Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana
Ano II, número 1, 2010 ISSN: 1984-7157
Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1984-7157 Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA) Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva - UFPI Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB Reuber Scofano - UFRJ Sérgio Oliveira – Faculdade São Bento- RJ Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro Editor executivo: Marcos Carvalho Lopes Logo da revista Redescrições: Paulo Ghiraldelli Jr. Logo do GT de Pragmatismo e filosofia americana: Manufato Foto da capa: Mirian Carvalho Lopes
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Revista Rede s criçõe s Revista on line do GT de Pragm ati s m o e Filosofia Norte- Americana
Ano II, número 1, 2010
Sumário Editorial
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Notas & Comentários Donald Davidson e a objetividade dos valores - Paulo Ghiraldelli Jr.
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Artigos: 1. A Verdade no fim da linha e a urgência democrática: Estudos sobre o debate Habermas & Rorty de 2000 – Frederico Graniço
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2. Literatura da Compaixão ou Literatura da Revolta? O ficcionista de que precisamos - Sérgio Oliveira
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3. Otras Voces: una lectura pragmatista de los escritos políticos de Octavio Paz – Gabriel Palumbo
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4. A filosofia de John Dewey e a epistemologia pragmatista - Rodrigo Augusto de Souza
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Traduções: Solidariedade ou singularidade? Richard Rorty entre Romantismo e Tecnocracia – Nancy Fraser
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Resenha: JENKINS, Keith. A História repensada. Tradução de Mario Vilela. Revisão Técnica de Margareth Rago. São Paulo, Contexto, 2001. Marcos Carvalho Lopes
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Editorial Demorou, mas saiu. Estamos, finalmente, colocando no ar o primeiro número do segundo ano da Redescrições. Este número sai do forno cheio de artigos interessantes, cuja leitura certamente será do agrado geral. Traz uma novidade, a seção intitulada “notas & comentários”, cuja característica é abordar de modo rápido e sucinto propostas pragmáticas para solução de problemas clássicos da filosofia. Quem a inaugura é o filósofo Paulo Ghiraldelli. No seu texto, Donald Davidson e a objetividade dos valores, aborda a versão davidsoniana da polêmica filosófica entre valor e fato. Para positivistas, juízos de valor não podem ser confundidos com juízos de fato, e só os segundo alcançam a objetividade do enunciado. Para os pragmatistas, ao contrário, todos os juízos são, no fundo, juízos de valor. Em linguagem clara e acessível, o autor nos mostra como a oposição entre positivismo e pragmatismo sobre o que são fatos e valores, tem em Davidson uma saída feliz. Este afirma surpreendentemente que juízos de valor são juízos objetivos. Justifica esse enunciado por meio de sua concepção da linguagem e da interpretação. O primeiro texto da seção Artigos é de autoria de Frederico Graniço, A Verdade no fim da linha e a urgência democrática: Estudos sobre o debate Habermas & Rorty de 2000, traz a tona um outro autor muito querido por Rorty, Habermas. Se com Davidson, Rorty tinha um diálogo sem rusgas, com Habermas a situação será um pouco diferente, como nos mostra Graniço. O segundo texto, Literatura da Compaixão ou Literatura da Revolta? O ficcionista de que precisamos, de autoria de Sergio de Oliveira, aponta para lacunas do pensamento rortyano com relação à aplicabilidade do projeto liberal, especificamente em sociedades, como a brasileira, com enormes desigualdades sociais. Em seguida, o leitor encontra o texto do argentino Gabriel Palumbo, Otras Voces: una lectura pragmatista de los escritos políticos de Octavio Paz, no qual este mostra a relação aproximada entre as posições dos pragmatistas clássicos, como James e Dewey, e as do mexicano Octavio Paz. Textos como o de Gabriel testemunham a nossa convicção sobre a presença ‘americana’ (e não exclusivamente norteamericana) do pragmatismo no mundo contemporâneo. Rodrigo Augusto de Souza, em A filosofia de John Dewey e a epistemologia pragmatista, analisa a epistemologia deweyana e suas relações com
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o que chama de humanismo naturalista. Finalmente, o número termina com o artigo, hoje clássico, de Nancy Fraser, Solidariedade ou singularidade, escrito em 1987, sobre a filosofia neo-pragmatista de Richard Rorty. Quem quer que estude Rorty deve ler esse texto, pois não só aprofunda e explica certos posicionamentos de Rorty com uma clareza que não encontramos às vezes nele mesmo, quanto, principalmente, mostra, sob a ótica do feminismo e da teoria crítica as lacunas do pensamento rortyano. O modo como ela o redescreve não invalida a filiação da autora seja com o pragmatismo enquanto um método de abordagem não dogmática dos fenômenos sociais, seja com o pragmatismo enquanto uma filosofia da democracia, mas ela renova essas duas posições filiando-as ao método crítico social. Com relação ao não dogmatismo, Fraser mostra que o elogio rortyano da contingência é reflexo de uma cultura pós-guerra fria, na qual o forte anti-comunismo reinante levouo a desqualificar de uma maneira ingênua a análise marxista do determinismo econômico nas sociedades capitalistas. Além disso, o personagem do intelectual dividido em esferas privadas e públicas, em Rorty, é fruto da sua inquietude diante da impossibilidade de reunir o intelectual Romântico e o reformista pragmático. Essa rotura trará a seu pensamento uma série de paradoxos, dentre os quais salientamos, seguindo Fraser, a desqualificação dos movimentos sociais como sujeitos coletivos capazes de transformar a sociedade - papel destinado somente aos poetas fortes; para Rorty o discurso da ruptura só pode surgir no seio de uma mente criadora, não no espaço coletivo. Por fim, mostra como a noção de democracia em Rorty é ingênua, pois acredita em uma solidariedade sem conflitos. Propõe uma redescrição do neopragmatismo, a sua transformação em uma teoria sobre a democracia radical ou um pragmatismo feminista-socialista. Há ainda, fechando o número, a resenha de Marcos Carvalho Lopes: JENKINS, Keith. A História repensada. Tradução de Mario Vilela. Revisão Técnica de Margareth Rago. São Paulo, Contexto, 2001. Boa leitura! Os editores
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Notas & Comentรกrios
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Donald Davidson e a objetividade dos valores Paulo Ghiraldelli Jr.1 Os positivistas erigiram sobre a distinção entre fato e valor o seu castelo. Os pragmatistas atacaram esse castelo advogando uma fronteira menos nítida entre fato e valor. A distinção positivista entre enunciados factuais e enunciados valorativos se fez a partir da noção de objetividade dos primeiros em contraposição a uma objetividade que os segundos jamais alcançariam. Os pragmatistas sempre foram desconfiados em relação à noção de objetividade dos positivistas. Uma boa parte do saber comum é anti-pragmatista, pois aposta que enunciados avaliativos não são objetivos, enquanto que enunciados relatando fatos são objetivos. O saber comum acredita que “O gato está sobre o tapete” é um enunciado objetivo. Há um gato, há um tapete, e o gato está deitado em cima do tapete. Vejo isso. A situação independe de mim. Relato isso que ocorre por meio da minha frase “O gato está sobre o tapete” e, assim, nada faço de subjetivo. Todavia, “O gato do tapete é dócil” não seria um enunciado objetivo, seria subjetivo. Sou eu que, com meu enunciado, estou avaliando o gato. Ele pode muito bem ser dócil só para mim ou ser dócil apenas aos meus olhos devido à noção que tenho previamente do que é ser um “gato dócil”, mas minha esposa, que já foi arranhada por esse mesmo gato, é capaz de com convicção endossar a frase “O gato do tapete é bravo”. Ela tem outra impressão do gato. A partir desse tipo de situação a maioria das pessoas imagina que juízos de fato e juízos de valor ou enunciados que relatam o que denominamos de fatos e enunciados que denominamos avaliativos são de ordens muito diferentes. E a diferença estaria na objetividade do primeiro em comparação com a não objetividade do segundo. Os positivistas sempre estiveram do lado popular, do lado dos que acreditam na divisão rígida entre fatos e valores. Os pragmatistas nunca puderam aceitar essa tese. Muitos dizem que os pragmatistas não aceitaram essa distinção porque unificaram tudo no 1
Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo, escritor e professor da UFRRJ
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anti-objetivismo. Não haveria objetividade de valores e nem de fatos. Entre os pragmatistas contemporâneos, Richard Rorty levou a fama de ter defendido essa opinião. Ele chegou a afirmar que preferia apostar antes na solidariedade que na objetividade. E quando viu que alguns se desesperaram diante dessa sua tese, ele tentou acalmá-los. Argumentando em favor do não desespero diante de sua posição, afirmou que tal tese não diz que cada um de nós vai poder falar o que quiser sem que se possa chegar a qualquer acordo. Ao contrário, sua tese diz que nas nossas vidas cotidianas mais concordamos que discordamos, e que nossas práticas de atividades solidárias nos levam a mais consensos que dissensos. Então, construímos uma quase universalidade consensual, ainda que para várias coisas e em relação a muitas situações esse consenso seja momentâneo. Todavia, não devemos nos enganar, essa quase universalidade é bastante forte sobre uma série de frases que emitimos. Há uma pequena distinção entre essa posição de Rorty, de quem fui amigo, e a posição de Donald Davidson, em relação a quem Rorty e eu tentamos seguir. Não digo que renego a posição de Rorty. Muito da filosofia de Rorty eu endossei e continuo endossando. Mas, tanto ele quanto eu nunca deixamos de ouvir Davidson. Mais que ouvir, penso que não teríamos que discordar de Davidson. Todavia, Davidson fala claramente que ele acredita em “objetividade de valores”. Então, como ficamos nós, davidsonianos? Ou seja, Davidson puxa a sardinha para outro lado: não se trata de negar a distinção entre enunciados de fatos e enunciados de valores por conta de chamar ambos para o campo da não objetividade, e sim por conta de chamarmos ambos para o lado da objetividade. Há uma série de detalhes técnicos na filosofia de Davidson para explicar essa sua posição. Mas há modos de falar dela que nos permite explicar nossa própria posição – e a dele – a respeito do assunto sem ter de necessariamente nos embrenharmos nos detalhes técnicos, o que afastaria o leitor menos paciente com a filosofia. O recado que Davidson dá para os que querem falar em objetividade, seja a de valores como de qualquer outra coisa, é o seguinte: não procure objetividade nas coisas. Aparentemente isso é esquisito, não? As “coisas” não seriam os “objetos”, aquilo que deve estar no mundo, independentemente de nós, e sobre o qual podemos falar (ou não) de modo descritivo, “objetivo”? Caso sejam, não temos que olhar para elas para buscar objetividade? Não! A objetividade não é uma propriedade outra que não a de enunciados, então, é justamente para os enunciados que estão em jogo que dirigimos atenção. Temos de buscar o modo como processamos nossos enunciados. Temos de nos lembrar que não há uma relação nossa com os objetos do mundo. Nossa relação é triangular: falamos dos objetos do mundo a partir do momento que temos uma linguagem e essa linguagem é comunicação, ou seja, é uma produção que se fez por causa de que falamos dos objetos para outros e
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com outros e por causa de outros. Desde o início – tanto individual, pessoal, quanto epistemológico – de nossa atividade de usuários de alguma linguagem estamos em uma triangulação onde nossa relação com tudo que nos cerca está mediada pela conversa com outro sobre tudo que cerca esse outro, e que nós observamos juntamente com ele. É na troca que fazemos entre o que esperamos dele diante do meio e o que ele espera de nós diante do meio, num jogo de êxitos e frustrações a respeito do que esperamos um do outro, que a comunicação se faz, ou seja, que a linguagem se desenvolve. Portanto, a objetividade, já de ponto de partida, é um elemento construído no interior da linguagem. Voltemos ao “O gato do tapete é bravo” e “O gato do tapete é dócil”. Só porque não temos ainda consenso não significa que não tenhamos alguma objetividade possível aqui. Pois, nossa conversa não vai terminar nisso, na repetição infantil dessas frases. Vamos conversar e vamos esperar a reação um do outro diante de atos do gato. Eu, que disse que o gato é dócil, o chamo e faço um afago, e olho para minha esposa e espero dela uma reação, que pode ser a de concordar com a cabeça e, então, eu começo a achar que ela vai abandonar a posição dela, de dizer que “O gato do tapete é bravo”. Mas logo em seguida eu fico frustrado, pois a reação da minha esposa é a de chamar o gato para tentar provocá-lo sutilmente e obter dele algum comportamento rebelde, a fim de desabonar o meu juízo sobre ele. Ora, isso significa que eu e minha esposa temos um alto grau de entendimento de nossas linguagens, e estamos triangulando de modo bem sofisticado, e que isso vai nos permitir chegar a algum tipo de objetividade de nossas frases. Mesmo que não pudermos chegar a um consenso total, vamos nos entender o suficiente sobre o gato, tanto que poderemos fazer mais frases, como por exemplo, “O gato do tapete é dócil, exceto quando puxamos uma de suas orelhas”. Davidson lança mão da triangulação para mostrar isso, a possibilidade do consenso suficiente para determinadas operações. Ora, mas essa triangulação não está distante da idéia de solidariedade de Rorty. E talvez nem esteja tão distante da idéia de “consenso intersubjetivo” que aparece em Habermas. Cada um desses filósofos contemporâneos entrou por detalhes técnicos sobre as questões da objetividade, mas, acima disso, o que fizeram foi participar da idéia de que a objetividade depende da conversação contínua, e que ela é possível no terreno dos valores – quanto de outros terrenos – porque a conversação é o uso da linguagem, de alguma linguagem, e esse uso implica já em uma relação social que vem junto com a própria linguagem, que faz parte dos ossos, sangue e nervos da linguagem. E a linguagem durante seu funcionamento é o contínuo exercício de se chegar a consensos momentâneos, mais ou menos duráveis. O que é isso senão o que chamamos de “objetivo”? Após uma enorme experiência dupla com o gato que falamos, eu e minha esposa não seríamos capazes de afirmar, por exemplo, que “O gato do tapete é dócil, exceto quando puxamos uma de suas orelhas” ou coisas desse tipo? E sobre tal frase diríamos no mínimo algo como “há certa
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objetividade nessa nossa avaliação” – não diríamos? Bem, mas e se no decorrer de muita experiência entre minha esposa, eu e o gato, não tivermos nenhuma frase que possamos chamar de objetiva, o que houve? A resposta de Davidson é a seguinte: do ponto de vista do intérprete [e é isso que somos: intérpretes] o que ocorreu é que ainda estamos com uma má interpretação na mão. Uma boa interpretação deverá nos dar algumas frases que mostrem nossas opiniões convergirem para algo, e aí não teremos muitas ressalvas quanto a dizer que o resultado é objetivo. Em outras palavras: há um background comum entre minha esposa e eu, e entre nós dois juntos com o gato, que nos dá a rede de conversação que fixamos sobre o assunto, e é isso que permite dizermos “verdadeiro” e “falso” para nossos enunciados, e inclusive sobre o gato ser dócil ou não. Então, por aproximação, vamos ter algumas frases que serão tentadoras para nós no sentido de que elas vão nos empurrar para atribuir a objetividade a elas, enquanto que outras frases vão nos fazer torcer o nariz se alguém disser que elas são objetivas. Davidson insiste que ele não define a objetividade como sendo a concordância. O que ele diz é que a objetividade não é impossível, no caso de valores ou qualquer outra coisa, já no ponto de partida, pois o caminho é ver que já estamos nos entendendo antes de começar a discutir sobre o gato, e que esse entendimento já é feito pelo compartilhamento de um background comum, e que isso já é nosso plano objetivo. Como somos nós que, em boa medida, construímos tal plano, então, há chances de colocarmos mais tijolos nele, ou seja, dar a ele mais frases objetivas, e uma delas sobre o assunto em pauta, sobre a questão do gato ser o não ser dócil. Ora, em certo sentido, Davidson está dando a resposta que os estóicos e epicuristas deram aos céticos acadêmicos. Claro que nem os epicuristas e nem os estóicos deram uma resposta completa aos céticos, tão boa quanto a de Davidson. Mas o modo como eles agiram é comparativamente interessante. Os céticos diziam que não podíamos justificar nossas crenças vindas dos sentidos. Os epicuristas jogaram contra eles o tudo e o nada. Disseram que tudo vinha dos sentidos, e que se não podíamos justificar o que sabemos, então teríamos de acreditar que não sabíamos nada, e uma afirmação como esta não seria apenas uma auto-refutação, mas antes de tudo algo pouco plausível para quem está no mundo conversando como nós fazemos. Os estóicos disseram algo diferente. Eles falaram para os céticos que ninguém diz uma frase e fica nela, como que esperando o aval só dos sentidos, pois em geral, logo em seguida, quem diz uma frase ou escuta uma já passa a usar da razão sobre tal frase, para dizer mais coisas a seu respeito. Os estóicos poderiam ter dito, em seguida: e o uso da razão é o uso de nossa linguagem que é social. Não disseram. Caso dissessem essa segunda parte, teriam pulado para algumas posições contemporâneas. Seriam bem amigos de Davidson.
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No limite, a aposta na objetividade, que Davidson leva adiante, está em acordo com Wittgenstein, como Davidson o leu. E nisso há um completo acordo com Rorty, ainda que às vezes a terminologia de Davidson e Rorty possa aparentar a existência de divergências entre eles maiores do que as que podemos desconsiderar. A aposta na objetividade a ser alcançada, como Davidson formula, a respeito de juízos de valores, vem da crença wittgensteiniana de que participamos de “jogos de linguagem”, e que a linguagem é uma “forma de vida”, e não um mero dispositivo lógico de nomeação. Quando sabemos a noção de algo por sabermos usar a linguagem, já sabemos a noção de muitas outras coisas. Ou seja, já estamos inseridos e criados segundo uma “forma de vida”. A essa altura, já fizemos muitas afirmações que consideramos objetivas a respeito de mais coisas do que podemos enumerar. Então, uma a mais, não será impossível, será natural alcançá-la. Ou seja, quando minha esposa e eu estamos discutindo se o gato é dócil ou não, já chegamos juntos a tantas frases que consideramos objetivas antes, só pelo fato de sermos usuários da linguagem, que seria uma loucura acreditar que não vamos chegar, a respeito disso, a frases objetivas sobre tal assunto. Acreditamos que vamos poder dizer, em um sentido específico, algo avaliativo e objetivo sobre o gênio do gato. Bibliografia indicada: Davidson, D. The objective of values. In: Problems of rationality. NY: Oxford University Press, 2004. Ghiraldelli Jr., P. O que é pragmatismo. São Paulo: Brasiliense, 2007. Ghiraldelli Jr. P. O que é filosofia contemporânea. São Paulo: Brasiliense, 2008. Irwin, T. Classical philosophy. NY: Oxford University Press, 2005.
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Artigos
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A Verdade no fim da linha e a urgência democrática: Estudos sobre o debate Habermas & Rorty de 20002 Frederico Graniço3
Resumo: O presente artigo é uma análise dos principais argumentos decorrentes do fecundo debate entre Jürgen Habermas e Richard Rorty; focalizo nos textos Verdade e universalidade deste, e A Virada Pragmática de Richard Rorty daquele. Tentarei, em dois atos, mostrar a posição de Habermas como incoerente: primeiro por lhe faltar, como aponta Rorty, radicalidade na virada lingüística, em seguida por propor um conceito essencialmente contraditório de verdade. Abstract: This article is an analysis of the main arguments arising from the fruitful debate between Jürgen Habermas and Richard Rorty. I focus on texts Verdade e universalidade, of the latest, and A Virada Pragmática de Richard Rorty, of the first. Try, in two acts, show the position of Habermas as incoherent: first because it lacks, as Rorty points out, the radical linguistic turn, then in second, because it proposes an essentially contradictory concept of truth. 1º Ato A coerência está do lado de Richard Rorty porquanto neste a compreensão lingüística da finitude e capacidade humanas se completam num todo teórico rigorosamente radical, esclarecido e por isso útil; já Habermas precisa construir dicotomias fortes entre sujeito e objeto que expliquem as contradições inerentes a seu modelo – é o caso da distinção entre mundo reflexivo e mundo prático, onde somente é sujeito a parte reflexiva, sendo a parte prática essencialmente dogmática. 2
Este artigo se refere ao debate publicado em 2000 na coletânea Rorty and His Critics [BRANDOM, R. (Ed.). Oxford: Blackwell Publishers, 2000]. Deve ser salientada a capital importância do trabalho de organização e tradução de José Crisóstomo de Souza em seu Filosofia, racionalidade, democracia. 3 Frederico Graniço é bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, e mestrando do programa de Pós-Graduação em Filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro sob orientação da prof.ª Dr.ª Susana de Castro. Email: fredgranico@yahoo.com.br. Frederico Graniço holds a BA in Social Sciences from the Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, and is graduating in Science Graduate Program in Philosophy at the Universidade Federal do Rio de Janeiro under the guidance of prof. Dr. Susana de Castro. Email: fredgranico@yahoo.com.br.
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Merece nota, primeiramente, que boa parte da argumentação rortyana no debate tem como alvo um ‘Habermas antigo’, que pensava existir um “momento transcendente” na prática comunicativa. A resposta habermasiana é evasiva nesse sentido, renegando a posição anteriormente sustentada de um momento transcendente e atendo-se, sumariamente, à pretensão de transcender – essa é uma mudança sutil porém deveras significativa4. São autores que dialogam de forma muito feliz, Habermas em seu texto concede e endossa a preocupação rortyana, fortalecendo os argumentos de seu interlocutor a partir de sua própria narrativa filosófica. O autor compartilha da idéia de que a filosofia da linguagem põe a baixo um projeto de conhecimento por representação acurada do real, porque sentenças e crenças são sempre interpretações já linguisticamente saturadas da realidade e a justificação destas não pode se embasar em nada que já não seja uma sentença e uma crença, sendo negado o acesso imediato à realidade. Todavia, e essa é a tese principal aqui, Habermas mantém kantianamente um ponto de escape para a teoria absolutamente fundamentada – o pragmatismo transcendental. O pragmatismo habermasiano é universalista e, pode-se dizer, os efeitos práticos de uma universalização do pragmatismo – a postulação de uma pragmática necessária – é semelhante ao do transcendentalismo kantiano: trata-se da antiga suposta possibilidade de um platônico desvelar do mundo capaz de construir conhecimento acima da argumentação. O ponto de apoio habermasiano no debate é o de duas hipostasiadas generalizações pragmáticas: a suposição de um mundo único objetivo com verdades intrínsecas e a necessária pretensão comunicativa de proferir transcendentalmente. Tais, para Habermas, são os “pontos arquimedianos” que fundamentam a ética e a intransigente necessidade de alegações pretensamente absolutas (embora falsamente, como será mostrado)5. Somente
este
suposto
embasamento
sobre-argumentativo,
antropologicamente
epistemológico, permite a Habermas (o que é irônico) fazer afirmações performativamente autocontraditórias como a que segue: 4
Habermas explica seus passos nas primeiras páginas de A Virada Pragmática de Richard Rorty: “(...) de uma perspectiva pragmatista, criticarei uma espécie de epistemização da idéia de verdade que eu próprio anteriormente propus. Ao fazer isso, desenvolverei uma alternativa à liquidação de alegações incondicionais de verdade.” [HABERMAS apud Crisóstomo: 2005 p.165]. Deve-se perceber que Habermas se refere não mais à verdade, à incondicionalidade, ou à transcendência, mas a alegações de verdade e pretensões de incondicionalidade e transcendência. 5 Rorty protesta. A teoria habermasiana postula que Rorty (como todos) faz suas asserções com pretensão transcendental, pressupondo necessariamente nesta performance que jamais existirão indagações que invalidem suas asserções. “Qual é a diferença entre, de um lado, um metafísico, comprometido com uma teoria correspondentista da verdade, me dizer que, quer eu saiba quer não, minhas asserções significam, automaticamente, querendo ou não, uma alegação de representar a realidade com exatidão, e, de outro lado, meus colegas peircianos me dizerem que elas, automaticamente, querendo ou não, significam uma exclusão de possibilidades, ou uma pressuposição acerca do que o futuro nos reserva? Em ambos os casos, estão me dizendo que pressuponho algo que, mesmo depois de muita reflexão, não creio que pressuponho. Mas a noção de ‘pressuposição’, quando é estendida a crenças que o alegado pressupositor nega enfaticamente, torna-se difícil distinguir da noção de ‘redescrição da pessoa A, nos termos da pessoa B’.” [RORTY apud Crisóstomo: 2005 p.128]
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Não há possibilidade natural de isolar as imposições da realidade, que tornam uma determinada afirmação verdadeira, das regras semânticas que estabelecem essas condições de verdade. Só podemos explicar o que é um fato com a ajuda da verdade de uma afirmação de fato, e só podemos explicar o que é real em termos do que é verdadeiro. [HABERMAS apud Crisóstomo: 2005 p.182]
Não radicalizar a virada lingüística é ficar submetido a este tipo de construção lógicoracional incoerente, porque alveja exatamente uma falibilidade da pureza das construções lógicoracionais. Não é possível argumentativamente a Habermas negar a possibilidade natural do conhecimento absoluto, pois esse diagnóstico por coerência não pode se supor transcendental ou em correspondência com o mundo. A tese principal aqui é uma que foi proposta pelo próprio Habermas: que a pretensão por incondicionalidade é incoerente com a descrença nessa mesma incondicionalidade.
