Revista Redescrições, Ano 1, número 1 (2009)

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Revista Redescrições Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana

Ano I, número 1, 2009 ISSN: 1980-881X


Revista Redescrições é uma publicação quadrimestral do GT-Pragmatismo e Filosofia Americana da Anpof. O conteúdo dos artigos publicados tratam de temáticas relacionadas ao pragmatismo, à filosofia americana de uma maneira geral, ou uma aplicação do método de investigação pragmatista a questões contemporâneas ISSN: 1980-881X Corpo editorial: Bjorn Ramberg – Universidade de Oslo (Noruega) Cerasel Cuteanu – CEFA/Romênia James Campbell – Universidade de Toledo (EUA) Leoni Maria Padilha Henning (Universidade Estadual de Londrina) Michel Weber – Centro “Chromatiques whiteheadiennes” (Bélgica) Michel Eldridge - Universidade de North Caroline, Charlotte (EUA) Inês Lacerda Araújo - PUC-PR Heraldo Silva - UFPI Maria José Pereira - UCG Aldir Carvalho Filho - UFMA Vera Vidal - Fiocruz Ronie Silveira – UFRB

Expediente REDESCRIÇÕES Revista do GT-Pragmatismo da ANPOF ISSN: 1984-7157 Editores: Susana de Castro e Paulo Ghiraldelli Jr.


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Ano I, número 1, 2009

Editorial Artigos 1. O pragmatismo de Whitehead - Michel Weber 2. Curando mentes, tratando cérebro - psiquiatria entre biologia e subjetividade - Bjorn Ramberg 3. Auto-edificação idiossincrática como modelo liberal-burguês de educação - Aldir Carvalho Filho 4. A concepção de filosofia de Dewey e o caráter educativo das instituições: primeiras aproximações ao cientismo deweyano - Leoni Henning 5. Educação para o lucro, educação para a liberdade - Martha Nussbaum 6. A percepção sensorial e o pensamento metafísico: uma inspiração peirceana - René Dentz 7. O conceito pragmatista de filosofia de J. Dewey - Inês Lacerda Araújo

Resenha: WEBER, Michel. Éduquer (à) l’anarchie – La fin de l’université. Louvain: Les Éditions Chromatika, 2008; 238 páginas - Susana de Castro


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Ano I, número 1, 2009

Editorial No Brasil, o movimento filosófico pragmatista tem tido uma dificuldade maior que a de outras correntes no sentido de transitar no meio acadêmico. Acreditamos que isso se deve, em parte, à forma não cuidadosa com a qual seus autores têm sido lidos. E também, em parte, pelo próprio fato do pragmatismo ser uma filosofia não tradicional, capaz mesmo de afastar os que querem ver a filosofia se repetir. Não seria interessante nos dedicarmos um pouco mais à leitura das teorias pragmatistas, para entender que elas possuem em comum o princípio de que o efeito de uma teoria, isto é, o modo como elas forjam ou alteram comportamentos, é tão importante quanto a sua própria formulação? De resto, as posições pragmatistas se diferenciam bastante entre si. Temos, lado a lado, pragmatistas que se aproximam do realismo, isto é, a crença de que exista algo como o ‘fato’ ou a ‘coisa’ para além de nosso pensamento e linguagem e, ao contrário, os que defendem o nominalismo, isto é, a posição segundo a qual os interesses humanos determinam o que se pode chamar de verdade. A situação se complica mais quando verificamos que mesmo entre os realistas e entre os nominalistas há diferenças internas. Se, por um lado, acreditamos ser importante abrir um espaço acadêmico no qual possamos esclarecer melhor as semelhanças e diferenças entre as posições filosóficas dos diversos filósofos pragmatistas, por outro, acreditamos, como Rorty, que a tarefa atual da filosofia é, antes de qualquer outra, a de criar novos vocabulários de modo que possamos, no futuro, termos sociedades povoadas de "versões melhores de nós mesmos". ∞ A presente revista eletrônica almeja contribuir tanto para a divulgação do pensamento pragmatista quanto, de uma maneira geral, para o debate de questões contemporâneas sob inspiração pragmatista. Em nosso primeiro número trazemos sete artigos. Martha Nussbaum em seu artigo 1


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Ano I, número 1, 2009 “Educação para o lucro, educação para a liberdade” faz uma análise crítica do sistema educacional norte-americano e sua atual política de favorecer as áreas de ciência e tecnologia em detrimento das ciências humanas, pois os police makers acreditam que o desenvolvimento econômico é o objetivo último da educação, e como este está atrelado à indústria tecnológica nada mais evidente do que apoiar mais os programas educacionais voltados especificamente para essa área. Citando, dentre outros, o trabalho de J. Dewey sobre educação, Nussbaum visa resgatar a idéia de que as ciências humanas são fundamentais para a formação de um pensamento crítico e reflexivo, e que o estudante não estará plenamente capacitado a exercer sua cidadania sem essa ferramenta. Michel Weber em seu artigo “o pragmatismo de Whitehead” demonstra porque o pensador britânico pode ser considerado um pragmatista, tendo em vista que assim como os pragmatistas seu sistema filosófico estaria dentro de uma perspectiva pós-moderna. Segundo Weber, o filósofo britânico parte da constatação de que com Darwin superamos tanto o paradigma moderno da subjetividade centrada de Descartes quanto o do tempo linear das metafísicas cristãs. A humanidade vê-se diante de um tempo infinito aberto a múltiplas experiências. Fruto de uma conferência apresentada no IFCS – UFRJ em agosto de 2008, o artigo de Bjorn Ramberg “Curando mentes, tratando cérebro” procura mostrar o quanto o reducionismo psiquiátrico dos transtornos psíquicos a transtorno psicofísicos do cérebro, a partir das descobertas recentes da neurobiologia, não dá conta de explicar tais transtornos. A interação entre paciente e médico durante o tratamento possui uma relevância para a cura que não pode ser auferida por métodos de análises neurológicos, mas sim por análises pragmáticas acerca da influência da interação através de palavras na nossa vida mental. Em “auto-edificação idiossincrática como modelo liberal-burguês de educação”, Aldir Carvalho Filho busca esclarecer a origem do individualismo exacerbado das sociedades urbanas contemporâneas. Acredita que sua origem está primordialmente na ascensão da burguesia e na defesa liberal da sacralidade da esfera privada. O individualismo serviria aos interesses econômicos de uma sociedade capitalista. Segundo Carvalho, Richard Rorty seria um dos ideólogos mais populares desse individualismo consumidor, porque faz a defesa das liberdades privadas ao mesmo tempo em que defende as bandeiras da esquerda operária. Dois artigos versam sobre a obra magna de John Dewey, Reconstruction in philosophy. Leoni Henning em “A concepção de filosofia em Dewey e o caráter educativo das instituições: primeiras aproximações ao cientificismo deweyano” e Inês Lacerda Araújo em “O conceito pragmatista de filosofia de J, Dewey” expõem, cada uma a seu modo, as novas bases do pensamento 2


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Ano I, Número 1, 2009 filosófico propugnadas por Dewey. Henning enfatiza as circunstâncias históricas que levaram Dewey a escrever este livro, enquanto, Araújo detêm-se mais à exposição crítica do conteúdo, mostrando as razões que levam Dewey a rejeitar o modelo contemplativo da filosofia tradicional, em favor de um modelo pragmático. Um texto complementa o outro. Por fim, o artigo de René Dentz, “A percepção sensorial e o pensamento metafísico: uma inspiração peirceana”, apresenta a complexa teoria dos signos de Peirce e como esta está vinculada à fenomenologia de Peirce, isto é, à ‘ciência dos modos de aparecimento dos fenômenos’.

Os editores Rio de Janeiro e São Paulo, 7 de março de 2009


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O pragmatismo de Whitehead por Michel Weber

“Procure a simplicidade e desconfie dela”[i]

A questão da natureza exata do pragmatismo de Whitehead constitui um território mais ou menos pouco cultivado. À parte a síntese que George Allan assinou recentemente, ela com efeito suscitou poucos estudos.[ii] Existe é certo a obra generalista de Debrock e os trabalhos sistemáticos de Rescher, mas esses não podem ser relacionados diretamente ao organicismo whiteheadiano.[iii] Esta questão pode ser abordada

de diferentes

maneiras complementares.

Primeiramente, a vida acadêmica e a obra do último Whitehead, ou seja aquela da época de Harvard (1924-1947), se inscreve claramente na trajetória iniciada por Peirce, James e Dewey (este último foi um contemporâneo de Whitehead). A influência é óbvia e de resto explicitamente reconhecida pelo autor.[iv] Em seguida, o projeto filosófico que culminará com a publicação em 1929 das Gifford Lectures ministradas em 1928-1929 – Process and Reality. An Essay in Cosmology[v]- é herdeiro direto da abertura tripla que define a pós-modernidade e sobre a qual o pragmatismo necessariamente falou. Trata-se, é verdade, de uma pós-modernidade otimista que opta por um realismo construtivista –, não de uma pós-modernidade tanto “desconstrutivista” quanto pessimista. Mais precisamente, há em Whitehead uma vontade determinada a retornar ao senso comum – e, portanto, a dar à vida cotidiana e ao agir mundano isso que lhe é devido – explorando as três mudanças em questão em sua arquitetônica. Nosso estudo se propõe a explorar essa última pista sinteticamente em três tempos.[vi] 1


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norteamericana Ano I, número 1, 2009 Recordaremos inicialmente o contexto cultural da gênese da filosofia whiteheadiana ao precisarmos as raízes da pós-modernidade. Whitehead é, com efeito, herdeiro, de uma tripla abertura semântica: espacial, temporal e consciencial. Em seguida, precisaremos o pragmatismo da filosofia do último Whitehead pela via de sua discussão das funções da razão. Por último, uma rápida reflexão sobre as condições de possibilidade pósmodernas da especulação filosófica ocupará o lugar de conclusão.

1 Modernidade e pós-modernidade

A gênese da filosofia “pós-moderna” de Whitehead não pode ser compreendida a não ser aproximando-se de um quadro histórico vasto no qual três pontos de bifurcação se separam nitidamente: espacial, temporal e consciencial. A abertura “ao universo infinito” não é, ela unicamente, definitória da pós-modernidade; ela pode no máximo definir a modernidade.

1.1. Cusa, Bruno e Copérnico

A abertura a um universo espacialmente infinito, ou seja, a destruição do cosmos e da geometrização do espaço, muito bem descritos por Koyré, foi operada por três atores principais – Cusa (1440), Copérnico (1543) e Bruno (1584)[vii] – e posta em evidência pela descoberta galileica dos satélites de Júpiter em 1610. A destruição do cosmos mudou o espírito europeu de duas maneiras: de um lado, assinalando o fim do organicismo (quer dizer, do pensamento do mundo como grande organismo e de suas partes como elementos correlatos) e anunciando o declínio do monoteísmo; de outro lado, em deslocando a busca pelo fundamento do mundo “objetivo” (natural ou supranatural) para o mundo “subjetivo” (a razão humana). Em resumo, o mundo grego era um organismo adulto (sem crescimento), com uma estrutura hierárquica finita e um dualismo natural. O mundo medieval conservou essas características sem ser dado e sim criado: o dualismo tornou-se sobre-naturalista. A inversão copernicana conservou este sobre-naturalismo dualista destruindo todo o resto: o organismo finito tornou-se mecanicamente infinito, a hierarquia finita foi abolida. Podemos falar de resto de máquina-ferramenta no sentido segundo o qual a mecânica mundana parece sempre destinada unicamente a possibilitar as condições de possibilidade da salvação. O que quer que seja, é importante notar que a incoerência fundamental do dualismo tornou-se evidente uma vez que foi privado de sua chave de abóbada teológica – e que esta instabilidade suscita ela 2


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norteamericana Ano I, número 1, 2009 mesma sua pronta degenerescência em materialismo “naturalista”. Notemos, por outro lado, que, de um ponto de vista social, a abertura foi inicialmente geográfica: Colombo “descobriu” a América em 1492. Assinalamos igualmente, na esfera econômica, a instauração em 1579-1632 de um sistema político liberal nas Províncias-Unidas que anuncia de alguma forma a obra de Adam Smith (1759 & 1776). No domínio religioso, a lenda diz que em 31 de outubro de 1517 Lutero afixou suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, pondo assim em movimento à Reforma. Depois virão as revoluções americana (1776) e francesa (1789) e a esperança de uma abertura social que reencontraremos, de uma parte, amplificada pelo idealismo absoluto, em Marx (1848) e, de outra parte, na encíclica Rerum Novarum, publicada em 15 de maio de 1891 pelo papa Leão XIII.

1.2. Spencer, Wallace e Darwin

A abertura temporal impulsionada por Spencer (1855), Wallace (1858) e Darwin (1859) [viii] se resume bem facilmente: a humanidade se encontra agora confrontada com a profundidade infinita do tempo. Seu passado, como seu futuro são evolutivos e, portanto, incertos. Em suma, espaço fechado e tempo mais ou menos implicitamente cíclico são substituídos por um espaço aberto e um tempo explicitamente (pois mecanicamente) linear.[ix] A abertura espacial desloca o fundamento, que não pode mais ser cosmológico (geocêntrico) e deve tornar-se antrópico, no sentido segundo o qual se fala depois de Carter de “princípio antrópico”[x]: é a revolução cartesiana inspirada no Mente concipio de Galileu (Discorsi, 1638). A segunda abertura torna possível a revogação da idéia mesma de fundamento e torna necessária sua relativização – de onde deriva as duas facções que se opõem em nossos dias: os filósofos pós-modernos construtivistas, dentre os quais deve-se contar os whiteheadianos, que retomam a tocha da especulação metafísica; e os filósofos pós-modernos deconstrutivistas, que procuram – para o melhor e para o pior – minar toda aproximação sistemática.[xi] Se a idéia de evolução darwiniana se deseja axiologicamente neutra, ela foi rapidamente (desde Spencer, de quem se conhece a influência decisiva sobre o desenvolvimento das idéias de Bergson) posta em sinergia com a noção de progresso. O progresso que era antes de tudo compreendido como espiritual torna-se depois do século XVII, técnico e sócio-cultural. Os trabalhos pioneiros são os de Priestley (1771), von Herder (1774), Lessing (1780), Gibbon (1781), de Condorcet (1793) e finalmente Spencer (1855) e Darwin (1859).[xii] Com a irrupção da 3


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Ano I, número 1, 2009 tecnociência e de sua acumulação cognitiva e prática, a questão (de Nisbet[xiii]) de saber se a idéia de progresso é pensável enquanto tal na antiguidade clássica encontra assim uma solução elegante que apóia as análises whiteheadianas: a menos que se queira definir um conceito fraco de progresso, ele não se prova aplicável ao mundo pré-moderno. Em conclusão, a abertura extensiva (no sentido espacial e temporal) deve ser pensada com a abertura intensiva operada pela conceitualização das condições de possibilidade do progresso material (não simplesmente espiritual). Enquanto que a Grécia pensava o mundo organicamente mas em um vaso fechado, a modernidade adota uma visão mecanicista e infinitista. Quanto ao pósmodernismo whiteheadiano, ele age às vezes a partir do organicismo grego e às vezes a partir do infinitismo moderno. Antes da dupla abertura (extenso-intensiva ou cusano-spenceriana), o acontecimento não é mais do que um trans-formador, fraco; depois, ele é verdadeiramente criador, irruptivo.

1.3. Maxwell, Myers e Freud

O Traumdeutung (1900) é apresentado muitas vezes como o texto fundador do conceito de “inconsciente” e seu autor, Freud, como aquele que descobriu este novo continente do pensamento. À luz dos últimos trabalhos neste domínio, incluindo trabalhos de psicanálise, parece, entretanto, claramente que a reputação de Freud é largamente usurpada.[xiv] O conceito possui com efeito duas raízes próximas que se prolongam ao longo do século XVII: teórica e leibniziana, de um lado, prática e mesmeriana, de outro. É bem Leibniz – no Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain (redigido em 1704 e publicado em 1765, cf. livro I, cap. 1 et passim) e depois no Principes de la Nature et de la Grâce fondés em Raison (1714, cf.§4) – quem, com a ajuda da distinção entre “pequenas percepções” (confusas e inconscientes) e “apercepção” (clara e consciente: Leibniz fala de “consciência ou conhecimento reflexivo do estado interior”), primeiro deu um estatuto especulativo preciso ao conceito de inconsciente. Mesmer, por sua parte, é a figura emblemática do agir terapêutico (seu Schreiben über die Magnetkur de 1775 constitui uma especulação de tipo essencialmente newtoniana). É justamente essa mistura curiosa de filosofia mecanicista newtoniana e fisiologia que deu lugar à operacionalização do conceito de inconsciente por Hebart (1824), Weber (1829), Helmoltz (1859), Fechner (1860), Wundt (1878), depois Lotze (1884), Ward (1886), Münsterberg (1889) e Myers (1889-1895). Foi preciso, portanto, esperar o século XIX para que a filosofia e a 4


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Ano I, número 1, 2009 psicologia ocidentais cessassem de isolar sistematicamente o estado de consciência “normal” de suas raízes, de seu dinamismo constitutivo, de suas variações complexas e de suas patologias. O modelo de reducionismo é aqui Descartes que emprega tesouros de ingenuidade para abstrair a consciência-zero de todo estado a-normal: o cartesianismo promove um sistema binário, conseqüência direta de seu dualismo substancialista (o sujeito é ou consciente ou inconsciente, tertium non datur). De qualquer forma o conceito-chave dessa recontextualização é o de limiar (“Bewusstseinsschwelle”), introduzido por Herbart e explorado sistematicamente por Myers. Herbart trata a consciência como o lugar de um combate incessante entre uma multitude de representações cambiantes (as mais fortes empurrando as mais fracas para baixo do limiar). Myers introduz duas especificações que conhecerão uma feliz reapropriação jamesiana: o campo transmarginal da consciência (“transmarginal field of consciousness”) e a porta subliminal (“subliminal door”).[xv] Na filosofia dois autores de percursos parcialmente interdependentes sintetizarão essas raízes complementares: William James e Henri Bergson. Quanto a Whitehead, ele é sem sombra de dúvida o herdeiro das aventuras especulativas jamesianas e bergsonianas e, por conseqüência, das duas raízes evocadas. Em psicologia, é a escola de Salpêtrière e os trabalhos de Janet que operam a recordação (essa é a única vantagem comparativa que eles possuem face aos trabalhos da escola de Nancy). Abreviando a análise, é preciso sustentar contra Freud e com Meyers, que o inconsciente não é primeiramente, mesmo que possa ser igualmente (mas o conceito deve ser então recalibrado), um receptáculo para o recalque dos conflitos e pulsões não resolvidos, uma força alienante, uma privação fundamental – mas sim uma fonte de energia vital, uma força libertadora, uma dotação insondável. Mais precisamente: o inconsciente não existe enquanto tal; só se atestam processos inconscientes fundadores. O ponto de bifurcação histórica entre as duas aproximações é o status acordado à hipnose em psicoterapia: o descrédito da psicanálise e a reconsideração da hipnose são, com feito, estritamente correlatos. De uma parte, a vontade de Freud de fazer ciência o conduziu a obliterar a utilização da hipnose para fins psicoterapêuticos; de outra, o sufocamento do movimento psicanalítico permitiu – e foi ocasionado – o ressurgimento da hipnoterapia.[xvi] Concluamos mencionando a importância do Treatise on Electricity and Magnetism (1873) de James Clerk Maxwell (1831 – 1879) para o entendimento da obra de Myers e Whitehead. Ao ultrapassar os trabalhos de Hans Christian Ørsted (1777 – 1851) e de Michael Faraday (1791 – 1867), Maxwell não somente transforma a física de seu tempo, mas torna popular a noção de campo 5


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 e dá impulso a uma renovação do romantismo e do organicismo.[xvii]

2 As funções da razão segundo Whitehead

A tripla abertura impõe uma só conclusão: a revogação da idéia de substância, mas não a de fundamento. Assim sendo, a idéia de fundamento demanda uma nova metodologia, uma metodologia que não se inquiete mais com o princípio (com a arché) de um fenômeno, mas com as conseqüências da fenomenalização. Whitehead raramente aborda a questão da natureza de seu pragmatismo. Aqui está uma das poucas passagens que encontramos no Modes of thought (1938):

This doctrine places philosophy on a pragmatic basis. But the meaning of “pragmatism” must be given its widest extension. In much modern thought, it has been limited by arbitrary specialist assumptions. There should be no pragmatic exclusion of self-evidence by dogmatic denial. Pragmatism is simply an appeal to that self-evidence which sustains itself in civilized experience. Thus pragmatism ultimately appeals to the wide selfevidence of civilization and to the self-evidence of what we mean by “civilization”.[xviii]

O pragmatismo whiteheadiano é, portanto, generalista; ele deve ser entendido em contra-tensão com sua propensão arqueológica. De uma parte, Whitehead propõe uma cosmologia que se quer fundadora; ele nomeia o Último (este é o avanço caiador) e propõe diferentes análises de suas manifestações (a análise genética e a análise morfológica). Por outro lado, ele legitima uma resposta pragmática imediata aos desafios que o avanço criador coloca à razão: como falar, com efeito, de acontecimento sem lhe impor uma coleira conceitual desnaturalizadora? A fonte principal sobre essa questão continua sendo o The Function of Reason, publicado um pouco antes do Process and Reality (novembro de 1929), e que é estruturado dialeticamente, ou seja em três tempos (tese, antítese, síntese): a função pragmática da razão é introduzida primeiramente; depois sua função teórica; e enfim sua função teórico-pragmática.

2.1. Função pragmática (Ulysses)

A primeira definição que Whitehead dá da função da razão é “de promover a arte da 6


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Ano I, número 1, 2009 vida”[xix]. Por mais que essa definição tenha sido formulada rapidamente para adiantar a função da razão enquanto “direção de ataque ao ambiente”[xx], o filósofo observa que a vida não deve ser posta em equivalência com a sobrevivência enquanto tal: a simples persistência nada mais é do que a morte.[xxi] O que é a vida então? Em nenhum lugar o problema da vida é tratado de maneira mais explícita do que na terceira parte do Modes of Thought – intitulada “Nature and Life” -, parte que retoma o texto das conferências dadas em 1933 na Universidade de Chicago. A vida pode ser aproximada pelo livre jogo de três conceitos que retomam em sua ordem o “avanço caiador da natureza”: Whitehead propõe uma definição tripartida da vida em termo de “satisfação” (“self-enjoyment”), de “criatividade” (“creativity”) e de “objetivo” (“aim”). O filósofo se pronuncia aqui de um ponto de vista macroscópico (ou fenomenológico: trata-se do mundo tal qual ele se desvela à nossa experiência sensorial), mas as categorias postas em relevo são na verdade microscópica (ontológicas: elas explicam o último, a natureza da trama do real, que escapa à experiência sensorial). Em uma primeira aproximação, a noção de vida implica “a satisfação [fr. “enjoiement”] absoluta” (“a certain absolutness of self-enjoyment”, que Philippe Devaux traduz por “um certo absoluto no prazer de ser si-mesmo”),[xxii] ou seja, uma individualidade imediata que é processo de apropriação – de apreensão dirá Whitehead – do mundo passado.[xxiii] O conceito de satisfação manifesta aqui duas dimensões cardinais da existência: sua dimensão apreensiva, isto é, sua ancoragem em um tecido humano; e sua dimensão patética, isto é, sua imediaticidade própria. Uma não existe sem a outra: toda existência é necessariamente experiência de um dado que a precede e essa experiência ocasiona necessariamente uma “forma subjetiva”, uma maneira de existir, de metabolizar as apreensões mundanas. A apreensão é um sentir e um ressentir (Whitehead diz também “feeling”). A tese adversa que esta satisfação refuta é aquela da atualidade vazia:[xxiv] não se encontrarão aí entidades vazias de toda experiência, de toda subjetividade, de toda imediaticidade. Tudo aquilo que é experiência .... Mas a satisfação do ser-juntos não esgota o sentido da vida. A vida realiza o recolhimento (a re-coleção) do passado – sua metabolização – e seu ultrapassamento pela criatividade. Uma atividade criadora dando nascimento a traços mundanos inéditos a caracteriza igualmente. Whitehead fala da atualização de potencialidades não realizadas, mas ele não é muito claro sobre o que essa atualização cria necessariamente, ao menos em parte, suas possibilidades. [xxv] A tese adversa é aqui o determinismo: os processos vitais demonstram, contra essa tese, a 7


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 abertura do mundo e a presença em seu seio de um grau de espontaneidade (se não de liberdade) altamente significativo. O “avanço criativo” é, entretanto, mais complexo que o deixam crer suas primeiras caracterizações. É preciso lhe acrescentar um termo especificador: a visada [o objetivo].[xxvi] Em sua reapropriação do dado, os processos vitais perseguem um objetivo, um ideal; e eles são, por outro lado, tornados possíveis por um filtro, por um crivo (com)possibilitador. Na filigrana dessa discussão transparece a “natureza primordial” de Deus. A tese adversa é aqui a ausência de ideal, de hierarquia de valores, i.e., o naturalismo materialista. Em resumo: a satisfação que acompanha necessariamente a ancoragem de uma existência em um dado é diretamente correlata à criatividade bruta que aí grita e ao ideal que aí se manifesta. Podemos mostrar que a interpretação trinomial disto que se dá no experimentar da experiência cotidiana corresponde ponto por ponto (mas em uma ordem diferente) aos functores exprimindo o avanço criador tal qual ele desenrola seus efeitos no Processo e realidade: criatividade (diferença, novidade), eficácia (repetição, estrutura) e visão[objetivo] (hierarquia, dardo escatológico divino).

A premissa do raciocínio de Whitehead é, quanto a ela, nós vimos, pansubjetivista ou panexperiencialista: tudo que existe é, enquanto tal, sujeito.

2.2. Função especulativa

A principal função da razão é especulativa: dirigir pragmaticamente o ataque do ambiente, o que quer dizer oferecer soluções diretas às ameaças imediatas. Viver é originalmente estar à espreita; a filosofia vem depois: “primum vivere, deinde philosophari”. Existe, com efeito, uma segunda função da razão, tão importante quanto a primeira: a função especulativa, que é bem menos (ou de modo algum) focalizada sobre os problemas imediatos e que tenta apreender a totalidade, ou seja, propor uma cosmologia. É uma faculdade quase divina que estuda, julga e compreende.[xxvii] Em resumo:

There is Reason, asserting itself as above the world, and there is Reason as one of many factors within the world. The Greeks have bequeathed to us two figures, whose real or mythical lives conform to these two notions -- Plato and Ulysses. The one shares Reason 8


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 with Gods, the other shares it with the foxes.[xxviii]

A função pragmática está enraizada na nossa vida animal (isso não é pejorativo, mas constatativo), a função especulativa em uma comunidade espiritual (a “civilização”), na qual são conhecidas as condições de possibilidade: a perseguição da transfiguração por alguns ao preço da escravidão de outros. A primeira promete a vida em todas as suas dimensões, a segunda a ciência e sua investigação desinteressada.

Admitimos sem problema que a investigação científica é a fonte descendente da teoria platônica. Arendt insiste por exemplo sobre a importância da vida especulativa (vita contemplativa) na condução do progresso: não é na vida ativa (vita activa) e as diferentes modalidades de cuidado prático (no trabalho, na obra e na ação), que encontramos o motor do progresso, mas na investigação desinteressada da filosofia como ciência do inútil (ou da ciência como filosofia inútil).[xxix] Whitehead, entretanto, quer dar conta da tecno-ciência a partir da experiência cotidiana: na tecno-ciência a razão operativa vê seu poder multiplicado por dez pela razão especulativa.

2.3. Função tecno-científica (Watts) Nem a vida nem a ciência têm a última palavra na visão otimista vitoriana de Whitehead: Ulisses e Platão preparam juntos o caminho para a tecno-ciência de James Watts (17361819). Com a tecno-ciência, uma sinergia é estabelecida entre a propensão arqueológica do pensamento especulativo (a procura das causas e dos princípios) e o consequencialismo do pensamento operativo (a atenção somente aos efeitos). De uma maneira bem kantiana, Whitehead insiste sobre a complementaridade das duas funções: a metodologia e a observação direta emanam da dimensão prática da razão[xxx] enquanto que o ponto de vista global e imaginativo que é requerido para o direcionar é, como a ênfase sobre a novidade, de ordem teórica.[xxxi] Anunciamos uma dialética, trata-se bem mais de uma hiperdialética, de uma dialética que retoma constantemente seu movimento integrador.[xxxii] Contrariamente a isso que pretende Hannah Arendt, o motor da civilização se prova então finalmente prático-teórico, ou seja, tecno-científico. Trata-se, entretanto, de uma tecno-ciência respeitosa de sua origem científica, ou seja, teórica, e da vida – um duplo ideal orquestrando a 9


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Ano I, número 1, 2009 utopia que o último romance de Huxley (Island, 1962) propõe e que é preciso ser explorado nele mesmo.

Conclusão

A tese que procuramos provar é a seguinte: somente uma metodologia (implicitamente ou explicitamente) pragmática é viável depois da tripla abertura semântica definitória da pósmodernidade – espacial, temporal e consciencial – e Whitehead é exemplar com relação a isso. Isso, entretanto, que faz a particularidade do filósofo britânico, é sua vontade de articular de uma só vez a relativização do fundamento imposta pelas condições pós-modernas e a aventura da razão especulativa que, volens nolens, continua a projetar cosmologias a fim de, de uma vez por todas, dar sentido aos últimos avanços da tecno-ciência e de tornar possível suas inovações futuras. A crise da pós-modernidade se liga igualmente mais facilmente à ajuda das três aberturas semânticas especificadas na nossa primeira seção se tomamos consciência da inversão da relação à natureza que cada uma explora. A abertura espacial não somente estilhaça a moldura tranquilizadora de um mundo fechado e bem policiado, mas ela descentra o mundo e obriga o sujeito a se auto-fundar. A abertura temporal quebra os ritmos naturais por lhes substituir um tempo linear independente das realidades orgânicas. Por fim, a abertura consciencial substitui o antigo ideal de uma possível progressão sapiencial em direção ao espiritual, ou seja, de um apelo em direção ao alto, por um impulso obscuro se originando em uma animalidade bruta (sem um mau jogo de palavras) em direção a qual estamos sempre sujeitos a retornar. Através de sua discussão das funções da razão, Whitehead renova as condições de possibilidade pós-modernas da especulação filosófica e dá um sentido pragmático a busca do fundamento.

Trad., Susana de Castro

[i] « Seek simplicity and distrust it » (Alfred North Whitehead, The Concept of Nature. Tarner Lectures Delivered in Trinity College, November 1919 (first edition Cambridge, 1920), Cambridge, Cambridge University Press, 1964, p. 163). [ii] George Allan, « Pragmatism and Process », in Michel Weber and Will Desmond (editors), Handbook of Whiteheadian Process Thought (two volumes), Frankfurt / Paris / Lancaster, Ontos Verlag, Process Thought X, 2008, I, pp. 325-338.

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Ano I, número 1, 2009 [iii] Guy Debrock (ed.), Process Pragmatism. Essays on a Quiet Philosophical Revolution, Amsterdam / New York, Rodopi B. V., Value Inquiry Book Series 137, 2004 ; Nicholas Rescher, Process Metaphysics. An Introduction to Process Philosophy, Albany (N.Y.), State University of New York press, SUNY series in philosophy, 1996 ; Nicholas Rescher, Realistic Pragmatism: An Introduction to Pragmatic Philosophy, Albany, State University of New York Press, 1999. [iv] Cf. « Whitehead’s Reading of James and Its Context (Part I) », Streams of William James, Volume 4, Issue 1, Spring 2002, pp. 18-22 ; « Whitehead’s Reading of James and Its Context (Part II) », Streams of William James, Volume 5, Issue 3, Fall 2003, pp. 26-31 ; « Whitehead et James: conditions de possibilité et sources historiques d'un dialogue systématique », in A. Benmakhlouf et S. Poinat (éd.), Quine, Whitehead, et leurs contemporains, Noesis, 13, 2008, pp… (forthcoming) [v] Alfred North Whitehead, Process and Reality. An Essay in Cosmology. Gifford Lectures Delivered in the University of Edinburgh During the Session 1927-28. Corrected Edition. Edited by David Ray Griffin and Donald W. Sherburne, New York - London, The Free Press. A division of Macmillan Publishing Co., Inc. - Collier Macmillan Publishers, 1978. [vi] Para uma exposição mais completa de minha interpretação de Whitehead consultar minhas monografias: La Dialectique de l’intuition chez A. N. Whitehead : sensation pure, pancréativité et contiguïsme. Préface de Jean Ladrière, Frankfurt / Paris, ontos verlag, 2005 ; Whitehead’s Pancreativism. The Basics. Foreword by Nicholas Rescher, Frankfurt / Paris, Ontos Verlag, 2006 ; L’Épreuve de la philosophie. Essai sur les fondements de la praxis philosophique, Louvain-la-Neuve, Éditions Chromatika, 2008 ; Éduquer (à) l’anarchie. Essai sur les conséquences de la praxis philosophique, Louvain-la-Neuve, Éditions Chromatika, 2008. [vii] Nicolas de Cues, De docta ignorantia, 1440 ; Nicolas Copernic, De revolutionibus Orbium Coelestium, 1543 ; Giordano Bruno de Nola, La cena de la ceneri, 1584. [viii] Herbert Spencer, Principles of Psychology, 1855 ; Alfred Russel Wallace « On the Tendency of Varieties to Depart Indefinitely From the Original Type », 1858 ; Charles Darwin, The Origin of Species by Means of Natural Selection. Or, the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life, 1859. [ix] Se, como diz Wolfgang Achtner, Ockham (c. 1285–1349) é a origem da linearilização e da quantificação do tempo cósmico e do tempo antropológico, essa cronologia deve ser analisada mais de perto (cf. « Person and Time. The Process of Individuation in the European 14th Century as The Origin of the Notion of Linear Time », in Niels Henrik Gregersen, Willem B. Drees & Ulf Görman (eds.), Studies in Science and Theology. Volume 7 (1999-2000), Aarhus, University of Aarhus, Studies in Science and Theology VII, 2000, pp. 15-38.). [x] Brandon Carter (1974), « Large Number Coincidences and the Anthropic Principle in Cosmology », IAU Symposium 63: Confrontation of Cosmological Theories with Observational Data, Dordrecht, Reidel, pp. 291-298 ; Jacques Demaret et Christian Barbier, « Le Principe Anthropique en cosmologie », Revue des Questions Scientifiques, tomo CLII, números 2 e 4, 1981 e 1982, pp. 181-222 e 461-509 ; John D. Barrow and Frank J. Tipler, The Cosmological Anthropic Principle, Oxford, New York, Melbourne, Oxford University Press, 1986 (Issued with correction as an Oxford University Press Paperback, 1988). [xi] Eu me inspiro na distinção estabelecida por D. R. Griffin entre « deconstructive or eliminative postmodernism » e « constructive or revisionary postmodernism ». [xii] Para tudo isso, ver as ótimas análises de John Hope Mason : The Value of Creativity. The Origins and Emergence of a Modern Belief, Aldershot, Hampshire, Ashgate, 2003. [xiii] Cf. John Bagnell Bury, The Idea of Progress. An Inquiry into its Origins and Growth, London, Macmillan, 1920 ; Ludwig Edelstein, The Idea of Progress in Classical Antiquity [posthumous], Johns Hopkins, 1967 ; Robert Nisbet, History of the Idea of Progress, New York, Basic Books, 1980 ; David H. Hopper, Technology, Theology, and the Idea of Progress. Louisville, Westminster/John Knox Press, 1991. A questão reaparece atualmente com as problemáticas da bioética: cf. John Hunt, « Perfecting Humankind: A Comparison of Progressive and Nazi Views on Eugenics, Sterilization and Abortion », Linacre Quarterly 66/1, February, 1999, pp. 129-141 ; Jacques Testard, Des hommes probables. De la procréation aléatoire à la reproduction programmée, Paris, Éditions du Seuil, 2000 ; e, do mesmo autor, « Une foi aveugle dans le progrès scientifique », Monde diplomatique, décembre, Paris, 2005, pp. 26-27. [xiv] Cf., e.g., Henry F. Ellenberger, The Discovery of the Unconscious. The History and Evolution of Dynamic Psychiatry, New York, Basic Books Inc., 1970 e Alan Gauld, A History of Hypnotism, Cambridge, Cambridge University Press, 1992. [xv] Cf. The Varieties of Religious Experience. A Study in Human Nature. Being the Gifford Lectures on Natural Religion Delivered at Edinburgh in 1901-1902, New York, Longman, Green, and Co., 1902, respectivamente, pp. 511 e 243. [xvi] Cf. Isabelle Stengers, La volonté de faire science. À propos de la psychanalyse, Paris, Édition des Laboratoires Delagrange, Les Empêcheurs de penser en rond, 1992, pp. 47 sq. e, na mesma coleção, Léon Chertok, L'énigme de la relation au c?ur de la médecine. Préface d'Isabelle Stengers, Paris, 1992. [xvii] Whitehead foi eleito « Fellow in Mathematics » em Cambridge em 1884 graças a uma dissertação (perdida) sobre o Traité de Maxwell. A Maior parte de seus ensinamentos tratará, até que ele seja convidado pelo departamento de

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Ano I, número 1, 2009 filosofia de Harvard, sobre as aplicações físicas do eletromagnetismo e da relatividade nascente. [xviii] Alfred North Whitehead, Modes of Thought [1938], New York, Collier-Macmillan, The Free Press, 1968, p. 106. [xix] The Function of Reason [1929], Beacon Press, 1958, p. 4. [xx] « The primary function of Reason is the direction of the attack on the environment. » (The Function of Reason, op. cit., p. 8) [xxi] « The art of persistence is to be dead. » (The Function of Reason, op. cit., p. 4) [xxii] Whitehead, Modes of Thought, p. 150. Observe que o Oxford English Dictionary (Oxford, Clarendon Press, 1991) propõe uma etimologia francesa do verbo « to enjoy » (ele reenvia ao francês antigo « enjoier » e « enjoir »), a tradução por « enjoiement » parece mais adequada que, e.g., « jouir-de-soi ». Esta parece ser a aposta de Gilles Deleuze em « Crible et infini. Confrontation Whitehead Leibniz », 17 Mars 1987 ; cf. http://www.webdeleuze.com. [xxiii] Modes of Thought, op. cit., p. 150. [xxiv] « Vacuous actuality, void of subjective experience » (Whitehead, Process and Reality, op. cit., p. 167 e cf. pp. xiii, 29, 157-158). [xxv] Modes of Thought, op. cit., p. 151. [xxvi] Modes of Thought, op. cit., p. 152. [xxvii] « […] godlike faculty which surveys, judges and understands » (The Function of Reason, op. cit., p. 9). [xxviii] The Function of Reason, op. cit., p. 10. [xxix] Hannah Arendt, The Human Condition, The University of Chicago Press, 1958. [xxx] « Each methodology has its own life history. It starts as a dodge facilitating the accomplishment of some nascent urge of life. […] The birth of a methodology is in its essence the discovery of a dodge to live. » (The Function of Reason, op. cit., p. 18). [xxxi] « Reason is the organ of emphasis upon novelty. It provides the judgment by which it passes into realization in purpose, and thence its realization in fact. » (The Function of Reason, op. cit., p. 20) « "Fatigue" is the antithesis of Reason. » (The Function of Reason, op. cit., p. 23). [xxxii] Maurice Merleau-Ponty, Le Visible et l'Invisible. Suivi de Notes de travail. Texte établi par Claude Lefort, accompagné d'un avertissement et d'une postface, Paris, Éditions Gallimard, 1964, p. 129.

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009

Curando mentes, tratando cérebros Psiquiatria entre biologia e subjetividade por Bjørn Ramberg 1. Introdução

Há cerca de um ano atrás a Associação de Psiquiatria Americana anunciou a força-tarefa que preparará a revisão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais. O DSM-V, como é chamado, está programado para ser publicado em 2012. Mais de doze grupos de trabalhos são atualmente responsáveis por várias áreas de distúrbios que caem dentro do campo do Manual. Podemos esperar revisões significativas, não apenas no nível das diagnoses individuais, mas possivelmente também na organização do Manual. O resultado deste processo será importante, por razões óbvias.

