considerar as experiências pessoais de cada um, fazendo com que houvesse o estabelecimento interdisciplinar nas relações entre os conteúdos, informações e conhecimentos. Desta forma, encontramos uma via pela qual pode ser possível ensinar os alunos a tirar proveito de tais conhecimentos para aplicá-los cotidianamente em suas respectivas experiências. Seguindo este caminho, o professor deveria se esforçar para conseguir apontar situações onde fosse possível ao aluno verificar e testar os conhecimentos desenvolvidos em sala de aula, a fim de ampliar e enriquecer as suas experiências ordinárias em meio à realidade de cada um. Isso porque, segundo Dewey (1980), conforme acontece nos estudos científicos, a utilização da experiência, além de testar os valores de quaisquer teorias, por consequência, proporciona sentido às situações cotidianas, de maneira a torná-las mais significativas, frutíferas, lúcidas e reais. Sobre a relevância da experiência na investigação científica, o autor nos elucida que: Os problemas aos quais o método empírico dá lugar propiciam, em uma palavra, oportunidades para mais investigações, que produzirão frutos em novas e mais ricas experiências. Mas os problemas a que dá lugar em filosofia o método não-empírico são obstáculos para a investigação, becos sem saída; são quebra-cabeças, em vez de problemas, resolvidos apenas pelo chamar o material original da experiência primária de “fenomenal”, mera aparência, meras impressões, ou por algum outro nome depreciativo (DEWEY, 1980, p. 9).
Levando em conta essas ponderações, Dewey (1980) ainda nos explica que em nossas pesquisas, a obtenção de resultados honestos, perante a amplitude e inteireza da experiência, depende da utilização do método empírico. Este método, sistematicamente defendido por ele, é o único que toma a experiência como ponto de partida para o pensamento filosófico, não separando o objeto experienciado de suas operações e condições. Desta maneira, o método empírico não é dualista, tendo em vista que assim
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observamos uma consideração dos objetos de conhecimento como estando todos interrelacionados entre si. [...] para o método não-empírico, objeto e sujeito, mente e matéria (ou quaisquer outras palavras e ideias que sejam utilizadas), são separados e independentes. Decorre daí que tenha que enfrentar o problema de como é possível o conhecimento; como um mundo externo pode efetuar uma mente interna; como os processos mentais podem atingir e apreender objetos definidos em antítese a eles. Naturalmente vê-se embaraçado para dar uma resposta, uma vez que suas premissas tornam o fato do conhecimento tanto não-natural quanto não-empírico. Um pensador transforma-se em materialista metafísico e denega realidade ao mental; outro converte-se ao idealismo psicológico e sustenta que a matéria e a força são apenas eventos psíquicos disfarçados. As soluções são abandonadas como tarefas sem esperança, ou então escolas diversas amontoam uma complicação intelectual sobre outra apenas para atingir, através de um longo e tortuoso caminho, aquilo que a experiência ingênua já possui (DEWEY, 1980, p. 10-11).
Conforme o método empírico, o problema deve partir da experiência primária e retornar a ela, como já foi dito. Estando o mundo das coisas intimamente conectado aos interesses humanos – por exemplo, observa-se que “A história do desenvolvimento das ciências físicas é a história do crescente apoderar-se, pela humanidade, de instrumentalidades mais eficazes no lidar com as condições da vida e da ação” (DEWEY, 1980, p. 11), os estudos específicos só conseguem beneficiar o progresso da humanidade – especialmente no desenvolvimento das tecnologias - quando as coisas, como os objetos físicos, aparecem destacadas e separadas apenas “temporariamente”. Deste modo, as coisas, como os objetos científicos, são concebidas como coisas independentes, devendo ser interpretadas de forma conexa aos acontecimentos da experiência primária. Esta última - por estar ligada a propósitos, meios e objetos também não deve ser tratada como completa por si própria. Percebendo mais atentamente esta relação existente entre o gênero da vida e o da história em relação à experiência, podemos dizer que a experiência é vida, tendo em vista que ela está relacionada às ações humanas. Como já foi dito acima, não há evidência de que a experiência aconteça a todo tempo e a todo lugar, mas poderíamos dizer que os seres humanos estão a todo o momento experienciando, enquanto vivem (DEWEY, 1959). Assim, observamos que o autor apresenta um caráter unitário em sua visão de mundo e de sociedade, evitando fortemente qualquer postura dualista: [...] o efeito imediato da ciência moderna foi acentuar o dualismo da matéria e do espírito e por esse meio tornar os estudos físicos e os humanistas como dois grupos sem conexões mútuas. [...]. A experiência, em verdade, não conhece separação alguma entre os interesses humanos e um mundo 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
puramente mecânico e físico. A morada do homem é a natureza; a execução de seus intuitos e objetivos depende das condições naturais (DEWEY, 1959, p. 313-314).
Para ele, as coisas estão todas interconectadas entre si por meio de diversos tipos de relações. Por essas razões, o conhecimento científico pode muito melhorar, enriquecer, elucidar e multiplicar as experiências ordinárias de cada um, de maneira a colaborar para com o progresso da sociedade. Destarte, nos reportando para a sala de aula de uma escola limitada em termos de recursos financeiros para o trabalho requerido nos processos de ensino-aprendizagem, insistimos que um dos caminhos que o professor pode efetuar seria o de tentar envolver o conteúdo escolar na realidade das experiências ordinárias de seus alunos. Nesse caso, umas das alternativas metodológicas que podem ser utilizadas pelo professor, como exemplo, seria a criação de oportunidades para cada aluno se expressar, mostrar seus respectivos pontos de vista sobre o assunto, debater o conteúdo, tentar encontrar exemplos para as coisas que for aprendendo, dentre outros. É muito importante que o aluno aprenda a refletir sobre os fatores que envolvem e se envolvem nas suas ações. Dewey (1980) nos explica que, embora o ser humano naturalmente tenda a focar suas atitudes tomando as coisas experienciadas como independentes, o simples fato de o indivíduo vivenciar naturalmente a experiência independentemente de emoções e objetivos preestabelecidos, torna as qualidades das coisas experienciadas concernentes ao todo – cósmicas. O ser humano só tende a separar a experiência e as coisas experienciadas do seu cotidiano e do ambiente em que vive, quando se envolve com sentimentos vaidosos, egoístas e gananciosos. É importante destacar aqui que não é errado fazer análises, pois na análise, além de adquirirmos uma habilidade de controle, como já dissemos acima, nela a separação é temporária. Para o filósofo: É obvio que um mundo total, não analisado, não se presta a ser controlado; que, pelo contrário, ele é equivalente a sujeição do homem a tudo o que aconteça, como se ao destino. [...]. A abstração de determinadas qualidades das coisas consideradas como devidas às ações e estados humanos constitui o pou sto da habilidade de controle (DEWEY, 1980, p. 12).
A crítica deweyana se apresenta em direção à redução da experiência “[...] ao simples processo de experienciar [...]” (DEWEY, 1980, p. 11), onde a experiência e os objetos experienciados são considerados isolados entre si e tratados como completos por si mesmo. Não considerar que a experiência é o caminho pelo qual se torna possível atingir a natureza, os objetos e suas funcionalidades, consiste em um grande equívoco. 45 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Dewey (1980, p. 13) nos esclarece que “[...] o desenvolvimento do ‘subjetivismo’, representa um grande progresso”, visto que este foi muito relevante para o desenvolvimento da humanidade, uma vez que ele tornou possível o reconhecimento dos sujeitos como centro de suas experiências. Todavia, em seus escritos, o autor faz uma séria critica ao subjetivismo desenfreado. Tomando esta crítica para o contexto da sala de aula, observamos que é essencial ao professor tomar cuidado para mão misturar tendências egoístas em meio às finalidades de ensino-aprendizagem. Isto porque se o foco não estiver repousado sobre o objetivo de desenvolver e enriquecer as experiências pessoais de cada aluno, os resultados de seus ensinos e suas aulas podem distanciar os alunos das boas consequências e até mesmo podem gerar ensinamentos equivocados. Assim, a melhoria da vida do educando, e, talvez até da sociedade, que deveria ser uma possível consequência deste processo de ensino-aprendizagem, torna-se inviável. Sem nenhuma dúvida, o subjetivismo nas análises reflexivas influi fortemente nos resultados. Como exemplo, Dewey (1980) aclara que temos a tendência de nos aprisionarmos e de nos absorvermos nas experiências primárias, de maneira a aceitarmos suas propriedades experienciadas exatamente como se apresentam a nós, em nossa vista. O autor nos explica que “Crenças habituais em moral, religião e política refletem similarmente as condições sociais sob as quais se apresentam” (DEWEY, 1980, p. 13), e por isso, o nosso contexto de vida, nossas crenças e expectativas afetam fortemente as nossas visões sobre as coisas, e por consequência, nossas crenças e concepções. Adquirir consciência sobre esse fato é um avanço para o ser humano. Então descobrimos que cremos em muitas coisas não porque as coisas são assim, mas [...] que as qualidades que atribuímos aos objetos devem ser imputadas às nossas próprias maneiras de ter experiência deles, e que estas, por sua vez, se devem à força das interconexões sociais e do costume (DEWEY, 1980, p. 13).
Dewey (1980) ainda nos explica que quando dizemos ter experiência sobre alguma coisa, na realidade estamos apenas experienciando alguns poucos elementos desta coisa. Isso porque, neste processo, acabamos que reduzindo a experiência às características do ato de experienciar, através da utilização dos sentidos humanos. Quando não estamos mais diante dessa coisa que foi experienciada, podemos retornar a ela, utilizando-se das características sensoriais delas de maneira a revivê-las imaginativamente pelas ideias, ou seja, pela memória.
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A experimentação pode ocorrer de infinitas maneiras, logo, o “objeto” da experiência “[...] é infinitamente diferente e mais amplo do que aquilo que é afirmado ser experienciado” (DEWEY, 1980, p. 15). Deste modo, aquilo que foi experienciado é uma determinada parte da experiência real, e por estas razões, o relato da experiência só pode dar conta daquilo que foi experienciado. Nesta lógica, aquilo que é experienciado serve para testemunhar as “[...] características dos acontecimentos naturais” (DEWEY, 1980, p. 16), e por isso, a experiência pode e deve ser utilizada para esse fim. Não podemos nos esquecer de que a consciência social é um aspecto fundamentalmente relevante na teoria deweyana. Vejamos: Ter sobre as coisas as mesmas idéias que os outros, assemelhar-se espiritualmente a eles e ser, assim, verdadeiramente, membro de um grupo social, consiste, por conseguinte, em dar às coisas e aos atos as mesmas significações que os outros dão. De outro modo não haveria compreensão comum nem vida social (DEWEY, 1959, p. 32).
Nesse sentido, considerando o subjetivismo presente nos indivíduos principalmente em relação às diversas formas em que as experiências podem ocorrer – no processo de ensino-aprendizagem, o professor deve promover situações participativas em todos os momentos de suas aulas, de forma a proporcionar oportunidades para que seus alunos se expressem e compartilhem os conhecimentos entre si, visto que esses modos de compartilhamento de experiências e conhecimentos, “intercâmbios
sociais”
(DEWEY,
1959),
enriquecerão
significativamente
as
experiências de cada um. No âmbito da concepção de experiência, as experiências estéticas e morais são muito importantes, tendo em vista que suas características são reais, ou seja, elas caracterizam uma dada realidade, daí serem verdadeiras sob a perspectiva das experiências intelectuais. Assim, fantasia, imaginação e desejo tornam-se relevantes na teoria filosófica, e devem ser levadas em conta, pois considerando que fazem parte da vida social, enquadram-se entre os problemas dos seres humanos no mundo. Portanto, como o autor diz, “Ilusões são ilusões, mas a ocorrência de ilusões não é ilusão, e sim uma genuína realidade. Aquilo que se encontra ‘na’ experiência estende-se muito além daquilo que a qualquer tempo é conhecido” (DEWEY, 1980, p. 17, grifos do autor). Podemos concluir deste pensamento que a existência da subjetividade, acima de tudo, é um fato, e por este motivo, merece atenção.
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Dewey (1980) ainda nos explica que do mesmo modo em que devemos entender o valor das coisas notáveis, diferentes, perceptíveis, patentes e óbvias, também devemos nos atentar para a abundância das coisas monótonas, obscuras, crepusculares e escuras, uma vez que elas também fazem parte do processo individual de experienciar. “A existência da ignorância tanto quanto da sabedoria, do erro e até da insanidade, tanto quanto da verdade, será tomada em consideração” (DEWEY, 1980, p. 17). Observando esses apontamentos, vemos que coisas e expressões que são consideradas sem importância ou negativas podem ser muito significativas para ajudar na melhoria do processo de ensino-aprendizagem a partir do momento em que há uma busca pelo entendimento delas – por exemplo, o “erro” do aluno em uma avaliação pode indicar hipóteses da lógica de seu pensamento, assim como também, aspectos que necessitam ser melhorados e enfatizados nas práticas futuras do trabalho docente. O autor explica que: [...] qualquer objeto manifesto é portador de conseqüências possíveis que estão ocultas; a atividade mais manifesta possui componentes que não são explícitos. Exercitemos o pensamento o quanto possamos e nem assim todas as conseqüências poderão ser previstas ou tornadas parte expressa ou conhecida da reflexão e da decisão (DEWEY, 1980, p. 17).
Percebemos com frequência que, nas discussões a respeito do método empírico, muitos teóricos cometem o equívoco de entender que a experiência deva ser concebida como um modo de conhecer. Criticando tal pensamento, o qual Dewey (1980) denomina de “intelectualismo arbitrário”, o autor nos adverte que “[...] as coisas são objetos para ser manuseados, utilizados, trabalhados, gozados e sofridos, mais do que coisas para ser conhecidas. Elas são coisas tidas antes de serem coisas conhecidas” (DEWEY, 1980, p. 17, grifos do autor). Podemos então perceber mais uma vez expresso nessa frase, o caráter humano e social da experiência, dizendo implicitamente que o conhecimento deve elucidar nossas práticas cotidianas no dia-a-dia, e os fins devem repousar no desejo pelo alcance de aperfeiçoamento, melhora e progresso. É nesse sentido que os conhecimentos devem nos ser “úteis”. O agir tem que acontecer de maneira inteligente, reflexiva e consciente, em razão de que o conhecimento pode melhorar e enriquecer nossas experiências, especialmente as experiências “brutas” (DEWEY, 1980). Como nosso filósofo constantemente repete, os modos de experienciar são amplos e infinitos, além de se constituírem na única maneira pela qual seja possível alcançar-se a natureza. 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
A amplitude e a infinidade das experiências ordinárias nos obrigam a escolher materiais e a fazer seleções, em conformidade com nossos fins. Os aspectos que não são selecionados acabam sendo deixados de lado, visto que no momento eles não estão sendo importantes para as intencionalidades em voga. Embora muitos filósofos não admitam essa amplitude das experiências primárias, eles mesmos acabam por praticar essas seleções. Devido as nossas preocupações, as escolhas, as quais são simplificadoras, assinalam “[...] um interesse moral, no sentido amplo de preocupação com o que é bom” (DEWEY, 1980, p. 21, grifos do autor), e, sendo assim, essas escolhas acabam por ser inevitáveis. O problema surge “[...] quando a presença e a operação da escolha são ocultadas, disfarçadas, negadas” (DEWEY, 1980, p. 22), pois, em decorrência de tal desonestidade, o disfarce e a negação (das escolhas) originam muitas diferenças, impossibilitando então uma real validação do experimento – como as tendências egoístas citadas acima. Uma das principais preocupações do pesquisador deve consistir na busca por realizações de escolhas mais significativas, o tanto quanto possível. Isso porque o pesquisador deve se esforçar por buscar estabelecer relações entre as razões destas escolhas e às suas consequências. Assim, no contexto de sala de aula, igualmente, o professor deve procurar fazer as melhores escolhas de conteúdos, examinando cuidadosamente o motivo de tê-las preferido em detrimento de outras, relacionando então os conhecimentos às suas razões e às suas consequências para a vida dos seus alunos com o fito de aperfeiçoar o agir e o pensar ordinário deles, proporcionando consciência sobre o seu agir. Embora o homem tenda naturalmente a adotar como realidade aquilo que para ele possua grande valor, esse fato não traz problemas para a experiência comum, visto que a experiência está continuamente voltando-se “[...] para outras coisas que, apresentando igualmente valor atual, são igualmente reais” (DEWEY, 1980, p. 20). Portanto, uma das principais razões pelas quais a experiência deve se voltar à natureza, se dá pelo fato de que “A experiência bruta está carregada do emaranhado e do complexo” (DEWEY, 1980, p. 20), tanto que a filosofia tende a buscar estabilidade e descanso, sem problemas e surpresas - por isso, não é difícil observarmos uma predileção em muitos pesquisadores pelas questões matemáticas, diante da maior estabilidade que este campo de conhecimentos oferece. Dewey (1980) explica que, embora o método empírico não garanta que todas as coisas relevantes a serem descobertas sejam encontradas, mostradas ou comunicadas 49 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
por meio de sua utilização, ele expõe detalhadamente o caminho percorrido pelo pesquisador ao encontrar os resultados que consiga descobrir. De tal modo, outras pessoas podem percorrer o mesmo caminho, autenticando e ainda ampliando tais conclusões com total segurança. A clarificação dos valores no âmbito da experiência primária, “tal como se apresenta”, para as intenções de análise e de controle são mínimos, visto que ela se apresenta cheia de fatores que necessitam de análise e controle. Essa deficiência é comprovada exemplarmente pela existência da reflexão. Outro exemplo também é observado na física e na astronomia antiga, as quais possuíam pouco valor científico, devido “[...] a falta de aparelhagem e de técnicas de análise experimental [...]” (DEWEY, 1980, p. 24), por apresentarem as coisas da experiência primária de maneira como ocorriam naturalmente. Então, podemos entender que, para Dewey (1980), é necessário desenvolvermos a experiência, experienciarmos mais para testarmos nossas conclusões, avaliando se as coisas são como estão se apresentando a nós em determinada circunstância. Diante do exposto, podemos dizer que, talvez seja pelo desconhecimento de dados precisos sobre a experiência primária ou mesmo por simplesmente não considerarem esses dados, muitos teóricos não utilizam os estudos empíricos, acabando por engendrarem uma concepção preconceituosa contra estes estudos, adverte-nos o autor. Esse fato acaba por gerar um paradoxo, pois se considerarmos o “pré-conceito” no sentido do termo, concluiremos que há a necessidade de estudos em relação a tal assunto, uma vez que o conceito acaba sendo formado antes de uma análise cuidadosa. Esta postura ocorre também entre muitos docentes, sustentando-se, no caso da escola pública, tanto na falta de investimento em condições mínimas de ensino, quanto na má formação profissional, em muitos dos casos. Entretanto, sendo a educação escolar uma esfera social, muito afetada pela realidade concreta – na qual se desenvolvem constantes interações, ações, reações, comunicações, não podemos desconsiderar a necessidade de tais preocupações. A primeira exigência do método empírico reclama que os métodos e as produções refinadas devam se ligar à experiência primária, a fim de que se reconheça a origem das necessidades e dos problemas. A segunda exigência reivindica “[...] que os métodos secundários e as conclusões secundárias sejam trazidos às coisas da experiência ordinária, em toda a sua rudeza e crueza, a fim de que sejam verificados” 50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
(DEWEY, 1980, p. 26). Por meio deste procedimento, as metodologias de reflexão analítica engendram elementos, os quais proporcionam designações, observações e experimentos futuros. Para nosso filósofo: Nenhum relato científico receberia atenção se não descrevesse a aparelhagem através da qual os experimentos foram levados a efeito e os resultados obtidos; não que tal aparelhagem seja venerada, mas porque tal procedimento diz a outros pesquisadores como deverão trabalhar para obter resultados que estarão ou não de acordo, na nova experiência, com os resultados obtidos previamente, e para portanto confirmar, modificar e retificar a primeira experiência. O resultado científico registrado é de fato a designação de um método a ser seguido e a predição daquilo que será encontrado quando observações especificadas forem cumpridas. Isto é tudo o que uma filosofia pode ser ou fazer (DEWEY, 1980, p. 26, grifos do autor).
