Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 2, 2013 ISSN: 1984-7157
1 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados trata de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA)† Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva – UFPI José Nicolao Julião- UFRRJ Gregory Fernando Pappas - Texas A & M University Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor adjunto: Frederico Graniço Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Ilustração da capa: "The Last of the Buffalo" de Albert Bierstadt (1830–1902)
2 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano IV, número 2, 2013
Sumário Editorial
5
Notas & Comentários ROGER SCRUTON E A DENÚNCIA TARDIA DA MODERNIDADE OU SCRUTON VERSUS RORTY: crítica ao the great swindle - Paulo Ghiraldelli Jr Artigos O CARÁTER NÃO DEWEYANO DO “DEWEY HIPOTÉTICO” DE RORTY - Edna Maria Magalhães do Nascimento A INDUSTRIALIZAÇÃO DA VERDADE - Ronie Alexsandro Teles da Silveira UMA ANÁLISE DO “DISQUE DENÚNCIA” NA ROMÊNIA PÓS-COMUNISTA. - Cerasel Cuteanu ASPECTOS DA EXPRESSÃO DAS ARTES CÔMICAS DA ERA CLÁSSICA - Fabio Mourilhe
Tradução A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA - Noël Carroll Resenha BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. -Resenha por Fernanda Siqueira Miguens
3 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Editorial
4 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
EDITORIAL Olá caro(a) leitor(a)! Apresentamos mais um número da Revista Redescrições. As contribuições desta edição (Ano 4, Número 2) se pautam principalmente nas relações entre modernidade e contemporaneidade; em aspectos como arte, filosofia, ciência e cultura. Abrindo a revista, debatendo sobre arte e filosofia, Paulo Ghiraldelli estuda a crítica do conservador Roger Scruton à arte contemporânea de massa – o “kitsch”. Segundo a análise de Scruton, essa arte fake seria resultado de uma cultura que abandonou a contemplação ociosa para o estritamente “verdadeiro”, e cita alguns filósofos que teriam contribuído com isso: como Marx, Foucault e Rorty. É nesse ponto que Ghiraldelli desenvolve sua explanação, caracterizando a filosofia de Rorty no intuito de mostrar que Scruton se engana ao relacionar a crítica de Rorty sobre a filosofia moderna com o surgimento da arte fake. Pois nesse argumento o trabalho de Rorty não deveria ser pensado a partir de seus resultados práticos, mas sim a partir de suas reais motivações estritamente filosóficas ao tratar um problema do século XX. Além disso, Ghiraldelli não vê o trabalho de Rorty endossando obras de arte com “sentimentos rasos e falsos”. Também pensando a modernidade e a contemporaneidade, o artigo de Ronie Alexsandro (“A Industrialização da Verdade”), traz o foco da discussão para os efeitos da industrialização agora sobre o próprio conhecimento e seu “processo de produção”. O autor questiona a autocompreensão do cientista enquanto desenvolvendo uma atividade de grande heroísmo espiritual. Ao longo de sua narrativa, Ronie torna ainda mais claras as distinções entre uma perspectiva iluminista e uma pragmatista. Por outro lado, Edna do Nascimento em seu artigo “O caráter não deweyano do ‘Dewey hipotético’ de Rorty”, trata a questão (que também vem na esteira da crítica contemporânea à modernidade) da distinção entre a perspectiva científica e uma perspectiva historicista. Talvez de modo não antagônico ao pensamento de Ronie, Edna defende em Dewey um conceito de ciência coerente com seu historicismo. Para a autora, Rorty exagera numa falsa dicotomia entre um Dewey “bom” historicista, e um Dewey “mal” cientista. No artigo de Cerasel Cuteanu encontramos uma análise do “disque denúncia” na Romênia pós-comunista. O jornalista identifica uma dificuldade cultural no país em
5 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
adotar essa tecnologia, muito por conta do caráter excessivamente político das instituições – como por exemplo as universidades. Finalizando a seção de artigos, Fabio Mourilhe aborda as artes cômicas na modernidade, era “clássica” deste gênero. Procurando por relações e rupturas entre a linguagem estabelecida nos séculos XVII e XVIII e a prática apresentada nas artes cômicas. Fabio conclui apontando para um pioneirismo das artes cômicas, por não buscarem encerrar o dito (no quadro) em palavras completamente representativas. Contamos ainda, na seção de traduções, com o artigo de Noël Carroll sobre “A Ontologia da Arte de Massa”, que dialoga com o texto de Ghiraldelli que abre a revista. Noël Carroll, buscando a “ontologia da arte de massa”, faz minuciosa distinção entre a “arte de massa”, a “arte popular” e a “arte de vanguarda”; referindo-as a contextos históricos específicos e a condições e objetivos culturais distintos para cada uma. E finalizando este número temos a resenha do livro “A Teoria dos incorporais no estoicismo antigo” de Émile Bréhier. Segundo Fernanda Siqueira é um clássico recentemente traduzido para o português, que trata da abordagem do estoicismo antigo sobre os conceitos, criticando a abordagem deixada por Aristóteles. No estoicismo o conceito deixa de ser algo já sempre prévio, e passa a ser visto como uma construção... Deixa de ser ‘uno’ para se tornar ‘múltiplo’, como conclui Fernanda.
Frederico Graniço, editor adjunto.
6 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Notas & Comentários
7 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
ROGER SCRUTON E A DENÚNCIA TARDIA DA MODERNIDADE 1 OU SCRUTON VERSUS RORTY: crítica ao the great swindle Paulo Ghiraldelli Jr2
1. A arte e a cultura em geral devem cultuar a ‘originalidade’, têm de promover a ‘transgressão’ e, enfim, ‘abrir novos caminhos’. Há quem diga o contrário? O filósofo conservador britânico Roger Scruton diz que isso tudo, hoje, tornouse cliché. O kitsch teria substituído a arte. A boa arte tinha como objetivo a “autoconsciência da sociedade” e a emergência de “sentimentos profundos” a respeito da realidade. O kitsch, por sua vez, nada é senão produto de uma cumplicidade entre autor e consumidor (a “vítima”) buscando substituir a vida real. Tratar-se-ia de um produto da “razão instrumental” destinado ao comércio e, assim sendo, substituiria os “sentimentos verdadeiros”, aqueles oriundos da “alta cultura”, da “cultura verdadeira”. Nossas instituições de ensino e de cultura deveriam continuar a trabalhar segundo o que os alemães chamaram de Bildung, o cultivo do que se faz no caminho do que nos torna cultos, a cultura. Mas essas instituições estão se desviando de tudo que é “verdadeiro” e adotando para tudo “o falso”. Segundo os adjetivos de Scruton: true é substituído por fake. Scruton cita Aristóteles para dizer que a cultura depende de contemplação advinda do ócio e remete a outros filósofos para dar base ao seu ataque à cultura do kitsch, procurando manter uma distinção rígida entre “verdadeiro” e “falso”. Ecoa aí certo kantismo conservador, típico de Scruton. Mas, mas de um modo geral, para saber de crítica semelhante vinda de matrizes distintas, poderíamos abrir a internet e escutar uma rádio do passado transmitindo falas de Theodor Adorno e Hanna Arendt. Estes, por sua vez, ecoaram Nietzsche, isso sem contar uma enorme gama de pensadores de vários calibres, descontentes com o progresso da civilização e desconfiados da aliança entre
1
2
Aeon Magazine, 2012 Paulo Ghiraldelli Jr., 55, filósofo, escritor e professor da UFRRJ. Contato: http://ghiraldelli.pro.br
8 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
tecnologia e democracia de massas. Em outras palavras: salvo no estilo, a reclamação de Scruton, ainda que tenha lá sua legitimidade, é daquelas que podemos considerar como o que pouco tem de novidade. Já ouvimos isso durante bastante tempo e, em alguns casos, como o de Arendt, de uma maneira mais sofisticada e mais arguta. Todavia, não é isso que vejo como problemático em Scruton. O que me incomoda na reclamação de Scruton é que o seu conservadorismo o faz fustigar certos filósofos não por aquilo que eles merecem e, sim, pelo que não fizeram. Três deles estão na mira de Scruton: Marx, Foucault e Rorty. Ele os culpa por terem impulsionado a filosofia, de certo modo, a alimentar o “fake”, à medida que criticaram a cultura em geral ou, de certo modo, a alta cultura. Segundo Scruton, a “crítica da ideologia”, utilizada por Marx, buscou colocar a alta cultura como “cultura burguesa”, atrelando-a a defeitos de classe, e então a destituindo de seu pretenso universalismo e, portanto, de sua legitimidade. O modo de Foucault olhar as narrativas em geral, ensinando todos a verem antes quem pronuncia o discurso do que propriamente o seu conteúdo, fez da cultura sempre alguma coisa que é mecanismo de poder, tornando-a também carente da legitimidade até então desfrutada. Por fim, Rorty, ao destituir a própria consideração para com a verdade, tomando-a como o que é útil, abriu definitivamente espaço para o falso. Não creio que Scruton esteja errado no que disse de Marx e Foucault, ainda que eu não o endosse no que talvez seja sua condenação a tais pensadores de um modo mais totalizado que o necessário. Marx e Foucault falaram o que tinham de falar. Suas críticas, apesar de datadas, nos deram dimensões da cultura que até então tínhamos tocado apenas de modo leve. Mas, em relação a Rorty, ainda que Scruton não o chame de pensador “fake”, mas de autor que favoreceu a hegemonia atual do “fake”, há uma posição muito infeliz. O próprio Rorty respondeu a críticos parecidos com Scruton. Um de seus melhores textos veio de uma defesa assim, em resposta a uma crítica de Searle, quando este disse que autores como Kuhn, Derrida, Foucault, Rorty e outros “pós-modernos” foram os que causaram o fim da avaliação objetiva nas provas universitárias, e que haviam ajudado na deterioração do ensino superior americano (esse texto de Rorty está, entre outros lugares, no terceiro volume de seus Philosophical Papers, e há uma tradução em português, pela Manole). Não vou repetir aqui os argumentos de Rorty a Searle. Já fiz isso em outros lugares, no sentido de esclarecer situações confusas criadas por textos parecidos com o de Scruton. Aqui, meu caminho será outro. Vou tentar 9 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
mostrar que Scruton toma um Rorty culpado de algo que ele nunca fez. Vou procurar mostrar, sem excesso de argumentos técnicos, que essa maneira de tomar Rorty como um relativista banal caberia para um aluno qualquer de primeiro ano de ciências sociais ou filosofia, ou daqueles professores com viseiras eternas, moldadas por partidos, mas não a alguém do calibre de Scruton.
2. Scruton acredita que Rorty (como Foucault e Marx) “fixou-se contra a verdade objetiva”, “dando uma variedade de argumentos para pensar que a verdade é uma coisa negociável, que o que importa no final é de que lado você está”. Scruton diz que esse tipo de coisa abriu espaço para o que veio depois em favor de uma cultura de privilégio do “fake”. Ora, se Scruton reclama da verdade objetiva e ele próprio toma Rorty apenas pelas consequências que outros tiraram de seus estudos, como quem quer acreditar que, afinal, o kitsch foi legitimado por alguma coisa dita pelo filósofo pragmatista, ele está abraçando o que denunciou. Um conservador como Scruton, preocupado com a verdade objetiva, deveria ir menos pelos supostos efeitos e mais pelo que Rorty disse, vindo dos seus livros, além disso, não deveria, sem uma pesquisa sociológica relativamente quantitativa, pôr sobre os ombros de Rorty aquilo que venceu e se legitimou, talvez, por outros mecanismos. Não vou tocar nesse segundo ponto, pois eu mesmo não tenho essa sociologia nas mãos, embora não desconheça autores que evocariam outros elementos para dizer o que Scruton disse, e não a obra de Rorty. Mas vou tocar, sim, no primeiro ponto, discordando: Rorty não disse para as pessoas que a verdade não existe ou que a verdade objetiva é pouca coisa ou não importa. Muito menos Rorty disse, em um sentido banal, como Scruton coloca, que a verdade é algo negociável. Sempre esteve longe de Rorty achar que “o que importa no final é de que lado você está”. Talvez fosse mais correto dizer, para ser justo com Rorty, que a negociação em torno dos enunciados que afirmamos como verdadeiros é uma prática da qual nenhum homem de ciência pode fugir. O que Rorty fez foi considerar algo que em geral os filósofos da cultura, ao desprezarem certos aspectos técnicos que surgiram com a filosofia metafísica enquanto associada à filosofia da linguagem, deixam de lado e, então, com facilidade deslizam 10 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
para a crítica fácil dos que foram chamados, ao menos no final do século XX, de pósmodernos. Destaco dois pontos. Em primeiro lugar, Rorty teve, ele próprio, de enfrentar o problema da verdade enquanto um problema filosófico específico no século XX (neste tópico 2). Em segundo lugar, Rorty teve de considerar, no campo específico da cultura americana, o papel da religião e o modo como as igrejas utilizam o termo “verdade” (tópico 3). Assim, não foi por uma idiossincrasia que Rorty escreveu o que escreveu a respeito da verdade. Não foi como um militante que gostaria de ver a alta cultura se deteriorar que Rorty se dedicou ao tema da verdade, se é que alguém que se dispusesse a falar contra a verdade objetiva estivesse já de imediato criando caminhos para a entrada da cultura “fake”. A questão toda de Rorty quanto à verdade é uma que, no que concerne aos limites que tenho aqui neste texto, pode ser posta da seguinte maneira: a noção de verdade vinda da Teoria da Verdade como Correspondência está na berlinda (e escapar dela optando pela noção de verdade que emerge da Teoria da Verdade como Coerência não tem se mostrado algo sem críticas). Rorty nunca conseguiu esquecer sua formação parcialmente analítica, em que tal questão importava muito – especialmente em filosofia da ciência, um campo que para boa parte dos professores sempre esteve cruzado com a filosofia analítica, principalmente nos Estados Unidos. Muito menos Rorty poderia evitar seu apego à tradição americana que produziu a ele próprio, ou seja, o pragmatismo de James e Dewey, que duelou com Russell exatamente nesse campo da noção de verdade. Scruton não é alemão ou brasileiro ou francês. É britânico. Ele sabe de tudo isso. O que o faz saltar tais coisas é o seu conservadorismo. Ele parece precisar, por conta de sua posição na direita política, alinhar Marx, Foucault e Rorty, de modo a dizer que foram tais plebeus que atacaram a alta cultura ao atacar a verdade e, portanto, automaticamente, elevar o “fake”. O certo é que quem ataca as noções tradicionais de verdade não necessariamente eleva o “fake”. Nem mesmo dá caminho para tal. Esse tipo de entendimento é o do senso comum, e Scruton não deveria assumi-lo assim tão facilmente. O que Rorty fez ao ver que as noções tradicionais de verdade estavam na berlinda, foi simplesmente apoiar a filosofia da linguagem, em suas soluções técnicas, para escapar do problema. Ele tomou então, mais radicalmente, os trabalhos de Donald Davidson, exatamente para saltar para fora das falhas das teorias tradicionais da verdade e, ao mesmo tempo, não ter de suportar os que poderiam chamá-lo de relativista, de um modo pouco qualificado. 11 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Qual o problema das noções tradicionais de verdade? Qual o problema específico com a Teoria Correspondentista? Ora, o problema é que quando eu digo que “O Pitoko está deitado no chão” (p), e ele, Pitoko, está deitado no chão, eu chamo a sentença p de verdadeira, mas o que eu estou dizendo, quando me afasto da questão da percepção (de questões psicológicas e de certo modo epistemológicas), quando fico somente com a frase e a sua lógica, isso tudo ganha uma fórmula de enunciação que parece não se sustentar. Ei-la: S: “O Pitoko está deitado no chão” (p) é verdadeira se e somente se o Pitoko está deitado no chão (p). Ou então: S1: p é verdadeira se e somente se p, em que p é o que eu chamo de o fato indicado por p. Ora, mas o que é o fato? É algo não linguístico? O que é o fato senão aquilo que se sabe a se ter “O Pitoko está deitado no chão”? Não há como dizer que p é outra coisa que não p se estamos tratando de p como um enunciado verdadeiro. De modo que dizer o verdadeiro é dizer o fato, mas ao perguntar o que é fato não conseguimos obter outra coisa senão a resposta: é o que é verdadeiro. Assim, ao falarmos “fato” para apontar para o não linguístico, para que este possa corresponder ao que é linguístico, que é “O Pitoko está deitado no chão”, não estamos fazendo outra coisa senão entrarmos em um círculo. Assim, a Teoria da Correspondência não explica o que é a correspondência e o que é dizer a verdade. Sendo circular, dizer que essa teoria explica algo é realmente desrespeitar a filosofia. Em filosofia como em ciência não temos o costume de ouvir sem desconfiança as explicações circulares. Desse modo, no linguajar comum, cansamos de usar da noção de correspondência para pensar na verdade (ou, ao menos, em um primeiro momento, assim nos parece), e isso parece funcionar, mas do ponto de vista filosófico, um simples exercício – como este acima – diz que há anos estivemos caminhando no uso de alguma coisa obscura. Rorty nunca falou para as pessoas pararem de usar essa noção de verdade, mas, como filósofo, ele teve de levar a sério esse problema da Teoria da Verdade como Correspondência, ou seja, dela ser uma explicação circular. Outras teorias também trouxeram problemas. E então, Rorty resolveu usar de seu pragmatismo para pensar a verdade de um modo em que os problemas filosóficos tradicionais não aparecessem. Ele ouviu James e Dewey, como também o segundo Wittgenstein e Davidson, para seguir a linguagem e, então, estudar não A Verdade, mas 12 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
os usos do verdadeiro em nossa linguagem. O que Rorty viu foi que expressões como “é verdade” ou “é verdadeiro”, do modo que a utilizamos, podem ser mantidas sem que tenhamos de nos referir à noção de correspondência. Portanto, se a Teoria da Verdade como Correspondência é falha, temos outra maneira de continuar usando “é verdade” se descrevermos nossa linguagem de outra maneira. Pelos usos de “é verdade” ou “é verdadeiro”, chegamos a situações em que a correspondência não precisa ser evocada. Rorty colocou três situações que, segundo ele, cobrem todo o espectro em que o “é verdadeiro” aparece e dispensa a correspondência. Esses são os três casos. - Usamos “verdadeiro” para aplaudir alguém ou uma situação. Nesse caso, falamos que algo é verdadeiro à medida que falaríamos que é bom ou nobre, ou útil, etc. - Usamos “verdadeiro” para dizer coisas que foram endossadas por outros. Nesse caso, falamos: “‘Tudo é água’ é verdadeiro para Tales, mas não para Anaximandro. Ou então: “É verdade que ‘a escravidão é um crime’ para mim, mas meu tataravô nunca a viu como um crime”. - Usamos “verdadeiro” como sinal de advertência. Nesse caso, temos: “‘Os cães foram domesticados por nós há muito tempo’ é verdadeiro para os biólogos, mas não é verdadeiro para os antropólogos”. Ora, dos três casos, só o terceiro parece trazer algum problema. Esse problema é o seguinte: se digo “é verdadeiro” como alguma coisa que é uma advertência, há quem fale que, neste momento, entra aí, sim, a noção de verdade objetiva associada à noção de correspondência. Um dos filósofos que disse isso, contra Rorty, foi Habermas. Em uma polêmica de mais de trinta anos, com vários textos trocados, Habermas sempre insistiu que quem admoesta o outro com a verdade tem em mente uma noção de “é verdadeiro” como algo que é atemporal e que serve para qualquer audiência. Assim, a advertência só seria advertência porque quem a pronuncia não está colocando geografia e história para medir o “é verdadeiro”, mas lidando com a noção de verdade no seu sentido substancial e forte. Penso que as respostas de Rorty admitem essa consideração, em parte. Mas só em parte! Porque tal pessoa, que faz tal coisa, não precisaria fazer assim, ou seja, não precisaria estar pensando dessa maneira, como quem tem na mão uma verdade universal e objetiva, e ainda assim a advertência continuaria válida. Portanto, em termos de descrever a prática do usuário da linguagem, o uso da verdade como advertência pode ser o uso de quem está dizendo algo desse tipo: “verdade, mas não para os seres galácticos de Alfa Centauro”. Uma descrição assim manteria o uso, sua validade e, enfim, evitaria a noção de correspondência, problemática em nível 13 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
filosófico. Não vejo aí, por conta da argumentação de Rorty, qualquer afirmação no sentido de endossar o “mais vale o lado que se está”. Não vejo aí nada que abra espaço para que o kitsch possa imperar na cultura. Não consigo entender no que é que uma solução filosófica como esta estaria comprometendo Rorty com aqueles que promovem obras de arte que não podem mais causar “sentimentos profundos e reais”. Menos ainda vejo Rorty comprometido com os que pedem ousadia e tudo mais, mas como clichês. Explico novamente a questão do uso de advertência. Dizer coisas como “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para lá e depois” não é o mesmo que dizer “é verdadeiro aqui e agora, mas talvez não para qualquer lá e qualquer depois”. A advertência é a seguinte: “olha meu camarada, o que você diz é verdade mesmo, para o grupo que o escuta, sendo este o grupo em que você nasceu e o grupo que é da sua geração”. Isso não é o mesmo que dizer o seguinte: “olha meu camarada, o que você diz é verdade mesmo, mas única e exclusivamente para o grupo no qual você nasceu e para as pessoas deste grupo da sua geração”. A advertência não é uma que implique em tamanha particularização, em tão profunda restrição, algo que, no seu oposto, acolhesse “a verdade universal é X, de modo algum a sua verdade, que é necessariamente particular”. Posso ser surpreendido por um grupo cultural em que homens de 55 anos comem um animal que o meu grupo de homens de 55 anos considera sagrado. Então, eu e pessoas do meu grupo avisamos os membros do grupo que nos surpreendeu que eles estão fazendo algo que é um pecado. Dizemos para eles: “é verdade que comer esse animal é um pecado”. Nós os advertimos. Nossa frase pode ser substituída por uma outra forma de explícita advertência, sem perder qualquer função: “é verdade que comer esse animal é um pecado para nós e para mulheres de nossa cultura, também com 55 anos”. Eles não precisam entender o nosso aviso como sendo um que traduziriam assim: “é verdade que comer tal animal é pecado para esses dois grupos, mas nós podemos continuar comendo tais animais porque esses dois grupos não são significativos em todo o cosmos”. Não! Não precisamos ser interpretados assim. Podemos ser levados a sério. Nossa advertência os fará pensar. Mesmo que só nós tenhamos aquele animal como sagrado enquanto todo o resto do mundo come aquele animal sem qualquer culpa, nossa advertência ainda estará válida para ser considerada para quem ela foi dirigida. A advertência continua forte uma vez que a fizemos: “Olha, meu caro, você está em 14 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
pecado, eu não, e não adianta você me desconsiderar e considerar todos os outros grupos da Terra, porque ainda assim minha advertência está aqui, e você vai acabar pensando sobre ela”. Não necessariamente quem usa o termo “verdadeiro” em um contexto de advertência precisaria estar de posse de um sentido universal de verdade. Essa exposição Scruton, como Searle no passado, parece não entender. Não sei o quanto, no debate entre Habermas e Rorty, o primeiro cedeu ao segundo. O debate entre eles não chega a evoluir para essa argumentação que eu detalhei no último parágrafo, em que introduzo a minha explicação para alguém que viesse com a objeção de Habermas a Rorty. Tudo indica que, nesse ponto, eles mantiveram essa divergência e preferiram deslocar o debate para outros pontos. Talvez essa divergência de Habermas para com Rorty é a que poderia estar na cabeça de Scruton, para que ele tivesse alguma razão contra Rorty. Ele poderia simplesmente não estar interessado em raciocinar sobre o assunto e, dessa maneira, não chegaria ao argumento que utilizei no parágrafo anterior. Mas, pela minha argumentação aqui, penso que posições como as de Scruton e Habermas, na indisposição contra Rorty, não precisam se manter. Só os filósofos pensam em verdade objetiva e universal como a única verdade forte o suficiente para fazer alguém considerar frases contendo “é verdadeiro” como alguma coisa capaz de ser levada a sério. De modo algum as pessoas (tão inteligentes quanto os filósofos), em seu cotidiano, tomam as coisas assim. Qualquer frase contendo “é verdadeiro” é levada a sério, sim, se estiver sendo tomada em um dos três sentidos apontados por Rorty, no seu mapeamento do uso cotidiano – o único uso que nos interessa. E a frase de advertência também não precisa ter o “é verdade” ou o “é verdadeiro” aludindo ao objetivo e universal para ser levada a sério. Nós a levamos a sério porque se trata de uma advertência e que, então, forçará os mais curiosos, os mais afeitos a pedir justificativas, a dizer: “mas do que está falando, explique mais”. Ou assim: “vocês estão dizendo que o animal que comemos é sagrado e, portanto, que é verdade que pecamos quando o comemos, mas o que os faz afirmar que ele é sagrado, o que vocês sabem que nós não sabemos que os fazem falar isso desse animal?” Dizer que se fizermos tal pergunta já estamos abrindo um caminho para que venha tudo a ser “fake” e então ser desprestigiado, ou que com isso abrimos as porteiras para o kitsch e para uma cultura que leva as pessoas a não terem mais a cultura como autoconsciência é algo no mínimo exagerado. Scruton não é um exagerado no bom sentido, no sentido weberiano. Ele força a barra.
15 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
3. O segundo ponto é quanto à religião. Nesse caso, Rorty entende que a maneira técnica com a qual ele lida com o tema da verdade facilita sua exposição diante de incômodos sociais, especialmente os que o fundamentalismo religioso põe e repõe. A noção de verdade enquanto o que é sustentado pela Teoria da Correspondência é uma noção dita substantiva, que em geral é facilmente inflacionada metafisicamente. Ela corrobora certo isomorfismo. Uma situação em que linguagem e mundo podem ser tomados como isomorfos, onde o gancho entre o linguístico e o nãolinguístico pode se dar por meio da correspondência, é um prato cheio para a metafísica. O velho ideal grego de que o Logos do universo esteja também preso no peito do homem, uma vez que este está no universo e parece ser predestinado a compreendê-lo, nunca saiu da cabeça não só de filósofos antigos, mas também e talvez principalmente dos medievais. Muitos modernos repetiram isso, depois, quando vieram a desenvolver a ciência experimental e então viram na matemática aquilo que os medievais enxergaram na lógica. “A natureza fala por meio da matemática” ou “Deus é um grande matemático” foram frases que os modernos repetiram encantados, principalmente à medida que a matemática lhes parecia uma expressão própria da razão finita. O eco do Evangelho de João nunca foi desprezível: “no princípio era o Logos”. Deus criou o mundo à medida que falava da Criação. Exercia a linguagem de modo que o mundo nunca foi outra coisa senão a linguagem de Deus ou sua lógica ou, em termos mais populares, algo com a regularidade captável pela matemática do homem. Assim, para os intelectuais religiosos, nunca foi muito difícil imaginar que se chegamos a alguma verdade em matemática – campo no qual o contingente e mutável parece não ter lugar – poderíamos estar muito próximos do tipo de verdade que a religião espera ter em mãos: a verdade objetiva e universal, o que equivale ao ponto metafísico, a pedra absoluta. Esses passos deram a vários intelectuais o espaço para poder, somente com metafísica, falar em “Verdade” antes que em “verdadeiro”, e assim fazer o nome “Verdade”, ao indicar algo absoluto, se por como sinônimo de “Deus”. No campo metafísico poder-se-ia dizer como o Mundo Realmente É, e tendo permissão para assim se pronunciar tudo estaria aberto para o caminho de se ter aquilo que se não é Deus, é seu produto direto mais próximo. Poder deslocar a Teoria da Verdade como Correspondência e, ao mesmo tempo, 16 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
fornecer uma descrição filosófica de como a verdade atua em nossa linguagem, seguindo o rastro do uso, para Rorty, veio a se constituir em uma boa vitória. Deu-lhe força para preferir narrativas iluministas, deixando as narrativas metafísicas e religiosas para outros. Ora, será que foi essa a parte do discurso rortiano que, então, teria incomodado Scruton, diferentemente do que incomodou Searle ou Habermas? Eu até poderia dizer que sim, uma vez que Searle ou Habermas teriam ficado em divergência com Rorty quanto às questões técnicas já aludidas, não quanto à posição de Rorty diante da religião, enquanto que o conservadorismo de Scruton o deslocaria para um tipo de divergência diferente. Mas Scruton, neste artigo analisado, não vai adiante. Ele limita sua questão ao elo entre desprestígio da verdade objetiva e prestígio do “fake”, e deste prestígio último para o enaltecimento do kitsch como ponto de chegada da cultura “fake”. O artigo de Scruton discorre sobre efeitos de uma cultura “fake” e ele, realmente, anuncia algo interessante. Ele lembra que os modernistas fizeram o que fizeram – a arte de tipo Warhol – como alguma coisa consciente, e isso teve seu valor humano, mas que repetir isso, como se repete agora, integrado ao processo de venda, é o “fake”. Ora, posso concordar com isso. Mas as bases sobre as quais ele põe sua crítica, chamando Marx, Foucault e principalmente Rorty para que eles possam ser culpados pelo que eles não tiveram culpa, isso é obra exclusiva do conservadorismo de Scruton. Ele deveria deixar de lado essa necessidade de ser de direita em tudo, e pensar que gente da classe social dele talvez tenha, por meio de financiamentos muito mal direcionados e através do Estado privatizado em favor do lixo cultural, contribuído muito mais decisivamente para que a cultura atual tenha abocanhado mais coisa ruim do que o necessário em cada lugar. Caso ele fosse por essa via, ele se surpreenderia em encontrar mais culpa das coisas estarem como estão entre aqueles que ele imagina que, por estarem próximo a ele, estão em defesa da alta cultura. Às vezes, tenho a impressão que não estão. A democracia de massas e todo o processo de democratização e popularização que passamos entre os séculos XIX e XXI podem ter uma enorme responsabilidade pelo que Scruton detecta que ocorre no coração humano, na curtição do fake, digamos assim. Todavia, dizer que os teóricos não conservadores – Marx, Foucault e Rorty à frente – ao descreverem esses processos deram guarida ao que ocorreu de ruim nesses mesmos processos é, a meu ver, um escorregão. No caso de Marx e Foucault, um escorregão 17 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
com justificativas, talvez a “crítica da ideologia” e a “teoria do poder” de ambos, respectivamente, tenha feito ataques não alvissareiros às bases de legitimidade da cultura. Quanto a Rorty, não poderia dizer o mesmo. O pragmatismo, ao caminhar pela estrada da desinflação das teorias de verdade, nunca me pareceu ser um voluntarioso membro de um partido de uma “revolução cultural” contra a alta cultura. O pragmatismo me parece, ao fazer o que fez e faz, inclusive e principalmente com Rorty, um produto natural do período que Nietzsche qualificou como o pós-positivismo, a época em que não temos mais que ser crentes ou ateus, justamente porque “Deus está morto”. Quando James e Wittgenstein nos abriram caminho para lidarmos com a verdade a partir do uso, que foi o que Rorty seguiu (e o que eu mesmo sigo), a questão entre verdade e falsidade não poderia mais estar posta de modo dramático como foram postas coisas como Deus-Verdade versus Ateísmo-Falsidade. O pragmatismo me parece, principalmente com Rorty, uma filosofia dos tempos em que não só o Mundo Real foi destruído, mas também, com o Mundo Real, o Mundo Aparente nos deixou. O pragmatismo é uma filosofia que nos permite ler Platão novamente, sem ter de combatê-lo. Ler Platão se tornou agora, pela primeira vez, uma tarefa não partidária. Scruton está com um pé demais num mundo que parece já ter passado.
18 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Artigos
19 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
O CARÁTER NÃO DEWEYANO DO “DEWEY HIPOTÉTICO” DE RORTY Edna Maria Magalhães do Nascimento1
RESUMO O artigo é uma crítica a estratégia rortyana de cindir Dewey em dois: um Dewey “bom” e um Dewey “mau”. Nele, sustentaremos uma interpretação que articula as duas dimensões da filosofia deweyana: a historicista e a cientista. Nessa perspectiva, apresentaremos nossas objeções tanto à hipótese de um Dewey unicamente historicista e antifundacionista quanto à de um Dewey unicamente cientista, como a maioria dos críticos de Rorty termina concluindo, caindo na estratégia rortyana. Levaremos em conta também algumas propostas de comentadores favoráveis a Rorty, que procuram atenuar essa divisão, alegando a existência de um Dewey “concentrado” e outro “diluído”. De acordo com nossa interpretação, consideramos tais propostas como estratégias oriundas da mesma fonte, ou seja, da tentativa de “atualizar” Dewey para adaptá-lo ao quadro conceitual neopragmatista. Considerando as divisões desses autores que colocam, de um lado, um Dewey “bom”, ou “jamesiano”, ou “diluído” e, de outro, um Dewey “mau” ou peirciano ou concentrado, nos colocamos a favor de um único Dewey historicista e cientista ao mesmo tempo. Palavras chave: Dewey, Rorty, pragmatismo, neopragmatismo, ciência.
ABSTRACT The article is a critique of Rorty's strategy of split Dewey in two: a “nice” one and a “bad” one. In it, we will maintain an interpretation that links the two dimensions Dewey's philosophy: the historicist and scientist. In this perspective, we present our objections to both the hypothesis of a historicist and antifundacionist Dewey, such as to a scientist Dewey only, like most critics of Rorty concludes, falling in rortyan’s strategy. We will take into account also some comments in favor of Rorty, who tries to mitigate this division, alleging the existence of a Dewey "concentrated" and a "diluted" one. According to our interpretation, we consider such proposals as strategies derived from the same source, which means, the attempt to "update" Dewey to adapt it to the conceptual framework neopragmatist. Considering the division made by some authors between a“good”, “jamesian”, or “thin” Dewey, and in the other side a “bad”, “peircean”, or “thick” Dewey, we favor in our interpretation a unique historicist and scientist Dewey. Keywords: Dewey, Rorty, Pragmatism, neo-pragmatism, science
1
Doutorado em Filosofia(UFMG).Professora da Universidade federal do Piauí- UFPI, do Departamento de Fundamentos da Educação – DEFE/CCE. Email: magaledna@yahoo.com.br 20 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
1.
