Cidade Marina – o sonho de Niemeyer no sertão mineiro que a ditadura abafou

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ESPECIAL ESTADO DE MINAS

DOMI NGO, 3 DE SETEMBRO DE 2017

A IRMÃ DE BRASÍLIA

QUE MORREU ANTES DE NASCER O ESTADO DE MINAS REVELA A HISTÓRIA DA CIDADE SUSTENTÁVEL PROJETADA POR NIEMEYER NO SERTÃO MINEIRO E SUFOCADA PELA DITADURA POR SUPOSTAMENTE ABRIGAR LÍDERES DA LUTA ARMADA E SERVIR DE DEPÓSITO DE ARMAS LUIZ RIBEIRO E RENAN DAMASCENO (TEXTOS) ● ALEXANDRE GUZANSHE (FOTOS) ENVIADOS ESPECIAIS

Arinos – As árvores curtas e tortuosas do sertão mineiro dominam a paisagem. Do ponto mais alto da Fazenda Menino, que há meio século se estendia por 90 mil hectares, no Noroeste de Minas, enxerga-se a imensidão de terra, rios e ribeirões que sofrem com a estiagem, vacas magras, buritis, cagaitas, barbatimãos e uma pista de pouso de 1,2 quilômetro, que corta como fenda o chão arenoso do cerrado. Esse cenário roseano, hoje ermo, alimentou há 50 anos um dos projetos mais ambiciosos do país – paralisado por disputas de terra, sufocado pela ditadura militar e, até agora, um capítulo oculto da história do Brasil. Trata-se da construção de Marina, a única cidade projetada por Oscar Niemeyer (19072012) no Brasil, irmã à sombra de Brasília. Um projeto audacioso assinado pelo arquiteto em meados de 1956, meses antes do início da construção da nova capital federal, encomendado pelo empresário Max Hermann, carioca de ascendência alemã que sonhava em cons-

truir uma cidade para 200 mil habitantes no Vale do Urucuia para homenagear a mulher, Marina Ramona. Se Brasília teve o “corpo” traçado por Lucio Costa, Marina era Niemeyer de corpo e alma. O projeto, que previa o paisagismo de Roberto Burle Marx (1909-1994) e execução do engenheiro Paulo Peltier de Queiróz, trazia traços do idealismo do arquiteto carioca. Uma cidade sustentável, tão almejada nos dias atuais, implantada ao lado de uma colônia agrícola, valorizaria a circulação de pedestres e garantiria a seus moradores “a calma e a segurança tão raras nas cidades modernas”, como define o próprio Niemeyer no Memorial Descritivo da Cidade Marina. Além disso, a cidade seria ligada por asfalto à futura capital federal, distante 200 quilômetros, para a qual serviria de abastecimento. Durante o governo do mineiro Juscelino Kubitschek (1956-1961), de quem Max Hermann era um entusiasta, anúncios de

venda de terrenos ocupavam páginas inteiras nos jornais cariocas. Escritórios foram montados – inclusive em Belo Horizonte, no Edifício Dantés, no Centro –, sob a promessa de acesso às imensas riquezas e possibilidades da nova capital e da região do Vale do São Francisco. Mas o projeto foi ruindo ao passo que a política brasileira trocava de mãos. Em 1962, a Ruralminas, antiga autarquia responsável pela reforma agrária no estado, considerou devolutas as terras de Hermann, adquiridas por meio de um espólio, o que deu início a uma batalha de décadas com estado e posseiros. A partir de 1964, com a ditadura militar, o projeto foi sufocado para sempre, uma vez que Hermann era financiador e ligado ao Partido Comunista, dando início a anos de repressão, prisões e presença de militares na Fazenda Menino. Durante seis meses, a reportagem do Estado de Minas levantou documentos, arqui-

vos de jornais, entrevistou historiadores e biógrafos, localizou herdeiros da família Hermann, visitou e falou com moradores da Fazenda Menino, que sofreram com a repressão da ditadura. “Meu pai deu murros em ponta de faca. Esse assunto só nos trouxe desgosto”, afirma Carmem Marina, filha de Max, morto em 1988. “Eles pediram para eu me vestir, porque estava marcada a minha morte para as 7h”, lembra-se Geralda de Brito Oliveira, de 76 anos, ex-administradora da Fazenda Menino, ameaçada pelos militares, para quem o terreno da fazenda servia de depósito de armas e ponto de passagem dos que lideraram o combate à ditadura, como Carlos Lamarca e Carlos Marighella. Carmen e Geralda são personagens que ajudam a contar a história de Marina, uma cidade que morreu sufocada ainda menina, um sonho reprimido pela ditadura militar e enterrado sob o chão arenoso do sertão mineiro.