Nas palavras do chefe da força-tarefa, David J. Kupfer, M.D.:

Como o Dicionário Nacional [i.e., dos USA] das Doenças Mentais, o Manual Diagnóstico e Estatístico tem um papel vital ao assegurar que os pacientes recebam o diagnóstico e o tratamento apropriado para as suas preocupações com a saúde mental. (APA, 2007)

De todo modo, o processo, ele mesmo, também promete ser de grande interesse, na medida em que estamos preocupados com a psiquiatria enquanto ela reflete sobre como nos entendemos enquanto criaturas com mentes – e em particular, como ela reflete e traz à tona tensões e mudanças neste entendimento. Entretanto, no que se segue, não irei discutir as particularidades do processo de 1


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Ano I, número 1, 2009 revisão do DSM-V. Para meus objetivos, o ponto importante a enfatizar é o de que este processo não é simplesmente um acontecimento interno à ciência – não apenas uma questão de atualizar nosso conhecimento científico e clínico, apesar de certamente ser isso também. É muito mais do que isso, uma vez que as noções de mente, ou de mentalidade – ou mesmo de transtorno – não podem ser consideradas como noções com um conteúdo claramente independente. Ao contrário, ao desenvolver as categorias de diagnósticos e os princípios de organização do DSM estamos desenvolvendo esses mesmos conceitos.

Essa é a razão pela qual esse processo, como o vejo, deve ser colocado em um contexto político, social e também ético. Esta será minha simples mensagem para levar para casa de hoje. Explicitando-a um pouco mais: a psiquiatria faz uso atualmente – e penso que ela deva fazer – de conceitos que têm funções e significados para além de seu uso em contextos clínicos – conceitos de pessoa, self, outro, ação, significado e outros a eles relacionados. Permitam-me chamar essas e outras noções correlatas de conceitos de subjetividade; noções que empregamos ao nos definirmos como pessoas e ao darmos sentido às nossas relações com outros e conosco – conceitos nos quais confiamos para imprimir sentido e conduzir a nossas vidas individuais e em grupo.

Conceitos de subjetividade pertencem ao núcleo básico, central de nossos vocabulários da vida cotidiana. Acreditando, como eu acredito, que os conceitos de subjetividade são essenciais a qualquer psiquiatria que mereça esse nome, vejo a psiquiatria como inevitavelmente envolvida em questões que vão além de um mandato meramente clínico. Assim, revisões das práticas e teorias psiquiátricas são muito importantes, gostaria de dizer, para serem deixadas simplesmente aos psiquiatras. Posto de modo mais caridoso: no momento em que os psiquiatras contribuem para o importante trabalho de revisão que é realizado, assimilando e aplicando novo conhecimento e entendimento ao sistema de diagnóstico de transtornos mentais, devemos esperar que alguns deles mantenham diante de si a natureza multifacetada dos conceitos de subjetividade, e abracem a impureza de sua disciplina. Os psiquiatras devem estar precavidos contra a tentação, tão familiar a nós, filósofos, de colocar sua disciplina no caminho seguro da ciência.

No que se segue, irei falar um pouco sobre o significa esta recomendação. Em particular, espero deixar claro que não está baseada numa recusa em aceitar a relevância da ciência para a psiquiatria. O ponto essencial, entretanto, é que a psiquiatria, ela mesma, não é uma ciência, ou 2


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Ano I, número 1, 2009 mesmo uma aplicação da ciência, mas uma prática humanista. Alguém poderia responder imediatamente: “sim, isto é óbvio, e verdadeiro para qualquer ramo da medicina clínica. Não é algo específico da psiquiatria.” Parte da minha colocação, então, é a de que, no atual estado de coisas, a psiquiatria realmente é, de modo importante, diferente da medicina somática. A psiquiatria hoje se defronta com a tarefa de mediação entre ciências em rápido desenvolvimento – em particular, a neurociência molecular – e os vocabulários da subjetividade.

Isso faz dela, na minha terminologia, uma zona quente para mudanças conceituais; o modo como esta mediação é feita – isto quer dizer, que decisões fazemos quando desenvolvemos teoria e práticas psiquiátricas – influencia diretamente na nossa elaboração de uma imagem acerca do que é ser um ser humano e levar uma vida humana.

2. Ciência e mudança conceitual

Esta mediação que compete à psiquiatria realizar é a minha maior preocupação aqui. Antes de tratar disso mais diretamente, gostaria de inserir alguma base filosófica, um modelo rápido para o entendimento do tipo de mudança que estou afirmando estar ocorrendo aqui. Uso a expressão “zona quente para mudança conceitual”. Uma zona-quente é o que temos quando um conjunto de conceitos, o que chamo de vocabulário, é posto sob uma tensão ou pressão que causa a mudança de nosso uso dos termos. Um vocabulário é identificado pelos propósitos a que serve – algumas vezes esses propósitos são explícitos e conscientes, muitas vezes, não.

Quando conversamos sobre futebol, sobre bolsa de valores ou sobre astrologia, ou sobre nossas vidas amorosas, usamos vocabulários distintos, contudo, como esses exemplos nos mostram, nós somos bastante bons em misturar e combinar vocabulários. Ainda assim, alguns são bem robustos; a maioria de nós possui um vocabulário de compromisso ético e avaliação que é bastante rígido em seu centro, também um vocabulário de lealdade e amor que pode ser bem alinhado com ele, ambos bem distintos de vocabulários de negócios ou de explicação. Vocabulários mudam através da história cultural e psicológica. Eles mudam, normalmente, porque precisam lidar com situações novas, novas experiências, novas necessidade e interesses. E muitas vezes essas mudanças não são suaves e equilibradas, mas abruptas e carregadas de tensões. De forma importante, vocabulários são muitas vezes forçados a mudar como resultado de um novo conhecimento. Mais 3


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Ano I, número 1, 2009 precisamente, quando um novo conhecimento é desenvolvido e absorvido, termos usados neste processo muitas vezes acabam mudando suas condições de aplicação. A história da ciência fornece exemplos claros disso, como Thomas Kuhn mostrou em sua célebre explicação das revoluções científicas.

Um tipo interessante de zona-quente aparece quando uma ciência em franco desenvolvimento emprega termos que estão profundamente ancorados em práticas fora da ciência. Um caso contemporâneo interessante é o modo como a etologia cognitiva – o estudo do comportamento animal em termos mentalistas – está afetando nossa concepção das propriedades que nós comumente reservávamos para pessoas. Outro caso, claramente relacionado, é dado pela exploração biológica de nossas mentes – colocando os conceitos de subjetividade em contato direto com a influência poderosa e modeladora dos métodos mecânicos e redutivistas da ciência natural. Da forma como vejo as coisas, enquanto a ciência procede através de descoberta, a zona-quente resultante é uma cena de criação – o que está sendo criado, nas dinâmicas de mudança conceitual e de desenvolvimento de novo conhecimento, são modos específicos de ser humano. O significado especial da psiquiatria hoje se deve ao fato de que, mais do que qualquer outra prática ou disciplina, é na concepção do que a psiquiatria deveria ser que essas dinâmicas se desenvolvem.

3. Kandel e a unificação da psiquiatria

Erik Kandel é o principal autor daquele que acredito ser o manual em neurociência mais empregado, Principles of Neural Science. Ele é o ganhador do Prêmio Nobel de fisiologia e medicina (2000) por seu trabalho inovador acerca da neurobiologia molecular da aprendizagem, através de pesquisas conduzidas nos anos sessenta na lesma do mar Aplysia.

Ele também é um psiquiatra, e, diferentemente de grande parte daqueles que, como ele, vêem a biologia molecular como central para o progresso no entendimento da mente e suas dores, um proponente da psicanálise. De fato, Kandel – que foi aprendiz/estagiário como analista do Massachusetts Health Center há mais de cinqüenta anos atrás – continuou defendendo a psicanálise tanto como uma ferramenta clínica quanto como uma fonte de entendimento teórico da mente. A claridade e o impacto dos escritos teóricos de Kandel sobre a psiquiatria fornecem um meio excelente para trazer para o foco os pontos que gostaria de levantar. Apesar de Kandel argumentar 4


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Ano I, número 1, 2009 que a psicanálise tem um papel importante a desempenhar no entendimento científico da mente, ele é altamente crítico no que diz respeito à relutância da principal tendência dos teóricos psicanalistas em aproveitar a oportunidade de progresso que a ciência oferece (Kandel, 2005).

Na visão de Kandel, a psicanálise tal como foi desenvolvida no século XX, foi atrapalhada principalmente por uma disposição não científica. Sua própria agenda está claramente explicada em uma série de ensaios publicados durante mais de vinte anos: “a biologia pode transformar a psicanálise em uma disciplina cientificamente fundamentada” (Kandel, 2005, p. xxi). Isto pode ocorrer através de um tipo de complementaridade.

Psicologia e psiquiatria podem iluminar e definir para biologia as funções mentais que devem ser estudadas se queremos ter um entendimento significativo e sofisticado da biologia da mente humana. (Kandel, 2005, p. 7)

“Branda”, mas “essencialmente mais profunda em conteúdo”, a psiquiatria fornece uma visão da mente a qual a neurobiologia pode confiar – e o está fazendo – a um nível celular. A neurobiologia permite, portanto, um entendimento de como a mente pode fazer o tipo de coisa que a psicanálise nos mostra que ela faz, e, no processo, serve também como um corretivo para a teoria psicanalítica por revelar quais elementos neste corpo de aprendizagem possuem uma base científica e quais precisam ser ajustados ou rejeitados. Kandel almeja, portanto, um paradigma unificado:

A biologia pode refinar a dupla contribuição da psiquiatria para a moderna medicina: sua habilidade em desenvolver tratamentos medicamentosos efetivos baseados na neurociência e sua habilidade em escutar os pacientes e aprender a partir destes. Precisamos combinar essas duas modalidades de tratamento em modos que sejam ao mesmo tempo objetivos e eficientes. Se tivermos sucesso nesta empreitada, iremos reunir reducionismo radical, que impulsiona a biologia, com o objetivo humanista de entender a mente, que impulsiona a psiquiatria. (Kandel, 2005, p. 387)

Esta é uma visão bastante atraente. No entanto, acredito que essa visão unificada está baseada em pressuposições exatamente do tipo que gostaria hoje de questionar. 5


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4. Terapia e o cérebro

Uma dessas pressuposições é a de que à neurociência molecular é garantido um status de legitimação – de que ela é um ponto de referência definitivo para a terminologia da psiquiatria. Podemos sublinhar essa questão considerando a questão da validação da terapia. Com referência à obra An Unquiet Mind, de Kay Jamison, Kandel ressalta o poder da terapia. Depois de reconhecer o efeito salvador do lítio, Jamison escreve:

Mas, de um modo difícil de ser expresso, a psicoterapia cura. Dá algum sentido à confusão, retém os pensamentos e sentimentos aterrorizantes, devolve algum controle e esperança e a possibilidade de aprender com tudo isso. Pílulas não podem trazer de volta uma pessoa à realidade.” (Jamison 1996, 89, citado em Kandel, 2005, p. 386).

Este testemunho é impressionantemente semelhante a algumas passagens da recente autobiografia de Elyn Saks, The Center Cannot Hold: My Journey Through Madness. Saks uma esquizofrênica que combateu a psicose em vários estágios de sua vida, e também uma acadêmica de alto nível, professora de direito e psiquiatria na Universidade do Sul da Califórnia, enfatiza sua relação com seu psicoterapeuta como a chave para a sua habilidade de viver uma vida significativa, de grandes conquistas a despeito de sua grave enfermidade. Um testemunho deste tipo é profundamente impressionante, e Kandel lhe confere grande peso. Ao mesmo tempo, Kandel está ciente da natureza embaraçosa da questão da validade da psicoterapia. O problema, bem entendido, é que é difícil saber o que numa forma de tratamento bem sucedido é responsável pelo sucesso deste tratamento.

Assim, por exemplo, enquanto a maioria dos terapeutas atribuiria seu sucesso ao tipo particular de conhecimento de que dispõem e ao método que aplicam em função do tipo especial de treinamento recebido, isto é, enquanto a maioria dos terapeutas veria o tipo de terapia oferecida como um fator significante na determinação do resultado, hoje em dia é um fato bastante aceito que as variáveis mais próximas à predição de resultados em psicoterapia não são específicos de uma modalidade terapêutica particular, mas expressam, de um modo ou de outro, o nível de confiança, 6


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Ano I, número 1, 2009 segurança e conexão entre o terapeuta e o paciente.

O problema pode ser posto desta forma: enquanto testemunhos tais como o de Jamison e Saks enfatizam eloqüentemente seu significado, é difícil isolar o que numa abordagem terapêutica particular é responsável por seu sucesso. Por um lado, a evidência do ponto de vista do paciente de que é um sucesso é enunciada, da forma plausível como deve ser, em termos que pertencem a linguagem da subjetividade. Por outro lado, tais descrições permanecem expressões de sucesso, não explicações para ele.

Kandel sugere que a neurociência irá nos permitir uma saída;

Até bem pouco tempo havia poucas maneiras independentes e convincentes de testar idéias psicodinâmicas ou avaliar a eficácia relativa de uma abordagem sobre outra. No entanto a neuroimagem pode nos fornecer justamente isso – um método de desvendar tanto a dinâmica mental quanto o funcionamento de um cérebro vivo. (...) De fato já podemos descrever o cérebro das pessoas antes e depois da terapia e desta forma ver as conseqüências da intervenção psicoterapêutica em certos transtornos. (Kandel, 2005, p. 386)

Não é auto-evidente, entretanto, que respostas à questão sobre a validade das abordagens terapêuticas devam ou deveriam originar-se da neurociência. Jorid Moen, em um artigo no qual defende uma abordagem pragmatista da teoria da psiquiatria – na verdade, o tipo de abordagem o qual também estou implementando aqui – indica a possibilidade de um tratamento diferente. Moens cita a pesquisa de Krupnick et al., a qual aponta “que, no tratamento de depressão, o vínculo terapêutico (...) mostrou ter um efeito significativo no resultado clínico tanto para psicoterapias quanto para farmacoterapia ativa e de placebo” (Moen, 2008, p. 10). Moen comenta:

Se o vínculo terapêutico for um fator relacional comum às modalidades de tratamento e distinguível de fatores específicos internos ao tratamento, isto deveria ter implicações sobre a questão de como a terapia – incluindo a 7


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Ano I, número 1, 2009 farmacoterapia – é conceitualizada e praticada.

Paradigmas qualitativos de pesquisa são necessários para “irmos além do que os clínicos e os pacientes dizem que fazem, para olhar o que de fato fazem e como eles comunicam” (Moen, 2008, p. 10).

É possível, em outras palavras, aceitar a necessidade da testagem científica independente e da validação de diferentes formas de psicoterapias, como Kandel sugere, sem chegarmos à conclusão de que a neuroimagem fornece esse teste. Ao contrário, um teste que mantenha em vista características comunicativas e interpessoais, atualmente não tomados em consideração nesse tipo de avaliação, pareceria intuitivamente bastante promissor. Notavelmente, iria empregar categorias e conceitos aos quais podem ser dados uma aplicação suficientemente direta quando se trata de melhorar as técnicas terapêuticas.

Tal teste não seria redutivo, do mesmo modo com que pontos de referência moleculares seriam, mas isso não significa que deixaria de ser objetivo, com relação às diferentes formas de terapias a serem exploradas. Além disso, tal testagem poderia razoavelmente contar com categorias não-biológicas para a determinação dos resultados e do grau de sucesso. O ponto de Kandel – o de que o sucesso terapêutico se registrará no cérebro – parece plausível. Apenas não se segue daí, contudo, que a mudança neural seja o nível informativo mais apropriado para comparar e avaliar terapias.

A caracterização particularmente atraente de Kandel da psicoterapia sustenta esse ponto. Kandel diz: “A psicoterapia provavelmente atua na criação de um ambiente no qual as pessoas aprendem a mudar” (Kandel, 2005, p. 386) À primeira vista, este modo de pensar sobre a terapia parece unir-se bem com a própria abordagem de Kandel. Afinal de contas, ele ganhou o prêmio Nobel por sua contribuição ao nosso conhecimento de como o cérebro permite a aprendizagem através de alterações nas conexões sinápticas. Entretanto, o tipo de aprendizagem que a formulação de Kandel invoca também aponta para além do cérebro: para entender o que significa criar um tal ambiente e para vincular tal aprendizagem com o potencial de cura da terapia parece ser necessário uma nova linguagem. Aprender a mudar através da terapia é uma questão de obter um certo tipo de conhecimento prático, um conhecimento 8


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Ano I, número 1, 2009 aplicável acerca de quem se é; um entendimento de si no mundo que permita responder e talvez agir de modo diferente. Autoconhecimento não é primordialmente uma questão de vir a conhecer verdades escondidas sobre si mesmo ou de entender o próprio funcionamento interno como se alguém pudesse descobrir o funcionamento interno de algum aparato até agora misterioso. A relação com o self, a subjetividade do autoconhecimento é essencial aqui porque agir no mundo não é algo como puxar suas próprias alavancas. “Conquistar auto-conhecimento”, como o analista Torberg Foss enfatiza, “é distinto de rastrear mecanismos (...) é tomar uma posição, representando um compromisso”. (Foss 2008, 140) Mais uma vez, seria uma surpresa, para colocar de forma branda, se mudanças bem-sucedidas deste tipo não se refletissem em mudanças no cérebro. Contudo, usar a imagem do cérebro (“brain imaging”) para discriminar entre abordagens terapêuticas bem sucedidas das não bem sucedidas parece ser um modo indireto curioso de cuidar do assunto – a não ser que alguém acredite que a mente realmente é o cérebro.

5. A tendência pelo cérebro (brain bias)

Esta última sugestão me permite fazer uma observação geral sobre o que chama de viés cerebral inerente a ao tipo de abordagem que Kandel representa, e a qual é evidente na sua resposta ao dilema da avaliação a diferentes terapias. Esta é a idéia, aparente na abordagem sobre a validação da terapia, de que o que quer que seja tratável em termos da neurociência, deve então ser entendido principalmente como um assunto neurocientífico. Isso quer dizer, na terminologia que introduzi antes, que o vocabulário da biologia molecular triunfa sobre o vocabulário da subjetividade. Nosso direito de usar o último está condicionado à nossa habilidade de submeter seus termos à disciplina do primeiro. Gostaria de negar isso.

É claro que dificilmente estaria sendo questionado que para muitos transtornos mentais uma habilidade de entender e empregar os conceitos de subjetividade é essencial tanto para os diagnósticos quanto para o tratamento. Nem os transtornos depressivos, nem os transtornos bipolares, nem a esquizofrenia, podem ser diagnosticado através de técnicas de imagem do cérebro nelas mesmas. E embora o Transtorno de Personalidade Anti-social (APD), para tomar outro exemplo, supostamente correlacionado com um reduzido volume de massa cinzenta no lobo préfrontal, e, além disso, apesar dessa correlação não ser surpreendente, dado o que sabemos sobre a anatomia funcional do cérebro, APD certamente não pode ser diagnosticado pelo escaneamento do 9


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Ano I, número 1, 2009 cérebro e procura por esta característica. Para fazer o ponto inverso; mesmo se um marcador neurofisiológico fosse descoberto para certos tipos de depressão, como alguns neurobiologistas estão esperando que seja, parece ser duvidoso que estaríamos a vontade para dizer de alguém que de fato registrou positivamente este marcador, mas que não apresentava nenhum sinal clínico de depressão, que esta pessoa estava acometida de uma depressão asintomática.

Ainda assim, mesmo se concedermos esses pontos, e a necessidade heurística concomitante de conceitos de subjetividade, o psiquiatra de viés-cerebral acredita que a realidade subjacente, tanto em termos de exploração, quanto em termos de intervenção, é o cérebro. Colocando de forma severa, para o psiquiatra de viés cerebral, conversar com os pacientes é uma ferramenta para clarificar o que está errado com o cérebro do paciente, e a questão principal da psicoterapia é a de implementar certas mudanças neste cérebro.

6. O que está errado com o viés cerebral (brain bias)?

Para a maioria das patologias somáticas, os sintomas são tratados tipicamente como pistas para um problema subjacente, efeitos de uma causa. Por contraste, e colocado de uma forma grosseira, para transtornos mentais, a experiência subjetiva dos sintomas, como manifestado, por exemplo, na ansiedade, nos sintomas experimentais e comportamentais de depressão, de psicose, são transtornos. Este contraste coloca a questão principal de modo muito forte. Para uma grande variedade de doenças somáticas, a patologia subjacente tem manifestações afetivas e cognitivas – alucinações, digamos, uma dor no braço esquerdo ou mudança na freqüência do pulso podem ser sintomas. Mas a diferença, entretanto é importante. Pode ser colocado desta maneira: mesmo que concluamos que não havia abnormalidade do cérebro, nenhuma entrada neurobiológica para uma dada patologia mental, não mandaríamos uma pessoa deprimida para casa e diríamos “você não está realmente deprimida, você apenas está imaginando isso”. Um médico somático pode dizer a um paciente sobre alguns sintomas que a preocupavam que não se trata afinal de um sintoma, “você está bem, não se preocupe”. Quando se trata de transtornos mentais, a questão acerca de sintomas falsos, vazios ou não indicativos escapa, de certo modo, da questão. Se o seu médico diz para você que as tonturas que você está sentindo são perfeitamente normal, que sua vista está saudável, então, conquanto você confie em seu oculista, você voltará para casa feliz. Mesmo se você estiver tendo dores de cabeças chatas, você deve aceitar o julgamento de que elas não têm significância; não indicam uma 10


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Ano I, número 1, 2009 patologia subjacente. Entretanto, não ajuda em nada ser informado que você está meramente imaginando estar deprimida – um vez que os sintomas são avaliados e a sua pontuação calculada, você está deprimida. Sendo assim, enquanto a relação sintoma-causa, interpretada em termos fisiológicos, é essencial para a medicina somática, esta relação pode ser acidental em um sentido importante para a esfera da patologia mental, transtorno, ou mal estar – pelo menos na medida em que está relação é entendida no contexto do viés cerebral cerebral (brain bias). Pois a viés cerebral leva em consideração que a causa verdadeira do transtorno mental no final das contas tem que ser de natureza neurobiológica. Assim, etiologias que não conduzem, finalmente, à interação neuronal não são, desde essa perspectiva, fundamentadas cientificamente, e, portanto, em condições ideais, devem ser eliminadas.

Esta consideração é importante. Porque a relação causal per se – o que o paciente está procurando quando pergunta, “porque estou me sentindo assim, doutor?”, e o que o clínico espera isolar ao perseguir os sintomas – pode ser uma preocupação central também quando confinada ao campo do mental. De fato considerando a medida segundo a qual somos criaturas socialmente e ambientalmente sensíveis, seria surpreendente se a perseguição pelos sintomas sempre nos levasse de uma linguagem fenomenológica de experiência de pessoa/sujeito, os conceitos da subjetividade, em direção ao nível subjacente de neurologia. Resistir ao viés cerebral reducionista não é, portanto, uma questão de rejeitar a significação das explicações causais dos transtornos mentais. Ao invés disso, a idéia é manter aberta a possibilidade de que o nível apropriado de explicação causal e o nível apropriado de intervenção mantêm-se dentro de uma linguagem que se dirige diretamente às doenças de uma pessoa, não às patologia de um cérebro. Se assumirmos que a perseguição da natureza real do transtorno mental invariavelmente leva a subjazer a implementação fisiológica objetiva, podemos de fato estar tomando uma perspectiva a qual apesar de suficientemente real e ainda por cima relacionada ao problema, pode direcionar nossa atenção para fora do nível no qual o problema precisa ser encarado. Podemos acabar distorcendo a natureza do que precisa ser tratado, se acabamos considerando as descrições neurológicas como sempre revelando a natureza verdadeira de um problema ou patologia.

Isso não significa sugerir que a neurobiologia não seja profundamente importante para a psiquiatria, para os propósitos de um entendimento geral do comportamento humano, para propósitos de 11


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Ano I, número 1, 2009 diagnósticos clínicos, e para propósitos de tratamento. Para alguns transtornos psiquiátricos – os transtornos “pesados” – parece ser provável que o modelo fisiológico para a relação entre sintoma e efeito é o melhor que há. Mas o problema do viés cerebral é que ele faz disso uma assunção de padrão. Há uma grande diferença entre dizer que o cérebro é a mente, o dogma do viés cerebral (brain bias), e dizer que o cérebro permite a mente. Pois aquilo que o cérebro permite – a mente – é algo o qual por natureza está capturado em relações sociais e normativas, relações e situações bem apropriadamente descritas em termos que não são refletidos no vocabulário neurobiológico.

A psiquiatria poderia responder a isso por um tipo de restrição auto-imposta; poderia definir a si mesma a partir da relação do tratamento de transtornos cerebrais com sintomas afetivos e cognitivos. Iria, então, -- acredito que rapidamente – tornar-se uma especialidade bem definida dentro da medicina somática, responsável pelas aplicações clínicas da neurobiologia molecular, focando principalmente, como Kandel deseja, na expressão do gene. Esse seria um ramo bastante importante da medicina, e um ramo que provavelmente ainda requereria muito mais sensitividade à significação clínica do que os pacientes fazem ou dizem, do que outras áreas da medicina. “Ouvindo e aprendendo dos pacientes”, como Kandel coloca, ainda seria uma parte importante da prática psiquiátrica. Tal restrição permitiria à psiquiatria ser “baseada na ciência” tanto quanto qualquer outro ramo da medicina somática. Porém, também deixaria, sem atendimento um grande número de transtornos que muitos psiquiatras hoje em dia tomam como estando dentro de seu ramo. Mas se a psiquiatria deve continuar direcionando-se a problemas da mente, neste sentido maior, terá que se prevenir contra o viés cerebral. A psiquiatria deve ficar aberta para um espectro de fenômenos que abrange desde transtornos cerebrais, no qual os sintomas cognitivos e afetivos são de fato sintomas muito do mesmo modo como uma dor grave e inchação podem ser indicações de um mau jeito ou uma fratura, até transtornos e angústias cujas naturezas giram em torno de questões tais como integração, auto-conhecimento, competição e poder.

O problema, como eu o vejo, não é que existam formas de sofrimento mental que não são registradas no cérebro. O ponto principal, na verdade, é que o fato que algo está registrado no cérebro não garante que o cérebro é o problema real. Um psiquiatra deve, na minha visão, aceitar isso; ao menos no que diz respeito à transtornos da mente, em alguns casos a manifestação neurobiológica, mesmo se claramente identificável, é ela mesma melhor vista como um sintoma de um problema cuja natureza real é extra-cranial, e o qual é melhor abordado numa linguagem de 12


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 subjetividade. 7. Gazzaniga e o cérebro ético Para resumir a visão que estou recomendando; devemos considerar que o cérebro capacita à mente, e, consequentemente, que qualquer mudança em como sentimos ou o que pensamos irá ser refletida em eventos ou padrões neurobiológicos. Sendo assim, o entendimento neurobiológico será de imenso uso para a psiquiatria. Ao mesmo tempo, e a despeito disso, afirmo que não deveríamos identificar transtornos mentais com os transtornos cerebrais. Realizar essa identificação, seja explicita ou implicitamente, expressa o que denominei ”the brain bias”. Para tornar clara a coerência dessas duas afirmações, vou me voltar brevemente do entendimento do transtorno mental para outro tópico de grande interresse para as pesquisas sobre o cérebro atuais, o tópico da ética e o cérebro. No livro, o Cérebro Ético (2005), Michel Gazzaniga, outro neurocientista proeminente, procura desvelar as bases neurobiológicas das nossas vidas éticas. Especificamente, Gazzaniga quer articular os elementos universais de qualquer ética humana; universal porque conectado ao cérebro humano. A habilidade de sentir empatia, a inclinação universal para ajudar membros da mesma espécie (e também membros de algumas outras poucas espécies) em necessidade, quando o afeto de certo tipo está presente, a tendência a reagir com raiva a certas infrações da norma, a disposição, em alguns cenários, de sacrificar a própria vantagem pela segurança de uma vantagem comunitária, estas são as características bem estabelecidas sem as quais uma comunidade não poderia funcionar e a moralidade não poderia nem aparecer como um fenômeno a ser investigado. Podemos confiar na ciência para nos dizer muita coisa sobre o universo – como ele surgiu, que tipo de variação pode haver entre indivíduos e tipos de indivíduos (masculinos e femininos, por exemplo), quais as condições para que certas respostas básicas sejam acionadas, como elas podem ser evitadas ou colocadas em curto-circuito (para o bem e para o mal, como isso é possível). A ciência, Gazzaniga acredita, pode ainda nos ajudar a escapar da necessidade de buscar justificações filosóficas para essas características básicas biologicamente favorecidas da psicologia moral. Elas apenas estão aí, e deveríamos estar agradecidos por elas. Como David Hume observou com relação à indução, algumas características da nossa vida mental são simplesmente muito importantes para serem deixadas com a razão – a natureza assegurou que não temos outra opção. O que a neurociência nos ensina, de acordo com Gazzaniga, é que a questão filosófica, “por que eu deveria ser moral?”

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Ano I, número 1, 2009 irrelevante. A questão, ao contrário, é como eu, ou nós, deveríamos ser morais. E com relação a isso, a ciência nos leva, na visão de Gazzaniga, muito mais longe. De qualquer forma a ciência fará pouca coisa para nos ajudar a julgar entre crenças morais concorrentes como norma para ação. Dado que o cérebro concretiza a mente, qualquer uma de nossas exigências morais concorrentes são desta forma concretizada. Além disso, a ciência não irá nos ajudar a entender os conceitos de responsabilidade e liberdade que são centrais para nossas vidas morais. Aqui a visão de Gazzaniga sobre o assunto: Cérebros são dispositivos autogovernados e determinísticos, enquanto as pessoas são agentes pessoalmente responsáveis, livres para tomar suas próprias decisões... responsabilidade pessoal é um conceito público. Existe em um grupo, não em um indivíduo... O que [a ciência neurobiológica] não sugere é que mecanismos cerebrais subjazem às relações que existem em uma estrutura social, as regras que nos permitem coabitar, ou uma regra ou valor como a responsabilidade pessoal. Esses aspectos da pessoalidade não estão – estranhamente – em nossos cérebros. (Gazzaniga, 2005, 90) O ponto principal de Gazzaniga, na minha terminologia, é que os conceitos de liberdade, responsabilidade, valor, estão em casa em um vocabulário que usamos para lidar conosco e como cada outro como pessoas. Enquanto pessoas têm cérebros, e não poderiam ser pessoas sem ele, elas não são seus cérebros. Um cérebro em bom funcionamento não é suficiente para a pessoalidade, porque este conceito ao lado de outros conceitos relacionados, codifica um complexo de relações sociais. As inclinações universais conectadas em nossa psicologia tornam-se características de nossa psicologia moral somente quando vistas desde uma perspectiva das relações pessoais de pessoas. Tratar a ética como se fosse inteligível em termos de estados cerebrais seria, então, perder para sempre o sentido do discurso ético. Pessoas podem ser agentes livres, apesar de seus cérebros serem automáticos. “Nossa liberdade”, como Gazzaniga coloca, “é encontrada na interação com o mundo social” (Gazzaniga, 2005, 98) A pertinência do tratamento de Gazzaniga à ética para minhas afirmações com relação ao viés cerebral não deve ser difícil de reconhecer. A mente é em grande medida um dom social – muito do cérebro humano é dedicado a realizar/entender as capacidades complexas requeridas por nós precisamente enquanto criaturas sociais, mas, a não ser que essas capacidades estejam ativadas e as estruturas sociais com sua complexa rede de normas e valores sejam entendidas, a mente não está à vista. Um único ser humano isolado é simplesmente um organismo com um cérebro bastante

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Ano I, número 1, 2009 impressionante, mas não uma pessoa com mente. Vista sob essa luz, soltar um alarme contra sucumbir ao viés cerebral na psiquiatria é sugerir que a psiquiatria deveria também tratar a nós, pessoas com mentes, e reconhecer que doenças podem nos suceder que tenham sua raiz neste nível de nossa existência. Parte do trabalho da psiquiatria deve ser continuar a dirigir-se a nós enquanto seres socialmente realizados, ao invés de a organismos com a capacidade para vida social. Existem doenças e transtornos com os quais somos confrontados, sugiro, os quais sustentam uma relação similar seja com a neurociência seja com questões éticas substantivas. Isso quer dizer que enquanto poderíamos nos beneficiar enormemente do entendimento das bases mecânicas dessas doenças, deveríamos estar desejando manter aberta a possibilidade de que transtornos mentais comuns não sejam essencialmente neurológicos.

7. Para além do cérebro: transtornos e diagnósticos. Irei concluir apontando bem rapidamente para uma ou duas razões para pensarmos que essa possibilidade é atual Sem dúvida, o que conta como um transtorno pode ser controverso mesmo quando se chega a uma medicina somática, e os problemas serão afetados pelos valores sociais, como a história da medicina irá mostrar. As controvérsias em torno dos implantes de cócleas para tratar surdez – a resistência a isso em algumas comunidades -- é uma ilustração recente deste ponto. De qualquer forma, no caso de transtornos mentais esta questão é combinada em maneiras significativas. Não é somente o caso que o que conta como patologia ou transtorno pode ser relativo a um ambiente social. Também é o caso que o efeito de ser dotado com uma disposição particular dependerá do contexto socio-psicológico e cultural no qual esta se manifesta. Leve em consideração, por exemplo, a associações encontradas em muitos países entre o elevado risco de suicídio e a homossexualidade entre pessoas jovens. Outro exemplo é o dano colateral na autoestima muitas vezes encontrado em crianças com diagnósticos tardios de ADHD. Um terceiro exemplo pode ser o surgimento de transtornos de alimentação entre rapazes. Um último exemplo, mencionado por Moen (2008), no lado positivo, é “The Hearing Voices Network.”. Esta é uma associação “na qual os que escutam vozes dividem modos de lidar com a experiência e discutem seus modelos de explicações ... [tornando] dessa forma possível que essas experiências se tornem significativas” (Moen, 2008, 12). Esses exemplos ilustram a conexão entre um contexto normativo social no qual as pessoas vivem suas experiências a atuam suas vidas e o surgimento de condições enquanto preocupação psiquiátrica. Acredito, entretanto, que a relativização das condições psiquiátricas a contextos sociais e a valores 15


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Ano I, número 1, 2009 comunitários que tais exemplos sugerem, não deveria ser temido ou negado, ou extirpado do sistema de diagnóstico. Ao contrário; diagnósticos são críticos para garantir a correção e previsão do tratamento, a viabilidade de pesquisas epidemiológicas, e a transparência de decisões financeiras. Um diagnóstico é, entre outras coisas, uma entrega a um indivíduo de uma séria de títulos (e, algumas vezes, obrigações) feitos sob medida, e, muitas vezes no caso de diagnósticos psiquiátricos, de restrições. Assim, o diagnóstico é um ticket, um cartão de legitimação para tratar um indivíduo como diferente dos outros em um sentido específico – de forma que podemos gastar, por exemplo, uma grande quantidade de dinheiro no Sr. P uma vez que ele tenha sido diagnosticado com o transtorno bipolar. Ou podemos dedicar um fundo ao filho do Sr.P, Q, se for diagnosticado o ADHD. Diagnósticos podem ser mais importantes, ao invés de menos, dado a natureza valorativa das condições envolvidas; servem como um modo de desenhar linhas claras para o propósito de política de saúde, fiscal e outra política pública, mesmo onde tais linhas claras podem ser representadas na natureza.

Ainda assim, o problema do diagnóstico na psiquiatria é difícil em uma maneira distintiva, na medida em que pode entrar no quadro clínico de forma direta. Existe de fato praticantes – por exemplo o psiquiatra norueguês e professor de medicina social Tom Andersen, associado com o movimento de terapia familiar num grande número de países – que vêm o diagnóstico como uma reificação, e, portanto, como um fator negativo no processo de restaurar o sentido de integração e automia dos pacientes. Por essa razão, psiquiatras como Andersen resistem completamente à idéia de diagnóstico, considerando-a tão conflituosa quanto o mandato de cura da psiquiatria. Certamente esta é uma visão minoritária, mas acredito que não é uma coincidência que tal posição pode conquistar apoio precisamente na psiquiatria.

O que esses exemplos sugerem, se estou certo, é que a psiquiatria não pode evitar ela mesma de usar conceitos, mesmo nas descrições, diagnósticos e protocolos clínicos, que estão cheios de valores e que tocam diretamente questões políticas e éticas. Psiquiatria não deve tentar comprar a sua saída deste predicamento em sacrificando nossas mentes aos nossos cérebros, escapando da neurologia aplicada. Ao contrário, a psiquiatria mantendo nossas mentes em vista, deveria aceitar e afirmar o fato de que suas classificações e descrições sempre interagem com nossas visões do que valorizamos em nós mesmos e nos outros, como acreditamos que uma comunidade deve ser organizada, e o que estamos querendo estender a cada um, enquanto cidadãos, em uma forma de 16


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Ano I, número 1, 2009 apoio e tolerância. Assim a essas pessoas responsáveis pela revisão do DSM, e por mapear o autoentendimento da psiquiatria e das profissões de saúde mental nos EUA para a próxima década ou duas, gostaria de prescrever uma grande dose de orgulho e auto consciência da sua impureza.

Referências bibliográficas: American Psychiatric Association, 2007. New Release; APA Names DSM-V Task Force Members. Release date July 23, 2007. Foss, Torberg, 2008. Close to the Particular: The Constitution of Knowledge from Case Histories in Psychoanalysis. Ph.D. thesis, University of Oslo. Gazzaniga, Michael S., 2005. The Ethical Brain. Dana Press. Jamison, Kay, 1996. An Unquiet Mind. Vintage Books. Kandel, Eric R., 2005. Psychiatry, Psychoanalysis, and the New Biology of Mind. American Psychiatric Publishing, Inc. Moen, Jorid, 2008. The Perspectives of Psychiatry; a Pragmatic Approach. Draft manuscript. Saks, Elyn R., 2007. The Center Cannot Hold: My Journey Through Madness. Hyperion.

Traduzido por Susana de Castro Revisão: Sergio Oliveira

Centre for the Study of Mind in Nature. Department of Philosophy, Classics, History of Art and of Ideas. Faculty of Humanities, University of Oslo.