Ou
seja,
não
é
sensato
pretender-se
incondicional
ao
negar
a
incondicionalidade6. Aqui fica claro o trunfo da estratégia rortyana de reforma vocabular: não cabe afinal descobrir a verdadeira natureza da realidade – sem verdades incondicionais –, pois esse projeto já é platônico desde o princípio. Devemos sim é abandonar o projeto de conhecimento platônico, abandonando seu respectivo vocabulário. Em vez de falarmos em possibilidade, falemos em sensatez; no lugar de proferir verdades, profiramos movimentos edificantes, ao invés de descobrir o mundo, construamos nosso conhecimento – essa mudança vocabular deve focar seu sucesso na relação com nossos sonhos mais que na relação com a realidade7. Mas Habermas não está disposto à radicalização do paradigma lingüístico, não está completamente disposto a substituir o platônico privilégio teórico do filósofo no acesso à realidade por um modelo de construção dialógica do conhecimento, um modelo democrático que defina a verdade nos termos da capacidade de convencimento livre – a capacidade de justificação. Essa posição conservadora do autor pode ser percebida nas seguintes passagens: Agora, ocorre certamente que, com a virada pragmatista, a autoridade epistêmica da primeira pessoa do singular, que inspeciona seu eu interior, fica deslocada pela primeira pessoa do plural, pelo “nós”, de uma comunidade de comunicação, diante da qual toda pessoa justifica suas opiniões. [HABERMAS apud Crisóstomo: 2005 p.174] Com o deslocamento da razão, da consciência do sujeito cognoscente, para a linguagem, como o meio através do qual os sujeitos em ação se comunicam uns com os outros, a ordem de explicação muda uma vez mais. A autoridade epistêmica passa do sujeito cognoscente, que obtém de si mesmo 6
Paulo Ghiraldelli Jr. também aponta para composições lingüísticas inconfessadamente representacionalistas no modo de compreender habermasiano: “Habermas não escapa da metáfora ocular, denunciada como problemática pelo Rorty de Philosophy and the mirror of nature. (...) a linguagem o trai, ou melhor, mostra de fato o que ele parece endossar.” [GHIRALDELLI: 2005] 7 A proposta é que preservemos a importância do conceito de realidade meramente como a atualidade a partir da qual nossas empreitadas utópicas se desejam eficientes.
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os padrões para a objetividade da experiência, para as práticas justificatórias de uma comunidade lingüística. [HABERMAS apud Crisóstomo: 2005 p.180]
A princípio Habermas parece endossar a dialogicidade democrática no processo de construção do conhecimento, o problema é que mantém apesar da mudança de paradigma uma distinção forte entre observador e ator, como se o primeiro fosse o sujeito e o segundo meramente um objeto. Quando o autor afirma que a “a autoridade epistêmica passa do sujeito cognoscente (...) para as práticas justificatórias de uma comunidade lingüística” está imaginando nessa passagem não uma troca do sujeito do conhecimento – que deveria deixar de ser o indivíduo e passar a ser a comunidade de justificação –, mas sim uma mera mudança do objeto alvejado pelo mesmo filósofomônada descobridor; isso fica claro no seu uso da pragmática universal, a comunidade cognoscente não é o sujeito da construção do saber para Habermas, mas o objeto a partir do qual o conhecimento teórico fundamentado absolutamente continua possível: Se não mais referirmos questões epistemológicas apenas à linguagem como uma forma gramatical de representação (...), relacionando-as em vez disso à linguagem como é usada comunicativamente, abre-se com isso uma dimensão adicional. Essa é a dimensão das interações e tradições – o espaço público de um mundo vivido, compartilhado intersubjetivamente pelos usuários de linguagem. Essa perspectiva expandida permite que se torne visível o entrelaçamento de realizações epistemológicas, dos indivíduos socializados, com seus processos de cooperação e comunicação. [HABERMAS apud Crisóstomo: 2005 p.173]
A mudança de paradigma não pode ser compreendida (pode, mas isso custaria exatamente aquilo que possui de mais progressista) como o simples “abrir de uma dimensão adicional”, ou como a mera troca de posição da “autoridade epistêmica” (do singular para o plural). A idéia de uma autoridade epistêmica advinda da pluralidade de uma comunidade lingüística destrói a própria idéia de uma autoridade epistêmica – agora a autoridade é democrática! “Nós” não é o objeto que bem analisado, para Habermas, permite o fundamento absoluto da teoria individual; “Nós” somos sim os sujeitos falíveis e insistentes de um conhecimento utopicamente democrático. Por isso a democracia não pode ser uma exigência epistemológica, nem mesmo suavizada na forma de uma exigência da pragmática geral: deve ser uma proposta aceita pela comunidade, ou melhor, construída por essa comunidade. Por isso a condenação por autocontradição performativa a fascistas assumidos não é útil nem franca. A pragmática democrática deve ser dialógica, não há espaço para uma pragmática universal sobre-argumentativa (por mais bem intencionada que ela seja). Habermas pensa que basta alvejar comunidades em geral em oposição a comunidades particulares – como faz Rorty – para que o conhecimento daí depreendido seja universal 8. Isso é 8
“Certamente, pode-se objetar a isso [à seguinte afirmação de Rorty: “Nem posso conceber, dado que nenhuma comunidade dessas vai ter a visão do olho de Deus, que essa comunidade ideal possa ser algo mais do que nós como gostaríamos de ser.”], que uma idealização das condições justificatórias de modo algum precisa tomar as ‘espessas’
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assim porque Habermas não vê a si mesmo enquanto sujeito situado linguisticamente em uma comunidade de justificação, em última instância não vê seu conhecimento como situado historicamente. Ora, generalizar o objeto do conhecimento não é generalizar o sujeito do mesmo, por mais que o objeto seja generalizado o status do conhecimento adquirido não alcança a universalidade, porque também no sujeito do conhecimento as limitações de finitude se mostram insuperáveis – qualquer generalização de objetos partirá sempre de um sujeito particular. O etnocentrismo declarado de Richard Rorty não é uma proposta de que devamos privilegiar nosso próprio grupo, ao contrário, é um reconhecimento de que, para mal ou para bem, nós já sempre fazemos isso – é um alerta para que tomemos ainda maiores cuidados com nosso dito “conhecimento universal”. 2º Ato Habermas critica Rorty por conceber o “realismo cotidiano” como uma ilusão. Mas uma análise minuciosa do debate perceberá que é a concepção habermasiana de verdade que condena o ‘sujeito cotidiano’ a conviver com ilusões. Para justificar a necessidade da pretensão por validade incondicional Habermas se embasa na suposta ingenuidade cotidiana do mundo da vida, ele nos diz que nesse plano os sujeitos precisam acreditar sem reservas em seus conhecimentos, necessitam ser dogmáticos, isso explicaria porque no plano reflexivo suas alegações se pretendem eternas e imutáveis. Mas ora, se a filosofia da linguagem demonstra a justificação, nas palavras do próprio autor, como “aprisionada ao círculo mágico” de sustentação de crenças com outras crenças – pois que “o acesso direto a condições de verdade não interpretadas nos é negado” – então que dizer da certeza comportamental além de que se trata de uma ilusão? O modelo de Habermas não nega que se trate de uma ilusão, afirma tão-somente que é uma ilusão necessária à prática humana – desfazermo-nos desta ilusão significaria uma “autoincompreensão patológica”9. O que complica as coisas para essa forma de interpretar é a questão sobre como alguém que se convence dela (ou alguém que a constrói – como Habermas) pode manter-se fiel ao modelo. Somente a criação de um abismo entre sujeito e objeto permite que no plano prático as pessoas, mesmo cientes deste debate, se deixem levar por suas crenças de forma dogmática. Os sujeitos do dia-a-dia (aqui tomados como meros objetos) estão fadados a se iludirem diariamente e a dramatizarem perenemente quando suas crenças se espatifarem em frangalhos, estão características de uma determinada cultura como seu ponto de partida; antes, ela pode começar com as características formais e processuais das práticas justificatórias em geral, que, afinal de contas, podem ser encontradas em todas as culturas – mesmo que nem sempre de forma institucionalizada.” [HABERMAS apud Crisóstomo: 2005 p.197] 9 Isso propõe deselegantemente que pessoas como Rorty, que afirmam que não pensam em suas verdades como eternas e imutáveis, estariam (de forma confusa) ‘se iludindo sobre suas próprias ilusões necessárias’.
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condenados – acima de tudo – a construírem novas crenças e postularem-nas uma vez mais como eternas, até que se decepcionem novamente. Estes sujeitos (aqui objetos) condenam, necessariamente, seus antepassados ao erro e congratulam-se eternos geração após geração – eis o “necessário” dogmatismo do mundo da vida que nos fala Habermas. Para que o diagnóstico não seja tão cruel e preocupante como expusemos aqui, Habermas precisa indicar, mesmo que sutilmente, que o “necessário” dogmatismo prático seja amortecido por conta das discussões no nível reflexivo: Inversamente, essa consciência falibilista [do plano reflexivo] reage também de volta sobre as práticas cotidianas, sem por isso destruir o dogmatismo do mundo vivido. Pois os autores, que, como participantes de uma argumentação, aprenderam que nenhuma convicção é prova contra uma crítica, desenvolvem, no mundo vivido, também atitudes bem menos dogmáticas em relação às suas convicções problematizadas. [HABERMAS apud Crisóstomo 2005 p.203]
Mas se nos é possível aprender que nenhuma convicção é prova contra uma crítica, se além disso podemos aprender que a validação de nossas crenças é uma questão de justificação e não de correspondência, por que precisamos permanecer em essência dogmáticos? Se podemos aprender que a verdade não está em uma relação imediata com o mundo, mas é somente o nome que temos dado
(inapropriadamente)
para
a
justificação
numa
relação
comunitária
de
razões
intersubjetivamente pertinentes, por que precisamos acreditar em nosso conhecimento como perfeito, eterno e imutável? Por que, então, é necessária a divisão do mundo em dois planos: um no qual somos sujeitos que constroem seu conhecimento abertos à possibilidade de falibilidade, outro no qual somos objetos que agem conforme o conhecimento previamente construído, como autômatos obedientes? Quando Habermas é forçado a desistir de sua concepção epistêmica de verdade já não pode mais dar nenhuma boa resposta a estas questões. Desde quando a verdade deixa de ser algo definível – mesmo na forma de uma idealização – já não há nenhuma boa razão para continuarmos buscando esse ente. Resta a Habermas o diagnóstico do pessimismo, resta explicar (não justificar) que não podemos agir diferente, que estamos atados a um modo realista de pensamento, que precisamos mecanicamente da categoria de uma validade incondicional, não que nos seja útil reflexivamente, mas que simplesmente nossos mecanismos não funcionariam corretamente se assim não fosse. Em suma a preocupação de Habermas é com “o tranqüilo funcionamento de jogos e práticas de linguagem”. Um determinismo pragmatista associado a uma preocupação com a “tranqüilidade” contemporânea: eis as conservadoras motivações de Habermas.
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Resta, contudo, construir um novo paradigma de conhecimento em alternativa ao platonismo. Se isso for possível e o resultado for um modelo com métodos que nos pareçam mais interessantes, então poderemos nos dedicar a uma nova forma de construir conhecimento – a uma nova forma de “heroísmo espiritual”, nas palavras de Rorty, caracterizado pelo urgente conceito de democracia e substituto daquele heroísmo pautado na apreensão correta da realidade. Penso que uma tarefa deste tipo preenche e vaza dos limites estritos acadêmicos, não sendo totalmente possível em laboratórios individualizados, mas sim exigindo experiências democráticas vivas e pulsantes. Permitam-me, nesse sentido, delinear um aspecto em conclusão. Richard Rorty propõe o pragmatismo como uma alternativa ao platonismo: o que serve do conhecimento não é sua relação com a hipostasiada realidade, mas seus efeitos práticos na comunidade. Essa é uma mudança que parece saudável para nossa comunidade. Todavia, me soa necessário que a relação entre teoria e prática não seja abordada somente no plano teórico – não parecerá sensato nesse novo paradigma a existência de instituições (formadas de indivíduos) dedicadas exclusivamente à teoria, como que se estivessem “fazendo sua parte”. O exercício teórico deverá ser um exercício carregado de solidariedade, porque vinculado intimamente aos efeitos na comunidade, por isso não se aterá aos limites da teoria. Nesse ponto parece que Paulo Freire ainda nos tem muito que ensinar10. BIBLIOGRAFIA ALMEIDA, Guido A.. Verdade e Objetividade; em Revista Filosófica Brasileira, vol. III, nº 1, p. 9 23 – Rio de Janeiro: Vozes, 1986. Coleção Grandes Cientistas Sociais: Habermas / Barbara Freitag, Sérgio Rouanet, organizadores; Florestan Fernandes, coordenador – São Paulo: Editora Ática, 1993. SOUZA, José Crisóstomo de (org). Filosofia, Racionalidade, Democracia: os debates Rorty & Habermas. São Paulo: Unesp, 2005. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa / Paulo Freire. – São Paulo: Paz e Terra, 1996 FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2005. GHIRALDELLI Jr., Paulo. “Neopragmatismo e Verdade: Rorty em conversação com Habermas”. em Utopia y Praxis Latinoamericana, v.10 n.29 Maracaibo 2005.
10
“Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática.” [FREIRE: 1996 p. 59]
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HABERMAS, Jürgen (A). “A Unidade da Razão na Multiplicidade de Suas Vozes”. em Revista Filosófica Brasileira, vol. IV, nº 4, p. 53 – 87 – Rio de Janeiro: Vozes, 1989. HABERMAS, Jürgen (B). Consciência Moral e Agir Comunicativo. tradução de Guido A. de Almeida. – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. HABERMAS, Jürgen (C). “Motivos de Pensamento Pós-Metafísico” em Revista Filosófica Brasileira, vol. IV, nº 4, p. 25 – 53 – Rio de Janeiro: UFRJ, 1989. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action: Reason and the Rationalization of Society. BOSTON: Beacon Press, 1984. HABERMAS, Jürgen. The Theory of Communicative Action: Lifeworld and System – a critique of functionalist reason. BOSTON: Beacon Press, 1987. HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação – ensaios filosóficos; ISBN 978-85-15-02623-4 Tradução Milton Camargo, EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004. RORTY, Richard. A Filosofia e o espelho da natureza. tradução Antônio Trânsito; revisão técnica César Ribeiro de Almeida. – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. RORTY, Richard. “Feminismo, ideologia e desconstrução”. em ZIZEK, Slavoj (org.) Um mapa da ideologia. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto, 1996. RORTY, Richard. Objetivismo, relativismo e verdade; tradução Marco Antônio Casanova. – Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1997. RORTY, Richard. Pragmatismo: a filosofia da criação e da mudança. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2000. ROUANET, Sérgio Paulo. “Teoria Crítica e psicanálise” / – Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará, 1983. DE CASTRO, Susana. “Ideologia, um conceito atual?”; em Comunicação & política, v.24, nº3, p.115-129 2006.
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Literatura da Compaixão ou Literatura da Revolta? O ficcionista de que precisamos
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Sérgio Oliveira∗ RESUMO O presente artigo procura, malgrado o reconhecimento da enorme relevância da tarefa social que Richard Rorty destina ao ficcionista, apontar alguns possíveis limites ao seu pensamento, no que diz respeito à apropriação integral e descontextualizada de suas idéias à realidade de sociedades marcadas pela dominação econômica e pelo atual estado da produção cultural nelas difundida. Palavras-chave: Richard Rorty, ideal liberal, função social da literatura. ABSTRACT Despite the acknowledgement of the relevance of that social task attributed to the fictionists by Richard Rorty, this paper aims at suggesting some possible limits to the reception of his thought, especially in societies characterized by economic domination and by the present condition of cultural industry there. Keywords: Richard Rorty; liberal ideal; social role of literature. Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma. Ele diz: não posso estou com fome. Ela repete exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio, no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? – pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar. Na noite negra os dois estão despertos. Até que, de dor e cansaço, ambos cochilam, no ninho da resignação. E eu não agüento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta. Clarice Lispector. “As Crianças Chatas”.11
Este texto é a versão final do trabalho apresentado por ocasião do I Colóquio Internacional de Filosofia Richard Rorty, em outubro de 2009, na UFRJ. ∗ Bacharel em Psicologia (UFRJ). Mestre em Filosofia (PUC-Rio). Doutor em Filosofia (PUC-Rio) com a tese Conhecimento Sem Espelhos: Uma Alternativa Neopragmática ao Desejo de Objetividade. 11
LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 23.
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Após lermos os escritos do filósofo Richard Rorty, inevitavelmente, o incômodo nos acompanha. É que seus textos insistem no caráter circunstancial daquilo que, muitas vezes, tomamos por necessário. Assim, uma vez reconhecida a contingência dos vocabulários com que interagimos uns com os outros, podemos nos sentir incomodados com a linguagem específica que herdamos por dois grandes motivos. O primeiro deles tem a ver com o reconhecimento de que, se nos houvermos pautado unicamente por essa linguagem, “teremos passado a nossa vida a dar passos já dados” 12, a organizar nossas vidas, sem muita originalidade, repetindo, de forma mais ou menos estereotipada, as palavras dos nossos antepassados. Teremos, enfim, malogrado em nossa existência. E isto não por não termos sabido viver corretamente, como se punha e se põe a idéia do malogro no esquema filosóficometafísico, mas por não termos sido suficientemente ousados. Trata-se da espécie de pathos que acometeria certo esteta da existência, mais precisamente, aquele indivíduo que vive sob o que Harold Bloom, sempre segundo a interpretação de Rorty, chamou de “forte angústia da influência”, ou seja, o “horror de descobrir que é apenas um cópia ou uma réplica”13. Portanto, alguém que pretenda estilizar sua vida, isto é, compor com a mesma uma espécie de poema inédito, está sempre ameaçado pela perturbadora presença das composições anteriores; é com o fantasma dessas composições que haverá de medir o ímpeto e a força de sua dissidência e de sua própria obra. A segunda razão se relaciona de perto com a melhor maneira de realizarmos aquilo a que se tem chamado de “a esperança liberal”. Para este novo objetivo, o desejo anteriormente mencionado, o de obter uma autonomia do tipo bloomiana através da ironia autocriadora, não se faz de ajuda. Em nada ele pode contribuir para atenuar este novo incômodo. O ponto aqui é inteiramente outro. O ponto é que, se não cremos mais em algum centro fundamental de autoridade que ajude a nos conduzir à excelência moral, ou seja, se passamos a ver nossos vocabulários morais como circunstanciais, começamos automaticamente a nutrir uma desconfiança acerca da crença de que nossa própria cultura já consiga encarnar definitivamente alguma excelência. Se o metafísico pode correr o risco de cair em tal armadilha (o histórico dos que sucumbiram a esta tentação particular não é pequeno), um filósofo pragmático, ou seja, alguém que está disposto a ver nas práticas rotineiras de sua cultura apenas o uso padronizado de certos instrumentos, não deveria fazê-lo. O que se quer dizer aqui é que, uma vez que tenha sido observado o quanto nossos vocabulários são produções circunstanciais, começamos a nutrir uma desconfiança quanto a termos nascido na cultura que nos dotou até mesmo do melhor vocabulário disponível para a consecução do 12 13
RORTY, Richard. Contingência, Ironia e Solidariedade. [Tradução de Nuno Fonseca]. Lisboa: Presença, 1994, p. 48. RORTY, Richard. Op. cit., 1994, p. 48.
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ideal liberal com que muitos de nós nos identificamos. Este ideal refere-se à crença de que a dor física e o sofrimento moral são o que de pior podemos fazer14. É neste sentido que a literatura ativamente buscada pelos que desejam reorientar suas ações em função de uma maior aproximação deste ideal não seria mais, como no primeiro caso em que nos sentimos incomodados, composta por narrativas daqueles que buscaram o aperfeiçoamento privado. Agora, são os textos que se concentraram na lembrança de um cuidado com o outro, tornado possível pela transformação das práticas a partir de novas políticas culturais, que se mostrariam úteis. Assim, para este último objetivo, descrições detalhadas sobre como dândis, insatisfeitos com a mediocridade e a insipidez da vida burguesa, reinventam estilisticamente suas existências, no isolamento narcísico a que se votam, em moradas distantes, não se fazem tão importante quanto a lembrança, por exemplo, de como seres afortunados podem se mostrar particularmente insensíveis as aflições daqueles que são explorados. Neste sentido, para estes novos fins, as experimentações do duque Jean des Esseintes, de Às Avessas, de Huymans, tornam-se bem menos úteis do que as denúncias das condições da vida operária em A Mãe, de Gorki. Há um ponto que merece ser esclarecido desde já, tamanho o número de vezes que é levantado, quando se fala, com Rorty, na contingência dos vocabulários. Trata-se da ameaça do relativismo que o abandono de um fundamento para a moral poderia levar. No entanto, do simples passo de seguirmos a sugestão rortyana de imaginar os vocabulários como contingentes, não se deve pensar que se descortine qualquer relativismo moral, pois sempre podemos contar com apreciações acerca de o quanto estamos próximos ou distantes dos fins por nós mesmos acordados. O pragmatista, neste sentido, não deseja reconstruir todo o pensamento ético ab ovo, mas guiar-se por um contexto mais ou menos amplo da tradição com que concordemos trabalhar. O ideal da supressão da dor e do sofrimento moral desnecessariamente infligidos é compartilhado por diversas tradições nossas. Talvez possamos contribuir para este ideal com a libertação de nossa imaginação. Assim, pessoas movidas pela inquietude particular de que não estão dotadas do melhor vocabulário à disposição para a concretização do ideal liberal acima enunciado mostrar-se-iam abertas à possibilidade de se desembaraçarem de um certo tipo de arrumação em suas crenças. Elas o fariam porque percebem que mesmo o melhor entre nós pode cometer atos cruéis ou se manter indiferente diante da crueldade, quando esta é infligida a tipos que são descritos com termos diferentes daqueles que usamos para os de nossa própria comunidade de identificação. É certo que a dor é nãolingüística e os atos de humilhação geralmente conspícuos, sendo, ambos, portanto, facilmente identificados; o problema, no entanto, é que normalmente não nos importamos quando tal sofrimento
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Tal como Judith Shklar define o fim com que caracteriza o liberal. Cf. RORTY, Richard. Op. cit., 1994, p. 104.
