Em Quatro Atos

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em quatro atos perfis de jovens dramaturgos paulistanos

MARIANA MARINHO



em quatro atos perfis de jovens dramaturgos paulistanos

MARIANA MARINHO


ensaio de “abnegação II”, de alexandre dal farra


Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo

Autora Mariana Marinho

Orientador Welington Andrade

Faculdade Cásper Líbero Dezembro/2014


Cena de “agruras�, de rudinei borges


para minha irm達


Cena de “planta�, de gustavo colombini


agradecimentos

Agradeço a Alexandre Dal Farra, Gustavo Colombini, Michelle Ferreira e Rudinei Borges pela confiança de partilharem comigo suas trajetórias e seus escritos; Alexandre Ganico, Anderson Mauricio, Artur Abe, Beth Néspoli, Christiane Forcinito, Eric Lenate, Heitor Ferraz, Heitor Vallim, Janaina Leite, João Dias Turchi, Kil Abreu, Leonardo Araujo, Marici Salomão, Maura Hayas, Ramiro Silveira, Sidnei Ferreira de Vares, Vinicius Garcia Pires, Vitor Vieira e Zebba Dal Farra pelas conversas; A Má Companhia Provoca, Cinza, Núcleo Macabéa e Tablado de Arruar por me acolherem em seus processos de criação; Prof. Dr. Welington Andrade pelas bem-humoradas e cuidadosas orientações; Patrícia Homsi pelo carinho com a revisão; Renan Goulart pelo bonito projeto gráfico; Amanda Massuela, Ciro Lubliner, Fernanda Gonçalves, Gabriela Valdanha, Gustavo Jazra, Helder Ferreira e Paola Perroti pela ajuda e paciência, e minha família, em especial Afrânio, Luísa e Silvana Marinho, pelo apoio e incentivo durante todo o processo.


Cena de “tem alguém que nos odeia”, de michelle ferreira


Vladimir O primeiro passo é o mais difícil. Estragon Podemos começar de qualquer parte. Vladimir Podemos, mas temos que decidir. Estragon É mesmo. (Silêncio) Esperando Godot Samuel Beckett



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apresentação

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alexandre dal farra a palavra como arma

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gustavo colombini narrativa geométrica

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michelle ferreira insólita diversão

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rudinei borges poesia em movimento

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créditos das imagens

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bibliografia

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apresentação

No decorrer dos anos 1980, a centralização do trabalho teatral brasileiro passou a acontecer em torno da figura do encenador. Antunes Filho, Gerald Thomas, Ulysses Cruz e outros assumiram no período o protagonismo do teatro ao trazerem para o palco espetáculos autorais marcados pela criação de um texto cênico que suplantava o texto dramático. Houve a construção de uma escritura cênica, ou seja, um modo próprio de cada um organizar de forma particular a criação do espetáculo, utilizando para isso o trabalho dos atores e a articulação de outras ferramentas teatrais, como cenário, objetos e figurino. Em História do Teatro Brasileiro, volume II, Silvana Garcia, pesquisadora e professora da Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo, declara que a noção de dramaturgia é a chave de autonomia das escrituras cênicas elaboradas nos palcos brasileiros da época. “O termo não é mais entendido como regra de construção de um texto dramático, mas como leitura e transformação do material 13


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textual com vistas à encenação. Ou mais ainda, como o conjunto de escolhas estéticas e ideológicas que o encenador é levado a fazer para chegar a uma leitura específica do texto de base, que recria e transforma a partir de um ponto de vista específico.” Desta forma, mesmo que importantes dramaturgos tenham surgido no período, como Luís Alberto de Abreu, Marcos Caruso e Jandira Martini, o autor teatral estava relegado a um segundo plano. O revigoramento do teatro de texto só passa a acontecer de fato a partir da década seguinte, quando se renova o interesse pelos assuntos nacionais e pela dramaturgia brasileira. É também nos anos 1990 que se dá o fortalecimento do teatro de grupo, com coletivos que não apenas se interessam por revisitar a obra de grandes nomes de nosso teatro, como Nelson Rodrigues, mas que também passam a elaborar dramaturgias próprias. No geral, os grupos surgidos no período operam em processos colaborativos, dinâmica brevemente definida por Antonio Araújo, diretor do coletivo Teatro da Vertigem, como uma “metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas e sob um regime de hierarquias móveis ou flutuantes, têm igual espaço propositivo, produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos”. Dentro desta lógica colaborativa, construída por cada grupo de acordo com sua personalidade, não há, por exemplo, a figura do dramaturgo de gabinete, que cria o texto exilado do restante do coletivo. O autor deste tipo de processo, ao contrário, está na sala de ensaio junto ao diretor e aos atores, deixando que sua dramaturgia seja permeada de forma orgânica pelas propostas surgidas ali. Mesmo que os processos colaborativos ainda estejam presentes na cena teatral contemporânea, nos últimos anos, observa-se a efervescência de uma nova geração de autores que retoma, em certos 14


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aspectos, a figura do dramaturgo. Eles não chegam a ser autores de gabinete, que escrevem sem qualquer contato com a cena, mas voltam a praticar sua escrita de forma mais isolada, deixando penetrarse menos pela direção e pelo elenco. Na maior parte das vezes, as obras desses dramaturgos ainda estão vinculadas a grupos, mas eles também passam a estabelecer parcerias com outros diretores, atores ou até mesmo com outras companhias, com as quais se associam em projetos específicos. Além deste intercâmbio entre seus textos, outra característica desta nova geração de autores brasileiros é o hibridismo de suas dramaturgias, dispostas a experimentar linguagens e espaços cênicos. Em sua maioria, são narrativas desconstruídas, que recusam o texto dramático e os padrões mais realistas para flertar com o universo fantástico, por vezes nonsense, numa tentativa de responder às inquietações temáticas e formais do final do século XX e início do século XXI. É arriscado, porém, estabelecer definições pragmáticas acerca do texto teatral contemporâneo, visto, que desde que as fronteiras do drama foram alargadas, são inúmeras as possibilidades dramatúrgicas. Sílvia Fernandes, professora de Artes Cênicas do Programa de Pós Graduação da ECA-USP, escreve no livro Teatralidades Contemporâneas que “a forma dramática, além de expressar um sentimento de época, sempre revelou uma prática cênica, um tipo de desempenho e uma determinada imagem da representação. A qualidade do espaço, o estilo de atuação e modelo de fábula que o teatro estava apto a contar sempre foram fatores determinantes da escritura do dramaturgo. A diferença, sentida numa parcela da dramaturgia recente, é que esta aparentemente esqueceu as preocupações com a ação dramática, escrita para ser atualizada pelo espetáculo. Talvez a resposta dos dramaturgos à escritura autoral dos encenadores 15


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tenha sido uma dramaturgia não dramática, sem ação, que em última instância é autônoma.” Assim, partindo destas sensações e apontamentos acerca da nova geração de autores teatrais, procurei investigar no livro de perfis Em Quatro Atos a obra de quatro jovens dramaturgos paulistanos: Alexandre Dal Farra, Gustavo Colombini, Michelle Ferreira e Rudinei Borges. Não se trata de um trabalho de crítica teatral, mas sim de um estudo jornalístico da figura do dramaturgo contemporâneo, no qual pretendi mostrar a trajetória e a formação desses autores, bem como seus processos de criação e suas maneiras próprias de expressarem o tipo de teatro em que acreditam. O interesse deste livro também foi o de acompanhar estes dramaturgos pela sala de ensaio, pelos lugares por onde transitam e tirar dessa convivência a matéria para apresentar suas facetas e suas obras. Para a escolha dos perfilados, levei em conta três aspectos: eles deveriam ter até 35 anos de idade, estar em processo de criação em São Paulo e produzir dramaturgias distintas entre si. A razão de serem quatro perfis e não um número superior deve-se à escolha de apresentar de forma mais densa a história desses autores, o que não poderia ser feito, dentro do período de um ano de realização deste trabalho, com uma maior quantidade de personagens. Na elaboração dos perfis, tentei levar para a minha escrita aspectos da dramaturgia de cada um dos autores estudados. Claro que seria impossível reproduzir – e nem era a intenção – a inquietude do texto de Dal Farra, a geometria da dramaturgia de Colombini, o insólito humor da obra de Michelle e a poética memorialística da narrativa de Borges. Achei, porém, que brincar com os formatos seria uma maneira de evitar o modelo jornalístico convencional e de propor um exercício de metalinguagem, aproximando-me das escritas de cada um dos quatro dramaturgos. 16


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Mudar-me durante um ano para a vida dessas personagens, usando a expressão de Ruy Castro, foi a chance de não só compreender aspectos formais e temáticos dessa jovem geração de autores, mas também de poder acompanhar de perto como cada um articula os elementos necessários para fazer teatro em São Paulo. Nas páginas a seguir, o leitor encontra o resultado deste ano de trabalho e pode conferir a trajetória e o compromisso que cada um dos quatro autores vêm assumindo com a dramaturgia brasileira. Mariana Marinho

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alexandre dal farra - a palavra como arma

alexandre dal farra

a palavra como arma

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Cena de “abnegação”, de alexandre dal farra

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alexandre dal farra

a palavra como arma

CENA 1

Acabou a luz “Caralho!”, disse Alexandre Dal Farra após a segunda tentativa frustrada de fazer o ventilador funcionar. Passou os dedos novamente pelo cabo, desconectou-o e escolheu outra entrada do benjamim para plugá-lo. Nada de vento. “A fiação está toda zoada”, continuou enquanto abandonava o salão principal da sede do grupo Tablado de Arruar e se dirigia para uma sala menor, acompanhando o caminho feito pelo fio do ventilador. A sede do Tablado é uma espécie de galpão com três cômodos: uma pequena sala com mesa de vidro, cadeiras vermelhas, estante de livros e caixas de papelão; um banheiro e um amplo salão de compridas janelas de ferro, onde cenários de montagens antigas convivem com os aparatos cênicos de produções mais recentes. “Vamos desencanar de ensaiar e ir ao Pai Toninho”, disse Dal Farra num bom-humor mal-humorado ao regressar para o maior dos cômodos. “Acabou a luz.” 21


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“Quem é Pai Toninho?”, perguntou Bruno Jorge, cineasta que, assim como eu, estava ali naquela tarde para acompanhar o ensaio de Conversas Com Meu Pai, monólogo documental encenado por Janaina Leite, atriz do Grupo XIX e mulher de Dal Farra, com texto e direção do próprio. A estreia aconteceria semanas depois na Oficina Cultural Oswald de Andrade. “É um pai de santo maravilhoso que mora aqui perto”, respondeu Janaina, risonha. Era a quarta surpresa desde que o casal havia chegado à sede: o ensaio coincidiu com a entrega do cenário de Abnegação, peça do Tablado escrita por Alexandre que encerrara temporada no Centro Cultural São Paulo no dia anterior; a piscina de água inflável, parte do cenário de Conversas, estava furada; e o notebook com as imagens que seriam projetadas na parede não estava lá. Não foi necessário recorrer ao Pai Toninho. Passado o alvoroço causado pelas complicações, Janaina vestiu-se para dar início ao ensaio. Ainda eram três horas da tarde e a luz que entrava pelas janelas seria suficiente para iluminar o salão. O primeiro figurino era um vestido de veludo preto. Justo no corpo, tinha mangas compridas e um decote redondo nas costas. Caíalhe bem à silhueta mignon, contrastando com o branco de sua pele e com o acobreado de seus cabelos cacheados e olhos, que agora nos fitavam. Sentados em um círculo de cadeiras vermelhas na pequena sala, eu, Alexandre e Bruno assistíamos à primeira das três partes do espetáculo. Movendo os lábios arroxeados com destreza, Janaina, que sofre de uma doença degenerativa e está ficando surda, contava sua história e de seu pai, Alair, que, após uma traqueostomia, nunca mais voltou a falar. Durante cinco anos, os dois estabeleceram uma relação silenciosa e se comunicavam apenas por meio de bilhetes. Estes fragmen22


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tos de conversas agora estavam reunidos dentro de uma gasta caixa de tênis que repousava no colo da atriz. Não é apenas o conteúdo da relação entre os dois que se colocava em cena, mas também a própria experiência da construção da montagem, que durou cerca de sete anos e resultou em um texto com mais de 500 páginas escritas e em mais de 60 horas de vídeos e áudios gravados. O texto elaborado por Dal Farra para a peça cruza as memórias e os materiais colhidos por Janaina com as inúmeras versões pensadas para dar forma ao processo. Nesta primeira parte, em que a atriz conversa com o público sentada em um círculo de cadeiras, um segredo precisa ser revelado. Em um segundo momento, a plateia é convidada a conhecer um viveiro onde vasos de plantas se misturam a um amontoado de objetos, excessivos e dispostos de forma bruta. Há quadros, uma vitrola e uma piscina de água inflável – na qual Janaina se banha entre uma transição e outra de cena. Não bastasse o apinhado de materiais, uma tela branca ao fundo exibe imagens do pai e da filha. No meio deste cenário poluído e carregado de simbologia, Janaina, agora vestida com uma calça e uma jaqueta de capuz preta, desconstrói a cena anterior. Por fim, as memórias são revisitadas. No ensaio, a segunda parte da peça era realizada na sala principal da sede do Tablado. Alexandre acompanhava a encenação sentado e quieto, explicando vez ou outra alguma ação de Janaina que Bruno e eu poderíamos não compreender devido à ausência das imagens e da música. A luz não havia retornado. “Você tem que colocar melhor a quarta parede, Jana”, disse ao final do ensaio quando os três conversavam sobre os ajustes que deveriam ser realizados. “Não pode pegar tanto o público pela mão”, continuou enquanto descíamos as escadas rumo à porta.

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CENA 2

Teatro Destrutivo Na semana anterior, Alexandre recebera-me em sua casa para uma conversa. Antes mesmo que eu chegasse ao final da escada que levava ao terceiro andar do prédio, ele já aguardava com a porta semiaberta. O traje seguia a norma das outras vezes. Calça jeans um tanto quanto amassada, camiseta de gola em formato v e tênis de corrida cinza nos pés. Dal Farra é um homem magro de estatura mediana. Os olhos esverdeados, pequenos e um pouco fundos, encontram-se atrás de óculos de armação retangular e preta. Tem sutis entradas na testa e um rodamoinho que obriga alguns dos fios castanhos claros a penderem para o lado esquerdo. A barba, farta e bem aparada, cobre o queixo quadrado e quase esconde os finos lábios. Desde 2005, é dramaturgo do grupo teatral Tablado de Arruar. Mas não só. É também bacharel, compositor e regente pela Faculdade Santa Marcelina. Cursou três anos de Filosofia na Universidade de São Paulo e, em 2014, obteve o título de Mestre em Letras, também pela USP, com a dissertação Peça de aprendizado pós-moderna - Tradução e análise da peça Vale das Facas Voadoras, do dramaturgo e diretor René Pollesch. Publicou, em 2013, seu romance de estreia, Manual da Destruição. Também dá aulas de dramaturgia e ministra oficinas, palestras e cursos. “As coisas estão meio bagunçadas”, disse levando a mão para coçar o topo da cabeça. No tapete do chão da sala havia uma porção de brinquedos, todos pertencentes a Plínio, seu segundo filho, que completara um ano na noite anterior e se entretinha com os objetos. “Fizemos uma pequena reunião aqui em casa.” 24


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A mesa, localizada logo abaixo da janela, exibia alguns vestígios da festa: taças de vinho com a bebida ainda por acabar, cachos de uvas verdes, pratinhos e talheres. “Melhor conversarmos num café aqui perto”, disse enquanto vestia o casaco preto e se despedia com um beijo de Plínio e Janaina. Por causa da festa, Alexandre quase não produzira naquela manhã. “Escrevi só meia hora hoje”, disse enquanto caminhávamos. “Escrevo todos os dias. Gosto de fazer isso antes da minha mulher acordar, antes do meu filho acordar, antes de trocar a fralda e fazer café da manhã. Tem que ser antes disso. Sempre acordei muito cedo... Isso deve ter sido ruim algum dia.” “E agora?”, perguntei. “Passou a ser bom. Ficar ali sem fazer nada, estar em um estado aberto. O mundo ainda não começou a andar e eu já estou lá. Gosto disso”, disse. Sentamo-nos na parte externa do café, que estava decorado com coelhos e ovos de Páscoa. “Quer algo?”, perguntou deixando a mesa e dirigindo-se ao balcão. Retornou com um café e uma água. “Acho o teatro algo meio tosco, meio mal acabado. Não muito delicado”, disse. “Sei que existe um teatro que tem essa delicadeza, mas ele nunca fez parte do meu imaginário.” Seu primeiro contato com teatro vem do trabalho de seu pai, Zebba Dal Farra, encenador, músico, fundador do Grupo dos 7 e coordenador do curso de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. “O teatro do meu pai nunca entrou no caminho comercial, mas também não era amador. Era uma espécie de teatro profissional sem dinheiro. Tinha uma precariedade material muito marcante. E as pessoas ficavam meio que dando um jeito de, naquela situação, existir, 25


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sonhar e brincar”, comentou depois de bebericar o café. “Lembro-me de uma temporada de Maroquinhas Fru-Fru [peça infantil escrita por Maria Clara Machado]. Um dos atores era o Bola Moraes, percussionista que chegou a tocar com Os Novos Baianos. Era um cara gente boa, expansivo e louco pra caralho. Bêbado. Ele chegou uma vez pra mim e disse: ‘vai na padaria aí do lado, pede um Dreher e com o troco você pega um chiclete, mas não conta pro seu pai’. Eu fui lá, comprei e contei pro meu pai, mas falei que ele tinha dito pra não contar”, riu Alexandre. “Gostava muito dele em cena. Achava divertido, mas era uma diversão peculiar. Em outra peça ele era um doutor que cuidava de torcicolo. Na cena, a pessoa estava com dor e ele falava ‘deixa que eu vejo’ e começava a dar porrada até que saía um pescoção de pano.” No teatro de Alexandre há, de outra forma, o registro do violento, de uma brutalidade que não é apenas física, mas também verbal e sonora. Em Abnegação, encenada pelo Tablado no primeiro semestre de 2014, o dramaturgo, que dividiu a direção da peça com Clayton Mariano, esmiúça as relações estabelecidas no meandro de um partido político. “Parti de alguns pensamentos meus relacionados ao PT, mas não fiquei só nisso. Me importa muito mais a forma como se dá a reunião deste partido e as relações entre as figuras, que dizem respeito à nossa maneira brasileira de lidar com as coisas. Em uma reunião de condomínio, por exemplo, também é violentíssima a forma como as pessoas se tratam: ‘quero a melhor vaga e foda-se você’.” Na primeira cena, Celso (Vitor Vieira), José (André Capuano), Paulo (Carlos Morelli) e Jonas (Vinícius Meloni) estão ao redor de uma mesa disposta em cima de um praticável móvel. Paulo permanece em silêncio sentado de costas para a plateia enquanto os demais se olham e falam uns com os outros ao pé do ouvido. Eles conversam sobre um fato ocorrido, denominado por eles como “o acidente”, e tentam en26


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contrar uma forma de solucioná-lo. Os diálogos, porém, quase nada revelam. As pistas vêm por meio de cochichos, frases dúbias e intensas trocas de olhares. Não há um enredo muito claro que conduza as personagens. Dal Farra trabalha com andamentos, com relações que vão se intensificando e com figuras que quebram a possível ordem lógica das situações: as cenas partem de um pressuposto concreto, mas essa concretude é extrapolada por figuras que se colocam de maneira mais imprevisível do que o natural. “Não há um aspecto rigorosamente absurdo ou fantástico, como alguém se transformar em uma barata ou um cara começar a vomitar coelhinhos, mas a partir dessa liberdade explodem coisas de dentro das personagens”, comentou Alexandre, que agora destruía com as mãos a colherzinha plástica que usara para mexer o café. Após uma conversa entre Jonas, que está bêbado e drogado, e Paulo, um dos cabeças do grupo, Flávia (Alexandra Tavares), única figura feminina da peça, coloca uma música, sobe na mesa e começa um strip tease. Após descer, vestida apenas com um lingerie preta, ela e Jonas trocam algumas palavras.

“O que você está fazendo?”, diz Jonas. “O quê?”, responde. “Não foi para isso que a gente te... pagou, eu pensei que você não...” “O quê?”, diz Flávia sem entender. “Você começou a tirar a roupa!” “É” “‘É’! Como assim? Então você agora faz isso? Tira a roupa, então?...” “Sei lá, ué!”