A SEDE DA FAZENDA MENINO, EM ARINOS, FOI A ÚNICA CONSTRUÇÃO DO PROJETO DO ARQUITETO QUE CHEGOU A SER ERGUIDA. IMÓVEL FOI DOADO PELO EMPRESÁRIO MAX HERMANN A UMA EX-FUNCIONÁRIA


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SONHO MODERNISTA DE CIDADE SUSTENTÁVEL NO SERTÃO PROJETADA NO NOROESTE DE MINAS SOB O CONCEITO DE HABITAÇÃO COLETIVA E INTEGRADA À NATUREZA, MARINA FOI ANUNCIADA EM JORNAIS E REVISTAS COMO “UM SISTEMA DE VIDA HUMANO E FELIZ” PARA ABRIGAR 200 MIL PESSOAS

Arinos – Era julho de 1955. Dali a menos de dois anos, em março de 1957, Oscar Niemeyer estaria na comissão julgadora que escolheu o plano-piloto de Lucio Costa – finalizado a tinta nanquim e último a ser inscrito na concorrência –, o projeto vencedor para a construção da nova capital federal. Mas, naquele momento, ainda antes de ser convidado por Juscelino Kubitschek para criar os principais monumentos de Brasília, Niemeyer detalhou pela primeira vez como seria Marina, a única cidade projetada por ele no país. “Podemos dizer que Marina será uma cidade planejada efetivamente de acordo com as concepções mais modernas da técnica urbanística”, afirmou ao vespertino carioca A noite. “As distâncias entre os locais de trabalho, estudo, recreio e habitação serão limitadas a percursos de, no máximo, 15 minutos de marcha. Isso evitará a perda de tempo em transportes, permitindo folga suficiente para recreação e prática de esportes”, declarou Niemeyer, que sonhava com uma cidade autossustentável, muito antes de o conceito se tornar a principal preocupação de projetos mundo afora. O Estado de Minas obteve cópia do Memorial Descritivo da Cidade Marina, datilografado e assinado por Niemeyer. Nele consta que o arquiteto procurava “estabelecer para a cidade um sistema de vida humano e feliz, integrado na natureza, que aproveita e enriquece”. O documento chama a atenção ainda para as áreas verdes, que teriam o paisagismo do artista plástico Roberto Burle Marx, outro nome fundamental na criação de Brasília. “Cercados de parques, jardins e vegetação abundante, os blocos de habitação coletiva estão integrados no seu verdadeiro objetivo, que é aproximar o homem da natureza, para lhe propiciar um ambiente natural e sadio”. O plano diretor da Cidade Marina previa centro cívico, com edifícios públicos, teatro, cinema, museu, biblioteca, lojas e restaurantes; hospital e centro de saúde; uma cidade vertical (com prédios de oito a 10 pavimentos) e outra horizontal (com residências); zona industrial, escolas, centro esportivo e um aeroporto, única intervenção que chegou a ser executada nas terras. Niemeyer enfatizou que a urbanização da nova cidade seria baseada na habitação coletiva, com a localização em meio a verdadeiros parques e zonas de vegetação exuberantes. “Este sistema de organização da zona residencial, além de satisfazer perfeitamente todas as exigências sociais da vida moderna, proporcionará uma li-

gação efetiva de seus habitantes com a natureza privilegiada do lugar”, afirmou o arquiteto, em 1955.

BALCÃO DE VENDAS

Pouco depois do lançamento da proposta, em agosto de 1956, o projeto foi apresentado em exposição na sede da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio de Janeiro. Foram apresentados mapas, maquete e traçados urbanísticos do projeto. A abertura da exposição reuniu empresários e políticos, entre eles um representante do então presidente Juscelino Kubitschek, o major Luiz Felipe Borges. O projeto da Cidade Marina foi revelado publicamente na 18ª edição da Revista Módulo, – publicação de arquitetura editada por Niemeyer – , em 1960, mesmo ano em que a futura cidade ganhou duas páginas em uma edição histórica da revista Manchete, que celebrava a inauguração de Brasília.

