Júlia Bezerra • Lucas Reginato
MANGUEBEAT Guitarras e alfaias da lama do Recife para o mundo
Realização:
© Júlia Bezerra e Lucas Reginato Diretor editorial Marcelo Duarte Diretora comercial Patty Pachas Diretora de projetos especiais Tatiana Fulas Coordenadora editorial Vanessa Sayuri Sawada
Diagramação Elis Nunes Preparação Beatriz de Freitas Moreira Revisão Marina Ruivo Impressão Loyola
Assistentes editoriais Mayara dos Santos Freitas Roberta Stori Assistente de arte Mislaine Barbosa
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ Bezerra, Júlia Manguebeat: Guitarras e alfaias da lama do Recife para o mundo / Júlia Bezerra, Lucas Reginato. – 1. ed. – São Paulo: Panda Books, 2017. 176 pp. ISBN: 978-85-7888-622-6 1. Música. 2. Manguebeat – Recife (PE) – História. 3. Música popular – Brasil – História. I. Reginato, Lucas. II. Título. 16-36242
CDD: 782.42164098134 CDU: 78.067.26(813.4)
2017 Todos os direitos reservados à Panda Books. Um selo da Editora Original Ltda. Rua Henrique Schaumann, 286, cj. 41 05413-010 – São Paulo – SP Tel./Fax: (11) 3088-8444 edoriginal@pandabooks.com.br www.pandabooks.com.br Visite nosso Facebook, Instagram e Twitter. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem a prévia autorização da Editora Original Ltda. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei no 9.610/98 e punido pelo artigo 184 do Código Penal.
A Chico Science
SUMÁRIO Introdução, 9 Fred Zero Quatro De Jaboatão ao mundo livre de Candeias, 13 Renato L. Resistência do rock no Recife, 21 Chico Science Menino-caranguejo de Olinda, 31 Gilmar Bola Oito Som e luta no Lamento Negro, 51 Otto Maximiliano Os olhos azuis do batuque nordestino, 63 Hélder Aragão O primeiro punk de Sergipe, 75 Carlos Eduardo Miranda Desafios do mercado fonográfico, 83 Ariano Suassuna O grão-mestre da cultura popular nordestina, 103
Jorge du Peixe A grande missão de um mangueboy, 149 Referências bibliográficas, 171 Agradecimentos, 173
INTRODUÇÃO A comunhão de povos das mais diversas origens fez do Brasil no século XX um fantástico laboratório de ritmos e melodias. Dos sambas de escravos recém-libertos na Bahia à colorida música eletrônica de indígenas no Pará, canções tristes e alegres narraram a vida nacional para quem quisesse ouvir. Nos anos 1960 e 1970, em São Paulo, egressos da bossa nova carioca agitaram uma nova cena que daria origem ao termo MPB. Na década de 1980, a periferia do Rio de Janeiro foi invadida pelo funk norte-americano de James Brown e acabou recriando o estilo por completo. Os anos 1990 ficaram marcados por testemunharem o encontro do rock e do hip-hop com o maracatu no Recife, resultando em uma mistura que ficou conhecida como manguebeat. Esses três movimentos foram escolhidos para compor uma coleção de livros que homenageia a riqueza e a diversidade da música brasileira. Neste volume, você irá conhecer a história do Manguebeat, cena cultural nascida no Recife, marcada tanto pela inovação musical como por uma inesperada tragédia – a morte precoce do líder Chico Science, no auge da carreira. *** MANGUEBE AT
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Considerada metrópole do Nordeste, Recife é a capital de Pernambuco, estado nomeado em homenagem ao pau-brasil (pernambouc, em francês), extraído aos montes por lá e mandado para a Europa para se transformar em arco de violino. É cortada pelo rio Capibaribe, sobre o qual se construiu uma série de pontes que permitem o fácil traslado de uma margem a outra e em cujo leito vive um ecossistema fértil com mais de 2 mil organismos, conhecido como mangue. A noção de progresso, no entanto, é uma fachada. Quando olhada de frente, Recife vira hellcife: o inferno à beira-mar. No início da década de 1990, o Population Crisis Committee (PCC), comitê norte-americano sem fins