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Em outro momento da peça, a música sertaneja Vem ni min Dodge Ram, de Israel Novaes, é colocada no último volume enquanto as personagens discutem, trocam agressões e ingerem grandes doses de álcool. “Seria meio óbvio colocar um heavy metal, mas esse tipo de música [sertaneja] tem uma sanfoninha que mistura nostalgia a um ambiente de libido explícita: carro, sexo, poder e dinheiro. É uma sensação de algo bom, mas, ao mesmo tempo, violento. Acho essa nostalgia que violenta algo muito brasileiro.” “Depois que revi Abnegação acho a direção ruim”, continuou. “Acho que ela doura um pouco a pílula. A luz e o cenário criam um embrulho para presente. Sei que isso tem a função de fazer com que as pessoas se relacionem melhor com a peça. Elas se sentam e aquela luz, aquela mesa e aqueles caras em volta delas dizem: ‘isso é teatro’. Mas depois as coisas vão acontecendo e as pessoas percebem que tudo é muito decepcionante. É como se elas abrissem uma porta fake e dessem com a cara na parede. A sensação é a de desembrulhar um ovo de páscoa e ter uma pedra dentro em vez de chocolate”, ri. “Seria melhor se não tivesse porra nenhuma de cenário, só umas mesas e um pouco de figurino. O público ia saber logo de cara onde ele está”, completou. “Eu gosto dos carrinhos [praticáveis móveis] que fazem parte da peça, mas eles nos obrigaram a colocar um monte de coisinhas: sofás, vasos, tapetes, cadeiras, mesas. Essa não é a minha. Tanto é que nem participo dessas decisões. ‘Esse tapete é bonito’, os caras falam. Eu não sei o que é isso, ‘bonito’. Se eu for dirigir algo novamente, queria fazer uma coisa mais tosca, com menos vaselina. Só não sei até que ponto as pessoas aguentam sem tudo isso.” Abnegação é a continuação de uma pesquisa de linguagem iniciada em Mateus, 10, peça anterior do grupo com a qual Alexandre ganhou, em 2012, o Prêmio Shell-SP de Melhor Autor. Partindo de referências de Bartleby, o escriturário, de Hermann Melville, e Crime e Castigo, de 28


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Fiódor Dostoiévski, a peça, dirigida por Dal Farra e João Otávio, conta a história do pastor Otávio (Vitor Vieira). Obcecado com o texto bíblico Mateus, 10, em que Jesus renega sua família em função de seus discípulos, ele decide formar uma nova doutrina. Instalado em um ambiente de casinhas simples tomadas por uma miséria material e intelectual, o pastor vê-se sem ferramentas para lidar com suas inquietações, que o levam a cometer atitudes extremas, chegando à beira da loucura. Em uma cena no final do primeiro ato, por exemplo, ele entra em casa com um carro novo e um punhado de notas. Enquanto conversa com sua mulher, Olga (Ligia Oliveira), rasga uma delas.

“O QUE É QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO, OTÁVIO!!! FICOU MALUCO, TOTALMENTE LOUCO!!! VOCÊ RASGOU UMA NOTA DE CINQUENTA REAIS!”, diz Olga juntando os pedaços. “Ah, isso. É que não estava limpa”, responde o pastor. “‘Não estava limpa’??? E desde quando precisa estar limpa, Otávio, DESDE QUANDO PRECISA ESTAR LIMPA???!!!” “Eu achei desagradável. A nota estava suja, Olga. Tem outras aqui, não tem problema!...”, fala enquanto mostra algumas notas a ela. “Desagradável?? Desde quando você joga fora as notas sujas, Otávio? Isso não faz o menor sentido!”, diz Olga, que continua a juntar as partes da nota. “FAZ SENTIDO! FAZ SENTIDO, OLGA!!! ESSAS NOTAS... TAMBÉM SÃO PARTE DAS NOSSAS VIDAS!!!”, diz o pastor descontrolando-se, de repente. “IMAGINA! EU VOU... EU SAIO DE CASA, POR EXEMPLO, SEM ME BARBEAR??? SAIO??? EU VOU PARA O CULTO DE BERMUDA, SUJO, SEM TOMAR BANHO, OLGA???” “Não...”, responde Olga petrificada. Otávio continua:

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“NÃO!!! EU VOU LIMPO! EU ME LIMPO! POR QUÊ? QUE DIFERENÇA FAZ, OLGA??? NÃO FAZ DIFERENÇA? É ISSO QUE VOCÊ ESTÁ DIZENDO? VOCÊ ACHA QUE EU DEVERIA SAIR PELA RUA PELADO, SUJO, SEM TOMAR BANHO, FICAR POR AÍ FEITO UM MENDIGO, OLGA???” “Não, Otávio, eu não disse isso...” “Não, você não disse isso. É verdade. Você consegue ver a minha cara, Olga? Consegue ver o meu corpo?”, diz repentinamente calmo antes de iniciar novo surto. “VOCÊ ESTÁ ME VENDO, OLGA? ESTÁ VENDO ISSO AQUI QUE ESTÁ NA SUA FRENTE??? ESTÁ? QUEM SOU EU, OLGA??? VOCÊ ME VÊ AQUI???” “Claro, você é Otávio, meu marido...” “NÃO!!! EU NÃO SOU OTÁVIO, SEU MARIDO!!! EU SOU SEU MARIDO, SÓ ISSO!!! EU SOU ESSA PESSOA AQUI, SOU SEU MARIDO, SOU O PASTOR, SOU O TERNO, A PELE DA CARA... É ISSO QUE EU SOU, OLGA!!! EU NÃO SOU NADA ALÉM DISSO!!! EU NÃO SOU OTÁVIO!!! NÃO SOU OTÁVIO!!! A PARTE DE DENTRO É OCA!!! EU SOU ESSE TERNO, SOU ESSA CARA, SOU ESSA PELE DA MINHA MÃO, SOU ESSE CARRO, ESSE DINHEIRO, EU SOU ESSA MESA, OLGA!!!”, Otávio empurra Olga, que se senta.

Trabalhando a consciência das personagens, Alexandre entra em questões sociais e políticas sem se utilizar, para isso, de uma dramaturgia panfletária. É um discurso que aparece em uma segunda camada, mostrando as deformações que a sociedade provoca na consciência das pessoas, na formação de sua psique, de sua subjetividade. Inseridas na lógica do capitalismo urbano, elas parecem não conseguir encontrar um caminho sensível para se expressarem. Por isso, têm uma fúria incapaz de ser reprimida ou sublimada. “Sabe”, disse Alexandre. “Fico pensando em indústria cultural misturada à indústria automobilística. Automóvel é cultura. 30


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Ultimamente eles aumentaram o tamanho das marcas dos carros e da parte da frente da carroceria.” “Penso nisso, em UFC [Ultimate Fighting Championship], na dupla Munhoz e Mariano cantando a música Camaro Amarelo. Para mim, tudo isso é uma realidade incrível em que vivemos. É uma realidade nua e crua. Hoje em dia temos uma libido que sai de forma direta. Você tem vontade de comer uma menina e diz: ‘quero comer você’. Ela fala: ‘não’ ou ‘tá’. Não sou contra e nem sou um cara conservador, mas isso, de certa forma, está ligado a uma falta de elaboração simbólica”, diz. “No UFC, diferentemente do futebol – que opera dentro de um campo em que você precisa saber as regras para entender o jogo –, não é necessário saber de nada: você simplesmente olha e sabe que os caras vão se espancar até um deles não aguentar mais. É uma descarga simbólica direta. É como transar ou assistir a filme pornô. Para mim, há algo dessa descarga libidinal sem mediação simbólica em Mateus, 10 como um todo. Mas não no pastor Otávio. De certa forma ele luta contra isso até... Há uma tentativa de propor um olhar ‘filosófico’ sobre o mundo, ainda que totalmente louco. Mas há algo desse mundo explícito, sem mediação, na situação geral da peça. De alguma maneira, acho que ele se debate com isso.”

CENA 3

“Ah, é ao contrário” Caía uma fina garoa no dia em que eu e Vitor Vieira, ator que interpretara Otávio em Mateus, 10, e Celso, o advogado do partido em Abnegação, havíamos combinado de nos encontrar. Ele já aguardava no local, uma frutaria em frente à Praça dos Arcos, no final da avenida 31


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Paulista, quando cheguei. Vestido com uma blusa de lã vinho e calças jeans, lia um livro acompanhado por uma vitamina alaranjada. Antes daquela manhã, eu só o havia visto no palco e no perfil do Facebook. Era curioso observá-lo ali, sentado tranquilo, tão diferente de suas personagens. O cabelo liso se via livre do gel e exibia um topete volumoso que cobria parte da testa. Usava óculos de armação grossa e escura. Cumprimentou-me com um sorriso farto, de dentes grandes. Além de ator, Vitor é bailarino e fotógrafo. Nasceu no Guarujá, mas a família toda é de Santos. Veio para São Paulo em 2001 para prestar EAD, a Escola de Arte Dramática da ECA-USP. Passou na segunda tentativa, no ano seguinte. “Não banco isso”, foi a reposta que deu quando recebeu a notícia de que interpretaria Otávio. “Não achava que daria conta. Sou um cara super passivo, sem muitas nuances de humor. Para fazer o Otávio, tive que entrar em lugares meus que não conhecia. Isso foi parar na terapia”, riu. “É tudo muito técnico, mas eu convocava humores com os quais não estava acostumado, como ódio, medo... Algumas pessoas só me reconheciam depois de 15 minutos de peça.” “O Otávio é uma puta personagem complexa”, continuou. “Em geral, na dramaturgia do Alê, nada é dado para você ler e falar: ‘ah, é isso!’. Você lê e fala: ‘ah, é ao contrário!’. Como ator, eu tenho a sensação de que tudo é muito cruzado. O cara está falando uma coisa querendo dizer outra ou, então, o foco da encenação está em tomar esta vitamina, mas o assunto não é este.” Na segunda cena do primeiro ato de Mateus, 10, por exemplo, Otávio esfrega um frango no rosto de Olga durante o jantar. “Por que esse frango está assim?”, disse Otávio. “Assim como?”, pergunta Olga.

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“Está ruim.” “...mas eu temperei bem...” “O tempero está ruim. E está um pouco mole, Olga.” “Por que você está falando desse jeito do frango?” “Porque está horrível. Mole e sem tempero.” “Me desculpe, Otávio! ...ponha um pouco mais de sal...” “Não adianta. Eu estou enjoado. Comi muita pele mole e sem tempero. O seu frango me causou náuseas.” “Calma, Otávio. Eu errei no tempero e no tempo de cozimento. Você tem razão. Você quer que eu frite uns ovos?” “Não. Eu não quero ovos. Eu quero que você coma o meu frango, Olga. Coma a pele mole do meu frango.” Otávio pega o frango e coloca na cara da Olga, que não abre a boca. “Eu não estou com fome”, diz.

Otávio continua a insistir para que Olga coma o frango, e passa a enfiá-lo em seu rosto até o momento em que ela dá um tapa na ave, que cai no chão. O estranhamento entre os dois continua até que Jéssica (Alexandra Tavares), uma fiel, toca a campainha. “No ensaio, o Alê falava: ‘na verdade, passar o frango na cara dela não é o foco da cena. O público está vendo você oferecendo o frango, mas, o que me interessa é que percebam que o cara está com um turbilhão de questões, que ele está totalmente em crise’”, contou Vitor. “A direção do Alexandre é muito neste sentido de ver a lógica da coisa, ou a não lógica. A atuação deslanchou quando entendemos que a peça parte de um realismo, beira ao absurdo, mas acontece no ‘entre’”, continuou. Depois deste entendimento, um dos braços de pesquisa foi trabalhar o refinamento do gesto no corpo. “A partir de uma contenção, mostrar no corpo o processo de decisão da personagem. Mesmo que 33


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não tenha texto falado, há uma dramaturgia do corpo acontecendo. Também sou bailarino e tem questões no texto do Alê que se assemelham muito à dança. Ele esgarça o tempo e, nesse esgarçamento, outras coisas que estavam invisíveis começam a aparecer e a propor condutas totalmente diferentes. Você espera que eu pegue essa vitamina e que eu tome essa vitamina”, disse fazendo o gesto com as mãos. “Mas em vez disso eu vou regar as plantas com ela”, continuou enquanto segurava o copo no ar, em cima de um pequeno jardim. “Ele inverte umas lógicas e, como ator, você começa a pensar assim também, o que acaba abrindo um leque de possibilidades, mas também te faz pensar: ‘Caramba, Alê. Você é louco! Que infância você teve?”, brincou. Também tive a mesma curiosidade.

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“Nem colher, nem sucrilhos e nem leite” “Quem sou eu? Simples...”, Dal Farra devolveu-me a pergunta, naquela manhã no café, seguida de uma gargalhada. Levou um tempo antes de voltar a falar. Enquanto isso, passava a mão pela barba e, por vezes, pegava um pedaço dela, logo abaixo da boca, e prendia entre os lábios. Era uma de suas manias, assim como mascar chiclete, tomar café e coçar o topo da cabeça. “Nasci em São Paulo, no Albert Einstein, em 1981. Minha mãe, Miriam Zita Ferreira, é médica, por isso nasci no Einstein. Não era rico. Naquela época os médicos operavam os outros da classe de graça. Meu pai, João Batista Dal Farra, é músico e faz teatro. Meus pais nunca foram casados. Que eu saiba, foi um acidente. Eles tiveram algo 34


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meio rápido, durou um ano ou dois. Sou filho único deles, mas tenho irmãos por parte de mãe e de pai.” Miriam e Zebba chegaram a morar juntos em uma casa na Vila Nova Conceição, próxima ao Parque do Ibirapuera. Mais tarde, mudaram-se para uma casa maior na mesma região. “O ex-marido da minha mãe tinha um pouco mais de dinheiro e ajudava a pagar o aluguel. Por um tempo, até eu ter uns seis anos, moramos todos ali. Eu, meus irmãos, meu pai, minha mãe e seu novo marido, que continua com ela até hoje. O ex-marido da minha mãe também ficava lá quando vinha do Rio de Janeiro. Minha família é um pouco isso, uma classe média brasileira esclarecida, bem particular, que acabava tendo este clima pós-1968, de liberação, talvez. De não ser muito careta”, disse. Alexandre deixou a Vila Nova Conceição aos onze anos e mudouse com a mãe para um apartamento no Butantã, bairro onde vive até hoje. Estudou na Escola da Vila, instituição de ensino baseada no método construtivista. Aos doze, tomou seu primeiro porre acompanhado pelo grupo de amigos que fez no colégio. Foi com essa idade também que fumou maconha pela primeira vez. “Cheguei a ser mega maconheiro por um tempo, mas tive que parar porque tinha asma. Não aguentava.” “Tem uma história engraçada”, disse. “Quando eu entrei neste prédio que eu moro pensei: ‘Caralho, eu me lembro disso aqui’. Depois me veio à memória que por volta de uns quinze anos eu tinha ido a um apartamento neste mesmo prédio. Eu estava louco de lírio que havia tomado com esse pessoal. Nós tomávamos todas as drogas que você puder imaginar e nos organizávamos quando tinha alguma droga muito trash envolvida. Nesse dia, por exemplo, só eu tomei e eles ficavam cuidando de mim. Quando você toma lírio, você age como um esquizofrênico por um tempo, mas depois passa. Ainda bem que passa. Nessa festa, eu me lembro de ficar tentando tomar Sucrilhos 35


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com leite e não conseguir, porque cada vez que eu ia colocar a colher na boca, caía tudo. Só depois percebi que não tinha nada na minha mão: nem colher, nem Sucrilhos e nem leite”, riu. Parou de repente com as drogas. Durante três anos foi totalmente careta. Voltou a beber por um tempo, mas enjoou. Hoje, não usa nada, não toma nenhum tipo de droga. Só café. “Gosto de ficar sóbrio. Já conheço todas as drogas, não tem novidade. Já fiquei muito doido... Não sinto falta. Às vezes me dá vontade de cheirar”, ri. “Mas ela passa rapidamente porque me lembro de que depois é muito ruim.” Foi expulso da Escola da Vila após ter sido visto, pela oitava vez, fumando maconha. Mudou-se para o colégio Equipe, em Higienópolis. Por esta época, teve a primeira namorada. “Eu sempre tive umas relações loucas e difíceis. Eu e essa namorada brigávamos e eu destruía o telefone. Nem consigo dizer por que brigávamos. Mas era tudo muito intenso. Tive um filho aos 23 anos com a Ana, outra dessas relações conturbadas”, disse. “Demorou para eu perceber o quão assustador era ser pai. No sentido da responsabilidade mesmo. Do lado do amor, da relação com a paternidade em si, sempre foi positivo.” “Fui muito confuso durante um tempo”, continuou. “Na organização da vida mesmo. O que eu queria, o que eu ia fazer, como me inserir, qual o meu lugar no mundo. Eu sentia que tinha umas coisas para dizer, que tinha um monte de potencialidade, mas não conseguia utilizar minhas próprias ferramentas. As coisas acabavam saindo pelo buraco errado... Quis ser contrabaixista por um tempo, me formei em música erudita...” De todas as músicas que chegou a compor, as únicas que considerava mais perto de serem interessantes eram aquelas que praticamente não queriam mais ser músicas, que continham frases e palavras no meio. “A relação com a música era difícil pra caralho. Achava 36


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tudo muito ruim. Com a escrita, rolava diferente. Ela me libertava disso. Eu conseguia ler o que escrevia e achar bom depois. Meus textos aguentavam mais minhas porradas do que minha música. Em algum momento eu percebi a palavra como uma arma.” Parte de sua estabilização também veio do término de seus relacionamentos amorosos conturbados. “De fato, com a Jana foi totalmente diferente das outras relações. Nos conhecemos desde 2002, mas rolou certo interesse mesmo em 2010. Estávamos em um bloco de carnaval e ela me ofereceu um milho”, riu.

CENA 5

“Linguagem: campo de conflito” “A primeira relação que estabelecemos foi sexual”, disse Janaina Leite sentada na soleira da porta da gráfica que divide parede com a sede do Tablado de Arruar. Janaina é atriz desde os 15 anos, época em que estudou no Teatro Escola Macunaíma. Aos 18, entrou para na EAD-USP. Foi ali que conheceu Luiz Fernando Marques, diretor do Grupo XIX de Teatro, do qual faz parte. Antes do carnaval, ela e Alexandre se conheciam pela troca que ocorria entre o Tablado e o XIX. Os dois grupos nasceram em 2001, num momento em que, para Janaina, havia um desejo muito grande no teatro de mudar o mundo. “Era o momento em que o Lula chegou ao poder e achávamos que tínhamos um quadro favorável para as coisas acontecerem.” Apesar de serem primos, os coletivos trabalham de formas diferentes. Janaina acredita que, enquanto o Grupo XIX desenvolveu uma 37


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linha de comunicação mais direta com o público, conduzindo-o com mais delicadeza para a porta de entrada da peça, o Tablado, com a dramaturgia de Dal Farra, colocou as situações em zonas mais conflituosas. “O Alexandre basicamente trabalha com uma chave de desconforto em relação a todas as questões, que não são esquemáticas. Você não identifica claramente que ele está defendendo tal coisa para chegar a um determinado lugar. É mais complexo. Ele constrói o texto dele em um lugar onde a própria linguagem é um campo de conflito.” Demorou até que Janaina e Alexandre entendessem o repertório referencial um do outro e criassem ferramentas de leitura. “Não falávamos a mesma língua e isso gerava um monte de atritos”, riu. “Às vezes acontecia de eu falar uma coisa que para mim era um elogio e ele entender totalmente como uma crítica e vice-versa. Mas foi muito doido, porque eu fui me aproximando e entendendo o jeito dele pensar, lendo as coisas que ele escrevia e isso foi mexendo em lugares muito complexos da minha sensibilidade.” “Ele tem um nível de inquietação profunda, uma necessidade de deixar que os problemas venham à tona, que eles sejam elaborados de alguma maneira. Geralmente eles chegam pelo caminho da explosão. Mas têm a raiva e a angústia, também. São sentimentos que eu identifico muito fortemente nele. Ele tem um espaço interno muito grande para tratar com coisas terríveis e desconfortáveis.” “Foi difícil lidar com isso no começo”, continuou. “Eu havia saído de uma relação muito solar e apolínea. Mas fui vendo as coisas que ele escrevia e sempre ficava muito encantada e assustada. ‘Aonde que isso chega?’. Conforme as coisas foram se estruturando via trabalho, via relacionamento, ele teve uma base para suportar melhor essa inquietação, que é algo particular. E para mim foi importante mergulhar nos transtornos dele para encontrar os meus.”

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CENA 6

“Incômoda diversão” “O Alexandre sempre foi um pouco insatisfeito, meio malhumorado em certo sentido, meio radical”, contou Zebba Dal Farra em sua sala, na Coordenação do curso de Artes Cênicas da USP. Zebba usava uma camisa de manga curta estampada em tons de azul e verdes. Aberto, o último botão deixava aparecer um colar de couro. Tem os olhos pequenos e o queixo quadrado como os do filho. “Ele escreve muito bem no registro da violência e consegue produzir uma dramaturgia que fica entre o autoral e o coletivo. Não é um dramaturgo de grupo no sentido de um processo colaborativo, mas também não fica no gabinete. Tem uma relação orgânica. Provavelmente quando está escrevendo ele pensa nas pessoas que vão encenar”, continuou. Zebba quase não participa do processo de criação do filho. “Quando vou assistir aos espetáculos, conversamos, mas, antes da feitura do trabalho, não. Acho que é uma maneira atual dele”, conta. “Eu sempre tive um trabalho que se deseja participante, político, reflexivo e crítico. Não sei se isso está presente na obra do Alexandre por causa da nossa ligação, mas há semelhanças. A dramaturgia dele quer ser provocativa. Existe uma diversão nela, mas não é para entretenimento. É uma diversão que incomoda, que causa estranhamento. Isso, eu sempre busquei.”