O “Dewey hipotético” de Rorty não é uma boa hipótese Ao construir sua hipótese interpretativa sobre Dewey, Rorty atribui a nosso
autor duas personalidades conflitantes: O Dewey “bom” e o Dewey “mau”. Rorty não considera adequado que Dewey reconstrua conceitos da filosofia tradicional como ciência, natureza, experiência e método. Ele pensa que se Dewey tivesse abandonado tais projetos estéreis poderia ter criado argumentos mais persuasivos e adequados contra a tradição filosófica. No entanto, conforme Rorty, Dewey não abandonou esses projetos. Esse é o “Dewey mau” que Rorty reprova. Mesmo assim, ele não se cansa de elogiar um suposto “Dewey bom”, que foi crítico da evidência, do fundacionismo e dos dualismos. Na sua tentativa de “linguisticizar” Dewey, Rorty quer demonstrar que o “jovem Dewey” foi o Dewey “mau” que tentou seguir Locke e Hegel e ainda permaneceu no kantismo. Assim, atribui ao “velho Dewey” uma mudança de atitude que seria mais coerente com a sua doutrina: a realização de estudos sócio culturais sobre os problemas filosóficos em seus contextos específicos. Mas não nos parece adequada a hipótese de que haja um “primeiro” e um “segundo” Dewey. Não nos parece que, ao final de sua carreira, Dewey tenha desejado mudar de assunto e abandonar a sua metafísica em sentido atenuado. Aquilo a que ele se dispôs foi discutir se as palavras não-técnicas poderiam ser utilizadas de modo frutífero no discurso filosófico. Ao contrário de Whitehead, que desenvolve um novo vocabulário para expressar suas idéias, ou, pelo menos, muda radicalmente o uso ordinário das palavras para adequá-las às suas necessidades, Dewey, pelo menos até seus últimos anos, tenta limitar-se ao uso da linguagem comum A estratégia interpretativa de Rorty não é aceita por nós porque desfigura a obra do pragmatista clássico, considerando que deve ser aceita apenas a dimensão historicista de seu pensamento. A sua dimensão cientificizante deve ser rejeitada, especialmente a principal categoria da filosofia de John Dewey, que é a experiência. Rorty escreve que a contribuição que Dewey ofereceu ao pensamento filosófico foi a de ser crítico da tradição. Desse modo, a pretensão deweyana de oferecer uma metafísica, caracterizada pela descrição da realidade e pela descoberta dos traços gerais da mesma, a fim de iluminar as pesquisas e investigações futuras, foi rejeitada por Rorty. Deixando de lado parte significativa da obra de nosso autor, Rorty acredita que o Dewey “bom” pode levar a filosofia à “idade de ouro”. Isso corresponderia a sair da
21 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
metafísica da experiência, segundo o modelo kantiano, e passar para uma fase de análise do desenvolvimento cultural, segundo o modelo hegeliano. Para atingir esse objetivo, Rorty faz uma desleitura da obra de Dewey que tenta mostrar a prevalência da dimensão historicista sobre a dimensão cientista do pragmatista clássico. Sem dúvida, Dewey se opõe à ideia de uma filosofia única, fundamentadora do conhecimento. Rorty acredita que, por causa disso, não há lugar para uma metafísica empírica na obra de Dewey, mas sim para um tratamento terapêutico da tradição. Pretendemos sugerir que, ao elogiar seu herói filosófico, Rorty fala de si mesmo. A criação do Dewey “bom” é um pretexto de Rorty para nele encontrar a inspiração fundamental para a construção do conceito de intelectual ironista. A influência historicista de Dewey aponta tanto na direção de uma interdisciplinaridade que falta à filosofia clássica como na direção de uma contextualidade fundamental ao pragmatismo. Pensamos que Rorty concorda com Dewey quando este último declara que a filosofia cumprirá sua função quando o significado das ciências sociais e das artes tiver tornado objeto de atenção crítica da mesma maneira que as ciências matemáticas e físicas e quando sua importância for compreendida. Certamente Rorty também concordaria com Dewey quanto a sua defesa do processo de humanização da ciência2. Rorty aceita a interdisciplinaridade e a contextualidade do pragmatismo deweyano. No entanto, parece cair em contradição ao não aceitar que a concepção de ciência em Dewey tenha essas características.
2. Avaliando a posição de Lavine e Rorty Começaremos a nossa discussão avaliando a posição de Lavine3, para quem, é a concepção do método científico que separa Dewey de Rorty. Diferentemente do que declara essa autora, pensamos que o que distingue Rorty de Dewey não é o método científico, mas a articulação dialética entre a dimensão científica e a dimensão histórica, que está presente em Dewey e não está em Rorty. Esse último fica apenas com a dimensão histórica e termina recusando a dimensão científica. A recusa dessa última por Rorty, que a reduz a um vocabulário contingente, o leva ao antifundacionismo. Em 2
DEWEY, John. Experience and Nature. New York: Dover Publications, Inc., 1958, p. 164. LAVINE, Thelma Z. America and The Contestations of Modernity: Bently, Dewey, Rorty. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. 22 3
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
contraposição, Dewey, em sua filosofia naturalista, recusa o fundacionismo porque as interações causais entre seres vivos e o ambiente não exigem um fundamento último. Mas Lavine tem razão quando diz que, para Dewey, a ciência e a democracia não se dissolvem no processo histórico. Elas mudam de acordo com as interações causais mencionadas4. Lavine afirma também que Dewey está influenciado pela modernidade ao associar o historicismo e o cientismo. Pensamos que ela tem razão no caso da modernidade, pois a dimensão histórica em Dewey está ligada ao Contra-iluminismo, do mesmo modo que a dimensão científica nesse mesmo autor está ligada ao Iluminismo. Lavine acerta também em sua descrição das diferenças entre o historicismo de Rorty e o de Dewey. A descrição que Lavine faz do historicismo de Dewey coincide com a que decorre de nossa interpretação e não precisa ser discutida aqui. A descrição que ela faz do historicismo de Rorty é adequada, porque o vocabulário em Rorty corresponde de maneira bastante aproximada à ideia de jogo de linguagem em Wittgenstein. Em ambos os casos, a contingência histórica do meio circundante é destacada, embora a expressão usada por Wittgenstein seja mais adequada que a de Rorty, uma vez que entendemos que vocabulário se refere a uma lista estática de palavras, enquanto jogo de linguagem se refere a uma atividade social. Na continuação de seu argumento, Lavine acerta também quando diz que Rorty não escapa ao dilema da modernidade, ao adotar a distinção entre público e privado, a qual reflete a oposição entre iluminismo e contra-iluminismo. Isso ilustra não só a inevitabilidade da oposição para os intelectuais contemporâneos, mas também uma inconsistência em Rorty, já que ele acaba por assumir a distinção entre público e privado, que está baseada na oposição entre iluminismo e contra-iluminismo, que ele rejeita. Com isso, Rorty acaba propondo a tarefa impossível de tentar atingir os objetivos do pai Dewey, mas sem utilizar as ferramentas propostas por esse último. Ao responder as críticas de Lavine, Rorty admite a possibilidade de um conhecimento objetivo, sem realismo, sem representação e sem correspondência 5. Ele identifica tal conhecimento com as práticas sociais e com o acordo intersubjetivo6. Portanto, Dewey está certo se método científico for considerado sinônimo de práticas sociais das comunidades democráticas. Para Rorty, Lavine diz que Dewey sacralizou o 4
Ibidem, pp. 47-48. RORTY, Richard, “Response to Lavine”. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995, p. 50 6 Ibidem, pp. 51-52. 5
23 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
método científico e o processo democrático, mas isso poderia reduzir-se a sacralizou o processo democrático, sem perda de conteúdo. Para Rorty, Dewey não é claro sobre o que significa método científico7. Como justificativa para isso, Rorty afirma que, para cada citação de Lavine ilustrando o realismo deweyano, ele pode oferecer outra passagem ilustrando o anti-representacionismo deweyano. Rorty reconhece não saber como resolver essa questão exegética, pois ele e Lavine estão construindo cada um o seu Dewey respectivo. Rorty admite a existência de uma relação edípica entre ele e Dewey, como acusa Lavine, mas acha que, se ele, Rorty, tivesse feito uma distinção mais cuidadosa entre o “bom” e o “mau” Dewey, Lavine não poderia levantar essa questão. Rorty reconhece que de fato está “desmetodologizando” e “linguistificando” Dewey. Conforme Rorty, isso não significa descaracterizá-lo, mas apenas promover uma atualização de Dewey, a qual foge da letra dos seus textos, mas não do seu espírito8. Em resposta à réplica de Rorty a Lavine, temos a dizer o que segue. Para admitir um conhecimento ao mesmo tempo objetivo, sem realismo, sem representação e sem correspondência, Rorty está deixando entrar pela porta dos fundos aquilo que expulsou pela porta da frente. Com efeito, a dimensão científica em Dewey, que garante a objetividade desse conhecimento, foi explicitamente expulsa por Rorty em nome do historicismo, que elimina o caráter realista, representacionista e correspondentista desse conhecimento. Mas, ao apelar para a objetividade das práticas sociais das comunidades democráticas, Rorty está admitindo implicitamente alguma coisa semelhante à experiência deweyana, com sua dialética das interações entre os seres vivos e o ambiente.
3.
Avaliando a posição de Rorty em sua resposta a Lavine Pensamos que Rorty está certo ao enfatizar a imprecisão do conceito de método
científico em Dewey. Mas nosso autor não foi claro em relação ao conceito de método científico pelas mesmas razões por que não foi claro em relação ao conceito de experiência: não há como ser preciso quando se busca caracterizar os traços gerais da existência humana. Em se tratando de realidades historicamente contingentes, o máximo 7 8
Ibidem, p. 51. Ibidem, p. 53. 24 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
que pode ser feito é fornecer uma ideia geral dos processos envolvidos, tanto no caso da experiência como no caso do método científico. Nessa perspectiva, o que Dewey escreveu em sua Lógica é suficiente para os seus objetivos: ele está dando os traços gerais dos diversos tipos de interação entre seres vivos e o ambiente, os quais são capazes de levar a algum conhecimento objetivo. Além disso, a exigência de precisão conceitual em Dewey não condiz com postura do próprio Rorty quando está argumentando, pois o neopragmatista, enquanto ironista, está muito mais próximo da imprecisão do que gostaria de reconhecer. Quando Rorty reconhece que não sabe como resolver a questão exegética entre ele e Lavine, está ignorando o fato de ser possível encontrar tanto passagens realistas quanto anti-representacionistas em Dewey aponta claramente na direção de uma interpretação que reúna esses dois aspectos de maneira consistente em Dewey, ao invés de forçar a uma escolha entre um ou outro. Nessa perspectiva, nem Rorty nem Lavine estão certos, mas sim uma combinação das interpretações de ambos. Na sua resposta a Lavine, Rorty reconhece ter uma relação edípica com Dewey, o que é bom. Mas sua resposta a Lavine não é satisfatória. Pensamos que, quanto mais ele trabalhasse a distinção entre o Dewey “bom” e o “mau”, mais ele estaria se distanciando do pensamento de Dewey, que envolve essas duas dimensões de maneira indissolúvel. Agindo desse modo, Rorty não conseguiria imunizar-se, mas estaria abrindo mais ainda o flanco para a objeção de Lavine. Finalmente, Rorty reconhece que, com a “desmetodologização” e a “linguistificação” de Dewey, ele está “atualizando” Dewey. Isso também é bom. Mas a questão é: com essa “atualização”, Rorty foge não só da letra, mas também do espírito da filosofia de Dewey. Com efeito, a divisão de Dewey em dois temperamentos opostos e a opção por um deles em detrimento do outro simplesmente deforma de maneira irrecuperável a filosofia de Dewey. Ela passa a ser um historicismo sem critérios de objetividade: isso poderia agradar a Rorty, mas certamente não agradaria a Dewey.
4.
Avaliando a posição de Gouinlock e Rorty
Passemos agora à discussão da posição de Gouinlock, para quem Rorty se inspira na tese da incomensurabilidade da tradução ao alegar que o conhecimento
25 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
objetivo é impossível9. Pensamos que Gouinlock está certo ao dizer isso. Com efeito, essa tese torna contingentes os enunciados das teorias científicas, permitindo que elas sejam colocadas em pé de igualdade com outros gêneros literários, o que faz parte do projeto de Rorty. Guinlock também está certo ao dizer que, com essa posição, Rorty acredita poder livrar-se das acusações de relativismo e de incomensurabilidade porque esses conceitos pressupõem que afirmações opostas são incomensuráveis ou relativas em relação a algum critério. Já que os critérios pertencem à epistemologia e ela deve ser abandonada, esses conceitos problemáticos também devem ser abandonados10. Com efeito, a estratégia de Rorty é a de simplesmente propor uma troca de vocabulário através da qual a epistemologia e seus problemas seriam deixados de lado em benefício de uma conversação mais voltada para a visão de mundo neopragmatista. Entretanto, Gouinlock peca ao aceitar a divisão de Dewey em dois temperamentos, um “bom” e outro “mau”. Isso não só deforma a filosofia de Dewey, mas também torna mais fácil a argumentação de Rorty no sentido de defender a opção por um Dewey “bom” em detrimento de um Dewey “mau”. Gouinlock distribui seus argumentos contra Rorty com base naquilo que ele considera os cinco mal entendidos do neopragmatista em relação a Dewey. O primeiro desses mal entendidos tem a ver com o método. Ao contrário de Rorty, Gouinlock afirma que Dewey não foi além do método, mas simplesmente o considera fundamental para a raça humana. Pensamos que Gouinlock está certo ao apontar esse mal entendido rortyano, pois o objetivo central da filosofia de Dewey é de fato a extensão do método a todas as áreas de conduta humana. E achamos conveniente lembrar aqui que essa extensão só pode ser feita em termos bastante gerais, e não específicos, como quer Rorty. O segundo dos mal entendidos está ligado à teoria correspondentista. Pensamos que Gouinlock está certo ao reconhecer uma dimensão correspondentista na filosofia de Dewey, mas achamos oportuno observar que o realismo e o correspondentismo de Dewey, pressupostos pela existência de uma situação problemática inicial e pelo fato de que nossas ideias são antecipações do futuro, nada têm a ver com o realismo e o correspondentismo tradicionais. Realismo aqui significa que, nas interações com o 99
RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton: Princeton University Press, 1979(cap. VI). 10 GOUINLOCK, James, “What The Legacy instrumentalism? Rorty’s Interpretation of Dewey”. In. Saatkamp Jr., H. J. (ed.). Rorty and pragmatism. The philosopher responds to his critics. Nashville and London: Vanderbilt Un Press, 1995, p. 74. 26 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
ambiente, os objetos surgem como alteridades que confirmam ou falsificam nossos testes. Correspondentismo significa aqui simplesmente que o modelo de conduta proposto hipoteticamente para um dado objeto funcionou. Esse modelo não constitui uma “cópia” do objeto em sentido tradicional. Portanto, o sentido de representação e de correspondência em Dewey não pode ser o mesmo das filosofias clássicas. Trata-se de uma leitura errada que Rorty faz da filosofia deweyana. De acordo com Gouinlock, com quem concordamos, o próprio processo de investigação é inseparável da manipulação e organização de eventos e seu propósito é produzir o objeto completo. Com essa caracterização, certamente, a investigação de Dewey não pode ser redutível à conversação11. Quanto ao mal entendido rortyano em relação à concepção de ciência, Gouinlock também está certo quando afirma que em Dewey a ciência nos fornece o conhecimento das potencialidades da natureza sob condições definidas. Mas convém reiterar que o conhecimento científico para Dewey é falível e autocorretivo. Isso significa que Dewey tenta retratar mais os traços gerais do método científico do que propriamente os traços gerais do conhecimento científico, já que o primeiro leva ao segundo. Passando ao mal entendido rortyano relativo à linguagem, podemos dizer que ela é de fato função das nossas interações com o ambiente. A linguagem faz parte da nossa experiência, mas não de toda a nossa experiência, e não pode, portanto, ser identificada com essa última. A linguagem é uma ferramenta para lidar com o ambiente. Ao tentar ver em Dewey a tese de que a linguagem é a própria realidade em que vivemos, Rorty está projetando equivocadamente sua perspectiva sobre a de Dewey. Se a linguagem é a realidade em que vivemos, então tudo é conversação e nada poderá ser estabelecido com um mínimo de objetividade. Rorty está revelando aqui o seu idealismo linguístico, que será discutido na seção sobre a sua queda inadvertida numa metafísica da cultura. Outro ponto importante a ser considerado aqui está no fato de que, ao ver a linguagem como jogo de linguagem, Rorty parece estar confirmando a tese de Wittgenstein sobre a forma de vida: isso é assim porque agimos assim. A única maneira de escapar ao relativismo implícito nessa afirmação é supor que a expressão “agimos assim” pressupõe exatamente aquilo que Rorty quer negar em Dewey, a saber, os procedimentos de formação de hipóteses e seus respectivos testes empíricos para a
11
Ibidem, pp. 74-78
27 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
resolução de situações problemáticas. Finalmente, no que diz respeito ao mal entendido rortyano sobre a metafísica naturalista de Dewey, acreditamos que Gouinlock está certo ao dizer que esse é o problema principal da discussão. Gouinlock caracteriza adequadamente a metafísica deweyana ao descrevê-la como uma tentativa de caracterizar o contexto inclusivo da existência humana para que possamos funcionar com eficiência no interior desse mesmo contexto. Ora, isso significa que Dewey não tem a intenção de estabelecer uma matriz neutra e permanente para toda investigação futura, pois isso iria contra o próprio espírito da sua concepção básica de experiência como interação dialética entre os seres vivos e o ambiente. A experiência possui caráter histórico e contingente, sendo portanto mutável. Desse modo, ela jamais poderia ser apresentada como uma “matriz neutra e permanente” para toda investigação futura. Com efeito, a tarefa de apresentar os traços gerais da existência humana envolve também a elaboração de uma hipótese sobre essa mesma existência, hipótese essa que deverá ser verificada através da interação com novas experiências, as quais gerarão uma nova hipótese e assim por diante. Temos aqui uma metafísica contingente e falibilista que poderá ser alterada de acordo com as necessidades das experiências futuras. A noção de uma “matriz neutra e permanente” não cabe aqui. Em sua resposta às críticas de Gouinlock, Rorty afirma que Dewey também quer se comprometer com a “esperança social sem fundamento”. O que conta aqui é a energia e a inteligência dos que lutam por ela12. Mas Gouinlock pode estar opondo essa “esperança social sem fundamento” a um “compromisso alcançado através do método científico”. Aqui, a divergência entre Rorty e Gouinlock pode ser apenas sobre a utilidade da noção de método. Rorty a considera sem utilidade. A expressão método da inteligência crítica poderia ser substituída apenas por inteligência crítica, expressão que significa ser experimental, não-dogmático, inventivo e imaginativo, deixando de buscar a certeza. Quando Dewey liga as expressões método da e inteligência crítica, ele está tentando fazer contraste com o método a priori, dedutivo. Dewey, conforme Rorty, insistiu em usar a noção vazia de método porque queria que a filosofia deixasse de oferecer um corpo de conhecimento, embora ainda oferecesse alguma coisa. E para ele isso é o método. Mas essa foi uma escolha infeliz, pois prometia mais do que podia
12
RORTY, Richard. “Response to Gouinlock”. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995, p. 91 28 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
oferecer: prometia algo positivo, ao invés de simplesmente advertir negativamente para não ficarmos presos na armadilha do passado. Seria possível isolar na obra de Dewey algo suficientemente amplo para ser “extensível a todos os problemas da conduta” e também suficientemente estrito para ter “propriedades formais”? Em outras palavras: seria possível isolar nessa obra algo suficientemente genérico para ser o método da democracia e da ciência e ao mesmo tempo específico o bastante para ser contrastados com outros métodos efetivamente utilizados pelas pessoas? Rorty pensa que não13. Rorty argumenta que método científico é um nome para um terreno intermediário não encontrável entre um conjunto de hábitos virtuosos e um conjunto de técnicas concretas, passíveis de serem ensinadas14. Embora Gouinlock diga que Dewey caracterizou o método científico com detalhe em The Quest for Certainty, Rorty afirma não ter encontrado essa caracterização detalhada naquele livro. Ele declara que tudo o que conseguimos ali é a polêmica padrão de Dewey, repetida sem cessar contra os dualismos epistemológicos e metafísicos. O único conselho positivo que obtemos é o de sermos reflexivos, mas determinados, abertos, mas disciplinados, tolerantes, mas discriminados, ousados, mas não tanto, imaginativos, mas não selvagens. Seria um desrespeito à memória de Dewey admitir que, quando ele começa a falar sobre método, ele soa como Polônio?15 Ao afirmar que Dewey foi “além do método”, Rorty quis dizer que Dewey desistiu da ideia de que é possível extrair algumas regras a partir daquilo que os cientistas naturais estão fazendo e aplicá-las a outras áreas da cultura, a fim de modificar essas mesmas áreas. Desse modo, aquilo que Gouinlock chama de “racionalidade como traço de caráter” nunca corresponderá a um conjunto de algoritmos, mas sim a algum análogo epistêmico da phronesis aristotélica. Embora nunca parasse de falar sobre o método científico, Dewey nunca teve qualquer coisa útil para oferecer a respeito dele. A não ser que seja possível mostrar algum trecho de Dewey indicando o que ele realmente pensava do “método”16. Rorty afirma quer Gouinlock o acusa de ser incapaz de distinguir os melhores dos piores métodos de investigação ou de ser incapaz de falar do progresso do conhecimento, mesmo na ciência. Se as duas acusações fossem corretas, então Rorty estaria muito longe de Dewey. Mas pelo menos a segunda acusação é falsa. Rorty segue 13
Ibidem, p. 92 Ibidem, p. 93 15 Personagem do Hamlet de Shakespeare, descrito como “um velho idiota e tedioso”. 16 Ibidem, p. 94 14
29 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Kunh no conceito de progresso do conhecimento na ciência, definindo-o como capacidade crescente de conseguir o que queremos a partir da ciência. Uma das coisas que queremos é a capacidade de explicar por que a ciência passada estava certa ou errada. Se isso não for progresso do conhecimento também para Gouinlock, então ele tem de mostrar que a expressão solução de problemas possui sentidos diferentes em Kuhn e em Dewey. Ora, ele não poderia fazer isso. Kuhn e Dewey estão juntos ao argumentar que a esperança dos positivistas de substituir a phronesis por regras é irrealizável17. Mas Rorty reconhece que há um sentido em que Gouinlock está certo ao dizer que o seu neopragmatismo não pode distinguir os melhores dos piores métodos de investigação. Isso é assim porque Rorty tem dificuldade em encontrar um princípio de individuação para “métodos”. Esse termo é ambíguo, referindo-se a algo tão geral como os quatro métodos de fixação da crença em Peirce e a algo tão específico como usar magnetômetros – instrumentos científicos usados para medir campos magnéticos no ambiente circundante – e não varinhas de rabdomancia – varinhas não muito científicas que são apontadas para o solo a fim de descobrir água. Rorty prefere abandonar o termo método e usar: a) prática social para descrever o que Peirce quer e b) técnica para descrever o uso adequado de magnetômetros. As práticas sociais que determinavam o que era “racional” ou “irracional” eram diferentes nas tribos primitivas, nas salas de aula medievais e nos laboratórios do século XIX. Mas nenhum desses três tipos de prática social é redutível a regras e nenhum deles parece adequadamente descrito pelo termo método18. Em síntese, Rorty acha que Feyerabend estava justificado em se colocar “contra o método” porque não há nada mais filosoficamente profundo ou interessante a ser dito contra o vudu, ou a astrologia, ou a autoridade papal, do que dizer que essas técnicas não parecem ter-nos levado para onde esperávamos. Depois de termos elaborado a analogia rala entre abandonar a astrologia pela astronomia e abandonar o feudalismo pela democracia, Rorty não pensa que seja útil a sugestão de que observemos mais de perto o que os cientistas fazem para conceber o que o resto da cultura deveria fazer19. Rorty ainda afirma que Gouinlock o acusa de ter perdido um ponto crucial da teoria do conhecimento de Dewey: para produzir objetos de percepção e de 17
Ibidem, p. 95. Ibidem, p. 95. 19 Ibidem, p. 96. 18
30 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
conhecimento adequados às peculiaridades de uma situação problemática, é preciso empreender alguma forma de reorientação intencional com relação às condições perturbadoras. Rorty pensa que Dewey tirou essa ideia da Fenomenologia do Espírito de Hegel e que ela foi reafirmada muito bem na polêmica de Sellars contra o “mito do dado”20. Rorty acrescenta que, em diversos artigos, ele tenta ampliar a crítica de Sellars, argumentando que, se compreendemos a relação causal entre a aquisição de crenças e o ambiente em torno daquele que tem a crença, não precisamos nos perguntar a respeito de
relações
representacionais.
Para
Rorty,
uma
explicação
causal
e
não-
representacionista dos estados intencionais nos dá todas as razões para afirmar que as propriedades reais dos objetos estão registradas na linguagem, mesmo depois de termos negado que essas propriedades estejam representadas na linguagem. Elas estão registradas no sentido de que se os objetos não tivessem essas propriedades, não estaríamos provavelmente dizendo o que dizemos ou acreditando no que acreditamos. Para Rorty, a maneira mais eficiente de dispensar as questões sobre a representação é interpretar a expressão registro das propriedades reais do objeto como significando causado pelas propriedades reais do objeto e capaz de causar mudanças nessas propriedades. Com isso, estaríamos trocando uma explicação representacionista da crença por uma explicação causal da crença. Graças à substituição da “experiência” pela conduta linguística, a teoria de Davidson parece a Rorty superior à de Dewey21. Para Rorty, a distinção de Dewey entre realismo e idealismo simplesmente não funcionou no sentido de que seus colegas filósofos acharam impossível conceber o que Dewey queria dizer ao afirmar que os objetos de conhecimento mudam no curso da investigação. Por causa disso, Rorty pensa que devemos abandonar a noção de “objeto de investigação”. Isso ficará mais fácil se assumirmos a virada linguística e substituirmos a metafísica pela semântica. Rorty pensa que Gouinlock condenaria esse procedimento em virtude de suas suspeitas para com a teoria dos jogos de linguagem. Todavia, a descrição que Gouinlock oferece para essa teoria faz Rorty parar para pensar. Gouinlock afirma que essa teoria nega que a linguagem seja uma função da atividade compartilhada com um ambiente. Rorty afirma não ser capaz de imaginar um filósofo da linguagem que algum dia tenha negado isso22. Ao final de sua resposta a Gouinlock, Rorty afirma que Dewey algumas vezes
20
Ibidem, p. 96. Ibidem, p. 97. 22 Ibidem, p. 98. 21
31 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
rejeitou questões e terminologias. Rorty gostaria que Dewey tivesse feito isso mais vezes. Infelizmente, Dewey empregou diversas vezes a técnica alternativa de conferir sentidos novos e enigmáticos a palavras como objeto, experiência, natureza e correspondência. Dewey infelizmente perdeu a oportunidade de dizer algo como esqueça a ‘correspondência’ para dizer eis algo que você poderia significar por ‘correspondência’, mesmo que esse significado não tenha nada a ver com o significado usado por aqueles que se preocupa em saber se a verdade consiste em correspondência ou não23.
Avaliando a posição de Rorty em sua resposta a Gouinlock
5.
Em nossa avaliação da resposta de Rorty, pensamos que o início da sua discussão com Gouinlock mostra a diferença crucial entre Dewey e Rorty: a questão do método científico. Mas essa questão tem duas faces. Em primeiro lugar, ela parece ser apenas uma questão de terminologia. Nessa perspectiva, Rorty reconhece que Dewey não está usando a expressão método científico em seu sentido tradicional. Em Dewey, essa expressão se refere ao processo de aprendizagem e conhecimento a partir da dialética das interações entre seres vivos e ambiente. Esse processo se baseia em interações causais que levam à construção de hipóteses a serem testadas e encontra sua melhor expressão nas atividades dos cientistas da natureza. Mas temos de reiterar que a descrição de tal processo só pode ser feita em termos genéricos, como acontece, p. ex., em The Quest for Certainty [A busca por certeza]. Em virtude disso, Rorty se equivoca ao exigir uma formulação específica para o processo em questão. Do ponto de vista terminológico, Rorty tem alguma razão ao afirmar que Dewey poderia ter apresentado sua filosofia sem utilizar expressões como método científico, experiência, objeto, etc. Mas isso não significa que essas expressões sejam meramente descartáveis, pois o que Dewey pretende significar com elas ainda constitui parte essencial de sua filosofia. A fim de evitar a prolixidade decorrente dos circunlóquios necessários para se referir aos significados pretendidos sem usar as expressões mencionadas, Dewey teria forçosamente de adotar uma nova terminologia, coisa que ele preferiu não fazer, para salvaguardar a possibilidade de diálogo com seus contemporâneos. Afinal de contas, apesar de adotar um novo sentido para o termo 23
Ibidem, p. 99. 32 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
experiência, p. ex., ele ainda estava se referindo a algo próximo da experiência em sentido tradicional. Coisa semelhante acontece com o próprio Rorty, que usa termos como filosofia, conversação, ironia, etnocentrismo, etc., em sentido diferente do tradicional. Isso significa que ele também poderia ter apresentado sua filosofia sem utilizar esses termos. Mas aqui também essas expressões não seriam meramente descartáveis, pois aquilo que Rorty pretende significar com elas ainda constitui parte essencial de sua filosofia. Para evitar a prolixidade dos circunlóquios, Rorty teria de adotar uma nova terminologia, coisa que ele não fez, para salvaguardar a possibilidade de diálogo com seus contemporâneos. Afinal de contas, apesar de adotar um novo sentido para conversação, p. ex., Rorty ainda está se referindo a algo próximo da conversação em sentido tradicional. Assim, a conclusão aqui seria que podemos aplicar ao próprio Rorty aquilo que ele aplicou a Dewey através da seguinte paráfrase: Rorty infelizmente perdeu a oportunidade de dizer esqueça a ‘conversação’ para dizer eis algo que você poderia significar por ‘conversação’, mesmo que esse significado não tenha nada a ver com o significado usado por aqueles que se preocupam em saber se a filosofia consiste em conversação ou não. Outro ponto importante na questão terminológica é saber se o termo método corresponde efetivamente a uma noção vazia. Rorty afirma que Dewey promete com ela mais do que podia oferecer. Isso não é verdade, pois Dewey não concebe método de maneira meramente negativa, como uma advertência para não cairmos nas armadilhas do passado. Para Dewey, o método tem claramente uma dimensão positiva que decorre das interações causais com o ambiente. Como já afirmamos antes, esse lado positivo só pode ser descrito em termos genéricos, de modo que não se coloca a exigência de Rorty no sentido de que essa descrição deve envolver tanto uma parte geral, extensível a todos os problemas da conduta, como uma parte específica, ligada às propriedades formais. Desse modo, na avaliação da filosofia de Dewey, parece inadequada a oposição estabelecida por Rorty entre a idéia de que seja possível algo suficientemente genérico para ser o método da democracia e da ciência e ao mesmo tempo específico o bastante para ser contrastado com outros métodos. Na verdade, a filosofia de Dewey defende a possibilidade de algo suficientemente genérico para ser o método da democracia e da ciência e ao mesmo tempo suficientemente específico para ser contrastado com outros métodos. A noção de solução de problemas com base em conjeturas e testes é geral o suficiente para ser aplicada a todos os setores da conduta humana e se torna específica o suficiente quando seus princípios gerais são adaptados a setores determinados da 33 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
cultura. Isso mostra que o dualismo proposto por Rorty não se coloca no caso de Dewey. Desse modo, ao dizer que Dewey vai “além do método”, significando com isso que ele desistiu da possibilidade de extrair regras a partir do trabalho dos cientistas naturais para aplicá-las a outras áreas da cultura, Rorty está oferecendo uma interpretação simplesmente falsa. Dewey e Kunh não estão juntos ao defender a tese de que a esperança dos positivistas de substituir a phronesis por regras é irrealizável. Diferentemente de Rorty, depois de elaborar a analogia – não rala – entre abandonar a astrologia pela astronomia e abandonar o feudalismo pela democracia, Dewey pensa que é útil a sugestão de observar mais de perto o que os cientistas fazem para conceber o que o resto da cultura deveria fazer. Ao falar do método, Dewey não soa como Polônio. Vimos também que Rorty afirma ter dificuldade em encontrar um princípio de individuação para “métodos”. Por causa disso, ele propõe prática social para se referir a instâncias do método filosófico e técnica para aplicações metodológicas específicas no caso das ciências naturais. Mas Rorty se refere apenas a Peirce, quando fala no método filosófico. O que fazer então com outras instâncias do método filosófico, como, p. ex., o método transcendental, o método fenomenológico, o método hermenêutico ou o próprio método analítico? Eles não se distinguem uns dos outros e devem ser misturados no terreno comum das práticas sociais? Tudo indica que não. No campo da filosofia, esses procedimentos podem referir-se, diferentemente do que pensa Rorty, simultaneamente a algo geral a algo específico, embora a parte específica não seja comparável ao uso de magnetômetros. É verdade que todos envolvem algo geral, mas podem ser aplicados a domínios específicos com técnicas específicas. Como sabemos, a aplicação do método fenomenológico pode ser feita a domínios específicos, pois ela envolve técnicas de análise que diferem bastante claramente daquelas decorrentes da aplicação do método analítico a um domínio específico. Subsumir tudo isso no conceito de prática social seria filosoficamente confuso e inadequado, porque na verdade estamos lidando com instâncias do método filosófico, as quais podem ser identificadas a partir de princípios de individuação cuja existência Rorty insiste em ignorar. Assim, embora as práticas sociais que determinavam o que era “racional” ou “irracional” fossem diferentes nas sociedades primitivas, nas salas de aula medievais e nos laboratórios do século XIX, não podemos esquecer que, do ponto de vista filosófico, tais práticas envolviam métodos diferentes que eram aplicados a situações diferentes. Deixando de lado as 34 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
comunidades primitivas e os laboratórios científicos para simplificar a discussão, podemos dizer que os métodos filosóficos usados nas salas de aula medievais não só eram diferentes daqueles usados pelos filósofos do século XIX, mas que também podiam ser identificados em cada uma dessas épocas como instâncias de práticas sociais mais abrangentes. A discussão sobre o método parece ser uma questão substantiva, no sentido de envolver concepções diferentes de objetividade em Dewey e Rorty. Aqui, Gouinlock tem razão ao dizer que Rorty é incapaz de distinguir os melhores dos piores métodos de investigação, em que pesem os argumentos de Rorty em contrário. A discussão anterior mostra que a posição de Rorty implica que ele não quer ter ou não tem condições de distinguir o método fenomenológico do analítico, que não passam de práticas sociais, e por esse motivo não sabe ou não quer dizer qual deles é o melhor. Até mesmo sua recusa das técnicas vudus e astrológicas não é convincente, pois o argumento de que elas não parecem ter-nos levado para onde esperávamos não encontrará repercussão naqueles que nelas acreditam. Na verdade, o apelo à conversação, ao etnocentrismo, ao ironismo e à contingência dificilmente fornecerá algum critério adequado para distinguirmos os melhores dos piores métodos. E dizer que a teoria dos jogos de linguagem envolve interações com o ambiente não resolve o problema, pois Rorty não oferece qualquer caracterização de como essas mesmas interações podem levar a algum critério de objetividade. Dizer que a busca de critérios é caudatária da epistemologia que Rorty quer descartar também não resolve o problema, pois Rorty certamente teve de usar algum argumento e, portanto, algum critério racional para defender a superioridade da conversação sobre a epistemologia e a superioridade da desmetodologização e da linguistificação de Dewey sobre a interpretação tradicional de Dewey. Rorty não oferece elemento algum em seus textos que possa garantir de maneira objetiva a sua afirmação de que a teoria davidsoniana, ao substituir “experiência” por “conduta linguística”, parece superior à de Dewey.