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009

Auto-edificação idiossincrática como modelo liberalburguês de educação por Aldir Carvalho Filho

I

Para que os homens permaneçam ou se tornem civilizados, é necessário que entre eles a arte de se associar se desenvolva e se aperfeiçoe na mesma proporção que a igualdade de condições cresce. (Tocqueville) Ainda que a noção de indivíduo remonte ao passado longínquo da reflexão filosófica, no que diz respeito à valorização ética, jurídica e política da individualidade humana, nada se compara àquilo que emergiu com as concepções e práticas que articularam a específica auto-interpretação cultural moderna (Renaut). Graças a essa auto-imagem, o ser humano individual do Ocidente europeu passou a se entender como “sujeito epistêmico e moral” e primeiro princípio de todas as coisas. Entretanto, a ideologia determinada que triunfou na autocompreensão moderna não é tão monolítica quanto parece e apresenta fissuras que puderam ser percebidas bem cedo. Já no início do século XIX, em função do trauma experimentado com a Revolução Francesa – a mistura explosiva do Iluminismo com a Reforma Protestante –, o pensador francês de origem aristocrática Alexis de Tocqueville logrou identificar o principal “defeito genético” no código cultural profundo da Era Moderna. Dando à expressão individualismo (inventada pouco antes por Joseph de Maistre) um viés arguto e refinado, Tocqueville dizia tratar-se de:

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 Um sentimento refletido e pacífico que dispõe cada cidadão a se isolar da massa de seus semelhantes e a se retirar à parte com sua família e seus amigos; de tal sorte que, tendo assim sido criada uma pequena sociedade para seu uso, ele abandona de bom grado a grande sociedade a si mesma. ( Tocqueville, p. 105) De fato, “individualismo” já se tornou uma designação clássica no pensamento político e sociológico para nos referirmos à auto-interpretação cultural dominante no Ocidente a partir da Idade Moderna. Tal constatação emerge de um campo muito vasto e variado de disciplinas, saberes e esferas da vida social. Trata-se de recorrência desde as perspectivas da história (período “antropocêntrico”), passando pelo direito (emergência das liberdades e direitos individuais), pela religião (reforma protestante), pela arte (“expressionismo romântico”), pela política (“liberalismo político”), pela economia (“liberalismo econômico”, acumulação monetária, “propriedade privada dos meios de produção” x contrato de trabalho etc.), até a filosofia (“era do cogito”, “paradigma da subjetividade”, etc.). Ainda que tenha alcançado importantes formulações teóricas em doutrinas filosóficas e jurídicas, notadamente por meio dos contratualismos ingleses, o individualismo só se consolidou na prática a partir da ascensão econômica da burguesia. Contudo, é bem provável que a mais forte contribuição para que se tornasse culturalmente massivo tenha sido o fato de deitar suas raízes mais profundas na ideologia religiosa, sobretudo o protestantismo (cf. Weber), que foi a crença mais difundida pela Europa Central a partir do século XVI. Se tomássemos como referência o processo de desencantamento das imagens do mundo e do homem promovido na Modernidade, atingindo seu ponto de inflexão com o Iluminismo, veríamos que o protestantismo que lhe antecede, sobretudo o de matriz calvinista, já encerra ele mesmo um processo de desencantamento na própria esfera religiosa, um ciclo que culmina no dogma da predestinação. Diante do deus calvinista, o homem se sente – e tem mesmo que se sentir, por imposição da ética religiosa – em completa solidão, somente aliviada com a secreta esperança de ser um dos eleitos. Tal isolamento espiritual e moral do cristão, vertido como “absoluta liberdade na interioridade”, é maravilhosamente compatível com as exigências psicológicas da nova ordem econômica: trabalho cada vez mais racionalizado e disciplina ascética no mundo da produção. Exigências que implicam valorizar ao máximo a competição, a qual deve ser ensinada desde cedo através de pedagogias como “deve-se vencer primeiro a si mesmo” e, mais atualmente, “todo mundo ama o vencedor”. Todavia, ainda que essa auto-imagem possua fragilidades que lograram suscitar resistências 2


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Ano I, número 1, 2009 ideológicas, ela não apenas não se atenuou na pós-modernidade, como se intensificou amplamente: de acordo com Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim, por exemplo, “ser indivíduo” hoje não é um mandamento ideológico qualquer, e também não significa exatamente a justa expressão do desejo arcaico de “liberdade”. Esses autores sustentam que a individualidade se converteu numa exigência funcional primordial do sistema econômico de reprodução da sociedade. Portanto, tornar-se indivíduo não é uma escolha: é uma obrigação, cuja falha em ser cumprida traz sérias conseqüências pessoais e sociais. De toda maneira, considerando os efeitos sociais e pessoais insustentáveis causados pela persistência dessa auto-imagem na pós – ou, como os Becks a chamam, “segunda” – modernidade, tornou-se incontornável insistir em sua crítica. Para tanto, deveríamos tentar, em primeiro lugar, redescrever a metáfora de Tocqueville de modo a torná-la mais útil para o propósito de captar as configurações que o fenômeno assume em nosso tempo. Foi por esse motivo que propus que passássemos a entender o individualismo como a exacerbação idiótica da individualidade dos indivíduos humanos (Carvalho Filho). Como se sabe, na cultura política clássica, idiotes significava o ser humano que, por qualquer razão[1], se mantivesse restrito ao óikos, espaço “doméstico”, permanecendo afastado da pólis, espaço “público”. Já que o espaço vital importante para os gregos é sempre público, o idiotes, em decorrência disso, não chega a adquirir uma existência socialmente significativa. Além disso, na língua portuguesa a expressão “idiota” indica uma deficiência. No caso do individualismo, a idiotia significa a incapacidade de sair de si mesmo, restringindo-se ao próprio isolamento e à própria identidade individual, ao mesmo tempo em que assinala a incapacidade de permitir que a relação com outros indivíduos seja mais importante do que a própria individualidade. Anunciando-se como o que, à primeira vista, poderia parecer uma época “antiindividualista”, a era pós-moderna decretou solenemente “o fim do sujeito”. Trata-se de um veredicto que já se tornou dóxa/constatação/clichê em muitos campos de estudo, inclusive no da educação (Silva, p. 11 et seq.). Porém, mesmo depois de todas as “críticas da razão, do sujeito e da verdade” (que, a rigor, já tinham se iniciado na própria modernidade, cf. Habermas) e do “fim da metafísica”, mesmo após todas as “feridas narcísicas” e toda a “descontrução”, o indivíduo de hoje se compreende, mais do que nunca, como subjectum ou self isto é, como o portador final isolado de todos os “direitos humanos” que a valorização moderna introduziu, sobretudo mediante a imagem de “cidadão de um Estado democrático”. De resto, os paradigmas educacionais hegemônicos aparentemente nada mais desejam do 3


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Ano I, número 1, 2009 que, simplesmente, universalizar essa autocompreensão e, “democraticamente”, converter as promessas de direitos em realidade prática “para todos” [2]. Especialmente para fins educacionais, o que é ideologicamente compreensível, se o “sujeito” é agora uma “ficção” que foi “desconstruída”, nem por isso seus “direitos individuais” deixaram de ser levados a sério. Aliás, mais a sério do que nunca. Uma vez que os Becks erguem a importante suspeita de que o desmonte do “individualismo rotinizado” da primeira modernidade é do maior interesse do sistema econômico vigente na segunda modernidade, temos que desconfiar fortemente de todos os discursos soi-disant “desconstrutivistas” e/ou “críticos da subjetividade”. Se os Becks têm razão, e se quisermos avançar na luta antiindividualista, então somos levados a ter um cuidado crítico redobrado com os vocabulários “antisubjetivistas”. Se a hipótese desses autores for correta, então o decreto do “fim do sujeito” é uma precipitação – gerada pelo compreensível entusiasmo com a possibilidade de renúncia às ordens teológico-metafísicas – que incorre, contudo, num grave equívoco político: na medida em que se admite o fim do que, nesse ínterim, se mantém de modo revigorado, se envia isso mesmo que se mantém para fora do alcance da crítica. Se o sujeito morreu, o indivíduo não foi avisado disso, e está mais vivo do que nunca! Isto é, se a categoria filosófica do sujeito hoje é alegremente descartada como pertencendo a paradigmas “superados”, a categoria práxica e primordialmente econômico-política do indivíduo recrudesceu de modo inédito, e pode ter cooptado discursos “desconstrutivos” aparentemente de vanguarda.

II

No essencial, a suspeita dos Becks aponta para um “momento de transição” no modo de produção social (o que não significa que esteja na iminência de ser substituído, muito ao contrário). O momento estaria a requerer uma atualização ideológica que permita ao sistema alcançar ainda mais eficácia. Ora, se a individualidade individualista for tão ou mais funcional para o sistema produtivo capitalista na pós-modernidade do que o foi na modernidade, então, para deixá-la mais adaptada às condições da era “digital”, seria preciso “desconstruir” e, ao mesmo tempo, “reconstruir” essa individualidade. Mediante o que pareceria uma alteração profunda de autoimagem, manter-se-ia, ou melhor, exacerbar-se-ia o que vem funcionando há, pelo menos, trezentos 4


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 anos. Tenho sustentado há algum tempo que as idéias políticas de Richard Rorty são as que estão em melhores condições para realizar a tarefa de atualização da ideologia individualista. A versão de individualismo subjacente à “utopia da sociedade completamente liberal” – aquela romanceada em Para Realizar a América (Rorty, 1999b) – é a mais sofisticada possível e a mais completamente eficaz para um mundo aparentemente laicizado e propositalmente anômico, um mundo de subjetividades “em rede” e “em fluxo”. Isso é possível, em primeiro lugar, porque Rorty conseguiu um feito inédito: sendo eminentemente liberal, foi capaz de incorporar toda a tradição gauche e torná-la “compatível” com o liberalismo, por meio da figura bizarra, mas plausível, do “ironista liberal”. Mas seu principal mérito é o de conseguir converter o ordenamento econômico compulsório de tornar-se indivíduo numa obrigação a ser cumprida suave e alegremente, na medida em que apenas sugere e persuade – e nunca força ou “prova argumentativamente” – que nada é mais do auto-interesse dos indivíduos do que serem indivíduos (individualistas, é claro)! Sendo talvez o mais sagaz porta-voz cultural do que Baumann (p. 69) chamou de “estágio líquido” da Modernidade, o próprio Rorty é capaz de nos dar conta do que pensam seus críticos esquerdistas a respeito de suas posições políticas:

Richard Bernstein says that my views are “little more than an ideological apologia (grifo do autor) for an old-fashioned version of Cold War liberalism dressed up in fashionable ‘post-modern’ discourse”. (...) They[3] see our country as embodying everything that is wrong with the rich posEnlightenment West; They see ours as what Foucault called a “disciplinary society”, dominated by an odious ethos of “liberal individualism”, an ethos which produces racism, sexism, consumerism and Republican presidents. By contrast, I see America as (...) a good example of the best kind of society so far invented. (Rorty, 1999c, p. 4, grifos nossos) Alinhando-me inteiramente a essas críticas, reputo que o resultado final das propostas políticas de Rorty, a despeito de suas declarações sugerirem o contrário, é um claro conservadorismo liberal – de que o nacionalismo americano é apenas a face mais, digamos, “despudorada”. Ainda que ele tente se afastar das suspeitas essencialistas que lançaram o pensamento liberal nas dificuldades de legitimação que conheceu desde o princípio (Bellamy, p. 9 et seq.), tudo o que sua utopia de individualidade e solidariedade ao modo liberal consegue alcançar é a preservação “pós-moderna”, descentrada, desrotinizada e num patamar “fora de alcance crítico”, do inarredável valor social, político e econômico do indivíduo burguês tradicional. 5


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 Para Rorty, somente se a individualidade de um indivíduo for exacerbada é que sua vida pode ser “bem sucedida” (1989, pp. 23-43). É em parte por isso que, no sentido indicado, ele é o pensador cujas idéias representam o exemplo mais bem acabado de individualismo e a quem a crítica do individualismo deveria se dirigir preferencialmente. Mas é claro que apenas isso não seria suficiente. Outros autores, sobretudo Nietzsche, o “poeta forte” a quem Rorty invoca constantemente como exemplo de uma “vida bem-sucedida”, já haviam feito uma opção muito clara nesse sentido. De fato, é um sintomático movimento de denegação e dissimulação em torno à opção preferencial pelo individualismo o que confere às suas idéias a sofisticação ideológica que reputamos. Denegação e dissimulação que se apresentam como ambigüidade: por meio da figura do “ironismo liberal”, Rorty projeta uma solução de compromisso entre as dimensões do “público” e do “privado” que, como em toda a tradição liberal, são inteiramente inconciliáveis. Para evitarmos equívocos na compreensão do “ironismo liberal”, devemos reconhecer a distância que essa figura guarda com relação às formulações tradicionais do individualismo. Somente se compreendermos tal distância será possível aquilatar corretamente a peculiaridade da metáfora ironista da autocriação privada – se comparada a versões de individualismo mais, digamos, “grosseiras”. É essa distância que torna a ambigüidade presente em Rorty uma sutil cortina de fumaça que dissimula a ideologia liberal da “oposição determinada” (entre indivíduo e sociedade) em “tensão insolúvel” ou “incompatibilidade radical” (entre o público e o privado). A estratégia consiste em combinar dois movimentos paralelos de elaboração teórica sobre a individualidade. Num deles, jamais é admitido que o indivíduo tenha precedência em face da comunidade. É nesse primeiro plano que se encontra, por exemplo, sua recusa da forma essencialista do self, tal como os primeiros liberais a defendiam, preferindo sempre utilizar a expressão invenção do indivíduo, em vez de descoberta dos elementos intrínsecos da individualidade dos indivíduos. É que Rorty sabe perfeitamente que o indivíduo, como categoria politicamente relevante, em sua condição de “suporte de direitos naturais inalienáveis”, é uma invenção filosófica ocidental da Era Moderna: “(…) I’d plunk for the view that human rights are, like anesthetics, recent, ingenious, Western inventions…” (Rorty, 1999a, p. 3, grifos nossos). Poder-se-ia chamar a esse movimento inicial de “redescrição do self”. Todavia, considerando o segundo movimento de pensamento, esta mesma passagem deixa claros os motivos pelos quais fica patente a opção rortyana pelo individualismo: embora inventada recentemente, a ficção dos “inalienáveis direitos humanos individuais” é, senão a melhor de todos 6


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 os tempos, ao menos extremamente engenhosa. Sem se considerar individualista, Rorty é um dos pensadores que defende mais vigorosamente a invenção moderna do indivíduo. De fato, são os modos utilizados por Rorty para tornar essa ficção menos sujeita a críticas do que antes que precisam ser revistos criticamente. A despeito da dissimulação gerada pelo lado “solidarista” de suas proposições políticas, há em todas elas uma alegre continuidade com a maneira particular de entender o indivíduo – a individualidade burguesa – que, ao fim e ao cabo, revela-se portadora de uma imensa carga de exclusão para a maioria da população mundial que não logra ser indivíduo de facto, e opressão para quase todos que, sendo de fato ou apenas de jure, não têm como desfrutar de uma sociabilidade efetivamente fraterna. Se compreendermos que o que está por trás de seu primeiro movimento de redescrição, isto é, de distanciamento das principais metáforas tradicionais, é a intenção de uma revalorização, entenderemos porque os dois movimentos são realizados com uma única operação, que é a introdução de um novo vocabulário para dimensionar o que significa “ser indivíduo” hoje: é nisso que consiste seu segundo movimento, que poderíamos chamar de reliteralização do self. Em suma, para responder à pergunta sobre como um indivíduo concreto se torna um eu, Rorty mostra que o sentido da individualidade consiste, primariamente, em ser capaz de fazer uma autodescrição original – uma redescrição de si mesmo que não seja nem objetificável, nem subsumível às descrições de “si mesmo” feitas por outros indivíduos (Rorty, 1989, pp. 23-43). Nesse sentido, o caminho tomado por Rorty é, simplesmente, seguir as pegadas de Nietzsche. Ao descartar a noção tradicional de verdade, identificada com a idéia de um “conhecimento de carga” [4] do universo, Nietzsche teria mantido a possibilidade de que pudéssemos identificar as marcas cegas que nossos comportamentos individuais apresentam. Tal identificação não seria uma descoberta do que sempre-já foi uma marca cega, o encontro do que foi simplesmente deixado por outros em nós, mas, sim, o processo de inventar uma nova – a nossa própria – linguagem. Enquanto o indivíduo aceitar ser descrito unicamente por jogos de linguagem herdados, isto é, os que tornam familiares para nós nossas marcas cegas, ele não terá como identificar sua idiossincrasia. Tudo o que vai conseguir é ser visto como exemplar de uma classe dada. Isso é o que Nietzsche chamaria de “fracasso como poeta”, ou fracasso na tentativa de ir “além do homem”. Tal indivíduo não terá construído um novo jogo de linguagem que, ao menos em parte, redescreve um eu segundo a originalidade de seu criador. São essas mesmas tintas, agora diluídas com idéias de Davidson, que Rorty usa para compor 7


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Ano I, número 1, 2009 seu conceito de ironismo, o movimento pelo qual um indivíduo promove sua autocriação autônoma na esfera privada. Retomando a inspiração nietzscheana, ele retrabalha o âmbito do privado por meio do “empréstimo” de uma idéia davidsoniana[5]: trata-se da distinção entre o literal (linguagem antiga) e o metafórico (linguagem nova), que Davidson propõe para explicar as questões relativas à “aprendizagem da linguagem” e à “criação de novas linguagens”. Utilizando essa distinção em seu próprio contexto de afirmação da individualidade, Rorty a emprega para descrever o processo de individualização – a identificação de marcas cegas – como autocriação privada. Assim, tudo o que o “realizador forte” (poeta) pode fazer é sair de uma perspectiva herdada, literal, para uma perspectiva criada por ele mesmo, uma nova metáfora. Rorty reconhece que os indivíduos herdam suas primeiras perspectivas da dimensão social em que vivem – são primeiro socializados e só depois serão capazes de criar a si mesmos. Mas reconhecer a primeira herança não significa valorizá-la tanto quanto aquilo que deve ser produzido pelo próprio indivíduo. Então, independente de quão relevantes e decisivas para o indivíduo essas perspectivas iniciais possam ser, tudo o que importa é mesmo, ao final, ser capaz de romper com elas. Mas cabe então perguntar: levar as próprias idiossincrasias até às últimas conseqüências não significa, em última análise, exatamente o tipo de risco social que o individualismo tem proporcionado como ideologia e prática dominantes? É válido que se defenda o valor da “novidade” – apenas porque é novidade – mesmo sabendo o quanto de sofrimento e crueldade a afirmação idiótico-idiossincrática de uma individualidade pode causar? É satisfatório que se defenda o valor das criações humanas apenas em termos da oposição muito questionável entre “verdade estável” e “inovação estética”? Além disso, é possível admitir que o preço da inovação seja mesmo o abandono da dimensão “pública”, na medida em que é preciso uma “excomunicação” de toda literalidade para tornar essa autocriação privada livre da interferência de outros vocabulários? Enfim, do ponto de vista ético-político, que forma de relação deveria ser privilegiada entre os “indivíduos” (os que construíram uma individualidade significativa por meio da invenção de um vocabulário rico de metáforas, isto é, imagens que escapam à literalidade), na medida em que sua origem é sua socialização lingüística? É o caso de que todos abandonem a literalidade que é sua herança para poderem ser indivíduos? E que comunidade poderia restar de indivíduos que só estivessem interessados nas próprias “linguagens privadas”?

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Infelizmente, o que se pode depreender das idéias de Rorty é uma reiteração da hierarquia liberal burguesa – primeiro o indivíduo, depois a comunidade. E se não admite mais os pressupostos metafísicos da vontade de poder, se reputa o sujeito uma ficção insustentável, ele não abre mão do desejo de perfeição pessoal que acompanha o conceito/mandamento cultural e econômico do ser indivíduo. É o que, supostamente, o leva a defender tão ardorosamente o caminho da autocriação privada. René Arcilla diz que esse caminho, para Rorty, é “erótico” – no sentido de “alguma conexão” –, isto é, que passa necessariamente pela “conversação com os outros”: “Rorty is prepared to agree with Cavell and Bloom that the animating spirit of liberal learning is eros” (Arcilla, p. 19). E o próprio Rorty costuma indicar que a autocriação privada é resultante de uma “conversação”. Porém, como bem nos adverte Dianne Rothleder, essa conversação em Rorty é mais “espiritual” do que “fáctica” (Rothleder, p. 17-42). É mais com a “cultura livresca” do que, propriamente, com outros seres humanos reais. É uma conversação realizada, em último caso, no recesso do próprio escritório, com os livros, e não no cotidiano com outras pessoas. Provavelmente porque essa conversação tem que ser seletiva e qualificada. Assim, a “democracia” sonhada convive com o “elitismo” dos gênios. É mais uma “auto-edificação” do que propriamente uma “conversa”. Em síntese, embora mediado por outros, o desejo liberal de perfeição é guiado muito mais pela expectativa final de uma “autoconversão” do que pelo prazer em si da “conversação”. De toda maneira, o que Arcilla quer dizer, tendo em comum com Rorty o “desejo de perfeição”, é que o “sentido final” dessa conversação é pura e simplesmente o de uma “distinção individual”, na esperança de se tornar um dos eleitos predestinados. Poder-se-ia acrescentar: um ícone narcísico (Lasch) da sociedade do espetáculo (Débord). Mas, com isso, a figura da autocriação privada acaba por revelar sua principal função política. Ela é um palimpsesto que contém, sob sua aparência metafórica, as camadas raspadas das literalidades de agora, que um dia já foram metáforas: vocação, predestinação, razão, sujeito e, por último, a própria vontade de poder. Na individualidade, tal como definida por Rorty, segundo Arcilla, por exemplo, podem conviver perfeitamente o anti-socratismo radical de Nietzsche e o senso neo-pragmatista de uma “comunidade de aprendizagem liberal” inspirada pelo modelo de Sócrates. É que o educador liberal 9


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Ano I, número 1, 2009 Rorty parece conseguir reformular “the Cartesian problem of reason in the light of Nietzsche’s critique, so as to disjoin it from the problem of consciousness while distancing it from some of the more disturbing, nihilistic implications of Nietzsche’s arguments” (Arcilla, p. 21, grifo nosso). Mas, afinal, que implicações perturbadoras e niilistas decorrem dos argumentos de Nietzsche? De acordo com Lisbeth Sagols, o caminho de Zaratustra termina na mais absoluta solidão, sem que ele jamais tenha encontrado o outro. Ao não reconhecer a igualdade inter-humana, Nietzsche praticamente impossibilita o reconhecimento mútuo, uma vez que não podemos estar livres, uns diante dos outros. Por conta, talvez, de sua oposição ao “enfraquecimento do homem”, provocado pelas virtudes cristãs, ele tem empanada sua visão das necessidades básicas humanas, principalmente o reconhecimento, a simpatia, a segurança, a companhia. É por isso que suas idéias éticas não admitem a implicação recíproca entre indivíduo e comunidade e não incorporam a vida em comum, a solidariedade e a reciprocidade, já que a “afirmação da vida” exige que se circunscreva a fidelidade do indivíduo apenas a si mesmo (Sagols, p. 213 et seq.) Naturalmente, como Arcilla faz questão de destacar, o aspecto solidarista da figura de compromisso que é o ironista liberal não permite que Rorty aceite claramente essa conseqüência. O que faz seu individualismo parecer “recalcado”, conforme se veja por um ângulo e, ao mesmo tempo, “triunfante”, conforme se veja por outro. É, em síntese, o que estivemos chamando de ambigüidade. Onde poderia estar o truque ou, se preferirmos, o auto-engano? É que, no essencial, seu pensamento combina a idéia de uma solidariedade a ser ampliada “no futuro”, mediante uma adequada (mas não exagerada) redistribuição dos bens “materiais”, enquanto a individualidade (leia-se, a acumulação de bens “simbólicos”) deve ser criada já “no presente”. Ocorre que todos já sabem que hoje os bens “materiais” (dimensão da solidariedade?) são mais “simbólicos” (dimensão da liberdade?) do que nunca. Assim, Rorty é o pensador que melhor mostra como a promoção da solidariedade por meio do pensamento liberal dos últimos dois ou três séculos esteve sempre voltada para a garantia jurídica das liberdades individuais. Ou seja, ele é o “historiador” que melhor conta a história de que a luta pela solidariedade sempre serviu à promoção da liberdade (com prejuízo, quase sempre, para a própria solidariedade). Tendo em vista todas essas dificuldades, não parece de nenhum modo claro que o desejo de autocriação privada possa conviver assim tão bem com o compromisso da solidariedade pública, a menos que o valor da solidariedade seja negativo (Rothleder, p. 43-54). Assim, no melhor dos casos, haveria uma constante indiferença generalizada (a “democracia social”?) e, no pior, haveria apenas 10


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Ano I, número 1, 2009 uma trégua de duração indeterminada na guerra de todos contra todos (o “capitalismo selvagem contido pelo ‘marco regulatório’ do Estado democrático liberal”?), restando para o “espaço público” apenas uma espécie de contrato formal, tais como as regras dos procedimentos representativos políticos que conhecemos. Lamentavelmente, quase ao modo de uma profecia auto-realizável, o desejo rortyano de que a cultura liberal seja “a última revolução conceitual” (Gander) talvez esteja perigosamente próximo de ser realizado, já que a “ameaça pós-moderna” – a renúncia aos fundamentos ou, de outro modo, o reconhecimento da ausência de fundamentos – já se cumpriu: não são mais necessários o self tradicional, nem nenhum tipo de “garantia filosófica” para o sujeito do liberalismo. O indivíduo pós-moderno se sabe e se quer completamente individual e idiossincrático, sendo “sujeito” ou não. Então, do ponto de vista da promessa ideológica implícita no neoliberalismo pragmatista de Rorty, basta a “esperança” de que “um dia seremos mais solidários” e também “seremos eus” (não necessariamente nesta ordem). Do ponto de vista ideológico, para Rorty, a história poderia acabar aqui... Em conseqüência disso, agora fica claro que a renúncia rortyana ao aspecto metafísico e às “implicações perturbadoras” da obra de Nietzsche jamais colocou em perigo o projeto de uma individualidade liberal para os novos tempos, uma que se deseja também “solidária” [6]. E é exatamente por isso que se deve pensar numa crítica à altura do vocabulário “pós-moderno” rortyano, cuja estratégia política é redescrever o acessório para reliteralizar o essencial. Portanto, independente da sofisticação pós-moderna e pós-subjetivista na forma, do ponto de vista do conteúdo, Rorty mantém o alinhamento com a grande tradição do pensamento liberal no que tem de mais essencialmente subjetivista ou individualista: o isolamento e a precedência do individual sobre o comunitário devem, não apenas ser mantidos, como também defendidos a todo custo. Em Rorty, essa precedência é tornada sutil e elegante, quase mesmo simpática. Ela adquire a coloração de uma precedência política: do ponto de vista da hierarquia dos objetivos sociais, a socialização é apenas um meio para o fim desejado, a saber, a individuação bem-sucedida. Mas não se nega, é claro, a necessidade da solidariedade, isto é, da comunidade que torna, na prática, qualquer socialização (e qualquer individualização) possível. Embora Rorty negue haver uma hierarquia em sua utopia social, ao afirmar que a necessidade que todos temos de “tornarmo-nos indivíduos” é um objetivo tão importante quanto a justiça social, sua escolha pelo modelo de educação liberal-burguesa por meio da auto-edificação, sua valorização acrítica do modo “real” de funcionamento das instituições “democráticas”, seu 11


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Ano I, número 1, 2009 apreço pelo capitalismo e sua fé religiosa no american way of life são pressupostos carregados demais com o valor fundamental da individualidade exclusiva e isolada dos indivíduos. Assim, tudo o que ele de fato consegue projetar como utopia de uma educação liberal é a manutenção pura e simples da ideologia hegemônica de que o que existe deve girar em torno dos indivíduos considerados isoladamente em seu processo de autogênese. O que significa conservar intactas nossas atuais práticas políticas e educacionais, pelas quais tudo gira em torno de alguns indivíduos e sua realização privada[7]. É verdade que, ao não admitir sustentar nada parecido com o self tradicional, Rorty simplesmente abandonou os pressupostos tradicionais em que esta noção metafísica se ancorou. Mas sua recusa do self tradicional se inscreve no quadro geral da “defesa da vida democrática”. Ou seja, onde se lê a “recusa da autoridade do conhecimento sobre a liberdade" (defesa da “democracia”), devemos entender a defesa visceral em favor do liberalismo, do capitalismo, do nacionalismo americano e dos valores essenciais burgueses, inclusive e principalmente contra o comunismo, sempre considerado a quintessência do totalitarismo (Rorty, 1989, p. 169-188). O que, a esta altura, dispensa comentários...

IV

Em vista das considerações precedentes, qualquer luta política e educacional efetivamente crítica hoje tem que levar adiante o plano de uma reformulação completa da autocompreensão cultural dominante. Reformulação que deve ser levada a efeito também, entre outras estratégias, por meio de redescrições vocabulares hábeis, capazes de mostrar aos indivíduos fortes do mundo o sofrimento que causam em função de estarem agarrados a uma auto-imagem social e politicamente desastrosa, e aos indivíduos fracos o quanto sofrem inutilmente por compartilhar dessa crença. Dizse “também” porque a suposição de que apenas redescrições vocabulares fossem suficientes seria um tipo de delírio semelhante àquele detectado pelo Marx da Ideologia Alemã, isto é, seria um retorno inaceitável à crença idealista de que as idéias são originadas “na mente”, ou que elas “caem do céu”, e não que são resultantes de conflitos, lutas e embates reais pela posse, distribuição, circulação e acumulação dos bens “materiais” e “simbólicos”. De todo modo, embora não sejam originadas “na mente”, as matrizes ideológicas têm uma 12


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Ano I, número 1, 2009 existência práxica cuja importância nos é explicitada diariamente no embate político pela determinação e desenvolvimento dos currículos escolares, por exemplo. E o nada ingênuo Rorty reconhece perfeitamente a importância da educação escolar básica na formação da auto-imagem necessária à reprodução social, isto é, a necessidade de inculcação ideológica nos membros recémchegados:

There is no such thing as human nature, in the deep sense in which Plato and Strauss use this term. (…) There is only the shaping of an animal into a human being by a process of socialization (…) and education for freedom cannot begin before some constraints have been imposed. (… ) Primary and secondary education will always be a matter of familiarizing the young with what their elders take to be true, whether it is true or not. It is not, and never will be, the function of lower-level education to challenge the prevailing consensus about what is true. (Rorty, 1999b, p. 117-8) Em resumo, ainda que Rorty reconheça a importância da “esfera pública” e se mostre efetivamente interessado em promover nela uma diminuição da crueldade, mediante uma repressão educativa sobre os impulsos mais agressivos do “animal humano individual”, os pressupostos individualistas de suas posições educacionais as tornam incapazes de promover uma verdadeira mudança política. Logo, se parece razoável defender a liberdade e a felicidade dos indivíduos, não é razoável esperar que uma sociedade que já optou há tanto tempo pela cultura da “auto-invenção privada” possa incluir em sua forma de vida, com o mesmo peso e valor, uma outra cultura que lhe é, de fato, muito suspeita e estranha, a saber, a cultura da “invenção social solidária”. E já que “ser individualista” e “ser solidário” são coisas opostas, só seria possível conciliálas mediante a sugestão de que é possível um tipo especial de “solidariedade individualista”, que consiste exatamente em solidarizar-se no “ser individuo”. De fato, a conclusão para todos os argumentos aqui desenvolvidos aponta para isto: a solidariedade liberal de que Rorty tanto se orgulha nada mais é do que a solidariedade mínima possível. Mediante o ideal liberal da “tolerância”, as idéias políticas de Rorty desenham os contornos de uma sociedade e de uma educação de individualistas solidários, isto é, de uma sociedade cujo foco é a manutenção (e até ampliação) do isolamento dos indivíduos em suas esferas privadas, ainda que aceitem se congraçar no culto dominical e neste ou naquele encontro acadêmico. Como Tocqueville já havia mostrado, nada agrada mais ao domínio do que a atomização dos indivíduos e seu encasulamento em suas idiossincrasias. Assim a simpática idéia da tolerância 13


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Ano I, número 1, 2009 liberal e do “live and let live” nada mais é do que a estratégia adequada para tornar duradouramente eficaz a governabilidade dos indivíduos. Ou seja, é a ideologia apropriada para defender a liberdade dos que possuem, ao prevenir os riscos à sua segurança e sua propriedade, cuidando para não tornar inteiramente impossível a vida para os que não possuem e evitando que eles ocasionalmente se rebelem. Para encerrar estas breves reflexões sobre a educação individualista da sociedade liberal na era do capitalismo digital, gostaria de insistir na necessidade de atualização crítica da resistência política diante da nova feição que vai assumindo a ideologia dominante. Essa atualização se deve, em parte, ao fato de que o antagonismo direto não conseguiu nada além de deixar as oposições tradicionais em estado de virtual knock-out. Mas isto não ocorreu apenas pela inferioridade em forças diante do adversário. De fato, o insucesso revolucionário se deu em boa parte devido à imprevista identidade com o adversário: a origem comum na ideologia individualista moderna. Foi principalmente isto o que levou as esquerdas revolucionárias a apropriar em diferentes graus o mesmo vocabulário de seus contendores, enfraquecendo-as significativamente:

Los grandes materialistas y escépticos del siglo XVI, la extrema izquierda de la Ilustración y sus herederos socialistas y comunistas justifican su filosofia “subversiva” en los mismos términos del ideal humanista. El marxismo constituye uma parte integral de tal tradición. El que Marx y Engels se consideraran a si mismos como los herederos de la Ilustración, de la Revolución francesa y de la filosofia idealista alemana, era algo más que uma expresíón retórica. La Libertad, la Igualdade y la Justicia son términosclave en El Capital de Marx; y no es casual que su teoria econômica este precedida (em um sentido más que cronológico) por la filosofia humanista de La Ideologia Alemana (1846) y de los Manuscritos EconômicoFilosóficos (1844), a la que a su vez completa. (Marcuse, p. 206, grifo nosso) É exatamente por esse motivo que se faz necessário revisar com todo cuidado os vocabulários teóricos e “de vanguarda” à nossa disposição, para os fins da transformação social. Precisamos rever tanto o código cultural mainstream em que fomos “literalizados”, como também aqueles que se nos afiguram como os mais “metafóricos” e mais “novidadeiros”, de modo a não repetirmos o mesmo equívoco da velha esquerda. Se mantivermos o essencial desses códigos, não conseguiremos elaborar metáforas efetivamente novas, isto é, imagens capazes de produzir mudanças políticas significativas. Assim, diante dos enormes desafios educacionais implicados na construção de uma 14


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Ano I, número 1, 2009 sociedade pós-individualista, seria muito proveitoso usarmos a sábia sugestão de Rorty em primeiro lugar contra ele mesmo: “When cultural traditions start making people unnecessarily miserable, they have outlived their usefulness and need to be replaced by other cultural traditions” (Rorty, 1999a, p. 4). Teríamos, para começar, que voltar aos currículos escolares e lutar aí para que os indivíduos fossem construídos em função da invenção social solidária e não para sua autocriação preeminentemente privada. Contudo, esses desafios só podem ser enfrentados se a resistência dos que não querem euforicamente responder à vocação do “ser apenas si mesmo e acima de tudo” não houver desaparecido por completo. Uma vez extinta, então, finalmente teremos nos tornado todos incapazes de esperança utópica numa sociedade de verdadeira fraternidade e de alegria.

REFERÊNCIAS

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[1] Por exemplo, alguém paralítico. Não se quer entrar aqui na discussão do estatuto de mulheres, crianças, escravos etc. na democracia grega. [2] A regulamentação educacional brasileira em vigor também não foge a essa regra. [3] Os críticos esquerdistas. Nota nossa. [4] A expressão “conhecimento de carga” se refere aqui ao conjunto de todas as características peculiares de uma coisa, tal como o sujeito ou, nesse caso, o próprio universo. Um conhecimento de carga de todo o universo seria idêntico ao conhecimento da “Verdade”. [5] Cf. Rorty, 1989, p. 10, n3. Ele registra que extrapola ad libitum as perspectivas de Davidson e reconhece que este não pode ser responsável pelas interpretações alheias. De fato, o próprio Davidson costuma replicar às interpretações rortyanas de suas idéias. [6] Nesse sentido, são inteiramente infundadas as preocupações de um educador liberal como Arcilla, ocupado em tornar Rorty mais “aceitável” nas discussões do perfeccionismo moral que tem interlocutores como Hutchins, Cavell e Bloom. [7] Os educadores “críticos” já sabem que a escola da “padronização” não passa, na verdade, de uma escola de “competição”: “Que vençam os melhores!” Mas, levantando a polêmica, não seria o caso de perguntar se a escola da “diferença”, louvada por tantos desses educadores atuais, não seria apenas a face ainda mais perversa desse processo, isto é, uma escola que está mais capacitada para levar o mandamento de “tornar-se indivíduo” a todos e a cada um (portando a inalcançável promessa de “não excluir ninguém”) e, assim, cumprir com muito mais eficácia os imperativos

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Ano I, número 1, 2009

A Concepção de filosofia em Dewey e o caráter educativo das Instituições: primeiras aproximações ao cientismo deweyano Por Leoni Henning

1. Introdução - Em sua obra A Reconstrução na (da) Filosofia, publicada originalmente em 1920 e mais tarde republicada, em 1948, com uma extensa introdução, John Dewey (1859-1952) chama a atenção para as particularidades do mundo pós-Ia Guerra Mundial. Daí a sua forte sugestão da necessidade de uma reconstrução da disciplina de filosofia já expressa no título da referida obra. Na verdade, o livro resultou de uma série de conferências que Dewey realizou na Universidade de Tóquio, no Japão, no final do ano anterior. Para realizar este empreendimento intelectual, o filósofo norte-americano parte de uma premissa essencial comungada como um dos notáveis representantes do pragmatismo clássico e propositor de teses que desembocam na filosofia social. Ou seja, para ele, o trabalho filosófico deve se originar a partir dos problemas humanos reais que emergem do contexto em que os homens vivem. Assim, enfatiza que a vida da comunidade humana se desenvolve segundo um movimento de mudanças e de crises, o que motiva novos problemas para a filosofia se ocupar. Isto posto, 1


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Ano I, número 1, 2009 entende-se o porquê dos problemas filosóficos variarem de tempos, lugares e épocas diferentes. Somente em considerar-se assim, é que o conhecimento filosófico teria sentido, acredita Dewey, passando logo a se ocupar da elaboração de uma análise criteriosa sobre as raízes favorecedoras da crise da humanidade nas primeiras décadas do século XX e das amarras circunstanciais em que a filosofia se encontrava no período e que a tornava incapaz de se aliar na busca de saídas para as incertezas e ansiedades humanas. Em sua análise, Dewey entende que a Ia Guerra Mundial fez com que a humanidade deixasse para traz o seu sonho de harmonia social e de um progresso crescente, conduzido pelo espírito otimista que irmanava todos por um ideal de felicidade e de paz. Lembremos que a característica própria do século XIX foi a certeza entusiasmada nos resultados positivos que a ciência promoveria à humanidade. Basta recuperarmos as teses positivistas sistematizadas no Sistema Positivo, elaborado por Auguste Comte (1798-1857), para resgatarmos o vigor do otimismo implantado no ideário filosófico do período. Na realidade, o que se depreendeu dessa experiência no século subseqüente foi o necessário enfrentamento das catástrofes advindas do conflito mundial, uma forte insegurança e um crescente pessimismo na sociedade humana. Dewey aponta o mesmo estado de perturbação entre os filósofos, os quais recorriam às técnicas e aos formalismos ou então, aos modelos ideais conservados no passado, como bálsamo às suas ansiedades, ao se sentirem incompetentes para lidarem com a nova realidade. No entanto, assevera que esta busca por um refúgio é inapropriada e se expressa assim: Os problemas com os quais uma filosofia relevante ao presente precisa lidar são aqueles que emergem sempre da dimensão geográfica humana e com aguda intensidade de penetração; este fato é uma indicação desafiadora da necessidade para um tipo diferente de reconstrução como esta que agora está em evidência (DEWEY, 1957, p. vii –). Com efeito, as teorias oriundas do passado - longe de serem menosprezadas pelo autor, o qual afirma a sua significativa importância exatamente por elas se reportarem aos problemas do seu 2


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Ano I, número 1, 2009 tempo - se tornaram, no entanto, anacrônicas em relação aos problemas do mundo revolucionado pela ciência, cujo conhecimento embasado numa nova postura essencialmente investigativa, provocou uma ordem econômica condizente marcada pela indústria e por uma política própria. Nesse sentido é que o autor propõe um método de pensamento, de conhecimento e de ação adequado ao mundo moderno. Defendendo o método da inteligência como alternativa ao exercício teórico realizado pela ‘pura racionalidade’ - como fora outrora entendida a dimensão da razão humana - Dewey estabelece como investigação, o método da observação, da formulação de hipóteses e o modo experimental de conhecer as questões humanas e morais, propondo assim, o raciocínio reflexivo e ativamente ligado às questões que emergem das circunstâncias presentes e que exigem solução. Desse modo, o filósofo norte-americano aponta para a necessidade de uma nova abordagem sobre o conhecimento – decorrendo daí uma necessidade de ”reconstrução” da filosofia - uma vez que, desde a Grécia Clássica, houve o estabelecimento da cisão entre teoria e prática, ou seja, uma separação entre o saber e o fazer, significando a filosofia como um apelo pré-científico diante dos problemas do mundo natural e humano, pré-tecnológico no âmbito da indústria e pré-democrático em relação à moderna instância política. Diante disso, Dewey contesta mostrando que a necessidade de estar conectada com os problemas humanos reais, concretos e imediatos é um imperativo à filosofia, a qual deve ainda mais, estar sempre ligada às crises e tensões já indicadas no futuro para então poder orientar os homens. Ocorre que os sistemas filosóficos construídos pelos antepassados se baseavam em verdades absolutas e em princípios imutáveis representados principalmente pelos conceitos de Ser, Natureza e Realidade, cujos preceitos, na maioria dos casos, lhes garantiam o poder e a autoridade, os obrigando a desprezarem aquilo que era “simplesmente humano” ou da ordem experiencial, mundana e natural. Mesmo os pressupostos das ciências naturais apresentavam no passado igual caráter, a saber, a imutabilidade e independência do tempo e do espaço e das 3