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CENA 7

Da rua para a sala Entre abril e maio de 2014, o Tablado de Arruar ministrava uma oficina de experimentos cênicos sobre teatro de intervenção. O laboratório era parte do processo de criação de uma segunda etapa de Abnegação. Era a primeira vez que o grupo estrearia duas peças dentro de um mesmo projeto contemplado pela Lei de Fomento ao Teatro. Os encontros da oficina, destinada a atores e bailarinos, aconteciam às terças e sextas à tarde e propunham um estudo da relação do ator com o espaço ficcional público e privado. Embalados por uma música instrumental, cerca de dez participantes se aqueciam no chão da sede do grupo. Enquanto isso, Alexandra Tavares e Ligia Oliveira, atrizes do Tablado, conversavam perto de uma pseudo-cozinha, que consistia em uma mesa com copos, cafeteira e uma geladeira, dispostas logo em frente ao banheiro. “Preciso ler o livro do Alê. Fui comprar e estava esgotado. Legal, né?”, disse Lígia. “O livro é muito bom. O narrador vai te levando para uns buracos. Ele vai andando pelas ruas e vendo tudo com um olhar crítico”, comentou Alexandra. “Vem em fluxo...” Falavam de Manual da Destruição, primeiro romance de Dal Farra. Nele, um narrador de voz contundente e crítica, expressa de forma radical situações cotidianas de um espaço urbano que o deixam à beira de um ataque de nervos. No texto, escrito em fluxo com uso de palavrões e termos depreciativos, esta figura lança à sociedade uma espécie de ódio generalizado, atrelado a um desespero por não encontrar uma saída para o padrão de sociabilidade estabelecido. Vitor Vieira vinha subindo as escadas. Enquanto conversava com as meninas, trocava o jeans e a jaqueta por uma calça bailarina preta 40


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e uma camiseta branca. Já vestido, deitou-se no chão para dar início à parte corporal da oficina. O Tablado mudou bastante desde a sua fundação, principalmente em relação à sua dinâmica de trabalho. A princípio, as criações do grupo, fundado em 2001 por Martha Kiss, Raíssa Gregório, Daniela Riciere e Alexandre Dal Farra – aos quais se juntaram Clayton Mariano, Rodolfo Amorim, Vitor Vieira, Ligia Oliveira e Alexandra Tavares –, aconteciam por meio de processos colaborativos. Havia um rodízio de funções. Durante os seis primeiros anos de trabalho, o grupo se apresentava nas ruas da capital, principalmente no Centro. Neste período, montaram três peças. Em A Farsa do Monumento, montagem de estreia com texto de Céssio Pires e direção de Heitor Goldflus, o Tablado se inspirou no episódio da inauguração de um monumento em homenagem a Pedro Álvares Cabral, em 1990, durante os festejos do quarto centenário do descobrimento do Brasil: na hora de tirar os panos que revelariam o monumento, o mecanismo que puxava as cordas enguiçou. No trabalho seguinte, Movimentos Para Atravessar a Rua, o grupo retrata em três episódios, criados a partir de narrativas colhidas pelo centro da cidade, a travessia de desempregados, camelôs e moradores de rua. A terceira peça do Tablado, A Rua é um Rio, é a primeira obra dramatúrgica de Alexandre Dal Farra, que antes apenas havia trabalhado no grupo como diretor musical de A Farsa do Monumento. Utilizando como base o livro Parceiros da Exclusão, da socióloga e urbanista Mariana Fix, o espetáculo confronta o poder das grandes construtoras e especuladoras imobiliárias com a realidade daqueles que vivem à margem da sociedade. Dal Farra havia se distanciado por dois anos do coletivo porque estava participando do projeto de construção da peça do Teatro de Narradores, Arturo Ui, da qual faria a direção musical. Fora isso, cur41


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sava Composição Erudita na Faculdade Santa Marcelina e estudava para se tornar contrabaixista. A segunda dramaturgia de Alexandre para o Tablado foi o resultado de um processo de pesquisa que desenvolveu com a diretora alemã Tine Rahel Völcker, envolvida em um trabalho com o coletivo do diretor Tilmann Köhler. Tine conheceu Dal Farra em um bar, em 2007, quando veio para São Paulo procurar um dramaturgo ou diretor com quem pudesse estabelecer uma parceria. “Depois de tentar telefonar umas trinta vezes para uma ex-namorada minha por quem eu era apaixonado na época, cujo número não conseguia discar porque tinha umas teclas quebradas no meu celular, desisti de tentar e resolvi beber”, conta Alexandre. “Pedi uma cerveja e fiquei um pouco quieto. Uns cinco minutos depois, uma amiga minha apareceu no bar com a Tine. Conversamos um pouco e ela ficou muito curiosa porque eu gostava de dramaturgos alemães: Castorf, Pollesch, Brecht, Müller.” No ano seguinte, Alexandre recebeu uma bolsa do Instituto Goethe e passou três meses na Alemanha, escrevendo e conversando com Tine para definir de que forma aconteceria a parceria. “Decidimos que ela escreveria sobre uma espécie de Medeia brasileira, e eu escreveria sobre uns Argonautas alemães indo para o Brasil. A ideia era falar sobre o outro com o pouco que se sabe dele. A partir daí resultaram dois textos que trocamos, sobre os quais conversamos muito. Mas não chegamos a escrever juntos, cada um teve o seu espaço de escrita próprio.” No segundo semestre de 2008, o coletivo de Köhler chegou ao Brasil e ensaiou com o Tablado trechos dos textos. O resultado, uma pequena cena, foi apresentado na Oficina Oswald de Andrade. Em 2009, o Tablado foi para Berlim. Lá, com a mesma equipe, ensaiaram Pele de Ouro (Haut aus Gold), peça que foi apresentada duas vezes no teatro Maxim-Gorki e que, mais tarde, teve temporada no SESC Pinheiros. 42


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Paralelamente à criação de Pele de Ouro, era realizado o processo de elaboração de Quem Vem Lá, uma releitura de Hamlet. Na montagem, o príncipe dinamarquês está em seu apartamento e espera pelo momento em que terá de entregar o imóvel por causa de pendências financeiras com Fortinbrás, seu primo. Em 2010, o Tablado volta a ocupar a rua com o melodrama Helena Pede Perdão e é Esbofeteada. Utilizando referências do dramaturgo e escritor alemão René Pollesch, a peça faz uso de vídeo e música e explode no espaço cênico uma pesquisa do grupo voltada à colocação da cidade como parte do cenário. Um ano depois, estreia a quinta dramaturgia de Alexandre, Petróleo. Um projeto paralelo ao Tablado, o também melodrama se passa numa sala de espera de um hospital, onde três mulheres se envolvem numa rede de situações enquanto um moribundo está no quarto. Após montar Helena, o Tablado queria continuar a pesquisa desenvolvida no espetáculo. “Perto de sair de férias, o Alê manda o texto do Mateus. Quando fomos ler, não era uma peça de rua, nem uma peça com vídeo e música. Amamos o texto, mas mudamos totalmente o rumo que estávamos seguindo”, contou Vitor Vieira. Surgiu, assim, o estudo da linguagem desenvolvido em Mateus, 10 e continuado em Abnegação e Abnegação II.

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O começo da merda Encontrávamo-nos, eu e Alexandre, novamente em um café. Desta vez, sem enfeites de coelhinhos e ovos de Páscoa. E sem café também. “Fiquei zoado do estômago um tempo e acabei cortando o café”, explicou. 43


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Na última conversa, o Tablado estava iniciando o processo da continuação de Abnegação. “Por um período os atores ficaram fazendo exercícios de corpo, investigando a linguagem cênica da peça via interpretação, enquanto eu pensava no texto. Há um tempo eu tinha tido a ideia de fazer algo com o caso do Celso Daniel, um filme, um roteiro de série; algo que não fosse teatro. Comentei com o Clayton e ele achou bom. E achou que poderia ser uma peça. De certa forma, era como se fosse uma continuidade de Abnegação, mas quinze anos antes. Por enquanto, estamos chamando de Abnegação 2: o começo do fim”, conta. Celso Daniel era membro do PT e prefeito de Santo André quando, em 2002, foi sequestrado, torturado e morto. Segundo o inquérito policial, o político foi assassinado por engano: os sequestradores estariam atrás de outro homem, cuja identidade até hoje é desconhecida. No cativeiro, porém, ao se darem conta da troca, um deles ligou para o chefe perguntando o que deveria ser feito. “Dispensa”, respondeu. “O chefe fala que esse ‘dispensa’ era no sentido de soltar e que foram os sequestradores quem entenderam ‘dispensa’ no sentido de matar. Teria sido uma questão linguística”, afirma Alexandre. Outra versão da história, defendida pela família e pelo Ministério, diz que o político foi morto por ser contrário a um esquema de enriquecimento pessoal de determinados membros do PT, atravancando o processo de caixa dois. “Quando eu e o Clayton contamos a ideia para o restante do grupo, todos ficaram com medo. Isto porque, na época do crime, no meio do inquérito, mais sete pessoas foram mortas, como o garçom que atendeu a mesa dele antes do sequestro, o investigador da polícia civil, o agente funerário etc.”, continua Dal Farra. “Essa história me dá uma disenteria, não só pelo fato dele ter sido morto com onze tiros, dele ter sido torturado, mas porque ele era bom pra caralho. Ele tem a ver com um época em que o PT representava uma alternativa de esquer44


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da mesmo, até bastante radical. E sua morte acontece em 2002, ano da eleição do Lula que, para mim, é uma virada política crucial do partido, que passou a ser situação e não oposição”, conclui. Para contar o episódio de maneira cênica, Alexandre optou por criar uma outra trama; semelhante em certos aspectos, mas com diálogos e situações ficcionais. Diferente da dinâmica estabelecida em Abnegação, que trazia diálogos insinuantes, mas não explícitos, a nova montagem diz tudo do começo ao fim. “Tudo, tudo mesmo. Resolvi escrever assim porque é disso que a peça trata. É voltar lá atrás, ver como começou a merda toda e lidar com este horror de frente, sem ser de forma lateral ou oblíqua”, explica. “Por exemplo, tem a cena do jantar entre o Jorge [assim como em Abnegação, as personagens têm nomes genéricos] e o segurança dele [Sérgio]”, diz enquanto tira o celular do bolso e começa a ler:

SÉRGIO: Eu tenho informantes. Você devia ter imaginado isso. Então, eu faço crimes, coisas assim. Mando matar pessoas para servirem de exemplo, pessoas que precisam desaparecer etc. Sabe? JORGE: Sei. Eu sabia. SÉRGIO: Isso é uma coisa que eu faço, mas não é por querer. Uma coisa foi levando à outra. Sabe? JORGE : Acho que sei. SÉRGIO: Quando você vê, está mandando torturar um cara para obrigar ele a falar umas coisas, mandando matar, mandando fazer o cara comer a sua própria orelha, e tal. JORGE: Comer a própria orelha? SÉRGIO: É. A gente faz muito isso também. É um jeito de fazer o cara sofrer. De machucar o cara. Sabe? JORGE : Sei. Sei como é. Deve ser muito difícil.

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SÉRGIO: É muito difícil quando você escuta a voz da pessoa gritando do outro lado do telefone e tem que mandar os caras matarem a pessoa, sabe? Aí você escuta o tiro lá do outro lado, e a voz da pessoa para, param aqueles gemidos, gritos... É até mesmo um alívio, nessas horas. Sabe como é? A gente fica aliviado. JORGE: Em uma situação como essas, deve causar um alívio mesmo. O garçom está vindo com a comida. Vamos fingir que estamos falando de outro assunto. SÉRGIO (muda o tom de voz): ...e aí eu liguei para aquela puta, mas ela disse que estava ocupada. Nunca vi isso, puta ocupada. Você lembra dela? Aquela bem gostosa, sabe? ...que você até falou dos peitinhos dela, peitinhos durinhos... Também, catorze anos, devia ter... Dezesseis no máximo... (Garçom começa a servir). JORGE (entregando o prato ao garçom): Ah, é... E como está a Marina?... SÉRGIO: Que Marina? JORGE: A sua mulher? SÉRGIO: Cara, eu não sou casado. Aquela é a minha namorada. É outra coisa, já te falei. Nem quero ser casado! Aliás, eu nem encontro muito ela. JORGE: Há, há!... Não encontra!... Comédia. SÉRGIO: Como assim? Eu estava te falando agora, você acha que eu poderia ser casado? Não, é muito risco!...

“O garçom fica interessado no assunto e por aí vai indo. É este o clima. Fica tudo dito. É uma coisa meio esquisita. Tem um nível de ironia, de humor nisso. Testamos essa cena num bar e foi bem interessante. Estou empolgado, mas dá medo porque estou mexendo nu46


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mas matérias muito horríveis. Agora estamos continuando processos de workshops e eu enviei o texto para o Clayton. Ele gostou, mas disse ‘Fodeu, agora vamos ter que refazer tudo’”, ri. “É sempre assim, mas eu não posso fazer diferente, porque o jeito que realmente as minhas coisas mais bizarras aparecem é via texto, e não por encenação ou proposição de jogos teatrais. É quando eu sento e escrevo eu mesmo as palavras. A escrita é a matéria que eu tenho para dar.” ...

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Cena de “mateus, 10”, de alexandre dal farra




gustavo colombini

narrativa geomĂŠtrica


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Cena de “o silêncio depois da chuva”, de gustavo colombini

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começamos a descer a rua augusta por volta das oito e meia da noite. sentido centro. tentamos um, dois, três bares antes de nos sentarmos ali. os outros todos estavam apinhados de gente. o lugar era um pequeno salão de paredes tingidas de um branco encardido. tudo era um pouco sujo, do pano que o atendente enxugava as mãos à privada do banheiro, que, já dizia o aviso, só aceitava xixi. a descarga estava quebrada e, a menos que quem o utilizasse quisesse encharcar os pés, era melhor sair e deixar o que fizera ali, sem puxar a cordinha. escolhemos uma mesa logo na entrada. no canto oposto, um casal conversava entre beijos e bebericadas de cerveja. numa mesa próxima, duas amigas travavam um diálogo intercalado por risinhos. sentada do lado de fora, uma dupla de amigos fumava um cigarro e observava o movimento da rua. embalava a pouca conversa um hit do nirvana vindo da pequena tv de tubo, sintonizada num show antigo da banda. o garçom quis saber, enquanto deixava o balcão e se aproximava, qual seria o pedido. o cardápio era objetivo. pra beber, cerveja. pra petiscar, amendoim. 53


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uma original e nada mais. sem titubear. gustavo colombini apontou com os olhos para a tela. “bizarro, travou numa cara engraçada do kurt cobain”, riu. gosta de nirvana, mas nada comparado a radiohead. “é a banda da minha vida. no ensino médio, deixava de ir à aula em dia de lançamento de álbum...”. “mas calma. sobre o que estávamos falando? me desculpa. me perdi”. vez ou outra os assuntos se iam assim, ou eram interrompidos por engraçados “tá confuso?” ou “tá fazendo sentido?”. vez ou outra também voltavam. desta vez, voltou. enquanto conversava, colombini movimentava as mãos sobre a mesa de acordo com o ritmo que dava à fala. quando pausava, deixava as pontas dos dedos caírem sobre o tampo de madeira ou as levava ao cabelo castanho e à barba ruiva, desgrenhando-os um pouco mais. os olhos de um castanho claro entusiasmavam-se a cada projeto que se propunha a explicar, e hoje observavam por detrás de óculos de borda grossa. não os usava sempre. preferia lente. “ah, me lembrei. falávamos sobre o cinza”. sobre o cinza e o processo de criação da segunda montagem do grupo, ponto de fuga. colombini e joão dias turchi dividem a dramaturgia da peça, uma continuação de planta, primeiro trabalho do coletivo, também formado pelos atores artur abe, julia monteiro e vinicius garcia pires. planta, apresentada na X bienal de arquitetura de são paulo, em 54


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2013, foi encenada no apartamento da sede da associação parque minhocão. sentado no elevado, o público assistia a personagens silenciosas que apareciam nas seis janelas. um texto era projetado no edifício. nele, lia-se: lá fora nunca é só lá fora. ele não cabe mais embaixo da cama, eu não caibo mais ao lado da janela, eu mal posso abrir as janelas, eu mal posso abrir as janelas ou as portas e acho que eu prefiro deixar as luzes apagadas, como se eu não estivesse aqui. porque às vezes eu realmente não estou. a casa está em ruínas, olha aqui pra dentro agora. a casa nunca esteve pronta e ela nunca vai estar, porque enquanto a cidade não estiver pronta, aqui também nunca estará. a intervenção trata a cidade como um espaço subjetivo. espaço que só existe enquanto alguém existir nele. joão dias turchi explica: “é pensar o quanto de você cabe na cidade e o quanto da cidade cabe em você. a avenida são luís, onde moro, está a cinquenta passos do metrô república. é o caminho que eu faço todos os dias. é este caminho que existe para mim”. joão é de goiás e veio para são paulo estudar direito na usp. após terminar o curso, trocou o largo são francisco pela cidade universitária, onde faz mestrado em dramaturgia. também trabalha com produção cultural no museu de arte moderna, o mam. no início do processo de construção de planta, joão e gustavo estimularam os atores a medirem o espaço com o corpo. “o gustavo gosta muito disso. no primeiro dia, medimos o apartamento a madrugada inteira. ficávamos rolando no chão, dando passos, pulando. o vizinho de baixo ficou puto com a gente”, conta bemhumorado entre uma dentada e outra no pão na chapa com manteiga que pedira ainda há pouco num café no edifício zarvos, na república. 55


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além de concreta, a medição pode ser subjetiva. no programa da peça, gustavo escreve que cabe nove vezes deitado da porta de entrada do apartamento até o fim da varanda, e cabe quatro vezes de pé na segunda janela. joão mede o tamanho da sala com as próprias palavras e questiona o quanto de “silêncio cabe no banheiro, na varanda, na cozinha e da cozinha até a varanda, quanto silêncio cabe no apartamento”. além de medir, é necessário mediar. mediar o espaço. artisticamente. a utopia deste novo projeto – o ponto de fuga – é construir um texto que possa ser apresentado em qualquer lugar. “quando você sai do teatro convencional”, diz joão, “o espaço que você ocupa tem uma dramaturgia. a dramaturgia que você constrói nele precisa dialogar com esta que já existe. a ponte entre elas é feita pela mediação do ator e se dá muito pela forma como ele mede o espaço. brincamos que são atores medidores e mediadores”. num ensaio, no centro cultural são paulo, gustavo pediu que julia, artur e vinicius andassem por ali descrevendo em voz alta tudo o que viam. as pessoas, os lugares, as sensações... durante a caminhada, deveriam também escolher um local para apresentar um fragmento de texto que já vinha sendo trabalhado por cada um. dispersaram-se todos. subiram e desceram rampas. andaram em círculos. pararam em obras de arte. toparam-se, às vezes. interagiram um momento. continuaram a caminhar. mais rampas, subidas e decidas. aceleraram o passo. o deixaram vagaroso também. o mesmo com a fala. artur dizia tudo em fluxo, sem parar. no meio do exercício, mais interpretava as coisas e as significava simbolicamente do que as 56


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descrevia. ficou num estado de tamanho frenesi que chamou a atenção dos seguranças do ccsp enquanto estava dentro de uma sala de exposição de artes visuais. “olhar para a obra tudo bem, agora, ficar pirando na frente dela não dá”, disse um dos guardas e pediu que saísse. julia e vinícius se moviam num ritmo mais tranquilo. menos verborrágicos e mais observadores. na hora de apresentar a cena, artur quase se esqueceu de utilizar o texto. ocupou a instalação escolhida – um pedaço de parede de tijolinhos aparentes onde se prendiam um degrau e uma lâmpada – com os fluxos de consciência criados durante a caminhada. julia optou por uma espécie de sala preta na qual eram projetadas figuras disformes e curvilíneas. não tocou no espaço. quase não se moveu. a atmosfera dele, porém, refletia-se em sua postura e na forma como dizia o texto. o lugar escolhido por vinicius era o mais escondido dos três: um cantinho com uma escada toda coberta de poeira branca de construção. nela, subiu e desceu. tocou nas paredes e em nós, que tornamo-nos parte da encenação. gustavo acompanhava praticamente silencioso. tranquilo. era assim no geral. calmo, introspectivo – apesar de não perder a oportunidade de fazer piadinhas. nasceu no último dia de agosto de 1990. “todos os anos chove no meu aniversário”, conta. é virginiano “signo chato e metódico”, segundo o próprio; tem o signo de câncer como ascendente e, na lua, capricórnio. “câncer é melancólico, emotivo, reclamão. capricórnio é fiel, sofredor e independente”, brinca. “sempre fui de isolamento. sempre fui de ficar em casa. era o menininho que ficava atrás do sofá. a única ponte de relação mais forte era a família. sou muito ligado ao meu irmão mais velho.” 57


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o irmão formou-se em psicologia. casou-se há pouco. os pais cursaram administração de empresas e economia. “sou a ovelha negra, de fato. tenho um tio meio esquisito que diz ter feito teatro. brincamos que ele, na verdade, fez pornochanchada”, riu. o teatro lhe apareceu, assim, quase como uma brincadeira. gustavo estudava no parque sevilha, um colégio pequeno na zona leste de são paulo, região em que mora até hoje. “parecia uma grande família. nunca tive problema e também, se tivesse, eu ia me foder, porque todo mundo me conhecia. não tinha espaço para ser fora da caixinha”, conta. ali, fazia parte do grupo de teatro. “me chamaram após uma apresentação minha na exposel, uma feira temática em que mostrávamos trabalhos práticos para os pais. o tema de uma delas era louis pasteur, da pasteurização. eu e minha sala propusemos falar sobre ele de forma lúdica, por meio de um show de perguntas e respostas. eu era o silvio santos”, riu. “engraçado, sempre fui esse cara que, apesar de ser uma figura escondidinha, gostava muito da oratória.” foi convidado pelo grupo a fazer uma participação pequena na peça escolhida para a montagem do ano: roque santeiro. “eu me descobri gostando muito de teatro. mas, ao mesmo tempo, aquilo era uma reunião de amigos. era quase uma piada estar lá. nos encontrávamos de sexta à noite, fazíamos jogos teatrais.” durante todo o ensino médio quis cursar jornalismo. e queria que fosse na cásper. prestou no final de 2007 e não passou. “sempre fui super bom aluno, mas no terceiro ano eu caguei para o colégio. acho que alguma coisa começou a fervilhar, comecei a achar tudo meio 58