Considerações Finais
É extremamente complicado dominarmos um entendimento preciso e livre de dificuldades quando tratamos da relação teoria e prática na realidade do contexto de ensino-aprendizagem. Não existem receitas prontas. Frente à diversidade e complexidade de cada aluno singularmente, o professor vai se deparando com novos e exclusivos desafios a cada dia (DEWEY, 2010). Perante as mudanças do mundo, sempre haverá uma nova necessidade, um novo problema e diversos desafios cotidianos. Assim, a dinamicidade do mundo é o ambiente no qual o professor participa como um fator integrante, mas em relação ao qual busca elaborar compreensão e se instrumentalizar para o controle de situações que o levaria a uma experiência de vida à deriva. Por estas razões, a necessidade de pesquisa é constante na carreira do professor, ainda mais em meio a contextos onde houver empecilhos ao processo. Na escola pública brasileira, no bojo dos discursos da prática docente são recorrentes as queixas dos professores quanto às condições materiais com as quais convivem enquanto profissionais. Encontramos muitas vezes nesse sentido, lamentos de que tais situações não permitem mudanças de situações satisfatórias que são idealizadas. Das ideias deweyanas que foram expostas no 1º capítulo de Experiência e Natureza, podemos extrair algumas lições para a prática docente, as quais muito podem ajudar a melhorar e aperfeiçoar o trabalho educacional dos professores. De acordo com a concepção deweyana, considerando que os seres humanos estão a todo o tempo experienciando e por este motivo, a experiência é vida, entendemos que, um dos caminhos que o professor pode seguir, buscando melhorar 51 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
qualitativamente o processo de ensino-aprendizagem, em meio aos seus desafios, consiste na tentativa de envolver o conteúdo escolar na realidade das experiências ordinárias de seus alunos. Por esta via, é possível mostrar que existe relação entre ambos, conteúdos escolares e vida cotidiana. Desta maneira, o professor pode ensinar esses alunos a tirar proveito desses conhecimentos, compartilhá-los entre si, somandoos aos conhecimentos adquiridos fora da escola, para aplicá-los em suas respectivas vidas cotidianas. O aluno deve aprender a pensar suas ações. Apenas como exemplo podemos aludir a uma situação em, a partir de sua criatividade, o professor poderia utilizar como instrumentos metodológicos, a criação de oportunidades para os alunos se expressarem, mostrarem seus respectivos pontos de vista sobre o assunto, debaterem o conteúdo, exemplificarem as coisas que forem aprendendo, como jogos e brincadeiras, dentre outras tantas maneiras. E ainda, em conformidade com uma das defesas de Dewey (1980), que a nosso ver é muito relevante, o professor deve tomar cuidado para não misturar tendências egoístas ou de um individualismo exacerbado em meio às finalidades de ensino-aprendizagem. Isso porque se o foco não estiver repousado sobre o objetivo de progresso social, no sentido de crescimento e enriquecimento das experiências pessoais de cada e de todos os alunos, os resultados de seus ensinamentos e suas aulas podem distanciá-los das boas consequências e até mesmo serem equivocados. É importante enfatizar aqui que isso não significa ao professor aceitar tacitamente as condições limitadas e precárias que lhes são impostas, mas sim por meio de seu trabalho e com a análise reflexiva das condições, mobilizar a mudança, tendo em vista o desenvolvimento qualitativo da sociedade. A partir do momento em que as experiências dos alunos vão se enriquecendo, entendemos que mudanças significativas podem se desenvolver no cotidiano em que eles convivem, visto que o ser humano é um ser social, e as suas atividades, em grande parte, envolvem socialmente outras pessoas. É a partir dessa compreensão que, entendemos, podemos impulsionar momentos para uma possível transformação social.
Referências: DEWEY, John. Democracia e Educação. Trad. Anísio Teixeira. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional. 1959. ______. Experiência e Educação. Trad. Renata Gaspar. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2010. (Coleção Textos Fundantes de Educação). 52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
______. Experiência e Natureza. Trad. Otávio Rodrigues Paes Leme. In: CIVITA, Vitor (ed.). Dewey. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Cap. 1, p. 3-28. (Os Pensadores).
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DossiĂŞ Hans Ulrich Gumbrecht
SEM CULPA DE VENCER, SEM MEDO DE SOFRER Para mim, não é só dar o passe perfeito, no momento certo, que muda tudo. O que muda tudo é a busca pela superação. Alessandra Nascimento (jogadora da equipe feminina brasileira de Handebol, eleita a melhor ponta direita dos jogos de Londres)
Susana de Castro (UFRJ/PPGF)
RESUMO: o esporte de alta performance é uma das poucas atividades das sociedades contemporâneas na qual tanto espectadores quanto atletas podem xingar o adversário, desejar que lhes ocorram as piores coisas, sem se sentir culpados. O esporte é, portanto, um local especial em que a busca pela excelência não vem seguida pela exigência altruísta moral de respeito pelo outro. O que explicaria o fascínio pelos esportes seria essa possibilidade de elogiarmos sem culpa o uso da força e da coragem? Os atletas e os fãs do esporte guardam, é claro, em regra, a devida distância emocional dos acontecimentos. Sem essa distância emocional o evento esportivo deixaria de ser espetáculo e transformar-se-ia em conflito aberto Palavras chaves: arête; fascínio; esportes competitivos; performances; belo. ABSTRACT: the sports of high performance is one of the few activities in today’s societies in which both spectators and athletes can bad mouthing ones opponent without feeling guilty about that. Professional Sports constitutes a special place where the search for excellence is not followed by an altruistic and moral demand of respect towards others. What would explain today’s fascination of sports would be this possibility of experiencing ‘noble’ values, that is, the possibility of praising the exhibition of force and courage without feeling guilty about that? Athletes and fans keep the right emotional distance from the events. Without such emotional distance the sport event would be no more an exhibition to be an open conflict. Key-words: arête; fascination; sports of high-performance; beauty. Por que jogos e competições esportivas atraem tantos espectadores ao redor do globo? Uma resposta corriqueira entre intelectuais é atribuir o fascínio pelos esportes aos mecanismos mercadológicos de sedução do sistema capitalista. Dessa perspectiva, os espectadores e apreciadores dos esportes seriam, de uma maneira geral, vitimas de um modelo de relações sociais alienantes (ao invés de confrontar seus próprios problemas, ‘mergulhariam’ no prazer anestesiante do espetáculo) ou usariam os eventos esportivos, em particular os jogos entre equipes, como válvula de escape para suas frustrações. Não creio que esse tipo de enfoque de fato explique o fenômeno do fascínio pelos esportes, porque mais refletiria uma postura distanciada, de alguém que não vê com bons olhos o compartilhamento coletivo do júbilo ou da tristeza. Na verdade, o clamor de júbilo ou de tristeza em uníssono da torcida parece significar para os incautos 55 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
críticos a ameaça da perda momentânea de suas, a duras penas conquistadas, individualidades. Penso podermos dizer que toda tentativa de explicação do fascínio despertado no público pelas disputas esportivas que parta de um distanciamento crítico não satisfará seus fãs. Para que possamos dar aos fãs dos esportes uma explicação para o fascínio que sentem, é necessário abandonarmos o paradigma crítico, isto é, abandonarmos o ponto de partida racionalista moderno que privilegia o mental sobre o emocional ou corpóreo. Há no horizonte filosófico contemporâneo uma miríade de autores que buscam explicar os fenômenos sociais a partir de uma perspectiva não realista, ou não universalista. Em comum a todos está a convicção de que as ditas verdades científicas ou filosóficas, na verdade, não escapam à dimensão histórica da vida, são, portanto, fruto das contingências e do momento. Apesar de descartarem os universalismos positivistas, tais filósofos colocam na linguagem o papel que antes era ocupado pelas representações como lócus da verdade. Assim, não obstante o caráter não racionalista de seus estudos, estes não nos servem para explicar, por si sós, fenômenos como fascínio e júbilo coletivos. Se quisermos explicar o fascínio pelos esportes devemos buscar ferramentas conceituais que descrevam tal fascínio sem buscar necessariamente dar-lhe sentido ou oferece-lhe interpretação. Temos que buscar descrevê-lo como torcedores e não como analistas ou comentaristas de esportes. Buscamos, aqui, modos de descrever o fascínio pelos fenômenos esportivos que consigam apreender de um modo sintético o que ocorre conosco quando somos invadidos pela euforia diante das belas jogadas ou das extraordinárias performances dos atletas. Faz-se necessário que não busquemos explicar os eventos esportivos para além de sua efetividade ou materialidade. Ao contrário, nosso objetivo é encontrar ferramentas teóricas que nos ajudem a descrever o momento do jubilo ou da tristeza, coletivo ou individual, com o esporte. Seguindo Hans Gumbrecht (2007, pp. 37-41) e Roland Barthes (2009, p.98), podemos, primeiramente, explicar o fascínio pelos esportes a partir da estética, pois se tratam aqui efetivamente de acontecimentos aos quais predicamos com frequência o adjetivo ‘belo’. Ainda que o belo provoque a formulação de um juízo de gosto, portanto, aparentemente de uma opinião particular, esse tipo de juízo obedece, como mostrou Kant, a três regras principais: (i) “satisfação pura desinteressada”; (ii) “não está baseado em conceitos nem os visa”; e (iii) responde a uma “universalidade subjetiva” (apud Gumbrecht, 2007). No primeiro caso, quando descrevemos uma performance esportiva 56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
como bela, isso significa que estamos em uma situação em que não estamos esperando nenhum lucro com tal performance, ou que ela tenha um efeito concreto em nossas vidas. No segundo caso, não precisamos estar municiados de conceitos para identificar um evento ou uma jogada como belos, apenas a sensação interna de prazer ou desprazer serve de base para nosso juízo de gosto. Por último, no espetáculo esportivo, assim como no artístico, estamos separados das relações hierárquicas cotidianas, por isso temos a expectativa de que todos que estejam vendo o mesmo fenômeno concordem com nossa avaliação de que se trata de um acontecimento belo. Para Kant, “a beleza é a forma da intencionalidade de um objeto, que é percebido nele sem a representação de um fim”. O que torna um objeto ou um desempenho esportivo belo é o fato de ele ser realizado sem intencionalidade exterior aos próprios movimentos, isto é, não representam em si um objetivo para a nossa vida diária, mas a harmonia intrínseca ao ordenamento dos movimentos produz uma impressão de intencionalidade (Gumbrecht, 2007, p. 40). Barthes chama de graciosidade a beleza no esporte e a associa ao estilo do atleta. Ainda que, por exemplo, o espectador de uma tourada saiba qual será o seu desfecho, nem por isso deixa de admirar a forma com a qual o toureiro introduz “ritmo na fatalidade”. O fato de a coragem do toureiro não ser desordenada, cada um de seus movimentos segue uma coreografia própria a sua arte, imprime ao espetáculo a “aparência de liberdade”. A combinação entre fatalidade e liberdade é a fórmula presente nas tragédias gregas. Tal qual nos espetáculos gregos, o espectador das touradas experimenta a possibilidade de não ser meramente um joguete do destino implacável (retornaremos ao tema ao final). Mas a presença do belo na performance esportiva não é suficiente para que a possamos classificar como obra de arte, em sentido estrito, visto que, diferente de um espetáculo artístico, como balé ou ópera, o desempenho esportivo é irrepetitível. Precisamos, assim, encontrar critérios que expliquem porque a efemeridade das jogadas e das atuações dos atletas não nos causa desinteresse, mas sim atração. Ao tentar explicar o efeito do efêmero, da impossibilidade de repetição, esbarramos em um ponto crucial para o entendimento da atração pelos esportes competitivos e de alta performance, a saber, a ‘presença’. Gumbrecht usa este termo (2007, p. 50 e seg.) para descrever o estado de absoluta unidade entre o atleta, seu corpo e seu equipamento -- seja este um bastão, uma máquina, uma bola ou um animal --, e entre o(s) espectador(es) e o atleta. ‘Total unidade’ pode ser também descrita como absoluta concentração, sem que se queira dizer com isso que o atleta ou o espectador 57 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
estejam analisando ou interpretando o acontecimento. Ao contrário, nesses momentos especiais em que ocorrem os fenômenos únicos e não repetíveis das jogadas ou das performances extraordinárias, a condição para que elas ocorram é que os atletas estejam em um estado pré-lógico, pré-cognitivo, não distanciado, em total simbiose com os elementos materiais e corpóreos necessários para a sua atuação. Da parte do espectador há também uma espera atenta, uma espera para o surgimento do extraordinário. O espectador, torcedor ou não, que vai ao espetáculo esportivo assistir o atleta disputar um torneio certamente imagina que possa vir a ser testemunha de uma quebra de recorde, mas para que ele/ela testemunhe o extraordinário no seu exato momento de ocorrência, precisa estar ‘aberto’ para que isso aconteça. Estar aberto para que um evento extraordinário aconteça não significa estar analisando ou calculando os movimentos dos atletas, mas sim colocar-se em um estado de total comunhão com suas ações. Essa comunhão entre espectador, atleta e suas ações é o mesmo tipo de comunhão que o atleta sente com seu equipamento e as partes do seu corpo. Nem o atleta nem o espectador estão pensando, ‘refletindo’ sobre suas ações, distanciado e alheio à efetividade, ao seu entorno material. Sem essa base física e material, o extraordinário da performance atlética excelente não surgiria, mas o contrário também é verdadeiro, sem a dimensão do alcance da excelência através da atuação humana, o material não se sobressairia no meio de outros materiais. Mas é preciso sublinhar que a expectativa de atletas e espectadores é a da vitória do indivíduo sobre a resistência física imposta pelas condições de seu desafio. Assim, o corredor automobilístico não só precisa conhecer em detalhes o funcionamento de seu carro, mas também memorizar cada detalhe do percurso para saber tirar o melhor do seu carro na disputa contra o cronometro; ou, na etapa da montanha, o ciclista da Tour de France deve superar a força gravitacional que o empurra implacavelmente para baixo (Barthes, 2009). Além da ‘beleza’ e da ‘presença na efemeridade’, o que também caracteriza a performance atlética é a ‘excelência do desempenho’. Uma das técnicas de treinamento empregadas pelo grande velocista de natação, o russo Alexander Popov, era mentalizar o tempo fora da piscina. Ele ‘calculava’, sem uso de cronômetro, o índice a ser atingido na piscina. Há outros tipos de performances cuja finalidade é a consecução de uma atividade ou ação com vistas à transformação da realidade (Gumbrecht, 2007, p. 56). O jogador e o atleta não almejam transformar a sociedade, nem mesmo o esporte; a obediência às regras próprias a cada modalidade de esporte é condição sine qua non 58 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
para que possamos, por exemplo, comparar os desempenhos dos atletas quando estes não ocorrem no mesmo local. Diferente de outros tipos de performances, o que caracteriza a peformance esportiva nas modalidades profissionais seria, então, a busca da excelência, da arête. ‘Arête’ é termo grego que transposto para o latim virou ‘virtus’ e com o tempo ganhou um significado moral, oriundo do cristianismo, ausente na expressão original. ‘Arête’ era entendida pelos gregos como o exercício excelente de uma atividade na qual o indivíduo se sobressaia. Por exemplo, a arête de um político é o seu apurado senso de justiça, a de um citarista, a alta habilidade no manuseio do instrumento, a de um soldado, a força e a coragem no combate, e assim por diante. Não apenas nos esportes, mas em todas as práticas públicas, esperava-se que o cidadão buscasse a excelência. Para ter um parâmetro que comprovasse a excelência de sua práxis era preciso que ele se medisse sempre com indivíduos tão bons quanto ele. Um exemplo clássico é o da luta entre Heitor e Aquiles na Ilíada. Os dois mais bravos guerreiros, o maior herói entre os gregos e o maior entre os troianos, apesar de estarem em campos opostos, sentem que se valorizam pela oportunidade de medir suas forças entre si – lutar contra adversário inferior seria humilhante para qualquer um dos dois. Ainda que hoje a população de uma maneira geral, pelo menos nas grandes cidades, não compartilhe dos dogmas religiosos, os valores que ainda prevalecem, como mostrado por Nietzsche na última fase da sua obra, aquela na qual se dedicou à tarefa de ‘transvaloração’ (Nietzsche: 2011; s/d), são oriundos da moral judaico-cristã. Nesse sentido, quando falamos que alguém é virtuoso estamos automaticamente elogiando o seu altruísmo. A civilização ocidental está fundada na possibilidade forjada pelo dispositivo judaico-cristão universalizado, segundo o qual o ser humano é naturalmente social, e, portanto, a sua verdadeira natureza é refletida na sua obediência a normas e preceitos. Para o filósofo alemão trata-se de uma ‘segunda’ natureza, artificial, criada com a finalidade de tornar o ser humano um animal gregário, apto à vida em sociedade (Barros, 2002, p.86). Essa ficção universalista rechaça a verdadeira natureza animal do ser humano, tornando-o um animal domesticado, não ativo, e enfraquecido. Aquele que segue em primeiro lugar os seus instintos é tachado de egoísta e imoral. Esse estado artificial de segunda natureza social ‘adoeceria’ o homem, já que não poderia seguir sua natureza instintual. Minha hipótese é que dificilmente podemos viver em sociedade sem ceder a essa ficção normativa, mas nem por isso deixamos de procurar criar espaços nos quais 59 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
possamos dar vazão aos nossos instintos. Um desses lugares são os esportes de alta performance. Seja como praticante, seja como espectador, buscamos através dos esportes os acontecimentos extraordinários, aqueles nos quais há superação, disputa, adrenalina, tensão. Os valores que estão presentes aqui estão mais próximos da noção grega de arête. Na disputa só há um vencedor, mas muitas vezes até o perdedor, pode provocar a comoção e o estado de elevação emocional coletiva. O Brasil inteiro chorou a derrota, na Copa do Mundo de Futebol de 1950 no Maracanã, da seleção brasileira para a equipe do Uruguai. O que ficou na lembrança sobre esse dia não foi a performance do time vitorioso, mas sim nossa derrota. Por outro lado, a medalha de ouro da seleção feminina de vôlei na última olimpíada, a de Londres, foi especialmente comemorada. A equipe chegou à final desacreditada, apesar da inspirada vitória no tiebreak contra a fortíssima seleção russa. Ninguém imaginava que a seleção feminina pudesse ganhar do selecionado americano, considerado o melhor do torneio. Para a surpresa das próprias jogadoras, a vitória ocorreu. Não foi porque as americanas jogaram mal que as brasileiras ganharam, as brasileiras ganharam porque não deixaram o time americano jogar o seu jogo. Apesar de mobilizar as paixões de todos os envolvidos, atletas e torcedores dos esportes guardam, é claro, a devida distância emocional dos acontecimentos esportivos; não levam tudo para o lado pessoal1. Sem essa distancia emocional o evento esportivo deixaria de ser um espetáculo e passaria a ser um conflito aberto (Barthes, 2009, p. 104). No campo e nas quadras dos esportes coletivos o que contribui para a distância emocional necessária dos jogadores com relação aos acontecimentos do jogo é a presença de um elemento intermediário que faz com que as equipes não entrem em confronto direto: a bola em seus diferentes formatos, oval, redonda, disco, e diferentes materiais, de couro, borracha, fibra acrílica. Além, é claro, da obediência a regras, da presença dos juízes, do recurso aos cartões e às suspensões etc. Ninguém busca resolver na quadra um assunto pessoal, mas não obstante isso, no calor do jogo e da disputa, todas as provocações e xingamentos são validos, permitidos até como formas de aliviar a tensão insuportável. São memoráveis as constantes provocações das equipes cubanas e brasileiras de vôlei feminino quando suas jogadoras se encontravam na rede. E quem não se lembra da cabeçada de Zidane em 1
Deixei propositadamente de lado a discussão sobre a violência nos estádios, a atuação das torcidas organizadas e as batalhas campais nas arquibancadas. Esse fenômeno necessitaria de outro tipo de análise, talvez mais sociológica ou histórica do que filosófica. 60 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Materazzi? Um verdadeiro ‘touro’ em ação! No caso de Zidane, entretanto, a distancia foi rompida e o que antes era uma disputa entre dois jogadores de seleções adversárias, passou a ser a disputa de dois homens pela honra da irmã de um deles. Só podia acabar mal, pois apesar do calor da disputa levar a provocações entre equipes, é necessário manter a mente tranquila, e, consequentemente, as emoções sob controle, para aproveitar os erros dos adversários ou aprimorar o desempenho. Nos esportes individuais essa tranquilidade mental faz-se ainda mais necessária, como o demonstram as performances dos jogadores de tênis, dos nadadores, ou dos pilotos de Fórmula 1. Na busca por critérios que descrevessem o fenômeno do fascínio pelos esportes a partir da perspectiva do torcedor e do atleta, e não do comentarista, nos deparamos com três conceitos. Os esportes de alta performance nos fascinam porque são belos, porque captam a presença na efemeridade e finalmente porque mostram a excelência do desempenho. Neste percurso esbarramos na noção grega de arête e mostramos como o esporte resgata um modelo de existência anterior ao predomínio dos valores judáicocristãos. Aqui, sobrepor-se ao outro não é motivo de culpa, mas razão de existência. Para finalizar, gostaria de retomar a aproximação feita por Barthes entre esporte e tragédia. Quando analisa a performance de um toureiro, Barthes diz que o espectador fica fascinado com a atuação do toureiro porque este imprime às suas ações a aparência de liberdade. Desde a perspectiva trágica, a aparência de liberdade significa o fato de o herói (no qual o espectador se projeta) ter conhecimento da impossibilidade de contornar seu destino inexorável, a morte, e, no entanto, fornecer a suas ações o brilho, a aparência de ‘liberdade’, isto é, de possibilidade de assenhorear-se da morte. Assim, o espectador sente júbilo (catarse) com o espetáculo esportivo porque vê no atleta/herói o vencedor, ainda que aparente, efêmero e ilusório, de um partida em que, na verdade, nunca venceremos. O heroísmo do atleta está também na sua capacidade de enfrentar a dor e o sofrimento como condição para o júbilo da vitória. Mas mesmo o amargor da derrota não é um xingamento contra a vida. Ao contrário dos defensores do modelo ‘viagraprozac’ de vida – tão presente no american way of life difundido pela indústria de massa --, a tristeza e melancolia são constitutivas da vida. Os happy-ends das indústrias cinematográficas e de propaganda ‘vendem’ a ideia de que por vivermos em uma sociedade democrática, devemos ser obrigatoriamente felizes, pois vivemos em uma comunidade colaborativa de iguais, protegidos pelas instituições que garantem nosso 61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
bem estar social, isto é, nossa dose certa de lazer, trabalho e saúde: “Sociedades modernas e igualitárias, no entanto, sejam de posicionamento político democrático ou autoritário, baseiam-se sempre na premissa de que estão tornando a vida mais feliz.” (Warshow, 2012, p.109). Esta ideologia do bem estar das sociedades contemporâneas, nomeada por Michel Foucault de ‘bio poder’ (1985), está presente hoje na forma com a qual governos e indústria fazem campanha a favor da prática de esportes como sinônimo de saúde. Apesar de a prática esportiva estar associada, de fato, a hábitos saudáveis, todos sabemos que os esportes de alta performance cobram um preço alto aos atletas. Para atingir o ápice de suas carreiras, atletas fora de série como Cassius Clay, alias Muhammad Ali, e Ayrton Senna, pagaram preço altíssimo. O primeiro, com a saúde, e o segundo, com a vida. Outros, como Garrincha e João do Pulo amargaram o ostracismo pós-auge e pós-pódio.