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 partículas materiais que aí estão. Todavia, com o desenvolvimento do conhecimento humano, percebeu-se que apenas o ‘processo’ que realizavam é que seria universal, acredita o autor. Insistindo em suas críticas aos dogmatismos que negam ou desprezam a mudança, Dewey defende a ‘universalidade relativa ou relacional’. Enquanto que os primeiros revelam uma postura fundamentada em teoria cientificamente controladora - quase sempre já desacreditada - se posicionando de fora e de uma dimensão de superioridade voltada a si própria, a universalidade relacional de que nos fala o autor, se sustenta na aplicabilidade essencial das teorias. Esta convicção estabelece que o aspecto ‘universal’ da nova proposta revela, antes de tudo, as condições e oportunidades reais da vida humana da qual emanam os fatos e os fenômenos que são sondados à luz de novas hipóteses colocadas em prática dentro de uma visão experimentalista de conhecer. Além disso, este espírito observacional e universalista é que possibilita a formação de sistemas temporal e espacialmente mais amplos, ligando os fatos e os fenômenos aparentemente isolados através de uma atitude mais ativa de aplicabilidade de hipóteses e, consequentemente, de rejeição a um ponto de vista conclusivo e definitivo de conhecimento. Trata-se, nesse caso, do princípio que estabelece a íntima e dinâmica relação do todo com as partes, como guia do trabalho inteligente humano - caro aos pragmatistas de linhagem deweyana. Ciência seria, segundo o seu modo de entender, mais uma busca daquilo que poderia ser idealizado do que a sua posse definitiva. Isto quer dizer que os hábitos de pensar cristalizados, seja na filosofia ou na ciência, se afiguram a Dewey como resultantes da rotina mostrando-se embotadores de elaborações possíveis de serem feitas à luz de novas perspectivas sobre os fenômenos e sobre a realidade. Na verdade, para ele, a linha fronteiriça entre os dois campos de conhecimento é muito tênue, mesmo que se diga que a ciência permite maior aplicabilidade dos saberes de modo mais delimitado e específico, ficando a filosofia restrita a um tipo de saber mais compreensivo e não diretamente transferível por uma forma útil e imediata de investigação. Com 4


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Ano I, número 1, 2009 efeito, pela história das ciências sabemos que nem sempre foi assim, nos adverte o filósofo. Para ele, o chamado ‘campo científico’ passou por um momento de discussão muito parecido com aquele mais de traço filosófico. Dewey chama a nossa atenção sobre a penetração da ciência nas diversas instâncias da vida moderna e, também, sobre a necessidade de recuperarmos a vitalidade da filosofia diante das questões relacionadas ao período do pós-Guerra, uma vez que o homem, à época, estava envolto em crise principalmente motivada pela contraposição entre o campo moral-religioso (fundamentado numa tradição impregnada por princípios absolutos e imutáveis) e o campo científico (orientado por um espírito renovador e por mudanças amplas e rápidas, mas benéficas aos assuntos práticos da vida humana). Tal situação, segundo o autor, tornou-se o principal problema da filosofia do “mundo moderno”, uma vez que ela própria pode localizar esse profundo dualismo das duas instâncias. De um lado, surgem as questões de fundo moral, que são atestadas por uma supremacia do poder espiritual superior e relativo ao reino do Ser, estando ao encargo da religião; e, de outro lado, as questões de ordem prática e material que estariam sob a jurisdição da ciência. Portanto, não seria de bom grado, nesse caso particular da época, que a ciência se intrometesse nas questões de ordem espiritual. Diante dos resultados dessa situação profundamente crítica, denunciada por muitos como sendo de imensa desordem, ansiedades e incertezas e sem perspectivas de solução imediata, Dewey aponta para uma necessária revisão do conhecimento, da postura e da prática humana, na busca de saídas para os problemas aparentemente insolúveis. Assim, o autor enfrenta os questionamentos sobre a ciência moderna como sendo ela a origem do mal presente no período em discussão – por exemplo, pela presença e ameaça da bomba atômica à sociedade - indicando a necessidade de formulação de uma reconstrução generalizada, incluindo-se nela, a moral. O filósofo coloca como requerimento para que esta discussão fosse 5


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Ano I, número 1, 2009 aprofundada, a realização de uma investigação acurada sobre as condições institucionais nas quais, a ciência se desenvolveu e vicejou incólume. Além disso, sugere uma investigação desde as situações que deram origem à ciência, ainda num tempo pré-científico. São dele as palavras: Aqui, então, está o trabalho reconstrutivo que precisa ser feito pela filosofia. Ele precisa ser realizado para o desenvolvimento da investigação nos assuntos humanos e daí em assuntos morais, o que os filósofos dos últimos séculos fizeram para a promoção da investigação científica em condições físicas e fisiológicas e aspectos da vida humana (DEWEY, 1957, p. xxiii ). No entanto, Dewey vê aí um dilema. Pois, apesar de observar que quando a ciência desconsidera as questões sobre os “valores” em suas investigações acerca das questões humanas, acaba por produzir um conhecimento muito superficial. Mas, no entanto reconhece também, que quando ela se interessa pelos aspectos morais que envolvem tais temáticas, frequentemente esbarra em preconceitos e restrições postas pelas próprias instituições. É exatamente este estado acima descrito o que foi responsável pela instabilidade existencial e pela ansiedade misturadas a um clima de insegurança e de incertezas, próprias do período pósGuerra e que, de acordo com a visão de Dewey, estaria desafiando forçosamente a filosofia para um reexame e conseqüente reconstrução. O que seria esperado dessa reconstrução é descrito pelo autor do seguinte modo: [...] reconstrução pode ser nada mais do que o trabalho de desenvolvimento, de formação e de produção (no sentido literal) das instrumentalizações intelectuais (as “categorias”) que progressivamente dirigirão a investigação para fatos profundamente e inclusivamente humanos – isto é, moral – da cena e da situação presente (DEWEY, 1957, p. xxvii). Notadamente, a ciência é um conhecimento parcial e incompleto que não dá conta das questões especificamente humanas, abordando, em contrapartida, o mundo físico e natural com inigualável competência. A investigação científica se realiza a partir do mundo físico, no entanto, penetrou nas instâncias da vida moderna e encontrou uma moral antiga já sedimentada. Isso impõe uma reconstrução na própria filosofia que tem servido para resguardar uma moral já ultrapassada 6


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Ano I, número 1, 2009 pelos tempos modernos, tornando-se impeditiva aos avanços próprios de uma ciência ágil e investigativa, avessa aos valores perenes e ao espírito dogmático. 2. Origens do problema presente na modernidade ocidental - Ainda durante os séculos XVII a XIX havia uma presença importante dos resquícios cosmológicos e ontológicos na estrutura da cultura ocidental, mas que foram enfrentados, principalmente, pelas investigações realizadas por filósofos e cientistas da época. Estes últimos ofereceram aos primeiros um método de investigação que já indicou uma necessidade de reconstrução da própria filosofia. E foi a partir daí que se originou um problema sério, pois o método do conhecimento científico pressupõe uma identidade entre investigar e descobrir, promovendo uma auto-correção continuada no processo de conhecer, que leva ao abandono do velho e aceitação da novidade, de modo aberto e flexível numa busca em aprender tanto pelos êxitos quanto pelos fracassos. Em contrapartida, no mundo da moralidade tradicional, em que o “espiritual” e o “ideal” fazem parte de uma dimensão de superioridade e transcendência em relação ao mundo natural e material no qual transita a ciência, a atitude flexível sugerida pelo método científico desperta um sentimento de medo e de insegurança e, também, uma sensação de perigo e de ameaça destruidora. Tais esferas em que a atividade humana se realiza são consideradas segundo padrões de hierarquização distintos, ficando a ciência destinada ao tratamento das questões do mundo físico e material, circunscrita a uma investigação da ordem da percepção sensorial, não se voltando às questões de dimensão mais elevada da razão e da espiritualidade. Donde se segue que por se tratar de patamares distintos, com suas formas distintas de conhecer e de investigar, devem, a ciência natural e os costumes, ficar cada qual restrito à dimensão que lhe é peculiar, não permitindo a ingerência ou influência de algo próprio à ordem inferior, à instância da moralidade. Como resultado disso, assinala Dewey, deu-se a solidificação dos dualismos presentes na cultura ocidental, em especial, no que diz respeito à ruptura entre mundo físico e mundo espiritual, 7


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Ano I, número 1, 2009 o que vem exigir a reconstrução da filosofia diante de um conjunto de problemas postos e aprofundados pela modernidade. Na verdade, esse dualismo denota a conveniência do usufruto das vantagens práticas e da utilidade da ciência de um lado e, de outro, a manutenção intacta dos padrões de superioridade e de autoridade dos costumes e de suas crenças, fundamentada em princípios morais cristalizados. No entanto, não houve como perpetuarmos tal separação de modo rígido e permanente. A penetração de uma nova maneira de pensar foi inevitável, podendo ser citado, como exemplo, o movimento de secularização que foi gradual e amplamente estendido no mundo ocidental. Essas colocações postas por Dewey, apontam ora para uma aproximação ao positivismo no quesito “valorização do conhecimento científico e investigativo”, mas ao mesmo tempo, um distanciamento quando quer transportar a mesma racionalidade – ou espírito inteligente presente na ciência – à filosofia, como forma de enfrentamento crítico a qualquer espécie de moral dogmática, conservadora e imperativa a toda a humanidade, como foi o caso das formulações de Comte. Não podemos perder de vista a inclusão das propostas deweyanas no movimento crescente de secularização – no qual também devemos incluir as propostas positivistas - num contexto filosófico de debates sobre os problemas que afligiam toda a sociedade ocidental do início do século XX, em que encontramos uma sorte de proposições de diferentes matizes, indo das mais libertárias às mais conservadoras, como os movimentos de esquerda (anarquismo, socialismo e comunismo) e de direita conservadora, dentre os quais se destacam aquelas de raiz religiosa, entre outras. 3. Principais questões do início do século XX – Envolta em uma grande crise existencial de pósGuerra, a humanidade do início do século XX se viu em presença de um forte ataque contra a ciência movido pela crença de que a nova ciência e a moderna tecnologia seriam as responsáveis pelo mal de que padeciam. Como um segundo ponto a ser considerado, o autor nos mostra a crença dominante naquele contexto de que a natureza humana seria essencialmente maléfica, devendo-se 8


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Ano I, número 1, 2009 ser instaurada uma moral baseada numa autoridade extra-natural para a garantia do equilíbrio, da igualdade e da liberdade. Em terceiro lugar, o filósofo aponta para uma atitude dominante no período que insistia na necessidade de transferência a uma classe especial – originada das antigas instituições medievais – a orientação moral da humanidade. Esse conjunto de fatores mostra uma mistura particular do novo e do velho – causadora de tamanha situação crítica – e que, para o filósofo, estaria motivando a exigência de um comportamento investigativo estendido também ao campo da moral. Assim, são dele as palavras: [...] teria de haver um compartilhamento ativo no trabalho de construção de uma ciência humana moral, que serviria como um precursor necessário da “reconstrução”do estado atual da vida humana para a ordem e para as outras condições de uma vida mais plena do que o homem tem vivido até então.(DEWEY, 1957, p. xxxvi).

O filósofo pragmatista chama a atenção para um dos desafios intelectuais postos por essas questões, apontando para a exigência de uma análise e exploração sistemáticas sobre as relações da situação pré-científica, pré-tecnológica e pré-democrática do passado (o velho) com os valores implicados na situação presente em que grassa a investigação científica (o novo). Nesse sentido, ele ressalta o reconhecimento da sociedade da época no poder do conhecimento científico e tecnológico como gerador de meios importantes e úteis à humanidade, devendo-se, contudo, igualmente ser considerada a necessidade de revisão ou de renovação da moral instituída para que tais meios possam trazer, cada vez mais, os reais benefícios a todos e a realização de finalidades verdadeiramente humanas. Entretanto, o autor realça um importante problema na moral instituída, uma vez que a mesma estabelece insistentemente as finalidades aprioristicamente concebidas, acabadas e moralmente necessárias, em vista das quais, os meios a serem usados teriam uma orientação externa, imposta e determinada para o alcance desses fins últimos. Desse modo, a nova ciência moderna, modificadora das atitudes, hábitos e crenças humanas, não poderia se servir de tais finalidades já previstas por um referencial moral anteriormente válido. 9


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Ano I, número 1, 2009 Na verdade, surgia aí a necessidade de uma nova ordem moral baseada em novos princípios e padrões morais mais flexíveis e dinâmicos. Ou seja, a reconstrução da filosofia estaria voltada para uma preocupação em depreender dessa análise, uma configuração moral condizente à nova situação posta pela investigação científica, pela nova política e estrutura econômica baseada na indústria e na tecnologia. A partir do problema exposto, Dewey reforça, mais uma vez, os dualismos fortemente presentes em nossa cultura, no caso, entre fins absolutos, imutáveis e necessários, de um lado, e os meios contingentes e relativos à validade universal dos primeiros, de outro lado. Notadamente, para o filósofo, este dualismo poderia ser facilmente correlacionado com aquele já apontado anteriormente, a saber, entre o ‘material’, cujo foco principal é dado pela ciência natural, e o ‘espiritual’, instância da moralidade e dos valores perenes que orientam a conduta humana. No entanto, para o autor, a filosofia não é dessa ordem das verdades distantes do mundo e das experiências humanas concretas. Dewey ainda é mais contundente ao afirmar que esses dualismos refletem, a partir do passado, uma separação de tarefas realizadas pelos escravos, de um lado, e pelos chamados homens livres, de outro, sendo os primeiros considerados inferiores em relação aos segundos, uma vez que realizavam atividades ‘práticas’ voltadas ao mundo material, enquanto os outros apresentavam condições superiores para as atividades de cunho intelectual e ‘teórico’. 4. Análise investigativa na busca da compreensão sobre os antagonismos da época. Diante do exposto, o autor norte-americano realiza uma análise criteriosa sobre a época em questão, considerando em primeiro lugar o papel da filosofia e as suas possibilidades de auxiliar no enfrentamento da crise. 4.1. Das origens da filosofia – Na tentativa de pautar-se numa compreensão mais concisa sobre o campo filosófico, uma vez que indica a necessidade de reconstrução da disciplina, o autor formula

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 as suas argumentações a partir de uma análise sobre as origens da filosofia, mostrando as raízes do seu problema principal. Para recuperar as origens da filosofia, Dewey elabora uma antropologia em que considera como próprio do homem primitivo a memória em que grassa a emoção, imaginação e a fantasia. Os esforços humanos, através da memória, nada têm a ver com as tentativas de explicação do mundo, como também, não apresenta com isso qualquer traço de natureza científica, mesmo admitindo-se que em alguns casos eles não tenham sido bem sucedidos. “A poesia e o drama, diferentemente da ciência, estão separados das noções de verdade e falsidade, racionalidade ou absurdo dos fatos, na mesma proporção em que a poesia é independente dessas coisas” (DEWEY, 1957, p. 07). As tradições são, todavia, formadas pela repetição sistemática de algumas das experiências realizadas pelos indivíduos, que vão deixando de ser pertinentes unicamente a um dos membros particulares e se tornam generalizadas, chegando a representar a vida simbólica de um grupo com traços mais definitivos e padrões mais permanentes. Assim, por meio da educação é que os indivíduos vão se enquadrando a uma concepção de vida, que é formada pelo grupo e que representa a sua forma de perceber, sentir e agir em sua realidade e, por este processo, cada qual vai se amoldando às crenças da comunidade a que pertence. Como resultado disso, vimos concretizar-se a institucionalização dessa concepção geral de mundo e de expressões de um grupo, o qual consolida as suas crenças e manifestações culturais através de ritos, cultos e doutrinas reforçadas pelas ações de governos que passam a manter essas expressões culturais, ao mesmo tempo em que estendem a toda a comunidade o seu poder e a sua autoridade. Assim, Dewey explica: Se isto literalmente é ou não, não é necessário investigar, muito menos demonstrar. É suficiente para os nossos propósitos {admitir-se} que sob {determinadas} influências sociais tomaram lugar doutrinas e cultos fixos e organizados que deram um tratamento geral à imaginação e regras gerais à conduta, e que tal consolidação foi um antecedente necessário à formação de qualquer filosofia como entendemos este termo (DEWEY, 1957, p. 09).

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 Evidentemente Dewey não toma esta origem remota da filosofia como suficiente. Apenas a entende como um princípio de sistematização, generalização e de organização primária das idéias que marcam o início de uma atividade humana que vai se complexificando à medida que o código moral estabelecido enfrenta os desafios intelectuais postos pelo conhecimento positivo da realidade, os quais vão exigindo, gradualmente, o abandono das fantasias e das elaborações imaginativas. É o início também de uma postura mais científica, uma vez que ao homem é imposta uma série de situações fenomênicas freqüentes cuja positividade vai sendo acolhida no repertório das suas idéias e observações da natureza. Desse modo, a aceitação das ferramentas oriundas da tecnologia para o enfrentamento dos fenômenos naturais, com os quais tem que conviver, vai se incorporando aos seus hábitos. Assim, o conhecimento do senso-comum sobre a natureza vai gradualmente se tornando ampliado, propiciando a origem de um comportamento mais científico diante do mundo e associado à manipulação dos meios e técnicas necessárias à sobrevivência humana e também a um espírito investigativo crescente. Com efeito, os dois conjuntos de produtos da mente, a saber, aqueles ligados à imaginação e os outros resultantes de uma gradual compreensão positiva dos fenômenos e à intervenção mais direta no mundo, seguem circunscritos em suas instâncias, evitando incompatibilidades. No entanto, esses produtos também se tornam associados a classes sociais distintas com suas posições e funções específicas na sociedade: os que apresentam traços próprios às atividades de alcance mental e moral mais elevado e que, portanto, governam e lideram os outros que efetivamente trabalham e lidam com a realidade concreta. Este foi o caso da Grécia Clássica. O contraste acirrado entre essas duas perspectivas ocasionava conflitos importantes como o que pode ser ilustrado pela condenação de Sócrates e a perseguição dos sofistas que desafiavam o poder instituído. Os artesãos gregos, que se fundamentavam num conhecimento mais realista, específico e mais próximo à comprovação, também realizavam suas ações técnicas num âmbito 12


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Ano I, número 1, 2009 mais limitado. Isto valia, por extensão, também àqueles que se dedicavam à arte, de modo geral, e aos médicos, cujas ações eram consideradas inferiores e estritamente técnicas e mecânicas em relação àquelas realizadas pelos governantes, por exemplo, ou por aqueles que determinavam a todos sobre os fins e propósitos últimos das ações humanas. Pelo exposto, entendemos que há, no caso grego, por exemplo, uma instância fundamentada em princípios morais estabelecidos e originada da emotividade e imaginação humana e dos quais se depreendem os costumes e as regras não passíveis de admoestação pelo conhecimento advindo da experiência. O conhecimento positivo emergente é marcado pela praticidade e pela associação ao imperativo da utilidade, apresentando um caráter limitado e concreto, mas que, no entanto, vai se tornando um campo em que os conflitos com o poder e a ordem instituída são contemporizados com as reflexões e análises produzidas pelos intelectuais gregos, que oferecem a sugestão de um novo método de investigação racional, de pensar e conhecer. Esta atitude é bem representada por Sócrates quando afirma que por ser o homem um ser racional e, portanto, questionador, não poderia jamais aceitar a vida sem questioná-la, devendo enfrentar os costumes, a autoridade e as razões que lhe são impostas. Foi com a sugestão de um novo método de conhecer que houve a substituição das tradições pela metafísica, como fonte e orientação dos valores a serem seguidos pelos homens. Esse foi o papel atribuído à filosofia nascente: reconciliar os dois produtos mentais, extrair das tradições o núcleo essencial da moral e justificar as crenças já aceitas. Na verdade, nos lembra Dewey, a filosofia, na sua versão metafísica, se ocupou com a justificação racional de verdades previamente aceitas devido ao seu prestígio ou simplesmente, pela simpatia a essas idéias. Com isso, o seu caráter fortemente formal e argumentativo, sua terminologia rigidamente elaborada, seu destaque às demonstrações lógicas e definições abstratas marcadas pela busca de uma verdade imutável e segura e rejeitando as atitudes de defesa ao que seria meramente provável. Tais atitudes pretensiosas da maioria dos filósofos os levaram a formular uma convicção 13


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Ano I, número 1, 2009 de que apenas a filosofia alcançaria a verdade imutável e necessária, ficando para as ciências especiais a provisoriedade e a parcialidade. Do mesmo modo, como as tradições conquistaram um alcance universal, assim também, o rival pensamento reflexivo afeito à filosofia nascente aspirou à mesma universalidade. Com efeito, embora parecendo tão distante das questões realmente concretas nas quais a humanidade está constantemente envolvida, Dewey nos mostra que os temas abordados pela filosofia são conectados com o drama humano em sua luta com os ideais e as crenças sociais. Assim, ele explica: Ao invés de tentativas impossíveis para transcender a experiência, nós temos o registro significante dos esforços dos homens para formular as coisas da experiência em relação às quais eles são mais profundamente e apaixonadamente ligados. Ao invés de esforços puramente especulativos e impessoais para contemplar, como espectadores distraídos, a natureza das coisas-em-si absolutas, nós temos uma imagem viva da escolha de homens pensadores acerca de como desejariam que a vida fosse, e para quais fins teriam os homens que conformar as suas atividades inteligentes. (DEWEY, 1957, p. 26). 4.2. DonovocenárioanunciadoapartirdoséculoXVII - Dewey destaca a figura de Francis Bacon (1561-1626) – como o fez Comte - no cenário do ocidente como um novo anúncio cultural, valendo-se de uma conhecida afirmação do filósofo inglês que se pauta na íntima relação entre o saber e o poder. Para o norte-americano, esta asserção apresenta um significativo conteúdo pragmatista de conhecimento, a partir do qual defende um saber enquanto ação e delineia uma crítica ao ensino literário, ornamental e academicista, de tradição renascentista. Outro tipo de saber criticado por Bacon foi aquele próprio dos alquimistas ou dos astrólogos que, segundo ele, mais enganavam os homens do que os esclareciam acerca da natureza. Para ele, havia ainda um outro tipo de saber pernicioso ao homem que era o saber pela demonstração, argumentação e persuasão, caro aos escolásticos, mais preocupados em dominar as mentes do que torná-las descobridoras de novos conhecimentos, meta para o alcance da qual o inglês se propõe a criar um novo método. Para Bacon, 14


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Ano I, número 1, 2009 os princípios e as leis da natureza não se encontravam na superfície da realidade, mas, ao contrário, eram segredos que precisavam ser apreendidos por um método de investigação mais eficaz para o descobrimento. Inspirado na investida de Bacon e nos possíveis avanços dela decorrentes, Dewey se empolga pelas promessas das realizações advindas da nova ciência, e afirma: “Estes quatro fatos: ciências naturais, experimentação, controle e progresso têm sido estreitamente amarrados juntos” (DEWEY, 1957, p. 42). Além disso, o abandono à rigidez dos costumes e das classes sociais, como também, à obediência definitiva à autoridade, deslocou o foco da organização política a uma maior emancipação dos indivíduos em direção à democracia. Associado a esses fatores, Dewey destaca ainda o papel mobilizador que teve o protestantismo ao interpretar o indivíduo como um fim em si mesmo, não necessitando de intermediação para relacionar-se com Deus. No entanto, adverte que, inicialmente, as mudanças provocadas por esses fatores foram casuais e de caráter técnico e econômico mais do que realizadas de forma inteligente, humana e moral e de abrangência social. Com efeito, o que pode ser destacado como um grande ganho para a humanidade a partir desse processo, segundo Dewey, foi a libertação da natureza em relação às finalidades rígidas e fixas, o discernimento entre a observação e a imaginação, os avanços advindos das possibilidades múltiplas oferecidas pela idéia de mudança, pela noção do ilimitado, do movimento livre e da igualdade de oportunidades, dentre outros. Nesse contexto, o conhecimento passa a ser interpretado como sendo ativo e operante, calcado no controle experimental com objetivos científicos e práticos e um estímulo para os novos esforços e realizações uma vez que o homem se encontra diante de imensas possibilidades. Ademais, tanto a educação, como a moral, foram solicitadas a prestarem uma atenção maior aos meios, às condições e às coisas, cujos fatores eram vistos anteriormente com menosprezo porque expressavam a matéria, o caráter mecânico da realidade e a mudança, logo, a

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Ano I, número 1, 2009 imperfeição. Prenuncia-se assim uma filosofia mais criadora e construtiva e uma nova moral mais aberta e flexível. 4.3. Das novas exigências à filosofia e suas conseqüências - Como em todas as ações humanas, o campo da moral passou a necessitar de métodos investigativos a fim de localizar os problemas morais e os males que invadem o mundo humano. O método de inventividade para a elaboração de planos sugestivos de hipóteses com as quais o trabalho se organiza passou a ser valorizado. Estabelecida a hipótese e sua comprovação - avaliada pelas conseqüências que produz – se desencadeia a reorganização da experiência pela extirpação da dificuldade. A hipótese é vista como verdadeira, quando traz um melhoramento e crescimento moral. Como ele mesmo explica: “Não é a perfeição que deve ser vista como o objetivo final, mas o processo persistente de aperfeiçoamento, amadurecimento, refinamento que deve ser entendido como a meta da vida” (DEWEY, 1957, p. 177). Dewey coloca em destaque o conceito de experiência como fonte de todo critério para o julgamento de supostas verdades e de formulação de hipóteses e princípios. O referencial da tradição, como origem de postulados verdadeiros e universais, já não apresenta a partir daí a mesma validade. Ademais, a experiência constitui-se num guia da ciência, da vida moral e da educação. Com a conseqüente valorização do caráter prático e empírico das atividades humanas e seguindo a mesma racionalidade do experimentável, aos homens foi aconselhado a sempre colocarem à prova os seus atos e as suas crenças. Quando essa postura se tornar assimilada, os incidentes particulares, guardados na memória seletiva, são fundidos e vão adquirindo um caráter de generalidade, formando os hábitos em vista de um plano de ação. Portanto, a experiência oferece uma visão geral concreta, orientando as ações humanas e levando à formação de conceitos. Mas foi com os avanços da biologia, nos ensina Dewey, é que o conceito de experiência foi sendo desenvolvido. Foi no contexto do conhecimento biológico que as ações e a atividade se 16


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Ano I, número 1, 2009 salientaram em tudo o que se manifesta na vida em seu processo contínuo de adaptação ou acomodação ao meio - não permitindo entendê-las jamais como um fenômeno de passividade. Ao contrário, assistimos a partir daí, a uma contínua intervenção ativa das ações humanas em relação ao meio, realizada proporcionalmente às possibilidades das formas mais elevadas da vida, ao mesmo tempo em que esta vai sofrendo as conseqüências de suas ações – dando-se aí a reconstrução ativa do meio e da própria vida. Nesse processo, há uma continuidade das experiências vividas a partir das experiências passadas em direção ao futuro. Nesse contexto, como bem explica Dewey: “O conhecimento não é algo separado [do mundo] e auto-suficiente, mas é envolvido no processo pelo qual a vida está sustentada e se desenvolve” (DEWEY, 1957, p. 87). Trata-se aí do princípio de continuidade da experiência. Com o entendimento da experiência não somente pelo ponto de vista empírico, mas experimental, e com o aporte da nova ciência que capacita o homem para controlar deliberadamente o meio que o rodeia, a experiência se converteu numa força mobilizadora ímpar, pois não se espera que o acaso por si mesmo leve à mudança. Provoca-se uma nova rota ao futuro a partir de experiências passadas e através do método da inteligência. Ou seja, as experiências envolvem ações tecnológicas, artísticas e efetivamente humanas, como garantias da possibilidade de manejo de seu conteúdo por uma forma inteligente e construtiva, em vista de novas e melhores finalidades, significando, portanto, um aumento na liberdade de ação. Assim, os métodos inteligentes nas investigações apresentam relações com a reorientação e a reconstrução deliberada da experiência. É dentro desse contexto que Dewey define a razão como um atributo humano construído num processo de formação constante. [...] a razão é inteligência experimental, concebida a partir do modelo da ciência, e usada na criação das artes sociais; ela tem algo para fazer. Ela liberta o homem das amarras do passado, devido à ignorância e acidentes cristalizados em costumes. Ela projeta um futuro melhor e assiste o homem nas suas realizações. E suas operações estão sempre sujeitas a testes na experiência. Os planos que são formados, os princípios que o homem 17


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 projeta como guias da reconstrução da ação, não são dogmas. Eles são hipóteses para serem trabalhadas na prática, e podem ser rejeitadas, corrigidas e expandidas na medida em que fracassam ou bem se sucedem ao propiciar às nossas experiências presentes a orientação de que elas precisam. Nós podemos chamá-las de programas de ação, mas desde que elas são para serem usadas para tornarem as nossas ações futuras menos cegas, mais dirigidas, elas são então flexíveis (DEWEY, 1957, p. 96). O pressuposto de que a educação é um processo moral se explica justamente porque a moral implica na conquista de uma felicidade. Esta sendo entendida como a superação de obstáculos e eliminação do que é mal, defeituoso e impróprio ao ‘verdadeiramente humano’, no sentido individual e social. Do mesmo modo, a educação deve ser comprometida com o crescimento e o desenvolvimento, ou seja, com a reconstrução contínua da experiência. Percebemos pelo exposto que há, no pensamento de Dewey, uma forte influência das teses próprias às ciências naturais e uma estreita intimidade entre a filosofia e a educação. Para ele, a filosofia é entendida como a “teoria geral da educação”, na medida em que, sendo a educação vista como o processo formador das disposições essenciais do homem em relação ao mundo natural e social precisa, para essa realização, senão do guia filosófico, pelo menos do seu acompanhamento necessário. Com efeito, toda a instituição de uma dada sociedade deve ser testada conforme o critério de crescimento, através do qual a mesma deve garantir o progresso e a reorganização social. Toda educação, para Dewey, deve estar então comprometida com a liberação das capacidades de todos os indivíduos no que tange a todas as suas possibilidades de desenvolvimento e de inteligência, acontecendo num processo de continuidade progressiva. Lembremos mais uma vez que, para o autor, não é a perfeição a meta a ser estabelecida, mas a marcha de busca do aperfeiçoamento e do crescimento é que deve ser estimulado pelas instituições democráticas. Nesse sentido, o autor esclarece: Democracia tem muitos significados, mas se ela tem um significado moral, este é encontrado na resolução de que o teste supremo de todas as 18


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Ano I, número 1, 2009 instituições políticas e arranjos industriais deverá ser a contribuição que eles fazem na busca do crescimento geral de todos os membros da sociedade e em todas as direções. (DEWEY, 1957, p. 186). 4.4. Das conseqüências do desprestígio da experiência e o papel da filosofia - Denunciando o desprestígio da experiência pelo ocidente, Dewey mostra que este comportamento provocou uma reação natural diante da irresponsabilidade implícita nessa postura, uma vez que o racionalismo ao se colocar numa posição de superioridade em relação à experiência, desprezou a comprovação, a confirmação, a prova, entendendo a razão como auto-suficiente e garantidora de uma verdade incontestável, causando um descuido pelo real e uma postura passiva diante da vida. Curiosamente, essa confiança na razão levou a um otimismo exagerado, proporcionalmente inverso com o que é da ordem do prático e do material. No entanto, essa ingenuidade e inação resultantes dessa postura, mostraram-se perniciosas para o enfrentamento dos problemas. Assim, enquanto as posturas pessimistas são paralizadoras e não investem em esforços de mudanças, as posições excessivamente otimistas se pautam na cegueira e insensibilidade, negandose a reconhecer as misérias e os problemas que maltratam a humanidade. Ambas as posições não servem como parâmetro à inteligência transformadora do homem, pois obscurecem os problemas e atenuam a própria capacidade humana para enfrentá-los. Com efeito, os homens têm percebido as conseqüências dessa postura pela presença das guerras, do fracasso e das dores que os afligem, mas que os encontram amordaçados pelo espírito pessimista ou cético ou, ainda, paralisados diante dos problemas. Nesse sentido, recorramos ao próprio autor para, com ele, compreendermos o papel da filosofia enquanto parte de um ‘conjunto de conhecimentos’ que podem indicar algumas orientações aos homens no sentido de ajudá-los a encontrarem possíveis saídas aos seus impasses existenciais. A filosofia ... não pode ‘resolver’ o problema da relação entre o ideal e o real. Este é o ponto central da vida. Mas ela pode, ao menos, iluminar a complicação humana em lidar com o problema, através da libertação da humanidade dos erros que a filosofia mesma tem que enfrentar [...] Pois, à medida que a humanidade estiver comprometida com este enviesamento radical, ela andará para a frente com os olhos vendados e com os membros 19


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Ano I, número 1, 2009 amarrados. E a filosofia pode efetuar, e ela o fará, mais do que este papel negativo. Ela pode tornar mais fácil para a humanidade a tomada de rumos certos para a ação, tornando claro que uma inteligência simpática e integral aplicada à observação e à compreensão dos eventos e forças sociais concretas, pode forjar ideais, isto é, finalidades, que não serão nem ilusões ou meras compensações emocionais (DEWEY, 1957, pp. 130-131). 5. Considerações finais – Embora Dewey tenha delineado sua concepção de filosofia no decorrer de todo o seu trabalho, percebemos uma ênfase contundente em sua análise particularmente presente em sua Reconstrução na filosofia. Sua idéia sobre o objeto fundamental da filosofia aponta para a investigação sobre o campo da experiência humana original, continuamente elaborada pelos mais diversos arranjos de interconexões. Contudo, a filosofia dos tempos das modernas academias já recebe essas experiências através de feixes de problemas altamente intelectualizados e generalizados, tornando-se um mero exercício formal e sofisticado. Preocupado com o caráter metafísico e epistemológico pré-científico e suas conseqüências, Dewey se dedica à reconstrução da filosofia. Em sua obra já citada, o notável autor expõe os problemas da disciplina e as novas diretrizes que esta deveria tomar para o crescimento dos indivíduos inseridos numa sociedade verdadeiramente democrática. Dewey defende uma concepção ‘orgânica’ de filosofia social para enfrentar as propostas de cunho individualista por um lado, e as de teor socialista, de outro. Para ele, essas posições têm sido fundamentadas em conceitos abstratos e fixos, com pretensões universalistas, pouco ajudando na investigação, pois não auxiliam na elucidação das situações efetivamente concretas. As ciências políticas, a sociologia, a filosofia e a teoria social em geral têm se mostrado distante da realidade concreta, se constituindo em artigo de luxo com pouquíssimas contribuições à investigação dos problemas e ao planejamento de uma sociedade marcada por características resultantes da revolução científica, industrial e política. Além da defesa do uso imprescindível da inteligência, ao invés da ‘razão’, Dewey tem em vista a promoção do pensamento reflexivo e uma reorientação para a reconstrução da própria filosofia. Ademais, ele propõe que superemos os dualismos teoria-prática, sociedade-indivíduo 20


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Ano I, número 1, 2009 suplantando a separação do político em relação ao moral. Cada indivíduo deve ser compreendido como um ser em processo ativo que se desenvolve estimulado pelas mudanças que ocorrem no substrato social do qual participa e de cuja vida associativa é igualmente dependente. Nesse sentido, “as instituições são vistas conforme o seu efeito educativo: - com referência aos tipos de indivíduos que elas fomentam” (1957, p.196). Ou seja, a individualidade é ‘produzida’ de acordo com as influências da vida associativa sobre os indivíduos - provida pelas instituições – em cujo seio cada um é livre na medida em que se desenvolve, muda sempre que lhe é requerido e investe na busca da felicidade. No entanto, “a sociedade é forte, poderosa e estável contra os acidentes, somente quando todos os seus membros podem funcionar de acordo com os limites de suas capacidades” (1957, p. 208), sendo o espírito experimental dos indivíduos, um recurso indispensável para isso. Assim, uma teoria só faz sentido quando se torna desvencilhada das explicações metafísicas e dos conceitos generalizantes - tal como Estado, por exemplo – e realiza uma investigação debruçada nos fatos específicos, mutáveis e relativos aos objetivos e aos problemas aos quais está ligada. Preocupado com a situação de pessimismo e insegurança próprios dos anos que se seguiram a I Guerra Mundial, Dewey defende o pluralismo que ocorre concretamente na vida social, não desconsiderando os laços estreitos que ligam os indivíduos e a sociedade. Combatendo os nacionalismos ferrenhos construídos sob a égide do dogma da soberania nacional e da exaltação ao Estado – posição irregularmente suprema (1957, p. 204) -, aponta esses fatores como possíveis causas dos terríveis conflitos, se constituindo em forte barreira para a formação de uma mentalidade internacional compatível com uma noção de sociedade, entendida não como um organismo único, mas como um conjunto de várias associações de experiências compartilhadas. Tal situação pública e social oferece os únicos meios para a universalização dos valores, no sentido de socialização da comunicação, da participação e da convivência irrestritamente distribuída. 21


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 Como vimos, Dewey reivindica uma ampla aplicação dos princípios que regem a necessária reconstrução intelectual de base científica a todas as esferas da experiência humana, sem excetuarmos e, talvez até de modo especial, o campo da moral. Com isso, defende o abandono das noções absolutas próprias, por exemplo, do mundo cultural de traços escolásticos, em que se supunha a fixidez superior à mudança ou a indispensável orientação da conduta humana pelos princípios e conceitos universais. Diante dessa questão, o filósofo toma como recurso intelectual as alternativas que o pragmatismo pode lhe oferecer e sugere, assim, que analisemos uma dada idéia moral pelas suas conseqüências, apreendendo com isso o seu significado. Advogando em favor da aplicação do ‘método da inteligência’ que consiste basicamente na localização do problema ou na clarificação da situação problemática e no levantamento de hipóteses solucionadoras do problema, o autor formula uma sugestão de análise sobre as conseqüências das alternativas elencadas pelo investigador na tomada de decisões diante da questão, levando-o a descoberta de qual o curso verdadeiro de uma ação, isto é, formulando um plano de ação mais acertado. A investigação com o uso da inteligência significa a adoção do mesmo conjunto de procedimentos racionais e lógicos para os maiores benefícios ao homem, em todos os campos do conhecimento. Pela análise pragmática sobre as conseqüências das ações e sob a orientação dos recursos que a inteligência permite, colocase como exigência uma postura revisionista pautada nas possibilidades de reajustes, na atividade corretiva dos erros e na aceitação natural dos resultados que nunca são definitivos. Os valores, para Dewey, não devem ser entendidos pelo seu sentido geral ou universal, mas como noções modificadoras do fazer humano, relativamente às ações específicas ou, ainda, como direções mobilizadoras para a qualidade da experiência. A variabilidade das experiências individuais e as possibilidades, capacidades e dificuldades próprias de cada um imputam traços únicos, concretos e individualizados aos valores. Cada valor não poderá ser entendido independentemente das demais experiências vividas e aquelas que poderão ser experimentadas pelo indivíduo. A vida 22


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 não pode ser entendida de forma fracionada, nem pode ser interpretada sem a consideração de que tudo o que se busca realizar afeta todas as demais atividades. A partir desses apontamentos torna-se compreensível a posição do autor a respeito dos dualismos entre os valores, por exemplo, morais (como a justiça) e naturais (como a saúde). Pois, para ele: “Qualquer coisa numa dada situação é um fim e um bem de igual importância, classificação e dignidade de todo outro bem de qualquer outra situação, merecendo a mesma atenção inteligente” (DEWEY, 1957, p. 176). Avesso aos critérios classificatórios que subordinam os valores numa escala organizativa de superioridade ascendente e que leva a um entendimento valorativo imutável e rígido, o autor aponta para uma das grandes perdas para a humanidade, resultante desses dualismos e hierarquização de valores, a saber, o entendimento de uma dimensão naturalista, material e mecânica e de uma outra que é moral, ideal e da instância humanista. Com efeito, para que qualquer avanço seja real e tecnicamente significativo deverá apresentar contribuições à esfera social, estabelecendo um sentido moral para as ciências - as quais não podem estar divorciadas do que é humano - assim como a moral, não podendo estar distanciada do que é concreto e próprio das experiências dos homens. Outro perigo apontado por Dewey diz respeito ao utilitarismo, cujas posições de alguns dos seus representantes e simpatizantes têm se arvorado a se tornar uma boa alternativa apropriada à modernidade. Para ele, esta sugestão, ao enfatizar o produto de forma excessiva mais do que a força criativa humana, facilitou o interesse de classe, a ânsia vazia pela riqueza e pelos prazeres, não se constituindo em uma proposta de avanço social. Na verdade, o que ocorreu foi que esta postura apenas substituiu os valores tradicionais pela defesa da imutabilidade dos valores, levando a uma proposta que garante somente o gozo e o desfrute hedonista estabelecido como fim último. Com isso, mais uma vez, o autor reforça a sua justificativa da necessidade de reconstrução da filosofia.