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chato. as pessoas começavam a me irritar. me isolei um pouco mais.” “eu era o descoladinho. não, era o esquisitaço mesmo, apesar de também ser o goleiro. e era bom. até peguei um pênalti numa final. sou da zona leste, não dava pra ser tão descolado assim”, brinca. fez um ano de cursinho e, ao final, novamente tentou jornalismo na faculdade cásper líbero. dessa vez, apostou uma ficha a mais: artes cênicas na universidade de são paulo. menos pelo curso e mais pela pressão de tentar uma universidade pública. “apesar que eu sempre gostei de ler teatro. pensando bem, meu começo no teatro não foi vendo, nem fazendo e nem escrevendo, mas lendo.” ainda no colégio, foi apresentado a shakespeare: hamlet e romeu e julieta também. descobriu, já no cursinho, samuel beckett: godot, winnie e willy. “nenhuma literatura, apesar dos canhões que eu pegava para ler, me estimulava tanto quanto aquela coisa de diálogo”. Aí, sim, por essa época, começou a escrever uma coisa ou outra para teatro. dois homens estão deitados em um quarto escuro. a plateia apenas escuta o som de suas vozes. homem1: oi homem 2: oi homem 1: você tá aí? silêncio. homem 2: que horas são? “sabe essas coisinhas?”, disse gustavo. “não levava a nada. eu relia e achava uma bosta, mas era muito gostoso fazer aquilo, mais pelo ato do que pelo resultado. não tinha sacado que dramaturgia era a minha. mas, por algum motivo, no meu mundo, dramaturgia era diferente, revolucionário. aquela estrutura. caralho! é para ser 59


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falado. tem um texto que não existe no papel, essas pirações. coisas que até hoje me perseguem de certa forma...”. beckett surge como um ideal temático. “sobretudo na criação de situações estranhas, personagens no escuro, falas menores. foi uma primeira aproximação com qualquer dramaturgia mais contemporânea, que era diferente de tudo o que eu já tinha lido. e era provocador. e eu, como rebeldezinho da escrita, achava que a essência era aquela”, diz. “mas, ao contrário de beckett, eu gostava muito de construir aqueles diálogos profundos, cheios de significado. aqueles diálogos que nunca ninguém vai ter na vida, mas que todo mundo gostaria de ter. não sei explicar. não consegui aprender com o beckett a essência verdadeira do ‘nada’, mesmo que eu sempre escrevesse sobre coisa nenhuma, como ele. eleger o nada como fonte criativa, por falta de algum outro tema ou de alguma outra responsabilidade me parece um clichê de iniciante (pelo menos dessa geração pós-moderna)”, diz. passou na cásper. e para a segunda fase da usp. quis ir até o fim para ver no que dava. mas estava certo de que iria fazer cásper. “só que, no final do processo seletivo da usp, antes de anunciarem os selecionados, acontece a festa dos pré-bixos: é a grande festa. todo mundo se joga. geral se pega, fica nu”, conta. “pela primeira vez pensei. ‘e se eu passo? e se eu passo? e se eu passo?!!’. ‘será que foram as pessoas que conheci? será que eu gosto de teatro mesmo? será que foi a pegação?’ não sei, mas pela primeira vez alguma coisa me deu um aperto do tipo, mano do céu, agora eu não sei!”. enquanto “estava no limbo”, por não saber se havia passado em cênicas ou não, foi assistir à rainhas com artur abe. “era a grande peça do momento, dirigida pela cibele forjaz. no meio do espetáculo, eu tive 60


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uma sensação de que ‘é isso que eu quero fazer’. não sei bem por quê. olhava para as pessoas, para as atrizes. na época, eu queria ser ator, acho. não falei nada com o artur, mas cheguei em casa decidido de que, se eu passasse na usp, iria fazer. e rolou. nós dois passamos.” em paralelo à faculdade, no terceiro ano, colombini entrou para o núcleo de dramaturgia do sesi-british council, um programa de formação de novos autores coordenado desde 2007 pela dramaturga marici salomão. durante o ano que passam ali, além de participarem de aulas e workshops, os doze jovens autores selecionados se dedicam a escrever uma peça, a mergulhar em um projeto pessoal. ao final, um destes trabalhos é escolhido para ser montado. para a seleção, gustavo mandou um texto chamado quando eles foram embora. “eram dez trechos falando sobre despedida. eu já tinha um flerte com a dramaturgia contemporânea, com essa coisa mais esquisita. tinha monólogo, depois um trecho com palavras repetidas, depois um diálogo... gostava da ideia de o dramaturgo mexer com a palavra e não apenas com o conteúdo.” “o texto foi rejeitado pelos avaliadores”, relembra marici salomão.“mas eu faço a repescagem e o li. ainda era desnutrido e confuso, a técnica deixava a desejar. mas tinha algo escondido ali, uma chama. me interessou. o convoquei para a segunda fase.” “lembro-me de que tinha acabado de sair da biblioteca quando fui para a entrevista. tinha um monte de livros na bolsa”, disse gustavo. “ele se saiu bem.” “talvez eu tenha parecido um bom leitor. curioso. a gente nunca sabe o que se passa numa seleção. só me lembro de que a marici frisou que eu era muito jovem.” e é. 61


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em 2011, quando frequentou o núcleo, gustavo escreveu o silêncio depois da chuva. a peça foi escolhida entre os projetos daquele ano para ser montada, com direção de leonardo moreira, da cia. hiato. em cena, uma mãe, interpretada pela atriz gisela millás, e dois filhos (fabricio licursi e thiago amaral). a história gira em torno da relação estabelecida por esta família ausente da figura do patriarca. o pai, não se sabe o porquê, encontra-se sob o assoalho, trancado em um porão. vestidas com trajes acinzentados, as personagens têm os cabelos sempre molhados e movem-se pelos cômodos da casa trocando diálogos ágeis. não raro, tem-se a sensação de que não se escutam, de que falam antes de pensar. repetem frases uns dos outros, vêm e voltam, desviantes, no tempo e no espaço. soma-se ao vaivém das palavras o som da chuva, que ritma-se às fragmentadas frases: o filho 2 – você lembra quando o filho 1 – lembro o filho 2 – a gente ficava paralisado junto sem entender o filho 1 – nosso pai levava a gente pra praia e o filho 2 – ficava paralisado olhando pra frente a mãe – tudo tem significado se a gente quiser achar algum o filho 1 – uma vez ele falou que o filho 2 – outra vez ele falou a mãe – a minha casa eu trago na mão o filho 1 – você não é o centro do mundo o filho 2 – que outra vez? o filho 1 – eu quase sei como é agora a mãe – quase o filho 1 – eu culpo você por tudo o que eu não entendo 62


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o filho 2 – é como quando a gente olha pro horizonte a gente acha que acabou mas continua apesar dessa troca de palavras quase ininterrupta (os diálogos às vezes são interrompidos por pequenos monólogos em off), nem tudo é dito. ficam lacunas a serem preenchidas. “é um drama residual que pretende ser incompleto, esburacado”, comenta gustavo. “percebi que muitos textos contemporâneos usavam essa forma de se contar uma história (vinaver, lagarce, lemanhieu, pollesch, koltes). e tinha tudo a ver com as minhas ideias durante o núcleo de dramaturgia, que era escrever uma história em que a sensação de estar assistindo conseguisse ser maior do que um completo entendimento sobre ela”. esta narrativa esburacada cobra uma posição mais ativa do espectador, que pode assumir diferentes posturas. “ele pode buscar sentido, tentar completar uma frase na cabeça, achar que já ouviu isso em algum lugar – a repetição de frases nas peças tem esse caráter, de mexer com a memória recente do espectador. ele pode até mesmo desistir de entender e começar a pensar sobre outras coisas que a peça fala. o drama residual parece um procedimento que eu encontrei para colidir a forma e o conteúdo das coisas de que eu gosto de falar, sem necessariamente matar a narrativa”, diz. “apesar de utópico, esburacar a história é um ato de violência contra o conforto passivo do espectador. contra as construções mastigadas, prontas, bem acabadas. é uma tentativa de puxar o espectador pra perto do trabalho, cutucar certos procedimentos de interação nele”. joão dias turchi enxerga a ausência como um elemento importante para a construção de o silêncio depois da chuva. “o texto não é só a ausência do pai, mas também a ausência de explicação para isso. o 63


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gustavo faz uma construção imagética e vai te forçando a pensar sobre ela de muitos pontos de vista. são vários os eventos que acontecem para convergir para o mesmo ponto, que é o pai estar no porão.” há na construção do texto a influência do filósofo e escritor francês gaston bachelard, com sua poética do espaço, escrita em 1974; e da técnica do, também francês, dramaturgo michel vinaver. “a peça em busca de emprego, escrita por vinaver, impressionou muito os autores do núcleo daquele ano”, conta marici salomão. “é uma peça toda desviante e descontinuada. do começo ao fim. acho que ela gerou no gustavo um caudal fértil para a criação.” em a poética do espaço, bachelard toma a casa como abrigo para o devaneio e como proteção para o sonhador, permitindo-o sonhar em paz. “é graças à casa que um grande número de nossas lembranças estão guardadas e se a casa se complica um pouco, se tem porão e sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm refúgios cada vez mais bem caracterizados”, escreve o filósofo. enquanto o sótão é o lugar do racional, o porão é o seu oposto. é o lugar do inconsciente. “é pois a loucura enterrada, dramas murados”. “a família como tema me é muito cara por representar um espaço. um lugar quase físico e concreto, como eu vivi. o ponto de partida foi aquela casa, onde coloquei minha mãe, meu irmão e eu, e fui montando o enredo em cima dessa poética criada por bachelard sobre as coisas”, afirma gustavo. “é muito engraçado perceber que tem gente que lê o silêncio depois da chuva e comenta ‘nossa, mas é ágil, né? é confuso, excessivo’. mas é o que vivemos todo dia. é uma resposta ao tempo, é uma oscilação. o título tem a ver com isso. só percebemos que se fez silêncio depois de ouvir meia hora de buzina no ouvido.” por seu texto, colombini foi indicado ao 24º prêmio shell de teatro de são paulo, assim como marisa bentivegna, responsável pelo 64


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cenário da montagem. pela indicação, gustavo ficou contente. por não receber o prêmio, aliviado: “eu tinha 21 anos. talvez ganhar me travasse. as pessoas começam a esperar mais de você.” o silêncio depois da chuva foi sua peça de maior repercussão. antes, apresentou essa casa na V mostra de cenas curtas da fábrica das artes, um festival realizado na cidade de americana; e escreveu a sinfonia, dramaturgia vencedora do I concurso jovens dramaturgos da escola sesc ensino médio, no rio de janeiro. a sinfonia traz o encontro entre um senhor e uma senhorita. ela, apressada, não dá a mínima para o que ele quer compartilhar. ela cometeu um erro naquele dia. e quer fugir. ele, em crise, a indaga a respeito de quem ele é. depois, de peças encenadas foram planta e o infantil para meninos e gaivotas (2013). de textos escritos para teatro foram, entre outros, laertes & polônio (2011), uma livre adaptação de hamlet, orientada por antônio araújo e johanna albuquerque; o espaço sugerido pelo vento (2013); e os vivos (2014), dúbio de silêncio na estrutura formal e na temática familiar. de trabalhos para além do teatro, livros, textos e projetos ligados às artes visuais. gustavo conta que as artes visuais apareceram após o obsessivo processo de criação de silêncio. levava o texto para cima e para baixo. buscava lugares para escrever. não compartilhava os escritos com ninguém. se encasulava. “minha criação começa num caos absoluto, depois, parte para a geometria.” cola todas as folhas na parede, faz 65


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questão que x frase apareça duas vezes a cada trecho ou que x palavra se repita aqui e ali. “quando eu elejo a geometria como meu processo de criação, além de ser uma obsessão, é um jeito de não perder o controle do que estou tentando dizer, porque a geometria, mesmo que abstrata, sabe onde quer chegar e o motivo de querer chegar lá”, diz. há um fascínio em seu trabalho em aliar forma e conteúdo. tudo o que quer dizer tem uma maneira específica de ser dita. faz isso não por um maneirismo estético, mas por tentar trazer a dramaturgia para um “patamar vivo de criação”. “falo muito sobre a dramaturgia como criação de ‘universos autônomos’ e a ‘forma’ consegue responder muito bem à responsabilidade que eu tenho (e quero ter) de se escrever no presente, no hoje, no agora”, explica. “diante da profusão dos tempos, tantas informações, tantos meios de comunicação, parece que uma das luzes que eu quero lançar para os textos dramatúrgicos que eu construo é a relação deles com uma atualidade em construção. histórias, acontecimentos, fatos que só poderiam ter sido contados daquela maneira. se forem contados de outra maneira, então são outras histórias, outros acontecimentos, outros fatos. é uma tentativa de acoplar linguagem, tempo e espaço. e quando eu escolho a linguagem, a ‘forma de dizer’ é o foco”, conclui. nesta época pós-silêncio, colombini trabalhava como educador no sesc belenzinho. lá, conheceu leonardo araújo, crítico de artes. “não gostava do gustavo e ele não gostava de mim, que eu sei”, riu leonardo. “achava que ele parecia esnobe, e eu também. eu sempre estava de cara fechada e ele já conhecia muita gente. além do mais, o gustavo é bonito. e eu tenho um receio com gente bonita, de não querer dar moral, algo assim.” 66


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passado o estranhamento, araújo convidou colombini para escrever um ensaio sobre ocupação narrativa para maré, revista independente na qual trabalhava. gustavo aceitou. o texto produzido, chamado fórmica, discorre sobre como o autor consegue ocupar o leitor, tornando-o ativo. “a galera da revista achou o texto meio ‘x’, mas o léo gostou muito, e aquilo rendeu altos papos. começamos a pensar em alguma coisa com escrita para as artes visuais. trabalhávamos nos intervalos. saíamos pra beber e ficávamos escrevendo em guardanapos, na mesa do bar.” juntos, criaram a instalação a imagem do texto no texto da imagem, montada por meio da mostra de arte contemporânea do sesi de curitiba. numa parede móvel, lia-se o fórmica. na parede em frente lia-se duas em uma (ou) uma em duas, texto de leonardo. conectavam os dois escritos fios vermelhos, azuis, verdes e marrons. também vermelhos, azuis, verdes e marrons eram as anotações, as setas puxadas e os traços rabiscados sob as palavras: a dupla criou um método próprio de análise para os textos, que, além de evocarem uma imagem, eram a própria imagem. aqui, entende-se imagem não como ilustração do objeto trabalhado, mas como uma “visualidade que investiga o conteúdo textual”. a ideia era propor uma “reconfiguração imagética e imaginária dos textos”, mostrando a estrutura da criação de cada um deles e os tornando objetos expositivos. “foi a época em que eu mais fumei na minha vida, por causa do léo”, comenta gustavo. “íamos para a casa dele e ficávamos trabalhando durante toda a madrugada.” leonardo mora com os pais na vila mariana, na região sul de são paulo. na verdade, mora e não mora com eles. passa a maior parte do tempo num sobradinho no fundo da casa, além do pequeno quintal. “costumava ser a adega”, conta enquanto procura na geladeira algo para comer. achou: “tem baião 67


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de dois! você quer? se importa se eu comer um pouco?”. lançou dois pratos bucho adentro em garfadas espaçadas antes de irmos para a “adega”. embaixo, um quarto e um banheiro. em cima, depois de uma escadinha estreita, prateleiras traziam uma porção de livros empilhados, que também se espalhavam sobre o chão e sobre a escrivaninha. foi ali que os dois construíram boa parte de imagem do texto no texto da imagem e dos outros projetos que elaboraram juntos. “o gustavo, se puder, passa vinte e quatro horas trabalhando”, diz. “quando estávamos no processo do carta de intenção, éramos os únicos que ficavam acordados até as seis da manhã. ficávamos conversando ou lendo e escrevendo em silêncio por umas quatro horas. sempre houve uma complacência muito grande entre a gente, mas claro que também há momentos de crise, porque conviver é foda. uma coisa que incomoda o gustavo é meu jeito espalhafatoso. ele finge que não se importa, mas eu percebo que sim pela cara que ele faz”, ri. o carta de intenção, como anuncia o convite, “é ana luisa lima, gustavo colombini, jaíme lauriano, leonardo araujo e maíra dietrich, um grupo de pesquisa e experimentação coletiva das inserções entre as artes visuais e a escrita, com proposições gráficas e textuais cruzando linguagens”. por meio de um prêmio proac-artes visuais, o grupo montou residência em campinas durante fevereiro e março de 2013. ali, no espaço ateliê aberto, realizaram encontros com convidados, como o escritor andré sant’anna, e seminários apresentados pelos participantes, vindos de diversas áreas artísticas. o ciclo de conversas foi transformado em livro, um registro gráfico e experimental do que se passou. cada um mostrava com textos, desenhos e colagens o que viu e realizou durante o processo. sobre seu seminário, “o advento da literatura na dramaturgia contemporânea”, colombini fez uma colagem de trechos de suas 68


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dramaturgias numa página e, em outra, de fragmentos de falas e ideias que desenvolveu na apresentação. numa delas, lê-se: “fala-se de um tempo teatral que ao focalizar a realidade na qual se inscreve, está desconstruindo-a, jogando com os códigos e as capacidades do espectador”. outro trabalho da dupla foi duplicata. certa vez, entre conversas pelo sesc belenzinho, colombini e leonardo resolveram escrever nas entrelinhas um do outro. “nosso textos são muito diferentes e pensamos que a união deles pudesse ser interessante”, diz leonardo. feito em papel vegetal, que forma uma espécie de círculo, o duplicata traz pensamentos que nascem e se concluem em caminhadas. leonardo escreveu a metade de um bloquinho pulando linhas. gustavo teve que completar nas entrelinhas. depois inverteram. gustavo escreveu a outra metade de forma livre e leonardo costurou os textos de modo que fizessem sentido quando lidos por si só e em conjunto. “ou seja, três textos em que a conjunção de dois dá um”. o trabalho com as artes visuais acabou influenciando a escrita dramatúrgica e literária de colombini. buscando possibilidades de mexer com a palavra, ele constrói textos concretos em que a própria estruturação no papel sugere determinadas possibilidades de leitura. joão dias turchi enxerga como uma escrita performativa. “as relações da escrita para além da história que está sendo contada importam muito, assim como a estruturação sonora. estamos escrevendo um livro juntos e eu releio as coisas e fico em dúvida se fui eu ou ele quem escreveu. mas, dependendo da forma como está escrito, sei que foi ele. geralmente o gustavo não termina as frases e vai juntando umas nas outras, como se fossem diálogos encavalados”. 69


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o livro que estão escrevendo é o histórias para serem lidas em voz alta. nele, os dois discutem os limites entre teatro e literatura. “ao trabalhar na fronteira entre literatura e dramaturgia, jogando com os aspectos mais marcantes desses dois gêneros, a ideia é apresentar questões fundamentais para a apreensão da narrativa contemporânea e escancarar certas características marcantes dela, como sua polifonia, sua liberdade de conexão entre ações e descrições e sua multiplicidade de emissão”, explica gustavo. joão conta que o livro é uma maneira de responder poeticamente a uma dúvida teórica. algo frequente nos trabalhos de gustavo.“gosto muito de inventar explicação pras coisas. eu descobri um jeito de tentar misturar escrituras mais acadêmicas com pirações que não cabem na academia, como se fosse possível um dicionário poético de todas as certezas”, comenta colombini. no início do processo de criação do livro, os dois escreveram solitariamente sobre acontecimentos cotidianos que traziam fricções entre fala e letra. mais tarde, com a troca dos textos, foram surgindo réplicas e tréplicas dessas histórias. “num primeiro panorama que fizemos do livro, discutimos a potencialidade de um fio narrativo entre todas as histórias, para além do conceito que já as amarra. é aí que surge um esboço de um trabalho com as biografias”, diz gustavo. “o elemento biográfico aparece como fundador de uma teoria sobre as ‘histórias em voz alta’. começamos a estudar as estruturas de uma biografia e a entender que esse gênero literário é justamente um ponto nevrálgico entre a palavra e a voz (e por isso entre a dramaturgia e a literatura). as biografias são necessariamente escritas, sendo que a vida de alguém, se fosse pra ser resumida fielmente, seria uma estrutura dramatúrgica por essência.” o histórias ganha, assim, a figura de um biografado que, ao escrever 70


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sobre a vida dos outros, se dá conta de que sua própria história está sendo escrita. as camadas do livro se permeiam de modo a ter parte de biografias alheias, parte de biografias do biógrafo/biografado e parte de um trabalho acadêmico-poético. “em nossos textos, mesmo sem termos combinado, surgiram nossos próprios nomes – o que garantia um fator crucial pra escrita em quatro mãos: não estamos discutindo a morte de uma autoria, mas criando um autor pra nós mesmos. nesse sentido, realidade e ficção se misturam na obra como ela mesma se propõe. gustavo e joão são os ‘autores’ do livro, mas nele são dois nomes anônimos de pessoas que fizeram parte da vida desse biógrafo”, expõe gustavo. para a dupla, escrever a quatro mãos não é tarefa fácil, já que o trabalho do autor exige certa solidão. mas joão acredita ser interessante a dinâmica de propor exercícios e de colocar seu texto em xeque mais facilmente. “você tem que estar aberto à crítica, o que no nosso caso é até que fácil, porque combinamos bastante e também confiamos muito um no outro. se bem que tive medo quando conheci o gustavo. ele ficava mexendo toda hora no cabelo”, ri. “é brincadeira.” a escrita performativa de colombini está presente não apenas nos enredos de sua própria autoria, mas também nos processos criativos que se propõe a participar. em 2013, atuou como dramaturgista do infantil para meninos e gaivotas. livremente inspirada na obra homônima de sônia machado de azevedo, a peça, realizada em parceria com a cia. sylvia que te ama tanto, traz trechos como: avô (apontando): olha! gabriel: onde? avô: longe! 71


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gabriel: onde? avó: lá longe! muito longe! avô: lá, lá na linha do horizonte! gabriel: onde? onde? avô: olha, menino... olha querendo ver! a montagem, que navega pelo universo onírico do menino gabriel, foi a primeira experiência de gustavo como dramaturg. diferente do dramaturgo, que cria o texto, o dramaturgista é o responsável por estabelecer um diálogo entre os elementos da obra, estejam eles no campo da escrita ou da encenação. gustavo colombini ressalta que o dramaturg (“pra ler com sotaque alemão”) ocupava o topo da pirâmide na hierarquia do teatro. “o dramaturg alemão, e essa figura ainda permanece em países europeus, era um cara responsável por um plano teatral para determinada cidade, ou para determinado teatro estatal. é ele que monta um planejamento teatral para o lugar e convida os diretores, dramaturgos. é um sintoma de países mais ‘avançados’ no quesito financiamento teatral pelo estado/governo. em países de maior miscigenação, e, por consequência, maior ‘inquietação’ com a forma e o conteúdo do teatro, há uma crise maior quanto a isso. brasil, argentina, américa latina, até portugal, em algum sentido, são exemplos disso. aqui, por sobrevivência, todo mundo tem que ser de tudo um pouco e não há planejamentos anuais para o que vai rolar num teatro alternativo, por exemplo. não é questão de melhor ou pior, mas o dramaturgista aqui está mais a serviço da crise do que de uma ‘organização’ de planejamentos. tanto é que, nesse sentido, o dramaturgista é só mais um dentro do processo, assim como o diretor, os atores”, diz.