Referências: BARTHES, Roland. “O que é o esporte?”. In: Serrote. São Paulo: IMS, 2009. Vol. 3. pp. 94-105. BARROS, Fernando de Moraes. A maldição transvalorada – o problema da civilização em O Anticristo de Nietzsche. São Paulo: discurso editorial, Unijui, 2002. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I. A vontade de Saber. Trad. Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1985. GUMBRECHT, Hans U. Elogio da beleza atlética. Trad. Fernanda Ravagnani. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ______. Anti-Cristo. Trad. Carlos Grifo. Lisboa: Editorial Presença, s/d. WARSHOW, Robert. “O gângster como herói trágico”. In: Serrote. São Paulo: IMS, 2012. Vol. 3. pp. 108-115.
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HISTÓRIA E MODERNIDADE EM HANS ULRICH GUMBRECHT Marcelo de Mello Rangel** Thamara de Oliveira Rodrigues*** RESUMO: Neste artigo, nosso objetivo é o de reconstituir a descrição que Gumbrecht faz da modernidade a fim de compreender parte significativa de suas reflexões sobre a História. Nossa análise será realizada, em especial, a partir do texto – “Cascatas de modernidade”, introdução ao seu livro “Modernização dos Sentidos”. Explicitaremos as seguintes ideias sobre o trabalho do autor: 1- há uma descontinuidade entre homem (consciência) e real; 2- o real também se mobiliza de maneira a desestabilizar os significados e sentidos que constituem determinado mundo e 3- a história (investigação do passado) também se torna fundamental no que concerne à possibilidade de evidenciação do que o real (ou a história) é, e isto através da descrição dos comportamentos teóricos e práticos dos homens no passado, de suas compreensões e estratégias.
Palavras-chave: Gumbrecht, teoria da história, filosofia da história ABSTRACT:In this article, our objective is to reconstruct the description that Gumbrecht makes of modernity, in order to understand significant part of his reflections on history. Our analysis will be performed, in particular, from the text – “Cascatas de modernidade”, the introduction to his book "Modernização dos Sentidos." We will explain the following ideas about the work of the author: 1 - there is a discontinuity among man (conscience) and real; 2 the real also mobilized in order to destabilize the meanings and senses that are given world, and 3 - the history (research of the past ) also becomes important with regard to the possibility of disclosure of the real (or history) is, and this behavior by describing the theoretical and practical men in the past, their insights and strategies.
Keywords: Gumbrecht, theory of history, philosophy of history. Neste artigo, nosso primeiro objetivo é o de reconstituir a descrição que Gumbrecht faz da modernidade, e isto porque esse exercício nos possibilitará entender parte significativa de suas reflexões sobre a História. Nossa análise será realizada, em especial, a partir do texto – “Cascatas de modernidade”, que serve de introdução ao seu livro “Modernização dos Sentidos”. A partir da reconstrução da história da modernidade, Gumbrecht nos permite acompanhar e compreender que: 1- há uma descontinuidade entre homem (consciência) e real; 2- o real também se mobiliza de maneira a desestabilizar os significados e sentidos que constituem determinado mundo e 3- a história (investigação do passado) também se torna fundamental no que concerne à possibilidade de evidenciação do que o real (ou a história) é, e isto através da descrição dos comportamentos teóricos e práticos dos homens no passado, de suas compreensões
Agradecemos a Susana de Castro pelo convite, e a Valdei Lopes de Araujo e a Hans Ulrich Gumbrecht pelo carinho e diálogo. ** Professor Doutor do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto, beneficiário de auxílio financeiro da CAPES – Brasil. *** Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto. 63 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
e estratégias.1 Em outras palavras, a reconstituição histórica torna-se decisiva para Gumbrecht no que diz respeito à compreensão e à lembrança da dinâmica própria ao real (ou à história), tornando possível aos homens a composição de estratégias adequadas à sua existência. Gumbrecht inicia sua reconstituição histórica da modernidade tematizando os séculos XV e XVI, ou ainda, dois eventos específicos, a saber: a invenção e disseminação da imprensa e a descoberta da América.2 Ao longo dos séculos anteriores, do que se convencionou chamar de Idade Média, os homens iam se relacionando entre si e com os demais entes que constituíam o real de maneira estável, ou seja, eram capazes de organizar sua experiência satisfatoriamente a partir de enunciados e juízos bíblicos determinados, orientados pela convicção de que esses sentidos eram suficientes à organização de seu mundo e da existência. No entanto, de repente, e essa é a estrutura do real (da história) para Gumbrecht, tais sentidos deixaram de ser suficientes à explicação e à orientação dos homens no mundo, o que significa dizer – o real (ou a história) passara a expor os homens a entes e a situações inéditas, que impunha limites significativos ao conhecimento que possuíam até então. É no interior desse tempo instável, no qual os homens não contavam com um conjunto de significados e de sentidos capazes de orientá-los mais ou menos bem, que 1
Outra função que a investigação histórica tem a partir e no interior dos textos de Gumbrecht é a de possibilitar a experiência de sentidos e materialidades passados, incomuns a um determinado horizonte histórico, o que exporia os homens em geral a experiências ideais à complexificação de compreensões, de suas interpretações (do repertório de predicações e juízos), quer em relação ao próprio passado quer, especialmente, em relação ao presente. Não teremos a oportunidade de explicitar pormenorizadamente, no espaço desse artigo, essa outra função da história a partir e no interior das reflexões de Gumbrecht, no entanto, cabe ainda uma pequena citação: “Em vez de obter clareza por meio de definições, o historiador está obrigado à tarefa de desenvolver descrições cada vez mais complexas e sofisticadas dos momentos e das situações do passado – descrições que podem se refletir em conceitos de período sempre mais complexos. Afinal, não seria nosso interesse dispensar o passado, controlando-o em conceitos eficientes, mas somente pôr a nós mesmos e ao nosso presente em confronto com as imagens mais ricas possíveis da alteridade histórica”. Cf.: GUMBRECHT, 1998, p. 11. Gumbrecht, também, entende que o passado pode servir de pano de fundo para compreendermos o presente, no entanto, sublinhamos, aqui, que não se trata de um exercício historiográfico que se funda na pré-compreensão de que o tempo é um agente necessário de transformação e que, por conseguinte, o presente precisa ser diferente desse passado reconstituído, muito menos de um exercício amparado pela pré-compreensão de que há algo que se mantém decisivo no interior de um determinado passado e de um determinado presente, algo ou sentido que os une e que precisaria ser evidenciado. Para Gumbrecht essas pré-compreensões, próprias ao que chama de “cronótopo historicista”, serviriam apenas como medidas que, ao fim, provocariam (ou ainda forçariam) determinadas interpretações através e ainda a despeito das fontes. A reconstituição da história, nesse caso especial da história da modernidade, serviria, simplesmente, a alguma compreensão do presente através do passado, através de conjunturas que podem ajudar à compreensão do presente em razão de semelhanças e também de diferenças radicais apenas possíveis, que se tornam mais visíveis a partir do reconhecimento do outro (do passado). 2 A noção de evento utilizada por Gumbrecht possui uma inspiração foucaultiana e heideggeriana. Significa, grosso modo, a emergência de um horizonte histórico específico, determinado por sentimentos, por significados e sentidos inéditos ou até então obscurecidos, que passam a orientar os homens em geral. 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
ocorre uma espécie de perda do valor de verdade do princípio Deus, os enunciados e juízos bíblicos passam a ser tematizados e perdem sua força, antes natural, de determinação e delimitação do real, da experiência. Se os homens, até então, se contentavam com a repetição de determinados sentidos, a partir de eventos como a invenção e disseminação da imprensa e da descoberta da América eles se viram obrigados a constituir sentidos capazes de delimitar sua nova experiência, necessidade que é restituída por um método, por um caminho determinado, que é o da subjetividade, pois “a sequência de inovações que, como já propus, pode ser representada metonimicamente pela invenção da imprensa e pela descoberta do continente americano aponta para a emergência do tipo ocidental de subjetividade (...)” (GUMBRECHT, 1998: p.12). Antes de continuarmos acompanhando a descrição de Gumbrecht sobre a modernidade, sublinhamos que sua restituição histórica já nos permite perceber sua compreensão no que diz respeito ao real (ou à história), a saber: o real (ou a história) é dotado da possibilidade (de uma possibilidade necessária, podemos dizer) de desestabilização dos mundos constituídos e estáveis, de maneira autônoma e imprevisível. Em outras palavras, trata-se da possibilidade (necessária) da erupção de acontecimentos inéditos, suficientes à constituição de entes específicos para os quais os homens em geral não possuiriam, até então, um repertório adequado de significados e sentidos. Assim, temos três conclusões importantes: 1- Gumbrecht entende que há uma relação de descontinuidade necessária entre homem e real (ou história), que se torna evidente através dos momentos nos quais o real (ou a história) atualiza a sua possibilidade de desestabilização do mundo e 2- compreende que a investigação histórica é um método (caminho) significativo no sentido de auxiliar os homens, hoje, a evidenciar e “produzir” estratégias adequadas a sua existência no interior do real (da história). Continuemos, então, acompanhando a reconstituição da história da modernidade de Gumbrecht. Como vimos, os séculos XV e XVI são, na descrição do autor, um momento de descontinuidade radical do real (da história), que fora enfrentado à época a partir de uma dupla compreensão: a de que haveria uma descontinuidade entre espírito, por um lado, e corpo e matéria, por outro, e, também, a de que o real não se mostraria devidamente, ou seja, não permitiria aos homens compreendê-lo imediatamente. Essa última compreensão produziria a necessidade de que o espírito, discreto em relação à matéria, compreendesse e evidenciasse os fenômenos mais propriamente, interpretando 65 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
os entes e alcançando, assim, um acesso privilegiado em relação à sua essência. Determina-se, então, uma estratégia de relação com o real a qual Gumbrecht chamou de “campo hemenêutico”. Como podemos ler: O campo hermenêutico produz o pressuposto de que os significantes da superfície material do mundo nunca são suficientes para expressar toda a verdade presente na sua profundidade espiritual, e, portanto, estabelece uma constante demanda de interpretação como um ato que compensa as deficiências da expressão. (GUMBRECHT, 1998: p.12-13).
O século XVII e boa parte do XVIII, de maneira geral, experimentaram certa estabilidade, ou seja, os homens em seu interior teriam sido capazes de produzir um repertório de significados e sentidos suficientes à compreensão do real (do mundo), o que provocara, inclusive, a produção de um “clima histórico” (Stimmung) otimista. Os homens criam ter se desfeito dos enunciados e juízos equivocados produzidos pela tradição, em geral obliterada pela ortodoxia política e teológica, e, enfim, interpretado definitivamente os entes e as estruturas fundamentais do real. No entanto, próximo aos anos de 1800, o real (a história) provocaria mais uma descontinuidade que colocava em questão os enunciados e mesmo o método subjetivo próprio ao “campo hermenêutico”. E, aqui, torna-se interessante perceber como o autor evidencia, uma vez mais, o real (a história) como sendo uma estrutura caracterizada pela capacidade autônoma e imprevisível de se transformar, e é essa compreensão que entendemos voltar incessantemente em seu texto, com o objetivo de evitar a constituição ou mesmo a repetição de estratégias inadequadas à existência no interior desse real (da história) no mundo contemporâneo. Por volta de 1800, em especial a partir da Revolução Francesa, os homens se viram, uma vez mais, expostos a um conjunto de entes inéditos, os quais seu repertório sentimental e semântico não era capaz de compreender. A Revolução Francesa provocara sentimentos, pensamentos e atitudes até então desconhecidas, situações inéditas e, nesse momento histórico, os homens começaram a desconfiar não apenas de seus conhecimentos, mas também, como sublinhamos mais acima, do próprio método, que utilizavam para a sua produção - a interpretação objetiva e simples do “observador de primeira ordem”. Aparece, assim, no interior desse clima histórico a um só tempo otimista e constrito, uma estratégia epistemológica específica, própria ao “observador de segunda ordem”, momento que ele classifica como “modernidade epistemológica”. Acompanhemos: 66 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Ao se observar no ato de observação, em primeiro lugar, um observador de segunda ordem torna-se inevitavelmente consciente de sua constituição corpórea – do corpo humano em geral, do sexo e de seu corpo individual – como uma condição complexa de sua própria percepção do mundo. Ao mesmo tempo, aquelas superfícies materiais do mundo a que apenas a percepção pode referir-se (mas que estavam reduzidas a um status subordinado dentro do campo hermenêutico) estão em processo de reavaliação. O interesse pelo materialismo do século XVIII pela anatomia, pelas funções e pelos objetos dos sentidos humanos e seu crescente fascínio pela especificidade da experiência estética, parecem ser sintomas históricos que prefiguram tal retorno de corpos e materialidades (GUMBRECHT, 1998: p.13-14).
Se, ao longo dos séculos XV e XVI, os homens enfrentaram a desestabilização de seu mundo, a fragilização de seus enunciados e juízos, a partir da compreensão de que o método adequado a ser seguido era o do distanciamento radical entre sujeito cognoscente e objeto, entre espírito e matéria, próximo a 1800, por outro lado, os homens não só viram seu mundo desmanchar como também apostaram em uma estratégia específica, e isto porque compreenderam que o método da primeira modernidade, a estratégia cartesiana, equivocou-se em sua percepção de que espírito e matéria seriam entes necessariamente discretos. Nesse clima histórico o qual chamamos de constrito, retorna o interesse pela matéria, pelo corpo, ou seja, pelo papel que eles ocupam na interpretação, não sem motivo, portanto, a filosofia no século XIX, quer na Alemanha, na França, na Inglaterra, quer no Brasil, se dedicou ao estudo do corpo e dos sentidos. No entanto, Gumbrecht alerta para a especificidade desse interesse pelo corpo, e isto porque apenas “parece” que o corpo retorna e passa a ser compreendido novamente como fora na Idade Média, ou seja, como uma parte necessária da totalidade homem, âmbito fundamental à experimentação do real (do mundo) e mesmo parte constitutiva à produção de sentido. Em outras palavras, reaparece o interesse pelo corpo, em especial pelos sentidos, e seu papel fundamental no que diz respeito à experiência estética e à tradução conceitual (interpretação) do real, no entanto, o que está em questão aqui, é uma estratégia que se preocupa em investigar o corpo para torná-lo transparente, ou melhor, para conhecê-lo e, assim, tornar o entendimento ainda mais eficiente no sentido de compreender (e determinar) o mundo. Ou nas palavras de Gumbrecht (1998: p.14): Uma vez, contudo, que a percepção como ato físico e o mundo material como seu objeto se tornaram novamente tópicos, surgem as questões de saber como eles se relacionam com um tipo de experiência que é baseada exclusivamente em conceitos – e se a percepção física e a experiência conceitual podem em todo caso ser mediadas ou reconciliadas.