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 Contrariamente aos resultados fixos esperados para que julguemos a validade de uma ação, Dewey nos convida a priorizarmos o empenho no aperfeiçoamento, o processo desenvolvido e constante em direção à melhoria do estado geral do indivíduo, o trabalho transformativo em ação, tudo isso, designado pelo próprio autor, como ‘crescimento’, ou seja, “o único ‘fim’ moral” da humanidade, aquele que tem a ver com a renovação e a recriação perene do espírito (DEWEY, 1957, p. 177). Nesse sentido, nem os conhecimentos, as habilidades ou a cultura poderão ser colocados como fins últimos da educação. Enquanto atividade moral - uma vez que esta se preocupa em desenvolver uma trajetória de melhoramento das ações, numa perspectiva de superação do que haja de maléfico ao ser humano - todo o processo educativo realizado pelas instituições presentes numa sociedade democrática é tomado como uma oportunização ímpar para a reconstrução das experiências humanas. Desse modo, o caráter educativo das instituições democráticas se define pelo alcance que apresentam em contribuir para o ‘crescimento’ de todos, independentes de qualquer traço diferenciador presentes em uns e outros. Cada instituição apresenta-se assim, disposta a comprometer-se com a educação de todos, para que atinjam patamares de experiências significativas conforme as suas possibilidades e capacidades, reorganizando modos de compreensão do mundo, ajustando experiências passadas com as mais recentes, e planejando ações inteligentes diante dos problemas que são localizados e enfrentados com maior destreza. Retomando o problema inicial apontado por Dewey em sua obra Reconstrução na filosofia percebemos que o autor participa de um coro de intelectuais decepcionados pelas auspiciosas promessas feitas pela ciência e pela tecnologia, principalmente no que diz respeito ao início do século XX. Ademais, pela sua análise, o autor elucida os problemas que deram impulso ao estado de insegurança própria de sua época. Como solução, a reconstrução da filosofia se apresenta como uma exigência pragmática, uma vez que ao enfrentar com especial atenção os dualismos e suas 24


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Ano I, número 1, 2009 conseqüências desastrosas, aposta na força das instituições as quais, podem participar do desenvolvimento geral dos indivíduos levando à consolidação da ordem democrática com o conseqüente enfraquecimento dos Estados totalitários e das políticas autoritárias. Pois, “uma das razões da desmoralização cada vez maior da guerra é aquela que coloca o Estado em uma posição suprema anormal” (DEWEY, 1957, p. 204). Embora reconhecendo a importância do ‘déspota benevolente’, ao facilitar as condições para a execução de medidas benéficas aos indivíduos, Dewey não acredita no grande homem ou herói, já que o mesmo, na sua benevolência tende, certamente, a minimizar as capacidades individuais de solucionar e superar os seus problemas, podendo ainda levar ao aniquilamento do poder transformador das suas ações e de seu agir e pensar autônomos. Nesse sentido, salienta que em qualquer caso, jamais as ações promovidas pelo déspota benevolente contribuem para o bemcomum. E assim, assevera: “[...] não é o bem porque é conseguido à custa do crescimento ativo das pessoas a ajudar; e não é [uma ação] comum porque estas não têm participação na produção do resultado” (DEWEY apud PUTNAM, 1992, p. 254). Além do mais, os privilégios e as condições de iniqüidade são extremamente nocivas aos apelos verdadeiramente democráticos, uma vez que desperta o egoísmo e estimulam a incapacidade de pensamento e ações autônomas, não contribuindo para o crescimento progressivo e constante de todos. Por esse motivo, quando propõe como modelo de investigação o método científico, Dewey não advoga o direcionamento das ações humanas pelos especialistas. Antes, quer que todos, pela democracia, tenham as condições necessárias para o crescimento e para a conquista da felicidade. É o exercício democrático e a experimentação que ensinarão sobre o que devemos e queremos alcançar. Nesse sentido, encontramos na defesa da democracia pelo filósofo norte-americano, um ponto a mais de dissonância em relação às idéias positivistas que tão efusivamente destacam o papel da ciência para o avanço e regeneração da sociedade. Contudo, tais ideais positivistas salientam a 25


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Ano I, número 1, 2009 busca da realização humana apontada pela entidade abstrata, a Humanidade, representada por aqueles que mereceram receber esta insígnia valorosa de nobreza humana atribuída aos homens e mulheres que concretizaram uma vida de zelo aos princípios doutrinários. Esses seres de nobreza são marcos concretos e perenes que perfilam a história e enobrecem o passado. Como garantia de realização dos ideais de Amor, Ordem e de Progresso seria necessário também a concretização da Ditadura Republicana ao invés da democracia, como desejou Dewey. Enquanto o Sistema de Filosofia de Comte descreve as concepções próprias a cada fase de desenvolvimento humano e social, possível de serem superados pela incorporação dos princípios positivistas e pela absorção do paradigma das sete ciências, a filosofia para Dewey deve resgatar a experiência que foi desprestigiada pelo ocidente. No entanto, a filosofia não teria outro papel a não ser “[...] clarificar, libertar e alargar as vantagens inerentes às funções de experiência naturalmente geradas [...] Não tem qualquer autoridade de revelação [...] Mas tem a autoridade da inteligência, da crítica desses bens comuns e naturais” (DEWEY apud HILARY, 1992, p. 259). É um conhecimento não necessariamente pleno de conteúdos ou teoria, mas que auxilia os humanos a realizarem experiências mais ricas e promissoras para si e para a vida associativa. Para finalizarmos, podemos enfatizar o trabalho disseminador das idéias de Dewey pelo filósofo da educação brasileiro Anísio Teixeira (1900-1971) que segue fielmente a trajetória filosófica do norte-americano ao analisar a situação brasileira. Ainda em 1934 quando publica pela primeira vez a sua obra Educação progressiva: Uma introdução à filosofia da educação, mais tarde chamada Pequena introdução à filosofia da educação, afirma: “Transforma-se a sociedade nos seus aspectos econômicos e sociais, graças ao desenvolvimento da ciência, e com ela se transforma a escola, instituição fundamental que lhe serve, ao mesmo tempo, de base para a sua estabilidade, como de ponto de apoio para a sua projeção” (TEIXEIRA, 1978, p. 27).

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Ano I, número 1, 2009 A força teórica de Dewey é percebida ainda nos dias mais atuais, quando percebemos uma acalorada referência e admiração por outro filósofo norte-americano, Matthew Lipman (1923-), que tem se ocupado, como o filósofo de Vermont, com o papel da educação na formação da democracia. Para ele, contudo, Dewey não conseguiu esclarecer o suficiente o papel formador único da disciplina de filosofia enquanto atividade investigativa peculiar, mas enfatizou, no entanto, a necessária influência da investigação científica como modelo ao desenvolvimento do pensamento (LIPMAN, 1995, pp.157-161). É curioso que Hilary Putnam (1926-), já em 1992, publica também ele uma série de conferências, anteriormente proferidas na Universidade de St. Andrews no outono de 1990, cuja coletânea intitulou Renovar a filosofia argumentando que “[...] fui também guiado pela convicção de que a atual situação na filosofia exige uma revitalização, uma renovação da matéria” (PUTNAM, 1992, p. 09). Do mesmo modo como Dewey, Putnam tenta assim, apresentar um diagnóstico da atualidade e propor algumas sugestões. O interessante é que Putnam inicia a sua análise com a constatação de que um forte cientismo invadiu a filosofia. No entanto, destaca alguns pensadores que não se intimidaram com os argumentos científicos e apresentaram sugestões altamente promissoras para este enfrentamento. E, dentre alguns nomes conhecidos no campo da filosofia e temas bem contemporâneos, a figura de John Dewey ganha certo realce especialmente com respeito ao seu combate às ilusões da metafísica e do ceticismo. No entanto, Putnam não reconhece que a sugestão consequencialista de Dewey sobre a moral baseada no método científico, apresente saídas razoáveis para muitos dos impasses humanos. Desse modo, Putnam parece, em alguma medida, mais simpático à sugestão de William James (1842-1910) que aposta na possibilidade de, em algumas situações, podermos decidir antes da prova, tornando mais criteriosa a opção feita segundo a própria conta e risco e imperativa a nossa aceitação do resultado dessas opções. James assim ressalta a condição humana peculiar ao realizarmos as nossas decisões. 27


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 As colocações de Putnam revelam que o chamado ‘cientismo’ de Dewey merece no mínimo cuidado em relação aos conceitos caros ao autor, exigindo uma análise judiciosa. É por isso que este trabalho se propõe, tão somente, a levantar o problema e a ensaiar as primeiras aproximações sobre a questão. Apesar de Putnam fazer algumas restrições às idéias de Dewey, ao finalizar a sua análise para renovar a filosofia endereça a ele reconhecimento e consideração, como as palavras que se seguem: “[...] quando Dewey nos desafia a perguntar até que ponto estamos a viver realmente a nossa fé democrática, o efeito pode ser o de mudar as nossas vidas e a forma como vemos as nossas vidas; e é esse o papel da reflexão filosófica no seu melhor” (PUTNAM, 1992, p. 275). Desperta surpresa e curiosidade o fato de os dois autores, Dewey e Putnam, numa distância de setenta e dois anos entre as suas publicações aqui referidas, seguirem acreditando numa necessidade de reconstrução ou renovação da filosofia, confluindo para questões muito próximas que levam Putnam a oferecer, em sua obra, um considerável destaque a Dewey - pela sua insistente busca pela democracia ainda não totalmente alcançada, mas que deve ser perseguida pelas ações inteligentes, somente possíveis na vida associativa em que se combinam diferentes instituições em vista do crescimento de todos os seus partícipes. Daí o caráter educativo das instituições. Se entendermos que o pragmatismo se sustenta na mobilidade de posições e na defesa das revisões permanentes dos seus postulados, o exemplo dessa discussão apresentada aqui parece muito ilustrativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. 2. 3. 4. 5.

DEWEY, John. Reconstruction in philosophy. Boston: Beacon Press, 1957. DEWEY, John. La reconstrucción de la filosofía. Buenos Aires: M. Aguilar Editor, 1964. LIPMAN, Matthew, O pensar na educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. PUTNAM, Hilary. Renovar a filosofia. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. TEIXEIRA, Anísio. Pequena introdução à filosofia da educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978. 28


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Educação para o lucro, Educação para a Liberdade[*] por Martha C. Nussbaum

A história chegou a uma fase em que o homem moral, o homem completo, mais e mais cede o lugar, quase sem saber, para o homem comercial, o homem dos propósitos limitados. Este processo, auxiliado pelos maravilhosos progressos da ciência, está assumindo proporções gigantescas e poderosas, causando um desequilíbrio da balança moral do homem, obscurecendo o seu lado humano sob a sombra de uma organização sem alma. Tagore, Nacionalismo (1917)[i] A realização vem para denotar o tipo de coisa que uma máquina bem planejada pode fazer melhor do que um ser humano e o principal efeito da educação, a realização de uma vida rica de significado, cai no esquecimento. John Dewey, Democracia e Educação (1915)[ii] I. A Crise da Educação

Começo com quatro exemplos que ilustram, de maneiras diferentes, uma profunda crise na educação que apresenta-se a nós hoje, embora ainda não a tenhamos enfrentado. Todos ilustram a situação de crise na educação e na cidadania, situação à qual o grande escritor e educador indiano Rabindranath Tagore se referia, uma crise que já era profunda em sua época e que se tornou ainda mais profunda em nosso tempo.

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 1. No Outono de 2006, a Comissão do Departamento de Educação dos Estados Unidos sobre o Futuro da Educação Superior, chefiada pela Secretária de Educação Margaret Spellings, apresentou um relatório sobre o estado do ensino superior no país[iii]. Este relatório se foca exclusivamente sobre a educação para o crescimento da economia nacional e para a rentabilidade no mercado global. Ele se preocupa especialmente com as deficiências percebidas na ciência, tecnologia e engenharia, deixando de lado a investigação científica de base dessas áreas e centrando-se apenas na parte de aplicação desses conhecimentos e, em especial, naquela parte voltada para as estratégias de rápido ganho financeiro. As humanidades, as artes e o pensamento crítico, tão importantes para a formação da cidadania global, estão basicamente ausentes, e o que o relatório sugere é que não há problema nesta ausência e estas habilidades poderiam ser esquecidas em favor de disciplinas mais úteis.

2. Em Março de 2006, o Reitor de Harvard, Lawrence Summers, (agora ex-Reitor) viaja para a Índia para dirigir um evento de três dias chamado "Harvard na Índia." Summers é bem conhecido nos Estados Unidos por denegrir as humanidades, cujo papel no currículo tentou reduzir, e, sobretudo, por sua oposição ao estudo do raciocínio ético, que tentou remover completamente do currículo básico da graduação. Seu objetivo foi, consistentemente, fortalecer a parte do currículo dedicado à ciência e à tecnologia. "Harvard na Índia" não foi diferente. O programa teve uma série de características notáveis: nenhum acadêmico indiano foi incluído no programa do evento e Harvard cobrou mais de US$ 100 para cada pessoa que quisesse participar, algo que estava fora da possibilidade dos acadêmicos locais. Contrariamente, os principais homens de negócio indianos foram amplamente representados no programa (e digo homens, pois apenas uma mulher, uma investigadora médica americana, estava no programa), e a mensagem entregue por Summers ao Primeiro-Ministro e a outros dignitários participantes foi que Harvard estava feliz em ajudar a Índia nos seus esforços para desenvolver seu setor tecnológico e, conseqüentemente, para capturar uma parcela maior do mercado global. A ênfase educacional não estava na ciência básica e criativa e sim na ciência voltada para ganhos de curto prazo na indústria. 3. Em Novembro de 2005, fui ao Laboratório Escola, a escola onde John Dewey conduziu suas experiências desbravadoras na reforma da educação democrática. Os professores estavam acuados, e fui convidada a dirigir-lhes uma palestra sobre o tema da educação para a cidadania democrática, algo que fiz com alguma apreensão, porque tinha a certeza de que todos eles sabiam muito mais sobre este assunto do que eu. Assim, enquanto procurava defender o legado de Dewey, focando-me 2


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 especialmente sobre a imaginação simpática, e introduzido-os aos escritos estreitamente relacionadas de Tagore (que dirigiu reformas educacionais pioneiras ao mesmo tempo que Dewey e com tendências semelhantes), descobri que não estava onde pensei, que não estava no porto seguro das idéias de Dewey. Na verdade estava em um campo de batalha, onde os professores que ainda se orgulham em estimular as crianças a questionar, criticar e imaginar eram uma minoria combativa, cada vez mais suplantada por outros professores e, especialmente, pelos pais ricos, pautados em resultados testáveis de natureza técnica que iriam ajudar a produzir sucesso financeiro para seus filhos. Assim, quando apresentei o que pensei ser uma versão muito banal das concepções de Dewey, ocorreu uma profunda comoção, como se eu tivesse mencionado algo precioso que estava cada vez mais sendo perdido.

4. Um último exemplo: no ano passado, fui convidada por uma outra grande universidade, também no meu país, vamos chamá-la de Y, para falar em um simpósio celebrando um data importante. Fui convidada a apresentar uma palestra como parte de um simpósio sobre "O Futuro da Educação Liberal." Poucos meses antes da data do evento (fevereiro 2006), fui informada pelo Vice-Diretor que a natureza do evento havia sido alterada: não haveria mais um simpósio sobre o futuro da educação liberal e estava agora convidada a dar uma palestra sobre qualquer tema que eu quisesse. Assim, quando cheguei ao campus, investiguei sobre as razões por trás da mudança. De um útil e agradavelmente falador administrador júnior, soube que o Presidente da Universidade Y decidiu que um simpósio sobre educação liberal não iria "criar um grande splash" e por isso decidiu substituí-lo por um simpósio sobre as últimas conquistas da ciência e da tecnologia. A minha palestra, uma pequena ondinha que já não era parte do grande "splash", defenderia a grande importância das artes e humanidades para o público culto, tanto crítico quanto simpático, capaz de transcender a desconfiança e o medo do diferente. Mas, evidentemente, neste ponto, sem o simpósio público mais amplo, estava pregando para os convertidos, a saber, uma platéia de professores e estudantes humanidades.

Para não repetir o óbvio, existem centenas de histórias como estas além de varias outras que chegam ao nosso conhecimento todos os dias, dos Estados Unidos, da Europa, da Índia, e, sem dúvida, de outras partes do mundo. Quando a educação é discutida na campanha presidencial dos Estados Unidos, é discutida em termos de um baixo nível utilitarista que se pergunta: como podemos 3


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 produzir pessoas treinadas tecnicamente que possam assegurar "nossa" quota de mercado global? (Em 30 de outubro de 2007, no debate televisionado dos candidatos Democratas à presidência americana, apenas um candidato fez menção à importância da arte como uma fonte de criatividade, mas ele era um candidato sem nenhuma chance de ganhar, ninguém procurou discutir sua observação e, tenho certeza, sua afirmação antiquada selou sua derrota[iv]).

Dado que o crescimento econômico é tão avidamente buscado por todas as nações, poucas foram as questões colocadas, tanto na Índia quanto nos Estados Unidos, sobre o sentido da educação e, conseqüentemente, da sociedade democrática. Com a corrida pela rentabilidade no mercado global, os valores preciosos para o futuro da democracia, especialmente em uma era de ansiedade religiosa, estão em perigo de se perder.

O tema do lucro sugere para a maioria dos políticos em questão que a ciência e a tecnologia são de importância crucial para o futuro do bem-estar de seus povos. Não deveríamos ter qualquer objeção a uma boa educação científica e técnica e não estou sugerindo que as nações deveriam parar de tentar melhorar este aspecto. A minha preocupação é que as outras habilidades, habilidades cruciais para a saúde interna de qualquer democracia, para a criação de uma cultura descente, para um modelo robusto de uma cidadania mundial e para abordar os problemas mais prementes do mundo estão em risco de se perder nessa busca competitiva por lucro. Estas habilidades estão associadas com as humanidades e as artes: são a capacidade de pensar criticamente, a capacidade de transcender lealdades locais para a abordagem de problemas mundiais assumindo a posição de um "cidadão do mundo" e, finalmente, a capacidade de imaginar simpaticamente a situação de outra pessoa.

Nesse contexto, construirei meu argumento prosseguindo com o contraste que os meus exemplos anteriores já sugeriram: o contraste entre uma educação para o lucro e uma educação para um tipo de cidadania mais inclusiva. Permitam-me apresentar este contraste através de uma contrapartida, familiar às discussões de justiça e de cidadania globais, entre duas concepções de desenvolvimento: a antiga concepção de desenvolvimento econômico de forma restritiva e o conceito mais rico e mais abrangente de "desenvolvimento humano". Ao longo do texto irei aludir a exemplos da Índia. Farei isso porque é onde a maior parte do meu trabalho sobre desenvolvimento foi conduzindo e porque publiquei recentemente um livro sobre as tensões religiosas e a democracia na Índia, livro que 4


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 dedicou uma boa parte da atenção à educação[v].

II. Educação e "Desenvolvimento Humano"

Ouvimos, por estes dias, uma boa quantidade de debates dobre “desenvolvimento humano" e promoção das "capacidades humanas"[vi]. Claro que tenho feito parte desse movimento e aplaudo a ampliação do enfoque sobre o desenvolvimento de modo a englobar uma parte mais ampla dos fins humanos. Preocupa-me, no entanto, perceber que a análise da educação utilizada, mesmo pelos melhores profissionais da abordagem do desenvolvimento humano, tende a concentrar-se nas competências básicas e comercializáveis negligenciando as habilidades humanistas do pensamento crítico e da imaginação tão cruciais caso a educação realmente seja pensada de modo a promover o desenvolvimento humano, em vez de, simplesmente, o crescimento econômico e as aquisições individuais. Então, vamos refletir, primeiramente e de uma maneira muito geral, sobre o que seria uma educação para o desenvolvimento humano e como ela seria diferente de uma educação para o enriquecimento econômico.

O velho modelo de desenvolvimento, aquele que os profissionais preocupados com o desenvolvimento a muito tempo consideram inadequado por que estão preocupados com as questões éticas da inclusão e da igualdade, diz que o objetivo do desenvolvimento é o crescimento econômico - não importando as questões da distribuição e da igualdade social, nem as précondições para a estabilidade da democracia e nem mesmo as questões relativas à melhoria de outros aspectos da qualidade de vida do ser humano que não estão relacionadas ao crescimento econômico. Como disse, este modelo de desenvolvimento tem sido agora rejeitado por uma grande proporção dos pensadores sérios do desenvolvimento, mas, no entanto, continua a dominar a agenda política, especialmente aquelas dos órgãos influenciados pelos Estados Unidos. Assim, se o Banco Mundial realizou alguns progressos louváveis, sob a presidência de James Wolfensohn, reconhecendo uma concepção mais rica de desenvolvimento, após a sua saída as coisas desandaram. Já o Fundo Monetário Internacional nunca fez o tipo de progresso que o Banco fez quando dirigido por Wolfensohn. No contexto deste paradigma do que é para uma nação se desenvolver, o que está em todas as bocas, é a necessidade de uma educação que promova o desenvolvimento nacional visto como crescimento econômico. Tal educação tem sido recentemente delineada pelo relatório apresentado pela comissão do Departamento de Educação americano dirigido por Spelling. Focado 5


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 na educação superior, o modelo apresentado por este relatório está sendo implementado também por muitas nações européias, que direcionam seu orçamento para as universidades técnicas enquanto impõem medidas cada vez mais draconianas para as humanidades. Esse mesmo modelo é hoje em dia central para a discussão na Índia assim como para a maioria das nações em desenvolvimento que estão buscando alcançar uma parcela maior do mercado global.

Que tipo de educação esse velho modelo de desenvolvimento sugere? Uma educação para o enriquecimento econômico que necessita de competências básicas, como alfabetização e certa compreensão mínima das matemáticas. Ela também necessita que algumas pessoas tenham capacidades mais avançadas em ciência da computação e da tecnologia apesar da igualdade de acesso não ser essencialmente importante. Uma nação pode crescer muito bem, enquanto as populações rurais pobres continuam analfabetas e sem conhecimentos básicos de informática, como mostram os recentes acontecimentos em muitos estados indianos. Em estados como Gujarat e Andhra-Pradesh, vimos um aumento de PIB per capita, através da educação de uma elite técnica que tornam o estado atraente aos investidores estrangeiros. Os resultados deste enriquecimento, no entanto, não se associam de forma a melhorar a saúde e o bem -estar das populações rurais pobres, e não há razão para pensar que o enriquecimento requeira educá-las adequadamente. Esse sempre foi o primeiro e mais fundamental problema com o PNB per capita como o indicador do desenvolvimento: ele negligência a distribuição e pode alcançar altos valores em nações ou estados que contêm desigualdades alarmantes. Isto é muito real na educação: dada a natureza da economia baseada na informação, as nações podem aumentar seu PNB sem se preocupar demasiadamente com a distribuição da educação, desde que crie técnicos competentes e uma elite de negócios.

Outra coisa que a educação para o enriquecimento necessita é, talvez, de uma familiaridade muito rudimentar com a história e com a realidade econômica por parte daquelas pessoas que vão avançar para além do ensino primário (pessoas que formam uma elite relativamente pequena). Mas certo cuidado deve ser tomado quanto a forma que assume essa narrativa histórica e econômica de forma a evitar que esta conduza a uma séria reflexão crítica sobre as classes, sobre se o investimento estrangeiro é bom para os pobres do campo, sobre se a democracia pode sobreviver a essas enormes desigualdades na base social e na distribuição das oportunidades. Assim, nesse modelo, o pensamento crítico não seria uma parte muito importante da educação, e não ocupa lugar nos estados que têm perseguido este objetivo com determinação, como, por exemplo, o estado ocidental 6


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 indiano de Gujarat, bem conhecido pela sua combinação de sofisticação tecnológica com docilidade e pensamento de manada. A liberdade de pensamento dos alunos é perigosa se o que se pretende é um grupo de técnicos treinados e dóceis dedicados a realizar os planos das elites que têm por objetivo conseguir obter investimentos estrangeiros e desenvolvimento tecnológico. Assim, o pensamento crítico será então desencorajado como tem sido em escolas públicas de Gujarat.

O ensino da História, eu disse, pode ser essencial. Mas educadores voltados para o enriquecimento não irão querer uma história que se centra sobre injustiças de classe, de casta, de gênero e de pertencimentos étnico-religiosos, pois isso irá suscitar pensamento crítico sobre o presente. Esses educadores também não vão querer nenhuma consideração sobre o aumento do nacionalismo, dos perigos dos ideais nacionalistas e da maneira em que a imaginação moral freqüentemente torna-se entorpecida sob o domínio da técnica - todos estes temas desenvolvidos, com um pessimismo mordaz, por Rabindranath Tagore no seu livro Nacionalismo (uma série de palestras apresentadas durante a Primeira Guerra Mundial) e temas cuja centralidade é ainda mais evidente em nosso próprio tempo. Portanto, a versão da história que será apresentada apontará ambição nacional como um grande bem e irá minimizar os problemas da pobreza e da desigualdade. Mais uma vez, exemplos da vida real deste tipo de ensino são fáceis de encontrar.

De fato, um dos principais exemplos deste traço inquietante de uma educação do tipo "brilho indiano", se é que posso chamá-lo assim (usando o slogan da campanha recente BJP, o partido indiano que combina um foco sobre o crescimento econômico e investimento estrangeiro com o apoio a polarização religiosa e até mesmo com recurso a violência), é a abordagem do Desenvolvimento Humano feita pelos livros didáticos publicados (durante a ascendência do BJP) pelo Conselho Nacional de Pesquisas Educacionais e Formação (e agora, felizmente, abandonados pelo novo governo eleito em 2004[vii]). Embora estes detalhes sobre escolas públicas indianas possam parecer um pouco distantes, tenho a certeza de que o trabalho recente de Yuli Tamir sobre os livros de história nos fez cientes do significado de tais coisas aparentemente pequenas e acho que, muitas vezes, é mais fácil falar desses exemplos distantes e das lições gerais derivadas, ao invés de mergulhar nas águas da política local.

Assim, fiquei inicialmente encantada ao descobrir que o livro de Ciências Sociais da classe X, Índia Contemporânea[viii], tinha um capítulo abordando o modelo de Desenvolvimento Humano como 7


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 uma alternativa às abordagens de desenvolvimento que focam o crescimento econômico por si só. A Índia tem sido particularmente enérgica na aplicação desta abordagem iniciada, aliás, por Amartya Sen, um cidadão indiano. Portanto, não é surpreendente que tenha sido mencionado em um livro escolar para crianças índias. Foi, no entanto, muito desconcertante encontrar três grandes erros no pequeno trecho do livro que abordava o tema.

Em primeiro lugar, alega-se que, de acordo com essa abordagem, o desenvolvimento humano e não o desenvolvimento econômico seria o objetivo final, mas que “a importância do crescimento econômico entre todos os fatores do desenvolvimento é a primordial"[ix]. Sen, na realidade, defende, através de cuidadosos estudos empíricos que o crescimento econômico pouco ou nada contribui para a melhoria da educação e da saúde, dois dos principais objetivos da abordagem do desenvolvimento humano. Por conseqüência, ele recomenda que para cada uma dessas metas seja feita uma análise separada para ver o que na realidade os promove[x]. O apoio do BJP para líderes como Andhra Pradesh de Chandrababu Naidu, que dirigiu esse estado "brilhante" na busca pelo investimento estrangeiro, enquanto não fazia nada quanto a condição dos pobres do meio rural, torna essa frase, uma deformação caluniadora do que Sen e eu realmente argumentamos.

Em segundo lugar, é afirmado que a abordagem do desenvolvimento humano analisa o desenvolvimento "no contexto de um indivíduo médio"[xi], enquanto, na realidade, a abordagem, tal como praticada, insiste na necessidade de desagregar a população em segmentos discretos não ficando contente com o foco sobre uma pessoa média que a abordagem baseada no PNB faz, mas, ao contrário, dando atenção especial às pessoas e grupos que desfrutam especialmente de uma baixa qualidade de vida, tais como as mulheres e os pobres das zonas rurais (mais uma vez, a ideologia do "Índia Shining" mostra suas cores: promovendo uma média gloriosa, não precisamos pensar sobre aqueles que estão em baixo).

Terceiro, e pior, todo o debate é introduzido pela afirmação de que, "no desenvolvimento social, qualquer que seja o benefício que os indivíduos obtenham é apenas enquanto um ser coletivo". Esta é uma idéia que Sen e eu rejeitamos insistindo que todos e cada pessoa individual é um fim, e que é eticamente errado apresentar o desenvolvimento em termos do bem-estar das coletividades[xii]. Salientamos ainda que, mesmo uma comunidade como a família, na qual há um intenso amor e fidelidade, pode ser o local de grandes desigualdades de oportunidades. Por isso é fundamental não 8


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 só perguntar como a família se estrutura, mas o que toda e cada pessoa está realmente fazendo[xiii]. Este erro também parece ser mais ideologia do que erro, uma vez que exprime o ethos comunitário da direita hindu, contra a idéia de direitos humanos.

Esses erros parecem ser altamente ideológicos, uma tentativa de apresentar a influente abordagem do Desenvolvimento Humano como dando suporte às políticas econômicas do BJP. Muitas outras declarações questionáveis nos livros são ainda mais flagrantemente políticas, distorcendo a história de forma a evitar que o pensamento se direcione aos temas da pobreza e da desigualdade. A interpretação da Índia antiga assume então a linha ortodoxa do RSS: a Índia antiga hindu era um lugar maravilhoso, sem grandes problemas[xiv]. O capítulo introdutório termina com uma longa citação do historiador britânico A. L. Basham, que escreveu um livro chamado “A maravilha que era a Índia”: "[E]m nenhuma outra parte do mundo antigo as relações do homem com os outros homens e do homem com o estado, assumiram formas tão justas e humanas... Nenhum outro antigo legislador proclamou os nobres ideais do jogo limpo no campo de batalha como fez Manu. Em toda a sua história de guerras a Índia hindu possui bem poucas histórias de cidades derrotadas pela espada ou histórias de massacres de não-combatentes. Para nós, a mais marcante característica da antiga civilização indiana é a sua humanidade"[xv]. Esta interpretação romantizada da Índia omite, como muitos historiadores têm observado, as questões da opressão de casta e de classe, a miséria dos pobres, e a situação das mulheres. As leis de Manu são, de fato, infames pelo seu tratamento duro e restritivo em relação às mulheres, que não estão autorizadas a fazer algo independente, mesmo em suas próprias casas, e que são vistas como essencialmente intemperantes e imorais e em constante necessidade de controle por parte do sexo masculino. O restante do livro segue o plano de Basham, mencionando as maravilhas da Índia, mas não alerta o aluno para quaisquer dos seus problemas. Do mesmo modo, o volume dedicado à história medieval omite completamente a menção aos dalits e sua situação[xvi]. Também falha por não mencionar importantes questões sobre as mulheres, tais como a dura reprovação de Akbar ao sati e sua proibição ao casamento infantil, um costume hindu comum nessa época. Não é surpreendente que o livro contenha ainda outras distorções, retratando as minorias religiosas como perigosas e como ligadas ao terrorismo.

Quero destacar agora algo bastante interessante: a educação para o enriquecimento nacional converge convenientemente com o tipo de educação ideológica favorecida pela direita hindu, dificilmente a única no mundo ao ligar ideologia de direita a desenvolvimento da ciência e da 9


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 tecnologia no estilo Gung-ho. Por vezes aparece uma tensão entre esses dois objetivos do BJP: o objetivo de promover o crescimento econômico através do investimento estrangeiro e o objetivo de promover a pureza étnica. Certamente, parece que alguém pode favorecer um programa no sentido do “brilho indiano”, significando com isso um crescimento econômico exuberante, sem simpatizar com o seu lado militante obscuro (assim também, nos Estados Unidos, em determinados momentos de sua história, pareceu que alguém poderia favorecer a ideologia econômica do Partido Republicano sem favorecer suas políticas obscuras de extremismo ideológico e medo). Contudo, a educação para o enriquecimento necessita de alunos dóceis, estudantes que não pensem criticamente e, particularmente, alunos que aprenderam a ignorar sistematicamente as desigualdades, que são favorecidas por uma política baseada no crescimento econômico por si só. E a idéia de que temos de aprender a ignorar essas desigualdades na história enquadra-se muito bem com o objetivo da direita hindu de produzir uma interpretação do passado em que todos os hindus viviam felizes e em paz no vale do Indus, e de buscar reprimir o trabalho dos historiadores que enfatizem temáticas de classe e gênero[xvii]. A educação para o enriquecimento gosta da fantasia de uma vida feliz no vale do Indus, porque permite a mente ser ludibriada, enquanto as metas de enriquecimento econômico nacional seguem sendo alcançadas. Como disse Tagore, "O homem está construindo sua gaiola, desenvolvendo rapidamente o seu parasitismo sobre o monstro ‘coisa’, que lhe permite confortá-lo por todos os lados". E esta diminuição do homem permite à mente tornar-se tão pequena e a consciência tão cega que o homem está disposto a acompanhar todos os tipos de maus projetos, “sem nenhum remorso, culpa ou responsabilidade moral"[xviii].

Já falei sobre o pensamento crítico e sobre o papel da história. E sobre as artes e a literatura, tantas vezes valorizada pelos educadores progressistas democráticos? Uma educação para o enriquecimento irá, em primeiro lugar, desprezar estas partes da formação de uma criança, porque elas não conduzem ao enriquecimento. Por esta razão, em todo o mundo, os programas de artes e das ciências humanas, em todos os níveis, estão sendo cortados em favor do cultivo da técnica. Os pais indianos têm orgulho de uma criança que ganha a admissão nos Institutos de Tecnologia e Gestão e vergonha do filho que estuda literatura, ou filosofia, ou que queira pintar ou dançar ou cantar. Mas os educadores para o enriquecimento irão fazer mais do que ignorar as artes: eles a temerão. Pois uma simpatia culta e desenvolvida por estas disciplinas são um inimigo particularmente perigoso da obtusidade e da obtusidade moral necessárias para levar a cabo os programas de enriquecimento que ignoram as desigualdades. Conforme disse Tagore: o 10


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 nacionalismo agressivo deve destruir a consciência moral, pois precisa de pessoas que não reconhecem o individual, que falem como grupo, que se comportam e vêem o mundo como dóceis burocratas. A arte é o grande inimigo dessa obtusidade, e os artistas não são agentes fieis de qualquer ideologia, mesmo uma que seja basicamente boa. Isso porque eles sempre buscam levar a imaginação para além dos limites habituais buscando ver o mundo de novas formas. Portanto, os educadores para o enriquecimento farão campanha contra as humanidades e as artes como ingredientes da educação básica. Esta batalha está atualmente em curso em todo o mundo.

III. Educação para o Desenvolvimento Humano

Agora, deixe-me voltar a atenção para a educação para o desenvolvimento humano. Permitam-me apenas estipular, para efeitos da presente palestra que as capacidades nas quais o desenvolvimento humano se concentra são aquelas na minha lista de capacidades. Há outras, mas vamos apenas nos concentrar sobre as pessoas: a vida, a saúde, a integridade física, o desenvolvimento dos sentidos, da imaginação e do pensamento, o desenvolvimento da razão prática, a saúde emocional, a oportunidade de participar de relacionamentos significativos e respeitosos com os outros, relacionamentos tanto os pessoais quanto os políticos, a oportunidade de ter uma boa relação com o meio ambiente e com a natureza, a oportunidade de jogar e desfrutar de atividades recreativas, e, finalmente, alguns tipos específicos de controle sobre a propriedade e as condições de trabalho.

Educação para o desenvolvimento humano é um conceito muito amplo, que inclui muitos tipos de cultivo pertinentes para o auto-desenvolvimento pessoal do aluno. Não se trata simplesmente de cidadania mesmo quando esta é compreendida de forma ampla. No que se segue, no entanto, concentrar-me-ei sobre a meta de produzir cidadãos do mundo dignos, que possam compreender os problemas globais a que esta e outras teorias de justiça respondem e que têm a competência prática e os incentivos motivacionais para fazer alguma coisa quanto a esses problemas. Como, então, iríamos produzir tais cidadãos?

Uma educação para o desenvolvimento humano de uma cidadania global responsável possui um duplo objetivo. É preciso, em primeiro lugar, promover o desenvolvimento humano de seus alunos. E é preciso, em segundo lugar, promover a compreensão dos alunos de que os objetivos do desenvolvimento humano são para todos, enquanto metas inerentes à própria idéia de uma 11


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 sociedade justa minimamente decente, de tal forma que quando eles forem habilitados buscaram fazer escolhas políticas que irão promover estas capacidades para todos e não só para si. Então, na minha versão, essa educação terá início a partir da idéia de igual respeito para todos os seres humanos e da igualdade de acesso de todos a uma gama de oportunidades humanas centrais, e não apenas em sua própria nação, mas em todo o mundo. Assim, minha concepção possui desde o início um profundo e igualitário componente crítico. (Acredito inclusive que minha versão é mais forte criticamente do que outras versões baseadas nas capacidades)[xix]. Portanto, a educação irá promover o enriquecimento dos sentidos do aluno, da imaginação, do pensamento e da razão prática, por exemplo, e irá, igualmente, promover uma visão da humanidade, segundo a qual todos os seres humanos têm direito a esse tipo de desenvolvimento numa base de igualdade. Que tipo de educação queremos para promover esses objetivos?

Antes de podermos conceber um modelo para a educação, precisamos compreender os problemas que enfrentamos no caminho para tornar os alunos cidadãos democráticos responsáveis que possam, eventualmente, implementar uma agenda de desenvolvimento humano. Qual é esse traço da vida humana que torna tão difícil sustentar instituições democráticas igualitárias e tão fácil degringolar esta em hierarquias de vários tipos ou, pior ainda, em projetos de animosidade violenta de grupo que os levam a tentar estabelecer a sua supremacia? Seja quais forem estas forças é contra elas, em última instância, que a verdadeira educação para o desenvolvimento humano deve lutar. Assim ela deve, seguindo Gandhi, conectar-se com o choque de civilizações dentro de cada pessoa, buscando o respeito pelos outros contra as agressões narcísicas.

Esse conflito interno pode ser encontrado em todas as sociedades modernas, em diferentes formas, uma vez que está presente em todas elas as lutas por inclusão e igualdade, como nos debates sobre a imigração, sobre a acomodação dos conflitos religiosos, raciais e das minorias étnicas e nas questões relativas a gênero, a igualdade ou a ações afirmativas. Em todas as sociedades, também, existem forças na personalidade humana que militam contra o reconhecimento mútuo e a reciprocidade, bem como forças da compaixão e do respeito que dão um forte apoio a democracia igualitária. Nomeadamente as estruturas políticas e sociais, no entanto, fazem uma grande diferença para o resultado destas lutas.