6.
John Hartmann e a defesa de Rorty Com o objetivo de tornar a discussão mais rica, selecionamos também dois
autores que se posicionam mais favoravelmente em relação à apropriação rortyana de
35 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Dewey, para também avaliar aqui suas ideias: John Hartmann e Alexander Kremer. Começaremos pela posição do primeiro, que será inicialmente apresentada para depois ser discutida. Para Hartmann, embora as diferenças entre Dewey e Rorty sobre o status da metafísica sejam provavelmente irreconciliáveis, a reivindicação rortyana de um Dewey “diluído” pode ser vista como consistente ao menos com o espírito da obra de Dewey24. Hartmann acredita que o ponto principal da diferença entre Dewey e Rorty está nas atitudes de cada um em relação à metafísica. Para entendermos melhor essa distinção, Hartmann argumenta que é preciso considerar o comentário de Lyotard sobre a morte da metanarrativa. Hartmann recorre a Larry Hickman, para quem, se entendemos Lyotard como anunciando a morte de toda metafísica sistemática que alega explicar toda a realidade, então tanto Dewey como Rorty são pensadores pós-modernos, uma vez que ambos negam a eficácia da metafísica ocidental tradicional. Entretanto, se entendermos Lyotard como afirmando que qualquer metanarrativa é ilegítima e mal orientada, o que torna qualquer metafísica ilegítima e mal orientada, então apenas Rorty é um pensador pós-moderno. Com efeito, essa segunda leitura de Lyotard é inteiramente consistente com a discussão de Rorty sobre a contingência da linguagem, com sua rejeição da viabilidade da metafísica e com sua valorização do ironismo liberal. Mas essa mesma leitura é decididamente inconsistente tanto com a reconstrução da metafísica proposta por Dewey em Experience and Nature quanto com o papel central desempenhado
pela
sua
metafísica
naturalista
em
seus
diversos
esforços
reconstrutivos25. Hartmann pensa que, nessa perspectiva, qualquer leitura simpática à apropriação rortyana do legado deweyano seria fadada ao fracasso. Mas a questão que se colocada nesse ponto para Hartmann é a seguinte: precisamos de fato de um Dewey “concentrado” para fazer justiça ao seu projeto educacional e social, ou essa tarefa poderia ser cumprida por um Dewey “diluído”? Hartmann pensa que, pelo menos do ponto de vista da posição rortyana, o projeto de Dewey não sofre praticamente nada quando é lido de maneira “diluída”. Hartmann tenta justificar isso comparando Dewey e
24
HARTMANN, John. Dewey and Rorty: Pragmatism and Postmodernism. Presented at: Collaborations Conference, SIUC, March 20-21, 2003, p.1. Disponível em <http://mypage.siu.edu/hartmajr/pdf/jh_collab03.pdf>. Acesso em 10 de maio de 2012. 25 Ibidem, p.2. 36 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Rorty em dois pontos interrelacionados: o método e a esperança social26. Quanto à discussão sobre o método, Hartmann se refere ao texto de Gouinlock What is the legacy of instrumentalism? Rorty’s interpretation of Dewey, por nós já discutido, e afirma que ali Gouinlock destaca as diferenças entre instrumentalismo de Dewey e o ironismo de Rorty, ou seja, entre o Dewey “concentrado” e o Dewey “diluído”27. Depois de discutir os argumentos de Gouinlock e a resposta de Rorty, Hartmann conclui que nada do que Rorty diz em relação ao seu retrato do ironista é inconsistente com o Dewey “diluído” que emerge da rejeição da sua metafísica da experiência. Uma vez que relativizemos o método deweyano, de tal modo que possamos reconhecer o papel fundamental desempenhado pelos paradigmas kuhnianos no interior do pensamento reflexivo, a importância crítica das tendências reformistas de Dewey, a sua reconstrução histórica e sociológica da tradição podem ser claramente vistas. Longe de rejeitar a conexão estabelecida por Dewey entre o método científico e o método de investigação, como acusa Gouinlock, o neopragmatismo pós-moderno de Rorty pode abraçar a tendência de Dewey em direção ao cientismo como fundamentalmente viável em relação ao contexto específico em que Dewey escreve e em que vivemos. Entretanto, nada justifica a valorização da ciência para além da ideia de que a consideramos útil. Embora o método científico, tomado como modelo de investigação bem sucedida, forneça os fins que consideramos úteis e os objetos que realmente funcionam, não se segue daí que os usuários de outros vocabulários sejam menos racionais na busca de fins diferentes28. É nesse sentido que Dewey é visto por Rorty como estando “além do método”. Embora o Dewey que está além do método seja um Dewey “diluído”, não é evidente que Dewey sofra alguma perda aqui, ainda que minimamente, em termos da tarefa realizada pelo seu pensamento29. No que concerne ao debate sobre a esperança social, Hartmann coloca a seguinte questão: pode o ironismo fornecer os meios para uma reconstrução positiva da democracia oferecida pelo pensamento de Dewey?30 Será que Rorty pode oferecer isso a partir de uma posição que seja coerente com a de Dewey? Esse não é um assunto pouco importante e muitos comentadores se colocaram contra Rorty neste ponto. Certamente podemos garantir que Rorty não satisfaz à conexão íntima que Dewey faz entre sua 26
Ibidem, p.3. Ibidem, p.3. 28 Ibidem, p. 8. 29 Ibidem, p. 9. 30 Ibidem, p. 9. 27
37 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
metafísica e as possibilidades de progresso democrático. Mas isso não significa que a esperança social sem fundamento de Rorty não possa ser conciliada com a posição de Dewey. Hartmann pensa que a relativização do programa de Dewey para o progresso democrático não exige que abandonemos os seus ideais nem seu potencial para o progresso efetivo e a transformação social. Com efeito, Rorty acredita que uma crença ainda pode regular a nossa ação e ser considerada valiosa a ponto de morrermos por ela, embora seja causada por nada mais profundo do que circunstâncias históricas contingentes31. Mesmo nesse caso, não ficamos despojados dos imperativos morais que Dewey extrai de sua fundamentação metafísica da democracia e do progresso democrático. A historicização dos ideais democráticos de Dewey não diminui o seu poder nem sua capacidade de persuadir32.
7.
Avaliando a posição de Hartmann Em resposta a Hartmann, temos a dizer o que se segue. É verdade que a
filosofia de Dewey pode levar o leitor menos atento à impressão de que há uma tensão irreconciliável entre o cientismo e o historicismo. Rorty parece encontrar-se nessa situação em sua leitura de Dewey e por causa disso se aproveita para dividir Dewey em duas pessoas ou dois temperamentos opostos, fazendo a seguir uma opção por aquele Dewey que mais se ajusta aos seus próprios interesses. No debate que se seguiu, diversos autores acompanharam Rorty nessa estratégia um tanto discutível. Em virtude disso, as divisões desses autores colocam, de um lado, um Dewey “bom”, ou “jamesiano”, ou “diluído” e, de outro, um Dewey “mau”, ou “peirciano”, ou “concentrado”. Mas achamos conveniente lembrar que uma leitura mais atenta dos textos de Dewey revela que a tensão apontada no seu pensamento na realidade faz parte de uma visão unificada, em que os elementos opostos se complementam dialeticamente. Nessa perspectiva, qualquer tentativa de dividir Dewey em duas pessoas ou dois temperamentos é, de início, equivocada e só serve para dar força sub-repticiamente aos argumentos de Rorty. Se nossa interpretação da filosofia deweyana estiver correta, então um Dewey diluído não é Dewey, mas sim outro pensador. Pensamos que o Dewey hipotético de Rorty nada mais é do que uma invenção 31 32
Ibidem, p.10. Ibidem, p. 11. 38 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
retórica com o objetivo de estabelecer raízes autenticamente norte-americanas para as extravagâncias relativistas do neopragmatismo. Com esse procedimento, Rorty está tentando tornar suas ideias controversas mais palatáveis à comunidade filosófica norteamericana em particular e à comunidade filosófica mundial em geral. Mas Rorty está fazendo com seu conceito de Dewey hipotético o mesmo que acusa Dewey de estar fazendo com o conceito de experiência e poderia ser assim parafraseado: Rorty infelizmente perdeu a oportunidade de dizer esqueça Dewey para dizer eis algo que você poderia significar por ‘Dewey’, mesmo que esse significado não tenha nada a ver com o significado usado por aqueles que se preocupam em saber em que consiste a filosofia de Dewey. Em outras palavras, Rorty poderia ter dito tudo o que quis dizer sem ter de usar a expressão Dewey hipotético. Ao invés de inventar essa personagem imaginária, Rorty poderia ter dito simplesmente que se inspira em alguns dos ideais de Dewey, mas não todos. Não é preciso recorrer a um “Dewey bom”, como faz Rorty, ou a um “Dewey diluído”, como faz Hartmann, ou dizer que são “fusões de horizontes” como faz Kremer para dizer essas coisas de maneira mais simples e menos confusa. Isso inclusive deixaria mais claras as reais intenções de Rorty, sem ter de recorrer ao apadrinhamento de Dewey. Acreditamos também que Hartmann não está certo nem ao dizer que o ponto crucial da diferença entre Dewey e Rorty está na atitude em relação à metafísica nem ao distinguir as posições desses dois autores através do comentário de Lyotard a respeito da morte da metanarrativa. É verdade que, se entendermos o pós-modernismo de Lyotard como anunciando a morte de toda metafísica sistemática, então certamente Dewey e Rorty são filósofos pós-modernos. Se, porém, entendermos o pós-modernismo de Lyotard como anunciando a morte de toda e qualquer metafísica, então Dewey e Rorty – e não somente Dewey – deixam de ser filósofos pós-modernos. Com efeito, a consistência que Hartmann vê entre essa segunda leitura do comentário de Lyotard e a posição rortyana é apenas aparente. Pretendemos mostrar na próxima seção desse capítulo que Rorty também adota uma postura metafísica, ainda que atenuada, de maneira análoga a Dewey. Desse modo, ao contrário do que pensa Hartmann, a segunda leitura do comentário de Lyotard é decididamente inconsistente com o papel desempenhado por uma metafísica da cultura implícita que perpassa os escritos de Rorty. Isso significa que o pensamento de Rorty se aproxima mais do Dewey “concentrado” do que do “diluído” e que Hartmann está certo ao ver uma ligação entre Dewey e Rorty, mas por motivos 39 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
errados. O que está presente em Rorty não é o projeto educacional e social de um Dewey “diluído”, mas sim o do Dewey “concentrado”, cuja tendência metafísica é partilhada por Rorty. É como se o próprio Rorty tentasse apresentar um retrato “diluído” de si mesmo, sem perceber que por trás dessa imagem se esconde o verdadeiro Rorty, um Rorty tão “concentrado” quanto o Dewey “concentrado”. Assim, ao contrário do que diz Hartmann, nada do que Rorty diz em relação ao ironista é inconsistente com o Dewey “concentrado”, em virtude da sua inadvertida adoção de uma metafísica implícita. Essas afirmações serão justificadas no momento oportuno. Se nossa interpretação está correta, então a diferença entre Dewey e Rorty se encontra muito mais na concepção do cientificismo do que na concepção de metafísica. Na verdade, é a metafísica subjacente a cada um deles que conduz a concepções diferentes da atividade científica. Assim, embora ambos os autores possam abraçar, como diz Hartmann, a tendência cientificista como fundamentalmente viável em relação ao contexto contemporâneo, somente Rorty valoriza a ciência com base apenas na ideia de que a consideramos útil. Dewey vê muito mais do que isso na ciência: para ele, ela surge como o padrão mais sofisticado das relações de aprendizado e conhecimento que decorrem das interações dos seres vivos com o ambiente. Rorty não faz isso, perdendo assim uma fonte confiável para a elaboração de instrumentos capazes de garantir a objetividade. Nessa perspectiva, Rorty está certamente além do método, mas não Dewey. Estamos nos referindo, é claro, ao Dewey “concentrado”, já que o “diluído” não passa de uma invenção de Rorty e seus seguidores. Isso se reflete na discussão da esperança social. Com efeito, sem instrumentos capazes de garantir minimamente algum tipo de objetividade, o ironismo, ao contrário do que pensa Hartmann, não pode fornecer os meios para a reconstrução positiva da democracia de acordo com a proposta de Dewey. O máximo que o ironismo pode oferecer é uma conversação sem fim, sem conclusão, que pode, a qualquer momento, trocar aleatoriamente os ideais de Dewey por outros. Aquilo que Hartmann chama de “relativização” e de “historicização” do programa de Dewey nada mais é do que um primeiro passo nessa direção. Mas isso não quer dizer que Dewey não reconheça que seu programa seja determinado por contingências históricas. A diferença entre Rorty e Dewey está em que o primeiro, sem caracterizar adequadamente as condições para a objetividade, fica na conversação pela conversação, sem um guia efetivo para ação, enquanto o segundo, ao caracterizar as condições para a objetividade, vai além da 40 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
conversação, fornecendo um guia mais efetivo para a ação. Dominado pelo paradigma da conversação, o ironismo não tem como oferecer instrumentos eficazes para a ação efetiva. A historicização dos ideais democráticos de Dewey, da maneira pela qual é realizada por Rorty, certamente diminui o seu poder e a sua capacidade de persuadir.
8.
Alexander Kremer e a defesa de Rorty Passemos agora à posição de Kremer, que será também, como no caso de
Hartmann, inicialmente apresentada e depois discutida. Este autor pensa que Rorty se apropria de um modo especial da filosofia de Dewey, através de uma fusão de horizontes. Conforme Kremer, Rorty sabe, a partir das hermenêuticas de Heidegger e Gadamer, que é impossível dar uma interpretação fiel da filosofia de Dewey, no sentido de uma interpretação objetiva. Todas as pessoas compreendem e interpretam não somente a filosofia de Dewey, mas tudo o mais exclusivamente a partir de seus respectivos horizontes de significado. Nesse sentido, a compreensão e a interpretação sempre envolvem uma fusão de horizontes33. Nesse caso, como resultado da fusão de horizontes, um novo horizonte nasceu sob a forma do pragmatismo de Rorty. Temos de observar que ocorreu aqui uma fusão de horizontes em um sentido muito mais amplo, porque Rorty fundiu não apenas o horizonte de Dewey com o seu, mas também aqueles de Peirce, James, Whitman, Goodman, Putnam, Davidson, Wittgenstein, Heidegger, Gadamer, Foucault, Habermas, Derrida, etc34. Kremer prossegue seu argumento afirmando que Rorty reconhece haver muitos traços úteis na filosofia de Dewey, mesmo depois dos desenvolvimentos proporcionados pelos autores mencionados. Essa é a razão pela qual ele distingue o que está vivo e o que está morto em Dewey35. Kremer considera que a situação apresentada por Rorty é semelhante à do período pós-hegeliano, em que o sistema filosófico de Hegel já não poderia sobreviver, com exceção do seu historicismo36. Kremer pensa que Dewey é importante para Rorty à luz dos recentes resultados da filosofia analítica, ou antes, da
33
KREMER, Alexander. Dewey and Rorty, in Americana E-Journal of American Studies in Hungary, vol III, n.2, fall 2007. Disponível em <http://americanaejournal.hu/vol3no2/kremer>. Acesso em 01/05/2012, p. 6. 34 Ibidem, pp. 6-7. 35 Ibidem, p. 7. 36 Ibidem, p. 8. 41 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
filosofia continental. Isso significa que Rorty enfatiza as diferenças e os aspectos positivos da filosofia de Dewey com base nos últimos resultados do desenvolvimento filosófico do século XX. Desse modo, se alguém pretende criticar a interpretação rortyana de Dewey e seu contexto, esse alguém tem de levar em conta o contexto filosófico do século XX37.
9.
Avaliando a posição de Kremer Em nossa avaliação da posição de Kremer, consideramos que o seu apelo a
Heidegger e Gadamer para justificar a interpretação rortyana de Dewey, nos termos em que está colocado, apresentam-se excessivamente relativista. Com efeito, parece que “vale tudo” no processo de interpretação. Isso até certo ponto explicaria por que Rorty optou pela interpretação dual de Dewey: ao assumir a perspectiva de que não há uma interpretação definitiva da filosofia de um autor, ele pode ter-se aproveitado disso para implementar sua estratégia retórica de ligar o neopragmatismo à tradição do pragmatismo norte-americano pela via do Dewey “bom”. Mas convém lembrar que os horizontes de significado envolvidos na presente discussão sempre têm alguma coisa em comum e que isso constitui uma base para separarmos as “boas” das “más” interpretações. E uma interpretação que divide Dewey em “dois” filósofos, dos quais apenas um é “bom”, certamente será reconhecida pela maioria da comunidade filosófica como inferior a uma interpretação que procure articular os “dois” filósofos num só, obtendo uma perspectiva de conjunto mais coerente. A superioridade da segunda interpretação fica reforçada quando nos lembramos de que o Dewey dual poderia corresponder a um artifício retórico e que a discussão, nos termos em que foi colocada por Rorty, parece ser ociosa. Em que pesem as observações acima, Kremer tem razão ao dizer que a crítica da interpretação rortyana de Dewey exige que levemos em conta o contexto filosófico do século XX. Com efeito, se esse contexto não for levado em conta, estaríamos isolando o pensamento de Rorty e o de Dewey de seus respectivos ambientes históricos, o que não seria recomendável, já que correríamos o risco de perder elementos importantes para a discussão nesse processo. Mas Kremer exagera ao dizer que há uma semelhança entre a situação 37
Ibidem, p. 8. 42 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
apresentada pela interpretação de Rorty e aquela apresentada pelo período póshegeliano. No caso de Hegel, uma parte mais fantasiosa de seu sistema já se encontrava superada, embora a sua abordagem historicista ainda se revelasse promissora. No caso de Dewey, o cerne de seu sistema, representado pela sua metafísica empírica, ainda nos parece bastante atual, principalmente no que diz respeito à concepção de experiência como resultado das interações entre os seres vivos e seus respectivos ambientes. Assim, a “desatualização” de Dewey não nos parece depender do cerne de seu sistema, mas sim do fato de que, depois de sua morte, outros problemas e temas foram acrescentados à discussão por seus sucessores. A consideração do contexto, tal como sugerida por Kremer, poderia mostrar-nos os acréscimos feitos pela filosofia analítica e continental no período pós-deweyano. É verdade que isso poderia sugerir que alguma parte da filosofia de Dewey está morta e que alguma parte dela ainda está viva. Mas a adesão a essa hipótese seria equivocada e somente poderia decorrer de uma leitura menos atenta de Dewey. Essa leitura nos levaria à estratégia de Rorty, que consiste na construção artificial de um Dewey hipotético “desatualizado” que estaria necessitando de uma “atualização”. Dado o caráter ainda atual da proposta deweyana, não consideramos que isso seja recomendável. Além de levar a uma discussão ociosa, essa postura tende a criar confusão desnecessária e a reforçar o perigo de um relativismo sem limites.
10.
Considerações Finais A partir da discussão acima, vemos que o equívoco da interpretação de Rorty
está em sua recusa a reconhecer o fato de que só há um único Dewey, que é historicista e cientista simultaneamente. Em virtude disso, procuramos deixar claro que Rorty, ao defender a noção de um Dewey dividido em dois temperamentos, está adotando uma estratégia retórica que deforma o pensamento do Dewey original e cria outro, favorável ao neopragmatismo por ligá-lo à tradição pragmatista norte-americana clássica. A tentativa de separar um Dewey “bom” ou “jamesiano” de um Dewey “mau” ou “peirciano” perde de vista o caráter complementar dessas duas dimensões da filosofia deweyana. O apelo a um Dewey “diluído”, em oposição a um Dewey “concentrado”, como faz Hartmann ou um Dewey que representa uma fusão de horizontes como escreve Kremer, também não resolve o problema. Assim, colocamo-nos contra a apropriação rortyana do pensamento de Dewey
43 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
e, para finalizar, apresentamos a seguinte questão: Rorty estaria ele mesmo imune às críticas que faz a Dewey? Pretendemos mostrar em trabalhos futuros que a resposta a essa pergunta é não. Isso nos permitirá sustentar que Rorty é deweyano não porque evitou a “metafísica empírica”, mas porque elaborou inadvertidamente, de acordo com o espírito de seu herói pragmatista clássico, uma "metafísica da cultura" escamoteada através da filosofia da conversação, cujo modelo e realidade última a ser considera é a cultura38.
REFERÊNCIAS DEWEY, John. Reconstruction in Philosophy. Enlarged edition. With a new introduction by the Author. Boston: The Beacon Press, 1957. ______. Experience and Nature. New York: Dover Publications, Inc., 1958. ______. The quest for Certainty: a study of the relation of knowledge and action. Minton, Balch, 1929.. ______. The Influence of Darwin on philosophy. New York, Henry Holt and Company. 1910. RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature, Princeton: Princeton University Press, 1979. ______. Dewey’s Metaphysics. In: Consequences of Pragmatism. Minneapolis: University of Minnesota. Press, 1982, pp. 72-89. ______. Philosophy as a Kind of Writing: An essay on Derrida. In: Consequences of Pragmatism. Minneapolis: University of Minnesota. Press, 1982, ______. Philosophy and Social Hope. London: Peguin Books, 1999. _____. The Linguistic Turn: Essays in Philosophical method. Chicago:University of Chicago Press, 1997. ______. Philosophy as Cultural Politics: Philosophy Papers. Cambridge University, 2007, v. 04. _______ Dewey Between Hegel and Darwin. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics. Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. _______ Response to Gouinlock. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. ________ Response to Lavine. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995, p. 53. GOUINLOCK, James. What Is Legacy of Instrumentalism? Rorty Interpretation of Dewey. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. HARTMANN, John. Dewey and Rorty: Pragmatism and Postmodernism. Presented at: Collaborations Conference, SIUC, March 20-21, 2003.
38
Nascimento, Edna M. M. do. Dewey e Rorty: da metafísica empírica à metafísica da cultura. UFMG, novembro, 2012(Tese de Doutorado). Orientador: Paulo Roberto Margutti Pinto. 44 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
IBRI, Ivo Assad. Kósmos e Noétos – A arquitetura metafísica de Charles S. Peirce. São Paulo, Perspectiva/Hólon, 1992. ______. Neoprgmatism Viewed by Pragmaticism - A Redescription. 2011, p. 10. (PRE-PRINT VERSION) LAVINE, Thelma Z. America and Contestations of Modernity: Bentley, Dewey, Rorty. In: Rorty & Pragmatism – the Philosopher Responds to His Critics, Nashville & London, Vanderbilt University Press, 1995. NASCIMENTO, Edna M. M. do. Dewey e Rorty: da metafísica empírica à metafísica da cultura. UFMG, novembro, 2012 (Tese de Doutorado). Orientador: Paulo Roberto Margutti Pinto. KREMER, Alexander. Dewey and Rorty, in Americana E-Journal of American Studies in Hungary, vol III, n.2, fall 2007. Disponível em <http://americanaejournal.hu/vol3no2/kremer>. Acesso em 01/05/2012. PINTO, Paulo Roberto Margutti e MAGRO, Cristina (orgs.). Filosofia Analítica, Pragmatismo e Ciência. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.
45 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A INDUSTRIALIZAÇÃO DA VERDADE Ronie Alexsandro Teles da Silveira
RESUMO Os cientistas possuem uma autoimagem heróica sobre si mesmos e seu trabalho de investigação. Entretanto, pode-se observar que a produção do conhecimento tem adquirido gradativamente feições cada vez mais industriais. Uma autoimagem mais adequada seria, portanto, a de um operário. A industrialização não é um acidente no processo de desenvolvimento do conhecimento científico, mas sua expressão natural mais acabada. Embora várias modalidades de humanismo critiquem essa crescente industrialização, não parece que ela atinja o que é fundamental ou possa ter qualquer efeito prático. Tudo indica que apenas a contradição entre a industrialização crescente e o estilo de vida democrático poderá gerar um desenlace promissor no futuro. Palavras-chave: Democracia
Conhecimento;
Verdade;
Industrialização;
Pós-modernidade;
ABSTRACT Scientists have a heroic self-image about themselves and their research. However, it can be seen that the production of knowledge has gradually gained increasing industrial features. A most suitable self-image would be, therefore, that of a worker. Industrialization is not an accident in the process of development of scientific knowledge, but his natural and more finished expression. Although various forms of humanism criticize this growing industrialization, it doesn’t seem that it reach what is essential or would have any practical effect. Everything suggests the contradiction between the growing industrialization and democratic way of life may generate a promising outcome in the future. Key words: Knowledge; Truth; Industrialization; Post modernity; Democracy
1. O Herói Os cientistas têm o hábito de compreender o processo de investigação como sendo dotado de uma característica especial, quando comparado a outras formas de trabalho. A partir de uma disposição benévola podemos considerar que isso é apenas a manifestação da autoestima de qualquer profissão. Certamente ninguém gosta de reconhecer que a atividade a que se dedica é menor ou secundária. Assim, não encontraremos um único pedreiro saudável que afirme que o trabalho de levantar casas é destituído de mérito. Pelo contrário, ele tem orgulho de construir acomodações nas quais as pessoas podem viver com segurança e conforto. Mas precisamos de cautela 46 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
com essa sensação natural de autoestima, pois nem sempre sabemos onde ela termina e onde começa o autoengano. O trabalho de investigação científica parece ser especialmente propício ao autoengano. A definição da pesquisa como uma atividade de desvelamento gradativo de uma realidade oculta é muito convidativa e apreciada no meio acadêmico e nos ambientes em que se realizam investigações. Sagan (1996) usou a metáfora de uma vela acessa na escuridão para caracterizar a atividade de investigação e, com isso, sintetizou o heroísmo que supomos estar presente nela. Afinal, trata-se de lutar contra as trevas. Todos os vilões do mundo possuem ligação com algum princípio obscuro – desde Satanás até Darth Vader. Por outro lado, a atividade intelectual foi reiteradamente aproximada da metáfora da luz, mesmo antes do Iluminismo, no século XVIII. De fato, essa aproximação existe pelo menos desde a civilização grega, personificada por Apolo: o deus que conduzia diariamente o carro do sol pelos céus e, dessa forma, afastava a noite. O ato de iluminar a escuridão e afastar a noite da ignorância é uma espécie de sacerdócio: uma atividade que se faz pelo bem da humanidade, um esforço cujo resultado será desfrutado pelas gerações posteriores. É quase inevitável que essa metáfora da iluminação implique na valorização do seu protagonista – o investigador – e na noção de um consequente desapego pessoal, já que a luta contra o lado negro possui uma característica universal: ela é levada adiante em função do interesse geral ou do bem da humanidade. É comum que, lidando com um trabalho que pareça tão revestido de heroísmo, sejamos tentados a pensar em nós mesmos como pessoas que podem vir a acender uma nova luz e, com isso, iluminar dimensões recônditas e ainda ocultas da realidade. Mas isso não é necessário. Versões instrumentalistas do conhecimento (POPPER, 1972; RORTY, 1991) também podem se fazer acompanhar da crença no heroísmo dos cientistas. Basta que a investigação instrumental se apresente como a superação de condições conceituais já estabelecidas por meio do esforço pessoal. A diferença é que, na versão instrumental, o heroísmo se circunscreve ao aprimoramento do conhecimento, sem que isso implique em alguma melhor compreensão da própria realidade. O essencial aqui é a presença, seja na versão realista ou na instrumental, desse papel especial reservado ao herói. Os cientistas julgam, muitas vezes, que esse heroísmo advém da própria natureza do trabalho intelectual. Com efeito, se acredita que esse último é diferente do 47 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
trabalho manual, na medida em que, por meio dele, grandes transformações podem ser levadas a cabo por uma única pessoa. Assim, ele ocorreria em um ambiente propício ao protagonismo, enquanto que o trabalho manual estaria ligado à rotina de operações repetitivas e à divisão social do trabalho – uma atividade nada interessante representada pela esteira industrial taylorista. Na juventude, o autor desse texto adorava usar uma camiseta com a seguinte inscrição: “Science, where imagination comes to reality”. Ele acreditava que existia uma conexão entre a dedicação ao conhecimento e uma atividade criativa, que a tornava diferente do trabalho repetitivo. De fato, não está fora de nossas pretensões de investigadores tornar clara toda uma região inexplorada da realidade ou levar o conhecimento a um patamar inigualável por meio de nossa criatividade individual. Uma região que, ao se revelar para nós, poderia lançar nova luz sobre outras já conhecidas, mas ainda não devidamente iluminadas. Faz parte da crença do investigador herói pensar que mesmo o trabalho que os outros já realizaram ainda não está acabado ou que pode ser compreendido de uma maneira ainda superior ou melhor. O que alimenta o herói, durante longas batalhas sem nenhuma garantia de sucesso, é pensar na possibilidade de que seu trabalho emita uma luz tão brilhante que elimine as trevas que ocultam a realidade, tão luminoso que ofusque as pequenas estrelas que já brilham no céu da ciência. Todo investigador possui a pretensão íntima de ser um Apolo e levar luz à noite sombria, mesmo quando esta já se encontra salpicada de pequenas estrelas da ciência – como é evidentemente o caso no início do século XXI. Entretanto, o autor desse artigo acredita que todo esse aparato de noções heróicas em torno da investigação e do investigador é um autoengano. O heroísmo pessoal foi eliminado de maneira consciente da atividade científica desde a formulação de seu projeto inicial no século XVII. Como se isso não fosse suficiente, a observação da atividade de pesquisa nos nossos dias mostra que ela é desenvolvida em termos crescentemente industriais – aproximando-a do trabalho taylorista rotineiro e segmentado. Entendo, portanto, que a industrialização é um destino inevitável do processo de produção do conhecimento, em função de seus próprios fundamentos. Além dessa força latente, agindo no interior da própria atividade científica desde o seu nascimento, existe a colaboração dos fatores culturais externos. Seria realmente uma exceção admirável que uma área da cultura, como é a ciência, se mostrasse independente do 48 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
processo de racionalização e de otimização de meios que caracteriza as democracias liberais contemporâneas - isto é, todo o mundo desenvolvido. Mais espantoso ainda seria constatar que justamente o processo de produção do conhecimento fosse capaz de se mostrar independente da tendência presente nos processos dominantes de produção industriais. O restante desse artigo está destinado a tornar explícito como o heroísmo no conhecimento é um autoengano que contraria a lógica da produção do conhecimento científico desde a sua origem. A questão principal não é discutir se houve uma época de heróis na indústria do conhecimento: grandes pioneiros e descobridores. Trata-se, antes, de evidenciar que essa atividade heróica não corresponde nem ao projeto moderno da ciência nem à sua configuração atual. Se eles existiram foi apenas como uma etapa transitória do processo de industrialização da verdade cujo sentido já se perdeu pela lógica interna de expansão do sistema. Se, hoje, ainda existem heróis, trata-se apenas de uma má representação que os cientistas fazem de si mesmos.