lucrativos que trabalha pela conscientização social em relação ao crescimento populacional em países subdesenvolvidos, classificou Recife como a quarta pior cidade do mundo para morar. A crise econômica da década de 1980 – a “década perdida” – havia castigado a cidade, que detinha o maior índice de desemprego do país, provocado por uma retração agressiva da produção industrial. Mais da metade de seus habitantes eram pobres, favelados e esfomeados. Com a inflação batendo recordes e a volatilidade dos mercados, estabelecimentos comerciais mal se mantinham de pé. Uma cidade nessas condições não poderia prover uma estrutura decente de lazer a seus habitantes, muito menos um circuito ativo de vida noturna. A juventude se virava para se divertir por conta 10 Júlia Bezerra e Lucas Reginato
própria, muitas vezes dentro de casa mesmo, na companhia dos amigos e da bebida mais barata da vendinha da esquina. Na zona portuária, próxima ao marco zero da cidade, perambulavam prostitutas, cafetões, marinheiros e contrabandistas, que buscavam sobreviver em meio a tanta desigualdade social. E, como se isso não bastasse, os efeitos degradantes não eram sentidos apenas pelos habitantes humanos de hellcife. Os rios e estuários do Recife, a alma verde da cidade, agonizavam ao pagar o preço do que se costumava chamar “progresso”. *** Aos olhos de fora, contudo, Pernambuco era colorido, festeiro e esbanjava folclore brasileiro. Um predomínio absoluto de valorização da música regional de raiz isolava Recife do circuito de polos da música nacional. As portas eram praticamente fechadas para quem tentasse desafiar os padrões e criar um som nordestino antenado com seu tempo. Nesse cenário aparentemente inóspito, um grupo de artistas do gueto do Recife se uniu para criar o movimento manguebeat, ou “batida do mangue”. O “mangue” era o que ainda restava do organismo vivo da cidade, e o “beat”, um impulso elétrico que ele necessitava para voltar à vida. Para resgatar a cidade, seriam MANGUEBE AT
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acionados os Chamagnathus granulatus sapiens, os “caranguejos com cérebro”. Outrora soterrados pela enérgica lama do mangue, esses seres se reergueriam para revelar os surpreendentes frutos daquele ambiente tão fétido e tão fértil.
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FRED ZERO QUATRO De JaboatĂŁo ao mundo livre de Candeias
Fred Rodrigues Montenegro veio ao mundo em 11 de julho de 1965, em terra de revolucionários: Jaboatão dos Guararapes, município do Grande Recife, é conhecido por ter sido palco das Batalhas dos Guararapes, em 1648 e 1649, que resultaram no término das invasões holandesas no Brasil Colônia. Apesar de a região praiana, próxima ao litoral sul do Recife, ser mais populosa, Frederico cresceu no interior do município, a cerca de vinte quilômetros da metrópole. O ambiente suburbano e conservador combinava com a figura do pai, José Rodrigues Montenegro – o Zelito –, militar de personalidade agitada. Como boa parte da classe média da década de 1970, ele apoiava o regime ditatorial que havia sido instalado no país em 1964, por meio do golpe civil-militar. Não apenas o Exército, mas também a grande mídia, as elites e parte considerável da população estavam engajados na derrubada do presidente democraticamente eleito, João Goulart, em favor da instalação de um governo militar. A consolidação do apoio popular veio logo no início do novo regime, depois de medidas estratégicas que resultaram no chamado “milagre econômico”, período caracterizado por níveis excepcionais de crescimento da indústria. 14 Júlia Bezerra e Lucas Reginato