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O que temos na “modernidade epistemológica” é que a medida da interpretação, do conhecimento detido do mundo através da produção de conceitos privilegiados, continua sendo orientadora. Por um lado, temos acontecimentos históricos originários (Ursprung), capazes de liberar experiências e apresentar entes inéditos, o que torna os repertórios até então vigentes inadequados à delimitação da experiência, e, por outro, temos a confiança e a manutenção do que podemos chamar de paradigma da interpretação ou do “campo hermenêutico”. Em outras palavras, os homens em geral, no interior de um mundo instável, “acelerado” - para usar um termo caro a Koselleck - e diante de fenômenos que não podiam compreender e determinar (ou posicionar), insistiram na força do aparato intelectivo no tocante à reorganização do mundo, como se o que faltasse, até então, fosse apenas uma compreensão adequada dos elementos que são fundamentais à produção de uma interpretação privilegiada do mundo em sua totalidade, entre eles o corpo. O que significa dizer, em linhas gerais, que se passava ao exame detalhado do corpo como mediador da relação entre inteligência e real, para que a inteligência pudesse superar os efeitos dessa mediação, estabelecendo uma relação privilegiada com o real. Gumbrecht está mostrando, através de sua reconstituição histórica, que a “modernidade epistemológica” não fora capaz de perceber a dinâmica própria do real (ou da história), ou seja, a sua possibilidade autônoma e imprevisível de reconstituição, e assim optava, inadequadamente, por uma espécie de aperfeiçoamento do método cartesiano, do “sujeito de primeira ordem”. Aqui, podemos perceber, novamente, parte da força que sustenta o trabalho de reconstituição histórica (da modernidade) realizado por Gumbrecht: evidenciar a dinâmica própria do real (da história) e, ainda mais, indicar para o seu tempo que a compreensão e estratégia subjetivista e referencialista, própria ao “campo hermenêutico”, não devem e talvez não possam mesmo ser repetidas uma vez mais.3
3
Consideramos, junto a Gumbrecht, que os homens no interior do mundo atual talvez não possam repetir o gesto subjetivista e referencialista próprio à modernidade, pois ao mesmo tempo em que o autor explicita a sua preocupação no que concerne à repetição desse equívoco hoje, também alerta para uma transformação profunda própria às últimas décadas do século XX, a qual teria produzido um novo horizonte histórico, um “cronótopo” inédito – a “Pós-modernidade”. Nele, os homens talvez já não mais possam se orientar pelo paradigma “campo hermenêutico”, e isto porque, nesse novo “cronótopo”, eles simplesmente já não estão mais propriamente interessados em conhecer o real (e também o passado), mas sim em experimentá-lo. No “cronótopo pós-modernidade”, os homens em geral se dedicariam precipuamente à experiênciação de sentidos passados e à produção de um real apenas virtual, ou seja, de alguma forma teriam desistido do real, de compreendê-lo. 68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Gumbrecht continua sua análise evidenciando que o século XIX e a sua disciplina fundamental, a história, intensificaram, equivocadamente, o paradigma da interpretação, ou melhor, da compreensão (e determinação) privilegiada do real, a partir de dois métodos específicos o da historicização e o da narrativa. Por um lado, os filósofos e cientistas se dedicaram à compreensão da mediação e “interferência” provocada pelo corpo no que se refere à produção de um conhecimento imediato do real e, a um só tempo, passavam a insistir em macronarrativas, em discursos organizados por um sentido fundamental capaz de organizar as experiências e entes inéditos. Essas macronarrativas podem ser compreendidas como uma espécie de discurso capaz de solucionar a forte ambiguidade e equivocidade do conhecimento (da linguagem), produzidas, especialmente, entre a segunda metade do século XVIII e a primeira metade do século XIX, período que Koselleck chamou de Sattelzeit. O que é ainda mais interessante a partir das reflexões de Gumbrecht é que essas narrativas historicizadas parecem se resguardar da instabilidade provocada pela “aceleração do tempo” no interior do “cronótopo historicista” por uma espécie de recurso derradeiro à ideia de progresso. Em outras palavras, a cada transformação e questionamento de sentidos disponibilizados pela inteligência, os homens respondiam com a filosofia da história, compreendida como uma explicação teleológica e necessária que subsumia qualquer equivocidade a um sentido transcendental positivo, que se realizaria a despeito de seu próprio conhecimento. No entanto, Gumbrecht ainda destaca um terceiro momento da modernidade, a “Alta Modernidade”, na qual teria havido uma crise profunda da representação.4 Entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do XX, alguns artistas, como os surrealistas e os dadaístas, teriam compreendido que havia um problema mais fundamental em questão, que a reavaliação das condições de possibilidade do conhecimento para a superação definitiva das mediações entre aparato intelectivo e real não seria capaz de produzir um acesso privilegiado do homem em relação ao mundo que é o seu. Eles teriam insistido, então, em apontar para o caráter de impossibilidade radical do próprio conhecimento no que tange à representação do real, pois como podemos ler: 4
Para sermos mais precisos, o que Gumbrecht chama de “crise da representação” teria sido experimentado na Europa desde 1800 e, desse modo, ele se refere quer à crise do “observador de primeira ordem” quer à crise radical do par sujeito-interpretação intensificada pelas reflexões e trabalhos das vanguardas, pois, como afirma: “É possível analisar a história da arte e da literatura na Europa desde 1800 como uma concatenação de reações diferentes a aspectos diferentes dentro da crise da representabilidade”. Cf.: GUMBRECHT, 1998: p. 17. 69 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Nunca antes e nunca depois estiveram os poetas tão convencidos de estar desempenhando a missão histórica de ser ‘subversivos’ ou mesmo ‘revolucionários’ (o que pode, ao menos em parte, explicar o enorme prestígio das vanguardas entre os intelectuais de hoje). Em vez de tentarem (como fez Balzac) preservar a possibilidade de representação, em vez de apontarem para os problemas crescentes com o princípio da representabilidade (a principal preocupação de Flaubert), os surrealistas e os dadaístas, os futuristas e os criacionistas – ao menos em seus manifestos – se tornaram cada vez mais decididos a romper com a função da representação (GUMBRECHT, 1998: p.19).
O que Gumbrecht evidencia, então, é uma postura de negação radical, em especial dos poetas vanguardistas, da possibilidade de qualquer relação estável entre o homem e o real, de qualquer possibilidade de representação de algo como o real. Assim, se pouco antes (podemos dizer que (quase) simultaneamente), o “campo hermenêutico” sofria uma crise profunda, e procurava superá-la a partir da insistência no par subjetividade e interpretação, por outro lado e pela primeira vez, artistas e filósofos negavam o método “campo hermenêutico”. A reconstituição histórica da modernidade, proposta por Gumbrecht, quer também evidenciar esse momento crítico no que tange às pretensões interpretativas do “campo hermenêutico”, e a origem de uma postura que Gumbrecht compreende também ser equivocada - a assunção da impossibilidade de representação de qualquer realidade, e mesmo, o esquecimento do real ou da realidade como medida fundamental ao pensamento, à arte e à ação. Gumbrecht evidencia sua compreensão de que há algo externo ao sujeito (à linguagem), que é o real ou a realidade, âmbito transcendental que orientaria os homens, e mais, que seria o espaço ideal à sua realização. Assim, esse real ou realidade não podem ser abandonados sem o risco de uma espécie de pobreza da experiência (para usar uma compreensão cara a Walter Benjamin) e da vida interior. Em outras palavras, a reconstituição da história da modernidade proposta por Gumbrecht evidencia, uma vez mais, uma compreensão e estratégia que seriam equivocadas em relação à dinâmica própria do real (da história) e que não deveriam ser reencetadas hoje: a de que não há relação possível entre sujeito e real, e que o mais adequado seria desistir disso que a modernidade (metafísica) teria chamado de real, e se dedicar, então, a uma espécie de livre jogo (subjetivista) no interior da linguagem.
Referências: ARAUJO, Valdei Lopes. Observando a observação: sobre a descoberta do clima 70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
histórico e a emergência do cronótopo historicista, c.1820. In.: CARVALHO, J.M. & CAMPOS, A.P. Perspectivas da Cidadania no Brasil Império. Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2009. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005. CASANOVA, Marco Antonio. Compreender Heidegger. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos Sentidos. São Paulo: Editora 34, 1998. ____. Graciosidade e estagnação – Ensaios escolhidos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2012. ____. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC-Rio, 2010. ____. Depois de aprender com a História. In.: Em 1926 - vivendo no limite do tempo. Rio de Janeiro/São Paulo: Editora Record, 1999. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. 3ª ed – Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: Contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto/PUC Rio, 2006.
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A PRESENÇA SENTIDA DO PASSADO: ARQUITETURA, PRESERVAÇÃO E CRONÓTOPOS
Luara França
RESUMO: Este artigo pretende conectar a ideia de produção de presença com as teorias de restauração e patrimônio. A presença do passado tem, utilizando o suporte teórico de Hans Ulrich Gumbrecht, um paladar material que é impossível de ser descartado. Quando falamos sobre presença do passado, estamos falando sobre entrar no passado, sentirmo-nos dentro do passado, deixar nossos corpos produzirem presença. Em todas essas nuances, a presença é material. Sendo assim, tentamos, nesse artigo, ver esse tipo de produção de presença em conexão com os monumentos patrimoniais arquitetônicos. Para esse propósito, foram utilizadas as teorias de Alois Riegl e John Ruskin. Palavras-chave: presença do passado, arquitetura, Gumbrecht, Alois Riegl, John Ruskin. ABSTRACT: This paper aims to connect the idea of production of presence with the restoration’s and heritage’s theories. The presence of the past has, using the Hans Ulrich Gumbrecht theoretical support, a material taste that is impossible to overlap. When we talk about presence of the past, we are talking about get in the past, feel ourselves inside the past, let our body produce the presence. In all this ways, the presence is material. As so, we tried, in this paper, to see this kind of production of presence in connection with the architectural monuments of heritage. For this purpose, Alois Riegls’ and John Ruskin’s theories were used. Key-words: presence of the past, architecture, Gumbrecht, Alois Riegl, John Ruskin.
Em que momentos sentimos o passado? Diferentes respostas podem surgir: quando lemos literatura, história, poesia, ao assistir um filme, uma peça, um espetáculo de dança. De qualquer forma é preciso entrar no passado, ou deixar que sua parcela que está dentro de nós possa tomar conta da situação. É a ideia do espaço que utilizamos para referirmo-nos à presença do passado, é preciso entrar, provocar o que está dentro, deixar o corpo produzir presença. Nesse viés de pensamento é possível ver a arquitetura como fonte privilegiada da presença do passado. Entramos em um prédio, deixamos nosso corpo fazer parte de um edifício, levamos em consideração o espaço e a materialidade de uma obra arquitetônica. Não é possível desvencilhar materialidade, arte e sensações na arquitetura. Dessa forma, entender a presença do passado como proposta por Hans Ulrich Gumbrecht (2010) associada à ideia de preservação de monumentos arquitetônicos (o patrimônio de pedra e cal) não parece uma empreitada de todo
Mestre em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). 72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
impossível. Esse artigo procurará associar tais ideias através de três pensadores: Alois Riegl, John Ruskin e Hans Ulrich Gumbrecht. Em um primeiro momento, a ideia de preservação de Riegl estará no centro da escrita, sua ligação com algumas ideias de Gumbrecht será explorada. Já em um segundo momento, teremos os edifícios, notadamente antigos, analisados por Ruskin trazendo mais densidade à discussão. * * *
Alois Riegl foi o primeiro autor a discutir a preservação e restauração de monumentos como a entendemos hoje. Seu principal escrito, O culto moderno aos monumentos1, foi publicado originalmente em 1903 como texto da Comissão de Monumentos Históricos de Viena. A principal preocupação de Riegl é o debate sobre o caráter do monumento e, consequentemente, sua melhor forma de preservação. Antes de Riegl, a restauração de monumentos podia ser vista de duas formas: sob a tutela de Viollet-le-Duc (2007) os monumentos deveriam ser “refeitos” a fim de acompanhar as modificações da época, e sob os olhos de John Ruskin (2008) e William Morris os monumentos deveriam reter seu caráter de passado. Após escrever seu livro Produção de Presença, Gumbrecht passou a se concentrar na possível produção de Stimmung de uma época. Em seu artigo “Uma rápida emergência do ‘clima de latência’” podemos caracterizar o conceito como: Stimmung é normal e corretamente traduzida por “disposição” ou, como uma metáfora, por “clima” e “atmosfera”. O que as metáforas “clima” e “atmosfera” compartilham com a palavra “Stimmung”, cuja raiz alemã é “Stimme” (“voz”, em alemão), é que elas sugerem a presença de um toque material – talvez o mais leve toque material possível – sobre o corpo de quem quer que perceba uma disposição, um clima, uma atmosfera, ou uma “Stimmung”. Tempo, vozes e música todos têm um impacto físico, ainda que invisível sobre nós. É um toque físico que nós associamos com alguns sentimentos “interiores”. Toni Morrison descreveu o lado interior da “disposição” como um paradoxo, isto é, como “ser tocado por dentro” (GUMBRECHT, 2010: p. 313).
Desta forma, a Stimmung pode ser, ao mesmo tempo, passado e sensação. Embora os estudos de Gumbrecht nesta área estejam voltados para o mundo pós-1945, é possível identificar tal sensação durante todo o século XX. Ainda segundo Gumbrecht: A partir de Nietzsche, la Stimmung se va a entender sobre todo como una forma de experiencia típica de un más o menos remoto pasado, como una forma y una experiencia de la armonía que parecía no tener lugar en el presente. Este punto de vista llevó al historiador del arte Alois Riegl a 1 Der modern Denkmalkultus. Sein Wesen und seine Entstehung. Viena e Leipzig, 1903. 73 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
predecir que la dimensión de la Stimmung, entendida como un «principio de nostalgia« (al menos así se puede describir hoy su tesis), tendría un gran futuro en el siglo XX (GUMBRECHT, 2010: p. 171).
Para entender o que Gumbrecht chama de “princípio de nostalgia” é interessante entender a valoração dos monumentos para Riegl, pois é sua preocupação para com os vestígios materiais do passado que leva o historiador da arte a se dedicar à restauração de monumentos. Para Riegl, todo monumento possui uma dimensão histórica e uma dimensão estética, e assim, todo monumento de arte é também um monumento histórico, bem como, todo monumento histórico é também artístico. Os valores são, assim, divididos primeiramente em dois blocos: valor rememorativo ou valor de passado (subdividido em valor de antiguidade, histórico e intencional), e valor de contemporaneidade (subdividido em instrumental e artístico). Cada um desses valores necessitaria de uma forma própria de restauração e preservação. O monumento com grande valor de antiguidade não poderia, para Riegl, ser restaurado, uma vez que são suas marcas de passado que caracterizam seu valor. Já o monumento com alto valor histórico não deveria sofrer alterações drásticas, mas seria imprescindível que sua preservação fosse incisiva, a fim de evitar uma deterioração rápida do monumento. Por último, o monumento com valor intencional deveria ser restaurado e preservado, uma vez que seu valor baseia-se em ser do presente e não permitir o esquecimento do passado. Segundo Maria Cecília Londres Fonseca, a divisão de monumentos de Riegl é importante, pois: Riegl se dá conta de que, para nós, modernos, o interesse suscitado por determinadas obras advém menos de seu poder de rememoração de fatos ou personagens notáveis, e mais por indicarem, sobretudo através de seu estado material, o caráter de antigas, evocadoras de um tempo passado. Nesse sentido, constituiriam monumentos, pois têm valor de rememoração, mas não monumentos históricos no sentido tradicional, pois remetem simplesmente “à representação do tempo transcorrido desde sua criação, que se trai a nossos olhos pelas marcas de sua idade”. Em suma, referem-se ao tempo, ao ciclo de criação e morte, como experiência intuitiva porém difusa, como a todos os homens (FONSECA, 2009: p. 66-67).
Pode-se perceber a semelhança entre a ideia que resulta dos monumentos – “evocadoras de um tempo passado” – e a ideia de Stimmung aliada à presença do passado. Quando Gumbrecht faz referência ao “princípio de nostalgia”, que Riegl previu como marca do século XX, ele está se referindo à postura de Riegl ao dizer que
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“se o século XIX foi o do valor histórico, o XX parece ser o do valor de anciedade”2. Ao decretar o Valor de Antiguidade como o valor do século XX, Riegl se aproxima de uma ideia de conhecimento do passado mais ligada à sensação produzida que ao marco historiográfico definido pela interpretação (que seria o valor histórico, característico do século XIX), aproximando-se bastante das reflexões propostas por Iser a respeito da obra de Henry James (Cf. FRANÇA, 2011). O monumento que possui valor histórico seria “constituído a posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do amante da arte, que o selecionam na massa dos edifícios existentes, dentre os quais os monumentos representam apenas uma pequena parte” (CHOAY, 2006: p.25). Enquanto no valor de antiguidade:
[...] el monumento es solamente un sustrato concreto inevitable para producir en quien lo contempla aquella impresión anímica que causa en el hombre moderno la idea del ciclo natural de nacimiento y muerte, del surgimiento del individuo a partir de lo general y de su desaparición paulatina y necessariamente natural en lo general. Al no presuponer esta impresión anímica ninguna experiencia científica, y dado, sobre todo, que no parece necesitar para su satisfacción de ningún conocimiento adquirido por la cultura histórica, sino que es producto de la simple percepción sensorial, aspira a llegar no sólo a las personas cultivadas.(RIEGL, 1987: p. 31) [...] el valor de antigüedad prescinde em principio totalmente de la manifestación individual localizada como tal y valora únicamente la impresión anímica subjetiva, que causa todo monumento sin excepición alguna, es decir, sin tener en cuenta sus características objetivas específicas, o más exatamente, teniendo en cuenta solamente aquellas características que indican la asimilación del monumento en la generalidad (las huellas de vejez), en lugar de las que revelan su individualidad originaria y objetivamente cerrada. (RIEGL, 1987: pp. 39/40)
Desta forma, o valor de antiguidade, característico do século XX, é muito próximo à ideia de sensações e materialidade que a presença do passado de Gumbrecht pede em uma cultura de presença. Ele responde a um histórico que, para Riegl, vem desde o século XVIII, de substituição de valores clássicos próprios da Idade Moderna. O homem moderno de Riegl não consegue mais encontrar nas ruínas a tranquilidade, o sentimento barroco de inalterabilidade do curso da natureza, o nascimento e a morte a que toda obra humana está suscetível. Outro fator que colabora com a visão de monumentos com valor de antiguidade
2 RIEGL, Alois. Le Culte moderne des monuments. Paris: Seuil, 1984. p. 56. Apud. FONSECA, 2009: p. 67. A tradução de Maria Cecília Londres Fonseca preferiu utilizar a palavra “anciedade”, enquanto a tradução espanhola, de Ana Pérez López, utilizou a palavra “antigüedad”, no original alemão a palavra aparece como “Alterswert”. Neste capítulo utilizaremos Valor de Antiguidade. 75 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
e produção de presença é o caráter “não intelectualizado” da sensação produzida. Antes de Riegl, o valor de um monumento era entendido como “depende[nte], para sua dignidade e prazer no mais alto grau, da vívida expressão de vida intelectual envolvida na sua produção” (RUSKIN, 2008: p. 25) Riegl confere o necessário caráter de “histórico” ao monumento, advoga por sua preservação e compreensão hermenêutica, mas ele, também, confere a todo monumento outro caráter através do Valor de Antiguidade. Todavia, mesmo expressando valores diferentes no que diz respeito à intelectualização do monumento, o texto de John Ruskin, A Lâmpada da Memória, possui aspectos que valem ser aqui mencionados. Para Pinheiro, na introdução de A Lâmpada da Memória na obra de Ruskin, “o principal aspecto que torna um edifício digno de preservação não é a beleza, mas seu aspecto histórico, i.e. memorial; e, nesse sentido, sublime, conforme as acepções ruskinianas a respeito” (PINHEIRO In: RUSKIN, 2008: p. 29). Pois:
É na longa duração, com a passagem do tempo, que a arquitetura vai se impregnando da vida e dos valores humanos; daí a importância de construir edifícios duráveis, e de preservar aqueles que chegam até nós. Não é à toa que Ruskin cogitou em chamar seu o sexto capítulo das Sete Lâmpadas de Lâmpada da História, em vez de “Lâmpada da Memória” (PINHEIRO In: RUSKIN, 2008: p. 29).