CELEIRO DA FUTURA CAPITAL

Projetada para ocupar os 90 mil hectares da Fazenda Menino – quase três vezes a área de Belo Horizonte –, a planta geral era dividida entre Cidade Marina e Colônia Agropecuária, com terrenos a partir de 20 hectares. As vendas ficariam por conta da Colonizadora Agrícola e Urbanizadora S/A (Causa), sociedade formada em 1956 sob a liderança do empresário Max Hermann, que fez fortuna no ramo de importação e exportação no Rio. Enquanto Oscar Niemeyer projetou o núcleo urbano, o empreendimento agrícola ficou a cargo do engenheiro Paulo Peltier de Queiroz, que fora superintendente da extinta Comissão do Vale do São Francisco (CVSF) nos governos Eurico Dutra (19461951) e Getúlio Vargas (1951-1954). O projeto previa a construção de estrada e até uma expansão rumo ao Noroeste, com ramal ferroviário partindo de Pirapora. Segundo o engenheiro, todos os lotes teriam acesso ao núcleo urbano central da Cidade Marina. Imediatamente após o lançamento do projeto, foi iniciada uma campanha de venda dos lotes. Era oferecida como vantagem para os interessados nas glebas rurais “uma área na moderna Cidade Marina, planejada por Oscar Niemeyer e sua equipe, para a construção de sua residência”. Nas propagandas, era enaltecido, entre outros aspectos, o fato de a Colônia Agropecuária do Menino ser um “cinturão produtor da Cidade Marina” e que a região do Vale do Urucuia se tornaria “um dos celeiros da futura capital federal (Brasília)”.

PALAVRA DE ESPECIALISTA José Carlos Coutinho

Arquiteto e professor emérito da Universidade de Brasília (UnB)

“O projeto de Marina é muito pouco conhecido. Um projeto privado, que quis se antecipar à construção de Brasília, com a grife de Niemeyer. Eu sempre encarei-o como um balão de ensaio de Niemeyer, muito influenciado pela Carta de Atenas, documento redigido por Le Courbusier que defendia cidades funcionais, ordenadas e justas. Fora do Brasil, durante a época da perseguição política, Niemeyer projetou uma cidade no Deserto de Negev, em Israel (em 1964, também não executada). São esboços de cidades ideais.”

EM 1956, OSCAR NIEMEYER ASSINOU, JUNTO COM OUTROS CINCO ARQUITETOS, O MEMORIAL DESCRITIVO DA CIDADE MARINA, DESTACANDO QUE O PLANO DIRETOR PROCURAVA ESTABELECER “UM SISTEMA DE VIDA HUMANO E FELIZ”

TERRAS QUE DEVERIAM ABRIGAR EMPREENDIMENTO AGRÍCOLA E CIDADE SUSTENTÁVEL COM TEATRO, CINEMA E HOSPITAL FORAM CONSIDERADAS DEVOLUTAS POUCO DEPOIS DE O PROJETO SER LANÇADO