2. O Método Moderno A Filosofia de Descartes (1641/1973) estabeleceu as bases da modernidade cultural, incluindo-se aí o segmento da modernidade científica. A ciência é uma atividade que se constituiu no panorama da cultura moderna e retirou dele seus parâmetros principais de funcionamento. Assim, é importante verificarmos, em primeiro lugar, o panorama geral da cultura moderna de onde surgiu a ciência. O projeto cartesiano de obtenção de uma ciência segura consistiu inicialmente em submeter o conhecimento humano já existente a uma dúvida implacável. Tornar a dúvida um procedimento que se estende sobre todo o conhecimento de maneira sistemática e implacável é uma decorrência da profunda desconfiança com relação a tudo o que se considerava certo até então. Mais do que isso, se trata de uma suspeita acerca de qualquer resultado obtido pelo exercício da razão humana. A modernidade implica na crença de que não é suficiente que se comece a fazer ciência para atingir o conhecimento verdadeiro. Seu ponto de partida é o reconhecimento de que a razão é falível, de que não fomos dotados pela natureza ou pelos deuses de um poder de conhecimento isento de erros. O fundamento da modernidade é o reconhecimento dos defeitos intrínsecos da razão humana. Portanto, a
49 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
atitude moderna típica é a de desconfiança e prudência desde seu ponto de partida: pode ocorrer que Deus não esteja do nosso lado, pode ser que exista um demônio que tente nos enganar todo o tempo (o lado negro pode ser sutil), pode ser que sejamos fracos e limitados quando percebemos e pensamos. Por isso, o ambiente inicial da modernidade é de uma profunda suspeita com relação aos instrumentos humanos utilizados para se gerar conhecimento. São os erros que constituem o ambiente requerido pelo herói. São eles que criam as dificuldades a serem superadas ao longo do caminho pela modernidade. Descartes (1637/1979) afirma que a tradição filosófica de seu tempo havia progredido por acumulação de conhecimentos sem, no entanto, submetê-los a uma análise cuidadosa. O fato de a tradição anterior a ele não se haver preocupado em verificar a confiabilidade dos procedimentos utilizados até então, evidencia uma fé plena no uso da razão. Essa autoconfiança é justamente o que foi perdido na modernidade. A imagem usada por Descartes para caracterizar essa tradição de confiança na perfeição natural da razão é a cidade medieval. A
cidade
medieval
representa
uma
entidade
que
cresceu
espontaneamente ao longo do tempo, sem um plano geral, sem que se fosse previsto seu desenvolvimento ou analisadas as suas bases fundamentais. Assim, foram se agregando lentamente um edifício ao outro sem que houvesse um traçado geral para a sua expansão. Havia uma crença implícita de que essa expansão levaria naturalmente a um mundo de bem-estar e justiça. Mas, ao contrário do que essa crença previa, o resultado se mostrou um produto desordenado e fruto do acaso, seguindo necessidades particulares e imediatas sem que a totalidade tivesse sido considerada, sem direção e intencionalidade. A confiança ingênua conduziu à desordem e à falta de adequação entre meios e fins, à falta de razão. Descartes acreditava que, mesmo que eventuais verdades tivessem sido obtidas por meio da expansão natural e sem planejamento, não havia nenhuma segurança com relação a elas - pois não se sabia a partir de que princípio elas haviam sido erigidas. Não se sabia também se elas podiam ser estendidas a outras áreas do conhecimento, visando a obtenção de novas verdades. Portanto, a fé ingênua na razão produziu uma expansão espontânea, sem crítica e que não gerou conhecimentos generalizáveis. Enfim, a fé pré-moderna na razão levou a um ambiente epistemológico desorganizado, assistemático e de baixa eficiência. 50 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Entretanto, isso não significa que um acúmulo de conhecimentos produzidos sem método não tenha levado a algum aprimoramento tecnológico e melhorado processos importantes para a sobrevivência e para o bem-estar diário do homem. A cidade medieval certamente era habitável nos seus próprios termos. O que Descartes pretendeu foi justamente identificar o processo que levou ao sucesso eventual para que ele pudesse ser utilizado de maneira segura e sistemática. Nesse sentido, a adoção do método da dúvida tornaria possível reavaliar todo o conhecimento disponível, separando aquilo que é verdade do que não é. Ele permitiria que se encontrassem certezas autênticas: verdades que funcionariam como sustentáculos de outras verdades – já que obtidas de maneira segura. A procura pelo método é, portanto, a busca por procedimentos de reconhecido valor epistemológico que podem ser utilizados como mecanismos arquitetônicos para a obtenção de novas verdades (SILVEIRA, 1998). Ele produziria certezas confiáveis a partir de uma moldura inicial de desconfiança na razão. Se há algum tipo de confiança expressa na necessidade moderna de um método, se trata certamente da confiança na capacidade da razão em corrigir seus erros e de superar suas deficiências naturais. O mesmo tipo de necessidade de correção, causada pela desconfiança no uso natural da razão, move o projeto de Francis Bacon (1620/1999) – o principal formulador das bases do conhecimento científico moderno. O “Novum Organon” de Bacon sistematiza os princípios da atividade que veio a se tornar culturalmente dominante nos nossos dias: a ciência. Bacon (1620/1999), assim como Descartes, defendeu que a atividade científica deveria ser dirigida por um método. Segundo ele, “o intelecto não regulado e sem apoio é irregular e de todo inábil para superar a obscuridade das coisas.” (Aforismo XXI). Ele entende o método como um processo de supervisão racional da razão, um mecanismo de monitoramento que visa corrigir os erros naturais do sistema de descoberta da verdade. Para ele, é uma arrogância temerária acreditar que a razão pode chegar à verdade por meio de suas disposições naturais. Observa-se que o método moderno é uma tecnologia racional, um aparato de apoio para fragilidades cognitivas. Ele consiste em um sistema de escoras para uma racionalidade que não produz conhecimento seguro de maneira natural. O método é uma expressão daquela desconfiança da razão com relação a si mesma, típica da modernidade. Para facilitar, podemos comparar essa noção moderna à noção antiga de método. 51 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Aristóteles (2001) defendia que o método devia ser derivado da natureza do objeto. Para ele, um homem versado nas ciências exige de seu objeto de estudo apenas o grau de precisão relativo à natureza de seu objeto. Ou seja, o conhecimento deveria se ajustar às características do ser de que trata. Assim, o método antigo é de matriz ontológica, porque se espera que ele deve refletir o ser específico de cada objeto de estudo. Ele deveria ser flexível com relação ao modo de existência de cada ser particular que compõe o cosmos. O método moderno é diferente, pois consiste em um artifício corretivo em função da evidência de que a racionalidade, quando deixada à rédea solta, se equivoca seguidamente. O método moderno é uma espécie de contenção dos cavalos afoitos do carro de Apolo. Ele é uma decorrência da desconfiança na razão humana. Dessa maneira, ele é o resultado de uma avaliação das próprias condições humanas do conhecimento. Ao contrário da origem ontológica do método antigo, o método moderno é eminentemente epistemológico.
3. A Indústria A instauração do método moderno levaria ao que Bacon (1620/1999) denominou de reino dos homens: o conhecimento completo da natureza. Conhecimento cuja principal característica consiste em dominar a natureza. Bacon é um crítico do conhecimento que não gera operações de controle sobre o mundo exterior. Para ele, não há conhecimento autêntico sem poder. A verdade se manifesta justamente no fato de haver controle sobre o mundo natural. Portanto, o reino dos homens significa total controle do mundo natural. O primeiro desafio do método baconiano é preparar o investigador para produzir conhecimento verdadeiro. Isso decorre daquele reconhecimento moderno de que sua constituição natural não o habilita para isso. Dessa forma, o futuro investigador deveria ser curado de hábitos que se encontravam arraigados na sua forma natural de ser. Liberado de tais vícios, ele tornaria sua mente pura e bem disposta ao conhecimento. Assim como a entrada no reino dos céus requer a purificação do coração, o reino dos homens requer purificação dos hábitos mentais prejudiciais ao conhecimento autêntico. Dessa forma, a etapa inicial do processo de investigação é a purificação do 52 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
investigador ou, se quisermos, a geração de um ser inocente e puro no sentido epistemológico: alguém que seja capaz de interpretar o mundo sem se deixar levar por seus preconceitos e hábitos mentais. A purificação consiste, seguindo a metáfora religiosa de Bacon, na destruição dos falsos deuses, na eliminação dos ídolos. Esses ídolos são os falsos princípios que estão instalados na razão e que precisam ser abandonados. A ciência, assim como a verdadeira religião, também deve expulsar do seu templo os bezerros de ouro, os falsos deuses que levam ao erro. Assim como Descartes, Bacon acredita que existam verdades autênticas já descobertas pelo homem. Mas tais descobertas ocorreram por acaso, de maneira assistemática e artesanal. O propósito de instituir um método e corrigir a razão equivale à industrialização do processo de produção do conhecimento. Isso significa que a descoberta de verdades passa a ser regulamentado por procedimentos padronizados e não mais por gambiarras epistemológicas que oscilam ao sabor das circunstâncias. Para se obter conhecimento verdadeiro, se requer um conjunto de ações específicas, reconhecidamente eficientes, que podem ser usadas de maneira recorrente. O método é, como os cientistas o entendem e usam hoje, uma receita para se obter verdades. Sem o seu uso, o conhecimento, mesmo se verdadeiro, não obteria legitimidade, porque não seria possível saber como ele foi produzido. O conhecimento legítimo possui uma espécie de certificado de origem: ele deve ser produzido no ambiente de pureza e assepsia estabelecido pelo método. Para que os resultados de uma investigação possam ser comparados com outros resultados, eles devem ser gerados a partir dos mesmos procedimentos. É o método que permite a criação de uma instância comparativa de resultados, por mais diversos que eles sejam. O método é a linguagem universal do conhecimento científico. Portanto, a utilização do método moderno implica na passagem do artesanato para a indústria do conhecimento. Com o método se definem os procedimentos necessários para se chegar ao conhecimento verdadeiro de maneira sistemática, sem improviso, sem variações, sem falar dialetos particulares e tomar desvios de rota. O método moderno é a estrada para o conhecimento verdadeiro, a única estrada. Os erros, se houverem, deverão ser atribuídos a algum fator ligado ao investigador e não ao método. Esse se constitui como uma fórmula geral, um conjunto de operações padronizadas que levam ao conhecimento verdadeiro. Observe, então, que o propósito de se instalar uma fábrica de conhecimento não é estranho ao espírito da modernidade. Pelo contrário, esse mecanismo de produção 53 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
em série é plenamente derivado dos princípios fundamentais da modernidade cultural e científica. Portanto, a industrialização da verdade é um propósito explícito da ciência desde a sua origem. Eventuais problemas decorrentes da industrialização da verdade não podem ser considerados acidentais ou interferências externas inesperadas. As dificuldades próprias da industrialização são derivadas dos princípios fundamentais da atividade científica e fazem parte da realização plena do projeto científico-industrial moderno. Observe, entretanto, que não há nesses princípios nenhum papel especial destinado a heróis. Eles podem ter existido historicamente, mas não são uma decorrência das bases modernas da ciência. Os heróis ou são más representações (autoenganos) ou desempenham funções marginais com relação ao núcleo do sistema científico-industrial. Mesmo nesse último caso, como se verá adiante, sua importância relativa decai gradativamente à medida que o sistema obtém maior eficiência.
4. A Purificação Para tornar mais claro o impacto da instauração do sistema científico-industrial na formação dos cientistas, vamos nos concentrar aqui na primeira parte do método de Bacon (1620/1999): a eliminação dos ídolos. Eles são de quatro tipos: ídolos da tribo; ídolos da caverna; ídolos do foro e ídolos do teatro. Os ídolos da tribo são os preconceitos que existem em nós em função de sermos seres humanos: as emoções e a vontade. Eles podem interferir no desempenho da razão, desviando-a de seu exercício puro. Contra isso, são requeridas frieza e prudência. Além dessa interferência congênita, a própria sensibilidade humana (o conjunto dos nossos cinco sentidos) possui limitações que não podem ser superadas. Nossa visão possui um alcance definido, nosso tato só vai até o limite do nosso corpo etc. Não há como superar essas limitações senão precariamente através do uso de instrumentos. Os ídolos da tribo não podem ser extirpados do homem, mas sua influência pode ser controlada por meio de dispositivos compensatórios. Tratam-se de limitações às quais a razão deve se conformar em função de serem condições naturais do homem. Por outro lado, os ídolos da caverna foram adquiridos pela educação e pelo hábito. Eles são tendências que desenvolvemos em função de nosso caráter particular ou 54 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
porque adquirimos tais disposições ao longo do tempo. Assim, alguns investigadores possuem uma tendência para se concentrar em análises minuciosas, outros têm facilidade para produzir sínteses genéricas. Devemos evitar que essas tendências ou preferências pessoais afetem o uso equilibrado da razão. Nem sempre análises ínfimas ou macrossínteses são recomendáveis em uma investigação. Os ídolos do foro são considerados por Bacon como os que mais perturbam a razão humana. Esses ídolos consistem na crença de que governamos as palavras, sendo que, na verdade, são as palavras que nos governam. Ou seja, se tratam das armadilhas a que somos conduzidos em função de utilizarmos uma linguagem que não foi desenvolvida para a produção do conhecimento. Com efeito, a linguagem se desenvolveu no contexto da cultura e é basicamente um instrumento prático de comunicação. Sua utilidade principal não é a de gerar novos conhecimentos em um ambiente asséptico como o que é requerido pela modernidade. Portanto, seria um erro utilizar esse instrumento de maneira descuidada. A linguagem natural pode sugerir para a mente significados falsos que levarão ao erro. Os ídolos do teatro são aqueles que a razão adquiriu em função do suposto conhecimento obtido da tradição, através de falsas explicações da natureza. Bacon se refere principalmente à má influência das ideias filosóficas antigas de origem grega e romana. Além disso, esses ídolos se apresentam através das leis da lógica. Mesmo essas não podem ser objeto de confiança, porque não levam necessariamente ao controle da natureza. O conhecimento verdadeiro não pode ser obtido tendo como guia somente a correção do raciocínio. Como vimos, é necessário que o conhecimento gere controle do mundo natural. A verdade sempre envolve poder sobre a natureza. O resultado geral da purificação dos ídolos é a obtenção de um investigador sem preconceitos, uma espécie de criança inocente e preparada para a atividade científica. Esse investigador não se deixa enganar pela sua própria constituição como ser humano. Isto é, não é vítima de sua vontade ou de seus sentimentos. Ele também é levado a considerar a perspectiva limitada dos seus sentidos e do seu próprio corpo. Assim como não se deixa enganar por suas preferências e inclinações de estudo ou pela educação que recebeu. Além disso, ele é cuidadoso no uso das palavras que utiliza no conhecimento evitando o significado prático e cultural que elas já possuem no ambiente social da comunicação. O investigador baconiano vê o mundo além da linguagem, sem se deixar conduzir pelo véu de suas sugestões enganadoras. Os conhecimentos disponíveis também não são confiáveis em função de terem sido acumulados sem 55 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
método. Por sua vez, a lógica não pode ser um parâmetro exclusivo de correção do conhecimento, pois um raciocínio perfeito pode se mostrar impotente diante da natureza. Embora seja evidente que um investigador com todas as características listadas acima jamais existiu, o modelo a ser atingido gerou certamente padrões de comportamento ao longo do tempo. A purificação dos ídolos consiste em um valor desejado, um objetivo a ser perseguido, e não exatamente em características que possam ser identificados em um pesquisador em particular. No conjunto, ela pressupõe uma determinada disposição epistemológica por parte do pesquisador. Além disso, observe que a preparação para o conhecimento de Bacon possui requerimentos éticos explícitos, na medida em que estabelece padrões de conduta desejados para qualquer investigador. Essa ética, ao contrário do entendimento atual, não depende nem de códigos profissionais nem passa por comitês (SILVEIRA, HUNNING, 2010), mas compõe um núcleo básico do comportamento requerido para a prática da ciência que é muito elementar. O poder desses valores epistemológicos e éticos propostos é enorme se avaliarmos o seu impacto na formação de uma cultura científica. Por exemplo, o princípio de se manter sempre uma atitude crítica com relação à tradição tornou-se uma marca distintiva da própria modernidade. Popper (1975) chegou a caracterizar a atividade científica como a criação de uma espécie de tradição de crítica em que qualquer resultado sempre deve ser submetido ao escrutínio dos membros de uma comunidade de cientistas. Isso impediria que qualquer verdade se tornasse tradicional ou adquirisse um valor superior ao próprio escrutínio. A tentativa de se obter uma linguagem depurada de significados práticos e culturais tem conduzido, ainda hoje, a esforços no sentido de se obter um discurso objetivo, que evite as ambiguidades e as segundas interpretações. As definições operacionais são uma tentativa de tornar claro sobre o que é o conhecimento que se produz, de maneira independente das variações semânticas da linguagem. A matematização do conhecimento, através da adoção de técnicas estatísticas de análise de dados ou de modelização, é a expressão atual da necessidade de se chegar a essa linguagem depurada de qualquer carga cultural. Além dessas tendências que se tornaram distintivas da atividade científica, há os impactos que nos interessam diretamente: aqueles que forjaram o caráter 56 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
epistemológico e ético do investigador. A abstração total de características pessoais é um componente do caráter da criança epistemológica de Bacon. A objetividade do conhecimento é garantida justamente pela possibilidade de que investigadores diferentes cheguem aos mesmos resultados. Isto é, a pessoa concreta do cientista que realiza a investigação não deve interferir no resultado final. Também não importa o contexto cultural em que se desenvolve uma investigação, porque o conhecimento requer a possibilidade de sua reprodutibilidade de maneira independente. Enfim, qualquer investigador que tenha passado pelo processo de purificação dos ídolos, diante dos mesmos fatos, deve chegar necessariamente às mesmas verdades. Essa pessoa que se tornou pura é o operário ideal da indústria da verdade.
5. O Operário Nos nossos dias o processo de produção do conhecimento se intensificou e se tornou imensamente complexo. Entretanto, não parece ter ocorrido nenhum desvio substancial na história de seu desenvolvimento que nos trouxe de Descartes e Bacon até hoje. Pelo contrário, aparentemente estamos muito mais próximos do ideal baconiano de conhecimento científico do que há 100 anos. A complexidade atual da ciência pode ser percebida no fato de falarmos menos de investigadores individuais e mais de linhas e grupos de pesquisa. O sujeito da investigação científica contemporânea é coletivo, pois o trabalho de pesquisa é feito por vários pesquisadores, de tal forma que nenhum deles visualiza a totalidade do problema que está sendo investigado. A divisão social do trabalho de investigação é uma condição da produção do conhecimento científico atual. Com efeito, “está-se mergulhado no positivismo de tal ou qual conhecimento particular, os sábios tornaram-se cientistas, as reduzidas tarefas de pesquisa tornaram-se tarefas fragmentárias que ninguém domina" (LYOTARD, 1979, p. 74). Sem a divisão em tarefas específicas, grande parte das investigações não poderia ser desenvolvida, porque se requer uma quantidade enorme de talentos e um gasto de energia humana extraordinário para realizá-las. Assim, o que um investigador faz, de fato, é realizar uma atividade ínfima em uma rede de trabalho coletivo que termina em um produto extremamente sofisticado e complexo: o conhecimento científico. E isso não depende de sua vontade. Investigações consideradas pertinentes
57 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
devem obedecer ao preceito da viabilidade, isto é, se avalia antes de tudo se o conjunto de pesquisadores é realmente capaz de realizá-las em um tempo determinado. Dessa forma, investigações sofisticadas não podem ser desenvolvidas por um único pesquisador. Na prática, o que um cientista faz é acrescentar um tijolo a uma parede em construção. Mas o que está em construção não é somente uma parede e sim um grande edifício, um bairro inteiro e talvez até uma nova cidade. Não parece haver um controle central para essa expansão, nem há como dimensionar o sentido de cada atividade particular dentro de um panorama geral. Nesse sentido, a participação de um investigador tem se tornado proporcionalmente menor se considerarmos que o sistema industrial da verdade cresce e se torna mais e mais complexo a cada dia. Uma contribuição individual essencial feita no passado passa a ser uma contribuição importante hoje e terá um significado corriqueiro amanhã – já que a a expansão e a complexidade são crescentes. O destino do trabalho do cientista é perder gradativamente seu sentido especial, é ter sua importância particular lentamente diluída no contexto da produção industrial e no aparato enorme de resultados que são gerados. Mesmo os nossos heróis de ontem se tornarão operários humildes a partir da perspectiva de um futuro próximo. O sentido de uma investigação não é definido pela sua importância passada de uma vez por todas. Ele oscila em função da complexidade e da sofisticação crescente dos produtos gerados pelo sistema científico-industrial. Essa diluição do sentido específico e do valor intrínseco da atividade de pesquisa faz parte da lógica da produção industrial em larga escala. O fato de que cada produto em particular não ser mais significativo por si mesmo é uma consequência direta da proliferação de outros produtos semelhantes e dos índices crescentes de eficiência do sistema. Esse efeito de diluição do sentido parece ter se tornado uma característica dqa cultura atual. Ele já foi detectado com relação à produção artística (BENJAMIM, 1987), à sociedade de consumo (BAUDRILLARD, 1970) e ao fluxo de informações proporcionada pelos meios digitais (LÉVY, 1999). Em todas essas situações se observa que, em um oceano de produtos, cada um deles em particular perde seu significado específico. A proliferação excessiva de mercadorias epistemológicas conduz a dificuldades na gestão da qualidade do sistema na sua totalidade. Nesse caso, é a eficiência crescente, a produção de mais conhecimento com menos recursos através da otimização 58 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
dos processos de descoberta e divulgação, que passa a requerer a criação de um patamar de qualidade geral (TRZESNIAK, PLATA-CAVIEDES E CÓRDOBA-SALGADO, 2012). Entretanto, justamente em função da fragmentação e da especialização esse denominador comum de todo o conhecimento parece um ideal abstrato e sem qualquer possibilidade de se concretizar. É a própria eficiência do sistema industrial da verdade que impede uma avaliação independente de seus produtos. Com isso, parece inevitável que ocorra a banalização da verdade e a circulação livre de mercadorias epistemológicas sem que existam condições práticas de uma avaliação objetiva. Nesse caso, o valor de cada produto é corroído pela eficiência do sistema e a verdade torna-se moeda sem valor. Ao mesmo tempo, a atividade de investigação se torna mais e mais delimitada e pertencente a um ambiente restrito. Cada objeto de estudo requer um foco particular. Na pesquisa se utiliza uma linguagem técnica que permite a comunicação apenas com os cientistas mais próximos, aqueles que estão habilitados a travar um diálogo pertinente sobre determinado assunto, a partir de alguns pressupostos. Pesquisadores de uma linha ou de um grupo de investigação não entendem o que se diz em outra linha ou outro grupo – dentro da mesma ciência, da mesma área de conhecimento e do mesmo corredor de universidade/indústria. A linguagem da ciência vem se tornando um complexo crescente de dialetos cada vez mais específicos. Nesse sentido, não é um contrassenso afirmar que o sentido da atividade particular de cada cientista vem encolhendo a cada dia, na exata proporção em que a ciência se expande. Vimos acima que, como qualquer sistema de produção, a ciência tende a se submeter à lógica de aperfeiçoamento dos meios. Produzir conhecimento, como qualquer outra coisa, implica em custos e o sistema é mais eficiente à medida que produz mais com menos. Portanto, se requer que um investigador esteja pronto para a prática da investigação tão logo seja possível. Se ele começar jovem será melhor, porque ele poderá se dedicar à sua atividade por mais tempo, ampliando sua vida útil e sendo mais produtivo. Para estar preparado para a investigação mais cedo, ele deve ser recrutado e treinado rapidamente. Para que o treinamento seja aperfeiçoado ele deve se concentrar somente naquelas habilidades que são indispensáveis para a prática efetiva da pesquisa a ser desenvolvida posteriormente. Por isso, cada ciência ou área de investigação tem de se tornar cada vez mais independente de outras formas de conhecimento, de modo a poder realizar sem perda de tempo o treinamento requerido para sua sobrevivência e 59 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
ampliação. A fragmentação do conhecimento certamente torna o treinamento de recursos humanos mais rápido e economiza em termos da quantidade de informações prévias que são necessárias para as atividades de investigação. A diminuição da amplitude e aumento da fragmentação do conhecimento são fatores de aumento da eficiência do sistema científico-industrial. Cada linha ou cada grupo de pesquisa deve ser capaz de preparar seus recrutas o mais rapidamente possível, sem se importar com o que os investigadores de outras linhas estão fazendo. Requer-se que uma capacidade de foco seja rapidamente incorporada a um cientista jovem, sem que haja perda de tempo na obtenção de conhecimento e no desenvolvimento das habilidades necessárias. A rapidez no treinamento significa maior índice de produtividade par o sistema. Da precocidade advém a ampliação da possibilidade de sucesso, do número de interlocutores em potencial e de captação de recursos financeiros. Dessa forma, o processo de formação de recursos humanos para a investigação também se torna um fator a ser aperfeiçoado pelo sistema industrial. No sistema de produção do conhecimento científico um cientista generalista é uma exuberância sem sentido. Ele não possui as habilidades para ser integrado em uma pesquisa concreta e tem dificuldades em manter o foco específico que é requerido em investigações específicas. Assim, pode-se constar que um cientista especializado na história de sua área de conhecimento é um ser em crescente processo de extinção. O conhecimento histórico de uma disciplina custa caro, não gera resultados palpáveis e dificulta a aderência imediata do pesquisador a uma linha particular de trabalho. Se observarmos o trabalho desenvolvido por um jovem estudante de mestrado de uma ciência particular, notaremos que sua investigação é conduzida tendo como referência a produção relativa ao seu objeto de estudo nos últimos quatro ou cinco anos. O conhecimento sobre a história de sua área de investigação é um desvio desnecessário para a produção de conhecimento. Ele pode produzir conhecimento, e efetivamente o faz, apenas com o conhecimento julgado relevante para o problema que pretende resolver. As revisões de literatura temporalmente mais curtas são a expressão crescente dessa necessidade. O sistema de produção industrial do conhecimento compacta a história ao mínimo que é imprescindível para a continuidade de uma tradição de pesquisa eficiente. Nesse mesmo sentido e ao contrário do que se costuma imaginar, uma 60 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
formação superficial do cientista não é um defeito do sistema. Ela é uma de suas virtudes principais. A superficialidade é incentivada em função da lógica do trabalho de investigação adotada desde o início da modernidade. Com efeito, ela se constitui como uma virtude do operário baconiano. O jovem pesquisador de hoje está cada vez mais parecido com a criança epistemológica de Bacon: ele quase nada sabe além do seu objeto de estudo: aquilo que é considerado nas condições vigentes estritamente necessário para conduzir uma investigação sobre determinado objeto. Sem conhecer a história de sua área de conhecimento ou saber manusear adequadamente uma linguagem de amplo significado, ele tem menos preconceitos a serem combatidos, menos cultura a ser eliminada durante o período de recrutamento, menos obstáculos a serem removidos antes do início da investigação. A superficialidade do cientista é um índice de excelência do sistema, na medida em que ele tem menos coisas a desaprender do que um homem culto. Nesse caso, saber menos é saber melhor. Na verdade, ao invés de se ocupar com o processo de purificação baconiano de jovens cientistas, o sistema de produção de conhecimento contemporâneo está recrutando-os já puros, antes que eles adquiram conhecimentos desnecessários para a prática industrial da pesquisa. Isto é, a formação do pesquisador ocorre cada vez mais cedo, antes que ele cometa o pecado de se tornar culto. Assim, o sistema aperfeiçoa também o processo de treinamento. A ignorância sobre tudo o que não interessa à produção de conhecimento específico é uma virtude epistemológica do investigador extremamente valorizada pelo sistema industrial. Um pesquisador culto é uma fonte potencial de problemas que pode ser contornada com o treinamento de jovens para o desenvolvimento de investigações pontuais a partir do início do período de graduação. Uma das consequências diretas desse processo de formação de recursos humanos é a identificação do mérito do investigador com a linearidade de sua vida produtiva – percebida pela concentração a determinado objeto de estudo, preferencialmente sob um tratamento metodológico particular. Os operários excelentes são aqueles que possuem uma capacidade de foco já desenvolvida, que se demonstram capazes de desenvolver a investigação específica que é requerida pelo sistema.
6. Crítica moralista e crítica moral A ciência vem se tornando um sistema de produção da verdade cada vez mais
61 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
eficiente, aprimorando o sentido industrial contido na proposição do método por Descartes (1637/1979) e Bacon (1620/1999). Parece claro que a situação atual não é o resultado de desvios circunstanciais ou equívocos na condução do projeto da modernidade científica que poderiam tê-la conduzido a um rumo inesperado. Pelo contrário, esperamos ter evidenciado o quanto as características da produção do conhecimento existentes hoje estão em pleno acordo com o ideal de ciência e de cientista formulados pela modernidade. Seria mais adequado dizer que a ciência vem conseguindo realizar plenamente seu projeto de maneira cada vez mais integral. Diante do quadro atual, resultante da evolução natural do projeto moderno, talvez o leitor esperasse que o autor manifestasse descontentamento ou indignação. Essa é uma postura adotada por várias perspectivas que julgam que a situação atual está substancialmente errada como forma de geração de conhecimento. De fato, alguns tipos de humanistas acham que é a própria histórica do desenvolvimento do conhecimento científico que tomou um rumo errado em algum momento histórico anterior. Alguns deles chegam mesmo a desenvolver alguma forma de aversão à ciência. Para eles, melhor seria adotarmos outro ponto de vista, radicalmente distinto do científico, que reintroduzisse o valor do homem como centro do processo de conhecimento. Não é importante, nesse momento, nos determos demasiadamente na caracterização dessa perspectiva que julgo difundida mesmo no meio acadêmico das humanidades. De maneira sumária, ela parece pretender fazer o conhecimento retroceder para a época do artesanato científico ou para alguma etapa intermediária em que o sistema científico-industrial ainda não possuía o grau de eficiência atual. Não me parece fazer nenhum sentido formular uma crítica moralista a um sistema que tem se demonstrado mais e mais eficaz, dentro de parâmetros históricos que se tornaram hegemônicos nas democracias liberais. O moralismo consistiria aqui em tomar pé em valores externos à nossa época e ao nosso modo de vida e exprimir uma discordância com relação ao processo de industrialização da verdade. Assim, ele busca valores e disposições de espírito saudosistas que afirmam, por exemplo, que “precisamos manter presente o sentido nobre da ciência” (BIANCHETTI, MACHADO, 2007, p. 13). É comum que essas posturas usem a retórica da decadência moral, afirmando a inexistência atual de “an honorable ideal of personal integrity” ou de “ethical bones” (LEWIS, 2006, p. 5). Não é incomum que elas combinem os conceitos 62 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
de “high ideals”, “meaning” e “purpose” (idem, p. 19) para indicar o vácuo moral do sistema atual de produção do conhecimento. Entretanto, essa crítica só poderia ser feita por aqueles que se julgam portadores de valores independentes desse sistema – uma necessidade implícita em toda crítica moralista. Mas não é essa a perspectiva desse texto. Confesso que não tenho um pé de apoio fora da condição histórica de produção do conhecimento contemporâneo. Assim, não me julgo em condições de realizar esse tipo de crítica ao sistema – como se dizia nos anos 60 do século XX. Para o moralismo, “integridade pessoal”, “ideais elevados”, “significado” e “propósito” apontam para dimensões externas ao sistema científico-industrial que deveriam ser considerados para sua correção. Esses valores requerem, da parte de um moralista uma justificativa que não me julgo em condições de oferecer. A hegemonia que foi obtida pela ciência não foi construída de maneira voluntariosa por indivíduos isolados. Ela é o resultado do sucesso prático e do reconhecimento social obtido pelo sistema científico-industrial intensificado nas democracias liberais contemporâneas. Portanto, a hegemonia da ciência e seu modo de produção estão umbilicalmente ligados ao que denominamos de mundo civilizado democrático. A crítica moralista possui a vantagem de trazer conforto psicológico para quem se mostra indignado. Mas ela precisa avançar na direção da fundamentação dos valores alternativos que propõe para deixar de se apresentar apenas como uma estratégia de conforto pessoal diante de um mundo que se julga decadente. Não julgo haver sentido em criticar o mundo civilizado, a menos que sejamos capazes de traçar alguma perspectiva alternativa concreta para outro processo de civilização que não seja exatamente idêntico ao passado. Assim, o ponto de vista que adoto é, para o bem e para o mal, sempre interno a esse sistema de produção, simplesmente porque faço parte dele. Observe que esse texto é, ele mesmo, um produto gerado por esse sistema. Ignorar isso é enveredar por uma metafísica moralista e pela negação da importância e da concretude do processo histórico que nos trouxe até aqui. Dessa forma, só nos cabe fazer uma crítica interna, porque ela também é parte do processo contemporâneo de produção do conhecimento. Afirmar que o sistema é um monstro cujas engrenagens corrompem o homem é tomar pé fora da história e se refugiar em algum recôndito metafísico em que haja em uma noção não histórica de homem. A crítica aqui deve ser moral, porque faço parte do processo histórico que 63 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
construiu o sistema de produção industrial do conhecimento científico e sou, dessa forma, corresponsável por ele. Mas uma crítica moral é frágil justamente por isso: ela é uma crítica interna e certamente não poderá propor a mera destruição revolucionária do sistema. Ela é sempre reformista!
7. A Desilusão do Operário Cabe à crítica moral, cujo ponto de vista adoto aqui, indicar as limitações internas do sistema e as tendências que nele parecem indesejáveis. Portanto, sendo uma atividade orientada para o futuro, uma crítica moral possui sempre algo de profético. Embora seu sucesso prático seja indiscutível, as restrições à participação pessoal criativa no processo de produção do conhecimento científico tem se intensificado. Hoje, não faz sentido acreditar naquela frase da juventude: “Science: where imagination comes to reality”. Os cientistas tornam-se cada vez mais engrenagens de um sistema de produção coletivo e impessoal. Vimos como a eficiência requerida por tal sistema enaltece a superficialidade e a virtude da compreensão unidimensional e imediata dos problemas. A crítica e o debate entre pares, em geral entendida como uma virtude da produção do conhecimento científico tem sido utilizada como um processo permanente de redundância de valores e de intimidação de dissonâncias nascentes (MARTIN, 1999). A vigilância mútua dos pares certamente é um mecanismo da normalização da ciência, um reforço de procedimentos já consagrados pela tradição, uma intensificação do que Kuhn (1988) chamou de ciência normal. Mas o sistema de produção industrial parece levar a normalidade ao extremo de maneira a prejudicar o dissenso e a variabilidade – forças propulsoras da inovação. Portanto, o sistema tende a se tornar ótimo, segundo os critérios vigentes, e estagnar nesse patamar de excelência. O sistema industrial da verdade tende à redundância. A industrialização da verdade possui efeitos também sobre a impessoalidade das agendas de pesquisa: o trabalho de investigação individual é entendido como uma contribuição em um processo complexo cujo sentido escapa ao indivíduo. Assim, sua responsabilidade é limitada a fazer avançar um aspecto particular desconectado do empreendimento e do sentido geral. A abertura das universidades para a lógica de mercado tem acentuado esse aspecto. Entretanto, ao contrário do que se acredita, o 64 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
“capitalismo acadêmico” (SLAUGHTER e RHOADES, 2004; MUSSELIN, 2007) não nos parece uma interferência alienígena na atividade científica e sim a realização plena de sua vocação industrial moderna. O cientista não crê, hoje, que deva rever os fundamentos ou se ocupar com as origens de sua ciência. Isso expressa, no âmbito científico, a falência das metanarrativas a que Lyotard (1979) se refere como característica da pós-modernidade. O investigador parte de verdades instituídas para produzir novas verdades, dentro de um quadro de referências já considerado verdadeiro. Ele é um operário que não produz as regras do seu trabalho, não cria novidades efetivas, mas redundâncias que confirmam os pressupostos adotados pelo foco e pela metodologia. Sua atividade é um processo de aderência a um quadro de significados previamente adquirido na fase de treinamento. Como os demais operários tradicionais, ele apenas desenvolve uma função estabelecida a partir de um contexto dado e de acordo com uma metodologia já existente. Isso ocorre principalmente quando ele realiza um trabalho “excelente” pelos padrões do sistema. Não seria de se estranhar, portanto, que o operário percebesse mais cedo ou mais tarde que seu trabalho é rotineiro, antiheróico e mecânico. Ou seja, é perfeitamente razoável esperar que o operário se dê conta de que não conduz o carro de Apolo nos céus escuros da ignorância e que sua atividade é tão repetitiva como o de qualquer outro operário em uma esteira de produção segmentada taylorista. Assim como a eliminação do autoengano sobre o suposto heroísmo do cientista, não há como evitar que o cansaço e o desinteresse acometam uma atividade que não envolve a criatividade e a participação pessoal. Hoje, o operário ainda possui a ilusão do seu papel apolíneo no plano do conhecimento, mas isso é apenas um engano passageiro que se dissipará à medida que as engrenagens se tornarem mais e mais visíveis. Elas se tornaram visíveis porque em um mundo intensamente democrático, o indivíduo é a fonte principal do valor e busca expandir sua subjetividade para além de qualquer conteúdo particular (SILVEIRA, 2013). O contato permanente com uma atividade repetitiva que promove virtudes de superficialidade e falta de cultura geral está em contradição com a expansão da subjetividade
contemporânea.