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físico ou moral (a dor ou a humilhação) é praticado contra aqueles tipos que tornamos distantes de nós por força da descrição que recebem. Quando, entretanto, os que foram postos distantes de nós, por força da descrição que receberam, passam a ser redescritos nos termos que usualmente empregamos para falar dos que nos são próximos, permitimos que eles, os “outros”, possam ser tomados como merecedores dos mesmos cuidados e da mesma preocupação que dedicamos aos “nossos”. É claro que aqueles que já se viram persuadidos a considerar sua linguagem como uma construção contingente tendem a se mostrar mais abertos a eventuais revisões nas narrativas de que se valem. Podem mesmo se esforçarem neste sentido. Este esforço pode se expressar pela procura por se expor a um grande número de livros e filmes que consigam fazer, em suas descrições do “outro”, que este se pareça com “um de nós”. Se contarem com suficiente talento para se tornarem ficcionistas, essas pessoas poderão, inclusive, contribuir com o aprimoramento moral dos membros da comunidade em que se inserem, fazendo circular, na forma de romances ou outros tipos de narrativas, os novos arranjos que conseguiram providenciar para os antigos termos que ali circulavam. Havendo procedido desta forma, se tornarão intelectuais transformadores e terão dado curso ao que de mais interessante Rorty poderia esperar de uma cultura a que chama de “literária”15. Um ponto importante para o qual o autor nos chama sempre atenção é o de que o êxito de tal empreitada deve contar com narrativas que se valham de nomes próprios, resistindo-se sempre ao apelo dos princípios gerais. Assim, a vocação do ficcionista que se põe uma missão social é muito diferente das pretensões da metafísica e o experimento proposto por aquele não pretende ocupar o lugar dos que desejam ver todos os homens a partir de um único contexto. Além disso, somos passíveis de nos mostrar mais sensibilizados diante dos pormenores, por exemplo, da angústia excruciante a que é levado Maurice Hall na Inglaterra do começo do século XX, no romance de Forster, ou (mais perto de nós) com a dilacerante condição de desamparo de Macabéa numa “cidade feita toda contra ela”, denunciada por Clarice Lispector, do que com princípios morais gerais. Assim, numa cultura consciente de seus valores seculares e liberais, o experimento da ficção poderia funcionar, continuamente, para que se produzisse este tipo de mudança: transformar instituições a partir da desumanidade tornada concretamente visível por uma literatura da compaixão. Seria a materialização de uma espécie de “fúria generosa”, expressão que Rorty toma 15
Uma imensa agenda se abre aqui para o campo multidisciplinar da educação. Podemos não ser capazes, todos, de fazer filmes ou escrever contos brilhantes e contundentes, mas podemos, como atores institucionais ilustrados por essa proposta, trabalhar para a materialização de espaços dentro de escolas com vocação mais democrática e momentos, em sua rotina, onde um trabalho com esses filmes e contos poderia ser realizado. Tal trabalho poderia contribuir para a revisão dos conteúdos das práticas curriculares, as quais, como é sabido, longe de simplesmente “distribuir um capital cultural”, normalmente privilegiam uma cultura com que certos grupos se sentem mais à vontade do que outros. Um ponto, no entanto: Rorty não subscreve o fim do cânone, mas defende sua ampliação.
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emprestado de George Orwell, contrapondo-a à “indignação selvagem” de que fala Swift16. Faz-se “generosa” à medida que as modificações sugeridas nos escritos dos ficcionistas decorrem tão simplesmente de um trabalho persuasivo direcionado àqueles que já aprenderam a ver que a dor e a humilhação é o que de pior podemos causar ao outro. Se concordarmos com Rorty que este aprendizado já se difundiu como resultado da aculturação a que fomos submetidos, que esta sensibilidade já está disponível entre a maioria de nós, cidadãos de comunidades liberais, pode-se imaginar a responsabilidade e a urgência da tarefa que ele procura destinar ao escritor ou ao cineasta. Com suas histórias e com base sempre nesta sensibilidade, o ficcionista poderá conseguir aumentar o espectro de inclusão de pessoas que passaremos a considerar como “um de nós”. Resumamos a idéia até aqui. Rorty justifica a imensa relevância, para as sociedades liberais, daqueles que se engajam, através de suas obras, na tarefa de ampliação contínua dos nossos sujeitos de consideração. Como se pode constatar, o trabalho dos ficcionistas, assim, se mostraria mais útil ao aperfeiçoamento de nossa imaginação moral do que os tratados metafísicos. Contudo, note-se que é principalmente por acreditar na presença dessa sensibilidade entre nós que ele justifica a “fúria generosa” dos ficcionistas e diz que tal atitude faz-se suficiente hoje: Rorty assume explicitamente a crença de que, em tais culturas educadas no credo liberal, “a falta é o resultado da ignorância e não da malícia, e (...) o mal só precisa ser notado para ser remediado”17. Há que se notar, igualmente que, conforme a caracterização de Rorty, este apelo mais generoso à sensibilidade não seria, normalmente, a atitude do metafísico ou dos que se inspiram nos tratados teológicos ou ôntico-morais: Pois os últimos acreditam que a mudança social não é uma questão de ajuste mútuo, mas de recriação – que, para tornar as coisas melhores, nós precisamos criar um novo tipo de ser humano, um que esteja atento para a realidade ao invés de para a aparência. Sua fúria não é generosa, no sentido de que ela não está dirigida à falta de compreensão de pessoas em particular frente a outras pessoas em particular, mas antes a um déficit ontológico comum quer às pessoas em geral quer, pelo menos, a todas as pessoas que vivem na presente era. A generosidade da fúria de Dickens, Stowe e King [, por outro lado,] aparece em sua suposição de que as pessoas não precisam passar por uma reestruturação total de seu aparato cognitivo para serem capazes de lidar com o sofrimento alheio. Ao invés disso o que é necessário é simplesmente que as pessoas voltem seus olhos para aqueles que estão sofrendo e notem os detalhes desse sofrimento.18
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RORTY, Richard. “Heidegger, Kundera e Dickens”. In: RORTY, Richard. Escritos Filosóficos, Vol. 2: Ensaios sobre Heidegger e Outros. [Tradução de Marco Antônio Casanova]. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999, p. 110. 17 RORTY, Richard. “Heidegger, Kundera e Dickens”. In: RORTY, Richard. Op. cit., 1999, p. 110. Nós nos perguntamos, aqui, se isto se trata de um eco em Rorty de uma variante qualquer da tese socrática de que “o mal é ignorância do bem”. Se assim interpretarmos o que diz Rorty, isto o faria entrar em choque com o que certamente terá aprendido com a contingência do desejo em Freud. Com os trabalhos deste último, reconhecemos que se pode desejar igualmente o mal, que a crueldade pode ser objeto de um gozo positivo e ativamente procurado, o que tornaria, é claro, o trabalho de persuasão de que se vale o ficcionista muito mais frustrante. 18 RORTY, Richard. “Heidegger, Kundera e Dickens”. In: Op. cit., 1999, p. 110.
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Concordamos com Rorty quanto à sua afirmativa de que a força da literatura não deveria ser negligenciada, se seu objetivo for, por exemplo, continuar o tipo de trabalho a que William Blake promoveu com suas Songs of Innocence, em 1789, denunciando as condições em que trabalhavam os meninos que faziam as vezes de “escovas humanas” no ofício de limpa-chaminés, os conhecidos climbing boys. De forma similar, sabemos que a literatura de Charles Dickens, um dos exemplos preferidos de Rorty, ajudou a promover mudanças em relação ao tratamento que era normalmente destinado aos doentes e aos órfãos. Oscar Wilde também não terá tido objetivos diferentes da supressão do horror desnecessário ao narrar as condições abjetas das prisões inglesas em “O Caso do Guarda Martin”, condições, a propósito, que veio a conhecer bem de perto. Na mesma esteira, podemos continuar a manter expectativas quanto ao êxito de contos como os de Annie Proulx, a saber, Brokeback Mountain, e de sua tão digna adaptação para o cinema, dirigida por Ang Lee, bem como de filmes como Boys Don’t Cry, de Kimberly Peirce. São produções como estas que respondem progressivamente pelo abandono conjunto de certos hábitos inocentados de intimidação, sustentados pelas representações hegemônicas e circulantes sobre a sexualidade e o afeto. Seguimos esperando que textos e filmes como estes consigam persuadir grande parte de seu público de que o sofrimento comumente infligido a determinados homens e mulheres pelo fato banal de se sentirem atraídos por pessoas do mesmo sexo não deveria ser mais alimentado por aqueles que, para além do discurso proclamado, dizem se guiar pelo credo liberal como acima definido. Em que pese a importância de todas essas transformações em vista das quais o ficcionista trabalharia, formas de opressão em nosso território, como as denunciadas, por exemplo, por parte de Paulo Freire, e testemunhadas nas condições desumanas com que continuamos a vivenciar as relações de trabalho em nossa sociedade precisam receber um destaque maior do que normalmente têm recebido entre nós. Estarão nossos escritores partilhando da ideologia do fim da história e da inevitabilidade da produção de um excedente – agora chamados de “os de fora”, como lembra Eduardo Galeano? Ou o silêncio de nossos ficcionistas em torno do tema será sintoma de uma impossibilidade de ação? Poderá ser mais significativo ainda? Poderia envolver um medo da perda eventual dos privilégios de que gozam? É por esta razão que nos perguntamos aqui até onde essa ampliação da mentalidade liberal, no sentido de uma diminuição da crueldade, poderia ser admitida no interior de uma sociedade que tem exatamente na mais impudente exploração seu sustentáculo? Reiteramos não duvidar tanto de que diversas reformas locais de cunho social possam ser produzidas, entre nós, com o tipo de proposta de educação sentimental apresentada por Rorty. Entretanto, se é mesmo possível que certos grupos possam gradualmente ser convencidos a incluir, como sujeitos de seus cuidados, membros de
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outros grupos com que originalmente não conseguiam se identificar19, poderá a exposição detalhada dos sofrimentos por que passa toda uma classe social sensibilizar uma outra classe que sabe necessitar do jugo daquela? A quem, neste caso, se deveria endereçar um processo de persuasão com relação à necessidade de se transformarem as condições a que se encontram submetidas as camadas exploradas de nossa população? Àqueles que sabem o quanto estes últimos são explorados, àqueles que os exploram consciente e efetivamente, alienando-os tanto do produto de seu trabalho quanto da chance de inteligibilidade da situação de que participam? Àqueles que, hoje, fazem questão de fazer esquecer as condições materiais de dominação pela difusão dos mais diversos discursos pseudomísticos com que se sustentam como naturais tanto o sofrimento de uns quanto o êxito de outros? Sabemos, é claro, que a via por que Rorty procura estabelecer o cuidado pelo outro é antes o da identificação compassiva do que o da argumentação racional. Porém, como procurar promover tal identificação, se estes grupos já houverem estabelecido sólidos laços com ambiências culturais cujas produções evitam estrategicamente os temas das condições de vida dos dominados? Não poderia ser verdade, também, que estes últimos, os responsáveis por tais produções culturais, com o urgente fim de sobreviverem nesse nosso momento histórico ou, talvez, até mesmo por razões menos angustiantes (por exemplo, simplesmente para continuarem a receber os privilégios com que se domou sua imaginação) deixaram de ter a coragem de desagradar quem lhes está a financiar a arte ou a prestigiar suas obras? Podemos imaginar um desejo contínuo de se cooptar a arte hoje? Outro ponto: como atingir o segmento privilegiado da sociedade com descrições contundentes sobre a exploração das vidas das classes subalternas, providenciadas, talvez, por um 19
Não sejamos ingênuos aqui. A proposta de integração de muitos dos que tratávamos por “eles” como sendo “um de nós” acompanha de perto o desejo de inclusão daqueles na ordem do consumo. A venda de kits identitários tornou-se uma estratégia do mercado contemporâneo, que, agora, exibe cinicamente a retórica da preservação das raízes específicas de nossa cultura para oferecer bens de consumo às populações antes ignoradas pelo mercado. Este já capturou há muito o desejo de singularidade com que se dizia querer estilizar a vida. Na sociedade de consumo, todos são convidados a se reinventarem continuamente. Sobre este ponto, talvez alguma coisa possa ser dita acerca da personagem de Richard Rorty: o ironista liberal. Richard Shusterman, por exemplo, desenvolveu, em seu “Vivendo a Arte”, semelhante crítica, procurando convencer-nos de que “a compulsão rortyana da autocriação guiada pela inovação pode, ela mesma, ser vista como uma forma de não-autonomia, uma escravidão em relação ao novo e à individualidade” (SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte. [Tradução de Gisela Domschke]. Rio de Janeiro: Editora 34, 1998, p. 218). Rorty, assim, com seu esteta ironista, só aparentemente libertário, estaria ajudando a gerar a ansiedade pela inovação constante, que se naturalizou na cultura contemporânea e graças a qual tudo perde, de forma vertiginosamente rápida, seu valor de uso. Sua filosofia, ao menos aí, é descrita antes como um reflexo do que como uma reflexão dessa mesma cultura – a pior acusação que se poderia fazer a um pensador. Shusterman chega mesmo a dizer mais adiante: “não é preciso ter uma visão tão perspicaz ou subversiva para enxergar em sua glorificação e busca do novo, em sua ‘pesquisa estética em vista de nova experiência e nova linguagem’, o velho culto do novo que alimenta o ritmo rápido e incessante do consumo de mercadorias de nossa sociedade consumista do capitalismo avançado” (op. cit., p. 221).
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ficcionista mais obstinado e cônscio de sua missão social, se, ativa e cinicamente, tais descrições forem evitadas por aquele mesmo segmento de pessoas abastadas? A propósito, isto não é difícil de acontecer em um tempo onde as produções culturais não conseguem mais se impor como canônicas. Pelo contrário, elas se multiplicam de maneira incessante e, por obra desta multiplicação e da velocidade com que se reproduzem, têm seu efeito dispersado e rapidamente esquecido por quem, imprudentemente, cruzou seu caminho, não devendo tê-lo feito. Mas, então, pode parecer que se está a errar o alvo dos escritos que visam a procurar uma sociedade mais inclusiva. Salvo engano, Rorty fala de uma tarefa dos ficcionistas dentro de uma sociedade mais ou menos coesa, democrática e comprometida em torno de um ideal liberal. É certo que não estamos em tal sociedade. Podemos ler em um texto de Frei Betto, disponível na Internet, a saber, “Cidadania: Educação em Direitos Humanos”, que no Brasil, “o último país a libertar seus escravos na América Latina, após 320 anos”, a prática da escravidão ainda “persiste de modo oficioso, atingindo cerca de 16 mil trabalhadores”. Outro ponto: se, por um lado, a escola é imaginada como forma de minorar a injustiça social, por outro, as condições de vida de muitos municípios-satélites às metrópoles são tão dramaticamente injustas que não permitem resultados diferentes da formação de um refugo social certo, nesses locais, do qual esta mesma sociedade que fala na “educação para todos” precisa. Que poderosas máquinas de comunicação possam ter a desfaçatez de anunciar que estamos todos envolvidos no mesmo projeto da construção de uma nação, quando a realidade da casa-grande e da senzala ainda se faz presente entre nós faz-nos descrer de que, por aqui, “o mal só precisa ser notado para ser remediado”. Talvez seja mais acertado pensar em outra hipótese: a de que a história de nosso país possa ser mais utilmente contada como a história dos negócios conduzidos por uma elite. Segundo o Atlas da Exclusão Social no Brasil, organizado por Márcio Pochmann, 0,001% da população conta com um patrimônio cujas cifras chegam a corresponder a 42% de toda a riqueza gerada no decorrer de um ano pelo país, seu Produto Interno Bruto. É difícil pensar que, nessas condições, “a falta (...) [seja] o resultado da ignorância e não da malícia”. A quem os romancistas e os cineastas deveriam se dirigir, por estas nossas plagas, se desejarem, de fato, uma sociedade mais inclusiva? Quem poderia, em nossa terra, fazer as vezes de poetas da transformação? A resposta em Rorty, já a conhecemos. Mas há outras. Quando se fala em libertação, Paulo Freire faz sua aposta no oprimido. Para ele, o verdadeiro ato de libertação nunca será fruto de uma doação do opressor: a única generosidade de que este se mostra capaz era a da esmola e do assistencialismo. Neste sentido específico, continuam oportunos e merecem ser lembrados os parágrafos de Paulo Freire em tudo contrários a esta forma pífia de solidariedade, tão
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ao gosto daqueles que não pretendem reorganizar as práticas corporificadas da produção da desigualdade social que podem ajudar a manter ou para as quais podem mesmo trabalhar ativamente: O poder dos opressores, quando se pretende amenizar ante a debilidade dos oprimidos, não apenas quase sempre se expressa em falsa generosidade, como jamais a ultrapassa. Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua “generosidade” continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A “ordem” social injusta é a fonte geradora, permanente, desta “generosidade” que se nutre da morte, do desalento e da miséria. Daí o desespero desta “generosidade” diante de qualquer ameaça, embora tênue à sua fonte. Não pode jamais entender esta “generosidade” que a verdadeira generosidade está em lutar para que desapareçam as razões que alimentam o falso amor. A falsa caridade, da qual decorre a mão estendida do “demitido da vida”, medroso e inseguro, esmagado e vencido. Mão estendida e trêmula dos esfarrapados do mundo, dos “condenados da terra”. A grande generosidade está em lutar para que, cada vez mais, estas mãos, sejam de homens ou de povos, se estendam menos, em gestos de súplica. Súplicas de humildes a poderosos. E se vão fazendo, cada vez mais, mãos humanas, que trabalhem e transformem o mundo.20
Segundo a proposta de Paulo Freire, uma forma mais libertária de vida parece depender, no entanto, de uma luta solidária empreendida por estes mesmos oprimidos. Tal luta, restauradora de sua humanidade, se expressaria por uma práxis que procuraria, no limite, a eliminação das condições que geram opressores, de um lado, e oprimidos, de outro – práxis amorosa, portanto, como insiste o autor, à medida que retiraria ambos esses atores de tão limitada situação numa roda da violência e de diminuição de nossas capacidades imaginativas. Para ser capaz de um tão grande amor há que se conhecer o intolerável e aprender a abominá-lo. O caminho que Freire imaginava para o oprimido pode ter como floração possível uma literatura de conscientização. Malgrado toda a generosidade dessa literatura, ela não seria uma literatura de compaixão, mas uma literatura da sã revolta.
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FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 47ª. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005, p. 33-34. Em nota a uma passagem próxima à aqui citada, Freire nos lembra o contundente Sermão contra os Usurários, de São Gregório de Nissa (330), reproduzido a seguir: “Talvez dês esmolas. Mas, de onde as tiras, senão de tuas rapinas cruéis, do sofrimento, das lágrimas, dos suspiros? Se o pobre soubesse de onde vem o teu óbolo, ele o recusaria porque teria a impressão de morder a carne de seus irmãos e de sugar o sangue de seu próximo. Ele te diria estas palavras corajosas: não sacies a minha sede com as lágrimas de meus irmãos. Não dês ao pobre o pão endurecido com os soluços de meus companheiros de miséria. Devolve a teu semelhante aquilo que reclamaste e eu te serei muito grato. De que vale consolar um pobre, se tu fazes outros cem?”