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TERRA VIGIADA

POR AGENTES DO REGIME MILITAR EX-FUNCIONÁRIOS DO EMPRESÁRIO, PERSEGUIDO POR FINANCIAR OPOSITORES DA DITADURA, RELATAM AMEAÇAS DE MORTE E TORTURAS PSICOLÓGICAS NA FAZENDA QUE ABRIGARIA A CIDADE PROJETADA POR NIEMEYER Arinos – Sob a mira de fuzis, a professora Geralda de Brito Oliveira contava seus passos ao longo da pista de avião da Fazenda Menino, onde uma década antes desembarcavam investidores e engenheiros, munidos de mapas e planos de ocupação do Vale do Urucuia. Desta vez, cercada por militares do Exército em busca de seu ex-patrão, acusado de apoiar a luta armada contra a ditadura, a então administradora da propriedade rural recebia ordem de entrar no meio do capinzal e se ajoelhar. Proibida de olhar para trás, ouviu rajadas ensurdecedoras de tiros, seguidas de uma densa fumaça. Apesar da ameaça, Geralda conta que não se abalou e negou que a fazenda encobria ações contra o regime militar. “Falei com os policiais: ‘eu nem sei o que é comunista’”, lembra. Ao longo da década de 1960, Geralda, hoje com 76 anos, e Adão Machado, outro responsável na época pela Fazenda Menino, ambos funcionários de confiança do antigo proprietário, Max Hermann, conviveram com a presença e as ameaças de agentes do Exército na área rural de Arinos, no Noroeste de Minas. Ela vive hoje na antiga sede da propriedade, presenteada pelo ex-patrão. Ele, em Igrejinha, distrito de Arinos, distante 18 quilômetros de onde seria erguida a Cidade Marina. Machado disse que ganhou a confiança de Hermann, a ponto de servir como emissário para levar bilhetes e cartas a políticos influentes em Brasília. Apesar da boa relação, Adão revelou ao Estado de Minas que foi ele quem delatou o expatrão à polícia. O aposentado afirma que se desentendeu com Hermann porque o empresário estava cobrando “valores altos” de pessoas da região que arrendavam suas terras para criação de gado. Outros arrendatários também fizeram o mesmo tipo de denúncia contra Hermann, que foi perseguido e preso. Machado conta que, entre 1968 e 1972, no auge da repressão, policiais e militares estiveram na antiga Fazenda Menino, pois acreditavam que ali seria depósito de armas destinadas à luta contra o regime. “Respondi para eles que a denúncia era falsa. O único carro que eu tinha visto chegar na fazenda foi um jipe, que nunca trouxe arma nenhuma”, relata. Ainda em relação ao ex-patrão, o aposentado lembra que Hermann se dizia “ami-

go de Juscelino (Kubitschek) e o Oscar (Niemeyer)”. Assim como Geralda, Machado afirma não ter dúvida de que os projetos não foram adiante por causa da saída de Juscelino do poder e devido ao regime militar.

PRESSÃO E AMEAÇAS

Geralda vive cercada de visitas e não se priva de relatar as torturas psicológicas que sofreu no fim da década de 1960. “Um dia veio o major Rubens dizendo que eu estava denunciada de ser comunista no Brasil e que iria pagar caro por isso. Aí, começou a perseguição a mim. O Max Hermann tinha ido embora e eu fiquei no lugar dele para eles perseguirem”, lembra Geralda. A repressão continuou até por volta de 1972, com o Exército permanecendo por dias na casa de Geralda. Numa das ocasiões, os militares deram o ultimato: “Você pode tomar banho e se arrumar, que você vai morrer. Pra morrer tem que se arrumar, porque quem morre desarrumado vai para o inferno”. Embora tenha escapado dos repressores, a denúncia de que ela era comunista prejudicou Geralda. Foi afastada do emprego de professora rural e até hoje tenta, na Justiça, a reparação pelos quase 10 anos que foi obrigada a viver longe da fazenda, quando se mudou para Brasília fugindo da repressão. Durante o período em Brasília, recebeu a visita de Hermann, que repassou a ela uma procuração para ocupar a sede da fazenda. Ele também teria relatado a Geralda as torturas sofridas no Rio. “Ele contou que esteve dentro de uma ‘geladeira’ durante 24 horas.” Geladeira era uma das formas de tortura na qual os torturadores alternavam drasticamente o sistema de refrigeração das celas entre extremo frio e calor intenso, enquanto alto-falantes emitiam sons estridentes.

REFÚGIO DE PERSEGUIDOS

O aposentado Adão Machado, de 78 anos, exgerente da Fazenda Menino, afirma que durante a ditadura passaram pelo local pessoas procuradas pelo regime militar, entre elas Carlos Marighella (1911-1969), líder da Ação Libertadora Na-

“QUANDO OS FEDERAIS VIERAM, MOSTRARAM UMA FOTO E PERGUNTARAM SE EU TINHA VISTO AQUELA PESSOA. RECONHECI ELE. ERA O MARIGHELLA ” ADÃO MACHADO, de 78 anos, ex-gerente da Fazenda Menino