Assim, Ruskin também confere especial atenção à idade do monumento, como podemos perceber nessa passagem:
Pois, de fato, a maior glória de um edifício não está em suas pedras, ou em seu ouro. Sua glória está em sua Idade, e naquela profunda sensação de ressonância, de vigilância severa, de misteriosa compaixão, até mesmo de aprovação ou condenação, que sentimos em paredes que há tempos são banhadas pelas ondas passageiras da humanidade.(RUSKIN, 2008: p.68)
Porém, a necessidade de uma educação intelectual prévia para a apreciação da obra o diferencia de Alois Riegl. Uma obra deveria possuir um caráter de significação, tal ponto seria mais importante que a fruição não intelectualizada. Citando Ruskin: “É preferível a obra mais rude que conta uma história ou registra um fato, do que a mais rica sem significado. Não se deveria colocar um único ornamento em grandes edifícios cívicos, sem alguma intenção intelectual” (PINHEIRO In: RUSKIN, 2008: p. 29). É possível, todavia, compreender a necessidade desta afirmação a partir da 76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
ideia ruskiniana de restauração. Para Ruskin não deveria haver nenhum tipo de interferência no aspecto material dos monumentos, seria preciso uma grande intervenção e conscientização no que diz respeito à preservação, mas não seria interessante, em nenhum momento, utilizar uma construção ou adereço externo à época de produção do monumento. O autor chega, inclusive, a pedir que quando a estrutura de um prédio antigo estivesse danificada ele fosse aparado por andaimes externos que não seriam escondidos. Todos veriam que aquele prédio era antigo e não fora renovado por técnicas mais recentes. Assim, quando Ruskin afirma que nenhum ornamento deve ser colocado nos edifícios podemos entender, também, que ele se refere à restauração posterior. Quando Ruskin fala do sublime, do pitoresco diz: O pitoresco é, nesse sentido, a Sublimidade Parasitária. [...] ou seja, uma sublimidade que depende de acidentes, ou das características menos essenciais, dos objetos aos quais pertence; o pitoresco desenvolve-se inconfundivelmente na proporção exata de sua distância do centro conceitual daqueles aspectos nos quais a sublimidade é encontrada (RUSKIN, 2008: p.71). [...] o pitoresco é assim procurado na ruína, e supõe-se que consista na deterioração. Sendo que, mesmo buscado aí, trata-se apenas da sublimidade das fendas, ou fraturas, ou manchas, ou vegetação, que assimilam a arquitetura à obra da Natureza, e conferem a ela aquelas particularidades de cor e forma que são universalmente caras aos olhos dos homens. [...] o pitoresco ou a sublimidade extrínseca terá exatamente essa função, mais nobre nela do que em qualquer outro objeto: a de evidenciar a idade do edifício – aquilo que, como já foi dito, constitui sua maior glória (RUSKIN, 2008: p.77).
Assim, a imagem do pitoresco, da sublimidade, em Ruskin traz em si uma “distância do centro conceitual” que pode ser associada à presença do passado de Gumbrecht, à Kuntswollen e ao Valor de Antiguidade de Riegl. Tal ligação se dá no momento em que os três autores reconhecem um valor que está além da conceitualização, além da historicidade (sem estar fora do tempo, já que é reconhecido como antigo) e além da técnica artística. Outro fator a ser considerado é que nos três autores esse desejo, esse valor, só pode ser realizado com o passado. Para Gumbrecht, a presença não é somente a presença do passado, mas o desejo pelo passado é o viés mais evidente da cultura de presença e do cronótopo do presente espesso. Para Ruskin, o pitoresco é “procurado na ruína”, ele supõe a deterioração. Já para Riegl a Kuntswollen “ejercen sobre el hombre moderno una impresión que nunca podrá alcanzar una obra de arte moderna” (RUSKIN, 1987: p. 27). Desta forma, o interesse pelo passado monumentalizado, patrimonializado, não
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pode ser entendido somente como um interesse pela interpretação histórica do passado. Existe, na própria ideia de patrimônio um aspecto material e sensorial que ultrapassa o entendimento conceitual. Mesmo trabalhando com autores inseridos no cronótopo tempo histórico (Ruskin 1819-1900 e Riegl 1858-1905) é possível identificar uma preocupação sensorial que pode conferir uma nova forma de encarar o patrimônio de pedra e cal. Para referirmo-nos ao tempo através da linguagem utilizamos, frequentemente, palavras do espaço. A língua, em seu caráter eminentemente linear, aproxima o tempo, em seu caráter simultâneo, ao espaço. Como exemplo pode-se usar as estruturas de Mário Perini: “Eva nasceu em Belo Horizonte” e “Eva nasceu em 1976”. Percebe-se que as frases são muito semelhantes, as posições e o próprio “em” são iguais. Isso acontece também em “Ela chegou em cima do vale” e “Ela chegou em cima da hora”. Na análise sintática ainda não existe consenso sobre a classificação dos chamados adjuntos adverbiais de tempo. A partir dessa análise pode-se dizer que o tempo na linguagem é, na verdade, uma metáfora do espaço. Os adjuntos adverbiais de tempo são adjuntos adverbiais de lugar metaforizados. O tempo é, então, expresso pelo lugar. Tal exemplo mostra que o problema da representação do tempo está sendo pensado em diversos níveis, e não só no nível historiográfico. Nesse artigo pretendeuse mostrar como o cronótopo presente lento procura meios diferentes para a apresentação do passado. Seja através do patrimônio ou da arte, a narrativa hermenêutica do cronótopo tempo histórico mostra-se insuficiente para lidar com esse novo espaço temporal. Já se alia, na frase anterior, espaço e tempo, aliança característica do cronótopo atual. Para Gumbrecht: “Ambos os movimentos, o adiamento do futuro ameaçador para um futuro distante e o preenchimento do presente com múltiplos passados, convergem na impressão de que no tempo social pósmoderno o presente está se tornando mais amplo” (GUMBRECHT, 1998: p.285). É possível perceber que Gumbrecht utiliza a ideia de “amplo”, predominantemente espacial, para tratar do tempo. Mais uma vez a indissociabilidade de tempo e espaço é sentida da contemporaneidade. Esse artigo não advoga ― nem os escritos de Gumbrecht, acredito ― por um fim da interpretação ou da procura hermenêutica de sentido no passado. O que se pretendeu mostrar é que existe um viés presencial no passado, e que o estudo do passado e do patrimônio têm muito a ganhar com a identificação e utilização desse 78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
viés. É preciso admitir que existe alguma coisa além do sentido, alguma coisa que sentimos quando entramos em um edifício, que está aliada ao nosso passado latente/presente e que não pode ser alcançada através da interpretação: uma associação de tempo e espaço que é sentida na presença.
Referências: CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade, Editora UNESP, 2006. FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. FRANÇA, Luara. “Como se deu a perda de mundo ou aquilo que foi possível interpretar: estética da recepção e momentos de intensidade nos escritos de Iser, Jauss e Gumbrecht.” In: Temporalidades, Belo Horizonte Vol. 3 n.1 (Jan./ Jul. 2011) GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1998. ______. “Uma rápida emergência do ‘clima de latência’”. In: Revista Topoi, v. 11, n. 21, jul.-dez. 2010. ______. Produção de presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. ______. Lento presente: Sintomatología del nuevo tiempo histórico. Madrid: Escolar y Maio Editores, 2010. RIEGL, Alois. El culto moderno a los monumentos. Madrid: Visor, 1987. RUSKIN, John. A Lâmpada da Memória. Cotia: Ateliê Editorial, 2008. VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Cotia: Ateliê Editorial, 2007.
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Tradução
NOSSO AMPLO PRESENTE1 Hans U. Gumbrecht
1. Rastreando uma hipótese
Um famoso colega meu (recentemente aposentado), cujas obras, argumentos e elegância intelectual eu admirei desde o começo de minha carreira acadêmica, muitas vezes diz a respeito dele mesmo, com aparente modéstia, que em toda sua vida, ele teve “apenas uma boa ideia”. Então, após uma hábil pausa para avaliar o efeito de suas palavras, ele muda seu significado acrescentando que isso dificilmente é assunto tão sério, pois “a maioria das pessoas não chega a tanto”. Nesta altura, gostaria de seguir o exemplo do acima mencionado companheiro, cujo nome é Hayden White. Por uns bons quarenta anos de pesquisa e de escrita, minha única ideia (que teve, eu espero, algum impacto) tomou a forma de uma teimosa insistência de que as coisas-do-mundo, a cada vez que as encontramos, também possuem a dimensão da presença. Isso se dá mesmo de nosso ponto de referência cotidiano e intelectual para interpretar e significar – e mesmo se nós quase sempre desprezamos a dimensão da presença em nossa cultura. Por “presença” eu queria dizer – e ainda significo – que as coisas inevitavelmente permanecem à distância ou próximas a nossos corpos; se elas nos “tocam” diretamente ou não, elas têm substância. Eu me referi a esse caso em Produção de Presença, que apareceu em alemão como Diesseits der Hermeneutik. O livro recebeu esse título – que pode se tornar Hermenêutica desse Mundo, porque é minha impressão que a dimensão da presença deve merecer uma posição de prioridade com relação à práxis da interpretação, que designa significado a um objeto. Isso não se dá porque presença seja “mais importante” do que as operações de consciência e de intenção, mas antes porque, talvez, ela seja “mais elementar”. Ao mesmo tempo, o título alemão denota algo semelhante à suave revolta edipiana de um homem já acima dos cinquenta anos. Relegando a interpretação e a hermenêutica para um terreno acadêmico restrito (por assim dizer) foi uma pequena – e mesmo talvez insignificante – vingança contra uma “profunda” e embaraçosa tradição intelectual, que encontrei incorporada em alguns ês is da profundidade entre meus “pais” acadêmicos. Devido à minha formação e ( ês)inclinações, eu nunca me senti inteiramente confortável em tal profundidade. 1
Trechos do livro, Our Broad Present (Columbia University Press: no prelo). Direitos de tradução e publicação cedidos pelo autor para a revista Redescrições. Trad. Inês Lacerda Araújo. 81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Quase naturalmente – se isso é mesmo possível no mundo intelectual – e sem qualquer objetivo particular programático, minha intuição de presença se desenvolveu em três direções. In 1926: Living on the Edge of Time (Em 1926: Vivendo na Beirada do Tempo), que antecedeu Production of Presence (Produção de Presença), perguntei que consequências a atenção à dimensão da presença deveria ter em nossa relação com o passado. Um ensaio sobre a beleza dos atletas dirigia essa mesma pergunta com relação à experiência estética. Finalmente, em
The Powers of Philology (Os Poderes da
Filologia) eu tentei mostrar que a dimensão da presença afeta invariavelmente as demandas de tipo textual. Em seguida – e eu ainda não desisti inteiramente desta esperançosa pretensão – gostaria de ver se eu usufruiria da boa sorte de poder lutar por uma segunda ideia. (A isso eu fui levado por Jorge Luis Borges e imaginei que o que é intelectualmente decisivo, não consiste de “descoberta” ou “produção” de ideias e sim de “topar” com elas e “agarrá-las” – interceptar ideias e dar-lhes forma.) Infelizmente, eu ainda não “captei” uma segunda ideia, e todos os projetos pelos quais lutei em anos recentes são claramente extensões de minha intuição concernente à presença. Eu tentei descrever Stimmung, a relação que temos com nosso ambiente, como uma presença-fenômeno – o “mais leve toque que acontece quando o material do mundo circundante afeta a superfície de nossos corpos.” No momento, estou trabalhando em um livro sobre a década seguinte à Segunda Guerra Mundial, pois acredito que nesse período uma forma de “latência” predominou – uma presença, ou seja, ser entendida como uma espécie de “passageiro clandestino”, que pode produzir efeitos e irradiar energia ao escapar dos esforços para identificá-la e apreendê-la. Depois que os livros sobre presença apareceram, amigos cujas opiniões eu levo bastante a sério, me surpreenderam instando-me a refletir sistematicamente e escrever sobre as consequências existenciais e mesmo éticas dessas publicações. A tarefa, eu suspeito, exigiria demasiado de mim – ou será que eu meio inconscientemente, fingi modéstia apenas para esconder uma rejeição visceral pela “ética” e outros tipos de literatura prescritiva e de “autoajuda”? De qualquer modo, minhas reservas eram dificilmente consistentes. Como comprovei pelos capítulos do livro em mãos (para não dizer nada de outras obras), eu fui induzido com satisfação, dessa e de outras vezes, a analisar os fenômenos sociais e culturais da perspectiva da presença – ou pelo menos esboçar as linhas que tal investigação deve assumir. Houve ocasiões e pedidos para 82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
assim fazê-lo por detrás de cada parte deste livro, mesmo se eu sempre visasse escapatórias, alegando completa falta de competência ou aduzindo alguma outra razão. É tanto uma obrigação como um privilégio de humanistas praticarem “pensamento de risco”. Quer dizer, em vez de subordinar-se a esquemas racionais de evidência e aos condicionamentos de sistemas, nós “cientistas da mente” (Geisteswissenschaftler) deveríamos buscar confrontar e imaginar tudo o que possa acarretar uma ruptura na vida cotidiana e nos pressupostos que determinam suas funções. Para tomar um exemplo básico: ninguém pode simplesmente “fugir” dos ritmos e estruturas que constituem nosso presente globalizado e suas formas de comunicação; ainda assim, ao mesmo tempo, é importante agarrar-se à possibilidade de assim agir desde que isso forneça uma alternativa ao que é apenas muito apressadamente aceito como “normal”. Os cinco capítulos que compreendem o livro à mão têm um ponto de convergência superficial – o que não significa inconsequente – com o mundo contemporâneo em seu surgimento quando, ao aceitar demandas de outros, eu me justifico e me desculpo pelo que escrevi na sequência como casos de risco intelectual. Mais tarde, descobertos leitores favoravelmente inclinados, e por meio de suas observações, eu acedi também que outro plano de convergência existia, no qual as análises e argumentos dos capítulos se ligaram e produziram um diagnóstico do presente complexo e perfilado. A complementaridade e a coerência que ficaram evidentes a posteriori se devem, evidentemente, ao fato de que cada parte do livro procede tomando dois encadeamentos de pensamento que são muito diferentes na origem e na tonalidade. A primeira das teses (inspirada por Michel Foucault e Niklas Luhmann) de que a emergência de observações de segunda ordem formatou a estrutura epistemológica da cultura ocidental desde princípios do século 19. Reinhart Koselleck chamou o período entre 1780 e 1830 de Sattelzeit (“época de espera”); desde então, o pensamento autorreflexivo se tornou o habitus de intelectuais, sinônimo de pensamento em si. Mas se, de outro lado, eu pretendo contextualizar minha perspectiva e análise dos dias atuais em termos de consequências que dizem respeito a observações de segunda ordem institucionalizadas em 1800, eu também cedi, vez por outra, à tentação de conceder à história da epistemologia, uma ressonância que vem da tradição da crítica cultural. Talvez esse tom melancólico tenha sido ouvido pela primeira vez no materialismo prematuro do século 17, ainda mais que ele representou o protesto existencial (e nunca realmente “político”) contra uma cultura que, de um modo cada vez mais unilateral, postulou um fundamento transcendental para a estrutura e as funções da 83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
consciência humana – um desenvolvimento acompanhado pelo desbaste de uma corporeidade concreta como substrato da vida humana. Hoje – quando, para muitas pessoas, o dia-a-dia ocorre como uma fusão de consciência e software – esse processo alcançou níveis que dificilmente serão ultrapassados. Eu enfatizo uma disposição culturalmente crítica porque, aqui, meu pensamento se encontra com tentativas feitas por outros de descrever nosso presente, mesmo se, ao mesmo tempo, ele também difira deles. Sob títulos como “biopolítica”, “política do corpo” e “eco-crítica”, o corpo humano – e com ele as coisas-do-mundo – estão agora recebendo atenção renovada e interesse. Para mim, também, este é um ponto para o qual convergem múltiplas trajetórias. As observações de meus contemporâneos quase sempre envolvem uma crítica da situação presente e sugestões para mudá-la. Partidário, entretanto, de um fundamental ceticismo com relação à possibilidade de direcionar acontecimentos – ou mesmo de mudá-los em parte – eu prefiro me conservar a uma distância cautelosa. Creio que as situações que enfrentamos hoje representam uma continuação da evolução humana “por meios culturais”. Por essa razão – não obstante aparências em contrário – elas se localizam fora do que podemos ter esperança de controlar. Um quadro intelectual para a análise do presente resulta no que a história da epistemologia que seguiu a emergência de observações de segunda ordem intersecta com a crítica cultural de tipo melancólico. Em parte, os capítulos do livro pressupõem essa convergência; em parte, eles a elaboram. É central neste quadro a ideia de que a configuração de tempo que se desenvolveu no início do século 19 foi, por já aproximadamente meio século (e com efeitos que se tornam cada vez mais claros), seguida por outra configuração para a qual sequer nome ainda há. O título conferido a partir do cronotopo agora obsoleto – “consciência/pensamento histórico” enfrenta testemunhar o fato que foi em certa ocasião tão vastamente e profundamente institucionalizado que poderia ser tomado como tempo tout court. A última e duradoura realização de Koselleck foi ter historicizado, contra essa tendência, a própria “consciência histórica”. A fim de fornecer um fundamento e um contraste para o cronotopo que governa nosso próprio tempo, eu gostaria de me referir, em seis pontos, aos aspectos da mentalidade histórica que Koselleck descreve. Primeiro, a humanidade “historicamente consciente” imagina a si mesma em uma trajetória linear movendo-se através do tempo (desse modo, não é o próprio tempo que muda como ocorre em outros cronotopos). Segundo, o “pensamento histórico” 84 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
presume que todos os fenômenos são afetados pela mudança no tempo – quer dizer, o tempo aparece como agente absoluto de transformação. Terceiro, como a humanidade se move através do tempo, ela pensa que deixou o tempo para trás; a distância tomada pelo momento presente deprecia o valor das experiências passadas como pontos de orientação. Quarto, o futuro se apresenta como um horizonte aberto de possibilidades em direção ao qual a humanidade está fazendo seu caminho. Entre o futuro e o passado – e este é o quinto ponto – o presente se estreita em um “breve, não mais perceptível momento de transição” (nas palavras de Baudelaire). Eu creio – sexto ponto – que o presente comprimido dessa “história” acabou por fornecer ao sujeito cartesiano seu habitat epistemológico. Foi neste lugar em que o sujeito, adaptando experiências do passado ao presente e ao futuro, fez escolhas entre as possibilidades oferecidas pelo último. Escolher opções entre as coisas que o futuro aguarda é a base e moldura para o que chamamos “ação” (Handeln). Ainda hoje, reproduzimos o tópico do “tempo histórico” na conversação diária, tanto quanto nos discursos intelectuais e acadêmicos, mesmo se ele não fornece mais a base para os modos como adquirimos experiências ou agimos. Que não vivemos mais em um tempo histórico pode ser visto mais claramente com respeito ao futuro. Para nós, o futuro não mais se apresenta como um horizonte aberto de possibilidades; pelo contrário, é uma dimensão cada vez mais fechada para todos os prognósticos – o que, ao mesmo tempo, parece esboçar algo como uma ameaça. O aquecimento global continuará com todas as consequências que foram previstas já há algum tempo; permanece a questão de se a humanidade conseguirá obter crédito suficiente para mais uns poucos anos, antes que a mais catastrófica das consequências dessa situação ocorra. Apesar de toda a fala sobre como o passado supostamente desvaneceu, outro problema apresentado pelo novo cronotopo é que nós não mais somos capazes de legar algo à posteridade. Ao invés de cessar de fornecer pontos de orientação, os passados inundaram nosso presente; sistemas automatizados de memória eletrônica têm um papel central nesse processo. Entre os passados que nos submergem e o futuro ameaçador, o presente se tornou uma dimensão de simultaneidades expandidas. Todos os passados de memória recente formam parte deste presente distendido; é cada vez mais difícil para nós excluir qualquer tipo de moda ou música que se originaram em décadas recentes do tempo de agora. O amplo presente, com seus mundos simultâneos, até agora tem oferecido demasiadas possibilidades; então, à identidade que ele possui – se é que tem alguma – faltam-lhe contornos claros. Ao mesmo tempo, o fechamento da futuridade 85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
(pelo menos em sentido estrito) impossibilita agir, pois ação alguma pode ocorrer onde não há lugar para sua realização ser projetada. O presente que se alarga dá lugar para mover em direção ao futuro e ao passado, entretanto tais esforços parecem, ultimamente, que retornam ao seu ponto de partida. Nesse ponto, eles produzem a impressão de “mobilização” intransitiva (para emprestar uma metáfora de Lyotard). Tal movimento imóvel quase sempre se revela estagnado, o fim de um propósito direcionado. Se, então, o estreito presente da “história” era o habitat epistemológico do sujeito cartesiano, outra figura de referência (e autorreferência) deve emergir do amplo presente. O que segue deve explicar por que nós, desde já há alguns anos, sentimos a pressão intelectual – que não cessou de se intensificar – que leva ainda mais uma vez, a que aspectos dessa physis façam parte do modo como concebemos e conceituamos os seres humanos? Em nosso presente, a disposição epistemológica para configurar um modelo de autorreferência que é mais firmemente enraizado no corpo e no espaço, se encontra com um desejo que emergiu na reação a um mundo determinado pela ênfase excessiva na consciência; esse é o desejo que, como ressaltamos, encontrou sua nota e expressão no melancólico esforço da crítica cultural. Quanto ao novo e expansivo presente, então, já há sempre duas dinâmicas que se opõem e ao mesmo tempo formam um campo de tensão. De um lado se tem uma insistência na concretude, corporeidade e na presença da vida humana, onde o eco da crítica cultural se mistura com os efeitos do novo cronotopo. Tal insistência permanece oposta à espiritualização radical, que abstrai de espaço, corpo e contato sensório com as coisas-do-mundo – esse é o “desencantamento” decorrido pelo “processo de modernização”. Entre estes dois poderosos vetores, nosso novo presente começou a desdobrar suas formas particulares e a envolver uma fascinação única. Com frequência eu ouço a crítica ou objeção de que eu claramente e mesmo nostalgicamente, tomo partido da presença e dos sentidos contra as realizações culturais da consciência, da abstração e, finalmente, da tecnologia eletrônica. Tais observações são certamente acuradas, não me preocupo em me defender contra elas. Parece desnecessário fazê-lo, sobretudo porque eu de modo algum objetivo fazer exigências normativas em minhas escolhas. Contudo eu recorreria certamente aos privilégios da idade – uma idade que avança nos anos – que me seja permitido preservar alguma distância, até mesmo uma distância polêmica, dos desenvolvimentos dos últimos 86 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
tempos. Estou certo de que o mundo eletrônico, seus ritmos e suas formas de comunicação, me repugnam e dificultam minha aceitação porque iniciaram sua marcha em um momento no qual – pelos quarenta anos de idade – encontraram certos arranjos de minha vida diária e de meu trabalho que me faziam sentir confortável e produtivo. Muitos deles – por exemplo, escrever longas notas em cartões em branco de tabelas com uma superfície suave ou ditar a correspondência em um pequeno gravador – hoje parecem como ilhas distantes de atividade ameaçada pela inundação eletrônica que nunca regredirá. O futuro de nosso planeta cada vez mais aquecido transforma uma visão que tenho de um presente tecnológico desde muito ultrapassado, que se estende para nosso amplo presente. Nós que somos mais velhos não temos o direito de permanecer em nossas ilhas tanto quanto possível? Por que deveríamos nos adaptar de modo desajeitado às demandas da eletrônica que dominam o novo presente? Já estamos vivendo em um vasto momento de simultaneidades. Não há necessidade de nos alijarem – nós que fazemos parte dos muitos passados – de nossos paraísos no amplo presente.