Qualquer interpretação do mau comportamento humano tem dois aspectos: o 12


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 estrutural/institucional, e o psicológico/individual. Existe hoje em dia um grande corpo de pesquisas psicológicas mostrando que, na média, os seres humanos agem mal em certos tipos de situação. Stanley Milgram mostrou que as pessoas possuem um elevado nível de deferência para com a autoridade técnica: a maioria das pessoas, nos experimentos realizados por Milgram e tantas vezes repetidos, estavam dispostas a administrar choques elétricos em níveis muito dolorosos e perigosos em outra pessoa desde que um cientista supervisasse o teste dizendo-lhes que aquilo que estavam fazendo era certo - mesmo quando a outra pessoa estava gritando de dor (o que, obviamente, foi falsificado para o bem do experimento)[xx]. Solomon Asch, anteriormente, mostrou em experimentos que os indivíduos estão dispostos a ir contra a clara evidência de seus sentidos quando todas as outras pessoas à sua volta estão a fazer juízos sensoriais diversos: a sua muito rigorosa e freqüentemente confirmada pesquisa mostra o inusitado da subserviência de seres humanos normais frente à pressão dos seus pares. Tanto o trabalho de Milgram quanto o de Asch foram usados de forma eficaz por Christopher Browning para iluminar o comportamento dos jovens alemães que assassinaram judeus em um batalhão da polícia durante a era nazista[xxi]. A influência da pressão dos pares e da autoridade sobre estes jovens foi tão grande que aqueles que não conseguiram atirar nos judeus sentiram vergonha por sua “fraqueza”.

Uma outra pesquisa demonstra que pessoas aparentemente normais estão dispostas a empenhar-se em comportamentos que humilham e estigmatizam se a situação é formulada de determinada maneira, colocando-os em um papel dominante e dizendo-lhes que os outros são inferiores. Um exemplo, particularmente forte, envolve alunos cujo professor informa-lhes que as crianças com olhos azuis são superiores às crianças com os olhos escuros. O comportamento hierárquico e cruel aparece então como decorrente. O professor então informa às crianças que foi feito um erro: que são as crianças de olhos escuros que são realmente superiores e as de olhos azuis inferiores. O comportamento cruel e hierárquico simplesmente inverte-se: as crianças de olhos escuros parecem não ter aprendido nada da dor da discriminação[xxii]. Talvez o mais famoso experimento deste tipo seja aquele realizado por Philip Zimbardo no experimento prisional feito na Universidade de Stanford, no qual se constatou que indivíduos aleatoriamente colocados nos papéis do guarda prisional e de prisioneiros começam a se comportar de maneira diferente quase imediatamente. Os presos se tornam passivos e deprimidos. Os guardas usam o seu poder para humilhar e estigmatizar. Penso que esta experiência foi mal projetada em uma série de pontos e é, portanto, menos conclusiva: por exemplo, Zimbardo deu elaboradas instruções para os guardas, dizendo-lhes que o 13


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 seu objetivo deveria ser o de induzir sentimentos de alienação e desespero nos prisioneiros[xxiii]. No entanto, seus resultados são, no mínimo, bastante sugestivos e, quando combinados com a grande quantidade de outros dados, corroboram a idéia de que pessoas que não são individualmente patológicas podem se comportar muito mal com os outros sob certas situações.

Portanto, temos de olhar para duas coisas: o individuo e sua situação. Situações não são as únicas coisas que interessam: pois as pesquisas encontram diferenças individuais e, além disso, são plausíveis de serem interpretada como mostrando a influência de tendências psicológicas amplamente partilhadas pelos humanos. Por isso, precisamos, afinal, fazer o que Gandhi fez e olhar de forma profunda para a psicologia do indivíduo, perguntando o que podemos fazer para ajudar a compaixão e a empatia para que estas ganhem o embate contra o medo e o ódio. Mas as situações também importam, e uma vontade imperfeita, sem dúvida, age muito pior quando colocada em estruturas de certos tipos.

Quais são esses tipos? Pesquisas sugerem várias coisas[xxiv]. Primeiro, as pessoas se comportam mal quando não são pessoalmente responsabilizadas. As pessoas agem muito pior sob o abrigo do anonimato e como partes de uma massa sem rosto do que quando estão sendo vigiadas e tornadas responsáveis como indivíduos. (Qualquer um que tenha violado o limite de velocidade e, em seguida, reduz a velocidade ao ver um carro da polícia no espelho retrovisor, saberá como este fenômeno é comum). Em segundo lugar, as pessoas se comportam mal quando ninguém levanta uma voz crítica: os participantes da experiência de Asch foram levados a decisões erradas quando todas as outras pessoas que elas acreditavam serem colegas do experimento (e que na verdade estavam trabalhando para o pesquisador) fizeram o mesmo erro, mas se uma outra pessoa dissesse uma coisa diferente, elas eram liberadas para seguir sua própria percepção e julgamento. Em terceiro lugar, as pessoas se comportam mal quando os seres humanos sobre os quais elas têm poder são desumanizados “des”-individualizadas. Em uma vasta gama de situações, as pessoas se comportam muito pior quando o "outro" é retratado como um animal, ou como tendo apenas um número, em vez de um nome.

As situações são importantes. Mas temos também, no entanto, de analisar os níveis abaixo dela de modo a ganhar algum entendimento das forças da personalidade humana que tornam a cidadania digna uma realização rara. Gandhi entendeu este problema em um nível muito profundo. Sobre a 14


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 natureza específica da luta a ser travada Gandhi, no entanto, não nos fornece boa orientação, uma vez que ele sugeriu que as dificuldades a serem superadas provêm, na sua essência, dos apetites corporais e exigem, para a sua superação, a repressão ou mesmo a extinção desses apetites. Meu ponto de vista a respeito desse “conflito interior” (desenvolvido em dois dos meus livros sobre as emoções e sobre o desenvolvimento da personalidade), é bastante diferente, e a desenvolvi ainda mais ao escrever sobre a violência religiosa na Índia[xxv]. (Minha interpretação está em grande dívida para com os antigos gregos e romanos que pensaram sobre as emoções e em dívida com as investigações profundas dos filósofos estóicos, particularmente, com suas investigações sobre o problema da raiva e do ódio políticos, bem como está em dívida em relação aos modernos trabalhos sobre as emoções nas relações com os objetos realizados pela psicanálise).

Entender esse "conflito interior" requer pensar na relação problemática que os seres humanos tem com nossa mortalidade e finitude e com o nosso desejo persistente de transcender as condições que são dolorosas para qualquer ser inteligente aceitar. As primeiras experiências de um bebê humano contém uma alternância chocante entre uma completude agradável, na qual todo o mundo parece girar em torno de suas necessidades, e uma consciência agonizante de sua impotência, quando as coisas boas não chegam no momento desejado e a criança não pode fazer nada para garantir a sua vinda. Os seres humanos têm um grau de incapacidade física desconhecido no resto do reino animal combinada com um nível muito elevado de sofisticação cognitiva. (Sabemos agora, por exemplo, que mesmo um bebê de uma semana de idade pode dizer a diferença entre o cheiro do leite de sua própria mãe e o leite de outra mãe).

Portanto, as crianças estão cada vez mais conscientes do que está acontecendo com elas, mas não podem fazer nada acerca disso. A expectativa de ser atendida constantemente - a "onipotência infantil" tão bem captada por Freud em sua frase "Sua Majestade o bebê" - está ligada à ansiedade e a vergonha de saber que não se é de fato onipotente, mas sim totalmente impotente. Para além dessa ansiedade e vergonha surge um desejo premente de completude e plenitude que nunca é completamente abandonado por muito que a criança aprenda que é nada além de uma pequena parte de um mundo de seres finitos e necessitados. E esse desejo de transcender a vergonha da incompletude leva a muita instabilidade e inquietude moral. Ao escrever sobre o papel da vergonha e da repugnância no processo de formação do grupo e da intolerância social, argumentei que o tipo de mau comportamento social com o qual estou interessada neste trabalho poderia ser atribuído à 15


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 primeira dor da criança frente ao fato de ser imperfeita, incapaz de atingir a completude bemaventurada que, em certos momentos, é incentivada a esperar. Essa dor leva a repulsa e a vergonha, sinais da própria imperfeição. E, então, o que mais me preocupa, a vergonha e a revolta, são por sua vez, por demais vezes, projetadas para o exterior, para grupos subalternos, que possam simbolizar convenientemente os aspectos problemáticos da humanidade, aqueles dos quais as pessoas gostariam de distanciar-se[xxvi].

O outro lado do conflito interior - e quanto a essa parte acredito que Gandhi estava brilhantemente correto[xxvii] -deriva da crescente capacidade da criança para uma preocupação compassiva, ou seja, para ver as outras pessoas como um fim e não como um mero meio. Uma das maneiras mais fáceis de recuperar a onipotência perdida é fazer dos outros escravos e as crianças pequenas inicialmente concebem os outros seres humanos em suas vidas como simples meios para sua própria satisfação. Mas com o passar do tempo, se tudo correr bem, a gratidão e o amor para com os seres distintos que satisfazem suas necessidades aparece e, portanto, as crianças começam a se sentir culpadas de suas próprias agressões e surge uma verdadeira preocupação com o bem-estar das outras pessoas. Quando essa preocupação se desenvolve, ela conduz a um crescente desejo de controlar a própria agressão: a criança reconhece que os seus pais não são seus escravos, mas seres distintos com direito a viver suas próprias vidas. Tal reconhecimento é tipicamente instável, uma vez que a vida humana é um negócio arriscado e todos nós sentimos ansiedades que nos levam a desejar mais controle, incluindo controle sobre outras pessoas. Mas um bom desenvolvimento na família e uma boa educação posterior pode fazer uma criança sentir compaixão genuína em relação às necessidades dos outros, e pode levá-las a reconhecer para os outros direitos iguais aos seus.

O resultado do conflito interno é grandemente afetado não apenas pelas estruturas situacionais, mas também pelos acontecimentos políticos externos, que podem tornar as personalidades dos cidadãos mais ou menos seguras. Escrevendo recentemente sobre tensões religiosas nos Estados Unidos, documentei o modo pelo qual períodos específicos de insegurança política e econômica levam a uma crescente antipatia, e até, por vezes, à violência contra as minorias religiosas que parecem ameaçar certas estabilidades[xxviii]. Tais inseguranças tornam particularmente fácil demonizar estranhos ou estrangeiros e, naturalmente, esta é uma tendência em muito alargada quando o grupo de estranhos é plausivelmente visto como uma ameaça direta à segurança da nação. Os educadores não podem alterar tais eventos mas podem, no entanto, trabalhar sobre a resposta patológica 16


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 apontada na esperança de produzir uma reação mais equilibrada.

IV. Três habilidades

Agora que delineamos o terreno em que a educação trabalha, podemos dizer algumas coisas, mesmo que de modo tímido e incompleto, mas mesmo assim ainda radical no contexto da presente cultura mundial, no que respeita às habilidades que uma boa educação deverá cultivar.

Três valores, gostaria de argumentar, são particularmente cruciais para a cidadania global decente (curiosamente estas três capacidades são destacadas desde o início do pensamento filosófico sobre a cidadania global na tradição ocidental, especialmente desde os escritos estóicos sobre educação liberal[xxix]). A primeira é a capacidade de auto-crítica socrática e de pensar criticamente as próprias tradições. Como argumenta Sócrates, a democracia necessita que os cidadãos possam pensar por si próprios, em vez de delegar a autoridade, que possam, portanto, raciocinar juntos acerca das suas escolhas, em vez de simplesmente trocar alegações e contra-alegações.

O pensamento crítico é particularmente crucial para a boa cidadania em uma sociedade que tem de lidar com a presença de pessoas que se diferem quanto a sua etnia, a sua casta, e a sua religião. Só teremos a chance de um diálogo adequado entre fronteiras culturais se os jovens cidadãos souberem dialogar e deliberar. Esse é um pré-requisito. E eles só saberão como fazer isso se prenderem a analisar a si mesmos e se pensarem sobre as razões pelas quais eles estão inclinados a apoiar alguma coisa em vez de outra - e não, como tantas vezes acontece, se verem o debate político como simplesmente uma forma de vangloriar-se ou obter uma vantagem para o seu próprio lado. Quando os políticos fazem sua propaganda de forma simplista, como os políticos de todos os países tem atualmente feito, os jovens só terão uma esperança de preservar a independência e evitar a exploração por políticos irresponsáveis: se eles souberem pensar criticamente sobre o que ouvem, testando a lógica do que é dito, dos seus próprios pré-conceitos e imaginando alternativas.

Os alunos expostos ao pensamento crítico aprendem, ao mesmo tempo, uma nova atitude para com aqueles que discordam deles. Considere o caso de Billy Tucker, um estudante de dezenove anos em uma escola de negócios, que foi obrigado a fazer uma série de disciplinas em cursos de "artes liberais", incluindo um em filosofia[xxx]. Curiosamente, o seu instrutor, era Krishna Mallick, um 17


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 indiano-americano originário de Kolkata e familiarizado com as idéias educacionais de Tagore e um bom praticante das mesmas. Os alunos na sua turma começavam por aprender sobre a vida e a morte de Sócrates. Tucker foi estranhamente influenciado por esse homem que daria a própria vida para o exercício da argumentação. Ele então aprendeu um pouco de lógica formal ficando satisfeito ao saber que tirou uma nota elevada em um teste sobre esse tema. Ele nunca havia pensado antes que poderia se sair bem em algo abstrato e intelectual. Em seguida eles analisaram discursos políticos e editoriais em busca de falhas lógicas. Finalmente, na última fase do curso, eles fizeram pesquisas analisando os debates sobre as questões contemporâneas. Tucker ficou surpreso ao descobrir que estava sendo convidado a argumentar contra a pena de morte, embora ele realmente a defende-se. Ele nunca tinha entendido, disse ele, que poderiam produzir um argumento para uma posição que não fosse a sua própria. Ele disse-me que esta experiência deu-lhe uma nova atitude perante o debate político: agora ele está mais inclinado a respeitar a posição contraria e de ser curioso tanto sobre os argumentos de ambos os lados quanto ao que os dois lados poderiam compartilhar em vez de ver a discussão como simplesmente uma forma de aparecer e causar estardalhaço. Podemos ver agora como isso humaniza o "outro" na esfera da política, fazendo a mente ver que aqueles que se opõem às suas posições são também seres racionais que podem partilhar algumas reflexões com seu próprio grupo.

A idéia de que alguém é responsável pelo próprio raciocínio e de que as idéias devem ser trocadas com outras pessoas em uma atmosfera de respeito mútuo através da razão é essencial para a resolução pacífica das diferenças, tanto no âmbito da nação quanto em um mundo cada vez mais polarizado por conflitos étnicos e religiosos. Tucker já era um colegial, mas é possível e indispensável, incentivar o pensamento crítico desde o início da educação da criança. Na verdade, isso tem muitas vezes sido feito: é uma das características da moderna educação progressiva, seja a partir de Froebel, Pestalozzi, e Maria Montessori, na Europa, seja a partir de Rabindranath Tagore na Índia e de Bronson Alcott na América do século XIX.

O pensamento crítico é uma disciplina que pode ser ensinada como parte do currículo da escola, mas ele não vai ser bem ensinado a não ser que componha todo o espírito da pedagogia de uma escola. Cada criança deve ser tratada como um indivíduo cujos poderes da mente são ampliáveis e da qual, se espera, venha a fazer uma contribuição ativa e criativa para discussão na sala de aula. Se alguém realmente respeita o pensamento crítico, então esse alguém respeita a voz da criança no 18


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 próprio planejamento do currículo e das atividades diárias. Na escola de Tagore, por exemplo, os estudantes foram incentivados a deliberar sobre as decisões que governam a sua vida cotidiana e foram incentivados a tomar a iniciativa na própria organização de encontros. Syllabi descreve a escola, em vários momentos, como uma comunidade auto-regulada na qual as crianças são incentivadas a buscar liberdade e auto-suficiência intelectuais. Em um de seus planos de aulas, ele escreve: "A mente receberá suas impressões... através de uma liberdade plena dada para a instrução e a experiência e, ao mesmo tempo, será estimulada a pensar por si mesma... Nossa mente não ganhará uma liberdade verdadeira através da aquisição de materiais para o conhecimento ou pela posse de idéias de outras pessoas, mas sim ao formar os seus próprios padrões de julgamento e produzir os seus próprios pensamentos". Informes sobre sua prática relatam que ele repetidamente colocava problemas para os estudantes e fazia aflorar suas respostas questionando-os de forma socrática. Outro dispositivo utilizado por Tagore para estimular o questionamento socrático era o role-playing, quando as crianças eram convidadas a sair um pouco do seu próprio ponto de vista e viver momentaneamente o de outra pessoa. Isto lhes dava a liberdade de experimentar com outras posições intelectuais de modo a compreendê-las a partir de dentro. John Dewey tinha uma concepção pedagógica muito similar, conectando isso à saúde e, até mesmo, a própria possibilidade de uma democracia.

Vamos agora considerar a relevância desta habilidade para o estado atual das modernas democracias pluralistas cercadas por um poderoso mercado global. Em primeiro lugar, podemos afirmar que, mesmo que estivéssemos visando apenas o sucesso econômico, os executivos corporativos compreendem muito bem a importância da criação de uma cultura corporativa na qual vozes críticas não são silenciadas, uma cultura tanto da individualidade quanto da responsabilidade. Educadores de ponta que ensinam em escolas de administração com os quais tenho conversado nos Estados Unidos afirmam que eles traçam os vestígios de algumas de nossos maiores catástrofes - as falhas de determinadas fases do programa do ônibus espacial da NASA, o ainda mais desastroso fracasso da Enron e da WorldCom - numa cultura de pessoas que somente sabem dizer sim e onde idéias críticas nunca são articuladas.

Mas a nossa meta não é simplesmente o enriquecimento, por isso devemos voltar nossas atenções à cultura política. Como disse, os seres humanos são propensos a ser subservientes tanto a autoridade quanto à pressão dos pares. De modo a evitar atrocidades precisamos neutralizar estas tendências, 19


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 produzindo uma cultura da dissidência. Asch descobriu que quando uma pessoa no seu grupo defendeu a verdade, outros a seguiram, de modo que uma voz crítica pode ter grandes conseqüências. Ao realçar a voz ativa de cada pessoa estamos promovendo também uma cultura de responsabilidade. Quando as pessoas se vêem responsáveis pelas suas idéias é mais provável, também, que se vejam responsáveis pelas suas ações. Esse era essencialmente o ponto de Tagore no seu livro Nacionalismo quando ele insistia que a burocratização da vida social e do aspecto de uma máquina implacável são características cada vez mais presentes nos Estados modernos e que essas características haviam amortecido a imaginação moral do povo, levando as pessoas a aceitar atrocidades sem mais remorsos. Independência de pensamento, ele acrescentava, é então fundamental para que o mundo não seja conduzido ladeira abaixo rumo à destruição. Em sua palestra no Japão, em 1917, ele fala de um "suicídio através da progressiva diminuição da alma", observando que as pessoas se permitem ser mais e mais utilizadas como peças de uma máquina gigante de modo a levar a cabo os projetos de poder nacionais. Apenas uma robusta cultura pública crítica poderia interromper esta tendência funesta.

A segunda habilidade chave do moderno cidadão democrático que gostaria de apontar é a capacidade de ver-se como um membro de uma nação e de um mundo heterogêneos compreendendo algo da história e das características dos diversos grupos que nele habitam. O conhecimento não é garantia de bom comportamento, mas a ignorância é uma virtual garantia de mal comportamento. Simples estereótipos culturais e religiosos abundam em nosso mundo, por exemplo, a equação simplista do Islã com o terrorismo, e a primeira maneira de começar a lutar contra estes estereótipos é certificar-se que, a partir de uma idade muito precoce, os estudantes aprendam a manter uma relação diferente com o mundo. Eles devem gradualmente vir a compreender as diferenças que tornam difíceis o entendimento entre os grupos e as nações e as necessidades humanas e os interesses compartilhados que tornam essa compreensão essencial, caso esses problemas comuns possam ser um dia resolvidos.

Essa compreensão do mundo irá promover o desenvolvimento humano somente se for infundida nela mesma a busca do pensamento crítico, pensamento que incide sobre as diferenças de poder e de oportunidade. A História será ensinada com um olho na reflexão crítica sobre estas diferenças. Ao mesmo tempo, as tradições e religiões dos principais grupos de uma mesma cultura e do mundo serão ministradas com vistas a promover o respeito pelos concidadãos do mundo como iguais e 20


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 como igualmente possuindo o direito a oportunidade social e econômica.

Em termos curriculares, estas idéias sugerem que todos os jovens cidadãos devem aprender os rudimentos da história do mundo e deverão receber uma rica e não-estereotipada compreensão das principais religiões do mundo e, em seguida, deverão aprender a investigar com mais profundidade pelo menos uma tradição desconhecida, adquirindo desta forma ferramentas que poderão ser posteriormente utilizadas noutros lugares. Ao mesmo tempo, eles deverão aprender sobre as principais tradições, aquelas das maiorias e das minorias no interior da sua própria nação, focandose no entendimento de como as diferenças de religião, raça e gênero têm sido associadas com a diferença de oportunidades de vida. Todos, finalmente, deverão aprender bem pelo menos uma língua estrangeira. Ver que outros grupos de seres humanos inteligentes compreenderam o mundo de forma diferente e que toda tradução é interpretação fornece ao jovem uma lição essencial de humildade cultural.

Uma tarefa especialmente delicada neste domínio é a de compreender as diferenças internas no interior da própria nação. Uma educação adequada para viver em uma democracia pluralista deve ser uma educação multicultural e com isso quero dizer que uma educação que forneça aos alunos alguns fundamentos sobre as histórias e culturas dos diferentes grupos com os quais eles compartilham leis e instituições. Estes fundamentos devem incluir aspectos religiosos, étnicos, sociais e de gênero que são as bases desses grupos. O aprendizado de línguas, história, economia e ciência política, todos estes, têm um papel na busca deste entendimento, de diferentes formas em diferentes níveis.

A terceira habilidade do cidadão, estreitamente relacionada com as duas primeiras, é o que chamaria de imaginação narrativa[xxxi]. Isto significa a capacidade de pensar o que poderia ser estar na posição de uma pessoa diferente de si mesmo, de ser um leitor inteligente da história da outra pessoa e de compreender os desejos, as emoções e as vontades que alguém assim colocado poderia ter. O cultivo da simpatia tem sido uma parte fundamental das melhores idéias modernas quanto a educação progressiva tanto nas nações ocidentais quanto nas não-ocidentais. Como tenho observado, a imaginação moral, sempre sob a ameaça do medo e do narcisismo, está apta a tornar-se obtusa se não for energicamente refinada e cultivada através do desenvolvimento da simpatia e da preocupação com o outro. Aprender a ver outro ser humano, não como uma coisa, mas como uma 21


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 pessoa não é uma realização automática: deve ser promovida por uma educação que refina a capacidade de pensar sobre o que a vida interior dos outros pode ser assim como é também compreender por que razão alguém nunca poderá compreender claramente esse mundo interior, por que toda pessoa sempre possui certos pontos escuros fechados a qualquer outra.

O ensino de literatura e de artes pode cultivar a simpatia de muitas maneiras através do envolvimento com diversas obras de literatura, música, arte e dança. Penso que Tagore estava à frente do Ocidente no seu foco na música e na dança, que nós, nos Estados Unidos cultivamos apenas intermitentemente. Mas certa atenção deve ser dada às relações complicadas que os alunos mantêm com outros grupos e os textos devem ser escolhidos tendo em vista estes pontos. Todas as sociedades em todas as épocas possuem essas relações mais delicadas, relações com grupos dentro de sua própria cultura mas também com grupos no estrangeiro que são particularmente susceptíveis de serem tratados de forma ignorante e obtusa. Obras de arte podem ser escolhidas para promover a crítica dessa obtusidade presente fornecendo uma visão mais adequada desses incognoscíveis. Ralph Ellison, num ensaio posterior sobre o seu grande romance O Homem Invisível, diz que escreveu esse romance como forma de representar "o conjunto de percepções, esperanças e entretenimento" que a cultura americana possui e de forma a poder "negociar as desvantagens e os redemoinhos" que estão entre nós e os nossos ideais democráticos. Seu romance, obviamente, toma os "olhos interiores" do leitor branco como o seu tema e sua meta. O herói é invisível a sociedade branca, mas ele nos diz que essa invisibilidade é uma falha imaginativa e educacional de sua parte e não um acidente biológico. Através da imaginação somos capazes de ter uma espécie de insight sobre a experiência dos outros grupos ou pessoas que é muito difícil de atingir na vida diária - especialmente quando o nosso mundo construiu separações acentuadas entre os diversos grupos e cria suspeitas que tornam difíceis quaisquer encontros. Para Tagore, um ponto cego, nomeadamente cultural, era o relativo às políticas e a inteligência das mulheres e à sua educação e, por conseqüência, ele insistiu em dar às mulheres papéis expressivos de liderança[xxxii].

Sendo assim, precisamos cultivar o "olhar interior" de nossos estudantes, e isto significa instruí-los cuidadosamente nas artes e humanidades, disciplinas que colocam os estudantes em contato com as questões de gênero, raça, etnia e experiência e compreensão multiculturais. Este ensino artístico pode e deve ser ligado ao tipo de ensino "cidadão do mundo" descrito acima, uma vez que obras de arte são freqüentemente uma forma valiosa de começar a compreender as realizações e os 22


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 sofrimentos de uma cultura diferente da nossa.

Há ainda um outro ponto a ser destacado sobre o que a arte faz no espectador. Como Tagore sabia, e como os artistas radicais frequentemente enfatizam, as artes, ao gerar prazer em ligação com os atos de subversão e de crítica cultural, produzem um dialogo durável e atraente com os preconceitos do passado ao invés de simplesmente amedrontar o espectador colocando-o na defensiva. É isso o que Ellison chamou de homem invisível: "um conjunto de percepções, esperanças e entretenimento." Entretenimento é crucial para a possibilidade das artes oferecem percepções e esperanças. Não é só a experiência do artista que é tão importante para a democracia. É a maneira pela qual o desempenho desta oferece um local para explorar questões difíceis sem aquela ansiedade incapacitante.

Em suma: as crianças precisam aprender que a receptividade simpática não é covardia, e que a masculinidade não significa não chorar, não partilhar a dor da fome e da falta. Este aprendizado não pode ser promovido por uma abordagem baseada no conflito que afirme "abandonem as velhas imagens da masculinidade". Pelo contrário, ele só pode ser promovido por uma cultura que está receptiva tanto no nível dos conteúdos curriculares quanto no estilo pedagógico, nos quais, não é demasiado audacioso dizer, as capacidades do amor e da compaixão devem transpassar a totalidade do empreendimento educacional.

V. Educação democrática sob ameaça

Como estão as habilidades da cidadania hoje no mundo? Muito mal, eu receio. A educação do tipo que eu recomendo está indo razoavelmente bem, onde eu primeiro estudei, a saber, as artes liberais, parte dos currículos do colégio norte-americano e universidade. Na verdade, é esta parte do currículo, em instituições como a minha, que particularmente atrai apoio filantrópico, pois as pessoas ricas lembram com prazer do tempo em que liam livros que amavam e buscavam discutir questões de coração aberto.

Fora dos Estados Unidos, muitas nações cujos currículos universitários não incluem um componente de artes liberais estão agora tentando construir um, uma vez que reconhecem a sua importância na elaboração de uma resposta pública para os problemas do pluralismo, do medo e da 23


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 suspeita que suas sociedades enfrentam. Eu estou envolvida nessas discussões nos Países Baixos, na Suécia, na Alemanha, na Itália, na Índia e em Bangladesh. Se uma reforma nesta direção irá ocorrer, no entanto, é difícil dizer, porque a educação liberal apresenta elevados custos financeiros e pedagógicos. O ensino do tipo que eu recomendo necessita de turmas pequenas, ou, pelo menos, secções, onde os alunos recebem copiosos retornos dos exercícios escritos a que são freqüentemente submetidos. Os professores europeus não estão habituados a esta idéia e seriam horríveis se realmente tentassem fazer isso, pois eles não são formados como professores da mesma forma que os graduados o são nos Estados Unidos e para eles ensinar significa não ter que avaliar exercícios escritos dos graduandos. Mesmo estudantes graduados são freqüentemente tratados com distância e desdém. Mesmo quando a faculdade é afim ao modelo das artes liberais os burocratas não estão dispostos a acreditar no numero de posições que são necessárias para fazê-la realmente funcionar.

Outro problema que universidades européias e asiáticas têm é que novas disciplinas de particular importância para a boa cidadania democrática não tem lugar seguro na estrutura dos cursos de graduação. Estudos sobre as mulheres, estudos sobre raça e etnia, estudos judaicos e islâmicos, todas estes são susceptíveis de serem marginalizados, atraindo apenas os alunos que já sabem muito sobre a área e que pretendem se concentrar nelas. No sistema baseado nas artes liberais, pelo contrário, essas novas disciplinas podem proporcionar cursos que todos os estudantes seriam obrigados a fazer e essas disciplinas poderiam também enriquecer as artes liberais obrigatórias através da ofertas de outras disciplinas tais como literatura e história. Quando não existem essas exigências, as novas disciplinas permanecem marginais.

Assim, as universidades do mundo têm grandes méritos, mas também grandes problemas. Em contrapartida, as habilidades necessárias para a cidadania estão muito mal, em todas as nações, naqueles que são os anos mais cruciais da vida da criança, o período conhecido como o primário. Aqui as demandas do mercado global fizeram todos se focar em proficiências científicas e técnicas como as principais habilidades, e as humanidades e as artes são cada vez mais percebida como detalhes inúteis que podemos deixar de lado e garantindo que mesmo assim nossa nação (quer seja a Índia ou os Estados Unidos) permaneça competitiva. Ou então, na medida em que as humanidades e as artes são o foco da discussão nacional é tentado reformulá-las como habilidades técnicas próprias, que possam ser testadas por exames quantitativos de escolha múltipla, e as habilidades imaginativas e críticas que estão no seu núcleo são normalmente deixadas de lado. Nos Estados 24


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 Unidos, o teste nacional (justificado pelo ato "No Child Left Behind") fez as coisas ainda piores, como normalmente fazem os testes nacionais: pelo menos a primeira e a terceira habilidades que destaquei não são testáveis pelos exames quantitativos de múltipla escolha e a segunda habilidade é muito pouco testada desta forma (além disso, ninguém se incomoda de tentar testá-las mesmo deste modo). Se uma nação aspira a uma maior quota do mercado, como a Índia, ou lutam para proteger seus postos de trabalho, como os Estados Unidos, a imaginação e as faculdades críticas parecem parafernália inútil e as pessoas têm cada vez mais desprezo por elas. Assim, o currículo está sendo despojado dos seus elementos humanísticos e a pedagogia da aprendizagem perdendo seu lugar de prestígio.

O que ocorrerá caso estas tendências continuem? Surgiram nações de pessoas tecnicamente treinadas que não sabem como criticar a autoridade, úteis para os fins lucrativos e com a imaginação obtusa. Como observou Tagore, um verdadeiro suicídio da alma. O que poderia ser mais assustador do que isso? Na verdade, se você olhar para Gujarat, que tem por um longo tempo seguido por esta via, sem pensamento crítico na escola pública e enfatizando a capacidade técnica, podemos ver claramente como um massa de engenheiros dóceis pode ser transformadas em uma força assassina pronta a defender as políticas mais extraordinariamente racistas e anti-democráticas[xxxiii]. Como é que podemos eventualmente evitar chegar a esses resultados?

As democracias possuem grandes poderes tanto imaginativos quanto racionais. Elas também são propensas a algumas falhas graves no raciocínio, a uma estreiteza do espírito, a pressa e ao egoísmo. Uma educação baseada principalmente na rentabilidade no interior do mercado mundial amplifica estas deficiências, produzindo uma obtusidade gananciosa e uma massa de técnicos treinados na docilidade que ameaçam a vida da própria democracia e que, certamente, impedem a criação de um mundo cultural digno. Se o verdadeiro choque de civilizações é, como creio, um conflito no interior de cada alma, com a cobiça e o narcisismo se opondo ao respeito e ao amor, todas as sociedades modernas estão no caminho de rapidamente perderem a batalha, uma vez que alimentam as forças que levam à violência e à desumanização e falham em alimentar as forças que levam à cultura da igualdade e do respeito. Se não insistirmos sobre a importância crucial das humanidades e das artes, elas vão desaparecer, porque não geram dinheiro. O que elas fazem é muito mais precioso do que isso: criam um mundo que vale a pena viver, com pessoas que são capazes de ver outros seres humanos como iguais e com nações que são capazes de superar o medo e a desconfiança em favor 25


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 de um debate simpático e fundamentado.

[*] Texto gentilmente cedido pela autora para a revista; trad. Fernando Cardoso. Pronunciado na primeira Conferência anual Seymour J. Fox Memorial, Universidade Hebraica de Jerusalém, 16 dezembro de 2007; e na Abertura Plenária da Associação Americana de Faculdades e Universidades, Washington, DC, 24 de janeiro de 2008.

[i] Rabindranath Tagore, Nationalism (Delhi: MacMillan, 1950), p. 20. [ii] John Dewey, DemocracyandEducation (New York: Dover Publishing, 2004), p. 227. [iii] ATestofLeadership:ChartingtheFutureofU.S.HigherEducation, disponível on-line. Um importante contra relatório é o College LearningfortheNewGlobalCentury, lançado pelo National Leadership Council for Liberal Education and America's Promise (LEAP), um grupo organizado pela Association of American Colleges and Universities (Washington, D. C. 2007), com cujas conclusões estou amplamente de acordo (sem supresa pois participei da sua formulação). [iv] Ele era Bill Richardson do Novo México. [v] Nussbaum, TheClashWithin:Democacy,ReligiousViolence,andIndia'sFuture (Cambridge, MA: Harvard University Press, and New Delhi: Permanent Black, 2006); capítulos 7 e 8 são devotatos a análise de questões educacionais. [vi] A perspectiva do “desenvolvimento humano” para a mensuração da qualidade de vida está presente nos Relatórios de

Desenvolvimento Humano publicados desde 1990 pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas em Nova Iorque; o Journal of Human Development publica muito material relacionado à essa temática. Esta revista, por outro lado tem uma relação próxima de trabalho com a Associação de Desenvolvimento e Capacidade, agora com cinco anos de existência, cujos membros incluem aproximadamente 700 acadêmicos e realizadores de políticas públicas de cerca de 60 nações, e que realiza encontros anuais para debater o futuro dessa perspectiva e como desenvolvê-la mais ainda. (Amartya Sen e eu fomos os primeiros dois Presidentes desta Associação). Meu trabalho pessoal sobre as capacidades humanas pode ser encontrado em: Women and Human Development: The Capabilities Approach (New York: Cambridge University Press, 1990), Frontiers of Justice: Disability, Nationality, Species Membership (Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006), e em numerosos artigos, particularmente "Capabilities as Fundamental Entitlements," Feminist Economics 9 (2003), 33-59. O relacionamento entre essa perspectiva e a lei constitucional é desenvolvido em meu "Constitutions and Capabilities: 'Perception' Against Lofty Formalism," Foreword to the Supreme Court Issue, Harvard Law Review fall 2007, 5-97. [vii] Discuto esses livros em detalhe em TheClashWithin, capítulo 8. [viii] Delhi, NCERT, 2003. [ix] CntemporaryIndia, p. 141. [x] Ver especialmente Jean Drèze and Amartya Sen, India:DevelopmentandParticipation (Oxford: Oxford University Press, second edition 2002), passim. [xi] Ibid. [xii] Ver meu WomenandHumanDevelopment, cap. 1. [xiii] Uma apresentação particularmente importante desta posição está em Sen, "Gender and Cooperative Conflicts," in Irene Tinker, ed., PersistentInequalities (New York: Oxford University Press, 1990), 123-49; outro desenvolvimento importante deste tema está em Bina Agarwal, "'Bargaining' and Gender Relations: Within and Beyond the Household," FeministEconomics 3 (1997), 1-51; ver também meu WomenandHumanDevelopment, cap. 4. [xiv] Makkan Lal, AncientIndia (Delhi: NCERT, 2002). [xv] AncientIndia, p. 3. [xvi] Meenakshi Jain, MedievalIndia (Delhi: NCERT, 2002); observo que este volume é com relação a alguns aspectos uma exceção nas séries, sendo de maior qualidade intelectual e literária do que outras. [xvii] Para uma análise detalhada dessas pessoas, ve TheClashWithin, cap. 7. [xviii] Tagore, TheReligionofMan (Rhinebeck, N. Y.: Monkfish Press, 2004), 141. [xix] O uso de Sen dessa perspectiva, por exemplo, é meramente comparativa: ele não identifica referências específicas que seriam

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 necessárias para uma justiça mínima. [xx] Para um relato resumido da pesquisa de Milgram e Asch, ver Philip Zimbardo, TheLuciferEffect:HowGoodPeopleTurnEvil (London: Rider, 2007), 260-75. [xxi] Christopher R. Browning, OrdinaryMen:ReservePoliceBattalion101andtheFinalSolutioninPoland (New York: HarperCollins, 19930. [xxii] Relatado em Zimbardo, 283-5. [xxiii] Ver minha resenha de Zimbardo, TimesLiterarySupplement October 10, 2007, 3-5. [xxiv] Novamente, meu relato é baseado em larga medida na pesquisa descrita em Zimbardo. [xxv] Os dois livros gerais são UpheavalsofThought:TheIntelligenceoftheEmotions (New York: Cambridge University Press, 2001), ver especialmente capítulo 4, e HidingFromHumanity:Disgust, Shame,andtheLaw (Princeton: Princeton University Press, 2004). [xxvi] Ver Hiding, capítulos 2 e 4. Minha análise psicológica tem uma grande dívida com os conceitos e argumentos de Donald Winnicott. [xxvii] Como, notoriamente, fez Winnicott. [xxviii] LibertyofConscience:InDefenseofAmerica'sTraditionofReligiousEquality (New York: Basic Books, 2008). [xxix] Ver meu CultivatingHumanity:AClassicalDefenseofReforminLiberalEducation (Cambridge, MA: Harvard University Press, 1997), capítulos 1-2, discutindo Socrates e os estóicos, particularmente a carta de Seneca' sobre a educação liberal (Moral Epistle 88). [xxx] Ver Cultivating, cap. 1. [xxxi] Ver Cultivating, cap. 3. [xxxii] Ver Amartya Sen, JoyInAllWork (Kolkata: Bookfront Publication Forum, 1999). [xxxiii] Ver TheClashWithin, especialmente capítulos 1 e 9.

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A Percepção Sensorial e o Pensamento Metafísico: uma inspiração Peirceana por René Dentz[1] Introdução Charles Sanders Peirce (1839-1914) entende a fenomenologia como a ciência dos modos de aparecimento dos fenômenos. Pensamos que as condições ontológicas de possibilidade da investigação fenomenológica são sustentadas por três pilares centrais: (1) a manifestação qualitativa do fenômeno, (2) a expressão existencial do percepto como alguma coisa real e (3) a regularidade ontológica apresentada pelo fenômeno, dada por sua matriz eidética de hábitos consolidados. Peirce (em uma de suas várias definições) afirma que um signo pode ser definido como um canal para a comunicação de uma forma[2]. O efeito causado – em uma mente – por um signo corresponde ao interpretante, que é, por sua vez, determinado por um percepto (objeto). Concluímos (e eis aí o pressuposto talvez central daquilo que Peirce caracterizou como ação do signo, ou semiose) que um percepto produz um signo para um interpretante. Peirce classifica os interpretantes em (1) emocional (a qualidade de sentimento produzida por um signo), (2) energético (ações ou reações que requerem algum tipo de esforço para se fundarem) e (3) lógico (relacionado ao significado intelectual dos objetos). Tais interpretantes – emocional, energético e lógico – estariam respectivamente associados às categorias onto-fenomenológicas (inscritas em todos os existentes) de primeiridade, segundidade e terceiridade, sobre as quais dissertaremos agora.