cional (ALN) e ex-deputado federal pelo antigo PCB, partido financiado pelo empresário e idealizador de Cidade Marina, Max Hermann. Adão Machado diz que, entre 1967 e 1968, Marighella visitou a antiga propriedade no Vale do Urucuia, no Noroeste de Minas, sob o codinome Doutor Duarte. “Ele chegou dizendo que era madeireiro, mas não conhecia nenhum nome de madeira. Ele acordava cedo e saía pelos matos. Me admirava como ele caminhava muito rápido. Tinha algum mistério com aquele homem”, relata Adão. “Depois, quando os federais vieram – na verdade, integrantes do Destacamento de Operações de Informação/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) e do Exército –, mostraram uma foto e perguntaram se eu tinha visto aquela pessoa. Reconheci ele. Era o Marighella”. Autor da biografia Marighella: o guerrilheiro que incendiou o mundo (Companhia das Letras), o jornalista e escritor Mário Magalhães disse ao Estado de Minas que a história contada pelo exgerente da Fazenda Menino tem fundamento. “O testemunho é verossímil. Naquele tempo, Marighella viajava por diversas regiões rurais do Brasil, escolhendo lugares e roteiros por onde passariam as colunas guerrilheiras a serem formadas por militantes da ALN. Sabidamente, ele esteve em Minas”, afirma Magalhães, que inclui no livro um dos roteiros traçados por Marighella, que passava pela região onde seria Cidade Marina. Para Clara Charf, de 92 anos, viúva de Marighella, o testemunho de Adão também é verossímil. Em entrevista ao EM, ela chama a atenção para um detalhe lembrado pelo ex-gerente, como o fato de seu marido ter o hábito de andar sempre apressado. “Ele usava vários codinomes e, quando voltava da clandestinidade, evitava falar nomes de pessoas e por onde andou”, relatou Clara. Segundo Adão Machado, em 1968, teria passado pela fazenda um homem com o codinome de Rone, o qual ele suspeitou na época ser o excapitão do Exército Carlos Lamarca (1937-1971). O professor e escritor Emiliano José, um dos autores de Lamarca, o capitão da guerrilha (Livraria Cultura), afirmou ao EM que não há indícios de que o guerrilheiro tenha passado por cidades de Minas Gerais.

“UM DIA VEIO O MAJOR RUBENS DIZENDO QUE EU ESTAVA DENUNCIADA DE SER COMUNISTA. FALEI COM ELES: EU NEM SEI O QUE É COMUNISTA” ●

GERALDA DE BRITO OLIVEIRA, de 76 anos, ex-administradora da Fazenda Menino


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SONHO E DESILUSÃO

DA FAMÍLIA HERMANN EM MINAS FILHA DO EMPRESÁRIO MAX HERMANN REVELA AO ESTADO DE MINAS QUE CIDADE ENCOMENDADA A NIEMEYER MARCOU A VIDA DE TODOS EM SUA CASA. “MEU PAI LUTOU MUITO E MORREU DE DECEPÇÃO E TRISTEZA” Arinos – As lembranças da Cidade Marina ainda entristecem a família de Max Hermann, investidor carioca de ascendência alemã que passou as últimas décadas de sua vida lutando para manter a posse dos mais de 90 mil hectares da Fazenda Menino, na zona rural de Arinos. A terra fazia parte de um espólio adquirido pelo empresário, que sonhava em erguer ali a cidade projetada por Oscar Niemeyer e presentear a esposa, Marina Ramona Gomes, com ela. Hermann fez fortuna no ramo imobiliário e de importação e exportação, nas décadas de 1940 e 1950. Era figura presente nas colunas sociais dos jornais do Rio de Janeiro, então capital federal, e gozava de bom trânsito entre jornalistas, políticos e autoridades. O lançamento da Cidade Marina recebeu ampla divulgação, por ser assinado por Niemeyer, de quem Hermann era amigo e com quem compartilhava os mesmos ideais políticos. Ambos ligados ao Partido Comunista. “Esse assunto não me é agradável.” Assim, Carmen Marina, filha de Max Hermann, iniciou a conversa com a reportagem do Estado de Minas, que conseguiu localizá-la para obter mais detalhes sobre o fim da cidade autossustentável no sertão mineiro. “Meu pai, um sonhador, quis dar uma cidade à minha mãe como homenagem. Foram os mineiros da região que, infelizmente, a sabotaram.” Pouco depois do lançamento do projeto, a Ruralminas – autarquia responsável pela reforma agrária no estado, extinta em 2015 –, declarou as terras da Fazenda Menino devolutas e liberou a invasão de posseiros com a promessa de regularizá-la. “Com isso, a área foi ocupada em prazo curtíssimo, o que inviabilizou o projeto”, comenta Aloysio, genro de Hermann. “Meu pai era um empresário bem-sucedido. Colocou seu tempo e dinheiro na fazenda”, lamenta Carmen.