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OTRAS VOCES UNA LECTURA PRAGMATISTA DE LOS ESCRITOS POLÍTICOS DE OCTAVIO PAZ Gabriel Palumbo U.B.A. – Ciudadanía y Democracia RESUMEN: En búsqueda de otras voces que hablen de política, el presente ensayo intenta encontrar en la literatura política de Paz, rastros que permitan establecer un itinerario pragmatista. No se trata tanto de encontrar, a modo de los estudios de recepción, las huellas de las lecturas pragmatistas de Octavio Paz como de sostener que en el temperamento y sobre todo en las modificaciones de su pensamiento político pueden encontrarse motivos de reflexión actual sobre las democracias latinoamericanas. El valor de la libertad, la supremacía de la democracia y el espíritu de experimentación presentes en su obra, nos acercan a una posibilidad común en Iberoamérica de pensar la Democracia con actitud pragmatista. En este ensayo propongo utilizar a Paz desde el Pragmatismo para narrar la política democrática desde otras orillas, vitalmente comprometida con la reforma social, expresando a la vez una forma cultural y una pedagogía. Palabras claves: filosofía, pragmatismo, literatura, democracia, emotividad, liberalismo, experimentación ABSTRACT: In search of Other Voices related to politics, the present essay intends to find in Paz’ political literature traits which enable us to establish a pragmatist route. It is not a question of finding, as in the reception studies, the signs of Paz’ pragmatist reading, but rather to sustain that in the temperament and above all in the modifications of his political thought, reasons for present reflexion over Latinamerican democracies can be found. The value of liberty, the supremacy of democracy and the spirit of experimentation that can be found throughout his work , lead us to share a common possibility to think Democracy with a pragmatist attitude, in all the Hispanic World. In this essay I intend to use Paz’ heritage from the Pragmatics point of view in order to describe the democratic politics of other latitudes, vitally engaged in social reform, and which express, at the same time, a cultural form and a pedagogy Keywords: philosophy, pragmatism, literature, democracy, emotionally, liberalism, experimentation
Clasificar no es entender Octavio Paz
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¿Trasluce la poética una filosofía política? ¿Se deja ver a través de las palabras del poeta una manera de mirar lo político como hecho humano, cómo vitalismo enérgico de la vida en común? En 1951, Octavio Paz publica en Sur, la revista de Victoria Ocampo, un artículo denunciando los campos de concentración soviéticos. Antes, se había pronunciado a favor de la república española y sostenido críticas fuertes hacia las tendencias excesivamente mercantiles de las democracias liberales capitalistas de occidente. Movedizo, atento y permisivo con sus propias fricciones intelectuales, Octavio Paz nos devuelve una imagen infrecuente, la del intelectual que no hace de la reflexión política su centro de actividad pero que a la vez no se desentiende de los procesos de la historia, de las ideas y de las instituciones. Mi interés no es aquí establecer la relación directa de la obra de Paz con el pragmatismo, ni mencionar o repasar los libros filiados en esa tradición filosófica que alguna vez pudieron ser leídos por el poeta mexicano. Mi intención, más bien instrumental, es la de pensar al ensayismo político de Paz como un compañero de viaje hospitalario para con las preocupaciones que tenemos los pragmatistas cuando observamos la política. De la constelación de problemas que Octavio Paz presenta en lo que podríamos llamar sin sonrojo su filosofía política encontramos trazas en la obra de Dewey, de Santayana, de Rorty, en fin, marcas claras relacionadas con el pensamiento político pragmatista. Dos convicciones animan mi acercamiento, que supongo pragmatista, a la obra de Paz. Por un lado una potente sensación de que resulta más útil, al menos para mí, tomar al pragmatismo como una manera de mirar, como una actitud que como una formulación filosófica acabada, metódica y en búsqueda de sus portadores legítimos. Me siento animado (y ahí va la segunda convicción) por lo sostenido por Aurelia Di Berardino, aquello de que la contemporaneidad ha generado insospechados pragmatistas resistiéndose a su vez al etiquetamiento de las autopostulaciones. Así, veo un filósofo en el poeta y leo pragmatismo en el autor de El Laberinto de la Soledad. Si revisamos las preocupaciones políticas de Paz, sus búsquedas y hasta sus aparentes contradicciones, la libertad, la democracia y el Estado son tópicos reflexivos presentes y constantes y la combinación de esos problemas forman una verdadera trama asimilable con el temperamento pragmatista. La libertad, pensada como libre albedrío y como espacio de búsqueda de la igualdad, es interpretada por Paz como condición necesaria para la realización democrática. Pero conocía Paz que las palabras nos juegan muy a menudo malas pasadas y su idea de libertad combina elementos pragmatistas para prevenirnos de ese problema. En La tradición Liberal, ensayo que se editó en 1984 abriendo Hombres en su siglo Paz escribe:
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“....Apenas la libertad se convierte en un absoluto deja de ser libertad: su verdadero nombre es despotismo.....” (Paz, 1984:14)
Puede leerse en Paz el desvelo por los usos de las palabras. Sabía Octavio paz, tanto como Dewey, que las palabras expresan ideas y que las ideas tienen consecuencias y advirtió además sobre las composiciones de poder que se inscriben en la relación entre las palabras y las acciones políticas. Comparte con John Dewey el ocuparse en destacar que las mismas palabras (y por eso también acciones) pueden decir diferentes cosas y que estas motivaciones tienen una naturaleza definicional que reclama su condición política. La relación con el relativismo, histórico y político, aparecen tan a primera mano que pueden encandilar peligrosamente. Es cierto que existe en Paz y en el pragmatismo una suerte de compartido antirrepresentalismo que hace girar las epistemologías de uno y otro en sentido pragmatista. Desde donde veo las cosas, Paz y el pragmatismo comparten la crítica potente sobre las determinaciones históricas, sobre los significados unívocos y sobre las tendencias totalitarias que empiezan en la epistemología y terminan en la política, pero no creo que llevasen este relativismo más lejos. El relativismo del pragmatismo clásico, que como ha escrito Jaime Nubiola se muestra diferente en matices con el planteo de Rorty, no admite tan fácilmente la escisión entre lo público y lo privado y no concede tanto frente a la posibilidad reformista de la filosofía política o más bien de la experiencia humana. Las posiciones de Rorty se revelan así y paradojalmente como más inútiles para la política y admiten críticas filosóficas y políticas. Las primeras referidas al temperamento relacional propio del pragmatismo clásico (Aquí hay que tener en cuenta que estamos frente a un problema en la lectura que podemos hacer de la obra de Rorty. Mientras por un lado enfatiza sobre lo innecesario de vincular la vida personal y privada con las consideraciones públicas, por el otro reafirma la condición pragmatista según la cual las cosas son lo que son por el contacto que tienen con otras cosas y fenómenos. Así, entre el relativismo [radical] rortyano y sus enunciado panrelacionistas parece haber una grieta que propone cierto interesante debate). La segunda crítica, propiamente política, importa en este ensayo y refiere a la riqueza de la práctica intelectual cuando se vincula al debate público. Y continúa Paz “.....La libertad no es un sistema de explicación general del universo y del hombre. Tampoco es una filosofía: es un acto, a un tiempo irrevocable e instantáneo, que consiste en elegir una posibilidad entre otras....”. (Paz, 1984:14) “...No hay ni puede haber una teoría general de la libertad porque es la afirmación de aquello que, en cada uno de nosotros, es singular y particular, irreductible a toda generalización. Mejor dicho: cada uno de nosotros es una criatura singular y particular. La libertad se vuelve tirana cuando pretendemos imponerla o otros...” (Paz, 1984:14)
La filosofía política de Paz recupera entonces, y de manera vigorosa, la centralidad de la singularidad subjetiva y propone (en un discurso que diera el poeta mexicano en Jerusalem) pensar a
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la historia como el escenario de la manifestación de la libertad. La antropología que se puede leer en Paz, en su poética y en su ensayística, habilita la vecindad con Dewey allí donde existe el reconocimiento de la imposibilidad de pensar al individuo como extrasocial. En un mismo paso, Dewey, del mismo modo que la sociología de inspiración weberiana hiciera en su momento, rescata una forma de pensar la indivualidad que aleja las tendencias críticas frente al pensamiento liberal y le devuelve al liberalismo toda su inicial impronta reformista. Paz, al igual que Dewey, realiza una recorrida histórica del pensamiento liberal en su pasaje del siglo XIX al XX para terminar rescatando el vínculo precioso entre liberalismo y democracia. En el caso de Dewey los componentes de su liberalismo son fuertemente reformistas, incluso radicales. Sostiene Dewey que, Para poder sostenerse en las condiciones actuales, el liberalismo debe hacerse radical, en el sentido de que en lugar de utilizar el poder social con la finalidad de mejorar las malas consecuencias del sistema actual, debe usarlo para cambiar el sistema (Dewey, 1952:119)
Paz, en cambio, recupera la tradición liberal decimonónica mexicana, marca sus límites y aboga por la recuperación de su ideario en la reconstrucción democrática de su país y la región. La versión del liberalismo que comparten Octavio Paz y el pragmatismo (sobre todo el clásico) prepara el terreno para el ejercicio reflexivo de mayor envergadura política, constituido por el pensamiento alrededor de la democracia. La primera aproximación marca el resto, para ambos la democracia está lejos de ser un conjunto de reglas o un sistema por el que establecer ganadores y perdedores dentro del espacio público y mucho menos es un esquema procedimental. La democracia es una forma de vida, es una muestra histórica del más enérgico vitalismo de la experiencia humana. Para Dewey la democracia era la plataforma en donde podría desplegarse más eficazmente la organización de la inteligencia. La tesis deweyana sostiene que la democracia promueve mayores posibilidades de consulta mutua, (más interacciones), mayor probabilidad de participación de las inteligencias involucradas en el proceso social. Paz veía en la democracia mucho más que una idea. Percibía la presencia de la cultura y de las prácticas democráticas en la historia como una avance civilizatorio no exento de críticas pero indispensable en el camino de la libertad. Por otro lado paz vivía la democracia como el acceso definitivo de su país a una modernidad que había resultado históricamente esquiva. En la ensayística política de Paz se advierte el sendero recorrido hacia la democracia como un ejercicio de aprendizaje audaz y reflexivo. Nunca estuvo Paz demasiado convencido de las bondades metafísicas de la democracia utilizada a modo de exorcismo frente a la tentación autoritaria y nunca sostuvo el ideal democrático sin críticas fuertes y consistentes. Con singular claridad y belleza, en un reportaje de setiembre de 1993, expresa Paz
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...Pero la crítica del mundo moderno y sus horrores no me lleva a renegar de la democracia: a pesar de sus fallas, es uno de los pocos bienes verdaderos de la falaz civilización tecnológica. Los otros sistemas políticos están fundados en principios ajenos a los hombres: el mandato del cielo de los emperadores chinos, el Derecho Divino de los reyes absolutos, la voluntad de la historia y del proletariado de los líderes comunistas. La democracia funda al pueblo en nombre del pueblo: es la ley que los hombres se dan a sí mismos. No es un destino promulgado desde lo alto o desde un más allá de la historia; no es una fe ni nos propone un absoluto..Es un modo de convivencia libre y pacífica. Nos enseña a dar la mano al vecino y a luchar contra el tirano.(Paz, 1993:271)
Quienes pensamos desde América del Sur los problemas de nuestra democracia en clave pragmatista y por eso liberal, tenemos un problema adicional al que no es conveniente escapar. El Estado, en nuestros países, adquiere una importancia institucional, simbólica y cultural más importante que en otras regiones. La primacía del Estado como actor político fundamental, más allá de que esto se constituya en una virtud o en un defecto, es un hecho en América del Sur y es necesario que nos pronunciemos. Octavio Paz entendió con claridad esto y una cuestión adyacente de relevancia, el carácter específico de cada conformación estatal en la región y las consecuencias diferenciadas que esto supone.. El Estado en México, en Perú, en Argentina, probablemente con menos vigor en Uruguay y Brasil, es quién genera las condiciones de ciudadanización y quién limita su ejercicio. La peculiaridad de la forma estatal en el sur americano reside en que, como Jano, muestra por un lado una faz de modernización e incorporación y otra de exclusión y conservadurismo. Para completar el cuadro, el poco desarrollo del mercado y la escasa propensión (al contrario que en las sociedades sajonas en general y en los Estados Unidos en particular) al asociacionismo, vuelcan sobre el estado un papel protagónico que no siempre está en condiciones éticas e intelectuales para cumplir. En El ogro filantrópico, editado en 1979 y en donde reúne sus más importantes ensayos sobre el estado, sobre el compromiso de los intelectuales y sobre la revuelta, Paz resuelve trágicamente su relación reflexiva frente al estado en el siglo XX admitiendo la tesis harendtiana de La Banalidad del Mal. Hablando sobre las esperanzas liberales y marxistas acerca del papel del estado en la organización social, Paz sostiene “.....Esperanzas y profecías evaporadas: El Estado del siglo XX se ha revelado como una fuerza más poderosa que la de los antiguos imperios y como un amo más terrible que los viejos tiranos y déspotas. Un amo sin rostro, desalmado y que obra no como un demonio sino como una máquina.” (Paz, 1983:85)
El crecimiento desmedido de un Estado con componentes históricos paternalistas y conservadores, sumado al ejercicio enunciativo y práctico de las expresiones revolucionarias que también hacen de la conquista del estado su norte en términos de lucha política, son ejemplos
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perniciosos de la omnipresencia estatal y complican la emergencia de una sociedad justa. No es difícil asimilar los cambios en la percepción sobre el estado a los cambios en las concepciones políticas de Paz, a mayores críticas sobre el Estado y su papel, va en aumento sus consideraciones cargadas de liberalismo. Llegados hasta aquí, ¿Le haríamos justicia a Paz si presumiéramos la presencia en su obra de una teoría del Estado? Tal vez no, no al menos si no establecemos claramente que las percepciones sobre el Estado de Paz son, como toda su ensayística política, asistemáticas, provisorias y temperamentalmente culturales. Y si decimos eso, ¿acaso no podemos hablar de una proximidad con lo que entendemos de la relación entre pragmatismo y política? La filosofía política de Octavio Paz encuentra su mayor riqueza allí donde se construye de modo asistemático en términos teóricos. La voz política de Paz carece de profesionalismo y se expresa en el reconocimiento de la virtud de la imaginación y la creatividad. Allí reside toda su potencia. Leer a Paz dejándose acompañar por el pragmatismo abre una puerta estimulante y la mayor radicalidad de este contacto es la de establecer una relación virtuosa, poética y viva entre la política y la experimentación y la afectividad. En otros ensayos he intentado vincular la emotividad con el conflicto democrático, insisto hoy en su utilidad, en la impensada dimensión que es capaz de adquirir la palabra pública cuando se carga de un sentido afectivo y experimental. John Dewey nos ha enseñado sobre la vinculación intrínseca entre la relatividad histórica y el método experimental, cito brevemente El Hombre y sus Problemas: “...El significado del individuo con respecto a la política social cambia al cambiar las condiciones en que viven los individuos....” (Dewey,1952:123)
Tiempo significa cambio, sostiene Dewey y busca en el experimentalismo el carácter reformista de un nuevo liberalismo social integral “....El viejo liberalismo, al ser absoluto, era ahistórico. Tenía por sustrato una filosofía de la historia que afirmaba que la historia, como el tiempo en el sistema newtoniano, significa solamente una modificación de relaciones externas; que ésta es cuantitativa, no cualitativa, o interna....” (Dewey,1952:123)
Para Dewey el carácter experimental es asimilable a los criterios científicos, políticos y sociales. No es difícil inferir entonces que una forma política eficaz debería contener esos postulados al tiempo de intentar contener los cambios en la subjetividad y ser lo suficientemente flexible como para dar cuenta de la incerteza propia del mundo social “.......La confianza del liberalismo en los procedimientos experimentales, trae consigo la idea de la continua reconstrucción de las ideas de individuo y libertad, en íntima conexión con los cambios en las relaciones sociales...” (Dewey,1952:123)
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Lo que para Dewey y el pragmatismo es experimentación, para el poeta Paz es imaginación. En el pensamiento político de Paz irrumpe imprevistamente la voz pragmatista vinculando la existencia misma de la experiencia política a un tipo de imaginación particular. Escribe Paz en El Ogro Filantrópico, “....Creo que, como los otros países de América Latina, México debe encontrar su propia modernidad. En cierto sentido debe inventarla....”,(Paz,1983:99)
La imaginación política de Paz recupera la actitud pragmatista a favor de una filosofía de la experiencia mundana cargando la escena de afectividad. “....Pero inventarla a partir de las formas de vivir y morir, producir y gastar, trabajar y gozar que ha creado nuestro pueblo. Es una tarea que exige aparte de circunstancias históricas y sociales favorables, un extraordinario realismo y una imaginación no menos extraordinaria.” (Paz,1983:99)
En Los ideales de la vida, William James recurre a la afectividad para transformar, impensada e inadvertidamente, a su filosofía en filosofía política. En el prólogo de la edición en español de este extraño volumen, Juan Mantovani trae al lector referencias de Santayana, que no adhirió nunca del todo a las propuesta de James, pero que valoró, y mucho, el temperamento filosófico del autor de Las variedades de la experiencia religiosa. Lo que sorprendió a Santayana en su momento fue la carencia de un tono lógico en esa primera versión jamesiana y su desapego por la especulación metafísica. “...Lo que adquirí de él fue, más que nada, eso que él nunca enseño de una manera explícita, pero que yo asimilé del fondo de su espíritu y de su doctrina. Era lo más importante de esto, si no me engaño, un sentir de lo inmediato, de lo relativo al hecho súbito de la experiencia, no adulterado ni explicado...”( James, 1944:16)
Leo una proximidad interesante cuando leo a Paz y leo a James. El mexicano reclama imaginación y emotividad para recrear la vida política y James pide una filosofía que se vuelve política cuando es emotiva. Cito a James en el mismo libro abriendo el capítulo II, titulado sugerentemente “Una singular ceguera de los seres humanos”, “Nuestros juicios sobre el valor de las cosas grandes o pequeñas, depende de los sentimientos que las mismas despiertan en nosotros. Cuando reputamos preciosa una cosa como consecuencia de la idea que formamos de ella, es porque la idea está ya asociada a un sentimiento. Si estuviéramos radicalmente privados de nuestros sentimientos y en su virtud pudiesen las ideas reinar por sí solas en nuestra mente, nos hallaríamos completamente libres de todas nuestras simpatías y antipatías, y seríamos incapaces de atribuir mayor significación o importancia a una que otra situación, a una que otra experiencia de nuestra vida. Ahora bien: la ceguera de que quiero hablaros es la que todos
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sufrimos con relación a los sentimientos de las criaturas y de las personas diferentes de nosotros” (James, 1944:59)
En su reconocimiento del sufrimiento ajeno James se vuelve radicalmente político y resalta una vez más la importancia de la afectividad. Esa afectividad que Paz va a colocar en un primerísimo plano cuando se refiere a la posibilidad de reconstrucción política en clave democrática de América del sur. En una charla con Juan Cruz que se editó en Itinerario, en Junio de 1992, Paz sostiene una potente apuesta por la creatividad de un presente aún innominado y todavía esquivo. El planteo de Paz es optimista y exigente con el futuro y reclama una nueva filosofía política que rescate la tradición interrogativa y renueve las respuestas. Clásico y reformista a la vez, crítico y humanista, Paz se recrea a sí mismo en la búsqueda artística de la experiencia política. Octavio Paz había pedido a sus contemporáneos curarse de la intoxicación de las ideologías simplistas y simplificadoras y buscaba ahora en las nuevas generaciones respuestas adecuadas. Creo que el centro de esas respuestas es compartido por el pragmatismo, no puedo dejar de leer a Dewey, a James o al mismo Rorty cuando leo, “...Creo que el pensamiento político de mañana no podrá ignorar ciertas realidades olvidadas o desdeñadas por casi todos los pensadores políticos de la modernidad. Hablo del inmenso y poderoso dominio de la afectividad: el amor, el odio, la envidia, el interés, la amistad, la fidelidad. Es bueno volver a los clásicos para apreciar el influjo de las pasiones en las sociedades...”(Paz,1993:164)
Me pregunto si cualquiera de nosotros, de no saber a quién pertenece, no podría atribuir a un pensador pragmatista el siguiente párrafo, “Si se quiere saber lo que significa la ambición, la envidia o los celos, nuestros sociólogos deberían leer o releer Macbeth, Otelo, Hamlet. Y lo que digo de Shakespeare puede extenderse a Balzac, Stendhal, Tolstoi, Galdós. Y claro está, a los poetas, a Dante y a Milton, a Quevedo y a Machado, a Hugo que profetizó los Estados Unidos de Europa. El nuevo pensamiento político no podrá renunciar a lo que he llamado “la otra voz”, la voz de la imaginación poética. La vuelta de los tiempos será el tiempo de la reconquista de aquello que es irreductible a los sistemas y las burocracias, el hombre, sus pasiones, sus visiones”( Paz,1993:164)
Esas otras voces pueden pensarse como las voces que hablan de política con otro léxico, con otro tono y otra musicalidad. Son poetas pero pueden ser profesores de filosofía, escritores o escultores. El idioma en que esta emotividad nos habla e interpela es el de la impureza, la mezcla entre tradiciones, mitologías y saberes. Reconocer en la mixtura, la convivencia y los conflictos colaborativos entre lenguajes el legado común de Octavio Paz y de los pragmatistas nos otorga señales para romper la insinceridad de la mayoría de los discurso políticos del presente. Más allá de las enumeraciones temáticas, de marcar referencias en la obra de Paz de filósofos pragmatistas, se trata de asumir una actitud relacional con su ensayística política. Paz puede ayudarnos en la conversación necesaria para encontrar los signos que permitan encontrarnos, puede 37
colaborar en la factura común de un léxico nuevo que permita responder a los problemas de nuestras democracias. Las consecuencias políticas de la incorporación de la afectividad de la experiencia humana en el lenguaje y el pensamiento democrático son imprevisiblemente radicales. La sinceridad emotiva de la acción política puede ayudar al renacer de las esperanzas sociales que son imprescindibles para imaginar una vida en común. La preocupación de Paz por el presente resulta hereditaria, no como rasgo de inmediatez sino como un modo pragmático de sentir, pensar y actuar a favor de la salida del sol y del brotar de las flores espontáneas de la vida.
BIBLIOGRAFIA: PAZ, Octavio. Itinerario. México: Fondo de Cultura Económica, 1993. PAZ, Octavio. El ogro filantrópico. España: Seix Barral, 1983. PAZ, Octavio. Sueño en Libertad. Barcelona: Seix Barral, 2001. PAZ, Octavio. Hombres en su siglo. Barcelona: Seix Barral, 1984. PAZ, Octavio. Tiempo nublado. Barcelona: Seix Barral, 1983. JAMES, William. Los ideales de la vida. Buenos Aires: El Ateneo, 1944. DEWEY, John. El hombre y sus problemas. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1952. RORTY, Richard. Objetividad, relativismo y verdad. Barcelona: Paidos Básica, 1996.
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A FILOSOFIA DE JOHN DEWEY E A EPISTEMOLOGIA PRAGMATISTA Rodrigo Augusto de Souza21 rodrigoaugustobr@yahoo.com.br RESUMO:Este trabalho tem por objetivo apresentar uma reflexão sobre os fundamentos do pensamento deweyano. Para uma compreensão das idéias de John Dewey (1859-1952), se faz necessário um estudo da epistemologia que permeia o seu pensamento. Sendo assim, esse estudo procura apresentar os fundamentos epistemológicos do pragmatismo deweyano. Para tanto, a obra de Dewey será entendida no contexto do pragmatismo norte-americano, no qual ele está inserido ao lado de Charles Peirce (1839-1914) e William James (1842-1910). O pensamento deweyano pode ser compreendido a partir de muitas perspectivas, uma vez que o filósofo norte-americano teve uma vasta produção acadêmica, suas obras tratam especificamente de: filosofia, educação, política, sociologia, arte e psicologia. As idéias de John Dewey possuem certas especificidades frente ao pragmatismo. Seu pensamento pode ser entendido como um humanismo naturalista, ou ainda, como um naturalismo humanista. Essa reflexão pretende explicitar essas discussões a partir do pensamento deweyano. Palavras-chave: Epistemologia; Pragmatismo; John Dewey. THE PHILOSOPHY OF JOHN DEWEY AND PRAGMATIST EPISTEMOLOGY ABSTRACT: This paper aims to present a reflection on the fundamentals of Deweyan thought. For an understanding of the ideas of John Dewey (1859-1952), it is necessary a study of epistemology that pervades your thought. Therefore, this study seeks to present the epistemological foundations of Deweyan pragmatism. Therefore, the work of Dewey will be understood in the context of American pragmatism, in which it is inserted next to Charles Peirce (1839-1914) and William James (18421910). The Deweyan thought can be understood from many perspectives, as the American philosopher had a vast academic literature specifically dealing with their works: philosophy, education, politics, sociology, art and psychology. The ideas of John Dewey have certain specific forward to pragmatism. Your thoughts could be understood as a naturalistic humanism, or even as a humanistic naturalism. This reflection aims to clarify these discussions from the Deweyan thought. Keywords: Epistemology; Pragmatism; John Dewey. 1. Introdução
Uma compreensão da obra e do pensamento de John Dewey (1859-1952), que não leve em conta a fundamentação epistemológica de suas idéias, é, por sua vez, limitada e parcial. Nesse 21
Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual de Maringá - UEM. Licenciado em Filosofia e Mestre em Educação pela PUCPR.
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sentido, esse estudo vem de encontro a essa necessidade de compreender o pensamento deweyano a partir dos seus fundamentos epistemológicos. As idéias deweyanas têm a marca do pragmatismo filosófico. Nesse estudo buscamos aprofundar a compreensão do que venha ser essa escola filosófica, de origem norte-americana. O entendimento de Dewey vinculado aos demais pragmatistas do seu tempo: Charles Peirce (1839-1914) e William James (1842-1910), não dispensa uma incursão nas particularidades do pensamento do deweyano. Não há uma homogeneidade no pragmatismo filosófico, embora possamos falar de denominadores comuns entre os filósofos que originam esse novo modo de pensar e elaborar a filosofia. Para aprofundar essa análise, é muito útil a obra “Os Pioneiros do Pragmatismo Americano”, de John Shook, na qual o autor mostra os pontos de convergência e as especificidades dos fundadores do pragmatismo filosófico. O contexto histórico que origina o pragmatismo é igualmente importante. Há um horizonte cultural e histórico que permite o surgimento de tal escola filosófica. Devemos situar o surgimento do pragmatismo nos Estados Unidos do final do século XIX, no período pós-guerra civil americana, fase de desenvolvimento e consolidação do capitalismo industrial. Do ponto de vista epistemológico é importante estabelecer a relação entre a Inglaterra e os Estados Unidos, principalmente pelo fato das colônias inglesas da América do Norte serem consideradas a “Nova Inglaterra”. A Inglaterra é o berço empirismo, de Francis Bacon, John Locke e Thomas Hobbes, ainda, é o lugar do protestantismo de matriz anglicana, metodista, puritana e congregacionalista. A família Dewey imigrou da Inglaterra para os Estados Unidos. O solo das antigas colônias inglesas da América do Norte foi fecundo aos ideais filosóficos, religiosos e culturais dos colonizadores. Podemos dizer que, considerando o pragmatismo, um novo empirismo, ou um “empirismo reformado”, ele é, em parte, expressão desse processo colonizador sofrido pelos Estados Unidos. Quando William James denominou “pragmatismo”, um novo nome para um velho método de pensar, não sei se ele estava expressamente pensando em Francis Bacon, porém, até no que concerne ao espírito e a atmosfera do conhecimento, Bacon pode ser considerado como profeta de uma concepção pragmática de conhecimento (OZAMON& CRAVER, 2004, p. 132).