Essa
contradição
não
permanecerá
irresoluta
indefinidamente. Enquanto os operários acreditarem que fazem parte de algo importante e meritório, o sistema dará seus frutos e se mostrará produtivo. Mas, quando se tornar evidente que a lógica do sistema é idêntica à de qualquer indústria, cairá por terra a falsa distinção entre o trabalho intelectual do investigador e o trabalho manual bruto e 65 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
repetitivo – algo que é, aliás, positivo. Com isso, o sistema não poderá manter a aura de heroísmo sacerdotal com a qual revestiu o trabalho intelectual dos pesquisadores. Sem a criação de valores que mobilizem os cientistas para o desempenho de atividades que possuam relevância pessoal, a ciência passará a enfrentar os mesmos problemas de qualquer processo industrial que envolve rotina e repetição. Em uma cultura marcada pela intensificação do individualismo, pela atenção incessante aos direitos da pessoa e à sua plena realização existencial, atividades impessoais caminham na direção contrária daquilo que se espera. Dessa forma, o sistema de produção da verdade deve se tornar desinteressante diante das novas necessidades humanas. Ou a indústria da verdade se adapta à cultura individualista ou deixará de ocupar o lugar de destaque dos últimos 200 anos.
REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. 4ª ed. Tradução Mário da Gama Kury. Brasília: Editora da UnB, 2001. BACON, F. Novum Organum. São Paulo: Abril Cultural, 1620/1999. BAUDRILLARD, J. La societé de consommmation. Paris: Denoël, 1970. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. BIANCHETTI, L. MACHADO, A.M. “Reféns da produtividade” sobre produção do conhecimento, saúde dos pesquisadores e intensificação do trabalho na pósgraduação. Disponível em http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/trabalhos/GT09-3503--Int.pdf Consultado em 10/04/2012. DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Abril Cultural, 1641/1973. DESCARTES, R. Discurso do método para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências. São Paulo: Abril Cultural, 1637/1979. LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999. LEWIS, H.R. Excellence without a soul: how a great university forgot education. United States: Perseus Books, 2006. LYOTARD, J.-F. A Condição pós–moderna. José Olympio, 1979/2002. MARTIN, B. Suppression of dissent in science. Freudenburg, R. and Youn, T. Research in Social Problems and Public Policy, Volume 7. Stanford: JAI Press, 1999, pp. 105-135. MUSSELIN, C. The transformation of academic work: facts and analysis. Research & Occasional Papers Series: CSHE.4.07. p. 1-14, 2007. POPPER, K. A lógica da pesquisa científica. Tradução de L. Hegenberg. São Paulo: Cultrix, 1972. POPPER, K. Conhecimento Objetivo. Tradução de Milton Amado. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1975. RORTY, R. Objectivivity, relativism, and truth. Cambridge: Cambridge University Press, 1991. SAGAN, C. O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela 66 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
no escuro. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SILVEIRA, R.A.T., HÜNNING, S. A tutela moral dos comitês de ética. Psicologia e Sociedade, v. 22 (2), p. 388-395, 2010. SILVEIRA, R.A.T. O florescimento da subjetividade contemporânea. 2013. [manuscrito não publicado]. ____. Fundacionismo e coerentismo: entre a descrição e a normatização. Santa Cruz do Sul, Barbarói, n. 9, pp.21-34, 1998. SLAUGHTER, S., RHOADES, G. Academic capitalism and the new economy: markets, state and higher education. Baltimmore: John Hopkins University Press, 2004. TRZESNIAK, P. PLATA-CAVIEDES, T., CÓRDOBA-SALGADO, O. Qualidade de conteúdo, o grande desafio para os editores científicos. [Manuscrito não publicado].
67 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
UMA ANÁLISE DO “DISQUE DENÚNCIA” 1 NA ROMÊNIA PÓSCOMUNISTA.
Cerasel Cuteanu2
RESUMO No início dos anos ’90 do século XX, a Romênia entrou em sua fase pós-comunista, em que importou contornos, normas e construtos que, infelizmente, foram aplicados com muito desperdício, e, em última análise, de maneira ineficiente. Entre eles, o “disque denúncia” é um exemplo dos conceitos ocidentais que – como provaremos depois – não podem ser funcionais em países que possuem uma dimensão cultural de essência póscomunista. A fim de verificar a hipótese, nós olhamos para o sistema universitário da Romênia, um campo que, potencialmente, é mais aberto ao novo e ao reformismo, e descobrimos que ele mantém excessiva implicação política, ao lado de práticas não democráticas (escondidas sob a capa de procedimentos democráticos e maiorias tirânicas), iguais às que havia durante o comunismo, enquanto educadores competitivos são marginalizados. O resultado é a óbvia mediocridade do sistema, considerando que as decisões, no nível da gestão, são tomadas com base em razões políticas, anticompetitivas. Em tal sistema, “disque denunciantes” são isolados por seus colegas de trabalho, a retaliação não é algo considerado fora do normal (considerando que tal organização é orientada por liderança), e a instituição permanece “sagrada”, mas anticompetitiva. Aplicando o esquema interpretativo de Hofstede, nossa conclusão é que dimensões culturais (isto é, a distância hierárquica, o individualismo e o evitar incertezas) são um fundamento para a razão de permanecermos céticos sobre a imposição de uma cultura de “disque denúncia” em um ambiente pós-comunista. Palavras-chaves: Ética aplicada, disque denúncia, Romênia, pós-comunismo, Geert Hofstede.
1
A tradução da expressão original por “disque denúncia” requer alguns esclarecimentos. O termo “Whistle-blowing” significa “a exposição do malfeito de um empregador a agentes externos à companhia, tal como a mídia ou agências reguladoras governamentais. O termo também é usado para a denúncia interna de desvios de conduta, à gerência, especialmente por meio de mecanismos anônimos de participação, frequentemente chamados de ‘linhas quentes’ ”. Cf. FERRELL, O. C.; FRAEDRICH, John; FERRELL, Linda. Business Ethics: Ethical Decision Making and Cases. Boston: Houghton Mifflin, 2008. p. 183. No Brasil, as “linhas quentes” corporativas (isto é, os canais telefônicos ou eletrônicos internos à organização) são frequentemente chamadas de “ouvidorias”, e não de “disque denúncia”. Em compensação, a expressão “disque denúncia”, mais aproximada do sentido global que o articulista pretende apresentar, e que já ficou bastante conhecida entre nós (o que também justifica a escolha), designa claramente a “linha quente” (em geral telefônica, gratuita) do público em geral com toda e qualquer autoridade constituída. Nesse sentido, ela é muito mais ampla do que no contexto original, pois não envolve a denúncia apenas de dirigentes empresariais de conduta reprovável, mas é válida para denunciar qualquer malfeito, de qualquer um. São inúmeros os exemplos de casos de crimes, fraudes e similares que foram denunciados, apurados e seus perpetradores punidos, junto à polícia, ao ministério público e a muitos outros agentes públicos, a imprensa incluída. Nesse sentido, vale dizer que a instituição brasileira do “disque denúncia” – garantida pelo anonimato – é, efetivamente, bem sucedida, ao contrário, ao que parece, do caso romeno descrito no artigo. Cabe informar também que, por esse motivo, todas as variantes da expressão usadas pelo articulista foram igualmente vertidas com o formato “disque” anteposto, em vez de simplesmente, “denúncia”. (Nota do tradutor) 2 O autor é jornalista, PhD pela Universidade de Petrosani, Romênia. (Nota do tradutor). 68 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
ABSTRACT At the beginning of the ‘90’s, Romania entered its post-communist phase, a phase that imported Western frames, norms, and constructs, which, unfortunately, were applied quite loosely, and, finally, inefficiently. Among these, whistle-blowing is an example of Western concepts that – we will further prove – cannot be functional in countries, having a cultural dimension, of a post-communist essence. In order to verify the hypothesis, we looked at the university system in Romania, a field that, potentially, is more open towards the new and the reformism, and discovered that it maintains the excessive implication of the political, as well as undemocratic practices (hidden under democratic procedures and tyrannical majorities), same as during communism, while competitive educators are marginalized. The result is the obvious mediocrity of the system, considering that decisions, at the level of management, are made based on anticompetitive, political reasoning. In such a system, whistle-blowers are isolated by their coworkers, retaliation is not something considered out of the ordinary (considering that such an organization is leader-oriented), and the institution remains “sacre”, but anticompetitive. Applying Hofstede’s scheme of interpretation, our conclusion is that cultural dimensions (i.e. power distance, individualism, uncertainty avoidance) are an argument for the reason that we remain skeptical about the imposing of a culture of whistle-blowing in a post-communist environment. Key-wordws: applied ethics, whistle-blowing, Romania, post-communism, Geert Hofstede.
1.
Visão geral sobre o “disque denúncia”. A percepção geral sobre o “disque denúncia” implica uma dicotomia
inevitável: de cada lado da disputa, podem-se achar argumentos que justifiquem tanto a virtude quanto o erro do procedimento. Em uma cultura democrática, que possua um histórico de sistema legal em funcionamento, respeitosa dos tópicos morais essenciais, poder-se-ia ter a expectativa de que o “disque denúncia” fosse um fenômeno intraorganizacional positivo. Ir além das fronteiras da organização, sem primeiro tentar consertá-la pelo lado de dentro, poderia ser considerado como algo malicioso e, mesmo, corrupto, daí o erro em “disque denunciar”. Obviamente, a possibilidade de uma anomalia não está excluída, na medida em que os dirigentes executivos máximos ou administradores de sistemas públicos são capazes das formas de corrupção mais simples, em nome de variados interesses políticos ou financeiros. Lutar contra tais ações egoístas e corruptas representa um testemunho do papel positivo do “disque denunciante”. Isso nos conduz à essência da questão – um “disque denunciante” é alguém que tem o bem coletivo em mente, quando age contra a organização, apesar das consequências; sobretudo, mesmo 69 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
quando ele/ela falha, o “disque denunciante” pretende ter feito “a coisa certa” 3. Consequentemente, ele não poderia hesitar, caso fosse necessário repetir a ação. É por isso que, normalmente, organizações sólidas (especialmente no mundo ocidental) proclamam publicamente a vantagem do “disque denúncia” e o encorajam internamente, como um sinal de democracia e eficiência moderna. A alternativa também é possível, já que sempre há organizações em que esse fenômeno não é encorajado de modo algum, o que é uma prova de que não estão desenvolvidas de modo suficientemente democrático. Na Romênia, as universidades públicas são exemplos dessas organizações em que o simples conceito de “disque denúncia” é irrelevante, devido a um mau funcionamento da democracia em um nível institucional, o que é um sinal de falta de maturidade cultural. Esse mau funcionamento, com óbvios efeitos sobre o desempenho das pessoas em uma universidade, é uma consequência das anomalias típicas e específicas de sociedades pós-comunistas. Dessa perspectiva, necessita-se de progresso, mas ele não é estimulado. Geralmente, um sistema especializado como o educacional tem suas próprias regras científicas, estritas; o que atraiu minha atenção no sistema universitário da Romênia é que ele tem sido substituído por um “clone” com uma essência política, e que relativiza todos os critérios. A consequência direta é que os educadores são sufocados por um sistema não competitivo que recaiu em uma imitação “kitsch”, um sistema conduzido por políticos pseudoacadêmicos que usam sua influência de maneira a controlá-lo, não pelo bem do progresso, mas somente por amor ao poder político, dinheiro e imagem pública... Os verdadeiros acadêmicos profissionais (uma pequena porcentagem) se transformam em uma massa amorfa de indivíduos despersonalizados, no momento em que sentem que o poder não acompanha mais a qualidade acadêmica. Como resultado, há uma pressão gerencial invisível, que força qualquer “disque denunciante” potencial a permanecer calado e a não oferecer nenhuma reação a qualquer desvio de conduta. O outro aspecto a se mostrar relevante na discussão poderia ser o cultural; não existe a cultura do “disque denúncia” neste país pós-comunista, devido à mentalidade, à história e à cultura romenas. É por isso que as perspectivas de Geert Hofstede sobre dimensões culturais provam sua utilidade para a análise do padrão cultural dos romenos e como
3
ALFORD, Fred C. Whistleblowers: Broken Lives and Organizational Power. Cornell U. P., 2001. p. 1. 70 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
isto influencia a filosofia do “disque denúncia”. Hofstede menciona o fato de que as pessoas carregam programas mentais e vê a cultura como uma “programação coletiva da mente”4. Valores e cultura são diretamente conectados a esses programas mentais. Ele define os valores como “uma tendência generalizada a preferir certos estados de coisas a outros”, de modo não racional, “programados desde cedo em nossas vidas” e “determinantes para nossa definição subjetiva de racionalidade” 5. A cultura é definida como “a programação coletiva da mente que distingue os membros de um grupo humano do outro”; ela também inclui um “sistema de valores”6. Nós usaremos a visão hofstediana para comentar o conceito de “disque denúncia” na Romênia, já que a dimensão cultural específica dos romenos justifica sua incapacidade de alcançar o papel positivo de um “disque denunciante”.
2.
Uma solidariedade contra o “disque denunciante”. Por razões culturais que elaboraremos posteriormente, os empregados nas
organizações romenas, em geral, têm a reação instintiva de isolar os “disque denunciantes”. Isto se deve a uma solidariedade – erroneamente compreendida – com o líder da instituição (e não com a própria instituição ou com a sociedade), e isto é algo que pode ser explicado com base na dimensão da distância hierárquica hofstediana. Como resultado, em tais contextos, um “disque denunciante” encara, além do medo da retaliação, o dilema de acomodar, na mesma equação, a lealdade a uma organização (mais precisamente, ao seu líder e aos colegas de trabalho) e o fator “fazer a coisa certa”. Esse dilema é imposto a ele pelos outros empregados. Ademais, é ingenuamente invocada uma lealdade egoísta à organização (por exemplo, uma universidade romena) e não ao “fazer a coisa certa”. Obviamente, o “disque denunciante” cai em contradição com seus superiores/a administração e com os colegas que podem ser afetados pela informação, potencialmente prejudicial a eles também. O pano de fundo é a organização, que é agora percebida como sagrada 7 (mais do que a organização, é o líder que é “sacralizado” em 4
HOFSTEDE, G. Cultures Consequences: International Differences in Work-Related Values (Cross Cultural Research and Methodology). New York: SAGE, 1980. p. 13 5 Idem, p. 18. 6 Ibidem, p. 21. 7 ALFORD, Fred C. Whistleblowers: Broken Lives and Organizational Power, p. 6. 71 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
uma universidade romena). A recessão global também pode causar certo tipo de ansiedade que justifica tais sacralizações irracionais e desonestas. Tais sacralizações são específicas das universidades romenas, em particular. Aqui, o isolamento imposto sobre “disque denunciantes” é mais visível. A maioria dos empregados de uma universidade romena está contente em delegar todas as responsabilidades ao reitor, ao pró-reitor ou a qualquer outro superior, em geral, e, em consequência, não está interessada em arriscar seu futuro, em prol de fazer a coisa certa. Não há apoio aos “disque denunciantes”. Como resultado, a retaliação é algo quase aceito e esperado/tolerado pelos colegas. Aliado ao fato de que a sociedade civil não é suficientemente poderosa, a opinião pública não é algo muito eficiente na Romênia. Ao mesmo tempo, na era global em que a mídia é excessivamente polarizada, ela geralmente depende de financiamento dos que têm o poder. Pode acontecer de a mídia trazer ao público a história de um “disque denunciante” sobre uma universidade (por exemplo, um reitor que infringe partes da lei de educação – algo que aconteceu recentemente, quando muitos reitores concorreram ilegalmente para um terceiro mandato, e nenhuma sanção foi aplicada a eles) e a opinião pública não reagir, assim como o ministério da educação, enquanto a retaliação é inequívoca e impossível de ser provada em juízo (caso tenhamos uma visão realista acerca de como funciona o sistema de justiça neste país). Tudo isto descreve as coordenadas de um bloqueio geral que mantém as universidades romenas na mediocridade (as últimas classificações provaram que nenhuma universidade romena está entre as primeiras 600 do mundo). Este círculo vicioso poderia ser quebrado por “disque denunciantes” mesmo que as premissas não sejam promissoras, graças àqueles programas mentais hofstedianos e à pressão da corrupção. Como jornalista investigativo, escrevendo principalmente sobre o sistema universitário, eu lido com muitas pessoas desse sistema. Minha conclusão é que os possíveis “disque denunciantes” retrocedem pelo fato de que os políticos romenos, os mesmos da era comunista, invadem todos os campos e permitem retaliações contra qualquer um lutando contra o “sistema” (com o propósito de melhorá-lo). No nível do poder, a abordagem impõe uma solidariedade entre os que detêm o poder e aqueles que não o têm – a distinção é entre “nós” e “eles” – nós que temos o poder (nenhuma ideologia é envolvida, é apenas amor básico pelo poder) e eles (que podem se tornar uma ameaça para “nós”, ansiosos por fazermos qualquer coisa para conservar o poder). 72 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A realidade fictícia que foi construída pelo poder da propaganda do Partido Comunista antes de 1989 assumiu uma nova configuração hoje, uma forma que justifica todas as teses. A confusão sociopolítica durante os anos ’90 permitiu um controle da sociedade por pessoas que estão protegidas por políticos de alto nível. É uma forma de corrupção óbvia, sem dúvida, e um modo de forçar este país à mediocridade. Efetivamente, o fato de que políticos estejam tentando controlar a justiça (e assim protegendo os partidários), por meio do Parlamento, do Governo ou de outras instituições da sociedade democrática, ainda é um debate público frequente na Romênia. Sob as circunstâncias, considerando esses traços pós-comunistas da sociedade romena, o “disque denúncia” não é algo efetivo, eis porque as universidades romenas ainda estão lutando em classificações internacionais, uma vez que a excelência não é algo buscado por si mesmo, mas, ao contrário, algo a ser evitado, apenas pelo amor do poder, em qualquer contexto. Mas então, o comunismo não funcionava em bases semelhantes – mentira, mediocridade e propaganda?
3. Romênia pós-comunista – instituições frágeis e democracia “original”. Este país ex-comunista recuperou sua liberdade em 1989, quando o comunismo, em sua forma totalitária, ruiu (novamente, não porque os romenos tivessem tido a iniciativa de fazer a coisa certa, mas apenas porque nos ajustamos ao fato de que todo o bloco comunista estava se despedaçando, sendo esta uma prova óbvia da posse em larga escala da dimensão hofstediana do poder, específica da mentalidade romena). Desde os anos ’90, tem havido uma luta para implantar a sociedade liberaldemocrática. Diferente de outros países, como a Polônia ou a República Tcheca, a Romênia não teve força suficiente para produzir uma separação drástica/completa de seu passado. Em consequência, a mudança de sistema ideológico aconteceu apenas na superfície, enquanto os vetores do novo sistema eram, na maioria das vezes, indivíduos influentes da segunda ou terceira onda do Partido Comunista ou da polícia política de Ceausescu
8
. Um exemplo simples para esta tipologia é o primeiro presidente
“democrático”, o senhor Ion Iliescu que, de muitos modos, assegurou esta “transição” das estruturas do passado para o novo sistema (de fato, seu instinto inicial, que admitiu publicamente, foi continuar o comunismo na Romênia, mas num estilo perestroika8
Nicolau Ceausescu foi o líder comunista e presidente da Romênia de 1965 até sua execução, em 1989. (Nota do tradutor). 73 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
reformista 9). Depois de muitas décadas de ditadura comunista, a maioria dos romenos tendo sofrido lavagem cerebral e sendo ignorante, escolheu o caminho mais fácil, e, assim, recusou o novo, graças a instintos retrógrados e ignorantes como os da época das cavernas.
O resultado foi que o novo tipo de sociedade estava sendo construído com
pessoas que não tinham qualquer outro interesse que o de ficar em vantagem no jogo do poder, agora jogando pelas regras da democracia. Não chega a surpreender que as “elites” que tomaram o poder nos anos ’90 fossem basicamente as mesmas pessoas do regime (comunista), embora se pudesse ter tido a expectativa que os dissidentes que se opuseram ao comunismo teriam um papel mais significativo. Infelizmente, este não foi o caso e, em consequência, mesmo agora não existe qualquer coisa parecida a uma cultura de dissidência na Romênia. Além da dimensão cultural que iremos analisar mais tarde neste artigo (com efeitos sobre o “disque denúncia”), durante a ditadura de Ceausescu, ao indivíduo era ensinado (de formas violentas) que não se podia lutar contra o “sistema” e que a dissidência não tinha qualquer chance de ser bem sucedida. Muito poucos dissidentes, os quais passaram muitos anos aprisionados, devido às suas convicções políticas, foi o exemplo que convenceu o resto da população de que não há chance de lutar. Isto combinado com uma cultura do informante (a polícia política da ditadura forçava as pessoas a espionarem-se umas às outras, em nome dos ideais comunistas), levou à diminuição da personalidade e responsabilidade individuais. A consequência foi que o indivíduo não lutava como deveria por sua opinião, mas, ao contrário, aprendia a aceitar a dominação daqueles que tinham o poder. Assim, a verdade se tornou algo que só se validava ideologicamente. Tudo isto pode ser entendido muito facilmente, se aplicarmos a visão hofstediana de valores transculturais e dimensões culturais. O fato de que o primeiro presidente romeno (eleito ilegalmente para dois mandatos e meio – mais tarde reitores de universidades o imitaram, para permanecer no poder) havia começado sua carreira política na nova Romênia, livre e democrática, insistindo em impor um tipo melhor de comunismo, e finalmente, uma “democracia original”, retardou o progresso. De muitos pontos de vista, na medida em que a 9
Em conjunto com a Glasnost (transparência), a Perestroika (reestruturação) foi uma das políticas introduzidas na URSS, em 1985, pelo presidente à época, Mikhail Gorbachev. Ela designava um processo de reforma administrativa e política, e de abertura econômica, que culminaria com os eventos de 1989, em especial a queda do Muro de Berlim e, em 1991, o colapso final do bloco soviético na Europa. (Nota do tradutor). . 74 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Romênia mal começou a buscar esse caminho, a sociedade liberal-democrática é um “fim da história”. No mínimo, as gerações mais novas sentem que ainda há um longo caminho a ser feito rumo a esse ideal. Uma das piores coisas foi o fato de que instituições nas novas sociedades acabaram sendo geridas por líderes pós-comunistas, de maneira criptocomunista. Democracia era apenas o disfarce para uma cultura da liberdade disfuncional e quebrada a priori. O principal resultado: a corrupção, a falta de progresso, a irresponsabilidade pública, o que não é surpreendente, de acordo com teóricos políticos. De maneira realista, nós temos que concordar com os teóricos que afirmam que não se espera que as democracias recentemente construídas sejam tão funcionais quanto aquelas dos países em que tal sociedade já era uma tradição. A força da democracia é dada pelo poder das instituições do Estado
10
. Por definição, um regime é democrático quando organiza
eleições livres, sem este sentido de que isto é mais do que uma formalidade. O que conta, desde esta perspectiva, e mantém tais países subdesenvolvidos, são as práticas não democráticas e a corrupção frequente. Na verdade, o mero fato de que uma nova democracia esteja emergindo da escuridão dos princípios fundadores marxistas, leninistas e stalinistas é uma razão para a sua falta de funcionalidade 11. Vale a pena enfatizar as ditas “práticas não democráticas”
12
que caracterizam
alguns dos regimes pós-comunistas que se converteram à democracia depois de ’89. Tais práticas estão presentes também na Romênia. Não é fácil construir uma democracia sobre as alvoradas da ditadura comunista.
O “disque denúncia” pode ajudar? É
provável, especialmente se olharmos para a sociedade democrática de modo realista, como uma poliarquia, aceitando o fato de que as instituições importam, de forma a preencher o vazio criado pelo fato de que é a maioria que governa e não todos os cidadãos de uma democracia. O pós-comunismo romeno organiza uma “democracia original” que combina partes de oligarquia, totalitarismo e ditadura em suas instituições. Há uma indiscutível conexão entre regimes totalitários e a administração das universidades romenas. Universidades romenas construíram uma oligarquia em torno do reitor, tomando de empréstimo à teoria política o seguinte princípio: “Quem não está conosco, está contra nós”. A herança totalitária não deve ser negligenciada, logo, uma explicação para as acusações de estalinismo em muitas das instituições públicas da 10
ROSE, R.; MISHLER, W.; HAERPFER, C. Democrația și alternativele ei. Institutul European, 2003. p. 23. 11 Idem, p. 35-36. 12 Ibidem. 75 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Romênia, em geral, ou, mais precisamente, putinismo
13
. Eu tenho publicado
intensivamente, na Gorjnews 14, artigos que insistem nesses traços 15 que descrevem um atualizado “sultanismo” (no sentido de Max Weber) nas universidades romenas. Mesmo eleições, em tal contexto, são apenas de fachada, já que os detentores do poder estão sempre vencendo
16
– provavelmente a teoria da distância hierárquica de Hofstede é
uma explicação para isto. Este é o contexto institucional que um “disque denunciante” potencial encontra em uma universidade romena – uma mistura de excessos de poder e decoração abusiva, em que as principais características são de essência política (afinal, a direção de cada conselho regional de educação é indicada pelo presidente do partido que tenha vencido as eleições). O resultado é que se podem descobrir muitos traços políticos com um claro toque de uma ditadura institucional refinada. São específicos de tais ditadores discretos, governando as universidades romenas, o individualismo, o subjetivismo e a luta incessante para impor suas vontades pessoais 17. Os elementos de oligarquia são também facilmente notáveis no nível de uma liderança universitária, já que ela geralmente promove apenas as leis e regulamentos que são favoráveis aos interesses
18
dos detentores do poder. A ilusão de democracia é
facilmente mantida em um nível superficial, pela organização de eleições livres, as quais os oligarcas podem vencer, uma vez que a oposição é geralmente censurada e isolada – no nível de impacto – assim como durante o domínio do Partido Comunista (por exemplo, a menção de tais eventos foi feita recentemente na universidade pública de Targu-Jiu, Romênia). Tudo isto impõe óbvias práticas não democráticas no nível institucional em uma universidade. “Disque denunciantes” estão encarando isto. O máximo que poderia conseguir alcançar são pessoas desejosas de falar anonimamente sobre malfeitos em universidades. Sua desculpa é que ainda há uma ditadura escondida (sob a aparência 13
Isto é, ao modo do regime de Vladimir Putin, presidente russo de 2000 a 2008, primeiro-ministro de 2009 a 2012 e presidente, novamente, de 2012 em diante. Seus críticos europeus o acusam de liderar uma “máfia de Estado”, de modo análogo ao que fez Josef Stálin, dos anos ’30 aos ’50 do século XX. (Nota do tradutor) 14 Veículo diário multimídia romeno, que inclui atualidades e comentários variados, inclusive políticos (ver web: http://www.gorjnews.ro/). (Nota do tradutor). 15 CUTEANU, C. Externele, pe mâna adepților lui Putin: Marga și Gorun. Disponível em: http://www.gorjnews.ro/slider/externele-pe-mana-adep%C8%9Bilor-lui-putin-marga-%C8%99igorun.html. Acesso em: May 2012. 16 Democrația și alternativele ei, p. 59. 17 Idem, p. 60. 18 Ibidem. 76 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
democrática). Em minha experiência como jornalista investigativo, eu reparei na seguinte psicologia, quando se trata de “disque denúncia” em uma organização romena, em geral: como, em 1989, a Romênia não separou o velho do novo, tudo está borrado. Consequentemente, “bocados” de comunismo, estalinismo e ditaduras reinventadas foram importados para as organizações, no nível da liderança, e aceitos como representando o estilo adequado de gestão. A consequência é que, seguindo seus instintos, as pessoas muito frequentemente começaram a reagir aos líderes em uma instituição, do mesmo modo que durante o comunismo: já que estão subjugadas pelas mesmas práticas, elas são programadas para não assumirem excessiva liberdade (enquanto o “disque denúncia” seria uma manifestação de liberdade). O risco é que elas pudessem se tornar dissidentes e, baseados no que resultou da dissidência no passado romeno, isto é algo que 99% dos romenos escolheriam não se tornar. Em resumo, o sistema de valores que forma a cultura na Romênia não oferece qualquer razão para dizer, nesse sentido, que “disque-denunciar” pudesse ser pragmático ou ajuizado. A consequência óbvia é: não importa qual seja o malfeito, os romenos preferem deixar todas as responsabilidades para os líderes, assim como foi durante o comunismo. Naturalmente, há questões/desculpas inerentes para não “disque-denunciar” e desistir da liberdade. Lutar contra o malfeito é uma boa ação? No fim das contas, pode-se dizer o que é bem e o que mal? Considerando o relativismo da sociedade contemporânea, a verdade não é um construto social, um construto que precisa ser alcançado democraticamente? O “disque denúncia” não seria algo irracional, talvez um excesso? Ou ainda outra desculpa pela passividade é que o malfeito pode bem ser algo subjetivo. O “disque denunciante” é percebido como um empregado que, dentro da organização, vai contra seus companheiros apenas para se opor à liderança. Nós daremos depois uma explicação hofstediana para essa forma de pensar. O que já pode ser dito é que é difícil a separação do passado comunista anticompetitivo, enquanto a pressão faz as pessoas tolerarem o malfeito, já que parece ser a coisa prática a se fazer.
4.
A boa ação de lutar contra o malfeito – um modo de sair do
círculo vicioso. A quem o “disque denunciante” é leal? Isto significa que ele tem a intenção de
77 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
fazer a coisa certa? Quão injusta é a retaliação contra um “disque denunciante”? São algumas poucas questões legítimas que tentaremos oferecer uma resposta nesta parte do artigo. Ao reagir ao malfeito no interior da organização, um “disque denunciante” é leal, principalmente, à sociedade (algo externo à organização), mas também à própria organização, que é parte da mesma sociedade. Miceli and Near
19
afirmaram que a
intervenção do “disque denunciante” é reclamada por três dimensões de malfeitos: comportamento ilegal, ações imorais ou ilegítimas. Em todos os três sentidos, as ações de um “disque denunciante” perseguem a finalidade de fazer a coisa certa. Ao teorizar o conceito de “disque denúncia”, deveríamos ter em mente a necessidade de separar o “disque denúncia” de “outras ações de empregados voltadas à criação de mudanças organizacionais no local de trabalho”
20
. As ações de um “disque denunciante” tentam
parar um malfeito que teria certo impacto negativo na sociedade, logo, para além da organização. Ao analisarmos este fenômeno historicamente, podemos chegar à conclusão de que o “disque denúncia” sempre teve um efeito positivo na sociedade. Isso retroage ao tempo da cidade-Estado de Veneza (quando o “disque denúncia” foi “instituído” ... para ajudar a combater a corrupção e para dar aos cidadãos uma voz mais significativa em seu governo 21, mas remete também ao congresso americano durante a guerra civil (a lei do “disque denúncia” queria combater fraudes), ou ao “apelo de Ralph Nader
22
, em
1971, por sua implementação como instrumento para estancar o malfeito organizacional” 23. Uma conclusão não arriscada é que o “disque denúncia” é uma boa ação, sem dúvida. Muitos autores o veem desse modo – por exemplo, Dworkin e Davidson insistem no papel positivo do “disque denúncia” (como “instrumento comum de controle”). Consequentemente, as organizações deveriam evitar a retaliação contra os “disque denunciantes”:
19
MICELI, Marcia P.; NEAR, Janet P. Whistle-blowing in organization. Routledge/Taylor and Francis, 2008. p. 4. 20 Idem, p. 6. 21 DWORKIN, T.M.; DAVIDSON, W. Whistle-blowing, MNC’s and Peace. Working Paper Number 437. February 2002, p. 3. 22 Ralph Nader é advogado, ex-congressista, político e ativista de direitos humanos estadunidense de origem libanesa. (Nota do tradutor) 23 DWORKIN, T.M.; DAVIDSON, W. Whistle-blowing, p. 3. 78 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Se adequadamente protegidos da retaliação, eles se apresentarão com evidências do malfeito antes que seja detectado externamente, isso se chegar a ser descoberto. Os danos do malfeito poderiam ser reduzidos, comportamentos errados seriam freados, os prejuízos da desatenção pública e os gastos da investigação seriam reduzidos, se tais relatos ocorressem. Além disso, se o “disque denúncia” provasse ser uma ocorrência relativamente frequente, os malfeitos poderiam diminuir, porque malfeitores potenciais ficariam em alerta sobre o fato de que suas atividades não eram tão secretas quanto seriam no caso contrário 24 .
O passo essencial em qualquer organização é encorajar a denúncia interna. Assim, a organização tem a oportunidade de consertar o malfeito, evitando efeitos danosos, ficando dentro dos limites da ética e permanecendo leal à própria sociedade. O que os EUA fizeram – sendo um dos defensores do “disque denúncia” – foi punir impiedosamente as organizações acusadas de malfeitos com medidas extremas, e precisamente com as formas práticas que iriam feri-las ao máximo. Somente assim elas seriam capazes de perceber e aceitar a importância do “disque denúncia” interno. O resultado imediato foi que o elemento de retaliação desapareceu de seu arsenal, nesse dualismo “disque denúncia” / organização. Isto é algo sobre o qual as universidades romenas ainda não estão suficientemente conscientes, de modo que ainda existe a retaliação sobre os “disque denunciantes”. Vem com o nível de democracia do país e com a compreensão do mundo contemporâneo. Uma vez que o fator político está presente em todos os níveis, assim como durante o comunismo, é óbvio que o malfeito não será punido. Ao contrário, o “disque denunciante” será jogado aos “leões” que controlam, de forma pós-comunista, todas as organizações públicas. O que normalmente acontece é que o “disque denunciante” encarará o isolamento dentro da instituição e será preterido em qualquer promoção ou possíveis bônus. O fenômeno mais interessante é que o restante de seus colegas de trabalho não reaja a isto. Em si mesma esta é uma prova de que os colegas de trabalho aceitam o totalitarismo autoimposto do líder e o fato de que este tem o direito de dispor do “traidor” da forma que considerar apropriada. Tal aceitação da injustiça, se imposta pelo líder de uma universidade romena, é uma especificidade da maioria das organizações públicas romenas. De maneira a tornar isto mais claro, eu enfatizaria dois exemplos conectados ao “disque denúncia” nas universidades romenas. Um é o de um professor de uma pequena universidade pública regional que eu tenho investigado, e o outro exemplo é o atual primeiro-ministro da Romênia. O primeiro é um exemplo de como as instituições 24
Idem, p. 4.