1.1. Categorias onto-fenomenológicas Recorramos inicialmente, para ilustrarmos o conceito de Primeiridade, ao próprio texto de Peirce (CP 8.328): 1


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 Primeiridade é o modo de ser daquilo que é tal como é, positivamente e sem referência a qualquer outra coisa [...] perfeitamente simples e sem partes. As típicas idéias de Primeiridade são qualidades de feeling ou mera aparência. [...] É simplesmente uma possibilidade positiva peculiar sem observar qualquer outra coisa. [...] O primeiro é predominante no feeling. Por um feeling eu quero indicar um exemplo daquele tipo de consciência que não envolve qualquer análise, comparação ou qualquer processo. [...] O conteúdo todo da consciência é feito de qualidades de feeling, como o todo de espaço é feito de pontos ou o todo do tempo, de instantes. Da passagem acima, podemos perceber que as noções de possibilidade (o possível modo de ser daquilo que é tal como é) e variedade (expressão do acaso ontológico) constituem uma característica central daquilo que Peirce deseja significar por primeiridade fenomenológica. A segundidade, por sua vez, traz em si, como característica constitutiva, um tipo particular de restrição da pura possibilidade. Tal restrição é ontologicamente capaz de instanciar a alteridade do (e enquanto um dos índices inequívocos da realidade do) percepto. De acordo com Peirce: Segundidade é o modo de ser daquilo que é tal como é, com respeito a um segundo, mas sem observar qualquer terceiro. [...] Típico de uma idéia de Segundidade é uma idéia de esforço, prescindido da idéia de um propósito. [...] A experiência de esforço não pode existir sem a experiência de resistência. Esforço somente é esforço em virtude de seu ser oposto. [...] Ocorre mais plenamente no choque da reação entre ego e não-ego. Está lá a dupla consciência de esforço e resistência. [...] Toda a característica real da consciência é meramente o sentido de choque do não-ego sobre nós. [...] Nós nos tornamos conscientes de nós mesmos nos tornando conscientes do não-self. O estado de vigília é uma consciência da reação. [...] A idéia de outro, de não, torna-se o pivô do pensamento (CP 8.328). Finalmente – e eis aí a expressão talvez central do idealismo objetivo de Peirce –, a interconexão entre a mera possibilidade e sua restrição é alcançada graças à existência ontológica de uma matriz mental de hábitos intrínseca a – e que confere estabilidade ontológica a – virtualmente tudo aquilo que existe no mundo. Para Peirce: Algumas das idéias de Terceiridade proeminentes [...] são generalidade, infinidade, continuidade, difusão, crescimento e inteligência. [...] Terceiridade, no sentido da categoria, é o mesmo que mediação. [...] Cognições mediadas que é conhecimento através de alguma terceira idéia ou processo. [...] Sentido de Mediação é consciência de um meio termo ou processo, pelo qual alguma coisa, não-self, é reunido na consciência. Toda consciência de um processo pertence a este sentido de mediação (CP 1.340). Podemos agora, e no que diz respeito à natureza ontológica da interação mente2


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Ano I, número 1, 2009 mundo/mundo-mente, explorar uma das consequências epistemológicas que decorre da concepção da matéria entendida em termos de hábitos fortemente consolidados: a regularidade ontológica, que é expressão da terceiridade, faz parte da própria estrutura sensível dos perceptos, não sendo, pois, estabelecida pelo aparato sensorial do percebedor; e este é um ponto central: a semiótica interação mente-mundo – manifestação da ação do signo – envolve e pressupõe uma metafísica do objeto (ou do ente alter). Como aponta Ibri (1992, p. 32): “Centrar no intelecto o poder de organizar os individuais é destituí-los, enquanto fenômeno, de seu traço experiencial básico – a alteridade”. Convém lembrar que, semioticamente falando, é o objeto que determina um (ou inscreve sua generalidade sensível no) signo para uma mente interpretadora: “o mero poder ser do fenômeno mediativo tem seu fundamento lógico no dever ser da generalidade real” (IBRI, 1992, p. 32). Passemos, assim, a analisar o conceito de Semiose.

1.2. O conceito de Semiose e o estatuto ontológico do objeto A semiose consiste na ação cooperativa entre três sujeitos; o conceito de sujeito é aplicado a qualquer um dos componentes do signo. Sendo assim, o objeto, o signo e o interpretante fazem parte do processo semiótico. Especial ênfase será dada aqui à relação que se estabelece entre o signo e seu objeto. Entendemos que o signo – e considerando que a semiose prescreve que um objeto gera um signo para um interpretante – constitui uma espécie de matriz mental de terceiridade, mas é importante destacar que tal matriz está, de alguma forma, inscrita no próprio objeto alter, gerador do signo; é também por isso, ao que parece, que o signo guardará uma correspondência com o seu objeto. De acordo com Peirce: A esta coisa que é a causa de um signo, o objeto (na língua ordinária lhe é chamado, “o objeto real”, mas, mais exatamente, o objeto existente) representado pelo signo: é certo que o signo terá alguma espécie de correspondência com esse objeto (CP 5.473). Julgamos que a “realidade dos signos” tem por condição ontológica de possibilidade a determinação, ou estruturação sensível, conferida pela matriz disposicional de hábitos cristalizados que o objeto ontológica e epistemologicamente lhes impõe (impõe aos signos). A realidade se configura como “aquela cujas características são independentes do qualquer um possa pensar sobre ela” [CP 1.878, 5.404 e Cf. 1877, 5.384; 1904, 5.430]. Tal como sugere Ibri (1992, p. 30), a concepção peirceana de realidade está, por assim dizer, baseada em dois pilares centrais: a alteridade (no sentido de insistência do não-Eu contra a consciência, expressão da segundidade) e a generalidade (expressão da matriz de hábitos, ou terceiridade, que torna ontologicamente possível 3


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a estruturação sensível dos objetos externos). Não parece ser, no que diz respeito à presença ontológica de elementos gerais inscritos na realidade, outra coisa o que Ibri (1992, p. 30) pretende significar por: “[...] a generalidade exterior parece ser o fundamento da generalidade do pensamento como representação mediadora”. Façamos, ainda, uma leitura de outras passagens, nas quais Peirce sugere uma concepção mais ampla da noção de realidade. Nas conferências de Harvard, em 1903, Peirce parece distinguir o que pode ser caracterizado como duas “formas de ser” da realidade: (a) A forma de ser que é realmente [Cf. PC 1903, 5.96]: o objeto físico que é parte da experiência e que afeta os sentidos. De fato, Peirce faz referência a esta forma de ser nos termos de objetos da reação. Os objetos da reação são objetos determinados porque a nossa interação com eles exemplifica uma oposição nos atos perceptuais. Quando se observa que o objeto da percepção não pode ser modificado somente com o pensamento, o objeto é um objeto de reação, um objeto que “prevaleça” como fato bruto à experiência. Uma vez que os objetos da reação propagam os efeitos correlatos das próprias características do seu ser, na opinião de Peirce, ipso facto do real, não há nenhuma razão para duvidar que sejam ontologicamente reais. (b) Dado esta caracterização da realidade com relação aos objetos físicos da reação (ou aos objetos), denominamos este tipo de realidade “realidade-mundo”. Em resumo, pensamos que, no sistema filosófico de Peirce, a semiótica não pode estar desvinculada de uma teoria do objeto, ou metafísica da realidade. Isso porque, tal como afirma Peirce, e no que diz respeito ao processo semiótico, é o objeto que gera um signo para um interpretante. Por conseguinte, no plano de uma interpretação sistêmica da filosofia de Peirce, tal como, por exemplo, propugnada por Ibri (1992), a metafísica parece assumir um papel central. Tal suposto papel central desempenhado pela metafísica nos conduz a investigar o estatuto ontológico dos objetos, ou perceptos, inscritos em nosso espaço semiótico, ou fenomenológico, de ação. Levantemos, então, a seguinte questão: Qual é, então, o status do objeto? De modo que seja preciso afirmar, ao mesmo tempo, que (1) o objeto é independente do signo e (2) o objeto não é o signo. Entendemos que a superação deste aparente paradoxo passa pela aceitação ontológica da existência de processos auto-gerativos em todo o espectro natural, processos esses caracterizados, por Peirce, como processos semióticos: habitamos um espaço semiótico. Segundo Peirce:

Um signo, ou representamen, é uma coisa que seja em vez de uma outra para alguém, em algum sentido ou capacidade. Um vai a alguém, isto é, imprime na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez mais elaborado. [...] O signo é em vez de algo, seu objeto. Está em seu lugar não em todos os 4


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 sentidos, mas com relação a um tipo de idéia, que eu tenho chamado às vezes a base do representamen (CP 2.228) Conseqüentemente, o Representamen, o signo como objeto, elemento individual, com suas qualidades materiais, ou com suas propriedades intrínsecas, aquelas que têm por si, com exceção das relações em que participa, e entre estes, as relações em virtude das quais é signo, é em vez de uma outra coisa. Neste plano do ontológico, para Peirce, os elementos podem ser individuais, propriedades (ou qualidades), universal, eventos, processos, estado de coisas… Por fim, e de forma provisória, indiquemos que Peirce distingue dois tipos de objetos: o imediato, “o objeto como o mesmo signo representa-o” (CP 4.536), e o dinâmico, o objeto representado, à margem de sua relação com o signo. Para Peirce: “O objeto intermediário, ou dinâmico, é o objeto exterior ao signo. Mas o signo deve indicá-lo [...]; e esta indicação [...] é o objeto imediato” (CP 8.334).

1.3. Juízos Perceptivos Os juízos perceptivos contêm elementos gerais: embora, no plano do sujeito, eles sejam singulares, não deixam de pressupor e envolver, no plano do predicado, a generalidade, possibilitando, assim, a dedução de proposições gerais. Como se faz a introdução da generalidade nos juízos perceptivos? Propomos a seguinte resposta provisória: pelo tipo de raciocínio a que Peirce denomina abdução. A Lógica e a Teoria do Conhecimento tradicional distinguem dois tipos de raciocínio: a dedução (que prova que algo deve ser, é uma inferência necessária que extrai uma conclusão contida em certas premissas, cuja verdade deixa, contudo, em aberto) e a indução (que prova que algo realmente é, é uma inferência experimental que não consiste em descobrir, mas em confirmar uma teoria via experimentação). A abdução, que prova que algo pode ser, é uma inferência hipotética, é o verdadeiro método para a criação de novas hipóteses explicativas (a única operação lógica que, segundo Peirce, é capaz de ampliar o conhecimento, de uma forma geral). O modelo da inferência abdutiva pode ser assim traduzido: "Um fato surpreendente, C, é observado. Mas, se A fosse verdadeiro, C seria natural. Daí que há razão para se suspeitar que A seja verdadeiro". Mas como se constitui, via abdução, a generalidade nos juízos perceptivos? Procuraremos, no decorrer do trabalho, fornecer um esboço de resposta a esta questão.

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Contudo, entendemos que pouco enfoque tem sido dado ao aspecto metafísico, que é, entre outras coisas, central para um entendimento sistêmico do atualíssimo pensamento do grande filósofo americano Charles Sanders Peirce. Tal afirmação pode ser ilustrada pelas brilhantes palavras do Professor Ivo Ibri (1992, p. 123): “A metafísica [perceana] iluminará a compreensão da semiótica, e um dos pontos focais de luz emana do fato de que a forma do objeto se impõe à forma modalmente possível do signo”. Entendemos, com Ibri (1992), que a semiótica envolve e pressupõe uma teoria da realidade, ou metafísica. È, assim, com base no espaço epistemológico constituído pela conexão entre semiótica e metafísica que justificamos a elaboração deste trabalho: procuraremos reunir subsídios teóricos que apontem para a precedência da metafísica em relação à semiótica, especialmente no âmbito da relação mente-mundo, foco central deste trabalho. Como afirma Ibri (1992, p. XV): O difundido hábito de se iniciar o estudo do pensamento peirciano pelas (des) conhecidas doutrinas da Semiótica e do Pragmatismo, conduz, a nosso ver, a um entendimento precário e fragmentado da obra de Peirce. Principiar tal estudo pelo exame da Semiótica, uma teoria geral dos signos, para a qual o autor pretende o estatuto de uma Lógica, pode conduzir o leitor a uma ciência meramente taxonômica, uma estranha matriz classificatória das representações, desfigurando sua verdadeira função no quadro filosófico de Peirce. [...] o entendimento pleno daquelas doutrinas [da Semiótica e do Pragmatismo] requer um terceiro ponto que permita a circunscrição unívoca do pensamento de Peirce, e que se constitui, na realidade, em um ponto focal e iluminador de todos os demais: a metafísica do autor. Com base no que acima argumenta Ibri, como expressão epistemológica da precedência da metafísica vis-à-vis semiótica, e no que diz respeito à semioticamente orientada conexão mentemundo, assumiremos a seguinte hipótese central de trabalho: o signo preserva (1) a sua estruturação sensível – conferida por sua matriz de hábitos, que lhe confere regularidade ontológica e enquanto manifestação da terceiridade real – e (2) o seu poder de produzir interpretantes também no espaço mental interno do percebedor, como uma apresentação mental dos perceptos (e não como mera representação mental). Entendemos que a diferença central entre apresentação mental e representação mental pode ser assim resumida: no plano da apresentação mental, os perceptos são capazes de afetar a mente de acordo com a sua (do percepto) matriz habitual de qualidades sensíveis. Parece ser mais ou menos isso – quer dizer, a existência ontológica de princípios gerais estruturadores da realidade sensível e, por conseguinte, da nossa própria percepção desta mesma realidade – o que ibri (1992, p. 104) pretende destacar ao afirmar,

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 originalmente, que Peirce não recusaria: [...] a transformação da máxima cartesiana para penso, logo os universais são reais, configurando que a possibilidade do pensamento mediativo [ou apresentacional, em nossos termos]como fenômeno, é reveladora de um objeto dotado de um princípio de ordem, da natureza do próprio pensamento. Bem ao contrário, no plano da representação mental, os perceptos supostamente afetam a mente de acordo com qualidades sensíveis internamente produzidas, ou mentalmente representadas: “o objeto estaria subsumido a uma regra criada pelo sujeito” (IBRI, 1992, p. 104).

Podemos mencionar as categorias onto-fenomenológicas, tal como caracterizadas por Peirce. Em seguida, analisaremos o conceito de semiose e o status ontológico do objeto. Finalmente, investigaremos os “Juízos Perceptivos”, tendo como eixo central o enfoque peirceano e schaeffereano (Schaeffer, 2001). O seguinte pressuposto central, ontológico e epistemológico, orientará a nossa investigação: a mente não organiza o fluxo de estímulos externos, mas, antes, entra em contato com uma realidade que possui uma estrutura interna própria, estrutura essa que apresenta uma natureza geral, disposicional ou habitual.

Com base em um tipo especial de extensão da semiótica peirceana (o que hoje tem sido caracterizado como biossemiótica[3]) Schaeffer afirma (2001, p. 102) que o conhecimento sensorial humano constitui à “versão histórico-natural mais evoluída do mesmo mecanismo chave-efechadura próprio da detecção de formas inerente a interações ontológicas mais elementares – biológicas e mesmo físico-químicas”. Assim, podemos afirmar que o mecanismo biossemiótico central que está por trás da percepção-ação dos entes (em todo o espectro natural) é o princípio da detecção de formas (ou signos), formas essas que desfrutam de uma organização intrínseca. Pode ser que a mente não tenha como função organizar – cognitivamente – o fluxo natural de eventos externos, uma vez que podemos pressupor a existência de uma matriz de hábitos cristalizados que confere organização ontológica aos perceptos que povoam o campo fenomenológico do percebedor. De acordo com Schaeffer (2001, p. 295), a noção de semiose, tal como desenvolvida por Peirce (1958), revela diretamente o modo de produção das regularidades nomológicas – que estão na base das condições de possibilidade da produção de interpretantes – exibidas pelos processos naturais (em todo o 7


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 espectro organizacional da natureza). Eis o que escreve o autor: A noção de semiose, desenvolvida por Peirce, parece equivaler ao que estou chamando de auto-instanciação informacional. [...] A fase “signo” de um ser ou evento determina uma fase potencial “interpretante”, de acordo com a determinação recebida da fase “objeto”. [...] A capacidade de instanciação informacional corresponderia a um “poder semiótico”: cada instância particular de um ser é um interpretante do poder informacional latente na instância temporal anterior, poder que não está “contido” em nenhuma instância particular – pois é generalidade (como a de uma lei natural) -, mas que é transmitido ao longo do tempo (SCHAEFFER, 2001, p. 295). Julgamos que os interpretantes emocional, energético e lógico podem ser pensados como manifestações externalizadas da matriz informacional interna, de natureza eidética, que confere estruturação sensível aos perceptos[4]. Agora podemos indicar a importância da concepção ontológica realista semiótica no contexto da relação mundo-mente e, em particular, no que diz respeito ao problema da internalização da informação sensorial, internalização essa que nos coloca diretamente em contato com os interpretantes. A concepção epistemológica e ontológica seguida pelo realismo informacional pode ser afirmada pelo fato de a organização estar presente no mundo externo e, sobretudo, incorporada na percepção-ação dos organismos. Nesse sentido, e segundo Schaeffer (2001, p. 296): “[...] o que passa do mundo sensível para a mente, como percepto, outra coisa não pode ser que a própria informação existente nos seres. O encontro perceptual da mente com o mundo é necessariamente uma transação causal-informacional”; ou semiótico-informacional. Julgamos que a informação sensorial[5] manifesta um caráter objetivo acerca dos atributos sensíveis dos perceptos e, por conseguinte, não é pura produção intracerebral de qualidades fenomenológicas via padrões de conexões sinápticas. A experiência visual, por exemplo, pode ser entendida como apreensão imaterial de formas (Aristóteles) e como recepção semiótica de perceptos (Peirce). Contudo, alcançar uma explicação positiva acerca de como é possível à comunicação da forma-informação do percepto para o percebedor constitui um grande desafio. Schaeffer (2001, p. 297) afirma que a matriz informacional (de caráter semiótico) manifesta o seu incessante poder de geração de signos também no espaço mental do percebedor, na condição de apresentação mental dos perceptos e enquanto uma: [...] reverberação no meio interno do mesmo poder semiótico responsável pela identidade temporal do objeto fora da mente. A identidade sensível do objeto se inclui aí. A representação dessa identidade como percepto, na mente, é então imaterial pela razão trivial de que é informacional. A representação mental do objeto dá continuidade, agora no meio mental interno do sujeito, ao processo de auto-instanciação informacional que 8


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 constitui ontogeneticamente o objeto externo que está sendo apresentado.

O papel, às vezes, positivo (criativo) desempenhado por uma desestabilização temporária não é, contudo, desconsiderado nem por Peirce (1958) nem por Debrun (1996). Nas palavras de Peirce: Pode a operação da lei criar diversidade onde não existia diversidade antes? Obviamente, não; sob dadas circunstâncias, a lei mecânica prescreve um resultado determinado [...] toda essa exuberante diversidade da natureza não pode ser resultado da lei (CP 1. 161) [6]. Já que uma lei natural, para Peirce, pode ser entendida como uma causa final – o que corresponderia a um princípio informacional inscrito no universo, para Stonier –, podemos reinterpretar as palavras de Peirce como se segue: somente a informação (e suas prescrições gerais) não pode ser capaz de gerar diversidade, novidade ou, talvez mesmo, fomentar a complexificação dos sistemas (voltaremos a este ponto na Seção 3.4). Sem entrar em detalhes, talvez seja pertinente destacar que há um elemento ontológico de acaso gerador de novidades no universo, segundo Peirce. Schaeffer (2004, p. 72) esboça, à luz do quadro conceitual peirceano acerca da causação final-eficiente, uma possível resposta para tal questão: “causas eficientes disparam causas finais (informacionais)”. Já que a causa final pode ser entendida em termos da existência de tendências gerais, Schaeffer propõe a sua substituição por causa informacional. Isto porque a informação, tal como concebida por Stonier (1997) – enquanto uma propriedade basilar do universo – pode ser definida em termos da existência ontológica de princípios gerais que orquestram a evolução dos sistemas: (físicos, biológicos, psicológicos e sociais). A causação final, para Peirce, constitui um: [...] modo de produzir a ocorrência de fatos de acordo com uma descrição geral do resultado, inteiramente independente de qualquer compulsão para tal descrição ocorrer deste ou daquele modo. [...] A causação final não determina em qual particular modo o efeito há de ocorrer, mas somente que o resultado tenha um certo caráter geral (CP 1.211) [7]. Da passagem acima, podemos inferir que a causação final está associada à idéia de generalidade, que, por sua vez, corresponde à terceira categoria ontológica peirceana: terceiridade. A terceira categoria, como vimos, pode ser entendida em termos de um feixe de hábitos que é capaz de conectar a possibilidade (a qualidade de sentimento) à restrição da possibilidade (a alteridade), conferindo, assim, estabilidade ontológica aos existentes. Desempenhando um papel análogo ao 9


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Ano I, número 1, 2009 desempenhado pela terceiridade, a informação é capaz de conectar matéria e energia de modo a compor sistemas organizados (expressão de um padrão não aleatório de partículas e de campos de energia). A informação auto-instanciadora pode ser entendida como a manifestação de princípios gerais (causas finais) em atuação no plano das organizações vivas, com vistas a promover a automanutenção (homeostase) dos organismos. Bem diferente disso, a causação eficiente se manifesta como: [...] uma compulsão determinada pela condição particular das coisas, e é uma compulsão agindo para fazer com que uma situação comece a mudar de um modo perfeitamente determinado; e o que o caráter geral do resultado possa ser de modo algum interessa a causação eficiente (CP 1.213) [8]. Tendo o seu horizonte de ação circunscrito pelo poder organizador da causação final, a causação eficiente é apenas uma força, uma força que segue – cegamente (sem introduzir propósito) e, consequentemente, atualiza informacionalmente – as prescrições gerais inscritas nas leis. Metaforicamente, Peirce compara a interconexão entre lei (expressão da causação final) e força (expressão da causação eficiente) com uma hipotética corte desprovida de um xerife: “Lei, sem força para executá-la, seria uma corte sem um xerife; e seus dicta se evaporariam” (CP 1.213) [9]. Contudo, sem o poder organizador das leis, a causa eficiente – a força – apenas espalha a desorganização. Enfatizando a complementação ontológica que existe entre a causação final e a causação eficiente, Peirce afirma que: A corte não pode ser imaginada sem um xerife. A causalidade final não pode ser pensada sem a causalidade eficiente. O xerife ainda teria a sua força, mesmo se não houvesse corte, mas uma causa eficiente, dissociada de uma causa final na forma de uma lei, nem mesmo possuiria eficiência. A causa eficiente poderia se exercer e algo poderia se seguir post hoc, mas não propter hoc, uma vez que propter implica regularidade potencial (CP 1.213) [10]. O ponto central acerca do tratamento peirceano conferido à causação é, segundo Schaeffer (2004), a percepção de que a causa eficiente e a causa final constituem um par complementar; manifestação de capacidades naturais indissociáveis: “só separáveis por abstração”. Assim, por exemplo, Peirce afirma que: (1) as leis da natureza (expressão da causação final) correspondem a premissas maiores de silogismos hipotéticos; (2) os eventos que transcorrem no ambiente (expressão da causação eficiente) correspondem aos termos médios dos silogismos e, por fim, (3) os efeitos produzidos por intermédio da interação entre leis naturais e eventos ambientais correspondem a conclusões silogísticas. Esta estrutura lógica é aplicada por Schaeffer à interação 10


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Ano I, número 1, 2009 entre a informação auto-instanciadora e o organismo em seu processo de auto-instanciação informacional. Schaeffer (2004, p. 72) afirma que poderíamos conceber a informação autoinstanciadora como: [...] um conjunto de regras internas ou premissas maiores de possíveis silogismos; as situações ambientais correspondem a complexos de premissas menores; e as respostas do organismo (enquanto sistema auto-instanciador) constituem as inferências dedutivas através das quais unicamente há manutenção ontogenética de si. Eis aí uma possível resposta ao problema da conexão causal entre a informação presente (em potência) no código genético e o organismo em processo de auto-instanciação. Em outras palavras, o repertório interno de prescrições disposicionais de um sistema auto-instanciador corresponde à premissa maior de um silogismo hipotético (causa final). Um evento ambiental, por sua vez, corresponde a uma causa eficiente (premissa menor), causa eficiente essa que tem força para disparar uma resposta ecológica adequada a uma exigência ambiental (conclusão do silogismo). Schaeffer sugere ainda que os eventos ambientais eficientes (os antecedentes lógicos das prescrições disposicionais) constituem o próprio ambiente do organismo. Na próxima seção, argumentaremos que todo indivíduo ontológico pode ser definido em termos de uma matriz de causas finais, ou de prescrições disposicionais internas. Pode ser que a regularidade nomológica exibida pelos processos naturais (ou, de modo mais geral, que a organização inscrita na realidade) provenha de uma matriz informacional interna que dá forma ontológica a todos os existentes, além de encapsular formas cada vez mais complexas de organização, por meio da composição de “todos unificados”. Nessa tessitura informacional, levantemos a seguinte questão geral: há um padrão que liga a interação entre os existentes no plano físico-químico e o conhecimento sensorial humano? Além do mais, caso exista um tal padrão, poderia ele lançar alguma luz no que diz respeito à compreensão dos princípios gerais que guiam a nossa percepção-ação? Sem negar a complexidade da percepção-ação humana, Schaeffer responde sim às duas questões acima levantadas. De acordo com o autor (2001, p. 102), o conhecimento sensorial humano corresponde à “versão histórico-natural mais evoluída do mesmo mecanismo chave-e-fechadura próprio da detecção de formas inerente a interações ontológicas mais elementares – biológicas e mesmo físico-químicas”. O princípio geral que estaria por trás da percepção-ação dos entes (em todo o espectro organizacional da natureza) seria o princípio da detecção de formas. No que diz respeito à interação mente/mundo, parece, assim, razoável supor que a mente esteja dispensada da tarefa de organizar – 11


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Ano I, número 1, 2009 via representações mentais internas – o fluxo de eventos externos, uma vez que uma identidade sensível unificada está inscrita na própria matriz informacional que confere estabilidade ontológica aos perceptos que povoam o campo fenomenológico do percebedor. Segundo Schaeffer, tal matriz corresponde às seguintes noções: (1) à aristotélica de forma substancial – um princípio de organização inscrito na matéria –, (2) auto-instanciação informacional (no plano da organização biológica, tal como proposta por Cooney (1991; 2005)) e (3) semiose, tal como desenvolvida por Peirce (1958). Na concepção de Peirce (1958), o substrato ontológico de todos os existentes corresponde a um processo autogerativo que pode ser representado pela relação triádica objeto-signo-interpretante: “entendo por semiose uma ação, ou influência, que é, ou envolve, uma cooperação entre três sujeitos, tal como um signo, seu objeto, e seu interpretante” (CP 3.484) [11]. Assim, por exemplo, se estamos diante de uma xícara, aquilo que podemos apreender da xícara é uma forma-xícara determinada, atualizada e abstraída de um feixe interno de hábitos que conduz (orquestra) o processo universal semiótico de incessante geração de signos-xícara (ou formas-xícara). A fase signo da xícara – o presente – produz um interpretante (uma instância futura da xícara capaz de preservar a sua identidade ontológica), a partir da fase objeto da xícara; uma instância temporal passado conectada a uma membrana ontológica, de natureza geral, que corresponde ao próprio processo semiótico, no qual presente-passado-futuro estão juntos ao mesmo tempo. Nas palavras de Schaeffer (2001, p.295): A noção de semiose, desenvolvida por Peirce, parece equivaler ao que estou chamando de auto-instanciação informacional. [...] A fase “signo” de um ser ou evento determina uma fase potencial “interpretante”, de acordo com a determinação recebida da fase “objeto”. [...] A capacidade de autoinstanciação informacional corresponderia a um “poder semiótico”: cada instância particular de um ser é um interpretante do poder informacional latente na instância temporal anterior, poder que não está “contido” em nenhuma instância particular – pois é generalidade (como a de uma lei natural) –, mas que é transmitido ao longo do tempo. Entendemos que os interpretantes (emocional, energético e lógico), continuamente gerados pelos signos – e identificados via conhecimento sensorial –, podem ser considerados como expressões externalizadas da matriz de informação interna que confere estruturação sensível aos perceptos. De forma provisória, e no que diz respeito à percepção da xícara, sugerimos que o interpretante emocional corresponde à qualidade de sentimento despertada, em nós, pela xícara, qualidade essa associada, por exemplo, a cor (ou distribuição das cores) e a forma-espacial da xícara. O interpretante energético manifesta-se na distinção ontológica percebedor-xícara, no 12


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Ano I, número 1, 2009 esforço cognitivo subjacente à percepção de que a xícara corresponde a alguma outra coisa que não o percebedor: um não eu (outro). O interpretante lógico, por sua vez, corresponde à possibilidade de o percebedor empregar a xícara como um meio para a satisfação de um fim. Em outras palavras: o interpretante lógico faz referência às conseqüências práticas que decorrem do conjunto de ações que podem ser aplicadas a uma xícara; tomar chá, por exemplo. Por fim, podemos concluir que a informação (1) está presente em todo o espectro natural e (2) possui uma existência objetiva: a organização está inscrita nos perceptos (enquanto expressão da terceiridade real) e, por isso, e ao mesmo tempo, incorporada na percepção-ação dos organismos.

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[1] Doutorando em Filosofia pela PUC/SP; Professor da Faculdade Arquidiocesana de Mariana/FAM e da Faculdade Del-Rey/Belo Horizonte. [2] Sign as form (Ms 793) [3] Biossemiótica porque cada sistema biológico apenas é capaz de identificar signos naturais previstos em seu repertório disposicional de respostas adaptativas ao ambiente, repertório esse que surge ao longo da história natural de

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Ano I, número 1, 2009 evolução das espécies. [4] Segundo STONIER (1997, p.14): “[...] assim como a massa é um reflexo do sistema que contém a matéria e calor é um reflexo do sistema que contém energia, a organização é, assim, a expressão física de um sistema que contém informação”. [5] COONEY (1991; 2005) afirma que a informação auto-instanciadora corresponde a um repertório interno de prescrições disposicionais responsável pela inserção sensorial, ou biossemiótica, do organismo ao seu ambiente. [6] Can the operation of law create diversity where there was no diversity before? Obviously not; under given circumstances mechanical law prescribes one determinate result. […] So then, all this exuberant diversity of nature cannot be the result of law (CP 1.161). [7] we must understand by final causation that mode of bringing facts about according to which a general description of result is made to come about, quite irrespective of any compulsion for it to come about in this or that particular way […] Final causation does not determine in what particular way it is to be brought about, but only that the result shall have a certain general character (CP 1.211). [8] Efficient causation, on the other hand, is a compulsion determined by the particular condition of things, and is a compulsion acting to make that situation begin to change in a perfectly determinate way; and what the general character of the result may be in no way concerns the efficient causation CP 1.213. [9]Law, without force to carry it out, would be a court without a sheriff; and all its dicta would be vaporings CP 1.213. [10] The court cannot be imagined without a sheriff. Final causality cannot be imagined without efficient causality; but no whit the less on that account are their modes of action polar contraries. The sheriff would still have his fist, even if there were no court; but an efficient cause, detached from a final cause in the form of a law, would not even possess efficiency: it might exert itself, and something might follow post hoc, but not propter hoc; for propter implies potential regularity. Now without law there is no regularity; and without the influence of ideas there is no potentiality CP 1.213. [11] I mean, on the contrary, an action, or influence, which is, or involves, a coöperation of three subjects, such as a sign, its object, and its interpretant (CP 3.484).

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O conceito pragmatista de filosofia de John Dewey por Inês Lacerda Araújo 1.Como surge a filosofia na perspectiva do pragmatismo de Dewey. A riqueza teórica dos diálogos de Platão e a possibilidade de leituras do platonismo ao longo de toda a história da filosofia impressionam. Com o pragmatismo de Dewey não foi diferente. A cultura filosófica grega é caudatária de toda uma tradição que remonta ao pitagorismo, ao culto dos deuses, a um modo de viver e de pensar permeado pelas narrações mitológicas, pelos ritos do cotidiano. Essa tradição culmina em Platão. Em A reconstrução em filosofia (1920) e em Experiência e natureza (1929), Dewey propõe a secularização e universalização do método e do espírito da ciência como pesquisa, como experiência que demanda teorias e hipóteses; estas deveriam ser transpostas para a renovação na moral prática. A filosofia deveria livrar-se da apatia e desenvolver um sistema de crenças e atitudes. Mas qual filosofia? Para responder a essa questão, Dewey faz um longo percurso histórico, usa os recursos da psicologia, da sociologia e da antropologia, para mostrar como a filosofia surgiu e por quais razões ela se encontra presa de dualismos, obstáculos à reconstrução. O meio impõe resistências, a vida primitiva era precária, houve necessidade de buscar, em meio à diversidade, certas regularidades. Gradativamente forma-se um corpo de generalizações usuais que preservam e transmitem a sabedoria da raça acerca de fatos observados e seqüências da natureza. Este conhecimento está especialmente conectado com indústrias, artesanato e artefatos nos quais a observação de materiais e processos é requerida para a ação bem-sucedida, e nos quais a ação é tão contínua e regular que a magia espasmódica não bastará mais. Noções extravagantemente fantásticas são eliminadas porque são 1


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 confrontadas com o que realmente acontece (DEWEY, 1948, p. 6-7). O conhecimento científico nasce de tecnologias que o senso comum precisou inventar; a perícia dos operários e artífices desenvolve o hábito mental da experimentação, lado a lado com hábitos morais, gozos e consolos, estes em geral reservados às classes mais elevadas. Justamente, na Grécia, o artesão, que estava apenas um degrau acima do escravo, executava tarefas, de modo que a liberdade de especulação cabia às classes mais altas; estas preservaram as crenças da tradição, o que dava a elas maior prestígio, elas detinham os valores profundos e equilibrados, do governante, do médico da alma que lida com as questões morais, as decisões, os valores. No bojo destas condições sociais, nasce a filosofia. Em oposição cabe ao sapateiro e ao médico do corpo, por exemplo, lidar com os “conhecimentos reais”, sua ciência tem alcance limitado e técnico. O filósofo despreza a metafísica popular que divide entre céu e terra, Deus e natureza, mas seu modo de proceder é análogo, como se pode notar pela “divisão platônica entre arquétipos ideais e eventos físicos” (DEWEY, 1988, p. 53). Quando o conhecimento da natureza aumentou, o conflito com as crenças tradicionais e a imaginação, se exacerbou. Para os sofistas o destino poderia ser controlado por meios práticos. Platão refletiu acerca dos infortúnios humanos, mas o remédio aplicado era o conhecimento contemplativo (cf. 1988, p. 104). O ataque de Platão e de Aristóteles aos sofistas se deve ao fato de que eles trouxeram à tona o conflito entre os dois tipos de conhecimento e de crenças. Este conflito teve ”um efeito desconcertante no sistema tradicional de crenças religiosas e no código de conduta”, explica Dewey (1948, p. 8). Sócrates tentou aproximar as crenças com o trabalho do artífice, daí sua condenação, daí o “perigo” de suas propostas e das propostas dos sofistas. Platão demonstra porque os dois tipos de atividade, a prática e a contemplativa pertencem a diferentes tipos de conhecimento, o primeiro inferior, o segundo superior; este revela fins e propósitos últimos, e assim mantém o conhecimento técnico e mecânico em seu lugar apropriado. Além disso, nas páginas de Platão encontramos, devido ao seu senso dramático adequado, um vívido desprezo do impacto em um homem em particular, do conflito entre a tradição e as novas exigências do puro trabalho intelectual (1948, p. 9). O guerreiro luta pela pátria e não precisa de ensinamento técnico. Com Platão não mais há a aceitação de velhas crenças sob moldes novos. O novo conhecimento trazia as vantagens da precisão, exatidão e verificação. Sócrates preconiza que homens racionais indagam, buscam a razão das coisas e não apenas as aceitam pelo costume e pela autoridade política. Daí a solução ser a conciliação da tradição com o novo método racional, de modo a embasar as antigas crenças em 2


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Ano I, número 1, 2009 termos de um novo conhecimento, de um novo método, que não abalasse os valores morais e sociais; melhor ainda, essa purificação confere maior autoridade e poder, pois se o costume for incorporado às verdades metafísicas do Ser e do Universo, o núcleo moral da filosofia se sustenta com base nas crenças, o que conserva os valores já trabalhados pela humanidade. Para que o efeito fosse eficaz e duradouro, o ânimo que inspirava as crenças não poderia ser abalado, tampouco as instituições que as sustentavam. Assim, imaginação e autoridade social é que possibilitaram a filosofia. Ela justifica sob fundamentos racionais, antigas crenças. A filosofia de Platão e Aristóteles não teria sido aceita sem o tipo de vida, arte e religião gregas. Todos os grandes sistemas filosóficos se acham de uma forma ou de outra, ligados às crenças aceitas. Este é o primeiro traço da filosofia. O segundo traço vem da demonstração, baseada na razão e na prova que revestem de lógica o que não tem racionalidade intrínseca. Como não era possível apontar para o fato (por não ser possível verificação empírica naquela época) era preciso convencer da veracidade de crenças não mais aceitas exclusivamente pela autoridade social ou pelo hábito. Daí empregar-se a lógica, a demonstração, o rigor da definição. O “aspecto que a tantos afasta da filosofia é o que constitui uma das principais razões para aqueles que se dedicam a ela”, critica Dewey (1948, p. 12). Assim, cabe à filosofia demonstrar a realidade última, transcendental ou oculta, desvendar suas formas imutáveis e elevá-las ao status de realidade primeira, original e também final. O que conferia à filosofia uma dignidade maior do que a das ciências, que diziam respeito à desprezível realidade cotidiana. Até hoje os filósofos não se satisfazem com a probabilidade, eles reivindicam para si a minúcia lógica, a forma exterior da demonstração, o apego ao sistema e a exagerada pretensão da exatidão e da verdade. Mesmo hábitos e costumes são fixados através dos recursos da lógica. As filosofias clássicas se dizem mais científicas do que as ciências, estas falharam na missão de atingir a verdade final. Mas, para Dewey, a filosofia deve possibilitar a ampliação de visões, deve servir para nos libertar de preconceitos, ela “oferece hipóteses, e estas apenas na medida em que tornam as mentes dos homens mais sensíveis à vida” (1948, p. 13), justamente o que não era e ainda não é considerado como filosofia. Dewey nega que o conhecimento demonstrativo seja a esfera própria do conhecimento. Quando esta é transformada em esfera exclusiva, a fraqueza humana tem nela uma excelente compensação, elementos sociais e emocionais impelem o conhecimento. Este terceiro traço mostra que a filosofia se universalizou devido à universalização da pressão social e da autoridade. O rumo da religião popular foi preterido e o mundo da metafísica e da realidade última e mais elevada 3


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Ano I, número 1, 2009 sanciona todas as verdades. O mundo empírico é relegado a um segundo plano. Ao invés de ver na história da filosofia a disputa entre idéias, Dewey a vê através da história da religião, da antropologia, da literatura e das instituições. A esse procedimento ele chama de “método genético de abordagem” (1948, p. 15). Não se trata, diz ele, de disputas sobre a natureza da realidade, mas o conflito entre fins e aspirações sociais. A reflexão grega, conduzida por uma classe ociosa servindo aos propósitos da liberação do ócio, era predominantemente a do espectador (g. m.), não a do que participa no processo de produção. Trabalho e produção não parecem criar forma, eles lidam com a matéria ou com as coisas mutáveis [...] Para os artesãos a forma é estranha, não perceptível e não aproveitável; absortos em lidar com um material, eles vivem num mundo de mudança e de coisas (matter), mesmo quando seus trabalhos têm como finalidade a manifestação da forma. Platão era tão preocupado com as conseqüências desta ignorância da forma da parte de todos os que viviam em um mundo prático, industrial e político, que ele elaborou um plano pelo qual suas atividades deveriam ser reguladas por aqueles que, acima do labor e da lida com o prático e o mutável, providenciariam, através de leis, formas para moldar os hábitos daqueles que trabalham (DEWEY, 1988, p. 78-79).

2.

O papel da experiência inteligente e a crítica à noção de mente e de razão pura.