Considerando a relação existente entre empirismo inglês e pragmatismo norte-americano, podemos encontrar, de certo modo, as origens epistemológicas da filosofia de Peirce, James e de Dewey. Apesar disso, não devemos incorrer na tentação de uma análise muito simples da realidade. Embora Bacon seja considerado o “profeta” de uma concepção pragmática de conhecimento, os pragmatistas endereçam ao filósofo inglês inúmeras críticas. O próprio Dewey não poupa Bacon de suas críticas. Tais críticas são encontradas em: “Democracia e Educação”, “Experiência e Natureza” e “A Filosofia em Reconstrução”, entre outras obras.
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Foi assim que a corrente de idéias representada pelo aforismo baconiano de que “Conhecimento é Poder” falhou, ao tentar uma expressão independente e emancipada. Essas idéias se emaranharam irremediavelmente em pontos de vistas fixos e em preconceitos que corporificavam uma tradição social, política e científica, com as quais eram completamente incompatíveis. A obscuridade, a confusão da filosofia moderna é o produto dessa tentativa de combinar duas coisas que não podem ser combinadas, quer lógica, quer moralmente. A reconstrução filosófica do presente é, assim, o esforço para desfazer o emaranhado e permitir que as aspirações baconianas tenham uma expressão livre e desembaraçada (DEWEY, 1958, p. 73).
As críticas se dirigem especialmente aos conceitos de experiência e de conhecimento. Para o pragmatismo de Dewey o plano epistemológico deve resolver problemas práticos da vida dos indivíduos e das comunidades humanas. O empirismo “clássico” de Bacon insistia no método científico e ignorava o mundo da vida. Outro ponto criticado por Dewey é o dualismo, a filosofia de Bacon, reforçava o antagonismo entre a razão e a experiência. A intenção de Dewey é romper com os dualismos, reunir em um mesmo plano epistemológico esses dois elementos. 2. O Pragmatismo filosófico Na obra de John Shook, “Os Pioneiros do Pragmatismo Americano”, que já citamos em nosso trabalho, o autor faz uma distinção entre os filósofos pragmatistas. Ele considera que Charles Peirce foi o responsável pelo rigor científico e metodológico do pragmatismo. Segundo Shook, Peirce era uma figura controvertida e de difícil convivência, por conta disso tinha dificuldades para lecionar nas Universidades Norte-americanas. Ainda, Peirce procurava se distanciar dos demais pragmatistas, denominando sua filosofia de “pragmaticismo”. Ao descrever a personalidade de Charles Peirce, Shook ironiza dizendo que se dependesse de Peirce o pragmatismo jamais teria se difundido e popularizado como filosofia nos meios acadêmicos norte-americanos. Não obstante sua genialidade, Charles Peirce sobreviveu boa parte de sua vida com doações realizadas por seus amigos, entre eles James e Dewey. A importância do pensamento de Peirce se dá para além do pragmatismo, abrangendo também os estudos de lógica, filosofia da linguagem e de semiótica. É importante o estudo “O Método Anticartesiano de Charles Sanders Pierce”, de Lúcia Santaella. Nessa obra a autora apresenta a epistemologia de Peirce se contrapondo ao racionalismo cartesiano. De radical importância é a contribuição que Peirce traz para a discussão das fundações epistêmicas dos métodos, algo que a maioria das metodologias, preocupada com a eficácia imediata de seus meios, esquece-se de indagar. A grande novidade da teoria peirceana dos métodos está na sua demonstração de que, para negar as mazelas de um racionalismo exclusivista não temos que partir para a glorificação emocional e da irracionalidade. Peirce mostra que as vias que vão do instinto à razão e vice-versa não estão separadas por fronteiras intransponíveis (SANTAELLA, 2004, p. 28).
A obra de Peirce pode ser entendida por aquilo que se convencionou chamar de “primeiro pragmatismo”. Voltando à análise de John Shook, a popularização do pragmatismo se deu pela 41
atuação de William James, com suas célebres conferências publicadas sob o título de “Pragmatismo”. De família rica e influente, radicada em Nova Iorque, James teve uma formação intelectual esmerada. Seu irmão, Henry James, foi um dos mais importantes escritores da literatura norte-americana. O próprio William James reconhece textualmente a importância de Peirce para o pragmatismo. Explica o filósofo acerca da nova filosofia: O termo deriva da mesma palavra grega “pragma”, que significa ação, do qual vêm as nossas palavras: prática e prático. Foi introduzido pela primeira vez em filosofia por Charles Peirce, em 1878, em um artigo intitulado “Como tornar claras nossas idéias”, publicado no “Popular Science Monthy”, de Janeiro daquele ano (JAMES, 1979, p.10).
Essas idéias influenciaram o pensamento de John Dewey. Para o filósofo e educador norteamericano, o pragmatismo surge com a intenção de reparar o atraso da filosofia em relação ao mundo moderno. O mundo moderno é palco de inúmeras revoluções. Podemos citar entre elas: a revolução científica, protagonizada por Bacon, com o método científico e a fundação da ciência moderna; a revolução industrial, ocasionada devido ao avanço do capitalismo aliado com o desenvolvimento da ciência e a revolução política, representada pelo pensamento democrático e pelo liberalismo. Afirma Dewey: Uma filosofia ajustada ao presente deve tratar daqueles problemas que resultam de mudanças que se processam num setor humano-geográfico em escala cada vez mais ampla e com poder de rapidez e de penetração cada vez mais intenso; eis aí uma indicação bem marcante da necessidade que se faz sentir de uma espécie da reconstrução diversa, em todos os sentidos, daquela que está agora em evidência (DEWEY, 1958, p. 3).
A filosofia, bem como as demais experiências humanas, segundo a visão do pragmatismo e também deweyana, deve ser reconstruída, isto é, pensada sob o viés utilitário, pragmático, que até então permaneceu distante do universo do conhecimento. Para Dewey e os pragmatistas, o conhecimento, que até então era visto em si mesmo, distante de sua significação útil, e ainda justificado por uma lógica racionalista que o legitimava, deveria se aproximar da experiência cotidiana. Tratava-se da superação das dicotomias geradas pelo dogmatismo gnosiológico que buscava para si uma fundamentação supra-natural. Contra isso afirma o pragmatismo a necessidade da substituição desse modelo de dogmatismo pelo método experimental. 3. A Epistemologia pragmatista O termo epistemologia, de origem grega, do ponto de vista etimológico, quer dizer: episteme (ciência)+logos (discurso/saber); assim, teríamos discurso científico ou saber científico. Nossa opção, no entanto, é entendê-la como reflexão filosófica das teorias, conceitos ou discursos das
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ciências. Nesse sentido, seria a epistemologia a especulação crítica e reflexiva dos enunciados científicos que se pretendem verdadeiros. A epistemologia, enquanto disciplina filosófica, é uma reflexão contemporânea. Um pensamento destinado à crítica das proposições científicas não pode se adequar a outro momento histórico, senão o atual. Assim, a novidade trazida pela epistemologia não é somente o crivo da reflexão crítica para o conhecimento científico, mas também a sua historicidade. A crítica ao pensamento empírico está presente no pragmatismo. A filosofia de Bacon é criticada por Dewey, mesmo com o reconhecimento de suas idéias inauguram um novo tempo para a produção do conhecimento. Na obra “Como Pensamos”, encontramos uma descrição mais detalhada das críticas de Dewey ao empirismo de Bacon. Por isso, William James chamará o pragmatismo de “empirismo reformado”. Outra expressão utilizada por James é “melhorismo”, a filosofia pragmatista é uma forma de melhorar, ajustar, corrigir as coisas segundo nossos interesses pessoais e comunitários. Vamos apresentar argumentos da crítica de Dewey: São evidentes as desvantagens do pensamento puramente empírico. Podemos chamar a atenção para três delas: (1) sua tendência para falsas crenças, (2) sua incapacidade de lidar com o que é novo e (3) sua tendência para gerar inércia mental e dogmatismo (1959a, p. 190).
Como vimos, a epistemologia se ocupa com a produção do conhecimento e com os processos do conhecer. Não ignoramos as raízes sociais da produção do saber científico, porém, a epistemologia procura analisar criticamente as teorias científicas. O pragmatismo se preocupa com a produção do conhecimento. Isso está presente principalmente no pensamento Peirce e Dewey. Os estudos sobre lógica, as noções de experiência e de problema, ocupam boa parte da atenção dos filósofos pragmatistas. Em Dewey, encontramos a obra “Lógica: A teoria da investigação”, onde ele expõe a novidade de sua concepção lógica e metodológica para a produção do conhecimento. Seu pensamento não recorre aos modelos lógicos tradicionais, como a lógica formal aristotélica. Nem tão pouco se aproxima da lógica matemática, muito difundida no final do século XIX. Na epistemologia pragmatista e também deweyana, os objetos estão inter-relacionados, a partir da lógica, no processo de construção do conhecimento. Isso permite a conexão de uns com os outros, o que levaria à aplicabilidade pragmática, uma vez que conhecer se trata de perceber essas conexões que ligam os objetos com um fim útil. Assim, a filosofia não deve apenas evitar os dualismos: razão/experiência, ideal/real, teoria/prática, indivíduo/sociedade, mas combatê-los, já que o conhecimento se dá na continuidade da experiência e não apenas em sua fragmentação. A inteligência investigativa ou pensamento reflexivo é que deve estabelecer essas relações que (re) ligam os objetos naturais. Considera Dewey: 43
A aplicabilidade de alguma coisa ao mundo não significa a aplicabilidade àquilo que já é passado e findo, o que fica fora de questão pela natureza do caso; significa aplicabilidade ao que está ainda sucedendo, ao que ainda não está estabelecido no cenário mutável de que fazemos parte (1959b, p. 373).
O pragmatismo foi acusado de reduzir a verdade ao utilitário. Contudo, não é o pragmatismo uma filosofia vulgar. Aquilo que os filósofos pragmatistas entendem por prático, por útil, deve ser bem compreendido para evitar equívocos conceituais. Os critérios de utilidade e praticidade defendidos por eles nada mais são do que o a vida, como experiência humana. Em outras palavras, a aplicabilidade do conhecimento à vida prática. Isso Dewey defendeu com sua filosofia. O conhecimento, para o pragmatismo, se dá por uma atitude antiintelectualista, isto é, negando qualquer tipo de razão transcendental, racionalismo ou idealismo. Lembremo-nos de que o pragmatismo é um tipo de empirismo, mas não preso às emoções e fatos observáveis e as leis científicas a partir deles formuladas. Sendo assim, o pragmatismo retira o conhecimento do plano metafísico e o coloca nas mãos dos indivíduos, vinculando-o ao plano pragmático, útil à vida. Embora sendo empirista, o pragmatismo não é um tipo de positivismo. Ao empreender o raciocínio transcendentalista, a filosofia assumiu uma tarefa desnecessária, visto que a própria experiência humana, por causa das relações que estabelece com o meio, é suficiente para desenvolver as noções intelectuais e morais de que necessita para se justificar. Além disso, trata-se de uma tarefa impossível, pois a filosofia não constitui um modo privilegiado de acesso à verdade (CUNHA, 1998, p.28).
Voltar o pensamento para a utilidade da vida cotidiana parece, em uma análise superficial, subestimar o pensamento reflexivo, mas não, ao contrário. Com sua perspectiva de utilitarismo, Dewey procura definir que a experiência deve estar vinculada aos problemas da existência humana, quando homem experimenta o mundo ou a realidade, ele não procura somente empreender uma ação contra eles, mas resolver seus problemas existenciais. Quando se fala em universalidade das teorias científicas, é necessário compreender que não se está aludindo a um conteúdo inerente fixado por Deus ou pela natureza, mas ao âmbito de sua aplicabilidade – da capacidade de tirar os casos de seu isolamento aparente com o fim de ordená-los em sistemas que (a exemplo do que ocorre com todos os seres vivos), provém sua qualidade vital, pelo gênero de mudança que se denomina crescimento (DEWEY, 1958, p. 10).
Há o risco de se considerar o pragmatismo uma teoria da verdade. Para o pragmatista o termo verdade possui muitos significados. A natureza da verdade depende de sua vinculação ao critério de utilidade em relação à vida dos indivíduos. Não se trata de uma espécie de subjetivismo irresponsável, mas sim de uma verdade que responde aos apelos e questionamentos vitais dos indivíduos.
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5. O Pensamento deweyano Alguns conceitos são fundamentais na compreensão adequada do pensamento deweyano. Eles são como que “chaves de leitura” para o entendimento da obra do filósofo e educador. Trataremos agora de apresentá-los, ainda que em forma sintetizada, com a intenção de possibilitar um referencial básico à análise e interpretação do pensamento de Dewey. Segundo Cunha (1998, p.13), o pensamento deweyano está intrinsecamente relacionado com sua concepção de conhecimento. O pensamento de John Dewey nasce de sua epistemologia. A concepção epistemológica deweyana integra o pragmatismo norte-americano, que, por sua vez, é apresentado por William James como método filosófico. Dewey acrescentaria que o pragmatismo não é apenas método, mas instrumento de adaptação do homem enquanto organismo vivo em seu ambiente natural, com a intenção de transformá-lo segundo seus interesses individuais e também coletivos. O conhecimento é uma percepção das conexões de um objeto, que o torna aplicável em uma dada situação (DEWEY, 1959, p. 373). A filosofia deweyana é um pensamento que se percebeu na tentativa de conectar o pensamento reflexivo com os acontecimentos da experiência diária. O método empírico, do qual o pragmatismo faz parte, requer da filosofia que os métodos refinados sejam submetidos à experiência primária, que está no plano da relação com as emoções e impressões primeiras. Suas conclusões devem ser trazidas à experiência ordinária, em toda a sua rudeza, a fim de serem verificadas, assim a filosofia se torna uma crítica de preconceitos. Dewey critica as filosofias que se distanciaram da experiência ordinária: escolasticismo, sensacionismo, racionalismo, idealismo, realismo, empirismo, transcendentalismo e o próprio pragmatismo. Para Pitombo (1974, p.43), o criticismo é um postulado metodológico da filosofia deweyana. Os sistemas filosóficos podem se converter em uma forma de dogmatismo, com uma doutrina fechada. Dewey quer evitar que isso aconteça, ao contrário, ele pretende livrar a filosofia dessa atitude dogmática. Isso acontece em relação ao próprio pragmatismo. Problemas como: o pragmatismo tem uma teoria da verdade? Ele apresenta um “método” de científico, ou melhor, ele tem uma epistemologia? No fundo, a epistemologia é entendida como a pragmática da investigação científica. Afirma que: uma filosofia empírica é, de qualquer modo, algo como despir-se intelectualmente. Ao que poderíamos acrescentar, com a intenção de aproximar mais o pensar da vida prática, da experiência comum (DEWEY, 1958, p. 185). O pensamento deweyano possui uma filosofia política e social bem significativa. O conceito de democracia é uma preocupação constante de sua filosofia, bem como de sua pedagogia. Com Amaral (1990), Cunha (1998, 2001) e Shook (2002), podemos dizer que o conceito de democracia é 45
fundamental na obra e no pensamento de Dewey. O Estado não é entendido por Dewey como luta por ambições pessoais. Se é verdade que as células não estão em interação vital uma com as outras, não poderiam elas vir a colocar-se em conflito, mas tampouco estabelecer cooperação (DEWEY, 1958, p. 194). Aqui reside também sua crença no liberalismo, uma vez que sua filosofia social está centrada no indivíduo educado para a vida democrática, isto é, vida associada. Não há separação entre política e teoria moral. A sociedade é o processo de estabelecer relações, transmitir experiência e valores em comum. Dewey percebe que a filosofia européia surge à parte das tradições sociais que se consolidaram. Defende que a filosofia social e política devem estar em sintonia com os valores sociais da comunidade humana. Afirma Dewey: Sociedade é como dissemos, muitas associações, não uma organização simples! Sociedade significa associação, reunião de pessoas para, através de inter-relações e ações, do melhor modo a levarem a efeito todas as formas de experiência, formas que ganham valor e vigor à medida que venham a ser mais e mais partilhadas (1958, p. 200).
Dewey realizou também significativas contribuições no campo da lógica. Chegou à constatação de que há um tipo de lógica que leva o pensamento a não se relacionar com o fato real. Para o pensamento deweyano, isso não é possível, embora o modelo considerado inadequado por Dewey afirme que a lógica não precisa obrigatoriamente se relacionar com um fato real. Analisa a lógica formal, a lógica indutiva e a lógica dedutiva e percebe que as mudanças ocorridas nas concepções tradicionais das relações entre experiência e razão, ideal e real, devem afetar a lógica e promover uma reconstrução. A lógica se reveste de importância profundamente humana, precisamente por que se funda no empirismo e suas aplicações têm base na experiência (DEWEY, 1958, p. 143). A moral e a ética são contempladas no pensamento deweyano. Para Dewey, a ética que surge com os gregos é orientada por uma lei suprema. Há uma variedade de ideais éticos: epicurismo, estoicismo, ceticismo e ecletismo. Todos afirmam o bem único e final para o agir ético. Dewey acredita que a experiência humana é suficiente para desenvolver a formação moral. Procurar a justiça é viver de acordo com a justiça. A ética demanda um modo de viver. Há uma lógica baseada na experiência aplicada à moral. A moral pragmática abrange a ciência natural e a ciência moral. Isso significa que a antropologia filosófica deweyana parte do “homem biológico”, do dado natural ou vital da experiência humana. Falamos sobre a vida em sua significação menos elevada – como coisa física. Mas empregamos a mesma palavra para indicar toda a extensão da experiência do indivíduo e da espécie. [...] À vida em sua mera significação fisiológica, se aplica o princípio da continuidade por obra da renovação. Com o renovar da existência física, também se renovam, no caso dos seres humanos, as crenças, ideais, esperanças, venturas, sofrimentos e hábitos (DEWEY, 1959b, p. 2).
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Vejamos a organização da moral segundo Dewey (1980): 1) o princípio moral passa a ser uma hipótese funcional; 2) a moral é difundida pela comunicação; 3) estabelecida por meio de processos de julgamento; 4) tem como objetivo processos de crescimento. No livro “Experiência e Natureza”, o tema da relação entre ciências naturais e moral recebe uma atenção mais detalhada. Na afirmação a seguir fica claro o papel dos sentidos e da observação na formação da moralidade. A percepção sensorial não se efetua para si mesma, nem para fins de exercício, mas é um fator indispensável do bom êxito da realização que se pretende (DEWEY, 1959a, p. 246). Em sua obra: “Dewey: Filosofia e Experiência Democrática”, Maria Nazaré de Conceição Amaral se vê instigada a conceituar o pensamento deweyano e, mais ainda, sai à procura do núcleo do seu pensamento, onde todos os temas desenvolvidos pelo filósofo se articulam: Ponto comum entre o Dewey do papel social e democrático da escola, da moral instrumentalista da religião, da “democracia”, da “reconstrução da filosofia” e os outros Deweys. O problema da pesquisa de Amaral: É possível encontrar um ponto comum no pensamento de Dewey, onde se articulam todos os temas por ele desenvolvidos? (AMARAL, 1990, p. 20). Amaral (1990) chega à constatação de que embora haja uma diversidade e multiplicidade temática nas obras de Dewey, podemos falar de unidade. Para a autora, os conceitos de filosofia instrumental e de experiência democrática são fundamentais no pensamento deweyano. Dewey defendeu a concepção instrumental da filosofia. Propugnou a aplicação da crítica filosófica à realidade circundante e com fervor salientou que a filosofia só pode ser relevante quando estiver em relação com o mundo (AMARAL, 1990, p.22). Um único princípio garante unidade ao pensamento deweyano: a continuidade. Dewey considera que a filosofia clássica isolou o eu do mundo, o conhecimento da ação e a teoria da prática. O pensamento deweyano, nesse sentido, como construção teórica, responde a uma necessidade eminentemente prática do mundo uno no qual crê o filósofo tão fervorosamente. Tratase da necessidade de estabelecer uma organização social que estimule a flexibilidade das interações entre os indivíduos. Esse ideal de continuidade está presente, entre outras obras, em “Democracia e Educação”, considerada sua obra-prima. O pensamento deweyano quer a solidificação da medida prática no pensamento, quer justificar e racionalizar a medida prática. O critério de utilidade, segundo Dewey, não pode mais permanecer distante da reflexão filosófica e muito menos do mundo da produção do conhecimento. O princípio de continuidade de Dewey afirma que a mente tem lugar e função na natureza, por isso, o mundo é uno, o homem pertence a ele e à natureza, não está isolado, como defendia a tradição filosófica clássica.