79 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
retaliam, e o segundo é um exemplo de como os poderes políticos interferem com a educação, protegendo os responsáveis pelos malfeitos. O professor do primeiro exemplo é genérico para o caso dos “disque denunciantes” que são retaliados. A pressão foi tão insuportável que ele deixou o emprego, como resultado. Uma vez que a união em qualquer universidade romena “atende” as disposições da administração, não foi surpresa que ele não tivesse recebido apoio e tivesse que deixar o emprego. O segundo exemplo está do lado dos retaliadores, que seguiram a regra requerida para ser aceito pelo sistema universitário romeno: superficialidade acadêmica combinada com apoio político significativo – eu estou me referindo ao primeiroministro da Romênia, o senhor Victor Ponta. Recentemente, ele esteve envolvido em um caso internacionalmente famoso de plágio. A revista Nature
25
trouxe evidências consideráveis de que sua tese de
doutoramento foi plagiada. Mesmo se tratando de um caso de plágio direto (copiarcolar) e de que a universidade que lhe deu o título de PhD tenha resolvido que as acusações eram justificadas, em último caso, é da competência do ministro da educação dar o veredito e tomar as medidas/sanções legais. Aqui é onde o dilema kitsch começa. Quem nomeou o ministro da educação? O próprio senhor Ponta, na qualidade de primeiro-ministro do governo romeno. Quem tem que dar a assinatura final anulando o título de PhD do primeiro-ministro, com base no plágio? O ministro da educação, nomeado pelo mesmo senhor Ponta. Ainda não há conclusão, mas minha intuição me diz que o resultado será político. A realidade é que o primeiro-ministro plagiou até 115 páginas de sua tese de doutorado. Mas há um impasse, na medida em que o sistema educacional foi penetrado por políticos que não se guiam pela verdade ética, objetiva, rígida e acadêmica, mas, ao contrário, funcionam baseados em uma verdade contextual, política, flexível e dependente de interesses políticos. Aqueles que sustentam que ele plagiou não podem impor suas decisões, já que perderam a maioria no governo (?), enquanto o outro lado não convence ninguém, já que o plágio é óbvio. Daí o impasse, o círculo vicioso que mantém o sistema universitário na mediocridade, por causa dos políticos. Quando se apresenta tal configuração do poder, quem teria a coragem de ser 25 SCHIERMEIER, Q. “Romanian Prime-minister accused of plagiarism”. In: Nature, International Journal of Science.Disponível em: http://www.nature.com/news/romanian-prime-minister-accused-ofplagiarism-1.10845. Acesso em: Junho, 2012 80 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
um “disque denunciante” em uma universidade romena? Como dissemos antes, mesmo a revista Nature não expôs seus “disque denunciantes” neste caso de plágio. Este não é o único exemplo de quão superficial é o sistema universitário na Romênia, e o quão baseadas em política são tomadas as suas decisões institucionais. Outro exemplo, novamente de um político, o ex-ministro da educação, senhor Ioan Mang. O Conselho Nacional de Ética lhe deu o veredito de plágio. Sua reação: “Foi uma decisão política”. A coisa esquisita é que a acusação de plágio veio de um partido político e não de gente da academia
26
, como deveria ter sido (novamente a
dimensão cultural da distância hierárquica). Mas, então, mais uma vez, considerando o contexto sociopolítico da Romênia pós-comunista, que professor, em seu juízo perfeito, teria a coragem de acusar um primeiro-ministro, ou o ministro da educação, de plágio ou de infringir a lei? Esta é a coisa estranha acerca da maioria dos campos na Romênia – excessiva penetração política ou mesmo, talvez, estrutura/essência política. Assim, quem pode lutar contra o malfeito nas universidades romenas, uma vez que mesmo a academia está povoada por políticos que parecem estar acima da verdade acadêmica? Além disso, há alguma saída do círculo vicioso?
5.
Pode-se ver a política como um componente cultural da
Romênia? Dworkin e Davis conectam o “disque denúncia” a um componente cultural, e, assim, sustentam que ele pode variar de país para país: “Como discutimos acima, o “disque denúncia” moderno (não político) é um fenômeno ocidental. Os países que o adotaram têm sistemas legais comuns baseados no direito, em uma sociedade que entesoura o individualismo” 27. Em países como o Japão, o indivíduo não é tão importante quanto o grupo ao qual ele pertence, e isto é um padrão cultural aceito. Algo similar poderia ser dito sobre os romenos, por causa do passado comunista. Se, durante o comunismo, a polícia política de Ceausescu transformou muitos romenos em seus informantes, aqueles que querem fingir que o “disque denúncia” é errado podem usar esse passado como
26
DINU, C.; ION, R. PDL îl acuză pe ministrul Educaţiei, Ioan Mang, de plagiat şi îi cere demisia. Disponível em: http://www.gandul.info/politica/pdl-il-acuza-pe-ministrul-educatiei-ioan-mang-deplagiat-si-ii-cere-demisia-9608215. Acesso em: September, 2012. 27 DWORKIN; DAVIDSON, p. 10. 81 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
desculpa. O certo é que os romenos não podem ser acusados de excessivo “ocidentalismo” – uma análise posterior mais detalhada, baseada nas visões de Geert Hofstede, provará que o necessário individualismo é, culturalmente, quase impossível. Nós comprovamos, anteriormente, o fato de que, na Romênia, a influência política é essencial em campos externos à política, mesmo nos especiais, como a academia. O indivíduo tem uma forte sensação de que ele não pode vencer uma luta contra o “sistema”, na medida em que as instituições não estão funcionando objetivamente, razoavelmente, ou no interesse dos cidadãos... Este assim chamado “sistema” é uma mistura de poder político com um toque de falsa academia, e uma autêntica mentalidade criptocomunista não ocidental. O passado comunista seguido pela nova democracia criptocomunista (dos anos ’90) ofereceu uma lição amarga para qualquer um que fosse suficientemente ingênuo para esperar pela oportunidade de uma mudança positiva por meio do “disque denúncia”. Consequentemente, não chega a surpreender que os envolvidos nas “disque denúncias” dos casos de plágio de Ponta e Mang não fossem pessoas das universidades, mas, ao contrário, políticos. Este é um exemplo óbvio de que a ética acadêmica é algo que só funciona se houver um interesse político, enquanto os verdadeiros acadêmicos são desencorajados de um maior envolvimento no assunto. Pode ser seguro dizer que a dimensão cultural mais essencial da Romênia é a política. Não é um exagero dizer que ninguém teria se importado, se fosse um acadêmico a expor os dois plagiadores do governo romeno – isto significa o quanto a política está estruturada em nossos genes. É provavelmente prático dizer que ninguém no sistema educacional teria tido a coragem de “disque denunciar” o primeiro-ministro. Além disso, considerando quão partidarizada é a imprensa na Romênia, fora os políticos, ninguém seria capaz de sustentar tal história na mídia. O fato de as pessoas nas universidades, e na educação em geral, sentirem que o poder não está depositado naqueles que dizem a verdade, mas, ao contrário, naqueles que detêm a influência política, conduziu a uma aceitação derrotista e, eventualmente, a um sistema universitário corrupto, onde a competência não importava mais. Recentemente, nós da Gorjnews investigamos quantos dos professores que detêm altas posições administrativas nas universidades locais haviam plagiado. A conclusão é surpreendente: todos eles! Não obstante, nenhum de seus colegas jamais foi a público “disque denunciar”. Seria o medo da retaliação ou, talvez, o fato de que o 82 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
sistema pós-comunista não pode ser derrotado? É possível que os políticos tenham imposto seu poder a tal ponto sobre a academia romena que as pessoas achem que a honestidade não tem mais qualquer chance, enquanto a academia é reconstruída (o mesmo durante o comunismo) com incompetentes, mas pertencentes ao partido político que detém a maioria do parlamento? Se for isso o que acontece, trata-se de uma perigosa forma de corrupção, já que cria impostores no nível da educação, educadores cujo único valor é serem filiados ao poder político, logo, dispensados de desempenho. A reforma educacional Marga (19972000) relativizou completamente o sistema universitário, em nome do incremento no número de pessoas recebendo educação superior na Romênia (os números pareciam bons apenas nas estatísticas). O resultado imediato foi: a qualidade não importava mais, já que as decisões estavam sendo tomadas baseando-se na quantidade (que se tornou o critério para garantir apoio financeiro). A competência entre professores também começou a não importar mais. Esta é dimensão cultural real, em um bizarro sistema romeno, imposto por criptocomunistas no interior de limites democráticos, logo após a queda do comunismo na Romênia (1989). O efeito estranho, considerando a essência política de uma dimensão cultural nacional, é que está se tornando natural que “disque denunciantes” não consigam produzir uma mudança, a menos que os políticos tenham algum interesse nela. O “disque denúncia” é geralmente justificável se há “boas razões para esperar que a exposição não autorizada de informações confidenciais levará às mudanças apropriadas”
28
. Não é desta cultura politizada dos romenos a aceitação derrotista do
fato de que a mudança não é possível? Consequentemente, a virtude ou o erro de um assunto é decidido contextualmente, enquanto o papel de um “disque denunciante” seria considerado irrelevante em uma realidade contextual coerente... Não obstante, há implicações das decisões tomadas dentro deste contexto, implicações com efeitos. Ainda assim, o “disque denúncia” tem uma conexão com a dimensão cultural romena e o melhor teórico deste ponto de vista é Geert Hofstede.
6.
A visão “dimensional” de Hofstede sobre o “disque denúncia”
cultural. 28
KERNAGHAN, K.; LANGFORD, John W. The Responsible Public Servant. The Institute For Research on Public Policy, 1990. p. 100. 83 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A essência pós-comunista de países como a Romênia pode ser facilmente analisada baseando-se na primeira dimensão cultural de Hofstede – distância hierárquica. De acordo com esta primeira dimensão, em países com grande distância hierárquica, pode-se aceitar que o poder esteja “desigualmente distribuído entre os 29
indivíduos”
, consequentemente concordando com a centralização do poder e com a
liderança autocrática. Como foi mencionado antes, considerando a forte influência que o fator político tem tradicionalmente, na maioria das organizações públicas, o “disque denúncia” é algo que está mais próximo da loucura do que da razão em qualquer universidade pública da Romênia. Na maioria das vezes, mesmo como no caso do primeiro-ministro plagiário, nenhuma sanção foi feita contra aqueles expostos por malfeitos. Consequentemente, o “disque denunciante” se torna uma vítima exposta a possíveis retaliações. Seguindo as visões de Hofstede, quando se aborda o “disque denúncia” culturalmente, o clima ameno da Romênia poderia ser também uma causa/sinal da tolerância romena a uma distribuição desigual de poder e da não reação tão ácida aos malfeitos quanto os ocidentais. Assim, “quanto mais frio o clima, menor será a distância hierárquica”
30
. E a Romênia possui um clima ameno. A autoridade não é desafiada,
enquanto o grau de distância hierárquica permanece grande. Outra dimensão pela qual se pode ver acuradamente os romenos, quando se trata de “disque denúncia”, é a de evitar a incerteza. De acordo com esta última, devem-se obedecer as regras, para que as “pessoas possam estar nas organizações por toda a vida” 31. Esta mentalidade remonta ao comunismo, quando todas as instituições e companhias pertenciam ao governo. Os empregadores nas universidades romenas guiam-se pelo seguinte princípio: “A vida é estressante por causa de sua incerteza” 32. E aceitam o sistema tal como é imposto pelos detentores do poder. Eu imagino que este seja o sinal de uma verdade unilateral, quase ditatorial, que não dá margem para a flexibilidade que um “disque denunciante” requer (“culturas evitadoras de incerteza 29
Sem referência no original. (Nota do tradutor) MILNER, L.; FOODNESS, D.; SPEECE, M. W. “Hofstede’s Research and Cross-Cultural WorkRelated values: Implications for Consumer Behavior”. In: RAAIJ, W. Fred Van; BAMOSSY, Gary (Eds.). European Advanced in Consumer Research, Vol. I. Association for Consumer Research, 1993. p. 70-76. 31 Sem referência no original. (Nota do tradutor) 32 MILNER, L.; FOODNESS, D.; SPEECE, M. W. Hofstede’s Research and Cross-Cultural WorkRelated values, p. 70-76. 84 30
Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
acreditam em uma Verdade absoluta, e culturas aceitadoras de incerteza adotam uma posição mais relativista” 33). A visão oposta foi descrita por Bond e Hofstede em The Confucius Connection:
Culturas aceitadoras de incerteza são mais tolerantes com comportamentos e opiniões que diferem das suas próprias; elas tentam ter tão poucas regras quanto possível, e, no nível 34 filosófico e religioso, elas são relativistas, permitindo a muitas correntes fluir lado a lado .
O individualismo – outra dimensão cultural hofstediana – é específico de países afluentes, o que a Romênia não é. Logo, neste caso poder-se-ia falar de coletivismo – “uma preferência por uma trama social estreitamente costurada, na qual os indivíduos podem esperar que seus parentes, seu clã, ou outros de seus grupos de pertencimento cuidem deles em troca de uma lealdade inquestionável”
35
. Em tal
sociedade, a outra dimensão – masculinidade – é praticamente inexistente. Em conclusão, quando se trata de “disque denúncia” na Romênia, tem-se que olhar as dimensões culturais de Hofstede e levar em consideração o contexto sociopolítico, o qual possui todos os ingredientes pós-comunistas.
7.
Criando uma cultura de “disque denúncia”? Considerando seu passado comunista, totalitário, a Romênia é um país que
assume uma direção ocidental (no nível da propaganda), mas que age essencialmente como um país pós-comunista traumatizado. “Disque denúncia” é um conceito ocidental que está acomodado no contexto romeno em nível discursivo, mas que, na prática, raramente prova a sua eficiência, pragmaticamente. Desde a era comunista, o fator político é o decisivo em qualquer sistema. Esta mentalidade alcançou as gerações mais novas, e com isso ele ainda é algo presente em vários sistemas da Romênia de hoje. Como consequência, as mais importantes figuras públicas possuem um forte passado e mentalidade comunistas, e sua influência os permite penetrar quaisquer sistemas e subjugá-los, reorganizando-os em torno de si próprios. 33
HOFSTEDE, G.; BOND, M. H. “The Confucius Connection: From Cultural Roots to Economic Growth”. In: Organizational Dynamics, Vol. 16, No. 4, 4-21. s/d. p. 19 34 HOFSTEDE, G., BOND, M. H., The Confucius Connection, p. 11 35 HOFSTEDE, G. “Cultural Dimensions in Management and Planning”. In: Asia Pacific Journal of Management, January, 81-99, 1984b. p. 83 85 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
O mesmo aconteceu com a educação e é muito óbvio quando se fala do sistema universitário: nenhuma universidade romena está classificada entre as primeiras 600 do mundo. Isto não significa que não haja professores e pesquisadores extraordinários, ou que os estudantes não sejam muito competitivos, mas, de outro modo, tem muito a ver com o fato de que o progresso não é permitido pelas mesmíssimas pessoas que nós mencionamos antes – as personalidades comunistas criadoras da Romênia “capitalista”. A qualidade não é mais algo objetivo, mas, ao contrário, algo ditado pelo líder alfa. É irônico que uma das mais importantes figuras da educação e da propaganda comunistas, o doutor Andrei Marga (e atualmente há um forte debate sobre ele e sobre a possibilidade de que possa ter colaborado com a polícia política repressiva comunista), fosse aquele que teve a pretensão de reformar a educação romena em fins dos anos ’90, enquanto era secretário de educação. O resultado desta reforma é um sistema educacional medíocre. Naturalmente, isto é razoavelmente discutível, já que há apoiadores e inimigos de suas visões reformistas, mas as análises internacionais provam que os resultados não foram satisfatórios. Não obstante, a ironia permanece, na medida em que o autoproclamado “reformista” da educação romena é um indivíduo publicamente reconhecido por suas profundas raízes comunistas – o senhor Marga é ex-professor de marxismo na Romênia comunista. Ele é sintomático da mediocridade e falsidade da sociedade romena, tanto quanto da inexistente cultura do “disque denúncia”. Finalmente, talvez fosse possível relevar o fato de que algumas/a maioria das figuras públicas teve um passado oportunista/comunista, caso elas fossem objetivamente destacadas, apesar do sistema em que foram criadas. A questão desta tipologia das figuras públicas (dispersadas por muitos sistemas públicos na Romênia) com relação ao progresso social é que elas importaram práticas não democráticas do comunismo, praticamente forçando a realidade capitalista a lidar com e a se ajustar à essência comunista, em vez do oposto. Por exemplo, no caso de Marga, ele é famoso por ter abusado do estatuto que limitava os mandatos legalmente permitidos aos reitores da Universidade Babes-Bolyai, de Cluj, Romênia. Do mesmo modo que ditadores em qualquer país não democrático, ele manteve o poder nessa universidade por quase 20 anos. Quando alguém faz isso em uma universidade de um país democrático, pode-se especular que essa pessoa não tem qualquer respeito pela democracia. Por todo esse tempo, houve pessoas “disque 86 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
denunciando” tal abuso, mas isto não importou, já que o relógio “interior” da Romênia pós-comunista não era ocidental. O único resultado foi o desencorajamento do “disque denúncia” e, assim, da mentalidade do fazer a coisa certa. Somando-se a isto a conclusão objetiva de que, para algumas pessoas, a lei e a decência não importariam (por exemplo, para reitores que abusaram da duração de seus mandatos, para primeiros-ministros, para quem o plágio é tolerável), as dimensões culturais hofstedianas se tornaram consolidadas (a distância hierárquica, o evitar a incerteza, o individualismo): todas elas se aplicam a indivíduos que aprenderam da forma mais dura que fazer a coisa certa mais leva alguém à punição do que à recompensa. Além disso, que as leis e normas não importam, já que há pessoas que estão acima da lei. Consequentemente, qualquer “disque denunciante” é considerado um “dedo duro”, enquanto a visão geral é a de que a lealdade para com a organização é mais importante, que o malfeito é relativo e que todos os que têm poder no sistema público da Romênia são tolerados enquanto o fazem. Não é esta a verdadeira definição da distância hierárquica hofstediana? Tudo isto deveria ser levado em consideração, quando pensamos em modos de impor uma cultura de “disque denúncia” em um país como a Romênia. Quando lemos visões sobre o assunto, como a de Lilanthi Ravishankar
36
, podemos facilmente
visualizar o papel dos valores e da cultura, em geral, numa compreensão hofstediana, tanto quanto a importância da história e de como ela influenciou os indivíduos. Um dos subtítulos do texto de Ravishankar sugere que “pode-se evitar o ‘disque denúncia’ ao encorajá-lo”. Isto funcionaria em um sólido contexto ocidental, bem estabelecido, mas não no caótico sistema romeno, por razões enfatizadas previamente. Toda a visão de Ravishankar seria aceitável na Romênia, mas não teria qualquer efeito num país onde há boas leias, mas que são aplicadas apenas erraticamente. Em conclusão, em um país onde os valores ocidentais não estão bem estabelecidos, conceitos e valores essenciais do Ocidente são aceitos, na teoria, mas não são aplicados na prática. O pano de fundo cultural é aquilo que torna possível que qualquer conceito progressista seja abraçado e tornado funcional. O próprio progresso da sociedade é retardado pelo caos de opções, criando uma mistura autobloqueadora de pós-comunismo, comunismo, capitalismo, democracia, Oriente, Ocidente. Não escolher
36
RAVISHANKAR, L. Encouraging Internal Whistleblowing in Organizations. Disponível em: http://www.scu.edu/ethics/publications/submitted/whistleblowing.html, Markkula Center for Applied Ethics, Santa Clara University, 2003. 87 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
uma direção clara e decidida e, em vez disso, contextualizar excessivamente, trava o progresso em um círculo vicioso. Tal incerteza é uma causa de mediocridade, como no caso da educação pública, especialmente no nível universitário. Por último, devido ao seu passado comunista, já que a Romênia cria contextos organizados em torno de machos alfas (em vez de um sistema independente de um líder), seu progresso rumo ao Ocidente permanece duvidoso, e uma cultura do “disque denúncia” não pode ser implantada. Ao contrário, uma cultura anti “disque denúncia” é muito funcional e coerente com uma mentalidade derrotista, baseada na distância hierárquica hofstediana. O evitar a incerteza em uma instituição pública na Romênia é equivalente a aceitar um tipo único de individualismo: aquele do líder, a quem o rebanho
dá
suficiente
poder
administrativo/político/institucional
para
retaliar
drasticamente qualquer empregado suficientemente individualista para “disque denunciar” um possível caso de malfeito. Tradução: Aldir Araújo Carvalho Filho37
REFERÊNCIAS
ALFORD, Fred C. - Whistleblowers: Broken Lives and Organizational Power, Cornell University Press, 2001. CUTEANU, C. - Externele, pe mâna adepților lui Putin: Marga și Gorun, http://www.gorjnews.ro/slider/externele-pe-mana-adep%C8%9Bilor-lui-putinmarga-%C8%99i-gorun.html, May 2012. DINU, C., ION, R. - PDL îl acuză pe ministrul Educaţiei, Ioan Mang, de plagiat şi îi cere demisia, http://www.gandul.info/politica/pdl-il-acuza-pe-ministrul-educatieiioan-mang-de-plagiat-si-ii-cere-demisia-9608215, Gandul, 5/9/2012. DWORKIN, T.M., DAVIDSON, W. - Whistleblowing, MNC’s and Peace, Working Paper Number 437, February 2002. HOFSTEDE, G. - Cultures Consequences: International Differences in WorkRelated Values (Cross Cultural Research and Methodology), SAGE Publications, 1980. HOFSTEDE, G., BOND, M. H. – The Confucius Connection: From Cultural Roots to Economic Growth, Organizational Dynamics, Vol. 16, No. 4, 4-21. HOFSTEDE, Geert - Cultural Dimensions in Management and Planning, Asia Pacific Journal of Management, January, 81-99, 1984b. 37
Tradução: ALDIR ARAÚJO CARVALHO FILHO, Doutor em Filosofia, Professor do Colégio Pedro II (RJ), Docente permanente do PPG em Ética e Epistemologia da Universidade Federal do Piauí, professor visitante do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Maranhão, membro do GT Pragmatismo e Filosofia Americana (ANPOF) e membro do conselho editorial da Revista Redescrições. Concluída em São Luís (MA), em 13 de fevereiro de 2013 88 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
KERNAGHAN, K.., LANGFORD, John W. - The Responsible Public Servant, The Institute For Research on Public Policy, 1990. MICELI, Marcia P.& NEAR, Janet Pollex - Whistle-blowing in organization, 2008, Routledge- Taylor and Francis Group. MILNER, L., FOODNESS, D., SPEECE, M. W. – Hofstede’s Research and CrossCultural Work-Related values: Implications for Consumer Behavior, in European Advanced in Consumer Research, Vol. I, eds. W. Fred Van Raaij and Gary Bamossy, European Advance in Consumer research, Vol 1, Association for Consumer Research, 1993. RAVISHANKAR, L. – Encouraging Internal Whistleblowing in Organizations, http://www.scu.edu/ethics/publications/submitted/whistleblowing.html, Markkula Center for Applied Ethics, Santa Clara University, 2003. ROSE, R. & MISHLER, W. & HAERPFER, C. – Democrația și alternativele ei, Institutul European, 2003. SCHIERMEIER, Q. – Romanian Prime-minister accused of plagiarism, Nature, International Journal of Science, June 18th, 2012, http://www.nature.com/news/romanian-prime-minister-accused-of-plagiarism1.10845. .
89 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
ASPECTOS DA EXPRESSÃO DAS ARTES CÔMICAS DA ERA CLÁSSICA Fabio Mourilhe
RESUMO Este trabalho tem por objetivo avaliar a relação existente entre as artes cômicas, anteriores aos quadrinhos, realizadas na era clássica (entre os séculos XVII e XVIII) de modo a verificar a influencia desta era sobre estas artes. Aqui, são comparadas as linguagens características desta era clássica (e também certos aspectos do renascimento e era moderna) conforme a descrição apresentada por Foucault em “Palavras e as coisas” e a prática apresentada nas artes cômicas da mesma época. Verificou-se na linguagem destas artes cômicas, de uma forma geral, uma estrutura muito mais aberta em relação àquela utilizada na era clássica, em função da preponderância de uma imagem pautada pela representação grotesca. Palavras-chave: Artes cômicas. Era clássica. Gramática. Epistemologia.
ABSTRACT This study aims to evaluate the relationship between the comic arts, prior to comics, performed in the classical era (between the seventeenth and eighteenth centuries) in order to check the presence of this era over this kind of art. Here, the languages that characterize this classic era (and also some aspects of the Renaissance and the modern era) are compared, according to the description presented by Foucault in “The Order of Things: An Archaeology of the Human Sciences” and the practice perceived in the comic arts of this classical era. It was found in the language of these comic arts, in general, a much more outgoing structure compared to that used in the classic age, due to the preponderance of the grotesque representation in its image. Key-words: Comic arts. Classical era. Grammar. Epistemology.
1.Introdução Este trabalho surgiu a partir da necessidade de avaliação das artes cômicas da era clássica, como expressão própria decorrente de uma pragmática que as caracteriza e que vai além de um modelo linguístico e de uma gramática. A partir da delimitação desta expressão, coloca-se em questão se uma determinação histórica das práticas epistemológicas que caracterizaram a era clássica poderia ser sentida na prática das artes cômicas caracterizadas pelo grotesco, sátira e deboche. Temos aqui como hipótese que “as artes cômicas da era clássica se desdobram 90 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
sem uma ordem prevista de antemão graças ao privilegio de uma critica social e política e uma estética grotesca”.
2.Linguagem da era clássica e artes cômicas A linguagem da era clássica (séculos XVII e XVIII) apresentava uma ênfase na soberania das palavras, representações soberanas na representação do pensamento e na representação de si mesmo (linguagem e palavra), se desdobrando e se refletindo em outras representações equivalentes, um processo interno de onde emergia o sentido. Temos, então, uma linguagem em que a representação se estabelece consigo mesma e com o pensamento (Foucault, 1966, pp.107-108). Na linguagem das artes cômicas – composições gráficas e textuais, sequenciais ou não da era clássica, com os originais gravados em chapas de metal, coletados em álbuns ou distribuídos individualmente, com extrema popularidade – temos características próprias que transcendem a formatação organizada da linguagem da época com composições através de imagens (sem a estruturação exclusiva da representação linguística), que junto ao uso de palavras que repetem a ação das imagens ou as comentam, ou seja, o que se estabelece consigo na linguagem das artes cômicas faz parte de uma linguagem com uma estrutura muito mais aberta do que aquela vigente na linguagem utilizada na gramática clássica (tal qual se estabeleceu com a ordenação e estruturação das palavras), sem convenções estritas de como se deve desenhar (excetuando a teoria apresentada por Hogarth (1753)), com expressões equivalentes de sentido através de imagens inspiradas no grotesco (principalmente advindos de Bosch e Brueghel) ou em alegorias, podendo apontar para uma multiplicidade de direções. Apresenta-se o pensamento não através de uma simples palavra, mas de jogos entre imagens e palavras que se articulam mutuamente. De forma diferente da era clássica, a linguagem no renascimento (século XVI) estava restrita a uma erudição de poucos, que comentavam (postura de eterno comentário), em espaço igualmente restrito (manuscritos e folhas de livros) com siglas e marcas indecifráveis para a maioria. Estes sinais estavam misturados a todas as coisas. “O enigma de uma palavra que uma segunda linguagem deve interpretar” (Foucault, 1966, pp.108-109). Esta linguagem do renascimento de certa forma se manteve na linguagem das
91 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
artes cômicas da era clássica, tanto pela semelhança de sua composição, com imagens e texto, como por seu caráter enigmático e restrito a poucos (principalmente em Arcimboldo (Figura 1)), na medida em que nas artes cômicas criticavam não só a si mesmos, mas principalmente a sociedade, realeza e os costumes; críticas nem sempre compreendidas.
Figura 1- Primavera, casa do amor – Arcimboldo.
Com as artes cômicas da era clássica, conforme visto, o caráter enigmático não é retirado das palavras, em expressões com palavras e desenhos que se desenvolvem nos signos verbais e visuais. Porém, de forma semelhante à gramática imposta pela era clássica, os signos textuais desdobram a linguagem em uma ordem visível e um caráter exotérico (destinado a um grande público) é mantido em seu discurso. Tendo o discurso como objeto da linguagem, trata-se de saber como o discurso das artes cômicas funciona, o que é designado, quais elementos são recortados. Aqui, temos um panorama político específico com um discurso que, considerando as imagens, não estava preso aos limites de análise e composição da gramática clássica, nem em seu esquema de substituição limitada a palavras sinônimos envolvidas em uma representação. Na era clássica, o comentário e a interpretação deram lugar à crítica, mas, nas artes cômicas, temos não uma predominância da crítica a sua própria estrutura e linguagem, mas uma interpretação social e política do cenário que se desenrolava na vida cotidiana, 92 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
possibilitando a veiculação de toda uma pragmática própria. Tanto nos impressos ilustrados do período medievo quanto nas artes cômicas da era clássica, temos a exposição de significados ocultos que demandavam uma decifração. A crítica presente na linguagem da era clássica interroga a linguagem como se ela fosse uma “pura função” e conjunto de signos, mas ambiguamente não consegue deixar de considerar o “modo de presença” do que se diz, sua verdade ou mentira, opacidade ou transparência. Nas artes cômicas da época, contudo, o conjunto de signos envolvia uma multiplicidade não prevista em conjuntos estruturados de palavras, deixando de lado a necessidade de se manter um modo exato de apresentação, e sim de uma caricatura, simulacro com ares grotescos (como vemos em Jacques Callot (15921635) (Figura 2)), que antes da escola inglesa (Hogarth, Rowlandson (1756 -1827)) prevaleceu. O conteúdo, contudo, tinha uma preocupação com uma tentativa de se atingir uma verdade e transparência do que se diz, uma preocupação ética, com os aspectos visuais indicando fatos e personagens cotidianos através de distorções caricaturais, mesmo em outros de origem inglesa, como Gillray (1757 – 1815) e Cruikshank (1792 – 1878), onde se salientava o ridículo (Figura 3). Assim, as artes cômicas, com uma segunda linguagem por cima da outra, ou melhor, apenas um efeito, do texto ou da imagem, no limite que se dá na extensão de uma sobre a outra, em certa medida se assemelha ao que se deu com a literatura no século XIX, com uma ênfase na interpretação e no comentário.
Figura 2- Jacques Callot - Gobbi
Figura 3- A voluptuary under the horrors of digestion - James Gillray. 93 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Nas artes cômicas da era clássica, um conteúdo crítico vem associado a sua expressão, mas sem uma preocupação com o modo pelo qual se diz, diferente do papel representacional assumido pela linguagem da era clássica que tenta assumir toda diversidade possível da linguagem na representação. A linguagem que começa a ser delineada nas artes cômicas permite a apresentação de toda multiplicidade possível através de desenho e texto, sem que seja necessário estipular de antemão todas as combinações possíveis de seu vocabulário, sem a imposição de uma ordem reflexiva, gramática e retórica. Em termos artísticos, aquele que mais se aproxima desta proposta (não condizente com a proposta das artes cômicas da época) é William Hogarth no século XVIII com o seu “Análise da beleza” (1753). As imagens que acompanham “Análise da beleza” mostram referências a áreas e estilos diversos, e também a transformação progressiva de certos motivos e formas, como objetos, matizes de cor, degradês, traços e a evolução de uma representação figurativa clássica da face até sua versão caricata (Figura 4). Contudo, os temas retratados se afastam de um caráter essencialista.
Figura 4- The analysis of beauty- William Hogarth 94 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A ordem reflexiva indica a relação da gramática com uma tentativa de universalizá-la, considerando a possibilidade de língua ou discurso universal, mostrando uma prática comum a alguns teóricos que estudam os quadrinhos atualmente, como Groensteen. Esta língua teria o poder de atribuir a cada representação (e a cada elemento que a compõe) um signo marcado de modo único. Mostra também como estes elementos da representação são compostos e como são ligados uns aos outros, mostrando todas as ordens possíveis. “Ao mesmo tempo, característica e combinatória” (Foucault, Ibid, pp.116-117). Este objetivo de estruturação máxima do mundo se faz sentir de forma concreta nas enciclopédias, uma tentativa de recolher entre as palavras a totalidade do mundo. Nesta estruturação, conhecimento e linguagem estão imbricados, tendo a representação como origem e princípio de funcionamento, se apoiando e se criticando mutuamente em um mesmo movimento. Envolvem uma linguagem que analisa a “simultaneidade da representação, em distinguir-lhe os elementos, em estabelecer as relações que os combinam, as sucessões possíveis segundo as quais podemos desenvolvê-los”; e ao mesmo tempo um conhecimento que aparece com toda clareza. Uma ordem analítica estrita (Ibid, pp.120-121). A dependência entre saber e linguagem será desfeita com a literatura no século XIX, quando o saber volta a ser fechado e a linguagem passa a ser tratada de forma pura (sua essência e função) e enigmática. E entre saber e linguagem se desenvolvem linguagens intermediarias e derivadas. A estruturação que se enfatiza com a linguagem da era clássica também passa pelo formato da cópula e da proposição, objeto essencial da gramática e primazia formal do juízo, com seu sujeito, atributo e ligação, tendo esta ligação (verbo – uma palavra entre palavras) como condição para o discurso e o discurso como indicação para o pensamento clássico de que existe linguagem. A análise das palavras continua no século XIX através da filologia, porém com a literatura que emerge na mesma época, temos a ideia de que,
(...) destruindo as palavras, não são nem ruídos nem puros elementos arbitrários que se reencontram, mas outras palavras que, pulverizadas por sua vez, liberam outras — essa ideia é ao mesmo tempo o negativo de toda a ciência moderna das línguas e o mito no qual transcrevemos os mais obscuros poderes da linguagem, e os mais reais (Foucault, 1966, p.145).