2. No amplo presente
As maneiras pelas quais os horizontes do futuro e do passado são experimentados e conectados com um presente cada vez mais ampliado dão forma ao ainda não nomeado cronotopo, no qual a vida globalizada dos primeiros anos do século 21 transcorre. “Vista do exterior”, a forma desse novo cronotopo o torna diferente de outros cronotopos, em especial o da “consciência histórica”. “Vista do interior”, ela dita as condições sob as quais o comportamento humano encontra suas estruturas constitutivas e suas experiências. A visão segue – para ser historicamente preciso – a intuição de Edmund Husserl de que “o tempo é a forma da experiência”. Os contornos da vida no presente (que difere fundamentalmente daquela do “tempo histórico”) sequer foram esboçados por uma perspectiva que não se concentrasse tão somente no fenômeno individual. De modo algum eu pretendo ter feito isso aqui de modo completo ou mesmo elegante. Meu propósito é mais modesto. Nas páginas seguintes, eu reunirei observações sobre os cinco capítulos deste livro; talvez isso produza uma primeira visão, algumas especulações iniciais sobre a vida no novo presente. O relato fragmentado de nosso amplo presente consiste em quatro oscilações que, certamente – e esse aspecto vale ressaltar – não esgotam e nem são indicação de 87 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
sua totalidade. Eu considero que a oscilação é constitutiva do presente, e por isso creio que será produtivo para nossa compreensão reter essa figura de pensamento, considerando que um dia o projeto de dar conta do todo do amplo presente possa ser levado a cabo. A dramática polarização entre o cotidiano, de um lado, e de outro a crescente insistência, se amplamente reativa, nas demandas de presença, formatam nosso presente. Essa polarização cria o campo de força no qual, hoje, vivemos. Os opostos que o compõem não podem ser “mediados” nem “resolvidos” – o que mesmo se quer dizer com “síntese” da reflexividade à distância e intensidade participativa? Eu creio que “oscilação” é chave, pois, em qualquer momento dado, pode-se ocupar apenas um dos dois lados do campo. De um momento para outro a liberdade absoluta de mudar de posição existe, e é impossível esquecer o outro pólo e até mesmo resistir à sua atração. Isso pode, pelo menos em parte, explicar a mobilização intransitiva que caracteriza o presente, que ameaça nos esmagar e, como regra geral, força a linearidade de nossos projetos e ações a uma ineficiente circularidade. Finalmente, vale a pena enfatizar mais uma vez que a liberdade de seguir impulsos do movimento em diferentes direções, o que de fato apreciamos, não tem levado à liberdade de selecionar os móveis da atenção à vontade – nem, certamente, a conduzir projetos a bom termo. O amplo presente sempre nos direciona a determinados objetos; isso não significa, pelo menos em princípio, que não devemos estar genuinamente interessados e apaixonados por eles. Para começar – e aqui está a primeira das quatro oscilações que serão discutidas – o amplo presente aponta para nós (mais talvez do que nunca na história da humanidade) o planeta Terra, o lugar das condições mesmas para nossa sobrevivência individual e coletiva. A necessária referência ao planeta não é mais apenas a consequência de uma disposição de espírito que se espalhou rapidamente na segunda metade do século 20, quando projetos para a “conquista do espaço” se tornaram mais fundamentados. Desde então tem sido aceito que as condições que favorecem a vida no planeta não durarão. Consequentemente uma nova, ainda que muito tímida virada para as coisas do mundo e seu cuidado se desenvolveu, tanto como tarefa científica como política, mas também como um habitus cada vez mais intenso da existência cotidiana. Oposta a essa necessidade e paixão pela proximidade das coisas surge um ceticismo filosófico acrítico, o qual, depois de séculos de uma longa pré-história encontrou sua expressão intelectual canônica na assim chamada “virada linguística”. As 88 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
observações que fazemos asseguram certeza apenas nas linguagens que usamos (e, pode-se acrescentar, na introspecção permitida pela consciência). Assim, prossegue o raciocínio, “conhecimento” compartilhado sobre objetos externos à linguagem e à consciência, ficará sempre sob suspeita de ser meramente “uma construção social da realidade”, o que implica ser impossível chegar ao que é “real realmente”. A potencialidade dramática do primeiro ponto de oscilação torna-se clara se virmos nessa posição filosófica (a qual, em termos de consequências com relação a nossas vidas é em si bastante inofensiva) um paralelo com a fusão dos mercados “real” e “financeiro”, que muitos especialistas consideram a raiz da crise financeira que tomou conta do mundo desde 2008 – quer dizer, se identificarmos um paralelo entre o estilo filosófico que armazena apenas a linguagem e a consciência, de um lado, e o comércio e especulação com “derivativos”, de outro lado. Prolongadas crises econômicas impõem o atraso nas medidas e intervenções ecológicas e políticas, com consequências para a sustentabilidade do planeta que, ao que tudo indica, são irreversíveis. Não há uma óbvia alternativa pronta para uso, pois mesmo especialistas não sabem como uma nova economia possa começar sem acabar voltando a esse tipo de especulação. A segunda oscilação envolve a dimensão corporal de nossa existência. Em um ambiente de trabalho normal, que em um número crescente de profissões se dá na frente de uma tela de computador, nossos corpos se tornaram obsoletos sob muitos aspectos funcionais. Ao mesmo tempo, entretanto, os discursos da crítica cultural reivindicam a definição de direitos corporais, e o novo e largo presente também atribui a eles uma posição de importância epistemológica. Um aspecto do segundo ponto de oscilação concerne uma tendência que se encontra particularmente nas sociedades europeias, de ceder a responsabilidade e o poder sobre os corpos individuais inteiramente ao Estado. Expectativas de cuidados à saúde organizados e financiados pelo Estado aos doentes e idosos literalmente não conhecem limites. (É impossível convencer intelectuais europeus que é possível haver pessoas que, mesmo indo contra seus interesses econômicos, não desejam entregar os cuidados com sua saúde ao Estado.) Levando em conta o pacifismo de facto e as iniciativas de protesto civil por toda parte, há notável pequena resistência ao serviço militar obrigatório (o qual, em muitos contextos nacionais, serve, é claro, para minimizar o desemprego entre jovens). Mais assustador de tudo, talvez, seja o fato de que há ainda a norma nos sistemas legais ocidentais de incluir o suicídio como violação à lei. Claramente, o corpo e a vida não estão à disposição do sujeito individual. 89 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
No outro extremo do segundo campo de oscilação – e neste as demandas são mais radicais do que em qualquer outra época – assume-se que o corpo do indivíduo, como um objeto de jogo e de experimentação, está disponível de graça ao indivíduo – e que é apenas correto que esse seja o caso. Os limites da sexualidade legítima, cremos, devem ser determinados somente pela tolerância e consentimento dos adultos envolvidos. Claramente, em desacordo com os códigos legais concernentes ao suicídio, é proibido hoje para o Estado restringir os altos níveis de risco envolvidos em certo tipo de esportes (por exemplo, escalar montanhas). Conta como dado que em toda vida individual a liberdade deve ser preservada na escolha de parceiros sexuais, pertencimento a comunidades religiosas e ocupações profissionais – e que cargos abandonados sejam preenchidos em dado momento e à vontade, por meio de arranjos transitórios. Nossa vida no amplo presente está se dissolvendo cada vez mais em exercícios práticos, como mostrou em primeira mão Peter Sloterdijk. Depois da oscilação, na verdade um salto, entre o desejo pela vida coletiva em nosso planeta e o apagamento de concretude da vida (que parece enfraquecer uma e outra vez), e após a segunda oscilação, que ocorre quando se abre mão do direito ao seu corpo para os cuidados do Estado mesmo enquanto, ao mesmo tempo, se arroga agressivamente possuí-lo como joguete, surge a terceira das quatro oscilações que caracterizam a vida em nosso amplo presente. Esse campo de força também começa com o lado físico da existência humana, ao menos em parte. Ele diz respeito a uma flutuação que ocorre na lida com o poder. Aqui eu entendo “poder” como violência que se deslocou da esfera da ação e do efeito imediato para o cerne de cru potencial. “Violência” concerne aos corpos humanos que, ao bloquear ou ocupar espaço, oferecem resistência a outros corpos. Faz parte do processo de modernização – alguns diriam parte do todo processo histórico que merece ser chamado “processo civilizatório” – seguir a ordem geral para que a proximidade da violência seja transformada em poder, que existe em reserva. Desde meados do século 20, tornou-se prática usual no mundo ocidental não mostrar armas publicamente. Desde que o comunismo de Estado entrou em colapso na Europa Oriental, em 1989, as paradas militares se tornaram raras no palco internacional. Para intelectuais e muitas organizações internacionais, a pena de morte passou a ser vista como sintoma de barbárie, e a cada dia a questão se torna mais premente quando – com exceção talvez de casos extremos de autodefesa – é possível identificar situações 90 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
nas quais o uso de força militar é justificado. A proposta feita no início de 2010 pelos políticos alemães de não combater o Talibã militarmente mas, ao invés disso, oferecer € 30 000 para todos os que aderissem à renúncia de suas convicções ideológicas, pode representar a culminância da eliminação progressiva da força militar como instrumento político. Contudo, nesse mesmo presente, e em grau maior do que jamais, as pessoas infligem violência a seus próprios corpos desnecessariamente e sem uma motivação clara e prática. Parte ou talvez o cerne da “mobilização geral”, que já discutimos, é a obrigação geral e impessoal de sempre estar em excelente “forma” física. Essa exigência não respeita diferenças de idade e, consequentemente, o prolongamento indefinido da juventude se tornou um objetivo universal. A cirurgia plástica é o próspero comércio da atualidade e suas operações são a mais favorável expressão da nova autorreflexividade física. Já na adolescência a pressão para adaptar seu corpo a imagens ideais é experimentada com tal intensidade entre as jovens mulheres especialmente, que acaba em diversos tipos de desordem alimentar – o equivalente a uma duradoura violência ao próprio corpo. Há, além disso, piercings, tatuagens, mutilação autoinfligida e, finalmente, ondas de suicídio; aqueles que são “suas próprias vítimas” quase sempre associam (desde que ainda possam falar) essas atividades com o forte desejo por testar a presença de seus corpos por meio da dor. Tais formas de comportamento, eu creio, não pertencem aos micropouvoirs – isto é, às operações de poder exercidas no eu – que Michel Foucault discutiu inúmeras vezes, especialmente em seus últimos escritos. Foucault estava se referindo a uma figura estruturalmente similar à auto-reflexão: a internalização de valores socialmente estabelecidos, aos quais as pessoas adaptam sua “própria” conduta individual. Entretanto, como nenhuma violência física está em jogo aqui, só é possível falar de uma função do poder auto-refletida. Estas formas de comportamento que se opõem fortemente à eliminação da violência da sociedade e da política, e não podem ser reconciliadas com ela, são casos nos quais o poder é exercido no eu – não há autoridade que permaneça por trás dessas atividades, e que seja responsável por elas. Se a mídia eletrônica produz uma obrigação autoescravizante “de estar disponível” que nos tornou pessoas cuja subjetividade não tem dono, então a violência auto-reflexa representa um tipo de intensificação dramática diante da qual somos indefesos. Quanto mais a situação se torna autoevidente e urgente para nós, tanto mais importante parece ser para nossa sobrevivência que nos lancemos nos sonhos e ilusões do mundo como um lugar sem 91 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
violência ou poder. A quarta e última oscilação de nosso amplo presente que gostaria de discutir, concerne o modo como pensamos. As mídias eletrônicas por meio de sua tendência em eliminar o espaço da comunicação, vêm acelerando o tempo pelo qual se faz a circulação de pensamentos. Como em um amplo presente com um futuro obstruído não há mais lugar para conceber a ação humana com base em aspiração de fins, o pensar pode, hoje mais do que nunca, se tornar sinônimo de circulação – quer dizer, um processo de meramente passar pelos pensamentos. (Por essa precisa razão, talvez, alguns de nós experimentem a “criatividade” como habilidade de interceptá-los.) Em vez de conceber projetos ou “edifícios” de pensamentos, nosso papel no sistema de circulação de conhecimento se parece com o atleta jogando “futebol de um só toque”. Em vez de tentar reter a bola até dar um passe decisivo ou um petardo, jogadores deveriam chutar a bola a um parceiro que se movimenta livremente em uma posição descoberta. A bola deveria circular sem interrupção, sem parar até mesmo nos breves momentos de descanso. Como jogadores líderes, os “mestres pensadores” também parecem desaparecer sob essas condições. De outro lado desse quarto campo de oscilação polar, é o pensamento justamente como uma práxis e uma dimensão da existência que tem sido reivindicado como um modo de tomar distância das acelerações existenciais alimentadas pela “mobilização geral” – de fato, até certo grau, ele até oferece certo potencial para a resistência. Hoje, a equação do “pensamento” e a “distinção” nas obras de Aristóteles receberam uma atenção renovada ainda mais quando essa última é compreendida não em termos da diferença entre conceitos, mas como uma intervenção que ocorre entre as coisas-do-mundo. Nas últimas décadas, nenhum filósofo penetrou nesse tema com mais paixão que Jean-François Lyotard. Simplesmente tomando o tempo necessário, seja só ou em grupo, pensar sem um objetivo prático na mente representou, para ele, a última possibilidade de ação “revolucionária” que sobrou para os intelectuais (o que quer que possamos considerar estar em jogo com o título “revolucionário”, cujo uso é uma espécie de salvo conduto). O mais importante para mim são as especulações de Lyotard sobre os modos de pensar específicos dos sexos, que são recobertos com experiências particulares de funções corporais e físicas – por exemplo, sua intuição de que a intensidade específica 92 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
do pensamento feminino deve ter algo a ver com a intensidade específica do sofrimento físico. É claro que o objetivo não é voltar às suposições do mestre pensador que nos deixou em 1998. Pensar é um ponto de referência na oscilação que caracteriza nosso amplo presente, pois no pensamento se pode saltar do sentimento de aceleração e complexidade que nos deixa perplexos, até um enclave desacelerado de calma. Quanto mais vezes e talvez até mesmo mais desejosamente nos últimos anos eu me deixei levar pela tentação em insistir na presença e, por isso mesmo, em descrever e analisar o fenômeno individual de nosso presente, mais encontrava uma reação, a qual rapidamente se transformou em objeção, de que o quase agressivo pessimismo de meus diagnósticos entrasse em conflito com o até certo ponto otimista (ou, de qualquer modo, amigável) tom do que eu disse. No que me toca, posso ver, em ambos, no que escrevi e na minha vida, um crescente pessimismo aliado com ocasional “otimismo” – entretanto, não vejo contradição entre eles. As condições sociais, e por assim dizer, as condições cósmicas para esse pessimismo – com todos seus muitos efeitos – são óbvias. Elas formam o tema dos capítulos deste livro (sem, com tudo isso, ser parte de um programa de pessimismo gritante). Um pensamento complicador, que é tão simples quanto terrível, obscureceu essa cena há não muito tempo atrás, e ainda não me deixou. Ele me ocorreu pela primeira vez quando eu estava lendo “Carta sobre o Humanismo”, que Martin Heidegger escreveu como resultado imediato da Segunda Grande Guerra. Pode ser posta de modo melhor como uma questão retórica: como poderão os seres humanos presumir, com certeza, que suas habilidades cognitivas e intelectuais serão suficientes para assegurar a continuidade da existência enquanto espécie? Muitas culturas na história viveram sob a premissa existencial de que há simetria cognitiva – até mesmo harmonia – entre o “homem”, que é produto de desenvolvimento, e o universo que forma seu ambiente (o qual ele tenta compreender). Os avanços que as ciências naturais permitiram nas últimas décadas dificilmente encorajam permanecer com essa crença. Mas mesmo se uma situação melhor existisse com respeito à inteligência humana, e mesmo se o futuro ecológico revelasse projeções menos dramáticas, nós, como espécie e como comunidade compartilhando um destino cósmico, nós não podemos prosseguir com certeza. Isso, entretanto, nada mais é do que a reafirmação dos argumentos “verdes”, que ninguém precisa ouvir novamente. Recentemente, meu filho mais velho, que é piloto da Força Aérea Alemã, falou com notável conhecimento de causa de uma Guerra Mundial por recursos. Eu 93 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
certamente escaparia dela, ele também, possivelmente. Mas sua filha, minha neta Clara, não. A última parte do que ele disse me afetou profundamente – “bateu na minha porta”, como se diz, de modo mais profundo que as abstrações do pensamento filosófico ético o fariam. Ao mesmo tempo – à parte uma “experiência geral” até certo ponto vaga – não é inteiramente claro porque a vida e o sofrimento potencial de minha neta me pegaram desse modo tão intenso. De qualquer modo, eu posso associar a intensidade de minha preocupação com a intensidade da alegria que experimento quando Clara reconheceu meu rosto pela primeira vez – com nossa alegria quando ela senta em meu colo e, juntos, olhamos para uma gravura de um livro. É seguro dizer que todos nós sentimos um anelo especial pelos momentos de presença em nosso amplo presente. Eu não diria que é “otimismo” eu tentar encontrá-los – agarrá-los e estar aberto para sua completude. Em vez disso, é uma questão de desejode-presença. Desistir dele – ou sacrificá-lo à pseudo-obrigação intelectual de crítica permanente – seria realmente pedir muito.