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6. Considerações finais Esse trabalho quis mostrar a relação entre o pragmatismo filosófico e o pensamento de Dewey. A filosofia deweyana se beneficiou das reflexões iniciadas por Peirce e James. Podemos afirmar que a originalidade do seu pensamento está em levar o pragmatismo para uma dimensão política e social mais acentuada. Dewey ampliou as discussões filosóficas iniciadas pelos pioneiros do pragmatismo. Enfrentou o desafio de promover a reconstrução da filosofia, da moral e das diferentes ciências pelo critério da prática e da utilidade. O trabalho também teve a intenção de apresentar o pragmatismo deweyano, isto é, as especificidades do seu pensamento. Aquilo que caracteriza o seu pensamento a partir das suas particularidades. A obra Dewey é vasta e complexa, bem como o seu pensamento. Não é tarefa simples classificar o pensamento deweyano, nem foi essa a nossa intenção. Buscamos com esse trabalho realizar uma introdução possível ao pensamento de Dewey, procurando compreendê-lo pelo viés epistemológico. Segundo Shook (2002), temos divergências em torno da relação entre pragmatismo e epistemologia. No campo da filosofia duas posturas são adotadas em relação a essa questão. Há aqueles que consideram que o pragmatismo tem epistemologia e outros que sustentam que ele é uma teoria “não-epistêmica”, por não tratar de maneira rigorosa o problema da verdade científica e da lógica. Entendemos que há uma epistemologia do pragmatismo, não como teoria da verdade, nem como a lógica metafísica. Por se preocupar com a produção do conhecimento, com a reconstrução da lógica como teoria da investigação, afirmamos que há uma epistemologia no pragmatismo, não nos moldes tradicionais firmados pela história da filosofia. O pensamento de Dewey nos ajuda a compreender bem isso ao mostrar a pragmática da investigação científica e a reconstrução da filosofia pelo critério da experiência útil. É possível entender o pragmatismo como um tipo de empirismo. O pragmatismo filosófico é a atitude empírica. A grande indagação que tentamos responder com esse estudo foi: Que tipo de empirismo é o pragmatismo? Um empirismo à moda de Bacon? Uma espécie de positivismo? Mostramos que não. É o pragmatismo um novo tipo de empirismo. A noção de experiência, tão fundamental no pensamento de Dewey e no pragmatismo, é compreendida de maneira muito diferente em relação ao empirismo clássico de matriz baconiana. Os pragmatistas dirigem ao empirismo também suas críticas. Podemos afirmar que o pragmatismo teve uma abrangência muito maior do que o empirismo clássico. Exemplo disso é a obra de Dewey e suas incursões nos mais variados campos, como: filosofia, educação, política, sociologia, arte e psicologia, entre outros, que podem ser acrescentados por outras análises. O horizonte de repercussão do pragmatismo foi mais amplo do que o do 48
empirismo. O pragmatismo tratou de questões que ainda não estavam colocadas quando do surgimento empirismo clássico. De certo modo, o surgimento de inúmeras ciências no século XIX fez com que o pragmatismo tivesse uma incidência maior, isto é, que ele atingisse os diferentes campos do conhecimento que estavam surgindo. São tempos históricos e contextos completamente distintos, o pragmatismo e o empirismo clássico estão relacionados aos seus contextos de origem. Podemos falar de pontos comuns da filosofia de tradição inglesa, mas também de diferenças advindas até mesmo do momento histórico. Ao mesmo tempo o pragmatismo é uma continuidade e uma ruptura com o empirismo. A atitude empírica permanece no pragmatismo, mas desaparece o pensamento “puramente empírico”, desvinculado do plano prático e útil. O pragmatismo também quer evitar em sua epistemologia os erros apontados por Dewey: “as falsas crenças”, o “fechamento ao novo” e a “tendência a inércia e ao dogmatismo”. Essa compreensão do pensamento deweyano a partir de sua epistemologia, dos seus fundamentos, parece ser importante para orientar uma leitura e interpretação da obra e do pensamento de John Dewey. REFERÊNCIAS AMARAL, M. N. C. P. Dewey: Filosofia e Experiência Democrática. São Paulo: Perspectiva/Edusp, 1990. BARBOSA, A. M. John Dewey e o Ensino da Arte no Brasil. São Paulo: Cortez, 2002. CUNHA, M. V. John Dewey: Uma Filosofia para Educadores em Sala de Aula. Petrópolis: Vozes, 1998. _______. John Dewey: A Utopia democrática. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. DEWEY, J. A Arte como Experiência. Trad. M.O.R.P. Leme. São Paulo: Abril Cultural, 1980 _______. A Filosofia em Reconstrução. Trad. E.M. Rocha. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1958. _______. Como Pensamos. Trad. H.C. Campos. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959a. _______. Democracia e Educação. Trad. G. Rangel e A. Teixeira. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959b. _______. Experiência e Natureza. Trad. M.O.R.P. Leme. São Paulo: Abril Cultural, 1980. _______. Lógica: A Teoria da Investigação. Trad. M.O.R.P. Leme. São Paulo: Abril Cultural, 1980. JAMES, W. Ensaios de Empirismo Radical. Trad. P.R. Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1979. _______. O Significado da Verdade. Trad. P.R. Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1979. _______. Pragmatismo. Trad. J. C. Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979. 49
OZMAN, H. A. & CRAVER, S. M. Fundamentos Filosóficos da Educação. Trad. R.C. Cataldo. Porto Alegre: Artemed, 2004. PITOMBO, M. I. M. Conhecimento, Valor e Educação em John Dewey. São Paulo: Pioneira, 1974. SANTAELLA, L. O Método Anticartesiano de C. S. Peirce. São Paulo: Editora UNESP, 2004. SHOOK, J. R. Os Pioneiros do Pragmatismo Americano. Trad. F.B. Said. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
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Tradução
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Solidariedade ou singularidade? Richard Rorty entre Romantismo e tecnocracia*
Por Nancy Fraser Nada pode servir como uma crítica a um vocabulário final salvo um outro vocabulário deste tipo; não há resposta a uma redescrição salvo uma re-re-redescrição. --- Richard Rorty, Contingência, Ironia e Solidariedade22
Considere a seguinte caracterização um tanto caricata do impulso Romântico. Pense neste impulso como a valorização da invenção individual entendida como auto-criação. Um impulso Romântico deste tipo iria celebrar a figura do indivíduo extraordinário que não simplesmente representa, mas sim reescreve o roteiro cultural que seu meio socio-histórico preparou para ele. Iria representar este individual como um “gênio” ou “poeta forte”, independente da área de sua inventividade. A ciência, a política, o que quer que seja – do ponto de vista do impulso romântico, toda arena de invenção seria um ramo da filosofia em sentido largo, da mesma forma que todo ato significante seria um ato estético e toda criação, uma auto-criação. Aqui a inovação seria avaliada por conta própria; a simples diferença entre o que é meramente encontrado ou herdado, por um lado, e o que é criado ou inventado ex nihilo, por outro, seria o que conferiria valor e importância. Na medida em que o impulso Romântico expressa tal diferenciação como o fruto de indivíduos extraordinários, na medida em que os considera e às suas produções como a fonte de toda mudança histórica significativa, na medida em que considera a história em grande medida como a sucessão de tais gênios, torna-se estetizante, individualista e elitista. Ele é, em resumo, o impulso de se auto*
Agradeço a Jonathan Arac por sugerir este título assim como ter me feito o convite que forneceu a ocasião para que escrevesse este ensaio. Fui beneficiada pelas discussões proveitosas com Jonathan Arac, Sandra Bartky, Jerry Graff, Carol Kay, Tom McCarthy, Linda Nicholson, Joe Rouse, Michael Williams e Judy Wittner, e também pelas perguntas estimulantes de membros da audiência no The English Institute da Harvard University, em agosto de 1987. Richard Rorty forneceu generosamente cópias inéditas de muitos ensaios que são citados aqui. 22 Richard Rorty, “Private Irony and Liberal Hope”, in Contingency, Irony, and Solidarity. (Cambridge), 1989, p. 80.
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criar, de ser causa sui, de se separar de sua própria comunidade. Assim, o emprego do pronome masculino é apropriado.23 Agora, contraste esta visão caricata do impulso Romântico com uma caracterização igualmente caricata do impulso pragmático. Considere o último como consistindo em uma impaciência com as diferenças que não fazem diferença. Considere-o como uma aversão pela invenção barroca e por epiciclos inúteis, por qualquer coisa que não vá ao direto ao assunto. Desta forma, o impulso pragmático seria voltado para um objetivo e propositado; se preocuparia menos com originalidade do que com resultados. Problemas solucionados, necessidades satisfeitas, bemestar assegurado, estes seriam seus emblemas de valor. Substituiria a metáfora Romântica da poesia e do jogo, pela metáfora da produção e do trabalho. Iria desdenhar engrenagens que empregasse mecanismos, ferramentas, que não tivessem algum propósito útil, dispositivos de Rube Goldberg24 que não fizessem nenhum trabalho real. De fato, do ponto de vista deste impulso, as palavras seriam ferramentas e a cultura um kit de ferramentas superdimensionado, a ser jogado fora sem cerimônia em caso de obsolescência ou ferrugem. O impulso pragmatista seria, portanto, inteligente e inquieto. Preferiria a orientação cívica do reformador que busca solucionar problemas, ao narcisismo do poeta auto-criador. Seu herói seria o companheiro que realiza o trabalho e se faz útil para a sua sociedade, não aquele que está sempre jactando-se e gabando-se a respeito de suas coisas. Além disso, o impulso pragmático veria a história como uma sucessão de colocação de problemas sociais e de soluções de problemas sociais, uma sucessão que de fato é uma progressão. Atribuindo o progresso ao senso comum, à competência técnica e ao espírito público, seu ethos seria reformista e otimista, sua política liberal e tecnocrática. Ainda que essas caracterizações caricatas não façam justiça às complexidades das tradições Românticas e pragmáticas, acredito que elas, no entanto, assinalam duas tendências reconhecíveis nos escritos recentes de Richard Rorty. Esses escritos, na minha perspectiva, são justamente o lugar de uma luta entre um tal impulso Romântico e um impulso pragmático. Mais do que isso, é uma luta a qual nenhum dos impulsos parece ser capaz de ganhar de modo decisivo. Algumas vezes um, algumas vezes outro ganha uma vantagem temporária aqui ou ali. Mas, de uma maneira geral, há um empate. É sintomático da inabilidade de Rorty em resolver esta disputa que oscile entre três diferentes visões de relacionamento entre Romantismo e pragmatismo, poesia e política. Estas, por seu turno, carregam três concepções diferentes a respeito do papel social e da função política dos intelectuais. 23
Vale a pena lembrar que um dos heróis de Rorty é Harold Bloom, especialmente o Bloom do The Anxiety of Influence (Nova Iorque, 1973). Minha própria perspectiva a respeito do caráter masculino do impulso romântico foi influenciada pela critica feminista a Bloom feita por Sandra M. Gilbert e Susana Gubar em The Madwoman in the Attic: The Woman Writer and the Nineteenth-Century Literary Imagination (New Haven, Conn., 1979). 24 Cartunista americano [N.T.].
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A primeira posição chamo de concepção da “mão invisível”. Representa a perspectiva segundo a qual o Romantismo e o pragmatismo são “parceiros naturais”. Aqui o “poeta forte” e a “utopia do político reformista” são simplesmente duas variações ligeiramente diferentes das mesmas espécies. Suas atividades respectivas são complementares, ainda que não estritamente idênticas, fornecem a matéria prima para o mesmo moinho liberal democrático. Chamo a segunda posição de concepção de “sublimidade ou decência?”. Representa a perspectiva segundo a qual o Romantismo e o pragmatismo são antitéticos; segundo ela, é preciso que se escolha entre a “crueldade” sublime do poeta forte e a bela “bondade” do reformista político. Esta perspectiva enfatiza o “lado negro” do Romantismo, sua tendência em estetizar a política e, assim, tornar-se antidemocrático. É evidente que a concepção da “mão invisível” e a concepção da “sublimidade ou decência?” são opostas uma a outra. Assim, cada uma pode ser lida como uma crítica da outra. A terceira posição de Rorty, a qual chamo de posição de “divisão”, representa um compromisso. Se o Romantismo e o pragmatismo não são exatamente “parceiros naturais”, mas se ao mesmo tempo alguém não deseja abandonar nenhum dos dois, então, talvez, eles possam aprender a como conviver um com o outro. Assim, Rorty esboçou recentemente os termos de uma trégua entre eles, uma trégua que reserva a cada qual sua própria esfera de influência. O impulso Romântico terá reino livre no que será daqui em diante o “setor privado”, mas não lhe será permitido nenhuma pretensão política. O pragmatismo, por outro lado, terá direitos exclusivos ao “setor publico”, mas será impedido de perseguir quaisquer noções de mudança radical que possa desafiar a hegemonia cultural “privada” do Romantismo. Um compromisso engenhoso, sem sombra de dúvida. Mas compromissos baseados em divisões são notoriamente instáveis. Tendem a não resolver verdadeiramente, mas somente a aliviar temporariamente a fonte básica do conflito. Mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra, este conflito aparecerá. 1. A tentação soreliana Consideremos o papel que o impulso Romântico tem no pensamento de Rorty. Lembremos sua insistência na diferença entre vocabulários e proposições. É precisamente na tendência de confundilos, de tratar vocabulários como se eles pudessem ser justificados como as proposições, que está para ele o pecado capital da filosofia tradicional. Na perspectiva de Rorty, a escolha de vocabulário é sempre subdeterminada. Não há argumentos não circulares, nem razões que já não estejam expressas em algum vocabulário, que pudesse estabelecer de uma vez por todas que alguém tem o vocabulário
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certo. Pretender que seja diferente significa procurar o conforto metafísico de um ponto de vista de Deus. Agora, considere também quantas coisas dependem de uma mudança de vocabulário na perspectiva de Rorty. A mera redistribuição de valores de verdade ao longo de um conjunto de proposições formuladas em algum vocabulário tomado como verdadeiro é uma coisa insignificante comparada com uma mudança de vocabulário. Com mudanças de vocabulário, questões urgentes de repente perdem sua importância, práticas estabelecidas são modificadas drasticamente, constelações inteiras de cultura se dissolvem para dar espaço a novas, até então inimagináveis constelações. Desta maneira, mudanças de vocabulários são para Rorty o motor da história, o carro chefe do progresso moral e intelectual. Considere, finalmente, como é que ocorrem exatamente, de acordo com Rorty, mudanças de vocabulários. Uma mudança de vocabulário é a literalização de uma nova metáfora, o emprego generalizado do novo modo de falar de alguém, a adoção por uma comunidade inteira da idiossincrasia de algum poeta. Segue-se daí que poetas, no sentido largo, são os “legisladores inconfessos do mundo social.”25 São seus vocábulos casuais, que surgem como dardos de “fora do espaço lógico”, que determinam a forma da cultura e sociedade subsequentes. O impulso Romântico em Rorty é o impulso que se emociona diante da sublimidade da metáfora, da impetuosidade do “discurso incomum”. Quando está sob a sua influência, Rorty imagina o herói da cultura como o poeta, permitindo-lhe superar não apenas o padre e o filósofo, mas até mesmo os heróis tradicionais do pragmatismo, o cientista e o político reformista. Em geral, então, é o impulso romântico de Rorty que dita o seu “ideal utópico” de “uma cultura estetizada”, uma cultura com nenhum outro objetivo senão o de criar “artefatos cada vez mais variados e multicoloridos”, nenhum outro propósito do que “tornar a vida mais fácil para poetas e revolucionários”.26 O impulso Romântico é bastante forte em Rorty. Mas não é um impulso com o qual ele esteja inteiramente confortável. E por boas razões. Consideremos como seria uma política que desse rédea livre ao impulso Romântico. Lembremos o caráter individualista, elitista e esteticista deste impulso, sua deificação do poeta forte, sua fetichização da criação ex nihilo. Basta um olhar de soslaio para ver aqui a perspectiva de um Georges Sorel: uma “sociologia” que classifica a humanidade em “líderes” e “massas”, uma “teoria da ação” através da qual os primeiros moldam os segundos por
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Este é Rorty, ecoando Shelley, in "Philosophy as Science, as Metaphor, and as Politics," in The Institution of Philosophy: A Discipline in Crisis?, org. Avner Cohen and Marcelo Descal (Peru, Illinois). 26 Rorty, "The Contingency of Community," London Review of Books, 24 de julho de 1986, pp. 11-13. Uma versão revisada deste ensaio aparece sob o título "The Contingency of a Liberal Community" in Contingency, Irony, and Solidarity.
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meio de um mero “triunfo da vontade”, uma “filosofia da história” como uma tela vazia esperando os desígnios irrestritos do poeta-líder.27 Suponho que algo parecido com este pesadelo soreliano seja o que atrapalha o sono de Richard Rorty. Já faz um bom tempo que ele se esforça em mostrar que sua tendência Romântica não o leva a este caminho, que sua própria “perspectiva utópica” de uma “cultura estetizada” é liberal e democrática ao invés de soreliana e potencialmente fascista. 2. A mão invisível; ou, viver melhor através da química e poesia Um modo através do qual Rorty procurou exorcizar o demônio soreliano foi fornecendo uma defesa política positiva de sua própria versão do Romantismo. Assim, tentou retratar a dimensão Romântica de seu pensamento como compatível com – na verdade, até mesmo como favorecendo – a dimensão aparentemente oposta, a pragmática. Ele tentou ainda mais energicamente mostrar que as duas dimensões eram “parceiras naturais”, que a compatibilidade entre elas era extremamente forte e que o poeta forte era o democrata personificado. A estratégia principal aqui é a de ligar o poetar com a orientação-comunitária, a realização Romântica com a identificação social. Assim, Rorty argumenta que ao desistir dos fundamentos kantianos em pró das visões liberais, partimos da “objetividade” para a “solidariedade”. Pois, cessar de fixar nossas esperanças em tais substitutos de Deus, como Razão, Natureza Humana e Lei Moral, significa começar a fixá-las umas nas outras.28 Da mesma forma, Rorty afirma que a posição estética e a posição moral não são antitéticas. Ao contrário, elas não são nem mesmo distintas – pois ao adotar a atitude estética, nós “desdeificamos” ou desencantamos o mundo, promovendo desta maneira a tolerância, o liberalismo e a razão instrumental.29 A recusa em hipotecar a produção de cultura às autoridades ahistóricas nos libera para “experimentalismos” na política, para o tipo de “engenharia social” simultaneamente utópica e com os pés no chão, que é a própria alma do progresso moral. 27
A escolha de Sorel como a personificação desta possibilidade é minha, não de Rorty. Ele tende, ao invés disso, de representá-la com Lênin. Na minha visão, Lênin é bem menos apropriado do que Sorel. A “sociologia”, “teoria da ação”, e “filosofia da história” que esbocei possuem pouca semelhança com as de Lênin e muito com as de Sorel. Além disso, a ambiguidade muito maior de Sorel em termos das noções padrões de “Direita” e “Esquerda” capturam melhor o sabor do tipo de Romantismo político que estou tentando caracterizar aqui. Por último, a escolha de Rorty por Lênin como a personificação da loucura do Romantismo é um gesto político anti-marxista que eu não gostaria de repetir. Em geral, Rorty demonstra não ter conhecimento da tradição do marxismo ocidental, nem das tentativas dentro do marxismo de achar alternativas para as concepções vanguardistas de relações entre teoria e prática. 28 Rorty, "Solidarity or Objectivity?" in Post-Analytic Philosophy, org. John Rajchman and Cornel West (Nova Iorque, 1985), pp. 3-19. 29 Rorty, "The Priority of Democracy to Philosophy," in The Virginia Statute of Religious Freedom, ed. Merrill Peterson e Robert Vaughan (Cambridge, 1988), pp. 39-40. Ver também o seu "From Logic to Language to Play,'' Proceedings and Addresses of the American Philosophical Association 59, no. 5 (Junho, 1986): pp.747-53.
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Além disso, afirma Rorty, tratar o poeta forte como herói e como um modelo exemplar é “adotar uma identidade que é apropriada à cidadania em um Estado idealmente liberal”, uma vez que há, supostamente, uma adequação “suficientemente forte” entre a liberdade dos intelectuais e “a diminuição da crueldade”.30 Consideramos as práticas de épocas passadas como cruéis e injustas somente porque aprendemos como redescrevê-las. E fizemos isso somente por causa de mudanças de vocabulários devido às metáforas de poetas. Assim, contrário às aparências iniciais, não é realmente elitista “tratar as sociedades democratas como existentes graças aos intelectuais” 31 De fato, somente por tornar a sociedade segura para poetas é que podemos garantir que a linguagem continue mudando – e somente por garantir que a linguagem continue mudando, podemos evitar a normalização de práticas correntes que possam parecer mais tarde cruéis e injustas. Assim, tornar a sociedade segura para poetas é ajudar a torná-la segura para todo mundo. Finalmente, afirma Rorty, uma cultura organizada para o bem da poesia e do lazer estimularia a “decência” e a “gentileza”. Diminuiria, ou equalizaria, a tendência a uma forma especificamente humana de sofrimento, a saber, a humilhação, que surge quando um indivíduo é redescrito nos termos de uma outra pessoa enquanto que seu próprio vocabulário é descartado peremptoriamente. A melhor salvaguarda contra este tipo de crueldade é um reconhecimento dos vocabulários de outras pessoas. Um tal reconhecimento, por seu turno, é melhor adquirido lendo muitos livros. Assim, uma cultura que encoraja uma intelligentsia literária cosmopolita promoveria a maior felicidade para o maior número de pessoas.32 Em resumo, Rorty afirma que a inovação cultural e a justiça social caminham juntas. Elas estão unidas nas metáforas liberacionistas das sociedades liberais, onde a história é descrita como uma sucessão de emancipações: servos, dos lordes; escravos, de grandes proprietários de terra; colônias, de impérios; trabalhadores, do poder ilimitado do capital. Uma vez que ambas são dominadas por essas imagens de libertação, o Romantismo nas artes corresponde à democracia na política.33 Em todos esses argumentos o que está realmente em jogo é a acusação de elitismo. Rorty procura rebater a acusação de que uma política Romântica deve colocar a liberdade acima da igualdade, sacrificando a maior felicidade do maior número no altar do poeta forte. Sua abordagem geral significa invocar uma versão do velho argumento trickel-down: a liberdade nas artes encoraja a igualdade na sociedade; o que é bom para os poetas é bom para os trabalhadores, camponeses e o desempregado hard-core.
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Rorty, "The Contingency of Community," p. 14. Ibid. 32 Rorty, "Private Irony and Liberal Hope," p. 89, pp. 94-95. 33 Rorty, "Liberal Hope and Private Irony." (manuscrito não publicado). 31
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Aqui, então, está o Rorty que procurou uma reunião sem sutura entre o Romantismo e o pragmatismo. Adotando uma estratégia de “mão invisível”, buscou mostrar que a atividade estética e a política liberal reformista são nada mais do que os dois lados da mesma moeda, que o que promove uma também promoverá a outra, que podemos Viver Melhor através do Casamento da Química com a Poesia. Esses argumentos não apresentam Rorty em sua capacidade mais persuasiva. Ao contrário, eles tendem a levantar muito mais questões do que podem responder. Por exemplo, dizer adeus à objetividade significa mesmo dizer olá para a solidariedade? Seguramente não há relação de implicação lógica entre antiessencialismo e lealdade a sua sociedade. Não há entre elas nem mesmo qualquer conexão psicológica ou histórica possível se tomarmos as sociedades modernas ocidentais como medida. Além disso, porque assumir uma perspectiva quasi-durkheiminiana, de acordo com a qual a sociedade é integrada por meio de uma solidariedade única, monolítica e ampla? Por que não assumir ao invés disso uma perspectiva quasi-marxista de acordo com a qual as sociedades capitalistas modernas contêm uma pluralidade de solidariedades sobrepostas e concorrentes? Além do mais, é realmente verdade que as sociedades que produzem a melhor literatura são também as mais igualitárias? Os interesses dos poetas e os interesses dos trabalhadores de fato coincidem tão perfeitamente? E o que dizer sobre os interesses das mulheres, uma vez que, a despeito do uso de Rorty do pronome feminino, seus poetas são sempre descritos como filhos procurando suplantar seus pais culturais? Mais ainda, o poetar realmente harmoniza-se tão impecavelmente com a engenharia social? Como é que o caráter pé-no-chão e orientado para o resultado da última se concilia com a jovialidade extravagante do primeiro? Aliás, por que a “engenharia social” é a concepção preferida da prática política? E por que a igualdade é colocada em termos de “gentileza” e “decência”? Por que é feito com que ela dependa de uma virtude da intelligentsia, na suposta capacidade desta última em evitar humilhar os outros? Por que, ao invés disso, a igualdade não é considerada em termos da participação igual no poetar, no produzir cultura e na política? 3. Sublimidade ou decência? Ou, o lado negro do Romantismo Como sempre, ninguém refuta melhor a “solução” da mão invisível do que o próprio Rorty. Recentemente ele reconheceu que há um “lado negro” do Romantismo, um lado que ele agora designa como “ironismo”. Por ironismo, Rorty entende o projeto intelectual literário modernista de criar o melhor self possível pela continua redescrição. Identificando a si mesmo como um tal ironista, Rorty se pergunta se é realmente possível combinar “os prazeres da redescrição” com a
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sensibilidade diante “dos sofrimentos desses que estão sendo redescritos”. Ele teme que a exigência ironista pela máxima liberdade cultural possa de fato ser elitista, compatível com a indiferença diante do sofrimento de não-poetas. O ironismo, ele admite, é, por definição, reativo, requer uma cultura pública não-ironista da qual possa estar alienado. Assim, mesmo em uma cultura pósmetafísica, o ironismo não pode ser a atitude generalizada de toda a coletividade social; ela pode ser a atitude somente de um estrato da sociedade, a intelligentsia literária ou a elite cultural. Além disso, não há nenhuma intenção de se negar que o ironista possa ser cruel. Sente prazer em redescrever os outros ao invés de considerá-los segundo os seus próprios termos. Não se duvida, no entanto, que isto é muitas vezes humilhante, como quando os bens favoritos de uma criança são colocados ao lado dos de uma criança mais rica, fazendo-os dessa maneira parecerem surrados. Para tornar as coisas piores, o ironista não pode afirmar que ao redescrever os outros ele está descobrindo seus verdadeiros selves e interesses, dessa maneira, fortalecendo-os e libertando-os. Somente o político orientado metafisicamente pode prometer isso. Segue-se que mesmo que o ironista professasse apoio para a política liberal, ele não poderia ser muito “dinâmico” ou “progressista”.34 Considerações como essas levaram Rorty a modificar dramaticamente sua perspectiva anterior. Agora, ele não mais assume que substituir inventar por descobrir é servir a sua comunidade, que dizer adeus à objetividade é dizer olá à solidariedade. Ao contrário, Rorty agora distingue uma motivação “egoísta” e anti-social no Romantismo, uma motivação que representa a própria antítese da identificação comunal. Ele acha que a busca Romântica pelo sublime está abastecida por um desejo por desfiliação, uma necessidade de “cortar os laços da tribo”. Assim, por trás do amor do poeta pelo que é original e totalmente novo oculta-se um desdém secreto pelo que é familiar e amplamente compartilhado. Isto é especialmente perturbador quando o que é familiar e compartilhado é um compromisso com a democracia. Em uma cultura supostamente já organizada em torno de uma metáfora da liberação e da reforma social, procurar metáforas novas, mais vívidas, menos triviais é cortejar o desastre político. Assim, Rorty exprime uma nova preocupação, a de que o Romantismo e o pragmatismo não possam ser misturados. Enquanto o pragmatismo é orientado para a comunidade, democrático e afável, o Romantismo parece-lhe agora egoísta, elitista e cruel. Enquanto o pragmatista busca solucionar problemas e atender às necessidades de seu concidadão comum, o ironista Romântico tende mais a desprezá-las como banais, desinteressantes e insuficientemente radicais. Assim sendo, os chamados pós-estruturalistas de esquerda estão iludidos quando pensam que “servem os miseráveis da terra” na medida em que rejeitam o vocabulário político liberal corrente. Ao contrário, o que eles de fato fazem é exprimir o desprezo vanguardista tradicional por seus 34
Rorty, "Private Irony and Liberal Hope," pp. 87-91.