Deleuze & Guattari (1980, pp.12-13) mostram uma pulverização de palavras, na situação sugerida por Lewis Carrol, na qual o professor lança uma questão do alto da 95 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
escadaria, que é transmitida pelos valetes que a deformam a cada degrau, ao passo que o aluno, embaixo, no pátio, envia uma resposta, ela mesma deformada, a cada etapa da subida. Contudo, a representação distorcida através das imagens das artes cômicas não é uma prática que prevalece de uma forma geral em outras artes, discursos e textos. Enquanto a linguagem estiver presa à representação (palavra ou marcas), as linguagens segundas estarão presas às alternativas entre crítica e comentário, “proliferando-se ao infinito na sua indecisão” (Foucault, 1966, p.112). A dificuldade de se estabelecer uma relação entre gramática da era clássica e as artes cômicas da época parece indicar a tarefa de tentar organizar o que poderia ser uma gramática destas artes cômicas como secundária (e inútil).
3.Conclusão Para as artes cômicas da era clássica, temos uma articulação que permite uma expressão própria que não está ligada necessariamente a modelos linguísticos e da gramática, mas decorre dos corpos relacionados e de toda a pragmática advinda de influências culturais, tecnológicas e de suporte que estão sempre em devir. Uma determinação histórica das práticas epistemológicas já se mostra problemática nas ilustrações humorísticas anteriores aos quadrinhos, considerando as distinções entre as práticas realizadas nestas ilustrações e na linguagem da era clássica, pois estas ilustrações, apesar de trazerem aspectos que ecoam na linguagem da era clássica, são pautadas pelo grotesco, sátira e deboche. Em termos de imagem (imagem que neste caso é soberana), as artes cômicas possibilitam um desdobramento de significado que não está previsto de uma forma estrita em um dicionário e não existe uma ordem correta para a apresentação dos elementos, como se dá na gramática em relação à linguagem textual, pois se trata de uma grande imagem “aberta”, de forma semelhante ao que ocorreu em Yellow Kid. Esta estrutura mais aberta pode ser articulada em uma série de efeitos, junto ao grotesco, a sátira e o deboche que serviram não apenas como autocrítica a sua própria linguagem, mas como crítica social e política. Além disso, as artes cômicas da era clássica, ao mesmo tempo em que traziam um caráter exotérico (pela utilização de imagens em alguns casos realistas ou com um significado óbvio), se atinham também a 96 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
um caráter hermético (pelas simbologias e alegorias utilizadas), pautando-se assim pela diversidade, cabendo inclusive uma separação onde uma linguagem mais próxima àquela da era clássica poderia ser pensada apenas tardiamente a partir de Hogarth, porém, mesmo neste artista, temos uma crítica para além de uma autocrítica à própria linguagem. As primeiras artes cômicas da era clássica, por sua vez, já se aproximam da linguagem que emerge com a literatura (e sua narrativa própria pautada por outras linguagens em sua superfície), pela desconexão promovida através da estética grotesca e alegorias.
REFERÊNCIAS Deleuze, Gilles. Guattari, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia vol.2. São Paulo: Editora 34, 1995 (1980). Foucault, Michel. As palavras e as coisas, São Paulo: Martins Fontes, 1999 (1966). Hogarth, William. The Analysis of Beauty. London: John Reeves, 1753.
97 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Tradução
98 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA Noël Carroll1
Se por “tecnologia” significamos aquilo que aumenta nossos poderes naturais, em especial aqueles de produção, então a questão da relação da arte com a tecnologia é perene. Entretanto, se temos em mente uma concepção mais estrita de tecnologia, a que faz parte da produção em massa rotineira e automática de múltiplos exemplares do mesmo produto – sejam eles carros ou camisetas – então a questão da relação da arte com a tecnologia é premente para nosso século. Pois especialmente em nosso século o comércio com a arte se fez cada vez mais mediado por tecnologias no sentido estrito (produção/distribuição em massa) do termo. Uma tecnologia no sentido lato é um instrumento protético que amplia nossos poderes 2. Nesse sentido, as tecnologias que marcam a revolução industrial são próteses de próteses, aumentando o alcance de nossos já alargados poderes de produção e distribuição por meio da automatização de nossos recursos técnicos de primeira ordem. Chamemos tais tecnologias de “tecnologias de massa”. O desenvolvimento das tecnologias de massa inaugurou uma era da arte de massa, obras de arte encarnadas em múltiplas instâncias e disseminadas largamente através do tempo e do espaço. Hoje em dia é lugar comum notar que vivemos em um meio dominado pela arte de massa – quer dizer, dominado pela televisão, cinema, música popular (gravada e transmitida), romances de sucesso absoluto na lista dos mais vendidos, fotografia e por aí vai. Sem dúvida, essa condição é mais acentuada no mundo industrializado, onde a arte de massa, ou se preferir, entretenimento massificado, é provavelmente a forma mais comum de experiência estética para a maioria das pessoas 3. Mas a arte de massa 1
Texto cedido pelo autor para publicação na Revista Redescrições. Originalmente publicado em: The Journal of Aesthetics and Art Criticism, Vol. 55, n. 2, Perspectives on the Arts and Technology (Spring, 1977), 187-199. 2 Patrick Maynard, “Photo-Opportunity: Photography as Technology” The Canadian Review of American Studies 22 (1991): 505-506. 3 Eu prefiro o termo “arte de massa” a “entretenimento”, uma vez que o fenômeno que estou discutindo neste artigo obviamente proveio de artes e gêneros bem conhecidos como o drama, o romance, a pintura a óleo. O termo “entretenimento”, para especificá-lo, é muito mais solto do que o termo “arte”. Além disso, ao estipular que minha preocupação é com arte de massa, estou excluindo de minha investigação os gêneros da “mass media” (mídia de massa), como noticiários de televisão e eventos esportivos, que não provêm das artes. 99 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
também penetrou o mundo não industrial a tal ponto que em muitos lugares algo como uma cultura global de massa passou a coexistir, com o que Todd Gitlin chamou de uma segunda cultura, paralela às culturas indígenas e às tradicionais. De fato, em alguns casos, essa segunda cultura em certos países do terceiro mundo até mesmo erodiu a cultura primitiva. De qualquer modo, está se tornando cada vez mais raro encontrar povos em algum lugar do mundo hoje que não tenham alguma exposição à arte massificada como resultado da divulgação de tecnologias de massa. Da mesma forma não há sinal de afrouxamento no controle da arte de massa. Mesmo agora, os sonhos de cabos de conexão penetrando em cada casa encantam os magnatas da mídia, enquanto Hollywood produz filmes em ritmo frenético, não apenas para vender ao mercado, mas também a fim de sustentar uma despensa capaz de satisfazer os apetites vorazes dos centros de diversão domésticos cuja evolução em futuro próximo foi predita. Propriedades intelectuais de todo tipo estão sendo produzidas e adquiridas em ritmo delirante na expectativa de que as futuras tecnologias de mídia que estão por vir demandarão uma quantidade simplesmente colossal de produtos para transmitir. Assim, em todo caso, podemos antecipar mais arte de massa em toda parte do que nunca antes. Entretanto, apesar da inegável relevância da arte de massa para a experiência estética no mundo tal como o conhecemos, a arte de massa tem recebido pouca atenção nas recentes filosofias da arte, que parecem mais preocupadas com a arte contemporânea de alto nível, ou mais precisamente, a arte de vanguarda. Dada essa lacuna, o propósito do presente artigo é chamar a atenção dos filósofos da arte para questões concernentes à arte de massa, um fenômeno que já se faz notar pela atenção generalizada. A questão particular que eu gostaria de abordar aqui concerne à ontologia da arte de massa – a questão do modo como a arte de massa existe. Ou, isso dito de outro modo, eu tentarei especificar o status ontológico das obras de arte de massa. Mas, antes de discutir o status ontológico da arte de massa, será proveitoso esclarecer o que eu entendo que seja a arte de massa. Assim, no que segue, tentarei primeiro definir as condições necessárias e suficientes para pertencer à categoria de arte de massa. Em seguida, introduzirei uma teoria sobre o status ontológico da arte de massa. E, finalmente, considerarei certas objeções às minhas teorias.
100 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
I.
A DEFINIÇÃO DE ARTE DE MASSA Talvez a questão básica que surge com relação à minha abordagem de arte de
massa concerne minha razão para chamar o fenômeno sob análise “arte de massa” ao invés de, digamos, “arte popular”.4 Minha preocupação a esse respeito é bastante simples. “Arte popular” é um termo ahistórico. Se pensarmos na arte popular como arte das classes mais baixas, então, provavelmente, cada cultura na qual apareceram divisões de classe, nelas existiu alguma arte popular. De outro lado, se consideramos arte popular como arte que muitos em dada cultura usufruem, então, espera-se que toda cultura tenha alguma arte popular. Mas o que se chama de “arte de massa” não existiu em todo lugar através da história humana. O tipo de arte – de que cinema, fotografia e rock fornecem exemplos típicos – prolifera na cultura contemporânea, tem certa especificidade histórica. Ela surgiu no contexto da sociedade industrial moderna, sociedade de massa, e é expressamente destinada para uso dessa sociedade, justamente empregando forças produtivas características dela, tais como tecnologias de massa, a fim de levar a arte para enormes populações consumidoras. Arte de massa, diferentemente de arte popular pura e simples, não é o tipo de arte que possa ser encontrada em qualquer sociedade. É a arte de massa, da sociedade industrial, e se destina às finalidades dessas sociedades. Sem dúvida, apesar de arte de massa ser uma categoria historicamente específica, não se pode datar seu advento com grande precisão. A própria sociedade de massa começa a emergir gradualmente com a evolução do capitalismo, da urbanização e industrialização, e a arte de massa se desenvolve conjuntamente, surgindo já com as primeiras tecnologias de informação de massa, como a imprensa, que também possibilitou a popularização de gêneros de arte de massa como o romance. À medida que a industrialização e as tecnologias da informação que são parte e fruto delas expandiam, se somaram a fotografia, o cinema, o rádio, as telecomunicações e agora a informática se acrescentou à imprensa de modo que a arte produzida e disseminada tecnologicamente, progressivamente se tornou a marca de uma época que começa em fins do século 19 e prossegue com intensidade exponencialmente crescente ao longo do século 21. 4
Para defesas mais elaboradas da definição de arte de massa proposta nesta seção ver: Noël Carroll, “The Nature of Mass Art” (“A Natureza da Arte de Massa”) e “Mass Art” (“Arte de Massa”), “High Art and the Avant-Garde: a Response to David Novitz”, (“Arte Superior e a Vanguarda: uma Resposta a David Novitz”), in: 1922: Philosophic Exchange (Brockport, New York: Center for Philosophic Exchange, State University of New York, College at Brockport, 1993). 101 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A arte de massa, em resumo, destina-se ao consumo de massa. Destina-se a ser consumida por amplo número de pessoas. Isso porque a arte de massa possibilita o consumo simultâneo do mesmo artefato por audiências frequentemente separadas por largas distâncias. O vaudeville era uma arte popular, mas não arte de massa pela óbvia razão de que no circuito do vaudeville, um W. C. Fields poderia apenas se dirigir a uma audiência limitada a um teatro e a um transcurso de tempo. Entretanto, quando ele traduziu seus roteiros para o cinema, ele pode “atuar” como artista e diretor em Peoria, Londres e mesmo na Filadélfia ao mesmo tempo. Como este exemplo indica, ao recusar em rotular esse fenômeno como arte popular, eu não nego que há muitas vezes uma conexão histórica entre arte popular, em sentido lato, e arte de massa. Com bastante frequência, a arte de massa evolui a partir de arte popular já existente. As baladas, primeiramente divulgadas por meio de performances ao vivo e preservadas na memória, por sua vez, deram lugar a partituras de baladas e de música, e, recentemente evoluíram para discos. Shows grotescos de carnaval talvez tenham dado origem a filmes de terror, enquanto os dramas de teatro do século 19 proporcionaram um repertório de histórias e técnicas de que foram extraídos os primeiros filmes, do mesmo modo contar histórias, brincadeiras estilizadas e brincadeiras em geral, e, finalmente, a comédia stand-up são as fontes de muitos shows da TV, para não mencionar as comédias de costume (sitcoms). Mas, é claro, nem todas as formas tradicionais de entretenimento popular, em sentido lato, evoluíram para formas da arte de massa. Briga de galo, por exemplo, não encontrou lugar na arte de massa. E a arte de massa desenvolveu certas formas que não evidenciam nenhuma dívida com as artes populares tradicionais. Por exemplo, a música em vídeo deve sua herança à arte de massa pré-existente como o filme. Em suma, apesar de toda arte de massa dever pertencer à classe de arte popular mais ampla e ahistórica, nem toda arte popular é arte de massa. Ex hypothesi, o que distingue a arte de massa da classe mais ampla da arte popular ahistórica é, como o rótulo “arte de massa” indica, que ela é produzida e disseminada por meios de tecnologias industriais de massa, tecnologias capazes de reproduzir múltiplas instâncias ou signos de produtos da arte de massa até pontos de recepção distantes um do outro. Como a manufatura em massa de automóveis, a arte de massa é uma forma de produção e distribuição destinada a dispor uma multiplicidade de
102 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
artes para audiências de consumo de massa geograficamente remotas.5 Arte de massa é a arte da sociedade de massa, dirigida a audiências de massas por meio do que as tecnologias de massa permitem. Arte de massa é produzida e distribuída pelos mass media (mídias de massas). Essas mídias chamadas de massa fazem com que seus produtos sejam acessíveis simultaneamente a vastas audiências mesmo se não comandam realmente grandes audiências. A TV foi um meio de comunicação de massa neste sentido antes que um grande número de pessoas possuísse aparelhos de TV6. Os produtos da arte de massa são, em princípio, produzidos para uma pluralidade de receptores e a tecnologia de massa contribui para a realização dessa finalidade por meio da extensão “da viabilização de formas simbólicas no espaço e no tempo”, como propõe John B. Thompson7. Entretanto, apesar de a produção e distribuição pela mídia de tecnologias de massa representar uma condição necessária à arte de massa, é insuficiente identificar um candidato à produção artística de massa, pois obras de vanguarda podem também ser produzidas e distribuídas pelas tecnologias de massa. Robert Ashley usa as mesmas tecnologias de transmissão e gravação sonora que Rolling Stones e Madonna usam, enquanto cineastas como Michael Snow e Jean Luc Godard fazem uso do mesmo aparato de filmagem que David O. Selznick e Victor Fleming usaram em sua produção de E o Vento Levou. Ainda assim, claramente, obras de vanguarda, quando produzidas por meios de mídia de massa, não são propriamente obras de arte, pois elas não se destinam ao consumo de um público de massa. Com frequência, elas são expressamente destinadas para confundir o público de massa – para ultrajar a sensibilidade burguesa – e mesmo quando não há essa intenção explícita, elas invariavelmente produzem esse efeito, pois é uma condição necessária para ser vanguarda que as obras em questão subvertam ou, pelo menos, vão além das expectativas convencionais. Obras de vanguarda não se prestam para o acesso imediato ao público de massa. Supõe-se que elas desafiem ou transgridam a compreensão comum e as expectativas que esse tipo de público consumidor tem com relação às formas de arte relevantes. Isso não significa que uma obra de vanguarda não possa se tornar um 5
É interessante notar que o rádio tal como concebido por Marconi, era transmitido de um ponto a outro apenas. A noção de múltiplas recepções foi inventada por DeForest. Devo essa observação a Patrick Maynard. 6 De modo similar, músicas country contam como forma de arte de massa, mesmo se poucas pessoas a ouvem. 7 THOMPSON John B., Ideology and Modern Culture: Critical Social Theory in the Era of Mass Communication (Ideologia e Cultura Moderna: Teoria Social Crítica na Era da Comunicação de Massa): Stanford University Press, 1990, p. 221. 103 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
sucesso editorial: Versos Satânicos de Salman Rushdie foi um sucesso. Entretanto, a explicação neste caso tem mais a ver com o fato de pessoas em lugares como Iowa se recusaram, desafiadoramente, a permitir que um ditador iraniano diga a elas o que devem ler, e menos à apreciação das estratégias narrativas disjuntivas de Rushdie. De fato, eu suponho que o livro de Rushdie, apesar do sucesso de vendagem, não foi lido na mesma proporção. Pois para ser lido com compreensão e apreciação, Versos Satânicos requer uma bagagem de história e de teoria da literatura e do discurso relatado de sujeito dividido, que não estão na ponta da língua da maioria do público leitor de língua inglesa. As Pontes de Madison (para ficar em Iowa) é uma obra de arte de massa, mas Versos Satânicos não. Qual é a diferença? O primeiro foi feito para ser acessível ao público leitor de massa e o último não. Se fossem equivalentes, qualquer consumidor deveria ser capaz de compreender As Pontes de Madison sem nenhum estofo especializado, a não ser a habilidade de ler e um domínio rudimentar da prática da ficção. Versos Satânicos, ao contrário, requer um preparo especial para ser compreendido, apesar de, é claro, esse preparo poder ser adquirido autodidaticamente. Obras de vanguarda podem ser produzidas e distribuídas por tecnologias de massa, mas elas não são arte de massa. Pois apesar de produzidas e distribuídas por tecnologias de massa, tais obras não são estruturadas para assimilação e recepção imediata pelo público em geral. De fato, elas são designadas a frustrar uma fácil assimilação. Nos casos mais favoráveis, a arte de vanguarda se destina a alargar sensibilidades comuns, enquanto nos casos mais típicos, elas são destinadas a confundilas devido a modificações na percepção de laxismos estéticos e/ou morais. De fato, ao longo da época da arte de massa, defensores da estética de vanguarda (por exemplo, Collingwood, Adorno e Greenberg)8 foram os mais severos críticos da arte de massa. Para eles, a vanguarda foi tanto a antítese histórica quanto cultural da arte de massa. Além disso, como a vanguarda é a antítese da arte de massa, ela proporciona hegelianamente, uma visão da “tese” – arte de massa – da qual extrai seu programa e seu propósito. A arte de vanguarda é elaborada para ser difícil, para ser intelectualmente, esteticamente e até moralmente desafiadora, inacessível àqueles sem
8
Ver Noël Carroll, “Philosophical Resistance to Mass Art” (“Resistência Filosófica à Arte de Massa”) em Affirmation and Negation in Contemporary American Culture (Afirmação e Negação na Cultura Americana Contemporânea), ed. Gerhard Hoffman and Alred Hornung (Heidelberg: Universitätsverlag C. Winter, 1994, pp. 297-312). 104 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
certo cabedal de conhecimento e aquisição de sensibilidades. A arte de massa, em contraste, é elaborada para ser fácil, para ser imediatamente acessível ao maior número de pessoas possível, com mínimo esforço. A vanguarda é esotérica; a arte de massa é exotérica. Ela serve para comandar um público de massa. Assim, é constituída para uso fácil. Idealmente, é estruturada de tal modo que grande número de pessoas poderá compreendê-la e apreciá-la, virtualmente sem esforço. É feita de modo a capturar e chamar a atenção do grande público, enquanto a arte de vanguarda é feita para ser difícil e repelir a fácil assimilação pelo grande público. Como a arte de massa se destina a envolver amplos mercados, ela gravita em direção à escolha de recursos que a farão prontamente acessível à massa, públicos incultos. Revistas em quadrinhos, filmes comerciais e a TV, por exemplo, se comunicam por meio de imagens. E imagens são símbolos cujos referentes são reconhecidos, sendo as coisas uniformes, imediatamente e automaticamente por espectadores pelo simples olhar. O reconhecimento pictórico, isto é, adquirido em conjunto com o reconhecimento do objeto, vem de a pessoa poder reconhecer uma imagem de algo, digamos uma maçã, quando já se é capaz de reconhecer perceptivamente, in natura o tipo de coisa – tais como maçãs – que a imagem representa. Crianças, por exemplo, com frequência aprendem o que coisas são a partir de imagens antes de realmente vê-las9. O reconhecimento de imagens não requer nenhum treinamento especial. Assim, a arte de massa que depende de imagens como constituintes básicos será acessível de modo fundamental a um público virtualmente ilimitado. De fato, é esse recurso de filmes – de imagens em movimento – que primariamente contribuiu para a popularidade internacional dos filmes mudos, que se tornaram uma forma global de arte justamente porque eles podem ser compreendidos por quase todo mundo seja qual for a nacionalidade, classe, religião e educação. A pesquisa pelo que é acessível massivamente até mesmo tende a influenciar a escolha de conteúdo nos entretenimentos de massa. Cenários de ação/aventura são tão apropriados aos propósitos da arte de massa porque a competição física entre as forças fortemente definidas de bem e mal é mais fácil para quase todos seguirem do que dramas psicológicos complexos, que podem exigir uma base de informação cultural que o espectador comum não possui. Isto é, é mais fácil para o espectador comum
9
Em uma comunicação pessoal, Patrick Maynard referiu-se a isso como transferência “recíproca”.
105 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
aleatoriamente selecionado compreender Combate Mortal do que Blow Up. É o propósito ou função da arte de massa dirigir-se a um público de massa. Isso pode ser resultado de se visar lucro em países capitalistas ou por motivos ideológicos em países totalitários. E isso, por sua vez, dita certos desideratos concernentes às estruturas internas das artes de massa, assim, tais obras gravitarão em direção a estruturas como a representação pictórica, que serão acessíveis virtualmente por contato, sem treino básico especial ou esforço por vasto número de pessoas. Artes de massa tendem a certos tipos de homogeneidade exatamente porque visam atrair o que é comum entre enormes populações de consumidores. Frequentemente é essa tendência em direção à homogeneização que críticos – geralmente críticos de vanguarda – destacam para repudiar quando a questão é arte de massa. Entretanto, a busca por denominadores comuns na arte de massa, nas instâncias tanto de estilo como conteúdo, não é uma fraude, e sim uma designação consciente dada à função da arte de massa. Pois é o aspecto da arte de massa que engaja o público e que está por detrás de uma inclinação em direção a estruturas que serão prontamente acessíveis virtualmente pelo contato e com pequeno esforço de parte do público de níveis bastante diversos. Para resumir e ir adiante com essas observações, podemos tentar definir a arte de massa por meio de seguinte fórmula: x é arte de massa se e somente se 1) x é uma múltipla instância ou tipo de arte 2) produzida e distribuída por tecnologia de massa, 3) que é intencionalmente destinada a gravitar em suas escolhas estruturais (por exemplo, formas narrativas, simbolismo, efeitos intencionados e mesmo seus conteúdos) em direção àquelas escolhas que prometem acessibilidade com mínimo esforço, virtualmente ao primeiro contato, para vasto número de públicos relativamente incultos. Cheguei à primeira condição ao estipular que meu domínio de estudo é arte de massa, não cultura de massa, que representa uma categoria mais ampla. Isto é, minha preocupação não são esses itens da cultura de massa que são identificados mais estritamente como arte – tal como os dramas, histórias e canções mais do que programas de notícias, shows de culinária ou eventos esportivos. Desde que obras de arte de massa não são de vanguarda, há pouca dificuldade em classificar itens em termos de se recaem ou não em formas de arte estritas – como drama ou canção – ou em termos de se eles descartam propósitos artísticos classicamente reconhecidos como representação ou 106 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
expressão. Que a arte de massa não seja o que se denomina arte múltipla ou única é uma faceta que as obras que explicarei na próxima seção deste ensaio, se isso não tiver ficado evidente 10. A segunda condição – que as obras de arte de massa são produzidas e distribuídas por tecnologias de massa – deve ser também mais ou menos óbvia. A arte de massa emerge historicamente; não esteve sempre entre nós. Ela emerge apenas quando tecnologias capazes de produção e distribuição em massa surgem. Então, a arte de massa não é simplesmente popular. Ela requer tecnologias que possam distribuir exemplares de obras a mais de um ponto de recepção simultaneamente. Walter Benjamin falou de arte de massa em termos de sua reprodutibilidade em massa11. Isso facilita as coisas como para certos fotógrafos, mas não dá conta da possibilidade de transmissão simultânea. Antes, é mais proveitoso pensar em obras de arte de massa como aquelas que podem ser transmitidas a muitos pontos de recepção simultaneamente. A noção de um local discreto de recepção neste caso é um tanto complicada. Ela não pode ser especificada em termos de distâncias mensuráveis entre pontos de recepção. Uma casa de tamanho médio com dois aparelhos de TV tem pelo menos dois pontos de recepção distintos, enquanto que Mount Rushmore define um local de recepção, embora possa ser visto por muitas pessoas de diferentes pontos, que compreende uma área maior que a de uma casa de médio tamanho. O que conta como ponto de recepção específico depende do que seja o foco de atenção do público de certa prática. Mount Rushmore possui um ponto único de recepção espacialmente contínuo cobrindo uma extensão ampla indeterminada, enquanto que dois aparelhos de TV são, em condições normais, dois pontos de recepção12. Cada palco de teatro tem um ponto de recepção discreto, embora, diferentemente do caso da TV, no teatro é impossível enviar o mesmo sinal para atuação em uma peça a dois locais diferentes de recepção simultaneamente, enquanto que essa capacidade é uma condição sine qua non da arte de tecnologia de massa como a televisão. 10
De passagem devo mencionar que nem todas as tecnologias da mídia de massa resultam em formas de arte de massa. O telefone, enquanto tal, não parece ter dado à luz a uma forma de arte de massa própria dele, apesar de funcionar como um elemento nas obras e servir como sistema distribuidor para algumas obras de arte de massa. 11 Walter Benjamin, “The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (“A Obra de Arte na Época de suas Técnicas de Reprodução”), in Illuminations, ed. Hannah Arendt (New York: Schocken Books, 1969), pp. 217-253. 12 As aspas “condições normais” significam excluir casos como em que diferentes monitores de TV unem partes de uma só imagem ao modo de mosaico (com em algumas obras de Nam June Paik). 107 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Entretanto, apesar da produção e divulgação de obras relevantes por meio de tecnologias industriais de massa contarem como fatores essenciais às obras de arte de massa, eles não bastam para identificar um candidato a obra de arte de massa, pois, como vimos, parece ser ilógico considerar que obras de vanguarda como os filmes de Stan Brakhage sejam considerados como arte de massa. Tais obras podem ser produzidas e distribuídas por meio de um agente de mídia de massa, mas não se espera que delas possam usufruir públicos incultos. Não são acessíveis cognitivamente nem emocionalmente a espectadores mais simples. Por isso Brakhage introduz seus filmes com conferências: ele está tentando educar seu público para que possam ver seus filmes. As obras de arte de massa típicas são aquelas feitas com vistas a garantir seu acesso a espectadores que, sem nenhum preparo básico especial, possam compreender e apreciálas pelo simples contato, despendendo pouco esforço13. Rock, por exemplo, além de sua simplicidade harmônica, emprega uma batida facilmente reconhecível que ajuda a compor o resto do som. Essa batida é uma estrutura de referência pronunciada e imediata cuja repetição possibilita entrar na estrutura rítmica que nela converge. Como na antiga canção dos Beatles “Rock and Roll Music” isso aparece: “It’s got a backbeat, you can’t lose it” (em tradução livre: “Há uma batida que você não pode perder”). Muitas pessoas podem identificá-la rapidamente e diretamente, pelo menos dedilhá-la e acompanhar o ritmo com a cabeça. É essa sua característica estrutura interna, entre outras, que faz do rock música acessível ao mundo todo. Pode-se pensar que como quase todo rock é cantado em língua inglesa, ele não se espalharia tão facilmente. Entretanto, sociólogos descobriram que ouvintes não prestam atenção basicamente às letras, mas sim à ampla linha melódica de uma peça14. Assim, estudantes em Moscou podem se deleitar com os mesmos sons de euforia ou
13
Apesar de neste ensaio eu abordar apenas arte de massa, arte popular e arte de vanguarda, não pretendo que essas sejam as únicas formas de arte. Há também a arte do folclore, middle-brow art (arte didática) e as formas tradicionais anteriores às artes modernas de massa (como quadros de da Vinci). Para mais detalhes dessas outras formas de arte e sua relação com as de massa, ver Noël Carroll, “Nature of Mass Art” (“A Natureza de Arte de Massa”); Noël Carroll, “Mass Art, High Art and the Avant-garde” (“Arte de Massa, Arte Superior e a Vanguarda”); e Noël Carroll, Prolegomena to the Philosophy of Mass Art (Prolegômenos à Filosofia da Arte de Massa), (Oxford University Press), no prelo. 14 Roger Jon Desmond, “Adolescents and Music Lyrics: Implications of a Cognitive Perspective”, (“Adolescentes e Letras de Músicas: Implicações de uma Perspectiva Cognitiva”), “Communications Quaterly 35 (1987): 278; Simon Frith, Music for Pleasure (Música por Prazer) (New York: Routledge, 1988), p. 154: e Quentin Shultze et al., Dancing in the Dark: Youth, Popular Culture and the Electronic Media (Dançando no Escuro: Juventude, Cultura Popular e Mídia Eletrônica) (Grand Rapids, Michigan: William B. Eerdmans, 1991), pp. 160-163. 108 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
desafio que seus estudantes em Liverpool. Enquanto minha definição de arte de massa enfatiza a sua busca por estruturas que podem comandar públicos de massa, a fórmula sugere um rico programa de pesquisa empírica para o estudo da arte de massa, visto que, no que diz respeito às obras de arte de massa, uma questão sempre útil a ser levantada concerne o que ocorre com obras importantes que as leva a chamar a atenção de amplo público. Que o limite de corte nos vídeos na MTV seja a marca de 19.94 tomadas por minuto15 ajuda a explicar porque os vídeos musicais fixam os espectadores na tela, pois tal recurso permite pouca chance para a atenção diminuir. De fato, dado o modo como nosso sistema perceptivo funciona, isto é, dada a tendência involuntária de nossa atenção para despertar (por razões de adaptação sonora) com a introdução de novos estímulos, pode ser que a MTV esteja explorando nossas conexões de tal modo que muitos espectadores quando menos percebem, são tomados irresistivelmente pelas suas imagens16.
II.