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andré lepecki, professor da universidade de nova york, escreve no prefácio de o discurso da cumplicidade – obra da portuguesa ana pais sobre dramaturgismo, dramaturgia e práticas performáticas contemporâneas –, que o dramaturgista é aquele que traz a razão, a organização, a eficácia ao ato criativo. ana pais diz que um bom dramaturgista é incômodo porque o cerne de sua função é questionar, o que causa perturbações. “daí que geoffrey proehl [professor norte-americano] o considere uma figura simultaneamente dionisíaca e apolínea, regida pelas forças do caos e da ordem, tendo por missão uma proveitosa conturbação no processo de ensaios e na harmonia de um objeto final, o espetáculo.” em para meninos e gaivota, o trabalho de dramaturgismo de colombini se deu muito mais via texto, contribuindo com a transposição da obra de sônia machado de azevedo para o palco e adicionando elementos a ela. “minha atuação era mais específica junto à direção, no sentido de criar um novo texto para o espetáculo; analisar a dramaturgia que já existia e propor um novo caminho, uma nova proposta, algo mais ‘adaptado’ para a direção do marcio pimentel e do marcelo denny. eles trabalham sempre muito com imagens e o texto pedia algo mais linear, lírico-poético. era preciso que eu propusesse um texto menos ‘louco’, pra que a ‘loucura’ fosse implementada principalmente pela direção, já que texto ‘louco’ e direção ‘louca’, dariam uma peça maluquíssima”, ri. “a ideia era que a peça ainda fosse entendida pelas crianças em outros níveis, mas sobretudo suplantada por uma narrativa mais ou menos clara, com a possibilidade de se sair da peça com uma história que foi contada.” desde 2013, ao lado de alessandro toller, felipe de moraes, murilo de paula e marco catalão, gustavo integra o núcleo de dramaturgismo do sesi, participando das produções teatrais dos nacs, núcleos de 73


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artes cênicas. é o responsável por orientar os trabalhos criados pelos grupos de vila leopoldina, vila das mercês, rio claro, no interior de são paulo, e santos. ao todo, são vinte e um nacs. o nac da baixada santista trabalha em o rio dos santos inocentes, uma peça sobre a memória, envolvendo a cidade e suas personagens. o grupo, orientado por yara martins, é composto por cerca de quinze pessoas, a maioria delas entre os trinta e os sessenta anos. num dos encontros, pensando em ajudá-los a entender melhor o fio narrativo que estavam construindo, colombini montou um varal com as cenas da peça. “é algo que eu sempre faço nos meus processos de criação e que me ajuda muito a entender a estrutura narrativa”, diz. foi o mais “cabeçudo” dos encontros. nos outros, propôs menos teorias, menos trabalho com o texto em si, e mais exercícios. “o dramaturgista desse tipo de processo atua com o híbrido: direção, dramaturgia, cenografia, teoria. nesse sentido, é um espaço que consegue coligar teoria e prática de um jeito interessante. o mais bacana também é estar na pele dessa figura ‘de fora’ do processo. é quase um exercício de ‘espectador profissional’. mesmo dentro do processo, eu não participo ativamente das decisões, tampouco das decisões cênicas que o grupo toma. é um suporte técnicoprático para eles poderem fazer o que quiserem, mas visando uma qualidade pedagógica para isso”, explica. colombini acha difícil encaixar o papel do dramaturgista no brasil, em são paulo, pois há um leque de possibilidades de atuação: ele pode escrever para cena, mas também pode só organizar as escrituras dos atores, do diretor. “toda essa hibridização é interessante no sentido da criação artística. é sempre um lance de se adaptar, se remodelar. uma experiência de se testar em vários processos diferentes. é uma descoberta sempre, e descobertas são provocadoras na sua essência.” é um processo que também trabalha com a chave do experimental. 74


gustavo colombini - narrativa geométrica

“e acredito muito na experimentação”, diz. é o que leva como principal motor para continuar a fazer arte. “gosto de falar de uma arte responsável com o seu próprio tempo. talvez querendo ser capaz de participar do contemporâneo com contribuições na construção de uma experimentação da linguagem. acredito que o teatro deva proporcionar instantes revolucionários. momentos de toque intenso em quem assiste. parece que, quanto mais crise, melhor o teatro”. ...

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Cena de “o silêncio depois da chuva”, de gustavo colombini




michelle ferreira

ins贸lita divers茫o


Cena de “os adultos estão na sala”, de michelle ferreira


michelle ferreira

insólita diversão

(do caderno de anotações de Mariana Marinho) Nota da autora: Esqueça a imagem que normalmente vem à mente quando você pensa na figura do dramaturgo: um sujeito lunar, introspectivo, de óculos e barba, que escreve compulsivamente atrás da tela do computador enquanto fuma uma porção de cigarros. Na verdade, deixe a escrita e o cigarro. De resto, apague tudo. 81


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(1) Acaba o ensaio. Bar do Biu, rua Cardeal Arcoverde. Faz sol e, apesar da tranquilidade da rua, a cidade está um caos: os metroviários estão em greve. Apenas algumas linhas do Metrô operam normalmente. O bar fica em uma esquina vermelha. É simples, com jeitão de boteco. A especialidade da casa é a comida nordestina. Ainda do lado de fora, Michelle Ferreira acende um cigarro. Tem 32 anos. O cabelo castanho e liso se estende para um pouco além dos ombros. É bonita, não muito alta. Tem sobrancelhas bem marcadas e um olhar vivo, traços que remetem à Penélope Cruz ou a alguma atriz latina. Usa jeans, All Star verde, moletom laranja e óculos de sol. Tem bastante blush, num tom pêssego, nas bochechas. Está de ressaca (o que não a impediu de, horas antes, acompanhar concentrada o ensaio de Sit Down Drama, peça de sua autoria dirigida por Eric Lenate que estrearia no Sesc Consolação semanas depois). Michelle conversa com Danilo Grangheia, ator que interpreta o humorista Alves De, personagem principal da trama (Nota: a peça, escrita em 2008, discute os limites do humor por meio da história de Alves De, um humorista em crise que já não consegue mais fazer piadas). Michelle Ferreira Já comeu aqui? Danilo Grangheia Não, nunca. É bom? Michelle Você não sabe o que está perdendo. Tem uma comida deliciosa. Só vou terminar aqui e entramos.

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michelle ferreira - insólita diversão

Danilo Mas voltando ao assunto, eu gosto do seu texto porque ele diz exatamente o que se quer dizer. Michelle Quando comecei a escrever, eu imitava o [Anton] Tchekhov. Queria ser o Tchekhov porque acho que ele é o cara. Aprendi muito lendo suas peças. Fora que o final do Tio Vânia é o melhor final de peça do mundo. Se eu pudesse, eu terminava tudo como o Tio Vânia. Mas enfim, não dá para ser o Tchekhov. Tive que me contentar em ser eu mesma. Dá uma última tragada e esmaga a bituca com a sola do tênis. Os dois se encaminham para a entrada do bar enquanto continuam conversando. Michelle É muito louco você ir se libertando de uma referência. É um processo de individuação, de autoconhecimento que só se dá com o tempo. Eu falo para os meus alunos da SP Escola de Teatro que a dramaturgia é um processo de autoconhecimento. A gente só pode ser a gente. Eu estou condenada a ser eu, a ter a minha voz. Escolhem uma mesa no canto. Sentam-se e logo são atendidos. Pedem ao garçom duas Itubainas. Olham o cardápio: para comer, Michelle sugere a Vaquejada. Danilo Como é?

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Michelle Gosta de carne de sol? Danilo faz que sim com a cabeça. Michelle Então vai gostar da Vaquejada. É uma carne de sol fatiada com pedaços de queijo coalho, e vem com farofa de abóbora. Danilo Parece bom. Vamos pedir? Vira-se e procura o garçom com o olhar. Encontra-o. Estende a mão. O garçom se aproxima. Garçom É pra já! (Sai). Danilo volta a atenção para Michelle. Danilo Mas me diz, o que achou do ensaio? Michelle Gostei muito. É engraçado porque, se eu fosse dirigir, faria tudo diferente. Faria do meu jeito. Mas eu gosto do que os diretores têm feito com os meus textos, cada um à sua maneira. Os dois continuam a conversar. O garçom serve a Vaquejada. Blackout. 84


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(2) Starbucks do Shopping Frei Caneca. Dois meses se passaram desde o almoço com Danilo e o ensaio de Sit Down Drama. A peça encerrara temporada no Sesc Consolação havia cerca de duas semanas. Uma jornalista está sentada num sofá escrevendo em seu caderninho. Entra o diretor Eric Lenate. É magro, barbudo, tem sobrancelhas grossas e o cabelo preso num pequeno rabo de cavalo. Ele anda apressado. Está atrasado. Senta-se numa poltrona. Os dois iniciam uma conversa silenciosa. Aos poucos, o conteúdo de que falam torna-se audível. O assunto é Sit Down Drama. Jornalista Uma das críticas feitas à montagem é que ela, ao discutir os limites do humor, acaba sendo preconceituosa. Eric Lenate Sabemos que o espetáculo está sendo preconceituoso, que ele está sendo constrangedor, engraçado, e que também se utiliza do humor pelo viés da comoção. Abrimos todas essas possibilidades. Compramos a briga e o trabalho de fazer um espetáculo que se diz uma comédia, mas que apresenta como personagem principal um humorista que está numa crise fodida e não consegue ser engraçado, não consegue trabalhar com a graça que ele produzia originalmente. Por conta desta crise da personagem, nós assumimos a crise do espetáculo de transitar por vários vieses do humor. Jornalista Como o público recebeu isso? 85


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Eric Tem gente que sai enlouquecida, outros que saem bestificados com o que acabaram de ver, emocionados. Tem gente que sai puta da vida, ou que deixa o teatro antes do espetáculo acabar e escreve no Facebook: (enfurecido) “Fujam dessa peça! É a pior que já vi em todos os tempos: o elenco é horrível, o texto é uma merda!”. (volta ao tom original) Mas também recebemos elogios. Um diretor me procurou dizendo que mesmo depois de duas semanas não conseguia tirar a peça da cabeça. A gente ainda não consegue mensurar o poder de impacto da obra. Mas o que percebemos é que as pessoas têm reações de diversos tipos. É um sinal de que conseguimos tocá-las de alguma forma. Jornalista No geral, os textos da Michelle abrem essas possibilidades de interpretações, não? Eric São textos muito arredios e difíceis de serem montados. Parece um cavalo empinando que você tem de domar para conseguir ir junto com ele. Os diálogos entre as personagens não se desenvolvem de maneira natural como acontece na nossa realidade cotidiana. São diálogos entrecortados, as situações, às vezes, não se estabelecem com começo, meio e fim. As personagens têm uma capacidade enorme de dizerem coisas umas para as outras: verdades, disparates, agressões, gozações, questionamentos. 86


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Jornalista E dizem tudo isso em situações urbanas e contemporâneas, com referências pop... Eric Sim. Elas estão isoladas em algum lugar e o mundo lá fora vem bater em suas portas: tem sempre uma problemática instaurada dentro de um microcosmo e as situações geradas ali movem preocupações e questionamentos que dão corpo ao diálogo enquanto o mundo externo faz com que coisas estranhas aconteçam com as personagens deste microcosmo. Elas processam seu próprio entendimento de mundo de uma maneira um pouco mais deslocada, às vezes até torta. Dependendo, a Michelle acaba sendo preconceituosa para falar sobre o preconceito. Ela tem coragem de fazer isso, ela não fica discursando. Ela não fica falando sobre o anão, mas o coloca em cena e desce o cacete nele, como em Sit Down Drama. Isso desloca o público, cria uma instabilidade em que ele já não sabe como encarar aquilo. Jornalista Mas é uma provocação pela provocação? Eric Não. Acho que a Michelle tem a noção de que a provocação por meio do discurso não é mais efetiva hoje em dia. A provocação tem sempre um sentido dúbio, questionador, e, ao mesmo tempo, de tentativa de instauração de outro olhar sobre o outro. A impressão que tenho é que 87


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ela escreve e fica dizendo para a gente de forma subliminar: “Está vendo essa situação? Você já tinha olhado para ela deste jeito? Tente olhar assim”. Ela tem um olhar dilatado sobre a realidade, o que nos possibilita resignificá-la sobre outro prisma de compreensão. E em relação à referência pop que você comentou, acho que ela está presente porque eu, ela, nossa geração, nascemos e Michael Jackson estava deslizando em cima de nossas cabeças. Madonna estava entrando pelada em pizzaria para tirar foto. Continuam a conversar. O volume de suas vozes vai ficando mais baixo, assim como no início da cena.

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(3) Rua Dona Elisa, Barra Funda, casa de Michelle. Ela usa jeans, camiseta, alpargata e os cabelos presos em maria-chiquinha. São oito da noite de uma quinta-feira e ela está sozinha em casa. Sua companheira de apartamento tinha viajado. Michelle mudou-se para a Barra Funda há pouco tempo, depois do término de seu casamento. Antes, morava em Moema com o marido, com quem criou a produtora de audiovisual No Cubo Filmes. Está aguardando a chegada de uma jornalista, a mesma da conversa com Lenate. O celular toca. Michelle Ferreira Ok, vou descer para abrir. (Sai) Retorna com a jornalista. Conversam enquanto Michelle apresenta o local. É um apartamento de três quartos, dois deles ocupados por ela (trabalha em um e dorme no outro – o feng shui diz ser melhor assim). Passam pela sala, pelos quartos de Michelle, pela cozinha, pelo outro quarto e chegam à varanda: uma espécie de quintal, relíquia de “predinhos” antigos da cidade. Fazem o caminho inverso e sentam-se em volta da pequena mesa, entre a sala de estar e a cozinha. Michelle abre uma lata de cerveja, divide a bebida em dois copos. Ficam mais duas latinhas na mesa. Michelle Sempre fiz teatro. Lembro-me de escrever para teatro com nove anos. Era uma coisa muito natural. Meu avô tinha uma Olivetti e eu tinha fetiche por ela. Eu roubei a máquina dele para escrever um texto para a apresentação da peça de teatro da escola. A professora queria montar Martins Pena, Quem Casa, Quer Casa. E eu disse que achava aquilo muito bobo. Ela me desafiou a escre89


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ver uma peça. Eu torturava minhas amigas. As convidava para vir em casa e falava que íamos ao parquinho, à piscina. Mas, na verdade, a gente ia fazer teatro. Passávamos o fim de semana ensaiando e apresentávamos na escola na segunda. Era incessante. Comecei numa combustão absolutamente espontânea. Eu gosto muito de cinema. Sempre fui uma criança insone. Passava as madrugadas acordada assistindo Corujão. Vi Carrie, a Estranha, O Poderoso Chefão, Blade Runner, Apocalypse Now, Último Tango em Paris, Pulp Fiction. Meus avós deixavam. Fui criada por eles. Na verdade, minha mãe foi adotada pelos meus avós. Minha avó participava de um grupo de oração e soube que minha mãe era órfã. Mas ela já era grande e nunca aceitou muito bem a ideia de ser adotada. A relação sempre foi muito conturbada. Minha mãe foi praticamente mãe solteira. Tanto é que acho que vi meu pai umas duas vezes. Morei com a minha mãe até os sete anos. Depois, meus avós se mudaram para Atibaia e eu escolhi ir com eles. Escolhi porque achei que seria melhor para mim. Sentia-me mais segura. Eles realmente cuidavam de mim. Fiquei em Atibaia até os 14 anos. Nestes sete anos, fiz todos os cursos de teatro da região. Fiz teatro com um diretor maluco chamado Euclides Sandoval, que trabalhou com o Hélio Oiticica. Até que, com uns doze anos, eu vim pra São Paulo para fazer um workshop na Oficina dos Menestréis. Desde pequena, eu assistia a muito teatro. Tinham uns ônibus que saíam de Atibaia para trazer o pessoal para os espetáculos aqui em São Paulo. Excursões, sabe? Você assiste à peça, come uma pizza e depois volta para Atibaia. 90


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Pega o maço de cigarros em cima da mesa e acende um. Traz o cinzeiro para perto. Michelle Enfim, decidimos voltar para São Paulo. Meus avós já estavam pensando nisso, mas era eu quem queria muito vir para fazer um colegial mais forte. Tinha que passar na USP. Meu avô era muito rigoroso com ensino. Ele já é falecido e minha avó hoje tem 86 anos. Voltamos para cá e eu estudei no Arquidiocesano ao mesmo tempo em que cursava o Macunaíma. Foi ótimo porque entrei em contato muito jovem com vários autores. Comecei a ler Brecht, Goethe, Lorca, Nelson, Plínio... Depois fui fazer um ano de intercâmbio nos Estados Unidos. Lá também fiz teatro. Fiquei em Connecticut, um estadozinho rico entre Massachussets e New Jersey. Minha escola tinha umas produções teatrais muito boas. Montamos Grease. É claro que fiz a mexicana! Mas não queria. Queria fazer a Rizzo. Fiquei muito frustrada, mas tudo bem. Eu sempre soube que queria ser atriz. Trabalhar com teatro, na verdade. Quando estava nos Estados Unidos entrei na pira de fazer cinema. Antes um pouco. Mas quando voltei para o Brasil estava muito defasada nas matérias. Resolvi prestar Ciências Sociais. Passei na PUC, cursei por um ano, até que passei na USP. Minha pretensão era ter uma formação intelectual. E meu avô achava uma boa porque era um começo, uma faculdade. Eu já tinha planos de fazer a Escola de Arte Dramática da USP, de fazer os dois cursos. Quando eu me formei no Macunaíma, sabia que não era só isso, que precisava fazer mais, 91


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estudar mais. Entrei na EAD em 2001. Conciliei os dois cursos por um tempo e abandonei Sociais no quarto ano. Mas a base intelectual que tive lá é tudo na minha vida. Jornalista Por quê? Michelle Ela clareou minha visão de mundo. Você tem que ler, tem que conhecer as coisas, tem que se embasar, tem que ler 300 livros. Tem que ter cultura. Quando você sabe que uma peça é boa? Quando você já leu cem. Aí você começa a ter um parâmetro. Foi o Antunes quem me falou isso. Você tem que ter repertório. Eu tenho uma agonia de conhecimento. Tanto é que estou me sentindo muito culpada agora na época da Copa do Mundo porque eu chego super chapada dos jogos e não leio nada. Chego e morro na cama. Acordo no dia seguinte ainda com a camisa do Brasil e falo “Meeeu Deeeus!”. (ri). Mas eu também prezo o conhecimento da vida. Gosto muito de viver. (Coloca o resto da cerveja no copo). Tem mais duas latinhas. Será que dá? Bom, qualquer coisa saímos e compramos mais. A jornalista faz que sim com a cabeça e retoma o foco. O resto da conversa dura o tempo de tomarem duas latinhas de cerveja. Jornalista E a experiência na EAD?