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semelhantes. Heiddegerianos, desconstrucionistas, neo-marxistas, foucaultianos e diversos novos esquerdistas – estas não diferenças que fazem uma diferença -- Todos são sorelianos em potencial, que confundem a ânsia especial do intelectual ironista pelo sublime com a necessidade geral da sociedade pelo meramente belo.35 É nesse sentido que Rorty teve o cuidado recentemente de distinguir explicitamente a concepção pragmática de filosofia da Romântica. Ele argumenta que o Romantismo e o pragmatismo representam duas reações distintas contra a metafísica e que eles não devem ser combinados um com o outro. É verdade que ambos rejeitam a perspectiva tradicional da “filosofia como ciência” – isto é, como a procura por uma matriz neutra permanente de investigação. Mas, enquanto o Romantismo almeja substituir esta perspectiva pela perspectiva da “filosofia como metáfora”, o pragmatismo prefere substituí-la pela perspectiva da “filosofia como política”. Segue-se daí que as duas abordagens divergem nitidamente com relação a suas imagens da pessoa ideal: na perspectiva da metáfora, esta deve ser o poeta, enquanto que na perspectiva política, deve ser o assistente social e o engenheiro. É verdade que ambas as perspectivas são holísticas; ambas distinguem discursos incomuns de discursos normais, a invenção de uma metáfora, da sua literalização ou aplicação social. Mas ambas distanciam-se uma da outra com relação à importância de transformar metáforas vivas em metáforas mortas na medida em que são disseminadas a serviço da sociedade. Para o Romântico este tipo de poesia aplicada é o trabalho rotineiro mais ignóbil, enquanto que para o pragmatista é exatamente para o que as melhores metáforas são feitas. Segue-se daí que as duas visões comportam atitudes sociais bem diferentes. Na perspectiva romântica, o mundo social existe para o bem do poeta. Na perspectiva pragmática, por outro lado, o poeta existe para o bem do mundo social.36 Neste cenário bem mais complicado, não há, então, uma, mas sim duas alternativas à objetividade. Somente uma dessas conduz à solidariedade e à democracia; a outra conduz ao vanguardismo, ou até mesmo ao fascismo. Rorty formula aqui o problema como Romantismo versus pragmatismo. Ele trata os dois impulsos como antitéticos um ao outro, e força a uma escolha. Romantismo ou pragmatismo? Sublimidade ou decência? Poesia forte ou metáforas mortas? Autocriação ou responsabilidade social? Não é possível ter ambas essas possibilidades. Ou se pode?
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Rorty, "Habermas and Lyotard on Postmodernity," in Habermas and Modernity, ed. Richard J. Bernstein (Cambridge, Mass. 1985); "Method, Social Science, and Social Hope," in Consequences of Pragmatism: Essays, 1972-1980 (Minneapolis, 1982); e "Thugs and Theorists: A Reply to Bernstein," Political Theory 15, no. 4 (November 1987): pp. 564-80. 36 Rorty, "Philosophy as Science, as Metaphor, and as Politics."
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4. A posição da divisão Em seus ensaios mais recentes, Rorty recusa-se a ter que escolher entre sublimidade e decência, Romantismo e pragmatismo. Ao invés disso ele forjou uma nova formulação de modo a lhe permitir ter ambas as possibilidades: ele reparte a diferença entre Romantismo e pragmatismo segundo uma divisão entre a vida privada e a pública. A ideia é a de que duas coisas que não podem ser fundidas em uma podem, no entanto, coexistir lado a lado, se limites claros e nítidos são estabelecidos entre elas. Agora, a sublimidade não pode ser fundida com a decência, nem a poesia forte com a responsabilidade social, mas se a cada uma for designada sua própria esfera separada e barrada da interferência da outra, então elas podem se tornar razoavelmente boas vizinhas. Esta é, então, a estratégia da posição de “divisão” de Rorty: dividir o mapa da cultura ao meio. De um lado estará a vida pública, o setor do pragmatismo, a esfera onde predominam a utilidade e a solidariedade. Do outro lado estará a vida privada, o setor do Romantismo, a esfera da autodescoberta, sublimidade e ironia. Na esfera pública, o dever do indivíduo com a sua comunidade tem precedência: esperança social, decência e a maior felicidade para o maior número de pessoas pertencem à ordem do dia. Na esfera privada, em contraste, a causa reinante é o dever do indivíduo consigo mesmo; aqui, o indivíduo pode se desassociar-se de sua comunidade, ocupar-se com a criação do próprio self e, assim, cuidar da sua “solidão”.37 Dessa forma, Rorty almeja preservar tanto o êxtase quanto a utilidade, tanto “o desejo de pensar o impensável”, quanto o “entusiasmo pela Revolução Francesa”.38 Mas isso só é possível isolando-os rigidamente um do outro. De fato, ele agora afirma que é o desejo de superar a separação implacável entre a vida pública e privada que está na raiz de muitas dificuldades teóricas e políticas. Constata que este desejo é comum à metafísica e à sua crítica ironista, ao marxismo e às várias formas nãomarxistas de radicalismo político. É o que levou até mesmo o Heidegger tardio ao mau caminho, levando-o a confundir o que era na verdade sua necessidade privada de se livrar de algumas autoridades locais e de pessoas chamadas Platão, Aristóteles e Kant, com o destino do ocidente.39 Rorty afirma que há uma lição a ser aprendida a partir das dificuldades de todos esses oponentes do liberalismo: quando a ironia se torna publica, ela se envolve em complicações. Assim, a teoria ironista tem que ficar privada se é para se manter sã.40 37
Rorty, "The Priority of Democracy to Philosophy," p. 37. Rorty, "Habermas and Lyotard on Postmodernity," p. 175. 39 Rorty, "Self-creation and Affiliation: Proust, Nietzche, and Heidegger," in Contingency, Irony, and Solidarity ,pp. 100, 110, 114, 118-21. 40 Ibid., p. 120 38
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Constata-se, felizmente, que há um modo de neutralizar as implicações políticas não-liberais do pensamento radical – negando que o pensamento radical tenha quaisquer implicações políticas. Assim, Heidegger estava simplesmente equivocado ao imaginar que seu trabalho teria alguma relevância pública. O mesmo vale para todos esses pretensos esquerdistas que almejam fazer confusão política da desconstrução, do pós-modernismo, do foucaultianismo e do neomarxismo. Na verdade, o único uso possível da teoria ironista é o privado: sustentar a autoimagem e ajudar à autocriação da intelligentsia literária. A posição da divisão implica claramente uma perspectiva revisada do papel social e da função política dos intelectuais. O poeta forte como até aqui concebido precisa ser domesticado, reduzido à justa medida e tornado adequado à vida privada. Ele deve se tornar o esteta, uma figura despida de ambição pública e interiorizada.41 Assim, o intelectual será o rei no castelo de sua própria autocriação, mas ele não mais legislará para o mundo social. Na verdade, o intelectual não terá papel social ou função política. É uma medida do status domesticado do esteta de Rorty que ele possa perseguir a sublimidade somente em seu “próprio tempo, e dentro dos limites estabelecidos em On Liberty”.42 Ele pode ter pensamentos irônicos envolvendo redescrições cruéis dentro da privacidade de sua própria esfera narcisística, mas não pode agir motivado por eles de algum modo que possa causar dor ou humilhação aos outros. Isso significa que o esteta deve ter um vocabulário final dividido, um vocabulário dividido em um setor publico e uma setor privado. O setor privado do vocabulário final do esteta será grande e luxuoso, contendo todos os tipos de termos potencialmente cruéis e variados de redescrever os outros. O setor publico de seu vocabulário, por outro lado, será menor, consistindo em poucos termos flexíveis, tais como ‘gentileza’ e ‘decência’, que expressam seu compromisso com a política do liberalismo.43 A posição de divisão representa um desenvolvimento novo e interessante no pensamento de Rorty. Significa seu esforço mais sofisticado até o momento em levar a sério o problema de reconciliar Romantismo e pragmatismo. Mas, ainda assim, essa posição é gravemente falha. Ela depende da possibilidade de se demarcar um limite claro entre a vida pública e a vida privada. Mas isso é realmente possível? É realmente possível distinguir redescrições que causam gestos com consequências para outros, das que nem causam nenhum gesto ou que causam somente gestos sem consequências para os outros?44 Certamente muitos dos desenvolvimentos que ocorrem com algumas pessoas distantes dos processos oficialmente designados como políticos são, no entanto, públicos. E 41
Sou grata a Michael Williams pela sugestão de que aqui a visão de Rorty do intelectual é a do esteta. Rorty, "Posties," London Review of Books, 3setembro de 1987, p. 11. 43 Rorty, "Private Irony and Liberal Hope", pp. 92-93. 44 Este problema é colocado, mas de modo algum resolvido, por Mill em On Liberty. 42
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as esferas públicas oficialmente políticas não são de modo algum impermeáveis a desenvolvimentos nas esferas culturais públicas,45uma vez que os processos culturais ajudam a formar as identidades sociais, as quais por seu turno afetam as afiliações políticas. Além disso, os movimentos sociais do último século, aproximadamente, nos ensinaram a ver o caráter carregado de poder (power-laden) e, portanto, político das interações que o liberalismo clássico considerou privadas. Os movimentos dos trabalhadores, por exemplo, especialmente como explicado pela teoria de Marx, nos ensinou que o econômico é político. Da mesma forma, os movimentos das mulheres, como explicado pela teoria feminista, nos ensinou que o doméstico e o pessoal são políticos. Finalmente, todo um campo de movimentos sociais da Nova Esquerda, como expressos pelas teorias gramscinianas, foucaltianas e, sim, até mesmo althusserianas, nos ensinaram que o cultural, o médico, o educacional – tudo aquilo que Hannah Arendt chamou de “o social”, como distinto do privado e do público – que tudo isso, também, é político.46 A posição da divisão de Rorty requer que enterremos essas compreensões, que viremos às costas para o último século da história social. Requer, além disso, que privatizemos a teoria. As feministas, em especial, quererão resistir a esta última exigência, a fim de que não tenhamos que ver nossas teorias seguirem o caminho dos nossos trabalhos domésticos. 5. Discurso incomum reconsiderado Nenhuma das três posições de Rorty representa uma solução satisfatória para a tensão entre pragmatismo e Romantismo. A posição da “mão invisível” falha porque dizer adeus à objetividade não é necessariamente dizer olá a uma solidariedade singular e única, e porque o que é bom para poetas não é necessariamente bom para trabalhadores, camponeses e desempregados hard-core. A posição “sublimidade-ou-decência?” falha porque nem toda teorização radical é elitista, antidemocrática e oposta a interesses coletivos e a vida política. Finalmente, a “posição da divisão” falha porque vocabulários finais não são exatamente separáveis em setores públicos e privados, nem ações são separáveis em público e privado. Se nenhuma dessas soluções proferidas é adequada, então, valeria a pena reconsiderar os termos do dilema original. Podemos examinar mais detidamente as categorias e pressuposições que instruem o pensamento de Rorty sobre cultura e política. 45
Usei a expressão “oficialmente política” aqui para assinalar a existência de arenas sociais não reconhecidas como políticas oficialmente que devem, não obstante, serem entendidas como políticas. 46 Insistir no caráter carregado de poder e, portanto, político, desses assuntos não é autorizar necessariamente uma intervenção ilimitada do Estado. E possível favorecer, ao invés disso, o uso de contrapoderes não governamentais como os movimentos sociais e as associações políticas democráticas. Esta é a visão de muitas feministas, inclusive a minha, sobre a pornografia: a pornografia é prejudicial às mulheres de um modo mais difuso do que direto, e é combatível mais apropriadamente através de boicotes, piquetes, contrapropaganda e aumento da conscientização do que pela censura estatal.
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Comecemos com a distinção chave do esquema de Rorty, o contraste entre discurso normal e discurso incomum. Na realidade Rorty oscila entre duas perspectivas de discurso incomum. A primeira perspectiva, desenvolvida em Filosofia e o espelho da natureza, e derivada do trabalho de Thomas Kuhn, representa simplesmente a negação do discurso normal da ciência, isto é, do discurso segundo o qual os interlocutores compartilham uma compreensão do que vale como um problema ou questão, como uma hipótese bem formada ou séria, e como uma boa razão ou argumento. O discurso incomum, então, é o discurso no qual tais questões estão à disposição de quem quer que seja. Ele envolve uma pluralidade de vozes diferenciáveis ou mesmo incomensuráveis, e consiste em uma troca vívida apesar de um pouco desordenada entre elas. Chamemos esta de “concepção polilógica” do discurso incomum. Agora contrastemos a concepção polilógica com outra concepção de discurso incomum também encontrada em Rorty, a concepção monológica. A perspectiva monológica é a perspectiva Romântica-individualista na qual o discurso incomum é a prerrogativa do poeta forte e do teórico ironista. É um discurso que consiste em uma voz solitária clamando noite a dentro diante de um pano de fundo profundamente indiferenciado. A única resposta possível a esta voz é a rejeição diante do incompreensível ou a imitação identificatória. Não há espaço para uma resposta que a pudesse qualificar como uma voz diferente. Não há espaço para a interação. Essas duas concepções distintas do discurso incomum correspondem claramente aos dois impulsos diferentes que identifiquei anteriormente. A perspectiva monológica se desenvolve sob os auspícios do impulso Romântico de Rorty, enquanto que a perspectiva polilógica é alimentada por seu impulso pragmático. Além disso, a perspectiva monológica organiza-se sobre as noções de Rorty de teoria-radical-cum-poesia-forte e privacidade, enquanto que a perspectiva polilógica organiza-se sobre suas noções de prática, política e público. Em um nível, esta organização faz um bom sentido. Parece que Rorty está perfeitamente certo em querer uma política polilógica ao invés de uma política monológica – aliás, perfeitamente certo em rejeitar uma política monológica como se fosse um oximoro. Em outro nível, entretanto, há algo profundamente perturbador aqui: o caráter claramente dicotômico do mapa resultante da cultura: a oposição abstrata e sem mediação entre a poesia e a política, teoria e prática, indivíduo e comunidade. Levemos em consideração o impacto da concepção monológica do discurso incomum nas várias regiões do mapa de Rorty do espaço social. A concepção monológica, conforme vimos, é individualista, elitista e antissocial. Além disso, Rorty a associa ao teorizar radical, o qual é ele mesmo tratado como uma espécie do poetar. Como resultado, o teorizar radical assume conotações individualista, tornando-se a própria antítese da ação coletiva e da prática política. A teoria radical, 64
em outras palavras, fica modulada como uma esfera separada da vida coletiva, uma esfera da privacidade e da autocriação individual. Torna-se estetizada, narcisada e emburguesada; um domínio no qual as aspirações pela transcendência estão em quarentena, tornadas seguras porque estéreis. Ora, esta concepção privatizada, narcisista, da teoria radical tem duas consequências sociais importantes. Primeiro, não pode haver nenhuma política cultural legítima, nenhuma luta genuinamente política pela hegemonia cultural; só pode haver revoltas edipianas de filhos geniais contra pais geniais. Segundo, não pode haver nenhuma teoria radical politicamente relevante, nenhuma ligação entre a teoria e a prática política; só pode haver teoria ironista apolítica e prática reformista ateórica. Assim, tanto a cultura, quanto a teoria tornam-se despolitizadas. A privatização da teoria radical também paga um preço no formato do político. Nas mãos de Rorty, a política assume um caráter excessivamente comunitário e solidário, como uma reação contra o egoísmo extremo e o individualismo de sua concepção de teoria. Assim, podemos supostamente ir direto da objetividade para a solidariedade, do conforto metafísico da filosofia tradicional para o conforto comunitário de um único “nós”. Aqui, Rorty homogeniza o espaço social ao assumir tendenciosamente que não há nenhuma divisão social profunda capaz de gerar solidariedades conflitantes e “nós” antagônicos. Segue-se dessa ausência assumida de antagonismos sociais relevantes que a política é uma questão de todo mundo colaborando para solucionar um conjunto comum de problemas. Assim, a engenharia social pode substituir a luta política. Remendagens desconectadas, com uma sucessão de problemas sociais supostamente distintos, pode substituir a transformação da estrutura institucional básica. O especialista em solucionar problema social e o reformista ‘de cima para baixo’ podem substituir os movimentos sociais organizados de pessoas que articulam coletivamente seus próprios interesses e aspirações; dessa forma o agente político chega a ser tipificado como assistente social ou engenheiro, ao invés de, por exemplo, membro da National Welfare Rights Organization [Organização Nacional de Direitos Sociais] ou da Clamshell Alliance. Além disso, sem fissuras profundas ou eixos generalizados de dominação, a prática pode fluir inteiramente livre da teoria. Se não há mecanismos de subordinação inscritos na estrutura institucional básica da sociedade, então a fortiori não há nenhuma necessidade de teorizálos. Assim, a política pode ser desteoretizada. Este mapa cultural pressupõe claramente um diagnóstico político substantivo, um sobre o qual discordarei mais tarde. Mas também possui uma característica formal digna de nota: as concepções de Rorty sobre a política e a teoria são complementos uma da outra. Se a teoria é hiperindividualizada e despolitizada, então a política é hipercomunalizada e desteorizada: enquanto teoria, torna-se pura poiêsis, enquanto política, pura technê.