PERSEGUIÇÃO E PRISÕES

Não bastassem as lutas judiciais pela posse da fazenda, Hermann passou, a partir de 1964, a ser perseguido pelos militares. “Hermann era comunista, daí a ligação com Niemeyer. Era um idealista. Conhecia Marighella, La-

SEM REGISTROS A reportagem entrou em contato com a Fundação Niemeyer para questionar sobre a não execução do projeto do arquiteto. Segundo a fundação, “no arquivo documental existente na Fundação Oscar Niemeyer não existe nenhum registro ou informação que explique o motivo de não ter sido implementado o projeto da Cidade Marina, de autoria de Oscar Niemeyer.”

EXPEDIENTE REPORTAGENS Luiz Ribeiro e Renan Damasceno FOTOS Alexandre Guzanshe

Max Hermann fez fortuna no ramo imobiliário e de exportações nos anos 1940 e 1950 FOTOS: ARQUIVO DE FAMÍLIA

PRESENÇA DE MARINA Mesmo que a cidade não tenha saído do papel, o nome de Marina ainda paira na memória da família e dos moradores da Fazenda Menino. Filha de espanhóis, Marina Ramona Gomes (E) foi a segunda esposa de Max Hermann, anteriormente casado com Adriana Hermann, com quem teve três filhos. Marina, que daria o nome à cidade, também é o sobrenome da filha Carmen, e também o nome de batismo das filhas dos exempregados Adão Machado e Geralda Brito.

marca e contribuiu para a ação”, afirma Aloysio, que desconhece a passagem dos dois combatentes da luta armada pela fazenda. Após o golpe militar, Hermann foi preso diversas vezes. “Nossos filhos até achavam que o avô era delegado, de tanto que a gente ia na delegacia”, conta o genro, que foi detido na única vez em que visitou a Fazenda Menino. Marina morreu em 1969, aos 50 anos, acometida por câncer. Hermann, sem posses, passou a viver sob os cuidados de Carmen, que até hoje recebe

oficiais de Justiça devido a inúmeros processos de usucapião. Em 1987, segundo jornais da época, o empresário quis vender a área ao Incra, para reforma agrária, mas uma vistoria constatou que a área era imprópria para cultivo. Hermann morreu no ano seguinte. “Meu pai deu murros em ponta de faca. Lutou muito e morreu de decepção e tristeza.”

UM MODELO VIÁVEL

O projeto criado pelo arquiteto Oscar Niemeyer para o sertão mineiro no

fim da década de 1950 tentava atrair potenciais compradores com um conceito que, muitos anos depois, se tornaria essencial a quaisquer planos de urbanização: sustentabilidade. O EM consultou especialistas para saber quais as aplicações atuais de técnicas de gestão municipal planejadas para Cidade Marina. “Ter uma cidade sustentável hoje é possível, mas é complexo. Toda cidade para ser sustentável tem de ser democrática e ter controle e participação social em sua gestão. Todos os habitantes devem estar incluídos no projeto de gestão”, comenta a professora Simone Narciso Lessa, pós-doutora em saneamento e meio ambiente pela Universidade de Campinas (Unicamp). Para ela, uma cidade autossustentável no Vale do Urucuia enfrentaria desafios típicos da região, como a escassez de produtos locais e o custo para a geração de outros serviços essenciais. O gerente de políticas públicas do Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de Minas Gerais (CreaMG), o engenheiro civil José do Carmo Dias, diz que esses modelos de cidades devem contar ainda com um aspecto previsto por Niemeyer: sistemas de trânsito inteligentes, como vias para veículos e pedestres, conforme o plano de Cidade Marina. “Pesquisas apontam que 70% dos deslocamentos humanos de até dois quilômetros são feitos a pé. Isso traz a necessidade de cidades com calçadas mais humanizadas, sem obstáculos e com faixas elevadas no mesmo nível das calçadas nos cruzamentos. Isso reduz a velocidade no trânsito e garante mais conforto para o pedestre”, observa.

MOTORISTA João Paulo Andrade EDIÇÃO DE TEXTOS Rafael Alves PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Júlio Moreira ARTES Júlio Moreira e Soraia Piva REVISÃO Ademar Fulgêncio DIRETOR DE REDAÇÃO Carlos Marcelo Carvalho

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