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Resenha
RESENHA Resenha: GUMBRECHT, Hans Ulrich. Graciosidade e Estagnação: Ensaios Escolhidos. Introdução e organização Luciana Villas Bôas; Tradução Luciana Villas Bôas, Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2012. Marcelo de Mello Rangel O primeiro capítulo de “Graciosidade e Estagnação” é dedicado à compreensão da história dos conceitos, e isto a partir da evidência de que ela teve uma ascensão e um esmorecimento súbitos. Chamo atenção para o início desse capítulo. Gumbrecht sentado à escrivaninha, em meio a sua biblioteca, observando seus Dicionários: os doze volumes do Dicionário histórico de filosofia, de Joachim Ritter, encadernados em azul-ferrete; à sua frente, em vermelho duradouro e à altura do chão “na margem inferior de seu campo de visão”, os oitos volumes dos Conceitos históricos básicos organizados por Otto Brunner, Werner Conze e Reinhart Koselleck, “para momentos de necessidade aguda de orientação histórica”; além dos Conceitos estéticos fundamentais, em “elegante” cinza metálico, “como convém ao tema”; do Manual de conceitos político-sociais básicos na França (1680-1820), amarelo e que “durante anos foi especialmente importante”; ainda mais ao fundo, em azul-marinho e “quase intactos”, os fascículos da Enciclopédia do conto de fadas e, “novamente à altura do chão”, em encadernação pós-moderna e marmorizada, o dicionário da Ciência da literatura alemã, “lançado como terceira edição ‘totalmente revista’ do Léxico da história da literatura alemã”. Esse início, além de agradável, condensa e antecipa boa parte do que será discutido ao longo das páginas subsequentes. À escrivaninha, Gumbrecht procura e observa seus dicionários e demais obras de referência, construídos todos a partir das compreensões e estratégias próprias à história dos conceitos (ou às histórias dos conceitos?), no entanto, algo mais parece relevante. Os Conceitos históricos básicos e o dicionário da Ciência da literatura alemã encontram-se à altura do chão, fora de seu campo de visão, em lugar de difícil manuseio, e isto porque já não recorre tanto a eles. O Manual de conceitos político-sociais básicos na França parece (quase) amarelado e, mais ao fundo, ainda mais distante, a Enciclopédia do conto de fadas, “quase intacta”. Apesar de estarem ali,
Prof. Dr. Programa de Pós-graduação em História da UFOP. Agradeço aos meus caros Susana de Castro pelo convite e estímulo, a Valdei Lopes de Araujo e a Hans Ulrich Gumbrecht, pelo carinho e diálogo. O presente trabalho foi realizado com o apoio da CAPES, entidade do Governo Brasileiro voltada para a formação de recursos humanos. 96 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
em sua biblioteca, esses dicionários e obras de referência não participam mais de sua rotina. Se precisava procurar por eles é porque não eram mais imprescindíveis, o que está em questão, então, é o próprio esmorecimento silencioso da história dos conceitos. Segundo o autor, a história dos conceitos é própria a uma época, as décadas de 60, 70 e 80, no interior da qual ainda se tinha esperança em relação à preparação de um futuro melhor, ela seria uma espécie de último suspiro “historicista”, o qual se dedicava à compreensão do presente a partir de uma análise o mais fiel possível do passado, e isto em prol de uma intervenção adequada (e cientificamente controlada) no presente e capaz de construir um futuro ideal. No entanto, desde a década de 90, no interior do que chama de “cronótopo pós-moderno”, o futuro teria se fechado, ou ainda, passara a ser imaginado e experimentado como um âmbito terrível, no qual ações terroristas e crises e desastres climáticos, por exemplo, se adensariam. Os homens em geral, desde então, se dedicariam a criar mundos no interior dos quais pudessem evitar a concretização desse futuro terrível, nos quais revivessem incessantemente (com segurança) significados e sentidos próprios ao passado, dinâmica que nos permitiria compreender, por exemplo, o sucesso das festas plocs e a multiplicação de músicas, filmes e peças reencenados. Gumbrecht evidencia, ainda, uma espécie de fragilidade e/ou de indecisão teórica própria à história dos conceitos. Ela não teria se decidido, mais propriamente, no que diz respeito à realidade, ou melhor, à relação entre linguagem e realidade, ou em outras palavras, se existiria uma realidade para além da linguagem e se a história dos conceitos seria capaz de acessá-la. Deficiência teórica ou mesmo indecisão (?) que seria, também, uma espécie de necessidade de um tempo esperançoso, menos preocupado com questões desse porte e mais dedicado à compreensão do passado para uma intervenção adequada no presente em nome de um futuro ideal. Segundo Gumbrecht, essa deficiência ou indecisão (?) talvez indique, também, algo como uma estratégia, no que concerne à boarelação entre a história dos conceitos e a história social, deficiência ou indecisão (?) que “parece ter sido a força secreta do movimento da história dos conceitos”. E claro, não é menos interessante a análise que Gumbrecht faz das reflexões de Hans Blumenberg, de sua compreensão acerca da linguagem e do real, propondo sua “metaforologia” como um empreendimento intelectual específico e disponível à época de constituição e sucesso da história dos conceitos, o qual já disponibilizava uma crítica contundente à ideia de que os conceitos são um meio privilegiado à compreensão da relação entre determinados mundos e o tempo, ou ainda, da especificidade de determinados tempos históricos. 97 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
Ainda antes de terminarmos essa breve explicitação do primeiro capítulo de “Graciosidade e Estagnação”, lembro do relato de Gumbrecht de uma reunião, na década de 70, entre os principais expoentes da história dos conceitos (do grupo “poética e hermenêutica”), da qual ele participou. Ele descreve Koselleck apresentando algumas preocupações que então o aturdiam, o autor de “Futuro Passado” estudava e escrevia sobre sentimentos específicos de parte dos judeus aprisionados pelo nacional socialismo, sentimentos sublimes, impróprios à determinação linguística, e isto através do exame de protocolos de sonhos de felicidade e de salvação num além-mundo. Koselleck fora duramente criticado, “esbarrou no limite absoluto dos acontecimentos transmitidos porque semanticamente comunicáveis, um limite que ele (e justamente essa reserva foi decisiva) não procurou ultrapassar ou mesmo desfazer”. Gumbrecht oferece, ao fim, uma análise detida da relação entre a história dos conceitos e o passado recente alemão, de sua inadequação fundamental no que diz respeito à explicitação de uma experiência que fora, também, extralinguística. Mais do que isso, (estranha) e se pergunta pela não tematização explícita desse passado quer pelo próprio Koselleck, até a década de 70, quer pela história dos conceitos em geral. O segundo capítulo do livro recém-lançado de Gumbrecht, é dedicado à investigação da relação entre linguagem e o que chama de “presença”, ou seja, os corpos e materialidades que possuiriam uma existência autônoma (mas não independente) em relação ao aparato intelectivo e à própria linguagem. Gumbrecht critica, a um só tempo, a compreensão de que a literatura, de que a linguagem em geral, seja capaz de evidenciar um real discreto e, ainda, critica o que seria uma espécie de polo contrário, a compreensão de que não haveria real algum para além dos mundos que seriam construídos no interior e a partir da própria linguagem, questionando autores como Paul de Man (além de outros que também seriam orientados pelo desconstrucionismo derridiano), pois “seria realmente a função central da literatura, em todas as suas formas e tonalidades diferentes, chamar incessantemente a atenção do leitor para a visão mais do que familiar de que a linguagem não possui referente (...)?”. Segundo Gumbrecht, apesar da permanência de elementos próprios à “cultura de sentido” “historicista” no interior do “cronótopo pós-moderno” - elementos como a compreensão de que é possível o acesso privilegiado em relação ao real, ou bem a compreensão de que a linguagem possui uma densidade intransponível, ou ainda mais, que o real seria apenas uma impressão (uma imagem) postulada a partir dos mundos 98 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
construídos através da linguagem - viveríamos, hoje, numa “cultura de presença”, ou seja, orientados, especialmente, pela pré-compreensão de que há uma relação tensa e complementar entre sujeito (linguagem e inteligência) e real (corpos e entes ditos naturais e objetos), não cabendo à interpretação, à evidenciação intelectiva, a possibilidade de esgotamento do real. Nele, a relação entre sujeito e real seria compreendida a partir de uma mútua implicação, que seria transcendental - o real como a própria condição de possibilidade para toda e qualquer atividade intelectiva - e transcendente - uma vez em que o real estaria em questão a cada atividade intelectivoprática. Nesse momento do livro, vale acompanhar, ainda, a leitura que Gumbrecht faz de Heidegger, do Ser como espaço transcendental. No terceiro capítulo, intitulado “Perda do cotidiano. O que é ‘real’ no nosso presente”, Gumbrecht tematiza os reality shows (e também a internet, o e-mail, as bibliotecas eletrônicas etc.), descrevendo-os como adequados à evidenciação do cronótopo pós-moderno (do mundo contemporâneo). Segundo o autor, não se trata de posicionar-se objetivamente frente a esse fenômeno, buscando interpretá-lo e produzir enunciados adequados, mas sim de acompanhá-los e descrevê-los para deixar aparecer o próprio mundo contemporâneo, o qual teria perdido o que podemos chamar de cuidado pela aventura, ou melhor, teria produzido um novo real, virtual, quer através das mídias ou mesmo através da história (importando do passado âmbitos já experimentados), e isto porque, como já mencionamos acima, o real, mais propriamente, (podemos dizer também o futuro), passara a ser pré-compreendido como imprevisível e, em última instância, terrível: “isso significa que uma eventual perda da realidade no nosso presente, caso possamos discerni-la, teria de ser definida como uma etapa específica de exacerbação no decorrer de uma longa sequência histórica de desilusões da realidade”. E ainda mais, investiga uma espécie de efeito colateral próprio a essa fuga da realidade, a saber, de que os homens estariam sentindo uma espécie de nostalgia em relação ao real, que seria restituída pelos próprios reality shows. Eles lembrariam e permitiriam alguma experiência do real (perdido), do estar com amigos e familiares relacionando-se fisicamente etc., aparecendo como um recurso virtual para o enfrentamento, dessa vez, da nostalgia provocada pela própria opção da virtualidade (e do individualismo extremo ou eletrônico). E contrariando a compreensão heideggeriana de que esse mundo contemporâneo seria responsável por uma espécie de império do impessoal (“massificação”), escreve sobre “esse novo cotidiano (que) de modo nenhum confirmou o receio de Heidegger em relação ao enfraquecimento do indivíduo pelo 99 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
pronome impessoal ‘se’. Antes, as mídias eletrônicas conferem às consciências individuais o poder de construir, a partir dos elementos que colocam à sua disposição, os seus próprios mundos”. No quarto capítulo, “Estagnação: temporal, intelectual, celestial”, o autor retoma as discussões sobre o protagonismo da “cultura de presença” no “cronótopo pós-moderno”, não obstante, lembra que elementos próprios à “cultura de sentido” historicista ainda se fazem presentes. É especialmente interessante acompanhar a descrição fenomenológica do mundo contemporâneo que Gumbrecht propõe a partir da tematização da queda do socialismo de Estado na década de 80. O esmorecimento do socialismo de Estado indicaria que o mundo contemporâneo perdia a sua “fonte de energia” (nas palavras de Gumbrecht) própria ao “cronótopo historicista”, e entrava, assim, em um estado de “estagnação”, como anuncia já no título do capítulo. Fonte de energia que significa, também, uma atividade intelectual e prática incessantes a partir da expectativa (da esperança) de que o futuro estava aberto e se constituía como espaço ideal à realização, à felicidade. Chamo atenção, ainda, para a continuação dessa descrição do “clima” (Stimmung) contemporâneo a partir da cena intelectual atual, hiperespecializada, na qual grandes paradigmas teórico-práticos teriam se tornado raros, senão desaparecidos, e as reflexões seriam determinadas pelo que chama de uma “cultura da memória”, própria a um mundo que teria se virtualizado também através de um “presente ampliado”. Ao fim do capítulo ainda descreve o que chama de “cultura de eventos”, que seria uma espécie de lembrança e intensificação das reflexões de um Schiller e de um Adorno (?), que nasceria a partir do desejo contemporâneo de resguardar-se do real (e de suas surpresas, conflitos e tensões). A arte teria se tornado, assim, um espaço de entretenimento e de ratificação de sentimentos e compreensões disponíveis ao invés de provocar momentos sublimes capazes de complexificar e multiplicar enunciados e juízos para o acompanhamento de um real que também tende à complexificação (a partir de sua estrutura deveniente autônoma e transcendente), e “a pessoa que criticar esse tipo de estrutura, seja por hábito adorniano ou até mesmo paixão política, revela-se completamente antiquada ou descaradamente elitista, o que, no mundo da União Europeia, talvez seja muito pior”. No último capítulo, temos a descrição do fenômeno da dança, Gumbrecht é auxiliado por reflexões as mais distintas, ao menos numa primeira visada, como Heinrich Von Kleist, o crítico de dança Edwin Denby e Heidegger (esse sempre 100 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
presente). Trata-se de um ensaio que nascera de um engano (se é que podemos utilizar esse termo aqui, se é que ele é adequado à fenomenologia também gumbrechtiana), e isto porque Gumbrecht fora convidado a escrever sobre jogo, mas entendera dança e, quando percebeu seu “erro”, passou a falar sobre dança e jogo. Assim, relaciona ambos os fenômenos, com o objetivo de explicitar esse último e, especialmente, de acompanhar e descrever o fenômeno da dança. Toma o tango argentino para descrição e termina com a compreensão de que a dança é um fenômeno antropológico fundamental, ou melhor, pré-humano (instintivo ou ontológico), caracterizado pela necessidade da experiência, a um só tempo, de equilíbrio e desequilíbrio, que resguardaria aos homens o sentimento de aventura que teria sido obscurecido no interior do “cronótopo pósmoderno”. Gumbrecht mostra a dança como um fenômeno próprio à reaproximação (equilibrada, ou melhor, entre equilíbrio e desequilíbrio), ou ainda, à reinserção (ou ao reacolhimento), dos homens “no” âmbito real. A graciosidade capaz de ultrapassar o clima de estagnação do mundo contemporâneo.
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RESENHA: SEARLE, J. Liberdade e Neurobiologia. Reflexões sobre o livre-arbítrio, a linguagem e o poder político. São Paulo: UNESP, 2007, 101 páginas. Lauren de Lacerda Nunes * Gabriel Garmendia da Trindade ** Liberdade e Neurobiologia é um livro formado pela transcrição das conferências proferidas por John Searle em Paris, no início de 2001, a convite da Universidade de Paris-Sorbonne (Paris IV) e da UFR (Université de Formation et de Recherche), por iniciativa de Pascal Engel. É importante ressaltar que o estilo oral dessas intervenções foi conservado no livro. Com este título instigante, a referida obra conduz à abordagem contemporânea de problemas filosóficos canônicos como o livre-arbítrio, o poder político, a consciência, entre outros temas tradicionais na filosofia. Searle é capaz de unificar tais problemas sob o crivo de sua característica análise da linguagem e contempla o leitor com uma abordagem atualizada. Por exemplo, o problema do livre-arbítrio, como o título indica, é tratado sob a ótica da neurobiologia e Searle demonstra que esta ciência em fase inicial coloca novas questões de extrema complexidade. Seria, por exemplo, possível reduzir o livre-arbítrio a um estado de consciência e este a uma característica do cérebro? Esta e outras questões são levantadas por Searle na primeira metade do livro. Na segunda metade do livro, quando Searle aborda questões sobre poder e poder político, a linguagem é reconhecida pelo autor como instituição social de base. Sem a linguagem, propõe Searle, instituições como o casamento e o dinheiro não seriam possíveis. Searle realiza diversas relações entre poder político e linguagem, sempre reafirmando que a correta análise da linguagem é capaz de considerar a totalidade do mundo, reconciliando aquilo que se pensa com aquilo que as ciências naturais dizem. O foco central da segunda metade do livro é justamente abordar como a política é possível em um mundo formado por fenômenos físicos.