Além disso, na medida em que a
teoria passa a ser o âmbito da pura transcendência, a política é banalizada, esvaziada de radicalismo 65
e de desejo. Finalmente, na medida em que a teoria torna-se a produção ex nihilo de novas metáforas, a política deve ser meramente a sua literalização; a política deve ser somente aplicação, jamais invenção. É paradoxal que um tal quadro dicotômico deva ser o resultado de um corpo de pensamentos que objetiva suavizar dicotomias herdadas tais como teoria versus prática, estética versus moralidade, ciência versus literatura. Também é paradoxal que o que se supôs ser um “polilogo” político vai progressivamente assemelhando-se a um monólogo. Levemos em consideração que Rorty torna discursos nãoliberais e oposicionistas em não políticos por definição. Ele associa tais discursos com o Romantismo, a busca pelo desconhecido. Eles se tornam a prerrogativa de intelectuais livres que estão “entediados” com os vocabulários amplamente disseminados e que almejam “o novo” e “o interessante”. Discursos radicais, então, são modulados como um afastar-se das preocupações da vida coletiva. Rorty imagina, então, o motivo para discurso oposicionista como estético e apolítico. Ele imagina o sujeito desses discursos como o indivíduo heroico, alienado e solitário. E imagina o objeto ou tópico dos discursos radicais como algo – qualquer coisa – diferente das necessidades e problemas da coletividade social. Dessa maneira, com os discursos radicais estetizados e individualizados – na verdade, edipianizados e masculinizados –, o discurso político, por seu lado, é implicitamente desradicalizado. O discurso político, na realidade, está restrito em Rorty a aqueles que falam a língua do liberalismo burguês. Quem quer que se afaste desse vocabulário carece simplesmente de qualquer sentido de solidariedade. Da mesma maneira, constata-se que os adeptos do liberalismo burguês têm um monopólio dos discursos sobre as necessidades da comunidade e dos problemas sociais. Quem quer que evite o idioma liberal deve estar falando sobre alguma outra coisa – sobre, por exemplo, a salvação individual. Assim, nos ensaios recentes de Rorty, a solidariedade social e os discursos não liberais são vistos como antitéticos um do outro. O discurso enraizado na solidariedade e orientado para as preocupações coletivas está restrito à resolução liberal de problemas. O discurso não liberal, por outro lado, é reduzido ao esteticismo, ao apoliticismo e ao individualismo Romântico. Esse modo de delinear o terreno discursivo produz algumas exclusões significativas. Não há lugar no esquema de Rorty para motivações políticas na invenção de novos idiomas, nenhum lugar para idiomas inventados para superar o silencio forçado ou o emudecimento de grupos sociais em desvantagem. Da mesma maneira, não há lugar para sujeitos coletivos de discursos não liberais, donde, nenhum lugar para comunidades de discurso radical que contestem os discursos dominantes. Finalmente, não há lugar para interpretações não liberais das necessidades sociais e das preocupações coletivas; não há lugar, portanto, por exemplo, para política socialista-feminista. Em 66
suma, não há lugar no esquema de Rorty para discursos políticos genuinamente radicais, enraizados em solidariedades antagônicas. Rorty termina consequentemente supondo que só há um vocabulário político legítimo, traindo dessa maneira seu próprio confesso compromisso com uma política polilógica. Este, também, é um resultado paradoxal para um pensamento que parecia sempre insistir na importância decisiva de escolha de vocabulário para o enquadramento de questões. Em qualquer caso, e quaisquer que sejam suas intenções, ao dicotomizar o privado e o público, o indivíduo singular e a comunidade homogênea, Rorty remove a base para a possibilidade de uma política democrática radical. Como podemos colocar de volta ao quadro esta possibilidade? Como podemos retomar uma versão do pragmatismo que é compatível com a democracia radical, o discurso político incomum polilógico e a política socialista-feminista? 6. Receita para um pragmatismo democrático-socialista-feminista Rorty resumiu recentemente o objetivo de seu mais recente grupo de ensaios: “separar ... ‘pósmodernismo’ de radicalismo político [,] polêmicas contra ‘a metafísica da presença’ das polêmicas contra ‘a ideologia burguesa’, críticas ao racionalismo e universalismo do Iluminismo das críticas ao pensamento político, reformista, liberal.”47 Em contrapartida, gostaria de resumir o meu objetivo neste presente artigo: separar o pragmatismo do liberalismo da guerra fria, as polêmicas contra a filosofia fundacionista tradicional das polêmicas contra teoria social, as críticas à política soreliana Romântica das críticas à política democrática-socialista-feminista radical. Deixe-me concluir esboçando em linhas gerais como uma tal separação pode ser realizada. Uma vez que a questão é mostrar que é deveras possível separar o que Rorty reuniu, meu esboço será uma receita para uma combinação alternativa, um pragmatismo democrático-socialista-feminista.48 Comece com o tipo de pragmatismo de grau zero que é compatível com uma ampla variedade de perspectivas políticas substantivas, tanto com o feminismo socialista, quanto com o liberalismo burguês. Este pragmatismo é simplesmente o antiessencialismo com a relação a conceitos da
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Rorty, "Thugs and Theorists," p. 564. A fórmula da receita tem inúmeras vantagens, uma das quais é uma certa ressonância de gênero. Ao escolher esta fórmula, estou levando a sério a assimilação implícita de Rorty do teorizar ao trabalho doméstico. Para mim, no entanto, isto significa desprivatizar o trabalho doméstico, ao invés de privatizar a teoria. Ela também sugere uma visão nãotecnocrática e mais genuinamente pragmática da relação entre teoria e prática, uma vez que se espera que os cozinheiros modifiquem as receitas de acordo com tentativa e erro, inspiração e o estado conjuntural da despensa. Finalmente, a fórmula da receita tem a vantagem de situar o resultado como uma mistura e não como um sistema ou síntese. Ela evita assim essas formas hiperbólicas de totalização teórica a respeito das quais a Esquerda democrática ficou corretamente desconfiada. 48
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filosofia tradicional como verdade e razão, natureza humana e moralidade. 49 Ele implica uma apreciação do caráter histórico e socialmente construído dessas categorias e das práticas a partir das quais ganham seus sentidos, sugerindo com isso pelo menos a possibilidade abstrata de mudança social. Este tipo de pragmatismo é um ingrediente útil, apesar de dificilmente suficiente do feminismo socialista. Acrescente-se, então, o tipo de holismo de grau zero que combina facilmente com a política democrática radical. Esse holismo significa simplesmente a percepção da diferença entre a delimitação de uma prática social e uma ação dentro dela. Implica uma apreciação do modo como instituições e hábitos secundários pré-estruturam as possibilidades de primeiro plano disponíveis para os indivíduos na vida social. Este holismo de grau zero não conduz necessariamente a uma política conservadora. Ao contrário, é um ingrediente necessário para qualquer política que aspire a transformações sociais radicais como opostas a mera melhoria. Depois, acrescente uma percepção aguda da importância decisiva da linguagem na vida política. Misture-a com o pragmatismo e o holismo até que você alcance uma distinção entre fazer uma afirmação em um vocabulário aceito e mudar para um vocabulário diferente. Esta distinção abre o espaço para aquelas redescrições de longo alcance da vida social no coração de toda nova visão política, do liberalismo burguês ao marxismo e ao feminismo contemporâneo. Esta distinção também leva em consideração interações contestatórias entre vocabulários políticos concorrentes. Torna, portanto, concebível o tipo de discurso incomum, polilógico e robusto que é essencial a uma política democrática radical em uma sociedade multicultural. Agora acrescente a perspectiva segundo a qual as sociedade contemporâneas não são nem hiperindividualistas, nem hipercomunitárias. Esta perspectiva deve levar em consideração divisões sociais capazes de gerar múltiplas solidariedades concorrentes e múltiplos vocabulários políticos concorrentes. Também deve levar em consideração a desigualdade e o poder. Dessa maneira, deve ser capaz de distinguir solidariedades subordinadas, de dominantes, vocabulários hegemônicos, de contra-hegemônicos. Esta perspectiva da sociedade deve ser misturada com os ingredientes precedentes para alcançar um sentido preciso da contestação social. A contestação, por seu lado, deve ser concebida amplamente a fim de incluir lutas a respeito de significados culturais e identidades sociais, tanto quanto assuntos políticos mais especificamente tradicionais como cargo eleitoral e legislação. Deve abranger lutas por hegemonia cultural, o poder de construir definições dominantes das situações sociais e interpretações legítimas das necessidades sociais. Este sentido amplo da contestação leva em conta uma política de cultura que desqualifica as divisões tradicionais entre vida publica e privada. Leva em consideração também a possibilidade de 49
Rorty, "Pragmatism, Relativism, and Irrationalism," in Consequences of Pragmatism, p.162.
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movimentos sociais radicais: formações coletivas amplas, organizadas informalmente, em que a política e a poesia formam um continuum inquebrantável na medida em que as lutas por justiça social modificam-se dentro da liberdade da criatividade. Acrescente, em seguida, uma perspectiva de mudança social em que esta não seja determinada nem por uma lógica autônoma da história, nem como simplesmente contingente e no final das contas inexplicável. Considere os movimentos sociais como os agentes da mudança histórica e não os extraordinários indivíduos. Evite uma oposição rígida dicotômica entre jogar o jogo do mesmo velho modo e começar completamente do zero, entre a normalidade congelada, estável e o acontecimento repentino e inesperado. Evite também uma dicotomia entre a simples invenção e a mera aplicação, entre o até aqui não sonhado e a sua rotinização. Ao invés disso, veja esses extremos como mediados pela prática social dos movimentos sociais. Veja tal prática como transpondo o abismo entre o velho e o novo, como uma aplicação que é sempre ao mesmo tempo uma invenção. Isso leva em conta a possibilidade de uma política radical que não é soreliana, não é a expressão de uma vontade elitista e masculina pelo Completamente Outro. Leva em consideração a possibilidade de uma política democrática radical na qual a crítica imanente e o desejo transfigurativo misturam-se um com o outro. Em seguida, acrescente a perspectiva segundo a qual (a despeito da multiplicidade e da contestação) as sociedades contemporâneas estão organizadas em torno de um marco institucional básico. É claro que, qualquer caracterização precisa da estrutura deste marco irá supor compromissos políticos contestáveis e um vocabulário político contestável. Não obstante, suponha que entre os candidatos a elementos centrais deste marco estão ingredientes como os seguintes: uma organização de produção social voltada para o lucro privado e não para a necessidade humana; uma divisão do trabalho baseada no gênero, que separa a criação privada de filhos do trabalho remunerado e reconhecido; mercados de trabalho remunerado segmentado racialmente e por gênero que geram uma subclasse marginalizada; um sistema de Estado-nações que tratam o gerenciamento de crises na forma de concessão de bem estar social segmentada e de subsídios para a produção de guerra. Agora acrescente a isso a possibilidade de que o marco institucional básico da sociedade possa ser injusto, que possa trabalhar em detrimento sistemático de alguns grupos sociais e em prol do lucro sistemático de outros. Interaja com os ingredientes precedentes para adquirir um sentido dos usos políticos possíveis de uma teoria social crítica. Considere, por exemplo, a utilidade de uma teoria que pudesse especificar ligações entre problemas sociais aparentemente distintos através da estrutura institucional básica, mostrando com isso “como as coisas, em sentido largo, estão conectadas, no sentido largo”.50 Ou considere a utilidade de uma teoria social capaz de distinguir 50
Esta é uma das caracterizações positivas da filosofia favoritas de Rorty.
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reformas adaptadas ao sistema, que perpetuam injustiças, por um lado, de mudanças sociais radicais e apoderizantes (empowering), por outro lado. Acrescente em seguida algumas distinções entre diferentes tipos de teorias. Distinga, por exemplo, teorias fundacionistas ahistóricas tradicionais, como na Epistemologia e na Filosofia Moral, das metateorias pragmáticas ironistas que possibilitam as suas críticas. Em seguida, distinga ambas de um terceiro tipo de teoria, a saber, uma teoria social substantiva de primeira ordem que é não fundacionista, falibilística e específica historicamente. Agora, use essas distinções para evitar agir precipitadamente e ao jogar fora a filosofia tradicional, jogar também a teoria crítica social. Use-as, então, para evitar misturar a teoria social com o sentimentalismo heideggeriano, a ironia privada ou os desvarios edipianos. Ao invés disso, use essas distinções para dar espaço para teoria social radical politicamente relevante e, desta forma, também para política democrática radical teoricamente informada. Então, acrescente uma concepção não vanguardista, não leninista, do papel do intelectual em uma política democrática radical de esquerda. Pense em tais intelectuais primeiro e antes de mais nada como membros de grupos sociais e como participantes de movimentos sociais. Pense neles, em outras palavras, como ocupando lugares específicos no espaço social, ao invés de indivíduos sem lenço nem documento que estão para além da ideologia. Pense neles, fora isso, como tendo adquirido como um resultado da divisão social do trabalho algumas habilidades ocupacionais politicamente uteis, como por exemplo: a habilidade de mostrar como um sistema de bem estar institucionaliza a feminização da pobreza ou como um poema orientaliza seu tema. Pense neles como potencialmente capazes de utilizar essas habilidades tanto em instituições especializadas, como universidades, quanto em diversas esferas públicas culturais e políticas mais amplas. Pense neles, portanto, como participantes de diversas frentes de luta por hegemonia cultural. Pense neles, infelizmente, também, como sujeitos a enormes ilusões de grandeza e como necessitando permanecer em contato próximo com seus companheiros políticos que não são intelectuais profissionais, a fim de manterem-se sãos, equilibrados e honestos. Combine todos esses ingredientes com uma visão utópica não individualista, não elitista e não masculina. Articulem esta visão utópica em termos das relações entre seres humanos ao invés de em termos de indivíduos considerados como monadas separadas. Imaginem novas relações de trabalho e lazer, cidadania e paternidade-maternidade, amizade e amor. Então, considere que tipo de marco institucional seria necessário para encorajar tais relações. Situe essas relações em um marco institucional de uma sociedade multicultural, sem classes, sem racismo, sexismo ou heterosexismo – uma sociedade internacional de coletividades auto-gestoras, democráticas e descentralizadas.
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Combine todos os ingredientes acima e tempere a gosto com esperança social. Guarneça-os com a mistura certa de pessimismo do intelecto com o otimismo da vontade. Tradução: Susana de Castro (direitos de tradução e publicação na revista Redescrições cedidos pela própria autora)
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Resenha
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RESENHA: JENKINS, Keith. A História repensada. Tradução de Mario Vilela. Revisão Técnica de Margareth Rago. São Paulo, Contexto, 2001. Por Marcos Carvalho Lopes51 "A história é basicamente um discurso em litígio, um campo de batalha onde pessoas, classes e grupos elaboram autobiograficamente suas interpretações do passado para agradarem a si mesmos".52 Keith Jenkins
Os historiadores ainda tem dificuldades para lidar com todas as conseqüências da virada lingüística (linguistic turn). O deslocamento da ênfase na experiência para a valorização da linguagem colocou em crise a idéia de que os fatos poderiam ser considerados de forma independente de aspectos interpretativos, ou seja, como se estes não fossem construtos sociais intersubjetivos. O filósofo da história Hayden White ainda é tido como um dissidente radical por destacar o aspecto literário e retórico da construção e avaliação das narrativas históricas. Por isso mesmo, o inglês Keith Jenkins causa mal estar ainda maior entre os historiadores profissionais, já que, além de se posicionar a partir do nominalismo metodológico, caminha numa direção pósnietszcheana, desdobrando em sentido prático as conseqüências da virada lingüística. Noutras palavras, Jenkins radicaliza este movimento de ênfase na linguagem, acompanhando a abordagem do filósofo norte-americano Richard Rorty, numa direção pós-nietzschiana. Jenkins fez seu Ph.D. em teoria política com uma tese em que dialogava com Nietzsche, Freud e Sorel. Apesar de seu interesse pela teoria política, a ausência de oportunidades de emprego fez com que migrasse para a História, passando a integrar o departamento desta disciplina na University College Chichester em 1978. Neste centro de formação teve oportunidade de ter contato tanto com estudantes de pós-graduação, quanto com professores secundaristas em formação. Nesta posição percebeu a dificuldade, e mesmo hostilidade, destes para certos questionamentos teóricos sobre sua própria “disciplina”. A ausência de questionamento fazia com que questões sobre critérios epistemológicos, metodológicos e ideológicos fossem encobertas por uma aura de mistério que não 51
Mestre em Filosofia pela UFG, doutorando em Filosofia na UFRJ. JENKINS, Keith. A História repensada. Tradução de Mario Vilela. Revisão Técnica de Margareth Rago. São Paulo, Contexto, 2001. p.43. 52
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parecia menor mesmo para pessoas com formação avançada. Este turvamento servia mesmo para fundar a autoridade e reificar certa visão da História que mantém pressupostos platônicos. Nesse sentido, a publicação de A História Repensada em 1991, e que apareceu em português dez anos depois, continua possuindo potencial para alimentar polêmicas. Neste pequeno livro o historiador britânico coloca em xeque a reivindicação de que existiriam instrumentos metodológicos privilegiados que pudessem garantir ao historiador acesso especial aos fatos do passado de modo cientifico, ou seja, “não interessado”. A argumentação de Jenkins parte da consideração de uma diferença entre passado e História: se a História tem por objeto de estudo o passado, este só pode ser alcançado através de discursos, da leitura e elaboração de textos, do trabalho de interpretação. Explica ele que “o mundo ou o passado sempre nos chegam como narrativas e que não podemos sair dessas narrativas para verificar se correspondem ao mundo ou ao passado reais, pois elas constituem a ‘realidade’”.53 A partir disso poderíamos chegar a uma conclusão davidsoniana de que o passado como vinha sendo buscado pelos historiadores, como um objeto estático a espera de ser desvelado, não existe. Jenkins não abraça esse tipo de descrição, já que busca mediar a dialética dentre os que vão perceber o passado como não existente e os que vão ver este como um significante sem significado, aberto a qualquer interpretação. O livro de Jenkins tem como público alvo estudantes que buscaram alguma resposta para a questão “O que é História?’, por isso é escrito para ter um sentido introdutório e polêmico, abrindo caminho para que se questionem os pressupostos que tacitamente são tomados como fundamentos fiduciários do trabalho do historiador. Tal interrogação então é tomada em uma perspectiva teórica que deve se contrapor a uma interrogação prática na busca de uma definição ponderada. Em termos teóricos Jenkins aborda a busca por uma definição do termo História a partir de dois argumentos: (1) ela é uma forma de discurso, uma maneira de descrever o mundo, que se constitui como uma perspectiva que busca desvelar o passado. Os discursos históricos falam sobre o passado, mas não são o passado; e, assim, (2) o problema teórico passa a ser como conciliar passado e História. Neste “como” se incluem para Jenkins questões epistemológicas, metodológicas e ideológicas, que dão forma ao gênero de discurso denominado/aceito como histórico. Neste ponto, Jenkins questiona a percepção da História como busca da Verdade sobre o passado. Na medida em que relatos só podem ser confrontados com outros relatos, o passado só poderia ser parcialmente recuperado e estaria sempre sujeito a revisões. Por isso mesmo, a idéia de um método privilegiado que pudesse garantir acesso a uma forma de verdade inquestionável só pode ser sustentada de modo ideológico. Assim, a questão “O que é História?”torna-se mais pertinente quando buscamos saber “Para quem é a 53
Idem. p.28.
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História?”. Em termos práticos essa substituição de questão se traduz numa abordagem do historiador (ou do estudante de História) como alguém que possui seus valores prévios, suas escolhas epistemológicas, que incorpora certas rotinas e procedimentos, que é treinado para desenvolver uma certa forma de interpretação, a partir da leitura de obras canônicas, vestígios etc. e para tentar re-contextualiza-los em novas narrativas trans-formando o passado em História. Esses relatos devem ser escritos e aí surgem diversas coerções quanto ao estilo, extensão, mercado, público-alvo etc. que vão repercutir numa forma de recepção, que também varia de acordo com os contextos contingentes onde existem disputas de poder e hábitos de interpretação. Ora, existem então uma série de coerções que levam a se considerar uma certa abordagem adequada e outra não, uma espécie de dimensão tácita e fiduciária que deve ser corporificada na figura do historiador. Sintetizando a abordagem teórica e prática, a História aparece como sendo o que os historiadores fazem, na construção e interpretação de textos que buscam descrever o passado. Na segunda parte do livro, Jenkins tenta mostrar como a adoção desta distinção entre passado e História juntamente com a aceitação da dimensão narrativa e imaginativa (poética) presente na atividade do historiador dissolve diversas interrogações e pressupostos tácitos desta disciplina. A percepção de que a verdade é criada e não descoberta trás consigo o questionamento das estruturas de poder que fomentam a reificação de certos discursos como inquestionáveis. A tarefa do historiador de buscar uma interpretação equilibrada entre a dúvida cética e o consenso dogmático é questionada a partir da estruturação de um espectro peirciano. Isto se dá de um modo um pouco confuso, mas o argumento é o de que se temos um espectro onde uma das extremidades é de cor branca e outra de cor negra, tentar possuir uma marca segura para delimitar onde começa ou termina a cor cinza é uma tarefa quimérica. Qualquer interpretação será inelutavelmente parcial e situada. Com essa perspectiva relacional a tentativa de buscar uma posição de empatia, mostra-se também um engodo.. A História, assim pensada, retomaria sua dimensão poética, de tal modo que a interrogação sobre se está é uma arte ou uma ciência se torna irrelevante. Jenkins aponta em uma direção onde a justificação toma lugar da fundamentação, por isso mesmo, os critérios seriam sempre passiveis de questionamento intersubjetivo. Na última parte de seu livro, Jenkins fornece uma narrativa que descreve a dissolução das certezas da modernidade e considera a condição pos-moderna como nosso atual contexto de existência. A impossibilidade ou descrença em metanarrativas, para o historiador inglês, é um aspecto inelutável que acompanha a aceitação da contingência e historicidade de nossa própria forma de perceber o mundo e de nos percebermos. Neste ponto Jenkins lança mão de algumas formulações desenvolvidas por Richard Rorty em Contingência, Ironia e Solidariedade para falar de uma virada re-descritiva (re-descriptive turn). Fica claro então que o prefixo “re” presente titulo do livro 75
repercute a necessidade de uma constante redescrição, o que seria para Rorty uma postura necessária para não se repetir a reificação do discurso em um vocabulário final e, com isso, a quebra das possibilidades de diálogo pela intervenção autoritária e opressiva de uma visão inquestionável. Jenkins se situa numa perspectiva liberal democrática, postulando que o relativismo moral e o ceticismo epistemológico seriam a “base da tolerância e do reconhecimento positivo das diferenças”.54 Embora não descreva uma metodologia ou uma forma de abordagem epistemológica, deixando a cargo de cada qual fazer suas escolhas, Jenkins conclui seu texto apontando para a crença foucaultiana de que o questionamento da modernidade a partir de diversas abordagens historiográficas poderia servir como caminho para construção de uma resposta para o sentido da História. Acena aqui a percepção de que tal questionamento nos levaria a ponderar nossas possibilidades de autonomia no atual contexto, uma vez que o questionamento do iluminismo metodológico não trás consigo, necessariamente, o descarte de seu projeto moral e político. Jenkins parece aos leitores brasileiros em geral, afirmar posições que não estariam devidamente fundamentadas. Esse tipo de juízo se deve, em parte, ao deslocamento epistemológico da fundamentação para a justificação, que seria para o autor conseqüência da ausência de qualquer contexto não relacional, de qualquer passado passivo que estivesse esperando para ser descoberto. Soma-se a isso o fato de que a historiografia em língua inglesa permanece marginal no Brasil, sendo que, obras como as de Hayden White, apesar de traduzidas estão esgotadas e textos clássicos -como os da filosofia analítica da história de Arthur Danto - ou obras mais recentes – como a de Frank Ankersmit - continuam sem tradução. De certa forma, a obra de Jenkins é uma engrenagem que gira sem que seja considerada parte do mecanismo. Além disso, falta ao leitor brasileiro conhecimento do contexto filosófico do debate no qual Jenkins se situa: se explicitamente ele dialoga com Richard Rorty, a partir deste, de forma indireta, seu trabalho repercute a obra de Donald Davidson e o movimento de virada pragmática diagnosticado por Jürgen Habermas. Isso não significa que a obra não possa ser lida com tranqüilidade, mas, sim, que o leitor deve estar atento para os seus próprios pré-conceitos. Isso não minora os problemas que a obra de Jenkins possui, como o da adoção de uma terminologia que se presta a gerar confusões, como a utilização dos termos ideologia, relativismo moral ou ceticismo epistemológico. Quanto ao conceito de ideologia, as confusões althusserianas e sua carga metafísica negativa deveriam ser suficientes para evitar seu uso: seria mais interessante, como Marx originalmente, deixar este conceito na gaveta. Os termos relativismo moral e ceticismo epistemológico são em si mesmos problemáticos. O segundo poderia ser, com vantagens, suprimido, 54
Idem. p.90.
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por uma abordagem da dimensão tácita de consenso presente em qualquer sociedade, contraposta aos problemas da reificação e da necessidade de inovação. Apontar a dimensão fiduciária dos aspectos epistemológicos é mais convincente do que negar-lhes qualquer lugar: a ironia é diferente do ceticismo, já que, esta não é uma descrença, mas a capacidade de rir das próprias descrições, ou seja, a abertura para o questionamento e revisão de descrições que se mostram problemáticas. O relativismo moral parece se vincular no discurso de Jenkins a uma aceitação das diferenças em um contexto multicultural. Contudo, tal termo faz saltar à vista a ausência de um debate mais contundente sobre os aspectos éticos do trabalho do historiador. Embora Jenkins deixe clara sua perspectiva democrática de defesa e fomento de valores liberais a utópica visão de esperança numa sociedade mais livre e conversacional demanda uma crença que para alguns ainda não é uma evidência. Neste sentido, cabe pensar a relação entre os discursos habituais e eminentemente platônicos que servem para a socialização do conhecimento histórico em contraste com a percepção pós-moderna que os historiadores encontram na universidade. A tensão entre reificação e abertura de discurso é um aspecto que não pode ser superado para além da conversação é contingência de tudo que é humano. Acredito que no futuro contarão como Hayden White, na historiografia; Harold Bloom, na crítica literária e Richard Rorty na filosofia trabalharam na mesma direção, de dissolução dos gêneros e crítica da postura mentirosa de alguns acadêmicos, que escondem seus ressentimentos criativos e disputas por poder, com o loteamento de improdutivos latifúndios de "solo epistemológico" privilegiado. Podemos e devemos rir dessa cartografia de galinheiro acadêmico e questionar o poder desses "guardas de fronteira". A leitura do livro de Jenkins ajuda o aluno que busca alguma luz sobre o que é História a ter uma perspectiva não fundacionista e fomenta debates que precisam e são retomados em trabalhos posteriores do autor, como On ‘What is History’: from Carr and Elton to Rorty and White (complemento de A História Repensada, destinado a um debate acadêmico mais detalhado) e Re-figuring History: New thoughts on an Old Discipline (uma espécie de versão atualizada dos questionamentos de Jenkins). O acesso a este debate contribui enormemente para a historicização da História e desenvolvimento da tarefa constante de questionamento de fundamentos que caracteriza a filosofia.
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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana
Ano II, número 1, 2010 ISSN: 1984-7157
Editores: Paulo Ghiraldelli Jr. e Susana de Castro
www.gtdepragmatismo.com
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