Fred perdeu as contas de quantas vezes a família – composta pela mãe, dona Eliete, o pai, Zelito, e cinco filhos – mudou de endereço ao longo de seus primeiros nove anos de vida. Em 1974 foram parar na capital pernambucana, no bairro de Afogados, mas no ano seguinte voltaram a Jaboatão, estabelecendo-se dessa vez em Piedade, no litoral. Fred já estava acostumado a pingar de casa em casa quando se mudou para a avenida Abdo Cabus, em Candeias, região vizinha a Piedade, onde, finalmente, a família se acomodou. Já com 12 anos, ele passaria lá o restinho da infância e toda a sua adolescência, culminando na fundação da banda Mundo Livre S/A, que, junto com Chico Science e Nação Zumbi, funcionaria como propulsora da cena musical do Recife. *** Se tinha algo que derretia o patriarca da família Montenegro era a música. O vozeirão afinado do pai de Fred parecia ter sido feito para a seresta, gênero musical que predominava nas varandas das casas do interior de Jaboatão. Mas, curiosamente, o gosto musical do militar durão não se deixava contaminar por seus ideais conservadores. Da maneira mais inusitada, entre um Altemar Dutra e um Nelson Gonçalves, ouvia-se, no toca-discos da residência dos Montenegro, o som atrevido de Jorge Ben, Elza Soares, Jair Rodrigues, Miltinho e Wilson Simonal. MANGUEBE AT
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Os alquimistas estão chegando Estão chegando os alquimistas No ano em que completou 12 anos Fred ganhou um violão de seu pai, presente por ter passado direto na escola. O garoto andava obcecado por “A tábua de esmeralda”, disco de Jorge Ben de 1974. Era fascinante como o músico carioca tinha conseguido adicionar elementos do rock ao samba de forma tão harmoniosa. Ao posicionar o instrumento, Fred tentou imitar a levada do mestre, mas não conseguiu nem afinar as cordas. Lembrou-se, então, de um letreiro que tinha visto em um prédio a duas quadras de sua casa: “Aulas de violão aqui”. Ansioso por usar o novo brinquedo, correu até o vizinho – guitarrista de uma banda de bailes que tocava rock e pop rock no Clube Jaboatonense – e negociou um “pacote para iniciantes”. Duas semanas bastaram para Fred aprender os principais acordes, a afinação básica e algumas indicações musicais. Na primeira aula ele aprendeu três acordes e compôs uma canção, deixando o professor boquiaberto. Teve contato com o som de bandas como Kiss e Suzi Quatro, que se sobressaíam na discoteca do professor, e se empolgou com a ideia de aprender a tocar rock. No entanto, foi obrigado a largar prematuramente o curso com a mudança da família para Candeias e passou a se virar com as revistas de cifras 16 Júlia Bezerra e Lucas Reginato
vendidas em bancas de jornal. Não se importava em ter uma técnica apurada; seu negócio era pegar o violão e deixar rolar. Quando viu, estava tirando músicas de ouvido e compondo as próprias melodias. – Ei, Fred, venha tocar aqui na sala! Apesar da insistência do pai, que ansiava por mostrar aos amigos o talento musical que dele o moleque herdara, Fred detestava tocar em público. Frequentava festivais e a noite recifense, mas sua timidez descartava a possibilidade de se meter em luaus ou bater na porta de barzinhos para mostrar dotes artísticos. Em seu momento de maior ousadia, arriscou composições em parceria com colegas para festivais de colégios de classe média. Na verdade tocava mesmo era sozinho, já que não tinha amigos próximos que compartilhassem o mesmo gosto pela música. – Abaixa esse som, Fred! Dona Eliete não tinha um momento de paz. Fred aproveitava as promoções e comprava discos de todos os tipos na Mesbla Magazine, passando os dias tocando violão e ouvindo no máximo volume Jorge Ben, Suzi Quatro, Led Zeppelin, Silvester, Rick James, Slade, Rolling Stones e The Who, por vezes na companhia dos irmãos Tony e Fábio, os caçulas. Fred então deixou o violão um pouco de lado, o que acabou despertando sua veia criativa. Quando voltou a tocar, na adolescência, queria compor de tudo um pouco: MANGUEBE AT