Em “A Relatividade Ontológica” (1980) Quine declara sua admiração pela tese naturalista de Dewey, tal como para Dewey, ele “sustenta que conhecimento, mente e significado, são parte do mesmo mundo com que eles têm a ver e que eles têm de ser estudados como o mesmo espírito empírico que anima a ciência natural” (p. 133). Significados são sempre da linguagem, que é uma “arte social”, não há linguagem privada e essas afirmações, como nota com acerto Quine, são uma crítica à teoria da cópia, e a isso Dewey chegou bem antes de Wittgenstein: “quando Dewey estava a escrever com essa veia naturalista, Wittgenstein ainda sustentava sua teoria da linguagem como cópia” (p. 133). Assim se entende o porquê da admiração de Dewey pela tradição empirista inaugurada por Bacon, que desmistificou Platão, Aristóteles e a escolástica, e enalteceu as vantagens da invenção, da descoberta, da técnica da pesquisa para forçar os fatos a se manifestarem. Atribuir um papel à ciência, não é confiar cegamente em uma metodologia verificacionista, como a do neopositivismo. Dewey resgatou a importância que Bacon teve e que foi menosprezada como culto à ciência e desprezo pela metafísica. Justamente, Bacon preconiza não o trabalho da aranha (puro raciocínio), nem o da formiga que acumula, mas o trabalho da abelha que ataca e modifica. A nova lógica destitui a Mente e o 4


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Ano I, número 1, 2009 Intelecto de seu pedestal, não os vê como enclausurados em si mesmos e propõe que o homem é animal, humano e também político, que se organiza em atividades cooperativas de investigação; a ciência mobiliza para o progresso, indivíduos se emancipam dos laços de classe e costume, e a organização social se torna uma função de escolha e não dependente de uma autoridade. O homem é capaz de mudanças, na era moderna há mais respeito e tolerância, vale a experiência cotidiana. Princípios absolutos, critérios universais cedem lugar às condições que geram a experiência, as únicas aptas a justificar os produtos e os resultados atuais e potenciais da ação humana. O modo como Dewey analisa a filosofia moderna, em especial Descartes e Kant, é cáustico. Essa filosofia se vê diante do dilema de conciliar as teses tradicionais da racionalidade e da idealidade, que são o estofo e a finalidade do universal, com o novo interesse pelo indivíduo e suas capacidades. Para a concepção moderna de filosofia, o homem não se reduz ao aspecto material, pois ele é autônomo, sofre com deficiências e carências, mas há igualmente o pressuposto de uma razão universal, que modelou a natureza e o destino humano. Dessa forma, Kant prossegue na linha da tradição antiga. O mundo da filosofia se constitui com formas fixas cujas fronteiras são definidas. Em contrapartida, o mundo da ciência moderna é aberto, sem fronteiras, expansível. Para Platão, o mais nobre é o que não muda, para Aristóteles há um número limitado de classes, as espécies são determinadas pelas suas qualidades e arrumadas hierarquicamente. Acima de todas está o Ser. No universo há um lugar fixado para tudo e nele todas as coisas conhecem seu lugar, seu estatuto, sua classe, e as conserva. Daí aquilo que se conhece tecnicamente como causa formal e final são consideradas supremas e as causas eficientes são relegadas a um segundo plano (DEWEY, 1948, p. 34).

Hoje a ciência não conhece limites, há mudança, evolução, no lugar de espécies e essências, há leis, habilidades para relacionar e descrever uma ordem constante de mudanças. “A natureza é conduzida pelos projetos humanos porque não é mais escrava de propósitos metafísicos ou teológicos”, diz Dewey (1948, p. 41). A matéria dá as condições para a ação, a ciência respeita os meios e vence obstáculos, por isso progride. Quando a educação e a moral também o fizerem, avançarão. Ao tomar meios como fins se degenera em materialismo moral, mas ao tomar fins sem atentar para os meios, se degenera em sentimentalismo, às vezes em magia, exortação, fanatismo. O problema é que a filosofia tradicional, com sua metafísica platônica, incorporou-se até nas crenças mais espontâneas, e implantou-se sem derramar sangue! É difícil abrir mão de velhos hábitos de pensar e mais difícil ainda abrir mão de todos de uma só vez. Por isso a filosofia nos 5


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 séculos XVII e XVIII permanece presa da tradição. 3. A experiência como guia na ciência e na vida moral. Na filosofia antiga a experiência só atinge o contingente, o particular. Apenas um poder que a transcende pode atingir o universal, o necessário, além de fornecer certa autoridade e direcionamento. A qualidade da experiência sofreu uma mudança social e intelectual, não mais sob a distinção que Platão e Aristóteles fizeram entre o aprendizado por tentativa e erro de um lado, e o método de aprendizado por idéias, de outro lado. Para os gregos a experiência é transitória, tem a ver com os apetites. A memória preserva as sensações particulares e seleciona o que há de comum; pelo hábito se forma a imagem generalizada de um objeto ou situação. O particular enquanto tal não pode ser conhecido, pois precisa ser identificado como tal homem, tal pedra, como indicativo de certa espécie, marcado por uma característica desta ou daquela espécie. O corpo é matéria, moralmente inferior, corruptível; o espírito é incorruptível. Por extensão, o mundo material também é desprezível, e essa noção foi transposta para a filosofia do ascetismo cristão, o pecado se enraíza na vontade, mas a ocasião para o pecado vem dos desejos do corpo, seus apetites (cf. 1988, p. 192). Essa concepção é semelhante à concepção de conhecimento do senso comum, acrescida de certa regularidade do hábito, como o ofício do sapateiro, do instrutor de ginástica, do médico que receita uma dieta. Enfim, a experiência é considerada como visão geral e habilidades organizadas na ação. Ela falha, porque se atém ao particular, de modo que certeza só se obtém com o conhecimento do que é universal através da contemplação conceptual. Mesmo o empirismo de Locke assim concebe a experiência, ele também achava que se o costume, a autoridade e as associações acidentais fossem removidos, a ciência e a organização social se implantariam automaticamente. Por isso Kant lançou mão da razão para dar sentido à experiência. Aos poucos, no entanto, a importância da nova ciência foi sendo compreendida. Aos poucos, no entanto, a importância da nova ciência foi sendo compreendida. Hoje se busca a razão na experiência através de novos métodos, já que ela é de fato vivida. Dewey busca argumentos na psicologia, cujo modelo é biológico, para reformular cientificamente a natureza da experiência. Trata-se, como veremos adiante da naturalização da concepção de conhecimento. Enquanto o empirismo concebe a sensação como porta ou avenida do conhecimento, e a mente como um depósito passivo, para Dewey a biologia ensina que onde há vida, há comportamento, há atividade, devido à necessidade de adaptação e modificação do ambiente, que é transformado conforme aquelas necessidades. As sensações são estímulos para a ação. Fazer o meio reagir é importante e 6


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano I, número 1, 2009 tem conseqüências para a vida, para o aprendizado, enfim, a experiência tem um sentido vital. Dessa forma, a categoria básica é a interação com o meio, o conhecimento vem depois, mas nunca separado da ação. “Toda a controvérsia entre racionalismo e empirismo se tornou estranhamente obsoleta. A discussão sobre sensação deve ser feita no âmbito dos estímulos imediatos e respostas, e não pautada pelo conhecimento”, explica Dewey (1948, p. 50). As sensações são relativas, vêm em séries, se sucedem, podem ser revertidas e isso foi tomado equivocadamente como natureza do conhecimento. Para os racionalistas elas não valem para o conhecimento e para o sensualismo, não é possível conhecimento absoluto. Para Dewey, as sensações são emocionais ou práticas antes de serem cognitivas e intelectuais. São choques de mudanças, sinais para redirecionar a conduta, algo fisiológico, habitual, conectado ao sistema nervoso. Elas são um pivô para reajustes no comportamento. Não levam ao conhecimento, mas não pelas razões apontadas pelos racionalistas. As sensações provocam, incitam, desafiam e levam a inquirir, e isto pode resultar em conhecimento. Não são meios cognitivos, e sim estímulos para a reflexão e a inferência. Levam a perguntas como: o que interrompeu uma atividade? O que aconteceu? Do que se trata? Como reagir? O que modificar? Elas não são atômicas e nem demandam uma faculdade kantiana super empírica da razão para unificá-las. Assim, a razão como faculdade que produz generalidades e regularidades na experiência é espantosamente supérflua. A filosofia não é mais confrontada com o problema insolúvel de achar uma maneira pela qual separar grãos de areia para poder tecê-los como uma corda forte e coerente – ou na ilusão ou pretensão disso. Quando as isoladas e simples existências de Locke e Hume são vistas não absolutamente como verdadeiramente empíricas, mas como respostas a certas demandas de sua teoria da mente cessa a necessidade de um maquinário kantiano e pós-kantiano a priori de conceitos e categorias para sintetizar o alegado estofo da experiência (DEWEY,1948, p. 52). Quer dizer, Locke e Hume enquanto estritamente empiristas, não levantam questões sobre o que é o conhecimento ou a mente, e neste sentido não haveria mais necessidade do aparato kantiano. O material fornecido pela experiência é reconhecido como se prestando ou não ao curso da ação, aos hábitos, às funções ativas, para conectar uma ação com a outra. Esses princípios de conexão são vitais, práticos e não epistemológicos. Vida e experiência não se encaixam em sensações atômicas, momentâneas e fechadas em si mesmas. Para saber o que vem antes e o que vem depois não é preciso uma síntese super empírica e super natural para a organização da vida, para a evolução positiva da inteligência; as sensações organizam, junto com a experiência, e também com a organização social e a organização biológica, toda a ação humana. 7


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano I, número 1, 2009 O que dá a noção errada de que a experiência é passiva, é o modo como as crianças são ensinadas. A família, os pais, os irmãos conduzem a experiência. As concepções que são socialmente correntes e importantes se tornam princípios de interpretação e de avaliação da criança, muito antes de ela atingir o controle pessoal e deliberado de sua conduta. As coisas vêm para ela vestidas pela linguagem, não em sua nudez física, e esta vestimenta de comunicação torna-a um participante nas crenças daqueles que a cercam. Essas crenças, vindo a ela sob a forma de diversos fatos constituem a sua mente. Eles fornecem os centros a partir dos quais suas próprias atividades e percepções são ordenadas. Aqui nós temos ‘categorias’ de conexão e unificação tão importantes quanto as de Kant, mas empíricas e não mitológicas (DEWEY, 1948, p. 53). Para Platão, a experiência escravizava ao passado, ao costume; estes eram estabelecidos não pela razão ou pelo controle inteligente, mas pela repetição e pelas regras cegas. Bacon concebe a experiência como tendo o poder de liberar, de levar ao novo. Essa diferença foi menosprezada na história da filosofia. Para os gregos a matemática era superior às ciências, com exceção da medicina, que, no entanto, era considerada uma arte e não uma ciência. Platão dizia que as artes sociais não tinham um padrão, e a filosofia teria o objetivo ético de fornecer estes padrões, e quando conseguisse, eles deveriam ser consagrados pela religião, adornados pela arte, assimilados pela educação e reforçados pelos magistrados para que não mudassem. Dewey concebe a experiência como passível de auto-correção e aperfeiçoável. Seus limites são morais e intelectuais, se devem a dificuldades de nossa boa vontade e nosso conhecimento. O material que vem do passado, transformado e enriquecido pelos projetos do presente, empregado com métodos e propósitos de reconstrução específica; além disso, esse material, quando é testado e ajustado a uma tarefa, caracteriza o que Dewey chama de inteligência. A razão nada mais é do que a inteligência experimental, um modelo das ciências, usada para a criatividade artística e social. Planos são programas de ação e não dogmas. Na filosofia tradicional a razão serve a preconceitos, estimula a irresponsabilidade, pode conduzir ao absolutismo.

4.

A concepção de conhecimento do espectador.

Para satisfazer e contentar as emoções e dar maior intensidade ao fluxo da consciência, o que vem da experiência tende a ser alterado e suavizado se incomoda, e enaltecido em caso contrário. O homem de caráter tem dificuldade em lidar com as conseqüências desagradáveis de seus atos, ele usa de paliativos e disfarces. “O tempo e a memória são verdadeiros artistas, diz Dewey; eles remodelam a realidade e mais próximo possível do desejo do coração” (1948, p. 59). Quando a 8


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Ano I, número 1, 2009 imaginação fica mais livre e não é incomodada pelas situações mais problemáticas, a tendência é idealizar. Se há menos dificuldade, a imaginação é suave, se não, ela arquiteta castelos no ar para amenizar as frustrações. A concepção de uma Realidade última e suprema, a analogia entre o Céu, o Olimpo e o Mundo Ideal de Platão resultava de projeções idealizadas e selecionadas dos feitos mais admirados pelos gregos: mais poder, Inteligência, Sabedoria, Beleza perfeita. Aristóteles criticou as idéias de Platão como sendo coisas dos sentidos eternizadas. Mas não seriam também as Formas e as Essências aristotélicas “que tão profundamente influenciaram por séculos o curso das ciências e a teologia, senão objetos da experiência ordinária com suas manchas removidas, suas imperfeições eliminadas, suas falhas aplainadas, suas sugestões e pistas preenchidas?”, pergunta Dewey (1948, p. 60). Também em Santo Tomás, em Spinoza, em Hegel, os objetos da experiência cotidiana são divinizados para satisfazer desejos que a experiência não supriu. O transitório e o passageiro, tão enaltecidos pelos poetas, também são temas da filosofia platônica; o movimento e o não ser infectam o verdadeiro Ser. A verdadeira Realidade deve ser inalterável, prenhe de ser, fixo e distante das realidades imperfeitas da vida prática, com sua variedade, oposição, divisões e conflitos. O ser Último é Total, Uno, Auto Suficiente, enfim, é Perfeito. Aos graus de perfeição dos seres, correspondem degraus do conhecimento. O que muda não pode ser conhecido, daí as formas fixas do ser, elas permitem a referência aos objetos e entidades. Quanto mais próximo da permanência, mais conhecimento, aquele tipo de conhecimento que produz certeza, demonstrativo, exato. Por isso, contemplar é mais alto, mais divino e auto-suficiente do que o conhecimento prático do artesão, por exemplo, que produz mudança. Filosofia é o conhecimento puro, contemplativo, das formas puras. Há aperfeiçoamento da alma, e seu fim, segundo Platão, é libertar o olho da alma da lida confusa com as imagens das coisas, com as realidades inferiores que nascem e sucumbem, e conduzi-lo para a intuição do Ser eterno e celestial. Assim, a mente daquele que conhece é transformada. Ela se torna assimilada àquilo que conhece (DEWEY, 1948, p. 64). A essência divina da alma é pura contemplação, essa concepção prossegue com o neoplatonismo, com Santo Agostinho, com o cristianismo. Essa mesma tradição penetrou na cultura ocidental, se popularizou mesmo sem nenhum conhecimento daquelas teses filosóficas. Dewey diz que isso “foi legado a gerações de pensadores como um axioma inquestionável, a idéia de que o conhecimento é intrinsecamente uma mera contemplação ou visão da realidade – a concepção de 9


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano I, número 1, 2009 conhecimento do espectador (g.m.) (1948, p. 64). Essa concepção penetrou profundamente na tradição ocidental a despeito do progresso da ciência, para a qual o conhecimento tem um poder de transformar o mundo; é uma concepção que permanece séculos depois de a prática efetiva do cientista ter adotado o método da experimentação. A última coisa que um cientista faz é contemplar, até mesmo o astrônomo precisa de instrumentos e de teorias da física. O mundo é o material com que a ciência lida e o transforma. Justamente, o artesão de Platão, não toma o objeto em si, mas como uma referência para o que ele quer fazer com ele. Também é assim no estágio moderno do conhecimento, as propriedades dos objetos são descobertas em função de sua manipulação e não interessa o que é o objeto, sua natureza, sua essência. “As coisas são aquilo que elas permitem fazer e que se faz com elas“ (DEWEY 1948, p. 66) através de atitudes deliberadas. Entre os gregos o maior valor era dado à contemplação estética, à curiosidade estética, à vida bela e serena. Na vida moderna a realidade provoca e produz atividade, o que requer, inclusive, coragem; as coisas são plásticas, moldáveis, subordinadas às necessidades e projetos humanos. Mas o intelectualismo ainda prevalece; “o conhecimento como visão do espectador” é uma forma de compensar a impotência real e social do tipo de conhecimento dos antigos. Justificados pelas condições e detidos por falta de coragem em fazer de seu conhecimento um fator na determinação do curso dos eventos, encontraram um refúgio complacente na noção de que o conhecimento é algo demasiado sublime para ser contaminado pelo contato com coisas práticas e que mudam. Eles transformaram o conhecimento em um esteticismo moralmente irresponsável (1948, p. 67). Para Kant os objetos não são reais metafisicamente falando, e sim o espaço fenomênico, subjetivo. Mentes puras não são espaciais, podem se comunicar sem o obstáculo do espaço, que para Kant é uma condição para a experiência. Dewey propõe um novo tipo de ideal, não há necessidade, como há para Kant, de contrapor coisa em si e fenômeno, nem contemplação e ação instrumental. O espaço é algo com que se interage de forma objetiva, é preciso vencer distâncias, comunicar-se por telefone, telégrafo (e atualmente por recursos impressionantes da tecnologia). A idéia surge como possibilidade de ter um uso, por exemplo, como método de observação. O uso inteligente de uma idéia, plano, noção ou conceito pode transformar e melhorar o mundo existente. Também a filosofia se tornou operante, funcional, realizadora, o que não é mero utilitarismo, e sim uma confiança nas infinitas possibilidades da experiência humana. Porém, ao invés de usar esse método de controle ativo da natureza e da experiência, “tendemos a pensá-lo a partir do modelo de um espectador (g.m.) vendo 10


Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana Ano I, número 1, 2009 um quadro acabado ao invés de vê-lo a partir do artista produzindo a pintura” (1948, p. 71). Daí a filosofia ocupar-se com todas as questões da epistemologia, tão familiares ao estudioso, e que distanciam a filosofia das práticas, processos e resultados da ciência. Permanece a oposição entre a mente que contempla e o objeto remoto, estranho, e a grande questão (misteriosa) é a da relação sujeito objeto. Eles perguntam como uma mente e o mundo, sujeito e objeto, tão separados e independentes podem, de algum modo se relacionar um com o outro de modo a tornar possível o conhecimento verdadeiro. Se o conhecimento fosse concebido como ativo e operante, seguindo a analogia do experimento guiado por hipótese, ou da invenção guiada pela imaginação de alguma possibilidade, não é exagero dizer que o primeiro efeito seria emancipar a filosofia dos enigmas epistemológicos que a perturbam agora. Pois tudo isso surge de uma concepção da relação de mente e mundo, sujeito e objeto que limita o conhecer à apreensão do que já existe aí (1948, p 71). Daí haver na filosofia a disputa entre realistas e idealistas, fenomenólogos e aprioristas, e muitos estudantes ficam perdidos, acham que não têm mais o que estudar quando “são demovidos tanto da tarefa metafísica de distinguir entre os mundos noumênico e fenomênico e da tarefa epistemológica de dar conta de como um sujeito separado pode conhecer um objeto independente” (1948, p. 71). O realismo ingênuo é criticado por se equivocar no papel que atribui à apreensão dos fatos, o realismo considera que fatos só são apreendidos ao se tornarem objetos da investigação, o que conduz a uma epistemologia com sério risco de uma interpretação idealista. ”Se a noção de percepção como um caso de conhecimento adequado de seu objeto próprio de conhecimento for aceita, a relação de conhecimento é absolutamente ubíqua; é uma rede que inclui tudo. O predicamento do ego-centro é inevitável” (DEWEY, 2004, p.166). Rorty reconhece sua enorme dívida intelectual para com essas críticas de Dewey. Contra o realismo, cujo cerne é a noção de uma realidade em si separada da linguagem e do pensamento humano por um abismo, Rorty adere à noção que é o cerne do pragmatismo deweyano, não há dualismo entre mente e mundo, entre sujeito e objeto. Pelo contrário, o vazio, o abismo “se encontra na distância entre a humanidade de nossos dias e a utópica humanidade futura para a qual a própria idéia de responsabilidade com coisa alguma a não ser nossos semelhantes se tornou ininteligível, resultando na primeira cultura realmente humanística” (2007, p. 135). Quer dizer, podemos melhorar nossas relações e nosso futuro, essa é a única distância que nos separa de algum ideal, aquele que podemos construir com nossas próprias forças sem precisar apelar para a realidade nela mesma, para o ideal, para o conhecimento. 11


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5.

Atualidade e importância da concepção deweyana de filosofia.

Quando Dewey mostra que a semântica não é determinada na mente e sim nas disposições de comportamento, ele não só denuncia o mito do museu (significados como idéias platônicas, algo fixo e idealizado), como também, ressalta Quine, se renuncia a qualquer garantia de determinação. Mesmo se houvesse tal museu de significados não teríamos acesso a ele, diz Quine (cf. 1980, p. 134-135). A filosofia anti-representacionista parte do pressuposto de “que o progresso científico, tal como a moral, é uma questão de encontrar cada vez mais modos efetivos de enriquecer a vida humana” explica Rorty. Assim é que a filosofia tem a ver hoje com questões morais e sociais que nos afetam, que são urgentes. É possível minorar o sofrimento e detectar os males sociais, compreendê-los e retificá-los. Para Dewey a filosofia livre da vã metafísica e da inútil epistemologia seria um guia melhor para esclarecimentos fundamentais. Houve uma brutal mudança no conhecimento prático, mas ela afetou apenas o lado técnico da vida humana, houve progresso econômico, mas não progresso moral. Inclusive o progresso econômico causou problemas sérios (capital, trabalho, distanciamento entre classes sociais) e nossas políticas não se desenvolveram para solucioná-los; nossa educação é “crua e primitiva” e “nossas morais passivas e inertes” (1948, p. 72). Como conciliar a contemplação estética, as formas, o gozo estético com a ciência prática? Sem a ciência o homem sucumbe às forças da natureza; sem a arte se torna uma “raça de monstros econômicos” (p.73) que apenas barganham e desperdiçam. Um dos efeitos da tradição dualista foi a divisão entre Ocidente (que privilegiou a ciência) e o Oriente (que acentuou a contemplação). A filosofia poderia levar a um equilíbrio, a uma cooperação nas tarefas de uma cultura frutífera, emancipar o homem dos erros produzidos pela própria filosofia, de modo a realizar novos ideais não ilusórios nem compensatórios. Para Dewey a filosofia tradicionalmente buscou objetos eternos e fixos, em contraste, a ciência é processual, relacional, e hoje a filosofia deveria reconstruir através de experiência, os antigos projetos e transformar a realidade moral e social. Dewey é otimista, acredita que o uso inteligente da experiência teria, com relação à realidade social, econômica e política, o mesmo papel que teve na construção da ciência moderna. Seria ingenuidade da parte de Dewey achar que o modelo da física e da biologia, se aplicado às 12


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Ano I, número 1, 2009 ciências humanas, teria poder reconstrutor? Ou seja, seu naturalismo não é uma armadilha epistemológica? É preciso ver mais de perto o que Dewey entende por experiência, e mostrar que não se trata de um empirismo ao estilo dos neopositivistas, pois o naturalismo se apóia na biologia evolucionista e na psicologia. Mais uma vez, deve-se refinar a análise. A psicologia não é vista pelo ângulo de uma ciência humana que explicaria a mente, as associações psicológicas, enfim, os mecanismos psicológicos; a psicologia serve ao seu projeto de uma concepção nova de conhecimento: ele é ativo, não há uma mente ou uma “alma” intrínseca ao sujeito, não há o sujeito pensante de um lado e objeto a ser representado, de outro lado. Ou como explica Rorty, Dewey concordaria com os pressupostos teóricos pós-Kuhn “para quem o termo ‘método científico’ significa pouco mais que a injunção de Peirce para permanecer experimental e aberto em nossa visão – assegurar que não se está bloqueando a estrada da investigação” (2007, p. 192). O ataque de Platão e Aristóteles aos sofistas pode ser considerado como a derrota da ação; no lugar do reconhecimento de práticas nas quais estão envolvidos indivíduos que convivem em uma sociedade com seus problemas e peculiaridades, a proposta de Platão e Aristóteles é a de uma política conduzida pela elite intelectual; as diferentes ocupações são cindidas, divididas entre as artes e as técnicas, que representam a lida dos artesãos e escravos, e as ocupações mais elevadas, dos governantes; estes pensam, contemplam a verdade, não devem e nem precisam agir. O espírito mordaz e crítico de Dewey, o que ele chamou de “método genético”, usa da sociologia, da antropologia e da psicologia, para dar uma nova significação à filosofia e, em especial, à epistemologia, mas sem a pretensão de que esta se torne uma disciplina. Não há um objeto de estudo privilegiado chamado o conhecimento científico. “Ao invés de disputas sobre a natureza da realidade, temos a cena do conflito [...], ao invés de tentativas para transcender a experiência, temos os anais (g. m.) significativos dos esforços dos homens para reduzir a fórmulas as coisas da experiência, às quais eles estão tão profundamente ligados” (DEWEY, 1948, p. 52). A filosofia pode mostrar quais são as forças morais da humanidade e contribuir para as aspirações dos homens, deve-se analisar e mostrar os embates atuais, as lutas entre crenças e ideais sociais, esta é a proposta política de Dewey, clarificar as idéias dos homens, ou seja, eles precisam saber de onde elas surgiram, e afastar a noção de que idéias e ideais devam ser submetidos a esquemas teóricos, tais como o dualismo sujeito/objetos, mente/mundo. O programa de Dewey é a reconstrução, pela educação e pela democracia, melhorar os meios sociais e morais, pela ciência e pela experiência produzir mudanças sociais, desde que se faça uso inteligente da experiência, ou seja, planejar, usar métodos e hipóteses que renovaram a ciência, 13


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Ano I, número 1, 2009 aplicados às agruras sociais. O que até poderia soa como utopia ao estilo comtiano: “o conhecimento é poder e conhecimento se obtém mandando a mente para a escola, para a natureza, para aprender seus processos de mudança” (1948, p. 29). Entretanto, contra qualquer postura fundacionista, para Dewey a história não é feita de princípios eternos, com jurisdição formal e categórica sobre a razão, para cercar e fixar a verdade de modo formal, a priori e idealista. É possível mudar os homens e mudar seu destino, não há uma essência única, escondida, mental. É preciso coragem, inteligência e esforço. Não há natureza humana eternizada na alma que contempla, no cogito cartesiano; novos modelos podem ser criados sempre. Podemos experimentar, a natureza é aberta a novas experiências, não há uma razão universal que a tenha modelado uma vez por todas. Rorty mostra que o naturalismo de Dewey pode se voltar contra seu projeto de reconstrução no sentido de que há um papel excessivo e unilateral da experiência e da biologia “psicológica”; como confiar que ciências possam dar conta de todo um projeto de reconstrução, se elas próprias são fruto da história dos homens? Mas isso que poderia ser visto como uma metafísica naturalística (cf. RORTY, 1982) é equacionado pela crítica de Dewey à teoria do espectador e pelo seu modo de entender a experiência como atividade transformadora e inteligente. Segundo Rorty, Dewey estudou o desenvolvimento cultural, o papel das ciências sociais, mostrou quais são as raízes históricas da metafísica e sua relação com a matemática e a física. A teoria do espectador limita o conhecimento a uma imagem, a do olho que vê o que sempre foi considerado pela tradição platônico-cartesiana como superior à mão que semeia. Por detrás há uma política de preservação de uma aristocracia platônica, indiferente ao programa de renovação pela educação e pela democracia. O modelo epistemológico da representação encilha as potencialidades das mentes, da inteligência, da ação em formas platônicas, idealizadas, eternas. Dewey não oferece um modelo, ele, inclusive, reconstruiu seu próprio conceito de experiência: Devemos ver experiência não a partir da concepção tão batida apresentada pela filosofia, mas devemos ver a nova fé que funda a expressão em nossa linguagem comum, em nossas expressões idiomáticas, mas também nos vários movimentos desligados um do outro porque independentes um do outro assumidos na busca de experiência. Assim, para ver e apreender experiência é necessário superar a inabilidade cultivada de ver o que deve ser visto nas continuidades dispostas pelo que está em processo e somente pelo que está em processo (1988, p. 361).

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Referências Bibliográficas DEWEY, John. Reconstruction in philosophy. Boston: Beacon Press, 1948. . Experience and nature. South Illinois University, 1988. . Essays in experimental logic. New York: Dover Publications, 2004. QUINE, W. V. N. Relatividade ontológica. In Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980. RORTY, Richard. Consequences of pragmatism. NewYork: The Harvest Press, 1982. . Philosophy as cultural politics. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. Professora doutora pesquisadora no programa de pós-graduação Mestrado em Filosofia PUCPR, membro do GT Pragmatismo e Filosofia Norte-Americana. ineslara@matrix.com.br

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Ano I, número 1, 2009

Resenha WEBER, Michel. Éduquer (à) l'anarchie - La fin de l'université. Bélgica: Les éditions Chromatika, 2008. 238 pág. Por Susana de Castro

O título deste último livro do filósofo belga Michel Weber, diretor do Centro de Filosofia Prática “Chromatiques whiteheadiennes”, em Bruxelas, nos aponta para duas possibilidades, ‘educar a anarquia’ e ‘educar para a anarquia’. Trata-se de duas possibilidades antagônicas. Optando-se por uma têm-se o afastamento da outra. O seu subtítulo também remete a duas possibilidades antagônicas. A educação superior universitária vive um momento de decadência, isso parece-lhe inquestionável. Essa decadência, porém, pode levar a universidade a dois caminhos distintos. Pode levar tanto a seu aniquilamento, quanto a sua renovação. Michel Weber aposta nessa segunda possibilidade. Seu livro é um “plaidoyer pela renovação do conceito de democracia a partir de um reinvestimento no mundo da educação” (p. 152). Apoiando-se nas categorias fundamentais do sistema filosófico-cosmológico do filósofo britânico Alfred North Whitehead (1861-1947), mostra que dada a organicidade do real, i.e., a relação unitária de seus principais elementos, as bases para a construção de uma sociedade mais solidária e democrática (política) está apoiada na reestruturação da educação sob as bases da reflexão e do pensamento (mundo do espírito, filosofia). Na visão de Weber, a universidade atual é responsável, em grande medida, pelas mazelas sociais, morais e econômicas porque passamos, pois não oferece mais alimento espiritual, reflexão criativa e múltipla, para a sociedade. O papel educacional das universidades de promover a vida do espírito e a cultura foi destruído há pelo menos trinta anos desde que a lógica do mercado invadiu os corredores universitários impondo à academia o modelo de otimização empresarial. A produção acadêmica passou a ser quantificada levando os acadêmicos a competir entre si e, no afã de ganhar verbas públicas e privadas, a direcionar suas pesquisas para as demandas do mercado. Antes 1


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Ano I, número 1, 2009 vanguarda do pensamento, hoje a universidade é uma serva obediente dos interesses econômicos dominantes, diz Weber. Hoje, vigora o projeto de ‘educar a anarquia’. ‘Anarquia’ é usado aqui no sentido básico e etimológico de ‘sem governo’ e ‘sem princípio’. Na medida em que desvinculam a educação de sua função social e cívica, de construção de uma rede solidária, interdependente, entre as pessoas, ao mesmo tempo em que espaço de pensamento crítico, as universidades reforçam o individualismo e conformismo reinantes. Educar a anarquia é, portanto, reforçar o modelo da preguiça intelectual, segundo o qual as explicações uníssonas vinculadas pelos meios mediáticos expressariam a mais pura verdade. Esse quadro de pobreza intelectual é agravado pelo modelo de felicidade através do consumo que a indústria tecnológica propagandeia: “o indivíduo é feliz se consome”. Evidentemente nem todos atingem o mesmo nível de consumo. As injustiças inerentes a esse modelo neo-liberal de capitalismo de mercado, no qual as riquezas não são distribuídas de maneira uniforme, não geram críticas nem subversão, pois tanto o consumo ativo, quanto o desejo de consumo produzem o mesmo efeito, a apatia política e a uniformidade de pensamento. Weber compara a sociedade neo-liberal do conformismo político e do consumismo à sociedade totalitária descrita por George Orwell em 1984. Na ficção, Orwell descreve um estado totalitário, Océania, no qual vigora o “Ingsog” (abreviação de ‘English Socialism’ na ‘nova língua’). Nesse país, os agentes de segurança são treinados para empregar um programa de controle de pensamento bem sofisticado que torna os habitantes da cidade incapazes de qualquer idéia subversiva. Os pilares desse programa são o “Doublethink” (pensamento duplo), que leva o indivíduo a admitir teses contraditórias como verdadeiras e a negar fatos do passado, e a “Newspeak” (nova língua) que reduz o vocabulário clássico de palavras utilizadas normalmente por um falante da língua a um número menor de vocábulos. Neste último caso, o efeito atingido é o de impedir a formulação de pensamento já que sem linguagem e sem palavras não há pensamento. Segundo Weber, a pobreza e a falta de clareza empregadas hoje pelos jornalistas na difusão e análise das notícias está contribuindo, da mesma forma que na ficção de Orwell, para a incapacidade cada vez mais crescente na população de formulação de algum pensamento crítico ou desviante da versão oficial, divulgada amplamente e sem restrição. Em uma sociedade totalitária de capitalismo de mercado de tipo neo-liberal o regime dito democrático pouco tem de democrático visto que as possibilidades de ação política ativa e de autogoverno são propositadamente abafadas. A falta de preocupação com a coisa pública e a despolitização da população facilitam o loteamento do Estado pelos representantes do mercado. Além da apatia do eleitor, decorrente dos fatores acima mencionados, os políticos que, na verdade, 2


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Ano I, número 1, 2009 representam os interesses do livre-mercado, detém o poder de construir narrativas de ameaças externas que lhes autorizam toda uma série de atos arbitrários, desde a tortura até a censura, sem que isso suscite alguma forma de protesto ou crítica. A narrativa amplamente divulgada nos meios de comunicação de massa sobre a ameaça do terrorismo muçulmano, após o 11 de setembro, teve justamente esse efeito paralisante, desejado pelo governo americano a fim de que pudesse propor uma política de guerra sem questionamento ou protesto. Weber não se deixa levar, entretanto, pelo pessimismo absoluto. Acredita que a síntese entre o pensamento político filosófico platônico e a metafísica cosmológica whiteheadiana, ou seja, a adaptação do modelo orgânico rígido de cidade ideal platônico às novas demandas espaço-temporais pós-modernas, exemplificadas pelos conceitos centrais da ontologia processual e criativa de Whitehead, podem nos ajudar a construir um novo modelo de educação, a ‘educação para a anarquia’. ‘Educar para a anarquia’ significa educar tanto para a independência (sem-governo), quanto para o reconhecimento da interdependência, isto é, o reconhecimento, anunciado por Platão na República, de que apesar diferentes, ninguém se basta a si mesmo (República, 369b). Essa noção de anarquia, de sem governo, era, entretanto, completamente estranha aos gregos, visto que a união orgânica entre a religião, a ciência, a filosofia e a política, fazia com que acreditassem haver uma analogia entre a ordem do cosmos, a ordem da natureza, a ordem dos deuses e a ordem do conhecimento humano. Conhecer para Aristóteles era descobrir os princípios (archai). A idéia de um cosmos e de uma natureza finitos governavam, portanto, a interpretação filosófica do real. Enquanto perdurou a imagem espacial finita do mundo, manteve-se, como mostra Weber, a noção fundacionista do conhecimento: ‘nada que ocorre no mundo é aleatório, pois tudo que existe deve ter uma causa que provoque a sua existência, seja ela o logos ou a vontade divina’. O quadro categorial causal de descrição do real foi, entretanto, posto em xeque a partir das descobertas astronômicas de Galileu e Copérnico, quando ficou patente que a intuição de Giordano Bruno de que o universo era infinito era verdadeira. O universo era an-archai, sem princípio. Ficamos, então, sem fundamento nenhum do conhecimento do real? Chegamos ao caos? As descobertas científicas de Galileu e Copérnico delimitam épocas histórias. Com eles adentramos uma nova era histórica, não mais medieval, e sim moderna. Do ponto de vista filosófico, a modernidade começa quando Descartes anuncia a descoberta do pensamento fundante, o sujeito. O sujeito, o pensamento que se pensa a si próprio, passa a ser a partir daí o fundamento (arché) de todo conhecimento. Os empiristas, e mais tarde os estruturalistas, invertem essa idéia 3


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Ano I, número 1, 2009 cartesiana de um sujeito fundante puro, ao provar que não há mente sem cultura, ou seja o sujeito é uma construção temporal e cultural, determinado pelos valores de seu tempo. A história e a cultura é que seriam o ‘fundamento’ do conhecimento, e uma vez que são instáveis, pois mutáveis, não poderíamos mais utilizar o termo fundamento, visto que esse termo pressupõe a identificação de princípios eternos. Depois da virada espacial moderna que desestabilizou a visão grego-cristã do mundo, ocorrerá uma virada temporal que desestabilizará a visão cartesiana do sujeito pensante, a saber: o anuncio feito por Herbert Spencer (1820-1903) no Principles of Psychology (1855) de que a mente humana era adaptativa do ponto de vista da filogenia, ou seja, o aparato cognitivo humano evoluia para adaptar-se ao meio. Depois dessa segunda virada radical, o quadro estável e finito da ordem metafísica do mundo cai definitivamente por terra. Essa segunda virada caracteriza a entrada do conhecimento em uma nova era, pós-moderna. Se a mente evolui, isso significa que não há limite para a possibilidade de inovação e não há como antecipar ou determinar os objetos do real. A visão do mundo muda completamente após essas mudanças radicais dos conceitos de espaço e tempo, diz Weber. Whitehead cria um novo quadro conceitual sistematizando os elementos básicos dessa nova (des-)ordem infinita, a qual ele chama de ‘avanço criador’. A característica básica do real é ser processual e eventual. Os eventos, ou acontecimentos, ocorrem de modo aleatório e imprevisível, mantendo uma opacidade fenomênica, dado que não se pode determinar sua causa. Mas esse estado processual dos fenômenos não é completamente aleatório, pois é guiado pelo ‘avanço criador’ e seus três elementos, ‘criatividade’, ‘eficácia’ e ‘visão’. Se a metafísica dos eventos e do processo nos conduzisse a conclusão de que tudo é imprevisível e, portanto, não há nada que o ser humano possa fazer para modificar o real, então, estaríamos, de certa forma, justificando a atitude conformista típica da nossa era apática. Não é esta, entretanto, a conclusão de Weber. Justamente por vivermos em uma época em que a criatividade e a mudança são moedas correntes, faz-se mais ainda necessário a ação política que congregue as diversas visões de mundo. O espaço político é o espaço da ação. Espaço no qual escapamos ao estado contingencial e aleatório dos fenômenos, na medida em que nos direcionamos para as conseqüências. É no plano do pensamento consequencialista, próprio à ação e ao planejamento políticos que encontramos a nossa realização plena. Assim sendo, educar para a anarquia é educar para a construção de uma sociedade pós-liberal, na qual haja um resgate da noção de cidadania ativa grega. O cidadão grego educava-se

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Revista Redescrições – Revista on line do GT de Pragmatismo e Filosofia Norte-americana Ano I, número 1, 2009 não para seu usufruto pessoal, mas para melhor atuar na pólis, na arena dos negócios públicos, na qual estava em jogo o bem estar comum. Os valores compartilhados por todos a partir da formação comum paidêutica, forjava no espírito do grego o sentimento de copertencimento, vital para a união dos diversos seres independentes. Weber acredita ser urgente recuperarmos esse sentimento comunitário e essa é a tarefa da educação para a anarquia da universidade nova, em uma sociedade pós-liberal e verdadeiramente democrática. Nesse livro Weber mostra que não é possível entender a metafísica processual de Whitehead sem que levemos em conta a moldura histórica em que ela surge, a saber, a moldura caracterizada pelas rupturas espaciais modernas e temporais pós-modernas. As descobertas da biologia evolutiva impõem a reformulação das categorias metafísicas gregas, mas não o aniquilamento de todo projeto metafísico fundacionista como querem os filósofos pós-modernos desconstrucionistas. Weber filia o pensamento de Whitehead à vertente construcionista da pós-modernidade, pois trata-se para Whitehead de renovar o pensamento metafísico, dandolhe uma nova roupagem categorial. O conceito central dessa nova roupagem é o conceito de criação. O universo fenomenológico e existencial dos seres é estruturado pelo princípio do surgimento irruptivo do novo. A leitura deste livro abre os estudos pragmatistas para um modo novo de direcionamento do seu conceito central, o de ação. Trata-se, portanto, de uma leitura imprescindível para todos que estudam o pragmatismo e suas diversas tendências. Um livro provocador, principalmente, para os leitores acostumados à crítica rortyana a todo discurso metafísico fundante, e à crítica deweyana a toda tentativa de isolar a teoria da prática.

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Esta versão da revista Redescrições manteve a paginação de cada artigo como de sua primeira publicação on line

Ano I, número 1, 2009 ISSN: 1980-881X


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