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Michelle A EAD me destruiu como atriz. Você chega lá achando que é boa, porque, afinal, passou e era a melhor do seu bairro, da sua escola etc. Eu me deparei com a minha própria mediocridade. Eu sofri muito, mas aprendi demais também. Tive professores incríveis como a Silvana Garcia. (Pausa) Eu estou muito envaidecida. Ela foi assistir ao Sit Down Drama e me mandou um recado no Facebook dizendo que estava muito orgulhosa da minha carreira. Ela tem acompanhado as outras peças. Então penso que, se ela disse isso, algo certo eu devo estar fazendo. Jornalista Quando você começou a escrever dramaturgia? Michelle Foi no Núcleo de Dramaturgia do CPT [Centro de Pesquisa Teatral] que começou a acontecer tudo no sentido de ser autora. No segundo ano da EAD, eu produzi sem parar. Escrevia de todos os estilos, de todos os jeitos. Mas eu não me sentia à vontade para ser dramaturga lá. Sentia-me insegura, não sabia se o que eu escrevia era bom. Tinha medo de me expor. Mas quando eu entrei no CPT, eu vi que, na verdade, só existe se expor. O Antunes dizia: o dramaturgo tem que se expor. Ele não tem amigos. Ele usa as coisas de todo mundo para escrever e não tem que ter medo disso. Fui entendendo isso e escrevendo. Então teve a publicação do livro do Círculo de Dramaturgia e minha peça não foi escolhida. Entrou a peça de todo mundo, menos a minha. 93


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Jornalista Você soube o porquê? Michelle Nunca perguntei. Mas achava que isso significava que eu ainda não estava à altura. Na época, eu também não me sentia merecedora. Fui receber a aprovação do Antunes depois, com o Urubu Comum, minha primeira dramaturgia que já teve umas três tentativas de montagem no CPT, mas nunca rolou; e com Terras dos Outros Felizes. Quando eu escrevi essa segunda, ele me ligou e disse: “Agora você é uma dramaturga”. Eu aprendi a apanhar no CPT. Hoje eu falo com muita tranquilidade: eu sei apanhar. O que eu apanhei... Lá o esquema era o seguinte: você escrevia a peça e todos liam. Inclusive o Antunes. Na sexta-feira, íamos conversar sobre a sua peça. Todo mundo podia falar, menos você. Você só escutava. Era sensacional. O exercício também te ensinava a falar da obra do outro: a obra de arte você analisa dentro da obra de arte. É ela que te dá os instrumentos pra você entendê-la, penetrá-la e interpretá-la. Você precisa entender o universo a que ela se aplica. Quando isso acontece, você consegue ver o seu trabalho e falar do trabalho do outro de outra maneira, de outro lugar – que é o que interessa, em minha opinião. Fiquei oito anos no CPT, até 2011. Depois eu saí e entrei num processo colaborativo dirigido pelo Cacá Carvalho, o Estudo Hamlet.com. Quando ele me procurou, ele falou: quero te dizer que você não foi minha primeira opção. Era a Silvinha Gomez, mas, como ela não podia, o Antunes me indicou você. Eu disse: Que ótimo! Adoro ser a 94


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segunda opção quando a primeira não pode (ri). Foi muito legal, mas processo colaborativo depende muito. Não digo que nunca mais farei, mas eu sou de gabinete. Gosto de criar. No CPT, eu escrevi umas cinco peças: Urubu Comum, Terras dos Outros Felizes, Minha Avó e Substâncias Tóxicas, Como Ser Uma Pessoa Pior [o monólogo foi dirigido por Mário Bortolotto e interpretado por Lulu Pavarin, em 2011], Sit Down Drama e Reality. As peças foram indo de degrau em degrau. Eu fui cronologicamente, passinho a passinho. Nunca cheguei aqui e desci sete degraus. Claro que o Antunes gostava mais de umas coisas do que de outras. Sit Down, por exemplo, ele achava que seria datado. Mas ele nunca falou “isso aqui é uma merda, rasga”, algo que ele já tinha dito para outras pessoas. Acaba a última cerveja. Michelle Vamos ali no bar comprar mais? As duas descem as escadas do prédio e entram no carro.

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(4) Rua Maria Antônia. Noite. Teatro Tusp. Após temporada no Sesc Pinheiros, no Teatro Cemitério de Automóveis e no Cit-Ecum, Os Adultos Estão na Sala fica em cartaz no Tusp [depois vai para o teatro João Caetano]. Em 2013, a montagem foi indicada ao Prêmio Shell de São Paulo em duas categorias: melhor autora e melhor atriz, pela atuação de Michelle Boesche. No camarim estão Flávia Strongolli, Maura Hayas, Michelle Boesche e Michelle Ferreira. As três primeiras comem lanche do McDonald’s antes de começarem a se maquiar. Michelle Ferreira está no sofá conversando com a jornalista. É a primeira vez que se veem. Michelle senta-se na ponta do sofá, cruza as pernas, apoia a cabeça em uma das mãos. Na outra, segura um cigarro. Está empolgada. Michelle Ferreira (brincando) Pronto, pode me usar! (abre os braços). A jornalista ri. Sente-se um pouco intimidada. Michelle fala de forma firme e articulada. Pensa muito bem antes de responder às perguntas. Só fala depois de saber exatamente o que irá dizer. Jornalista O que te leva a escrever? Michelle A própria escrita, o teatro e a possibilidade de fazer. Mais do que nunca, hoje eu tenho oportunidade de estar em cartaz. Não é agora que vou descansar, a não ser que eu tenha um bloqueio fodido. Mas escrever também é trabalho, então também é técnica, o que desmistifica um pouco. Só que estou bem cansada. Quando eu digo cansaço 96


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é um cansaço real, físico, porque o corpo sustenta uma cabeça. Você passa muito tempo negligenciando o corpo e uma hora ele cobra o seu preço. Eu vivo processos fortes de escrita, intensos, de não dormir, de ser consumida mesmo. Tem uma hora que a coisa tem que virar. Aí esqueço a vida. Eu escrevo rápido, porém vou construindo o texto dependendo do tempo que tenho. Funciono à base do deadline. Não escrevo todos os dias. Não sou Saramago que escreve duas horas por dia, todos os dias, independentemente de qualquer coisa. Eu tenho uma regra: gosto de escrever depois das quatro da tarde. Porque à noite a coisa acontece mais no meu cérebro. Mas eu dificilmente sento em frente ao computador sem nenhuma ideia. A coisa diz quando ela precisa ser escrita. Jornalista Há alguns elementos recorrentes em seu texto: a cidade, o uso do humor para tratar de assuntos polêmicos... Michelle Sim. São contextos sempre urbanos, meio esquizofrênicos, com um humor mesmo na merda. Dizem que o autor sempre escreve o mesmo livro. Talvez eu esteja escrevendo a mesma peça invariavelmente. Não sei. Ao mesmo tempo, eu também não gosto de me plagiar. Nos meus textos, eu sempre conto uma história. Sou old-fashioned, nada pós-dramática. Sou dramática.com. Defendo o drama. Não, não é que eu defenda, eu não defendo nada. Eu só faço aquilo que eu sei fazer: drama. Drama mesmo, personagem, conflito. Tchekhov. Eu gosto. (Pausa) Dizem, e 97


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depois eu percebi, que tenho uma coisa com criança. Acho que eu sou a criança. A gente não cresce: somos adolescentes com cartão de crédito. Claro que o meio muda os estímulos, mas têm características que vão se manter a vida toda. É na infância que o pepino começa a entortar. Jornalista Então como é a dramaturgia ideal para você? Michelle Quando eu escrevo, eu sempre penso em quem está vendo. Para mim, a dramaturgia acontece na tensão entre palco e plateia. As pessoas têm que sentir prazer. Não significa que seja agradável, porque a vida não é agradável e, se a dramaturgia for, ela estará mentindo. Cada um estabelece o contato com a peça que lhe é possível, de acordo com o seu repertório. A dramaturgia ideal passa por uma abertura. Eu não tenho todas as respostas. Se todo mundo entender a mesma coisa quando saí de uma peça, eu acho um horror. Tem níveis de entendimento que não são apenas intelectuais. Eu quero ser popular e acho que o teatro merece um lugar de democracia, merece que um maior número de pessoas consiga estabelecer um contato com ele. Não há nada pior do que um teatro que fica numa egotrip de linguagem, que caga para o público. É o umbiguismo que leva à marginalização do próprio teatro. Enquanto conversam, Flávia Strongolli, Maura Hayas, Michelle Boesche começam a se preparar para entrar em cena. Os Adultos Estão na Sala, peça escrita por Michelle em 2011, é a primeira montagem de A Má Companhia 98


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Provoca, formada pelas três atrizes do elenco e por Ramiro Silveira e Solange Akierman. A ideia do grupo é trabalhar com textos inéditos, contemporâneos e brasileiros. Michelle Ferreira assina a direção do espetáculo. A princípio, quando Michelle B., Flávia e Angelica Colombo (que já não faz mais parte do grupo) vieram pedir um texto para Michelle F., a direção seria de Susan Damasceno. Por um problema de agenda, acaba não dando certo. Michelle Ferreira estava bastante envolvida com os projetos audiovisuais de sua produtora quando assiste a Um Verão Familiar, peça dirigida por Lenate, e se sente provocada a voltar a dirigir para o teatro. Liga para as meninas e faz a proposta de ser diretora de Os Adultos. Elas aceitam e decidem formar, em 2012, A Má Companhia, sem o “Provoca”. Ele foi acrescentado depois de Michelle Boesche consultar um numerólogo sobre a escolha do nome e escutar que A Má Companhia era desgraça. Precisava de mais uma palavra (é aí que o provoca vai parar no nome: “sucesso!”, disse a soma numérica). As atrizes terminam de se maquiar. A jornalista abandona o camarim e se encaminha para a plateia. Blackout. Agora, em cena, Flávia Strongolli, Maura Hayas e Michelle Boesche são Ivone Dim, Dulce Vicente e Clara Day. A primeira é maníaca por cirurgias plásticas e gim, a segunda é mãe solteira, ativista e ex-viciada em drogas e, a terceira, é uma escritora diabética niilista que nunca sai de casa. Na sala do apartamento de Clara Day, enquanto um menino, filho de Dulce, está no quarto, elas falam sobre neuroses, consumo, drogas, excesso de preocupação com a aparência, limites entre o público e o privado. Tudo embalado por uma trilha sonora rock’n roll. Movimentam-se e agem como personagens de uma história em quadrinhos. Começam os barulhos de uma manifestação lá fora. Clara Day Pisei na merda. Elas [as botas] estragaram. Lembra que eu te pedi desculpas? Inclua a bota nesta conta.

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Ivone Dim Eu quero de volta o meu par de botas portenhas. Clara Não seja mesquinha. Você sabe que eu te daria um rim se você precisasse, quanto mais um par de botas de couro. Ivone Não vou precisar do seu rim. Eu tenho rim. Dois. E eles estão muito saudáveis. E o nosso sangue não é compatível. (olhando pela janela) Mas para que tanta gritaria? Clara O crack. Ivone O que é que tem? Clara É um problema. Ivone E o que eu tenho a ver com isso? Clara Não tem vontade de experimentar? Ivone Você tá falando sério, Clara Day? Olha o que a faculdade pública faz com as pessoas... 100


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Clara O crack é um problema social. Ivone O alcoolismo também é. Clara Você é alcoólatra. Ivone Não, você é alcoólatra. Eu bebo pra comemorar. Clara Mas o que tanto você celebra da vida? Ivone Não pode tentar ser elegante e pelo menos fingir que está feliz por mim? Clara Como é que eu posso estar feliz por você se as pessoas estão lá fora usando crack? Ivone Gente desocupada. Vou experimentar meu vestido. Tchau. Eu quero as botas na minha casa até amanhã de manhã, limpas ou sujas, do jeito que for! (...)

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Clara Day Aquele carro vermelho lá fora é o seu, não é? Ivone Como você sabe? Clara Day Se fodeu. Os barulhos lá fora se intensificam. Ivone atravessa a sala correndo para ver o que está acontecendo com o carro. Ivone (Coloca a cabeça para fora da janela) Oh, não! Tem uma gorda encostada no meu carro! Clara Deixa a pessoa encostar no seu carro, não tá fazendo nada. Ivone Você diz isso porque não é o seu carro! (grita) Hey! Hey! Sai daí! Clara Meu carro, minhas botas, meu cigarro. Que coisa, que bosta, Ivone. Ivone Quem não tem nada sempre quer dar um jeito de estragar o pouco que os outros têm. (gritando para baixo) Ei, 102


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gorda! Olha pra cá! Esse carro é seu? Eu quero saber se esse carro é seu, esse carro é seu? É seu? Não é seu! Não é. Não é seu, esse carro é meu, esse carro não é seu, é meu, meu, meu, sai daí! Desencosta do capô! Tira a mão do capô! Sai de perto do capô! (Correndo para cozinha) Filha da puta! Ivone sai.

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(5) Conjunto Nacional, avenida Paulista. Noite. Maura Hayas come meio beirute de filé-mignon com fritas e toma um chope enquanto fala. É magra e tem cabelos aloirados compridos. Usa batom rosa e está bem maquiada. Além de atriz, é também jornalista. Maura Hayas Conheci a Michelle em 2008, quando o Antonio Abujamra reuniu 55 artistas para montar Os Processos, baseado em Os Demônios, de Dostoiévski. Terminada a temporada, eu, Michelle, Ramiro e Solange mantivemos contato e queríamos montar Reality Câncer, um texto escrito pela Michelle sobre um reality show com pacientes em estado terminal. Durante seis anos tentamos viabilizar a peça, mas não conseguíamos justamente por ser um tema delicado. Mas a montagem e a repercussão dos Adultos nos abriram portas. Vamos estrear o Reality, que agora se chama Reality (Final), em novembro de 2014, no Sesc Pinheiros, onde realizamos a primeira temporada dos Adultos. O texto ganhou o segundo lugar do prêmio Heleny Guariba de Dramaturgia Feminina, em 2011, e, no ano seguinte, teve duas leituras dramáticas no Rio de Janeiro, uma no Sesc Casa da Gávea, com a participação de Paulo Betti e Tereza Seiblitz, e outra no CCBB, como finalista do Concurso de Novos Dramaturgos. Foi divertido porque, em uma das leituras, a Michelle estava com um vestidinho de renda no joelho, toda maquiada, toda gatinha. Ela interpreta uma das personagens, mas na leitura fez as rubricas. As pessoas ficavam chocadas 104


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que era aquela menina, toda bonitinha, jovem, quem tinha escrito aquelas barbaridades todas (ri). Mas apesar de ser nova, a Michelle é muita atenta e observadora. Isso faz com que o texto dela traga um olhar diferente. A impressão que tenho como atriz é a de abrir uma porta, entrar numa sala e, nesta sala, ter mais um monte de portas para abrir. Quando comecei a ler o texto dos Adultos pensei que não era possível as personagens dizerem aquele monte de absurdos. Mas depois comecei a reparar e vi que tinham muitas Dulces Vicentes na rua. Blackout

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(6) Rua Dona Elisa, Barra Funda, de volta à casa de Michelle. Ela e a jornalista voltam com algumas latinhas de cerveja compradas no posto. O bar estava fechado. Sentam-se como antes. Continuam a conversar. Michelle Ferreira A época mais sombria da minha vida foi o período entre me formar na EAD e entrar no curso de Audiovisual na FMU. Como eu sempre fui muito autoral, ser só atriz, ficar esperando o telefone tocar, me dava muito desespero. Fui fazer audiovisual. Eu já tinha feito cursos de roteiro, já tinha escrito um longa, Tarde Livres, dirigido por Renato Chiappetta, mas eu não tinha a técnica. Fazer a faculdade foi do caralho. Michelle abre a primeira das latinhas e divide o conteúdo nos copos, como das outras vezes. As duas bebem entre uma pergunta e outra. Michelle acende o resto de um baseado que estava no cinzeiro. Fuma um pouco. Jornalista Em qual sentido? Michelle Ferreira Conheci pessoas, duas parceiras, com quem trabalhava muito. Éramos meio outsiders da turma. Íamos estudando, fazendo, enlouquecendo. O Peu, meu ex-marido e namorado na época, já tinha uma produtora chamada Elefante Filmes e eu trabalhava bastante fazendo roteiro, assistência de direção, o que pintasse. Ele desfez a 106


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produtora e abriu a No Cubo comigo, em 2008. Foi ótimo, mas me deprime muito porque foi quando eu mais me afastei do teatro. Além disso, era um momento em que o audiovisual era mais trampo do que propriamente criação. Fizemos O Espírito da Coisa, uma série de humor para televisão que agora terá uma plataforma na web. Tentamos vender, mas não conseguimos. Tentamos levar para a Cultura, para o Multishow, mas ninguém quer pagar nosso seriado porque ele é caro, tem muita gente, muita coisa, e também porque nós não somos ninguém. Fomos meio loucos. Sei por conta de uma média das Olívias, que são minhas companheiras: o orçamento delas é de 25 mil por episódio, o nosso é de 50 mil. Fiquei muito frustrada quando não rolou de irmos para a TV. Mas tudo bem, vamos lançar na web e valeu porque eu conheci muita gente, aprendi muito. Foi meu primeiro grande trabalho com direção. Ser diretora é muito difícil. O diretor é a pessoa mais sozinha do set e da sala de ensaio também. Porque é dele a responsa, é ele quem fala, quem decide. Você tem que saber o que você quer. Eu gosto de dirigir. Não tenho problema nenhum com essa responsabilidade, pelo contrário, eu prefiro. Jornalista Dirigir te dá mais tesão do que escrever? Pausa. Michelle O que me dá mais tesão é o teatro mesmo. Me dá tesão 107


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ver a coisa acontecer. (Pausa) Também gosto de trabalhar com ator. O trabalho do dramaturgo é solitário e o do diretor, não. Uma coisa supre a outra, o que é ótimo. E acho que sei dirigir as minhas coisas, mesmo que eu não pense na direção enquanto escreva. Os Adultos, por exemplo, eu não sabia que seria uma espécie de desenho animado. Fui descobrindo no decorrer do processo de direção. Dirigir e escrever é perfeito. Brinco que está cada vez mais difícil ver as minhas peças montadas por outras pessoas. Eu gosto muito do que o Hugo Possolo fez com Riso Nervoso [das Olívias, que ficou em cartaz no Teatro Viradalata, em 2013]; do que o José Roberto Jardins fez com Tem Alguém que nos Odeia [texto finalista do Prêmio Luso-Brasileiro de Dramaturgia Antônio José da Silva, que cumpriu temporada no Teatro Augusta e no Teatro Livraria da Vila, entre 2013 e 2014]; e do que o Lenate fez com Sit Down Drama. Mas é como entregar um filho para os outros criarem. Você tem que aprender a ter um desprendimento. Jornalista Tem Alguém que Nos Odeia traz a temática homoafetiva. As atrizes te procuraram com essa ideia ou partiu de você querer escrever sobre? Michelle A Ana Paula Grande e a Bruna Anauate, que era do CPT e já conhecia meu trabalho, me procuraram querendo uma peça para duas pessoas. Queriam um texto sobre as relações humanas, a metrópole. Sempre que os ato108


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res vêm falar comigo, eles dizem mais ou menos isso. O que para mim é bom. Ninguém chega com um tema, e eu também não aceitaria. A não ser quando é uma adaptação, um trabalho neste sentido. Eu aceito conversar sobre o que a pessoa quer falar, mas tema, não. Foi o que aconteceu com a Bruna e a Paulinha. A gente se encontrou uma meia dúzia de vezes para falar da vida. De vez em quando eu anotava alguma coisa. Só batendo papo, entendendo-as, contando causos. Depois fui escrever e nasceu o Tem Alguém que Nos Odeia. Foi assim, não porque elas queriam uma peça gay ou porque eu pensei nisso. Acho que é o ar que a gente respira. Fui escrevendo e quando descobri, falei: “É isso!”. Pausa. Michelle Me dá um minutinho que vou ao banheiro. Ela sai. A jornalista para o gravador.