A ONTOLOGIA DA ARTE DE MASSA Após definir a natureza das artes de massa, gostaria agora de voltar à questão
de seu status ontológico – a questão do modo pelo qual a arte de massa existe. A estratégia que adotarei primeiro é tentar caracterizar o status ontológico do cinema a fim de prosseguir para ver se essa caracterização pode ser generalizada, com os ajustes necessários, a outras formas de arte de massa tais como fotografia, gravação de músicas, transmissão de rádio e telecomunicações. Um modo útil de chegar à ontologia de filmes é dirigir a atenção para a diferença entre performances teatrais e as do cinema17. Digamos que há uma apresentação de The Master Builder (Solness, o Construtor) às 8 horas da noite no teatro local, e que estivesse em cartaz no mesmo horário Waterworld no cinema das 15
Donald L. Fry e Virginia H. Fry, “Some Structural Characteristics of Music Television Video” (“Algumas Características Estruturais de Clipes Musicais em Televisão”), artigo apresentado nos encontros da Associação de Comunicação Oral em Chicago em novembro de 1984 e citada em Dancing in the Dark (Dançando no Escuro). 16 Talvez o chamado surf de canais seja um fenômeno relacionado. Enquanto nossa atenção diminui, tentamos (em geral subconscientemente) reagir trocando de canal, e assim introduzindo um romper de nova estimulação. O que fazemos conosco por meio dessa troca de canais é grosso modo o que a edição na MTV faz por nós automaticamente e num ritmo muito mais rápido. 17 Esta abordagem da ontologia do cinema se constrói a partir de tentativas anteriores minhas, incluindo: “Towards an Ontology of the Moving Image”, (“Em Direção a uma Ontologia do Cinema”), in: Philosophy and Film (Filosofia e Filme), Eds. Cynthia A. Freeland and Thomas E. Wartenberg (New York: Routledge, 1995); e “Definindo o Cinema” em minha obra Theorizing the Moving Image (Teorizando sobre Cinema) (New York: Cambridge University Press, 1996). 109 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
vizinhanças. Pode-se ir a ambos. Em ambos os casos, tanto podemos estar sentados em um auditório e cada apresentação começaria quando a cortina levantasse. Mas, apesar dessas semelhanças superficiais, há profundas diferenças ontológicas entre as duas apresentações. Sem dúvida, essa afirmação soará estranha para alguns filósofos. Pois se alguém distingue ente dois tipos de artes – aquelas singulares e as múltiplas – então as apresentações cinematográficas e as teatrais parecem ontologicamente pares; ambas são consideradas signos (n.t.: token ou realizações) de um só tipo (n.t.: type, padrão). Em cada caso, a apresentação é um signo de um tipo de arte – The Master Builder, de um lado, e Waterworld de outro, - no sentido de qualquer signo do tipo em questão podem sofrer destruição – digamos, por fogo – enquanto o tipo-padrão de arte permanece18. Evidentemente, a distinção tipo/signo (type/token), apesar de útil para localizar a distinção ontológica entre certas pinturas e esculturas, de um lado, e coisas como peças, filmes, romances e sinfonias de outro lado, não é fina o suficiente para distinguir entre apresentações de cinema e apresentações de teatro. Para obter essa distinção, é instrutivo considerar os caminhos diferentes pelos quais se chega de uma peça-tipo a uma atuação dramática signo-realização, de um lado, versus o caminho de um filme-tipo a uma apresentação (i.e., assistir) um filme. Para obter a partir de um filme-tipo uma realização-signo, é preciso uma interpretação. Além disso, os caminhos diferentes da apresentação do signo ao tipo no teatro versus a do filme-tipo à realização do filme, explica porque vemos as apresentações teatrais como formas de arte legítimas, ao passo que, ao mesmo tempo, não vemos apresentações de filmes (i. e., assistir filmes) com formas de arte. A apresentação de filme se dá a partir de uma cópia padrão de filme, mas pode também ser um vídeo, um disco a laser, ou um programa de computador codificado por meio físico. Tais padrões são eles próprios signos; a cada um deles pode ser designado um local no espaço, embora ao filme-tipo (film-type) – Waterworld – isso não seja possível. Tampouco o negativo da obra do filme-tipo. É uma realização entre outras. O negativo original de Nosferatu de Murnau foi destruído por ordem judicial, mas o filme ainda existe. Cada apresentação de filme uma realização-signo do filme-tipo. Cada 18
A aplicação da distinção tipo/signo (type/token) para a arte foi feita por Richard Wollheim em seu livro Art and its Objects (Arte e seus Objetos) (Cambridge: Cambridge University Press, 1980, em especial seções 35-38). 110 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
realização de apresentação dá acesso ao filme-tipo. Mas para apresentar uma realizaçãosigno da atuação de um filme, se requer um padrão – uma fita ou vídeo ou um disco a laser – que é também uma realização-signo de filme tipo. A apresentação de filme como signo-realização é gerada a partir de um mecanismo (ou eletronicamente), conforme o procedimento técnico de rotina. Assim, a realização-signo da apresentação do filme – projeção do filme – não é uma apresentação artística e não justifica apreciação estética. Evidentemente, pode-se reclamar se o filme é projetado fora de foco, ou se ele se queima no projetor, mas essas reclamações não são estéticas. São queixas sobre a capacidade de quem projeta. Claro que essa capacidade é uma condição prévia para que o filme-tipo seja arte. Mas não é um objeto de apreciação estética. A abordagem é muito diferente no que toca às peças teatrais. A diferença, em parte, é uma função do fato de que peças podem ser consideradas como obras literárias, ou como obras de atuação. Quando uma peça como Strange Interlude (Estranho Interlúdio), é considerada obra literária, então meu exemplar de Estranho Interlúdio é um signo (realização, token) da forma de arte (art-type) Estranho Interlúdio do mesmo modo que meu exemplar de The Warden é um signo (realização, token) do romance de Trollope. Mas, quando visto da perspectiva da apresentação teatral, um signo (realização) de Estranho Interlúdio é apresentação particular que ocorre em tempo e espaço especificáveis. Enquanto a apresentação de um filme é gerada a partir de um mecanismo e não de uma interpretação, uma apresentação teatral de Estranho Interlúdio é gerada por uma interpretação e não um mecanismo. Quando usada no contexto da apresentação, a peçatipo Estranho Interlúdio de Eugene O’Neill funciona como uma receita que deve ser preenchida por outros artistas – diretores, atores, encenadores, e outros. O’Neill criou a peça que é uma peça-tipo – mas a peça deve ser trazida à luz por uma interpretação ou um conjunto de interpretações (diretores, atores, etc.) e, além disso, essa interpretação governa a performance de signos-realizações (tokens) da peça à medida em que é apresentada ao público noite após noite. Além disso, esta interpretação é um tipo; a mesma apresentação de uma peça pode ser revivida depois de um substancial hiato de tempo e pode ser realizada em diferentes teatros com cenários numericamente diferentes, mas qualitativamente idênticos. Então, a realização de um signo de uma peça-tipo é gerada por meio de uma interpretação, sendo a mesma um tipo. Consequentemente, interpretações teatrais são
111 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
tipos de tipos19. Obtemos de uma peça-tipo uma interpretação por meio de uma interpretação que é um tipo. Isso contrasta com o caminho de um filme-tipo à realização da projeção do filme, a qual é mediada por um mecanismo que é também um signorealização (token). Antes eu observei que a projeção de um filme – quer dizer, a projeção de um filme em um cinema – não é, em si, uma obra artística, enquanto isso não se dá com o teatro. Performances teatrais são formas artísticas propriamente ditas. É preciso capacidade de atuar e imaginação para encarnar uma interpretação, enquanto atuações em filmes requerem apenas competência técnica. No teatro, como se sabe, a peça, a interpretação e a atuação são cada qual candidatos à apreciação estética. No melhor dos casos, uma peça, é uma interpretação, e suas performances são integradas, embora reconheçamos que essas são camadas distinguíveis de condição artística, mesmo se uma pessoa escreve a peça, dirige e nela também atua. Pois há muitos casos em que uma peça ruim tem uma interpretação louvável, corporifica por atuações soberbas, enquanto em outras ocasiões, uma boa peça é interpretada sofrivelmente, com boa atuação, e assim por diante. Essas distinções que fazemos tão facilmente indicam que há diferentes estratos ontológicos artísticos quando o que está em questão é o palco, estratos que não são conseguidos por filmes do mesmo modo. Pois, se com o teatro a peça-tipo é uma receita que diretores e outros artistas interpretam, alcançando formas de arte diferentes apesar de relacionadas, com a receita do filme (por exemplo, o roteiro) e as interpretações artísticas do diretor, dos atores, etc., não são constituintes detectáveis da mesma forma artística. Não avaliamos roteiros independentemente da produção do filme, tampouco avaliamos a projeção de filmes esteticamente. É comum considerar obras de filme de arte como tipos. Mas se a comparação anterior com o teatro é convincente, então podemos caracterizar os filmes de um modo mais refinado, a saber: um filme é um tipo cujas realizações nas atuações são geradas por padrões-tipos (types) que são eles próprios, realizações-signos (tokens). Nossa próxima questão é se esse modelo de análise pode ser generalizado para outras formas de arte de massa, incluindo fotografia, rádio, telecomunicações, gravações de música e livros de sucesso de ficção popular.
19
Ver R. A. Sharpe, “Type, Token, Interpretation, Performance” (“Tipo, Signo, Interpretação, Performance”), em Mind 88 (1979): 437-440. 112 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A ficção popular de sucesso, como a literatura em geral, é uma arte-tipo. Minha cópia de The Gift (O Presente) é um signo/realização do romance de Danielle Steel do mesmo modo que minha cópia de The Magic Mountain (A Montanha Mágica) é um signo/realização do romance de Thomas Mann. Em cada caso, a destruição de minhas copias não ocasionaria em geral a destruição dos romances de Steel ou de Mann. De fato, cada signo/realização gráfica do romance de Steel pode ser queimado e ainda assim o romance pode continuar a existir se, ao modo de Fahrenheit 451, uma pessoa recordasse o texto. É claro, isso leva ao extremo o uso em inglês chamar esses signosrealização de O Presente de performances; assim, talvez seja melhor falar instâncias de signos ou de signos de instância-repetição, mais do que signos de performances, quando expandimos nossa caracterização do modelo de análise que já desenvolvemos com respeito ao cinema para outras formas de arte de massa. Além disso, no caso do cinema, temos acesso a obras de literatura popular por meio de recepção de instâncias de signos que são elas mesmas, produzidas a partir de padrões, incluindo discos rígidos e programas, e, talvez no limite, traços de memória. Indo da ficção popular à fotografia, a primeira coisa a ser notada é que isso pode não se dar no caso de a fotografia ser uma forma de arte uniformemente múltipla de um ponto de vista ontológico. Pois pode haver, devido a seu método de produção, obras de arte fotográficas que são de um só tipo, tais como os daguerreótipos 20. Tais fotografias têm um status ontológico característico do status das pinturas. Como a Mona Lisa, se um daguerreótipo de Nièpce for destruído, nós o perdemos, mesmo se reproduções fotográficas se conservarem, do mesmo modo que se a Mona Lisa no Louvre for rasgada, perderemos a obra prima de da Vinci, mesmo que sua existência permaneça em cartões postais de museus. Com tais instâncias únicas de fotografias, as assim chamadas reproduções por isso não são signos da obra em questão, mas documentações dela. Assim, não gostaria de chamar fotografias de instância única propriamente arte de massa pela mesma razão que a Mona Lisa não é um exemplo de arte de massa, apesar do fato de que tenha sido infinitamente documentada por fotografias em textos de história da arte e em livros de viagem. De outro lado, além das fotografias de única instância, há muitas fotografias que caem perfeitamente na categoria de arte de massa. É bastante previsível, dada a base ser filme, que o modelo desenvolvido para analisar o cinema se preste muito bem para 20
Patrick Maynard me alertou que algumas impressoras modernas de fotografia como impressões em daguerreótipo são consideradas como tipos únicos. 113 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
tais fotografias. Isso porque as instâncias que realizam os signos de tais fotografias são geradas a partir de padrões, como os negativos, que são, por sua vez, signos; e as obras em questão continuam a existir mesmo se os negativos e a maior parte dos outros signos-realização do importante fotógrafo forem perdidos ou destruídos. Considerando o rádio e a televisão, o primeiro ponto a observar é que na grande maioria dos casos, programas nesses meios são gravados em fitas magnéticas, cópias, vídeos ou programas digitais para transmissão posterior. Essa prática se tornou bastante comum no rádio em fins dos anos 1940. Em casos como esses, o modelo de análise acompanha o do cinema, pois as instâncias dos signos-realizações da gravação servem como condições padrão que tornam possíveis as instâncias de recepção dos signos. Mas o que dizer das transmissões simultâneas que não são gravadas nem artisticamente modificadas (por meio de mixagens, por exemplo) na mensagem fonte? Claramente, transmissões simultâneas no rádio e na TV devem contar como exemplos de arte de massa, pois elas podem suportar simultaneamente uma multiplicidade de instâncias de realização da mesma obra – uma canção ou um drama – em pontosconcretizar de recepção que ficam longe geograficamente um do outro. Mas qual é o padrão nesses casos? Sugiro que o padrão é o sinal ou mensagem do sinal de transmissão que proveio da fonte da mensagem por instrumentos de codificação e de modulação com a finalidade de transmitir e que são recebidos por instrumentos de demodulação e decodificação, tais como rádios e TVs. Cada tipo de sinal de recepção é derivado de um padrão por um processo mecânico/eletrônico (em contraste com o artístico). Assim como projetar um filme não é artístico nem interpretativo, tampouco ligar ou sintonizar um rádio ou TV o é. Os tipos de sinais receptores dos programas em questão são processos físicos. O sinal de transmissão é uma estrutura física e certos tipos de sinais de recepção desses programas podem ser destruídos, por excesso de carga, por exemplo, enquanto as obras artísticas de massa do rádio ou da TV permanecem. Claro, quando o sinal do programa provém de um padrão magnético, há substitutos para os padrões, inclusive para a transmissão do sinal, como uma gravação para mediar a arte de massa tipo e seus signos-realização em suas instâncias de recepção21.
21
Uma complicação deve ser mencionada aqui. Suponha-se que um programa de TV esteja sendo gravado antes de uma transmissão ao vivo. Em tais casos devemos falar em duas obras artísticas. Há o trabalho teatral que é desempenhado em frente dos espectadores do estúdio e algo mais. Em um caso, no qual o que está sendo transmitido está sendo editado e estruturado (por exemplo, os closes, as tomadas 114 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Em casos em que a transmissão única envolve um enredo, no caso de uma peça de teatro, ou uma partitura no caso da música, não há problema em achar que estamos lidando com um tipo que, em princípio, pode ser realizado mais de uma vez. Entretanto, um problema pode surgir quando se pensa em transmissões que envolvem improvisação (não há gravação nem mixagem), pois é possível perguntar se em tais casos não seremos capazes de especificar de qual tipo os sinais são instâncias realizadoras. Penso neste caso que nossas dúvidas repousam na intuição de que improvisações são eventos únicos. Creio que há dois modos de lidar com esse problema. O primeiro é conceder que improvisações, são artes singulares e o argumento para tal é que, como no caso de fotografias com exemplar único, os casos de recepção de improvisações são documentações e não tanto realizações-signos das obras em questão. Entretanto, a segunda solução para esse problema, a que eu prefiro, é negar que improvisações são, em princípio, formas únicas de arte. Pois improvisações podem ser memorizadas e interpretadas novamente pelos artistas originais ou por outros; elas podem transcritas, como na tradição clássica e interpretadas novamente; e, na era da arte de massa elas podem ser gravadas e/ou memorizadas por ouvintes que, por sua vez, podem transcrevêlas e/ou reproduzi-las. Uma improvisação continua a existir enquanto execuções dela puderem ser realizadas. Uma pintura deixa de existir quando o “original” é destruído; mas, neste sentido, não há, estritamente falando, originais nos casos de musicais improvisados ou produções teatrais. É conceitualmente possível replicar uma improvisação, mas não é possível replicar pinturas dentro do conceito padrão de uma pintura. Improvisações não são, em princípio, formas artísticas singulares. Assim, o modelo desenvolvido para caracterizar a arte cinematográfica pode ser aplicado para a transmissão de improvisações. Quer dizer, vemos e/ou ouvimos instâncias receptoras de realização do tipo de improvisação através da mediação de um signo-realização de um sinal padrão de transmissão. O que se pode dizer sobre gravações populares é semelhante ao que se sabe sobre transmissões do gênero, simplesmente pela razão de que a maioria das amplas, etc.), há outra arte, de massa, que difere em importantes aspectos daquilo que um auditório de estúdio vê. E, em outro caso, em que não há estruturação adicional (o que alguns podem negar que seja ao vivo), o que se acrescenta é uma documentação da arte teatral, algo equivalente a um cartão postal de museu da Mona Lisa. Distinções similares podem ser extraídas com respeito às transmissões de rádio ao vivo que irão incluir uma exibição de arte ao vivo para um auditório presente no estúdio e mesmo uma documentação direta dela (se é que tal coisa exista) ou, mais comumente, uma arte de massa que foi gravada, mixada e aprimorada eletronicamente para os ouvintes de rádio.
115 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
transmissões de música popular, já envolve gravação sonora. Na gravação sonora, um microfone transforma as vibrações acústicas em pulsos elétricos que são ampliados e convertidos em gravação, mecanismo eletromagnético que produz sinais na superfície da fita do gravador. Este processo, por sua vez, é revertido em reprodução quando os padrões magnéticos são convertidos novamente em vibrações, amplificadas por algum tipo de caixa de som ou de fone de ouvido. Novamente, a obra musical, que é um tipo, gera um signo-realização de instância receptora em minha sala de estar, via um padrão de signo-realização, o qual neste caso é um modelo magnético ou signo de transmissão disso. Entretanto, como ocorre com algumas mídias que já examinamos, com a gravação é possível distinguir entre dois casos distintos: peças criadas no estúdio por mixagem, dublagem, etc., que podemos considerar como construídas como tipos de arte de massa, e peças musicais que são virtualmente documentações simples de performances musicais que existem independentemente22. Apesar de aquela ter provavelmente a melhor sustentação conceitualmente, e suspeito estatisticamente, para ser considerada como música de massa propriamente, a última tem desempenhado um papel inegável historicamente na evolução da cultura de massa, mesmo se o futuro pareça pertencer à música de massa feita em estúdio23. Provisoriamente, então, o modelo de análise desenvolvido para destacar o status ontológico do cinema parece funcionar em todos os sentidos para arte de massa em geral. Artes de massa são múltiplas instâncias ou tipos de artes. Especificamente, são tipos cujas instâncias de recepção dos signos-realizações são geradas por padrões ou por padrões de transmissão, que são também signos-realizações. Isso serve para distinguir as obras em questão de obras de arte singulares, de um lado, e de tipos de artes cujos signos-realizações são gerados por interpretações. Claro, isso não separa as obras em questão de certas obras que não são de arte, como noticiários de TV que também são produzidos e transmitidos por importantes tecnologias de massa. Noticiários televisivos e comédias compartilham do mesmo modo de ser, uma vez que 22
Muitos gostariam de negar a possibilidade do que eu chamo de gravações simples e, por isso, ver toda gravação de som musical em termos da categoria construídos como tipos de arte de massa. Para uma discussão mais aprofundada, apesar de controvertida, da significação ontológica da gravação de músicas de rock, ver a obra de Theodore Gracyk, Rythm and Noise: The Aesthetics of Rock Music (Ritmo e Ruído: a Estética da Música Rock) (Duke University Press, 1996). 23 Talvez valha a pena notar aqui que o rock tocado por bandas de garagem, bandas de bar e outras não seja propriamente arte de massa em termos de minha proposta. Podem entrar como arte popular, mas não é arte de massa, pois não é basicamente, transmitida a múltiplos locais de recepção simultaneamente. 116 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
são da mesma espécie de tipos. Eles diferem em suas reivindicações ao status de arte.
III.
OBJEÇÃO 1: TODA ARTE É MÚLTIPLA Essa minha tentativa de isolar o status ontológico de obras de arte de massa,
em parte, sustentou-se em uma distinção entre artes singulares e múltiplas. Entretanto, essa distinção foi questionada por Gregory Currie em sua importante e provocadora monografia An Ontology of Art (Uma Ontologia da Arte)24. Nela Currie defende a Hipótese de Multiplicidade de Instâncias, de acordo com a qual, toda arte é múltipla25. Na visão de Currie não há artes singulares, não obstante nossas intuições acerca de casos paradigmáticos de arte refinada, tal como pintura e escultura. Assim, como minha teoria da ontologia da arte de massa depende de uma distinção entre artes singulares e múltiplas, parece que ela se sustenta sobre uma distinção quando não há distinção alguma. Currie introduz sua defesa da Hipótese de Instância de Multiplicidade argumentando que há uma pressuposição a favor de toda teoria ontológica de arte que oferece uma perspectiva unificada do campo – que diz que, ou toda arte é singular ou toda arte é múltipla. Além disso, é mais ou menos óbvio que é impossível o caso de que toda arte seja singular. Considere a literatura. Assim, a hipótese de que todas as artes sejam múltiplas tem melhor chance de fornecer uma teoria unificada do campo. Em outras palavras, Currie pensa que há uma suposição favorável à visão de que as artes são múltiplas em todos os sentidos. Assim, se não há considerações que ousem derrotá-lo, a Hipótese de Instância de Multiplicidade é a teoria ontológica que devemos endossar. Currie argumenta que é logicamente possível produzir molécula por molécula versões de qualquer obra de arte refinada. Imagine uma máquina super avançada de reprodução que pode replicar qualquer pintura, escultura e assim por diante. Desde que a réplica é idêntica molécula a molécula à original, ela tem a mesma estrutura perceptível que a original. E como a réplica é, até prova em contrário, dependente da original no sentido de que cada aspecto na réplica é causalmente dependente de aspecto correspondente no original, então a presença de aspectos na réplica são explicados pelos mesmos fatores histórico, contextual e intencional que explicam a presença daqueles aspectos no original. Assim, essas super impressoras produzem o mesmo estímulo 24 25
Gregory Currie, An Ontology of Art (New York: St Martin’s Press, 1989). Ver capítulo 4 de An Ontology of Art.
117 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
estético que o original e permitem o acesso à significação histórica do original. Portanto, elas são alvos perfeitamente satisfatórios para a atenção artística (i.e., estética e histórica) do ponto de vista da apreciação. Isto é, elas estão no mesmo nível das originais. De fato, Currie escreve como se toda arte refinada seja, por meio dessas impressoras, arte de massa (pelo menos em princípio). Sua estratégia argumentativa, com efeito, é desafiar oponentes a encontrar algo errado em sua conjectura. Muito da energia de Currie é gasta mostrando o que é enganoso nas objeções possíveis a sua teoria. Entretanto, eu penso que há algumas considerações bastante decisivas às quais ele nunca se dirige e que indicam que a Hipótese de Instância de Multiplicidade não oferece uma teoria geral para todas as artes. Por exemplo, Currie nunca pensa sobre obras de arte com local específico – isto é, esculturas e obras de arte arquitetônicas que recebem seu caráter do ambiente no qual são construídas e que são alteradas com o tempo pelas condições dos ambientes que as cercam propositadamente para constituir parte do que espectadores devem tomar como seu objeto de apreciação. Isto é, obras de escultura e arquitetura interagem com locais específicos nos quais ou a partir dos quais são construídas, e esse processo interativo pode ele próprio ser intencionado como parte do que é significativo com relação à peça. Spiral Jetty (Dique Espiral) de Robert Smithson foi construído em um local devido nele haver certa corrente particular de algas que davam a ele o tom avermelhado que ele buscava, e a forma do dique era uma resposta à formação dos arredores. Sobretudo, parte do que era para ser apreciado na obra eram as diferentes aparências do dique devido às alterações no nível da água. De modo similar, a situação de Lightning Field (Campo de Raios) de Walter de Maria se devia à alta intensidade da atividade elétrica no ambiente e devido ao modo como as montanhas em volta emolduravam aquela atividade. E, é claro, parte da peça envolvia o modo pelo qual ela interagia com as frequentes tempestades de raios26. Essas peças são representativas de um gênero importante na arte contemporânea chamado de “arte terrestre” por alguns. Sua importância para a discussão sobre artes singulares versus múltiplas, se deve, é claro, às específicas vicissitudes que operam nessas obras ao interagirem com seus ambientes como fazendo parte do que elas são. Essas obras são envolvidas com processos, não apenas com 26
Descrições e fotos das peças de Smithson e de De Maria podem ser encontradas em Earth Works and Beyond: Contemporary Art in the Landscape (Obras na Terra e Além: Arte Contemporânea na Paisagem), (New:York:Abbeville Press Publishers, 1989). 118 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
produtos. É difícil imaginar que, no universo físico conhecido, alguém poderia replicar os exatos processos que ocorrem no local específico original das obras por meio de uma super impressora de Currie. Suponhamos que uma super impressora pudesse replicar a estrutura específica do local e do ambiente ao redor em um tempo T1. Ainda assim, é impossível imaginar que fisicamente todos os eventos que ocorreram desde o tempo T2 através de Tn ocorrerão na suposta réplica. Mas se as histórias futuras da suposta réplica não experimentarem os mesmos eventos da original, então as obras de arte não são idênticas. É altamente inverossímil, dada a estrutura do universo físico, que as reproduções das máquinas de Currie de obras de locais específicos farão exatamente igual ao que os originais fazem. Mas como os processos climáticos podem ser um elemento da contemplação artística nas obras de locais específicos, as obras não são, em princípio, multiplicáveis no universo físico conhecido. Pois nele, a probabilidade de que a obra com lugar original específico e a super impressora tivessem que passar pelas mesmas transformações físicas, seria incrivelmente bizarro. Tampouco essas considerações podem ser afastadas nos termos em que as obras citadas possuem incontestável status artístico. O mesmo se pode dizer com base nas obras primas de arquitetura famosas tais como a escola de arquitetura (Taliesin) e a Casa da Cascata (Fallingwater) de Frank Lloyd Wright. Além disso, a especificidade do local é sem dúvida um aspecto central da arquitetura dos templos gregos 27. De passagem, Currie brevemente considera a arquitetura e presume que o meio ambiente é irrelevante para a identidade da obra – talvez porque ele entende que se suas super impressoras podem replicar ambientes ilimitados e suas vicissitudes, elas parecerão altamente improváveis, mesmo em princípio. Mas ele simplesmente está errado se pensa que um único ambiente e suas vicissitudes não podem ser parte de uma obra de local específico. E esse erro implica no defeito da Hipótese de Instância de Multiplicidade pelas razões que já expus. Currie diz que há uma presunção em favor de uma teoria única da ontologia da arte e que a visão de que toda arte é múltipla é a mais confiável teoria unificada. Não vejo razão para acreditar que há tal presunção e, de qualquer modo, se os fatos fossem diferentes, todas as reivindicações sobre tal presunção devem ser retiradas. Além disso, penso que o fato de obras de arte de locais específicos do tipo a que aludi, mostra que
27
Ver, por exemplo, a obra de Vincent Scully The Earth, the Temple and the Gods: Greek Sacred Architecture (A Terra, o Templo e os Deuses: a Arquitetura Sagrada dos Gregos), (New York: Frederick A. Praeger, 1969). 119 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
tal pressuposição é extravagante. Há pelo menos estas obras singulares, e isso basta para sustentar a distinção entre artes singulares e múltiplas que eu invoquei no desenvolvimento de minha teoria da ontologia da arte de massa. Mesmo se super impressoras fossem possíveis, ainda haveria um classe contrastante de obras de arte singulares. Nem toda arte é, em princípio perfeitamente “copiável”. Há ainda uma distinção com uma diferença notável aqui. Além disso, mesmo se fosse o caso de que toda arte seja múltipla no modo concebido por Currie, minha teoria da ontologia da arte de massa ainda seria informativa, pois eu esbocei um contraste entre as artes múltiplas cujas instâncias de signos-realização são produzidas por interpretações e arte de massa cujos signos-realização são necessariamente produzidos por padrões que são também signos-realização, e/ou transmissões de signos-realizações.
IV. OBJEÇÃO 2: ARTE DE MASSA É IRRELEVANTE Uma objeção à minha sustentação inicial neste ensaio de que arte de massa é um tema valioso para a investigação estética, pode ser o de que a arte de massa já está obsoleta. Nessa objeção, o tema não possui a urgência com a qual investi nele, desde que ele acabará como mero detalhe no plano histórico. A arte de massa está de saída. O trajeto revolucionário da tecnologia da comunicação se afasta da arte de massa e segue em direção à arte personalizada. O consumidor de arte no futuro não fará parte do público de massa. Consumidores em um futuro próximo serão abastecidos por tecnologias para novas informações tais que possibilitarão personalizar suas opções artísticas, em geral interativamente. De fato, talvez todos nos transformemos em artistas na futura utopia cibernética. Pode ser argumentado ainda que a arte de massa, como eu a concebo, não passará de breve momento vacilante que precederá a gloriosa emergência do consumo (e produção) de arte altamente individualizada e tecnológica. No limite, as perspectivas da arte personalizada já se evidenciam na existência de canais a cabo e satélite para espectadores individualmente, que podem selecionar entre canais de desenho, ficção científica, comédias, história e assim por diante. Mas isso é só uma parte do que está para vir. Sinergias entre tecnologias do telefone, do computador, do satélite e do vídeo prometem uma era de consumo de arte personalizado que criará uma demanda para a produção de artes tecnológicas que serão de incrível variedade. Quando o público de 120 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
massa desaparecer, isso quer dizer que a arte de massa desaparecerá com ele. E esse evento está bem próximo. Em minha opinião, tais profecias são excessivamente prematuras. O tipo de “personalização” de que dispomos sob a forma de canais de comédia, de desenhos, infantis e outros28 não provam que a arte de massa está acabando, pois esses canais permitem escolher apenas entre tipos ou gêneros de arte de massa. As estruturas dos programas em canais de comédia e de ficção científica não são de tipo realmente diferente, porque todos são artes de massa produzidas para ser acessíveis ao espectador comum inculto para rápido proveito com mínimo esforço. Os programas em questão poderiam facilmente passar em redes que não são dedicadas a um único gênero de programação. Eles são reunidos em um único canal, mas um canal que é ainda dirigido para ser acessível a audiências numerosas e heterogêneas. Estruturalmente, os programas desses canais são ainda exemplos de arte de massa. A montagem de Babylon 5 e Amazing Stories é do mesmo tipo empregado em Bewitched (A Feiticeira), The Dick Van Dyke Show e em Os Jetsons. Tampouco estou convencido de que a arte de massa esteja prestes a desaparecer com o advento de tecnologias capazes de sustentar um consumo mais diversificado. Há várias razões para isso. Primeiro, as economias de escala disponíveis nas mídias tecnológicas fazem com que as indústrias da comunicação se inclinem para a produção de “mídias de produção de massa, denominadores comuns e audiência de massa”
29
.
Essas indústrias não se dispõem a se livrar de pronto das vantagens dessas economias de escala e dos lucros que elas proporcionam. Claro, esses interesses controlam não apenas suas próprias produções de arte de massa, mas também importantes tecnologias de divulgação e distribuição de mídia de massa. E podemos nos assegurar que elas não matarão a galinha dos ovos de ouro. Além disso, os públicos não mudarão apenas devido à alteração nos recursos tecnológicos. O gosto pela arte facilmente acessível não desaparecerá, nem desaparecerá o prazer que se tem em compartilhar essas artes com grande número de pessoas. Quer dizer, a sociabilidade que a arte de massa proporciona de diferentes maneiras – como tema comum de discussão e crítica, e como reservatório de símbolos culturais compartilhados – fornece uma poderosa motivação para a persistência da arte de massa. 28
Há inclusive um canal de show de jogos, embora, é claro, não seja provedor de arte de massa na minha concepção, uma vez que shows de jogos não são arte. 29 Ver W. Russell Neuman, The Future of Mass Audience (O Futuro do Público de Massa) (Cambridge: Cambridge University Press, 1991), p. 13. 121 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
E, acrescente-se, está longe de evidente que vastas maiorias fiquem satisfeitas com as notórias capacidades de interagir e selecionar que se evidenciam no horizonte30. Assim, há pressões em contrário econômicas e psicológicas que militam contra a emergência de utopias de comunicação personalizada patrocinadas por seguidores da revolução na informação. A arte de massa veio para ficar em um futuro previsível. E, assim, cabe aos filósofos da arte começar a dar conta dela teoricamente31.
Tradução: Inês Lacerda Araújo.
30
De modo semelhante, não há razão para prever que só porque a tecnologia está aí que as pessoas irão explorá-la a ponto de se tornarem da Vincis, criando arte sem mecenas febrilmente em seus computadores. Sejam qual forem as forças psicológicas e sociais que desencorajam as pessoas de experimentar artisticamente por conta própria, agora não desaparecerão apenas devido ao advento de uma nova tecnologia. 31 Gostaria de agradecer J.J. Murphy, Douglas Rosenberg, Patrick Maynard, Sally Banes, Annette Michelson, David Bordwell e Harriet Brickman pelas sugestões concernentes a este ensaio. Claro, os erros eventuais são meus, não deles. 122 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Resenha
123 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. Resenha por Fernanda Siqueira Miguens1
Recentemente publicado no Brasil, A Teoria dos Incorporais no Estoicismo Antigo foi um texto decisivo para a filosofia francesa contemporânea. Vladimir Jankélevitch, Gilles Deleuze, Michel Foucault, Jaques Derrida, Maurice Blanchot e Clément Rosset estão entre os autores que elaboraram reflexões decisivas a partir das teses e do método proposto neste estudo. É famosa, por exemplo, a utilização de Deleuze do pensamento estoico em Lógica do Sentido2. Apesar de sua suma importância, esta tese de doutoramento de Bréhier é pela primeira vez vertida para uma língua estrangeira, fato que reforça o mérito do Laboratório de Filosofia Contemporânea da UFRJ. Para falarmos na teoria dos incorporais, precisaremos entender a convergência que este livro revelador guarda com outra obra famosa de Bréhier, a História da filosofia.3 Um aspecto importante desse tema consistiria na observação cuidadosa da trajetória do filósofo como historiador da filosofia, especialmente a partir do modo como aborda os pensamentos marginais medieval e oriental. É preciso ressaltar que aí reside o desejo de Bréhier de prescrever um caminho reflexivo que rompa com as limitações e circunscrições inerentes ao próprio processo do pensamento, tal como consolidado pela metafísica tradicional. Assim, de modo similar, podemos afirmar que é com a demonstração da ideia de exprimível no estoicismo que ele pretende conter, à força, a tendência do conceito ao confinamento, problematizando as consequências políticas, cívicas, econômicas, monásticas ou ontológicas ao longo da história. Esta extensão do pensamento conceitual metafísico em desdobramentos éticos representará mais tarde uma marca inegável do conceito derridiano da desconstrução.
1
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro com a dissertação "Aproximações entre os conceitos de verdade e feminino no sufismo". 2 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2003. 33 BRÉHIER, Émile. Histoire de La Philosophie I: Antiquité et moyen age. France: PUF, 1994. 124 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
A origem da teoria dos incorporais remonta até os primeiros pensadores gregos, cujas ideias foram posteriormente refutadas por Platão e Aristóteles, “que colocaram o princípio das coisas nos elementos penetráveis ao pensamento claro”4. Para Bréhier, a opção estoica deve-se ao fato de que sua doutrina nos chama a atenção para um componente não assimilado pelo processo de ensino e aprendizado tal como erigido pelo cânone ocidental, orientado pela lógica da identidade. Sobre os estoicos, Bréhier volta-se para o modo como problematizam os conceitos e edificam o pensamento - de acordo com as particularidades percebidas na relação entre um nome e um objeto – ao patamar de uma ciência acerca da observação dos significados. O método semiótico descrito no livro inclui ir além da camada externa de um conceito, compreendido a partir da sua circunscrição em uma identidade, égide da metafísica tradicional, em direção ao singular na realidade, em que seu caráter múltiplo é respeitado. O estoicismo inaugurou e aperfeiçoou, entre outras coisas, um método de leitura a partir do qual o “elemento primordial da lógica aristotélica, o conceito 5” coincide com o “atributo do objeto que chamam de exprimível6”. Um conceito como belo, agora em oposição à lógica aristotélica, é tão representativo da integridade de um tapete, por exemplo, como um dos seus fios quando puxados ao léu. Rompe-se, deste modo, com a categorização dos seres a partir de substância e acidentes, em que estes últimos aparecem como termos acessórios do conceito. De modo análogo, torna-se possível que nos voltemos à história da filosofia – um retrato sobre como as partes tremularam e se consumiram em benefício do todo – como a consequência narrativa daquilo que foi imune ao processo de aniquilamento das multiplicidades em benefício da retificação do projeto político ocidental. Nem mesmo, tal como apontado pela introdução do livro – feita por Fernando Padrão de Figueiredo e José Eduardo Pimentel -, o conceito pode ser entendido como realidade pré-existente. Isto faz com que o pensamento da metafísica seja entendido como encontrar um caminho em que possa ser contemplado. Deste modo, o conceito se firma como unidade do conhecimento, que, reunidos, produziriam os sistemas filosóficos.
4
BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012. p. 19. 5 Idem, p. 35. 6 Idem, p. 36. 125 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
O pensamento estoico, no entanto, decompõe isto que seria entendido como o “átomo” da metafísica, e mostra que esta unidade é constituída por partes menores, arranjadas num encadeamento mais complexo e captadas a partir da noção de acontecimento. O conceito, deste modo, não é uno, mas múltiplo.
REFERÊNCIAS BRÉHIER, Émile. Histoire de La Philosophie I: Antiquité et moyen age. France: PUF, 1994. BRÉHIER, Émile. A teoria dos incorporais no estoicismo antigo. Tradução de Fernando Padrão Figueiredo e José Eduardo Pimentel Filho; transliteração e tradução do grego de Luiz Otávio Mantovaneli. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2012 DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 2003.
126 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013
Revista RedescriçõesRevista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano IV, número 2, 2013 ISSN: 1984-7157
Editor Adjunto: Frederico Graniço Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
www.ppgf.org
www.gtdepragmatismo.com
127 Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo Ano IV, Número 2, 2013