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Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PPGF da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS). Professora assistente na área de humanidades da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA-RS), campus São Borja – RS. E-mail: laurenlacerdanunes@gmail.com ** Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia – PPGF da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: garmendia_gabriel@hotmail.com 102 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
O livro é dividido em duas partes principais. A primeira delas é intitulada “Livre-arbítrio e neurobiologia” e subdivide-se nas seguintes unidades: O problema do livre-arbítrio; A ação da consciência sobre o corpo; A estrutura da explicação racional; O livre-arbítrio e o cérebro; A hipótese (1) e o epifenomenismo; A hipótese (2) – O eu, a consciência e o indeterminismo; Conclusão. A segunda parte chama-se “Linguagem e poder” e tem apenas uma subunidade: O poder político. Na primeira subunidade, O problema do livre-arbítrio, Searle aponta os principais aspectos do que ele considera uma espécie de “escândalo” na filosofia. Como diversos outros problemas filosóficos insolúveis, o problema do livre-arbítrio apresenta uma estrutura lógica padrão: por um lado tem-se uma crença ou conjunto de crenças às quais se pensa ser impossível renunciar, por outro lado têm-se uma crença ou um conjunto de crenças que entram em contradição com as precedentes, mostrando-se tão restritivas quanto as primeiras. De acordo com Searle, o problema do livre-arbítrio tem início porque se considera que as explicações dos fenômenos naturais devam ser completamente deterministas. Isso entra em choque quando se tenta explicar os comportamentos humanos: parece que, de maneira característica, o fato de agir “livremente” ou “voluntariamente” constitui para os seres humanos uma experiência que torna impossível recorrer às explicações deterministas. Nesse sentido, Searle tenta explicar como compreende o fenômeno do livre-arbítrio em suas linhas subsequentes. Para Searle, existe uma espécie de “intervalo” entre um estado consciente e outro, quando o agente está a tomar uma decisão. A consciência como que “percebe” a existência de um intervalo mental onde é possível pesar determinadas razões a respeito de uma decisão. O problema é que explicações por razões não são ordinariamente causais, como, por exemplo, o fato de uma folha cair de uma árvore por força da gravidade. Searle destaca que para as razões se tornarem causais, no caso da decisão humana, deve haver um eu, uma entidade, um ego, que age nesse intervalo. Por isso, é impossível reduzir o intervalo da decisão a algo determinado, o que torna o problema do livre-arbítrio palpável. Logo, Searle conclui que o problema do livre-arbítrio é voltado para fatos causais relativos a certos estados de consciência. O que leva inevitavelmente à pergunta de como a consciência pode funcionar causalmente sobre o corpo. Justamente sobre isso versa a próxima subunidade do texto de Searle, intitulada A ação da consciência sobre o corpo. Na referida subunidade a hipótese principal de Searle é: a consciência é uma 103 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
característica superior ou sistêmica do cérebro, causada por elementos inferiores, os neurônios e as sinapses. Se isso estiver correto, como os neurônios se comportam no caso do livre-arbítrio? A consciência, em seu plano “superior” concebe um intervalo na hora da decisão racional. Como representar esse intervalo no plano neurobiológico? Tarefa deveras complexa, uma vez que o plano neurobiológico é natural, logo totalmente determinista. Seria o cérebro suficiente causalmente para explicar o problema do livre-arbítrio? Com relação a isso, Searle levanta duas hipóteses: 1) O estado do cérebro é causalmente suficiente; 2) Ele não é. De acordo com a primeira hipótese, Searle afirma que não há liberdade no plano neurobiológico, e cada etapa da sequência de acontecimentos neurobiológicos é causa suficiente para a seguinte. A liberdade no plano psicológico/consciente seria mera ilusão, o que torna essa hipótese insatisfatória. Já na segunda hipótese, Searle coloca que a ausência de condições causalmente suficientes no plano psicológico/consciente corresponde à ausência de condições causalmente suficientes no plano neurobiológico. O problema com essa hipótese é que não existem intervalos no interior do cérebro e teria que se examinar mais atentamente a relação existente entre a consciência e o plano neurobiológico dos microelementos. Tarefa que Searle realiza em suas duas próximas subunidades. Intitulada A hipótese 1 e o epifenomenismo, esta seção se dedica a explorar detidamente a primeira hipótese exposta anteriormente. Segundo Searle, a hipótese 1 é um problema de engenharia. A palavra epifenomenismo refere-se ao fato de que a consciência, enquanto tomada de forma separada do corpo ou do cérebro, não teria influência nenhuma sobre o mesmo, este sendo o responsável pelas decisões racionais. No exemplo da engenharia de um robô, funcionaria como se a experiência do intervalo da decisão do robô fosse constituída por uma base material em que cada etapa é determinada pela etapa precedente e pelo impacto de estímulos externos. Se os seres humanos funcionarem assim, as decisões racionais não teriam nenhum impacto sobre o universo e ocorreriam exclusivamente no plano dos microelementos. Essa hipótese acaba com o tradicional dualismo mente/corpo, ao considerar a consciência apenas como o estado em que se encontra o sistema dos neurônios, da mesma forma que a solidez é o estado em que se encontra um sistema de moléculas, por exemplo. Dessa forma, a experiência do intervalo na hipótese 1 seria epifenomenal, não causalmente suficiente para induzir à ação, e a experiência dos processos conscientes de 104 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
pensamento não teria importância. Searle, entretanto, ressalta que comumente não aceitamos o epifenomenismo da consciência, embora ele seja plausível no atual estado de estudo do cérebro pela ciência. A não-aceitação do epifenomenismo da consciência tem origem, segundo Searle, no fato de ele ir de encontro a tudo o que sabemos sobre evolução. O epifenomenismo da consciência refuta a própria teoria da evolução, pois a tomada de decisão racional é um fenótipo de considerável peso na escala evolutiva e no desenvolvimento do organismo humano, destaca Searle. A questão é que a tomada de decisão livre tem um preço alto a ser pago, que Searle expõe na sua próxima subunidade. Na seção A hipótese 2, o eu, a consciência e o indeterminismo Searle parte do mesmo processo que adotou na seção anterior: construir um robô, agora baseando-se na hipótese 2. Nesse caso, cada característica da consciência do robô seria inteiramente determinada pelo estado dos microelementos, mas a consciência do sistema funcionaria causalmente na determinação do estado próximo do sistema. Isso se daria por um caminho de processos que não seriam deterministas, mas remeteriam a uma tomada de decisão livre por meio de um eu racional agindo com base em razões. De acordo com Searle e a sua abordagem do “intervalo”, a descrição desse robô baseado na hipótese 2 é precisamente a situação humana. O problema é que não se sabe se o cérebro satisfaz a essas condições e se for o caso, não se sabe como ele faz. Qual seria a descrição neurobiológica de um eu racional e volitivo? Como o cérebro cria um “eu” capaz de tomar decisões? Para se obter uma “descrição cerebral” do eu, Searle afirma que se deve dispor dos seguintes elementos: 1) uma descrição do cérebro que explique como este produz o campo unificado da consciência1 associado à experiência do agir; 2) conhecer a maneira pela qual o cérebro produz processos conscientes de pensamento, no âmago dos quais os parâmetros da racionalidade já estejam integrados como elementos constitutivos. A partir da descrição fornecida acima, Searle afirma não haver quaisquer problemas metafísicos remanescentes relativos ao eu. Se for possível mostrar como o cérebro chega a realizar tudo isso, a maneira pela qual ele consegue criar um campo unificado de consciência para uma consciência capaz de uma atuação racional livre, terse-ia resolvido o problema neurobiológico do eu. Mas mesmo que tudo isso seja resolvido, a questão que ainda permanece em aberto é como o intervalo da decisão pode ter uma realidade neurobiológica. Para tratar desse problema, Searle afirma inicialmente que as experiências que fazemos da ação 105 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
livre remetem às ideias de indeterminismo e racionalidade. Além disso, a consciência intervém de maneira essencial na forma em que se tomam essas duas noções. O cérebro é um órgão, portanto, natural e determinista. Como conciliá-lo com ideias de racionalidade vinculada a indeterminismo? No intuito de clarificar a questão, Searle traz um novo tema à discussão: ele afirma haver indeterminismo na natureza: o indeterminismo quântico. A consciência é uma característica da natureza que manifesta o indeterminismo. Logo, a consciência exprime um indeterminismo quântico. É importante ressaltar, lembra Searle, que as perspectivas contemporâneas habituais de pesquisa não se apoiam na mecânica quântica para explicar a consciência. Principalmente porque é muito difícil passar de um indeterminismo à racionalidade. Pois, usando os termos da física, indeterminação quântica equivale ao acaso e uma ação livre é uma ação racional e não uma ação que ocorre ao acaso. Como explicar a relação entre racionalidade e indeterminação quântica? De acordo com Searle, não haveria outro método que não o mesmo da análise entre os microprocessos do cérebro e a consciência. A indeterminação no plano dos microelementos, se a hipótese 2 for verdadeira, pode explicar a indeterminação do sistema, mas o acaso que se produz nesse plano não implica o acaso no âmbito do sistema e o método de análise prova-se novamente frente a uma questão em aberto. Dessa forma, Searle finaliza a análise da hipótese 2. Como conclusão a essa primeira parte do livro, Searle afirma que nenhuma das hipóteses expostas é verdadeiramente atraente. A hipótese 1 mostra-se em conformidade ao que comumente se sabe sobre biologia. Porém, Searle mostra que basta a seguinte pergunta para que ela se não se sustente: “se demonstrássemos que a tomada de decisão, de fato não existe, você racional e livremente, tomaria a decisão de aceitar o fato de que tais decisões não existem”? Essa pergunta, formulada no espírito da hipótese 1, lembra Searle, no entanto, vai além do que ela permite: exige, racional e livremente que se faça uma predição – coisa impossível com base na hipótese 1. A hipótese 2 acaba por gerar mais problemas do que solucioná-los. Ela traz as questões da consciência e da mecânica quântica. Para responder ao enigma do livrearbítrio é preciso, de acordo com Searle, que se esteja seguro em relação ao segundo enigma, da mecânica quântica. Logo, a discussão, ainda permanece complexa e longe de um final. A segunda parte do livro se chama “Linguagem e poder”. O objetivo dessa 106 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
conferência é explicar a ontologia do poder político e o papel da linguagem na constituição do poder. A pergunta principal de Searle nessa seção é: como pode existir uma realidade social e institucional em um mundo feito de partículas físicas? Da mesma forma que conduziu a discussão na primeira parte do livro, Searle tentará novamente traçar paralelos e relações entre o fenômeno político e a realidade física. Como os dois se relacionam? Qual é o vínculo entre eles? A linguagem, responderá o autor. Para tanto, Searle inicia sua exposição separando os elementos da realidade dependentes e independentes do observador. Como dependentes ele cita exemplos como dinheiro e linguagem. Como independentes ele cita exemplos como força e gravidade. Além dessas distinções, Searle acrescenta mais quatro: objetividade e subjetividade epistêmicas e objetividade e subjetividade ontológicas. As primeiras seriam propriedades apenas de asserções. Uma asserção epistemicamente objetiva tem o seu valor de verdade determinado independentemente de sentimentos e preferências do observador. Por exemplo, “Van Gogh nasceu na Holanda”. Já uma asserção epistemicamente subjetiva caracteriza uma opinião. Por exemplo, “Van Gogh é melhor que Monet”. Objetividade e subjetividade ontológicas, por seu turno, seriam propriedades da realidade. Por exemplo, a dor e a cócega seriam propriedades ontologicamente subjetivas, dependem do fato de que sejam experimentadas por um sujeito humano ou animal. As propriedades ontologicamente objetivas são, por exemplo, as montanhas e os planetas. Suas existências não dependem das experiências subjetivas. Em continuidade a esse raciocínio, Searle afirma que toda realidade política é relativa ao observador. Uma eleição e um parlamento só são possíveis se as pessoas adotarem certas atitudes a respeito destes. Logo, a política é formada por entidades ontologicamente subjetivas, mas há algo de especial: é possível fazer asserções políticas epistemicamente objetivas. Um exemplo disso é a presidência dos Estados Unidos: relativa ao observador, ontologicamente subjetiva. Já o fato de que Barack Obama é o presidente é um fato epistemicamente objetivo. A explicação para essa natureza dual da política demanda uma análise criteriosa sobre alguns conceitos. O primeiro deles é o conceito aristotélico de homem como animal político. Existem animais sociais, mas o homem é um animal político, ressalta Searle. O que se acrescenta aos fatos sociais para que se tornem fatos políticos? Um fato social é basicamente
a
capacidade
de
intencionalidade
coletiva.
Está
presente
em
comportamentos de cooperação, desejos ou crenças compartilhadas, nos quais os 107 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
agentes estão conscientes do compartilhamento. Para haver a passagem dos fatos sociais aos fatos institucionais precisa-se de dois elementos suplementares. A atribuição de funções e as regras constitutivas. Searle descreve a atribuição de função do seguinte modo: seres humanos utilizam toda a espécie de objetos para realizar funções, graças às suas características físicas. Por exemplo, o uso de um cajado para se apoiar, de uma faca para cortar, etc. Em um nível mais elaborado utilizam facas para fabricar objetos como cadeiras. Contudo, Searle destaca que os seres humanos, além disso, atribuem funções a objetos sem considerar sua estrutura física, mas na aceitação de seu status. O status é acompanhado de uma função somente obtida com a aceitação coletiva pela comunidade do status desse objeto, e pelo fato de que esse status seja portador dessa função. Um exemplo de tal objeto é claramente o dinheiro. Não é por sua estrutura física que realiza sua função, mas porque se adota uma série de atitudes coletivas a seu respeito. Como tudo isso é possível? Searle afirma que o que torna a atribuição de função através do status aceito coletivamente é a chamada “regra constitutiva”. São regras que, além de regular o comportamento dos seres humanos, criam a possibilidade de novos comportamentos, e explicam os fatos institucionais. Sua forma é “X é igual a (um valor de) Y no contexto C”. Ou seja, tais regras corroboram asserções do tipo “certa pessoa possui certas qualificações correspondendo ao posto de presidente dos Estados Unidos”. Quando se afirma, “fulano merece ser chefe” levam-se em consideração certas coisas como tendo certo status, e isso constitui o elemento-chave que permite passar da simples atribuição de funções dos animais e da intencionalidade coletiva para a atribuição de funções de status. Essa propriedade torna possíveis os fatos institucionais, que são constituídos pelas funções de status, destaca Searle. Os fatos institucionais são dotados de força sobre aqueles que os aceitam. Entretanto, Searle assevera que não se trata de força bruta: os poderes institucionais são sempre questões de direito, deveres e obrigações. Por isso, também são chamados de poderes deônticos. Tanto esses poderes quanto os fatos institucionais são representados por meio da linguagem. Searle é enfático nesse ponto: a linguagem é um meio de representação dos fatos institucionais, um meio para que sejam existentes e as pessoas acreditem neles. Dessa forma, Searle adentra em sua área preferida: a linguagem. É importante 108 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
ser dito que ela não é um mero fato institucional: é a instituição social de base, necessária para a existência das outras instituições sociais. Os elementos linguísticos se autodefinem, pois se vive em uma cultura que os considera linguísticos e tem-se uma capacidade inata para encará-los como tais. Por outro lado, o dinheiro ou o casamento, por exemplo, não se autodefiniram, lembra Searle. Precisa-se de um meio para identificá-los, e este meio é certamente o linguístico ou simbólico. Logo, a função da linguagem é primordialmente comunicar, mas ela é também parte constitutiva da realidade institucional. Por fim, Searle intitula sua última subunidade de O poder político e nela faz uma síntese de seu pensamento a respeito da política. Afirma inicialmente que sua concepção de realidade social e de racionalidade não pode ser desatrelada de uma concepção implícita do poder político. No intuito de corroborar essa ideia, faz uma lista de propostas. Na primeira de suas propostas, Searle afirma que o poder político é como já foi mencionado, uma questão de funções de status e por isso é um poder deôntico, totalmente diverso de qualquer ideia sobre poderes baseados na força bruta. Na segunda proposta, Searle relaciona poder político e poder econômico e ressalta que usualmente ambos são tratados como possuindo a mesma forma de funcionamento. Searle afirma que, de fato, ambos são sistemas de funções de status e que o reconhecimento de uma função de status é baseado em razões para agir, independentes dos desejos imediatos dos agentes. As razões podem até vir a motivar desejos, mas nem todas as razões procedem de desejos. O poder econômico é capaz de repartir vantagens e sanções econômicas de acordo com os desejos dos agentes, o que o faz perder sua força deôntica. O poder político pode ser assim também, mas nem sempre, pois relações baseadas em desejos não são deônticas. Logo, os sistemas de motivação racional decorrentes dos poderes político e econômico diferem de maneira profunda. O poder econômico continua capaz de repetir vantagens, o político não. Na terceira proposta, Searle afirma que o poder político advém das funções de status e, portanto, vem da base, do reconhecimento coletivo para ser autêntico. Logo, quando a estrutura da intencionalidade coletiva não é mais capaz de manter o sistema das funções de status, o poder cai. A quarta proposta afirma que os indivíduos, mesmo que façam parte da origem de qualquer poder político em virtude da sua contribuição na elaboração da intencionalidade coletiva, podem vir a se sentir impotentes. O indivíduo sente às vezes 109 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
que os poderes locais independem dele. Por isso, Searle afirma que se destrói a intencionalidade coletiva ao se criar uma forma alternativa e oposta de intencionalidade coletiva. Exemplos disso são os movimentos feministas. Na quinta proposta, Searle afirma que as funções de status só podem existir se forem representadas como existentes. Para isso é preciso que haja um modo de representação e esse modo é o linguístico. Logo, aqueles que controlam a linguagem, controlam o poder. Searle demonstra na sexta proposta que existem outros modos de sistemas de poderes deônticos. Por exemplo, as religiões e os esportes organizados. O que os difere é a essência dos conflitos inerentes a esses sistemas. O conflito no poder político diz respeito a bens sociais, na religião e nos esportes organizados isso não ocorre de maneira necessária. Na sétima proposta Searle relembra que funções de status são razões para agir independentes dos desejos dos agentes.
Dessa forma, todo o sistema social está
fundamentado na capacidade dos agentes humanos reconhecerem razões para agir independentes de seus desejos e mesmo assim, agirem em nome delas. A oitava proposta torna explícito o fato de Searle ter somente se ocupado até o momento com a estrutura lógica da ontologia das funções de status políticas. Passa ao largo do problema de justificá-las. Isso tem uma razão. Para Searle, não há justificação possível antes da compreensão ontológica das entidades em questão. Não se pode tratar o sistema das funções de status meramente como um dado. Esse tratamento perpetua as injustiças, que se mantêm indefinidamente por não serem analisadas nem haver preocupação com a legitimação das funções de status. Na nona proposta, Searle afirma ter ignorado propositalmente a legitimação e o problema da mudança social. Mas afirma ter feito isso porque há um princípio de explicação da mudança social e política na sua ontologia. Afinal, as mudanças capitais implicam um movimento brusco no sistema de funções atribuídas, além de transformações no background. As revoluções nada mais seriam para Searle do que invocações de disposições do background suscetíveis de induzir transformações na distribuição de funções de status. Searle finaliza suas exposições ressaltando o quanto uma análise da ontologia das funções de status políticas é importante e inerente ao processo político. Tendo iniciado suas conferências pelo problema do livre-arbítrio e através deste conduzido o 110 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano 4, Número 1, 2012
leitor até o problema da dualidade mente/corpo, consciência/matéria Searle parte de tais questões seminais até chegar à questão do poder político. Como fio condutor de toda a discussão Searle utiliza a linguagem – meio de representação e instituição social de base, capacidade inata de todo ser humano. Por meio da linguagem, Searle examina as questões mais candentes da filosofia sem desconsiderar o panorama contemporâneo, relacionando temas tradicionais com os novos questionamentos de novas ciências, como a neurobiologia. Liberdade e Neurobiologia é certamente uma compilação de textos instigantes e uma boa introdução ao amplo universo das contribuições de Searle, desde a década de 1970 até os dias de hoje.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SEARLE, J. Consciousness, free actions and the brain. Journal of consciousness studies, v. 10, n. 10, 2000.
NOTAS 1. Para maior esclarecimento sobre este conceito, ver SEARLE, J. Consciousness, free actions and the brain. Journal of consciousness studies, v. 10, n. 10, 2000.
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano IV, número 1, 2012 ISSN: 1984-7157
Editor Convidado: Ronie Silveira Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
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