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(7) Teatro Commune, rua da Consolação. O local está fechado. Parados em frente a ele estão toda A Má Companhia Provoca e dois atores convidados. Aguardam a abertura do espaço para ensaiarem Reality (Final). É a sexta peça de Michelle Ferreira em cartaz em 2014: Os Adultos Estão na Sala foi apresentado no Teatro Martins Penna e na Virada Cultural, Tem Alguém que nos Odeia fez nova temporada no Teatro da Vila do Shopping JK Iguatemi, Lilith. S.A., dirigida por Lee Taylor e Luiz Claudio Cândido, ficou em cartaz no Sesc Consolação e no Viga Espaço Cênico, Sit Down Drama estreou no Sesc Consolação e depois fez curta temporada no Teatro Gazeta, e A Vida Dele foi encenada pela companhia In.Co.Mo.Te-de, em Porto Alegre. Reality é dirigida por Ramiro Silveira. Michelle Ferreira está em cena como Cíntia, uma jovem rebelde que tenta ter sucesso em alguma coisa na vida enquanto cuida da mãe com câncer, Eva Lo Brac, “atriz decadente que possui uma dignidade indecente e humor negro inteligente”. A atriz é convidada a participar de um reality show com pacientes com câncer: ganha quem morrer por último. (Nota da autora sobre Reality: A primeira versão dessa peça foi escrita em março de 2009 e se chamava Reality Câncer. Depois, houve uma segunda versão, escrita em 2010, que já continha a mudança do título, Reality (Final). Mas nunca fui feliz com essa peça, embora no papel ela funcionasse muito bem, tão bem que até quase foi ganhadora de diversos prêmios. Mas teatro não se faz no papel. (Jura? Juro.) Sabia que ela era um embuste, pois tudo o que ela tinha eram palavras e nenhum jogo. Existe um conteúdo potente cuja antiga forma – muito conhecida e vulgar – não abarca. (O dramaturgo é aquele que constrói uma obra capaz de ser erguida e de se sustentar, de ficar de pé. Arquitetura das palavras. É possível fazer algo novo?) Foi preciso que a nossa a Má Companhia Provoca ensaiasse e apresentasse algo que não é e não pode ser – uma ultra-carnavalização – para que eu voltasse ao texto que eu renegava e me apaixonasse por ele novamente. (Durmo com a morte quase todos os dias. A doença que se alastra 110


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não tem cura.) É Reality e é Final. É a morte. É a crueldade mostrada e digerida de uma maneira tão natural/real que chega a assustar. E ainda assim é uma comédia, porque precisamos ser amados. (Você quer ser amado ou você quer ser Jorge Amado.) Tudo aquilo que acontece realmente acontece. A realidade é algo dissonante, caótico e muitas vezes ininteligível. Tudo é cru, direto e arrebatador. Não há psicologia ou tempo para se pensar, só para viver. E a vida é curta. Preciso deixar ir embora aquilo que já não faz mais sentido. Por isso, começo). Portas abertas, o elenco entra no teatro. Além do ensaio, era dia de sessão de fotos para a divulgação da peça. Os atores colocam as mochilas na plateia e retiram delas figurinos e adereços. Ramiro pede para colocarem roupa de ensaio: vão passar a peça antes das fotos. Michelle é a primeira a trocar-se. Deita-se no palco e começa a se aquecer. É muito disciplinada. Quer logo começar e se inquieta com a demora. Michelle Vamos ensaiar, gente! Aos poucos, o restante do elenco se junta a ela. Sentado na plateia, Ramiro explica alguns aspectos da montagem. É um homem bastante alto, de pernas compridas. Ramiro Silveira O cenário é bem simples, todo branco, com cadeiras de praia brancas. A ideia é que as personagens, quando sentadas, pareçam estar vislumbrando o horizonte, o nada. Alguns canhões de luz operam como se fossem as câmeras da televisão. A direção do texto é no sentindo de potencializar a relação, os jogos entre os atores, de permitir que o texto respire e não seja esmagado por elucubrações cênicas desnecessárias. Existe no texto uma ironia, um sarcasmo, que poderíamos di111


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zer ácido. É uma realidade mergulhada em referências pop, repleta de pessoas sozinhas atordoadas pela pirotecnia contemporânea. Os seis atores já estão em suas posições: em pé, um do lado do outro, no centro do palco. Ramiro Silveira Cortinas abertas. Ramiro dá play na música. Os atores começam a dançar.

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(8) Ensaio de Sit Down Drama. Michelle entra na sala ainda sonolenta. Cumprimenta um por um, elenco e produção da peça. Encosta na janela para fumar. O diretor Eric Lenate se aproxima. Mostra no celular um vídeo com a gravação de imagens que serão rodadas durante a peça. Eric Lenate Quando eu vejo seu texto uma lágrima escorre do meu olho direito. Michelle ri e joga os cabelos para trás. Bem teatral. Os dois continuam a conversa. Eric a atualiza do processo. O ensaio já vai começar. Em cena estão Alves De e sua mãe (Noemi Marinho). Michelle pega um café, umas bolachas e se senta. Acompanha atenta e silenciosa. Dona Alves Eu tenho orgulho de você! Eu acho você muito engraçado! Sempre achei! Desde criança! Você foi um bebê engraçado! Você é o meu menino Jesus engraçado! Alves De Pelo amor de deus... Dona Alves Me usa! Alves De Já usei! Me sinto até culpado!

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Dona Alves Você pode falar daquilo que quiser desde que seja bom. Alves De Mãe, você precisa, uma vez na porra da vida, me deixar desistir de alguma coisa! Dona Alves Se fosse assim, você estaria deitado na sua cama desde os treze anos de idade. Alves De Eu deveria ter ficado por lá. Dona Alves Eu tenho uma boa piada para você: o mundo é uma merda! Eu dou risada porque eu aceito. Sou capaz de gostar mais de você do que da sua irmã e rir vez ou outra porque essa é a mais absoluta verdade. Quem riria de uma coisa dessas? Eu, claro, eu mesma! O que posso fazer? Poderia ser pior. Eu poderia ter nascido anã. Alves De Não, anão, não! Um anão é um anão, é um homem pequeno, que não cresceu e eu não sei como eu posso falar de anão sem usar a palavra anão! Dona Alves Diga anão!

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Às vezes, Michelle movimenta o lábio junto com as personagens. O sono e a ressaca parecem ter sumido no momento em que os dois atores começaram a cena. Anima-se com o que vê e chega a cantar junto as músicas que compõem a trilha sonora da peça, ou aquelas que invadem a sala de ensaio – em determinado momento, a voz de Zezé di Camargo entra pela janela entoando Evidências. Eric Lenate quer que Michelle ouça a música final, que toca quando Alves De está caminhando sozinho, desolado, na última cena da peça. É uma composição instrumental forte e melancólica. Danilo Grangheia faz a cena. Michelle concentra-se. Senta e apoia os cotovelos nos joelhos. Aos poucos, se emociona. Fica com os olhos marejados. Michelle Me arrepiou. Do caralho. Do caralho! Acaba o ensaio. ...

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as atrizes de “Reality [final]�, de michelle ferreira




rudinei borges

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Cena de “agruras�, de rudinei borges


rudinei borges

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Prólogo

Rudinei Borges foi um dos primeiro a entrar no ônibus. Sentou-se no lugar do cobrador e esperou até que todos ocupassem seus assentos. Acomodou o chapéu na cabeça e encaixou o vão entre o salto e a sola do sapato Oxford no cano de ferro. Cutucou o centro dos óculos em direção ao nariz. Esperou um pouco mais. Fez que ia tirar o casaco preto pesado, mas mudou de ideia no meio do caminho. Fazia um frio de rachar. Tinha nas mãos Chão de Terra Batida, seu primeiro livro de poesia, publicado em 2009. A ideia era que ele circulasse pelo ônibus da Trupe Sinhá Zózima e ganhasse corpo ali na voz de quem o abrisse e escolhesse um poema para ler. O encontro encerrava a temporada do Sarau no Busão, que durante um mês trouxe quatro autores e suas obras para dentro do ônibus da trupe, instalado durante 2014 no terminal Parque Dom Pedro II, no centro de São Paulo. Todos em seus lugares. “Agradeço aos que saíram de casa neste frio. Queria muito dividir estes poemas com vocês”, disse. “Mas antes de começar, pensei em responder a quatro perguntas.” A primeira delas: quem é o menino dos versos? 121


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Breviário I

Toquei o interfone por volta das três da tarde. Nada. Chequei no caderno se o número do apartamento era aquele mesmo. Era. Espremi o botãozinho com força. Nada. Resolvi ligar. Do outro lado da linha, Rudinei disse com o zelo e a formalidade de sempre que já iria descer. Estava na vizinha e acabou que não viu a hora passar. Passou pelo portão de seu apartamento, no centro de São Paulo, vestindo jeans e camisa xadrez. Desta vez, não usava óculos e nem chapéu. Subimos e assim que nos acomodamos na cozinha, foi ele quem primeiro perguntou: “Me conta que quero saber melhor sobre esse seu projeto”. Não era a primeira vez que nos víamos. Já havíamos falado sobre a proposta antes, mas, enquanto não soubesse os detalhes, Rudinei não sossegaria. Era assim, minucioso e cauteloso no que se propunha a fazer. Contei-lhe o que queria enquanto ele preparava um chá. Satisfeito com a explicação, foi a minha vez de começar a perguntar. “Me interrompa quando quiser”, pediu. “Se me deixar, eu falo por horas.” As respostas saíam de maneira detalhada e formavam uma narrativa repleta de imagens para além das próprias palavras, tal qual acontece em seus textos. Bom narrador, a princípio, conduzia-me com sua voz grave e um pouco anasalada pelo cenário de sua infância. Por vezes, parecia estar ouvindo o que já havia lido em palavras no livro Chão de Terra Batida. Nele, por meio de uma prosa memorialística, somos apresentados às recordações e às saudades da infância rústica de um menino criado no Norte, assim como aparece no poema A Casa de Barro:

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Quando me dei conta do mundo eu morava numa casa de barro e chão de terra batida. Era uma casa no meio do mato. Mato cheio de bicho e coisa estranha que ninguém sabe o nome. Não me lembro de eletricidade. Nada vindo de fábrica. Só um rádio amarelo pra ouvir o jogo do Brasil. A luz da noite era a lua, a lamparina sobre a mesa de madeira na cozinha, o povo contando história e os homens jogando dominó. “Sou de Itaituba, cidade cravada no oeste do Pará, em frente a um rio chamado Tapajós, que é afluente do Amazonas”, conta Rudinei. “É uma região pobre e provinciana. Até os anos 1970 era pouco povoada, mas com o surgimento da rodovia Transamazônica passou a receber migrantes. Minha mãe veio do Tocantins e meu pai de Minas Gerais.” Rudinei nasceu em 18 de janeiro de 1983. “Portanto eu sou Capricórnio com ascendente em Libra. Por isso pareço calmo, mas sou um inferno”, ri. “Descobri isso ano passado, mas odeio essas coisas. Tenho raiva de qualquer predestinação.” Seus pais, Rosalva e Rui, se separaram quando ele tinha quatro anos. Rudinei foi criado pela mãe. “Minha relação paternal é algo que eu imagino como poderia ter sido. É mais a ausência de uma imagem de um pai do que necessariamente do meu pai. Ele é vivo. Mora em Macapá, mas não temos contato algum. Isso marcou muito a minha infância e está presente em quase tudo o que escrevo: é uma ausência de um pai, que, ao mesmo tempo, é Deus. Tem uma série de variações.” Até os seis anos, Rudinei nunca tinha colocado os pés numa escola. Só no ano seguinte, quando ele, a mãe e os três irmãos se mudaram da Comunidade Santa Rosa, no interior de Itaituba, para a cidade, é que foi aprender a escrever. A poesia apareceu seis anos depois, por influência de sua irmã mais velha. “Achava linda a voz dela recitando um poema ao final dos cultos”, conta. O gosto pela palavra veio também da vontade de se expressar. “Apesar de falante, eu era muito quieto. Não 123


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era bom jogador de futebol, não fazia traquinagem. Nunca fui muito habilidoso. Não sei jogar videogame e até hoje tenho carta e não dirijo.” Descoberta a poesia, apresentava-a nos eventos da cidade: aniversário de quinze anos, bodas de ouro, de prata, missa de sétimo dia. Quis, mais tarde, que ela fosse encenada. “Era preciso que a poesia ganhasse força corpórea, no sentido de uma manifestação da voz e do corpo.” Passou a mostrar o que escrevia em encontros de Comunidades Eclesiais de Base, em reuniões de movimentos sociais e em eventos diversos. Aos nove anos, no Natal, foi pastor e anjo Gabriel na peça Um Dia Numa Lapinha, apresentada na Capela de Nossa Senhora das Graças, Comunidade Eclesial de Base da qual fez parte por dez anos. “Teatro para mim não estava ligado ao prédio teatral. Ele estava envolvido com a comunidade. Ele vinha de uma vivência com o coletivo, com a precariedade. Sabe aquela coisa de tecido de algodão, de criança vestida de anjo com asa de isopor?” Ainda no Pará, fez curso de interpretação oferecido pela Secretaria de Cultura de Itaituba e integrou o grupo de teatro da escola em que estudou durante o Ensino Médio, o Colégio Isaac Newton. A primeira peça profissional que apresentou foi Emília e Sua Trupe, encenada em todas as escolas da cidade. “Vivi no Pará até os 18 anos. Tudo o que aconteceu nos anos em que eu morei lá é muito profícuo para minha criação. Considero-me um escritor memorialista. Olho para o que ficou desta infância, porque muita coisa se perdeu. Por exemplo, eu não me lembro de quase nada da minha avó paterna, só de uma vez quando ela levou os netos mata adentro para fazer uma caçada seguida de uma pescaria. Ela usava uma espingarda nas costas e um facão na mão. Lembro-me muito disso porque vi árvores grandes como nunca tinha visto. Fomos a um rio chamado Tapacurá, que é um afluente menor do Tapajós. Ele 124


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até hoje faz parte do meu imaginário de uma forma que eu já não sei até que ponto é realidade ou não.” Rudinei não tinha pretensão de vir para São Paulo. A vinda tampouco foi uma escolha sua. “Como minha mãe era e ainda é muito religiosa, eu cresci influenciado pelas Comunidades Eclesiais de Base e pela Teologia da Libertação, uma ala progressista da Igreja Católica ligada à militância política, a uma mudança social. Cresci influenciado pela figura de missionários, padres e freis, então, nada mais natural do que eu seguir estes passos. Queria ser seminarista. Achava que era uma forma de transformar o mundo e também um meio de sair da minha cidade: era um universo machista, patriarcal e coronelista. Precisava sair de lá de alguma maneira. Juntando tudo, o seminário era o que me restava”, explica. Mudou-se de Itaituba para Santarém, cidade próxima com cerca de 350 mil habitantes. Ficou um ano lá, participando da primeira etapa do seminário dos Missionários do Verbo Divino, o Propedêutico. Era a fase de preparação e de estudos para os cursos de Filosofia e Teologia. Chegou a São Paulo em 2003. “Eu não pretendia ser padre, e sim um religioso. Mas não pense naquela imagem arcaica. Era algo progressista, nunca usei batina, por exemplo.” Entre os cursos de Filosofia e o de Teologia, realizados no Centro Universitário Assunção, os seminaristas têm um ano para pensar sobre sua escolha. Rudinei cursou Filosofia, mas decidiu não continuar com os estudos religiosos. “A Igreja é bela e contraditória”, diz. “Ela está muito presa a valores que só impedem a convivência. Eu era um jovem homossexual dentro de uma ordem religiosa. Tem uma hora que não há compatibilidade entre você ter uma orientação sexual e viver num lugar absolutamente machista e homofóbico. Mas no geral eu vivia tranquilamente com isso. O primordial para minha saída do seminário foi meu desencantamento com a fé. Ela foi perdendo o 125


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sentido para mim”, diz. “Continuo profundamente encantado com o mistério, com Nossa Senhora, com os anjos, com o breu e a luz e alegria de viver. Deus só pode ser a festança e o silêncio, o paradoxo. Não creio em estruturas religiosas aprisionadoras com suas doutrinas infrutíferas. Não creio em nenhuma doutrina religiosa. Todavia, sou um místico. Amo a poesia mística. E amo o que é fantástico, o mistério. Por isso, me interessa a fé em seu estado rústico.” Durante o período em que cursava Filosofia, Rudinei escreveu sua primeira peça de teatro, O Auto de São João Batista, encenado entre 2003 e 2005 no mês de junho pela comunidade Casa Blanca, na região sul da capital, em comemoração ao santo padroeiro. “Era uma festa bonita, compromissada com a alegria de fazer, de sonhar. Aos vintes anos, eu ainda cria que o mundo tinha jeito, que era preciso mudar a realidade atroz. Trabalhei com moradores de rua, com trabalhadores rurais sem teto, gente que enfrenta todo o tipo de opressão, gente lutadora e sonhadora”, conta. “Eu ainda não tinha uma vasta compreensão desse teatro com não-atores, mas tinha leituras de Paulo Freire e sabia razoavelmente bem o que era o Teatro do Oprimido. Eu posso falar que vim do teatro comunitário, mas, por mais poético que ele fosse, tinha influência de Brecht, de Paulo Freire e de Augusto Boal.” Em 2007, após romper com o noviciado, passou a lecionar Filosofia e História em colégios públicos e particulares, e a estudar interpretação no Teatro Escola Macunaíma. Queria ser ator. “Sonhava com a carreira, mas para alcançá-la tem uma característica que é imprescindível: o ator não tem que ter pudor. Acho que sou muito ‘pudoroso’ em muitas coisas. Principalmente em relação à primeira lição do Zé Celso, que diz que a primeira coisa que um ator tem de fazer é aprender a rebolar”, riu. Ser dramaturgo só se tornou uma alternativa concreta tempos depois. “Eu escrevia poesias, algumas com características dramatúr126


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gicas, com personagens, mas eu não me sentia um dramaturgo. Só comecei a vislumbrar essa possibilidade quando senti que já havia ganhado voz própria na poesia e quando li Esperando Godot, pois vi que era possível escrever uma dramaturgia que não fosse tradicional e realista”, diz. Influenciado por Ingmar Bergman e Samuel Beckett, “minhas piores sombras, pois você fica atrelado a uma referência”, Rudinei escreveu, em 2009, Marco Zero. “Mas nunca terminei. Depois escrevi uma peça bem curtinha chamada Memorial do Cálice e, em 2010, Poetas de Vidro, um texto constituído de poemas meus e de outros poetas, que foi apresentado no Sesc Ipiranga.” Depois, vieram, entre outros escritos que não foram encenados ou finalizados, Chão e Silêncio, Dentro é Lugar Longe e Agruras: Ensaio Sobre o Desamparo. Junto a estes, vieram, também, o Núcleo Macabéa e a Trupe Sinhá Zózima.

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Breviário II

Deixamos – eu, Rudinei, Alexandre Ganico, Lukas Torres e Nayara Meneghelli – o asfalto da rua Dom Macário e adentramos as vielas de barro da favela do Boqueirão, no Jardim da Saúde. Percorremos caminho semelhante ao que os atores do Núcleo Macabéa fizeram em 2012, quando apresentaram o espetáculo Chão e Silêncio pelas ruas e casas da comunidade. Na época, somava-se à trupe Heitor Vallim, João Silher e Maria Vitória. Os atores-poetas trajavam figurinos que remetiam às vestes do grupo de Virgulino Ferreira da Silva, o cangaceiro Lampião. Traziam candeeiros e lamparinas nas mãos e andarilhavam recitando cantigas, causos e poemas de Rudinei e de João Silher. “No começo, quando passávamos com os candeeiros, os moradores pensavam que éramos macumbeiros”, relembra Rudinei enquanto caminhávamos. À medida que andávamos, as ruas ficavam mais estreitas e as casas, feitas de tijolinhos aparentes ou madeira, pareciam se empoleirar ainda mais umas nas outras. O cheiro de urina e de esgoto ardia no nariz. Passamos pelo campo de futebol, pela casa da viúva de Sabotage, o rapper assassinado em 2003, e por um bar famoso na comunidade. “O dono foi uma das pessoas que melhor nos recebeu”, diz o ator e analista de sistemas Alexandre Ganico. “As pessoas que estavam jogando snooker paravam para assistir e ele disponibilizou uma área no fundo do bar para encenarmos.” Alexandre conta que, por questões familiares, pela própria cultura japonesa de sua família, ele sempre teve um direcionamento para áreas técnicas. Tanto é que se formou em Engenharia pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). O teatro apareceu só mais tarde, em 2006, quando fez alguns cursos básicos de iniciação teatral e, 128


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dois anos depois, quando entrou para o curso técnico do Macunaíma. Foi ali que conheceu Rudinei e foi convidado por ele a integrar o Núcleo Macabéa. Formado em 2011, o Macabéa nasceu com o desejo de trabalhar com a palavra poética, a memória e a história oral. O nome é uma homenagem à protagonista de A Hora da Estrela, novela de Clarice Lispector. “A base para o nosso teatro é a palavra. Sempre tivemos vontade de trabalhar com uma dramaturgia própria e é a partir dela que surgem movimentos de corpo e de voz”, afirma Alexandre. Em seu blog, o grupo se apresenta: “No nosso teatro pobre, não por choramingarmos, mas por ser pobre mesmo, todo dia é dia de recomeço. Dia de contar moedas para o ônibus; de cavar espaços de ensaio; de reinventar figurinos; de pôr luz na lamparina na falta de refletores; de bater à porta da casa de algum morador da comunidade do Boqueirão para encenar na sala mesmo, porque sala de teatro é coisa cara; de buscar no suor a preparação de nossos atores, de nossos ardores. É nesta tessitura da realidade de quem cria no caos, não se contentando com qualquer forma de vitimização, que nós do Núcleo Macabéa residimos por três anos na comunidade do Boqueirão (...) Não nos ofende se nos chamarem de amadores. Amamos o teatro. Se não vivemos só de teatro não é por falta de vontade, luta e paixão. É por falta de grana.” A primeira peça do Núcleo foi Chão e Silêncio. A princípio, a ideia era a de que ela fosse encenada por membros da comunidade do Boqueirão que tivessem interesse em atuar. Em paralelo, o grupo trabalhava num outro texto de Rudinei, o Agruras – Ensaio Sobre o Desamparo. “Mas durante o processo teve uma mudança de rumo. Percebemos que muitos jovens foram desistindo e acabamos abraçando como atores as duas montagens. O único destes jovens que permaneceu foi o Lukas”, diz Alexandre. 129