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forró, samba, rock, country, progressivo, tango, qualquer coisa que fosse música. *** Não foi fácil para Fred convencer a família de que o que ele queria mesmo era investir em sua música. Zelito era tão entusiasta da instituição militar que convocou o pequeno Fred, ainda com nove anos, a fazer um concorrido teste para entrar na quinta série do então curso ginasial do Colégio Militar do Recife, comandado pelo Exército. Fred passou e, em plena ditadura, foi educado por professores militares, cumprindo uma grade escolar composta por disciplinas como educação moral e cívica, cujo objetivo era exaltar a importância de valores ultraconservadores para a vida em sociedade. De duas, uma: ou ele sairia de lá infestado por ideias reacionárias ou um crítico ferrenho ao sistema que era obrigado a aceitar. No Colégio Militar Fred teve seu primeiro contato com o rock pesado, influenciado por alguns colegas. Mais tarde, já em Candeias, fez amigos surfistas e, enquanto os ajudava a fazer pranchas, namorava a coleção de discos e fitas cassete que essa galera trazia de fora. Passou a pegar discos emprestados e conheceu o rock progressivo das bandas Yes e Rush. Quando Fred fez 13 anos, mais de uma vez seu pai quis encaminhá-lo para a carreira militar e sugeriu-lhe 18 Júlia Bezerra e Lucas Reginato
um curso de cadete. Nada feito. Aos 15, nova proposta: por que não tentar uma vaga na Academia Militar das Agulhas Negras? Isso de nada adiantava, pois se tornar oficial do Exército Brasileiro definitivamente não era o seu negócio. A bater continência, Fred preferia ler O Pasquim, uma das poucas publicações que naquela época conseguia driblar a censura prévia e, com linguagem cifrada, seguir fazendo oposição à ditadura. Ao assistir a um show da banda Vermelha das Trevas, em um bar na avenida Bernardo Vieira de Melo, em Candeias, foi chamado pelo guitarrista para subir ao palco e assumir o instrumento. Fred tinha 16 anos e era a primeira vez que tocava uma guitarra. Saiu de lá obcecado por formar uma banda e passou a dedicar seu tempo livre a arriscar overdrives e a ensinar o irmão Fábio a acompanhá-lo no baixo. Afoito por realizar seu objetivo, deu aulas de guitarra a Neguinho e até de bateria a Avron, seus amigos. Com a trupe afinada, montou a Trapaça, banda de pós-punk que, para o desespero de dona Eliete, fazia uma barulheira danada na garagem da casa dos Montenegro. Contrariando a conservadora família, em 1982 Fred acabou ingressando no curso de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E lá começou a grande reviravolta que daria rumo a sua vida. *** MANGUEBE AT
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Fred andava cabisbaixo durante o primeiro ano de faculdade. Estava com 17 anos, gostava do curso e de frequentar o meio universitário. Ele se interessou pelo marxismo e passou a fazer parte do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8). Mesmo assim, não se conformava em ainda não ter conseguido encontrar um único colega com quem pudesse compartilhar suas descobertas musicais. Tanto na UFPE como na Universidade Rural de Pernambuco (UFRPE) predominava o culto ao movimento armorial – iniciativa artística com o objetivo de criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste brasileiro –, liderado pelo letrista Ariano Suassuna, que lecionava algumas matérias. Portanto, quem mencionasse a guitarra ou o rock’n’roll dentro do prédio do Centro das Artes, onde era ministrado o curso de comunicação, seria recebido como um grande herege! As coisas começaram a mudar no terceiro período, quando Fred entrou na sala de aula e deu de cara com o amigo Renato L.
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