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Era na casa de Lukas, localizada em cima da venda de seu pai, na rua Dom Macário, que os atores se concentravam antes das apresentações de Chão e Silêncio. “Havia um agendamento prévio de quais casas visitaríamos naquele dia e, por precaução, sempre ligávamos antes para confirmar. Mas teve uma vez que chegamos à casa de uma jovem com necessidades especiais e a sua mãe, que era para quem tínhamos pedido autorização, não estava. Adentramos a casa cantando e fomos recebidos de forma truculenta: a pessoa que lá estava começou a perguntar quem éramos e o que estávamos fazendo ali. Prosseguimos com a cantoria até que ela foi baixando a guarda e ficando menos receosa em relação a nós”, relembra Alexandre. O ator Heitor Vallim conta que o grupo teve que ir conquistando um espaço dentro da comunidade. Além de apresentarem Chão e Silêncio, eles iniciaram um trabalho de resgate da memória oral com os moradores, coletando suas histórias para que mais tarde elas fossem transformadas em dramaturgia. “No começo as pessoas entendiam mal. Apresentávamo-nos e perguntávamos se poderíamos fazer as entrevistas e elas ficavam com medo, achando que pertencíamos a algum partido político. Mas depois de algumas conversas fomos criando um laço e, como a comunidade é pequena e todos se conhecem, foi ficando mais fácil a aproximação.” Heitor e Rudinei se conheceram em 2012 na Escola Livre de Teatro de Santo André: o primeiro frequentava o núcleo de experimentos cênicos, enquanto o outro integrava o núcleo de dramaturgia. “Acredito que Rudinei me convidou para integrar o Macabéa porque temos coisas em comum sobre arte. Ele trabalha com o divino, com a Teologia da Libertação, assim como eu. Eu também quis ser padre porque achava interessante o uso da palavra, como ele consegue ajudar as pessoas por meio dela. E nesse sentido há uma semelhança com o ator, pois, se ele não dominar a palavra, não consegue atingir seus objetivos”, diz. 130


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Tanto os ensaios de Chão e Silêncio, quanto a preparação de Agruras foram realizados na comunidade do Boqueirão. “É uma perspectiva de trabalho cênico que fica distante da mídia, infelizmente as pessoas nem ficam sabendo de nossas peças, de nossa investidura e investigação nas artes cênicas. Agora, é preciso dizer que desenvolvemos lá um teatro altamente poético, popular, fincado nas raízes da cultura brasileira e na força da palavra”, conta Rudinei. A pesquisa teórica elaborada para a peça reuniu professores numa série de quatro encontros abertos ao público denominados Teatro, angústia e liberdade: ciclo de leitura dramática do Núcleo Macabéa/colóquio de filosofia da existência. “Eles movimentaram aquela comunidade”, diz Christiane Forcinito. “Lembro-me de um casal que saiu à rua para assistir ao cortejo e disse ‘olha, isso é arte. É teatro’. São pessoas muito humildes que dificilmente saem de lá para passeios culturais.” Christiane leciona Filosofia e Sociologia, é a responsável pelas fotografias das montagens do Núcleo e, desde o início do ano, divide o apartamento com Rudinei. No fim de 2012, Chão e Silêncio, que foi contemplada pelo Programa de Valorização de Iniciativas Culturais (VAI), da Prefeitura de São Paulo, também foi apresentada em algumas ruas do centro da capital e da cidade de Rio Grande da Serra. Terminada a temporada, o Núcleo continuou a se dedicar a Agruras. Mas antes, Rudinei montou, com a Trupe Sinhá Zózima, a peça Dentro é Lugar Longe.

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Breviário III

Num ônibus, decorado tal qual uma casa simples de interior, com direito à cortininha de renda e lamparinas, quatro meninas e um menino cruzam narrativas. Contam histórias do que viram e não viram, do que foi e não foi. E, principalmente, falam sobre o enfrentamento da morte na meninice. Às histórias e às cantorias entoadas no vaivém do corredor, misturam-se o som do violão, da sanfona e o barulho do motor do ônibus. “Lembro uma vez, quando menino, estávamos sozinhos: meus irmãos e eu. Começava a escurecer. E nossa mãe nunca que chegava em casa”, escreve Rudinei na apresentação do livro que traz a dramaturgia de Dentro é Lugar Longe, escrita entre 2012 e 2013. “Sem saber o que fazer, começamos a chorar. Subimos em tamboretes e ficamos debruçados sobre a janela enquanto olhávamos a rua à espera de nossa mãe. Naquele dia pensamos que nossa mãe nunca voltaria. Mas nossa mãe voltou. Talvez seja essa uma das imagens mais antigas que tenho do desamparo na meninice (...) Imagino que a pior forma de desamparo para um menino seja a perda, e a pior forma de perda seja a morte”, continua. Por meio de uma prosa poética, Dentro é Lugar Longe nos leva não apenas ao universo rupestre dos poemas de Chão de Terra Batida e da infância de Rudinei, mas também nos apresenta às memórias cedidas pelos integrantes da Trupe Sinhá Zózima: o que diz a menina com voile acocorada no chão imenso, a menina com cântaros diante do poço, a menina de cabelos negros longos, a menina com lamparina no oratório e o menino (nomes das personagens inspirados em títulos de pintura) é fruto do que Alessandra Della Santa, Anderson Maurício, Junior Docini, Maria Alencar, Priscila Reis, Tatiane Lustoza e Rudinei 132


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Borges contaram durante vinte e quatro horas ininterruptas numa chácara no interior de São Paulo. “Além de ficarmos durante um dia juntos, a ideia era que o espaço interferisse na contação de histórias. Dividimos os cômodos da casa em ofícios do tempo: tempo da manhã, da madrugada, da noite... Para cada um dos tempos, também tinha uma comida diferente”, conta Anderson Maurício, diretor do espetáculo, o primeiro do grupo com dramaturgia própria. Na residência, eles ocuparam o sótão, o quintal, a cozinha, a estrada de barro, a sala, o quarto, a cabana e o porão. Tudo o que ali se contou foi gravado, transcrito, textualizado e transcriado, procedimentos básicos do trabalho com a história oral (para este trabalho, o grupo também estabeleceu uma pesquisa com o Núcleo de História Oral da USP). Só depois a contação de memórias se tornou dramaturgia pelas mãos de Rudinei. Nascida em 2007, a Trupe Sinhá Zózima, inspirada na filosofia do diálogo de Martin Buber, na poética do espaço de Gaston Bachelard e na pedagogia de Paulo Freire, tece no ônibus um “teatro do encontro sem fronteiras”. A ideia é plantar no ferro frio do ônibus o ninho. Contemplados pela Lei de Fomento, o grupo faz residência no terminal Parque Dom Pedro II, onde apresenta, dentro de um ônibus, espetáculos e intervenções artísticas, como saraus e apresentações musicais. Um dos pontos importantes para o trabalho da Trupe – cujo nome é uma homenagem à Lídia Zózima, atriz e professora de teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul – é a troca com o outro. Em Dentro é Lugar Longe, por exemplo, há um momento em que uma das atrizes convida o público a partilhar uma de suas histórias. “Teve uma senhora que me marcou muito porque ela disse que sua avó morreu de cheirar flor”, conta Anderson. “‘De cheirar flor?’ Ninguém entendeu. Ela explicou que quando a avó cheirou uma flor, o pólen tampou os brônquios e ela morreu. É triste, mas é uma forma bonita de ver a 133


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morte. Vai ao encontro da estética da peça e do grupo: estamos falando da morte, é um ônibus frio, mas por meio da poesia pode ser outra coisa, pode reunir outras imagens”, completa. Essas outras imagens, citadas por Anderson, aparecem em Dentro é Lugar Longe por meio de um vocabulário poético particular criado por Rudinei. Quem se debruçar sobre a obra do autor, vai encontrar em seus escritos, poéticos, literários e dramáticos, alumiações, andorinhas, alumbramentos, estiradas, auroras, pelejas, lamparinas, que vão e voltam em frases curtas, por vezes cortadas a seco, que verbalizam e quase tornam palpáveis acontecimentos da alma, como no trecho final do prólogo da peça: MENINA COM LAMPARINA NO ORATÓRIO Dentro é passagem: travessia: dentro é coisa que a gente ainda não viu: dentro é coisa que vai nascer: está por vir: dentro é o dia deitado em terra firme: é várzea: dentro é lugar longe. MENINO Assim é que começo, terminando. Com o olho feito uma lagoa – cheio d’água: com a luz das estrelas no céu da boca. É que ontem faz parte do hoje. & hoje faz parte do amanhã. Tudo o que foi-vem, tudo é estirada: caminhada das distâncias. Mas confesso: perder-se é encontrar-se. [Sussurros] Só aquele que se perde encontra andorinhas. Rudinei crê que o teatro não pode temer o poético. “Porque reside aí uma armadura política poderosa de transformação do mundo. Ainda sou utópico o suficiente quando creio que o teatro contribui para a transformação do mundo”, afirma.

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rudinei borges - poesia em movimento

Breviário IV

Se Dentro é Lugar Longe é a peça de teatro de um poeta que aprendeu a chorar, como diz Rudinei, Agruras: Ensaio Sobre o Desamparo é a dramaturgia de um autor que teve um profundo encontro com a angústia humana. Influenciado por nomes como Kierkegaard, Nietzsche, Beckett e Bergman, o texto não traz cantorias, tampouco movimentação. Vestidas de negro, as personagens fincam os pés num palco coberto por lascas de madeira e oscilam entre silêncios e gritos de desespero, parecendo “impossibilitadas de ser no mundo”. “A peça é um breviário de espectros ante a terra ceifada, que arriscam seguir rumo ao deserto numa locomotiva tomada por ferrugem: Eva [Nayara Meneghelli], um vendedor de ossos [Alexandre Ganico], um menino ferido [Lukas Torres] e um estrangeiro (Judas) [Rodrigo Sampaio] preso a um baú onde supostamente carrega o cadáver do pai morto. E é exatamente esta a inquietação central em Agruras: a morte do pai, a morte do sagrado, a morte de Deus, a morte das utopias: a evocação do semblante dos expatriados, desterrados: refugiados numa terra desolada, refugiados em si mesmos”, escreve Rudinei. Também realizada por meio do VAI, programa de Valorização de Iniciativas Culturais da Prefeitura, a peça ficou em cartaz no segundo semestre de 2013 no Teatro Heleny Guariba, na Praça Roosevelt. Foi a primeira vez que o Núcleo Macabéa fez temporada num teatro. Sidnei Ferreira de Vales, doutor em Filosofia da Educação pela USP, acredita que Agruras é a peça mais densa de Rudinei, no sentido filosófico, mas também a mais hermética. “Dentro é Lugar Longe, por exemplo, é poética, mas não é distante do público. Já Agruras é uma peça que nem todos conseguem compreender”, diz. “Porém, há uma influência das obras anteriores, porque ele [Rudinei] dialoga com a cultura pa135


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raense. Mas não dá para falar que é uma peça regionalista, na verdade, não dá para falar que Rudinei faz uma arte regional, porque ele transcende este limite com a sua influência existencialista”, diz. O primeiro contato entre Sidnei e Rudinei se deu quando o dramaturgo ainda estava no seminário. Sidnei trabalhava na secretaria do Centro Universitário Assunção. “A empatia foi grande porque para a maioria dos seminaristas era um pesar cursar Filosofia. Mas para ele não. Rudinei fazia com gosto. Sentia nele uma vontade muito grande de estudar. E justamente o que nos aproximou foram as discussões sobre determinados autores, filósofos e cineastas”, conta. Rudinei enxerga a diferença entre suas produções como uma busca por identidade. “Ainda há um caminho a ser percorrido. Acho que o meu apego ao existencialismo, ao sombrio, veio do medo de ser tachado como um escritor regionalista que veio do Norte do Brasil e que escreve sobre o que todos já sabem. Esse apego é quase uma necessidade de negar essa tendência, muito clara na minha poesia, de falar de coisas simples, de uma brasilidade pujante, de uma família pobre”, explica. Ainda que Agruras se afaste das outras montagens, há nela uma característica presente em toda a dramaturgia escrita por Rudinei: a ação cênica sempre parte da palavra. “Este trato com a palavra vem porque o Rudinei é, antes de tudo, poeta. A dramaturgia dele é uma espécie de poesia em ação. Mas lidar com a poesia falada exige outro tipo de cuidado: talvez resida aí a dificuldade de realizar o Agruras”, opina Heitor Vallim. “O Rudinei pensa muito em cada palavra que escreve. Tanto é que ele me pede para ler em voz alta, para que ele possa escutá-lo. Passamos madrugadas lendo e, às vezes, se eu erro algo, ele sabe exatamente qual é o correto”, continua. É justamente durante a madrugada que o processo de criação de Rudinei acontece. Não raro, ele troca o dia pela noite. “Preciso caminhar à noite. Pelo menos um 136


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verso pronto vem durante a caminhada. Às vezes paro em algum lugar e escrevo. Mas preciso estar em movimento para escrever”, conta. Para Alexandre, toda a obra construída por Rudinei parte de uma inquietude, tanto em relação ao uso da memória, por não se esquecer de um passado distante, mas sempre presente; quanto no sentido de querer cavoucar sofrimentos e angústias humanas. “Ele faz um exercício com os atores em que propõe que busquemos nossos demônios. Quem é ele? O que ele fala para ti? O que ele provoca? E acho que é essa inquietude que permeia os trabalhos dele, mesmo que eles sejam tão diferentes como Chão e Silêncio e Agruras. Acho, na verdade, que ele é corajoso por explorar tessituras poéticas tão opostas, sem deixar de lado o sublime”, comenta. Em relação à forma inquieta com que as memórias surgem nos escritos de Rudinei, Sidnei diz que elas aparecem como um instrumento de revisitação de si mesmo, funcionando como uma forma de resolução de determinadas questões existenciais. Isso não apenas na dramaturgia, mas na poesia e na literatura também. O professor, na verdade, não vê uma diferenciação muito grande no trabalho de Rudinei entre estes três campos. “Acho que eles se interpenetram. Ele tramita bem entre os três. Claro que ele sabe que são elementos diferentes, mas não vejo uma separação muito clara, tampouco uma hierarquização, pois eles são muito importantes para a espiritualidade e para a intelectualidade.”

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Breviário V

Um exemplo desta interpenetração entre poesia, dramaturgia e literatura é o texto Fé e Peleja, de autoria de Rudinei, que será encenado por ele e Alexandre nas casas da comunidade do Boqueirão até o fim de 2014. Sentados em cadeiras, um de frente para o outro, os dois revezavam as vozes enquanto diziam o trecho abaixo, do início da peça: Donde vim toda valia vos ofereço. É gole d’água que vos preparo. É segredo, mas eu conto. Se não disser tudo, tenho reparo. É para lá, em mim, que regresso. Donde nem um fio de cacimba podia ser deixado. Assim, vazio de tudo, de mãos abanando, atravesso tudo quanto é estirada. Vou de arroio em arroio. Deus-dará que me guie. Se eu me perder me perdoe. Volto donde parei e vos digo de um tanto sem atropelos. Só tenho como acerto a minha fala e vazões de gentes que moram em meus olhos. É pouco. Mas é tanto. (...) Donde vim é passagem. Adentro entre poeiras. Para lá das nuvens que declinam ao fim dos campos. Donde vim é travessia. Passagem de toda ventura e combate. Cantiga de Alzira. Reza de Teodolina. Sussurro de Rosalva ao pé do oratório. Donde vim é Ave-Maria. Creio em Deus Pai. Salve Rainha. Donde vim é norte. Cais de toda partida. Anuvieiro de barco e canoa. Locomotiva. Donde vim é estrada. Armada. Marcada para morrer. Para viver. Não sei. A vida é que sabe. Numa cadeira disposta em frente à dupla, Fernando Gimenes, da Cia. do MOFO, dirigia a dramaturgia. Escrita em prosa, ela não tem personagens definidas, nem rubricas. Ao longo da narrativa, uma mesma voz, que em cena se divide em duas, parte do lugar de onde veio para mostrar as ladeiras e barrancos da vida, da travessia, não só 138


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das figuras pintadas ali – o menino, a mãe, o vô, a vó –, mas também de toda a gente que “não se avexa em perder, tenta. Alivia. Teima. Alcança. Anda defronte do cipoal. De gente que segue – em bando – feito arigó pelo mundo”. Por enquanto, trabalhavam apenas o texto. “Os dois são a mesma pessoa, mas um fica esperando o outro para questionar algum ponto de vista, ou complementar. De certa forma, se opõem. É um texto muito imagético e com um vocabulário próprio do Rudinei. Então, cada um está lidando de forma diferente com a atuação: o Alexandre tem que buscar compreender este universo que não é seu e o Rudinei tem que entender como ator um texto escrito por ele”, explica Fernando Gimenes. Com facilidade, Alexandre ia pelo caminho da raiva para dar força ao texto. Rudinei, por outro lado, mais solar, afobava-se e acabava, por vezes, construindo uma personagem arretada. “Rudi, respira. Troca o ar”, dizia Fernando. Passados os descompassos e a euforia, os dois se sintonizavam, voltavam a trabalhar o texto de forma harmônica, tornando-o uma sonora contação de histórias com nuances de humor e drama, flertando com o universo da religiosidade e com o enfrentamento da morte: Um braseiro acendeu dentro de mim. Corri pelos campos, dentro do breu, debaixo de chuva. Corri com querências que chegar em casa, pensar na vida. Nossa mãe morreu. A mãe no repente da tarde sentiu uma dor no coração, veio a febre, o silêncio. A mãe deitou-se na rede. A vista da mãe escureceu. O rosário caiu das mãos da mãe no chão batido. O fogo à lenha apagou. Só as luzes das lamparinas é que alumiavam o rosto sofrido da mãe, rosto de quem viveu muito. Aos poucos tudo silenciou. A mãe silenciou. Só se ouvia, lá fora, para além das paredes de barro, uma cantiga de Nossa Senhora para aliviar a sofreguidão que chegava. Nossa mãe partiu ali diante dos meninos. O vô veio e chorou. A vó veio e calou. Nada podia ser feito. Nossa mãe morreu. 139


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O ensaio acontecia no Ateliê Compartilhado Casa Amarela, uma casa na rua da Consolação ocupada desde fevereiro pelo MOEPO (Movimento de Ocupação de Espaços Públicos Ociosos). A ideia da manifestação pacífica é reivindicar ateliês compartilhados na cidade. Ali, convivem cerca de 50 companhias, trupes e instituições que apoiam o movimento e utilizam o espaço para ensaios e apresentações. Estávamos na sala 13, no terceiro andar. O cômodo, pintado de verde-claro, tinha uma faixa gasta de papel de parede com desenho de ursinhos. A maioria dos quartos-salas era assim. Inclusive um que ocupamos na semana seguinte para o ensaio de Poemas Amazônicos. A peça, construída a partir de poemas, também fora escrita por Rudinei, mas, neste projeto, é ele o diretor. Em cena, estão Alexandre Ganico, Alessandra Della Santa, Ulisses Amorim e Vinicius Brasileiro. Iluminados apenas pela chama de velas, espalhadas pelo chão, os quatro atores andavam pelo espaço em passos vagarosos enquanto Rudinei lia Procura da Poesia, poema de Carlos Drummond de Andrade. (...) Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. Não forces o poema a desprender-se do limbo. Não colhas no chão o poema que se perdeu. 140


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Não adules o poema. Aceita-o como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada no espaço. Chega mais perto e contempla as palavras. Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra e te pergunta, sem interesse pela resposta, pobre ou terrível que lhe deres: Trouxeste a chave? (...) “Nosso trajeto tem que vir do interno, que é posto pela palavra. Nosso material é a palavra”, dizia Rudinei ao terminar o poema. Depois, pediu para que o grupo sussurrasse “roda”, “pai”, “sede” e “redemoinho”, de modo a brincar com as possibilidades sonoras e sensitivas das palavras dentro da proposta de cada uma das personagens da peça: a mãe, o menino, o andejo, o brincante e o poeta. Novamente, são figuras que partem de recordações da infância. “A memória da meninice é um tema que em mim não se esgota, tenho muito a escrever sobre isto”, diz. “Algumas pessoas – como eu – são enveredadas para a infância de maneira tão sagaz que é quase impossível o distanciamento de lembranças que, tomadas de boniteza, permeiam o presente quase como se tivessem sido vividas ontem mesmo ou há duas horas. Assim, o que muitos tratam como passado eu entendo como ofício: acocorar-se diante da infância é um ofício dos mais ardorosos.” ...

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Cena de “agruras�, de rudinei borges



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alexandre dal farra - a palavra como arma

crĂŠditos das imagens 145


créditos das imagens (por ordem de entrada)

Capa Mariana Marinho O ator André Capuano em ensaio de Abnegação II Vitor Vieira Cenário de Agruras: Ensaio sobre o desamparo Christiane Forcinito Espectador assiste à Planta Bárbara Ariola As atrizes Bruna Anauate e Ana Paula Grande em Tem Alguém que Nos Odeia Caio Gallucci O dramaturgo Alexandre Dal Farra Mariana Marinho Os atores Alexandra Tavares (centro), Vinicius Melone, André Capuano e Carlos Morelli em Abnegação Mariana Marinho O ator Vitor Vieira em Mateus, 10 Otávio Dantas O dramaturgo Gustavo Colombini Mariana Marinho Os atores Fabricio Licursi e Thiago Amaral em O Silêncio Depois da Chuva Divulgação Cena de O Silêncio Depois da Chuva Divulgação

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A dramaturga Michelle Ferreira Bob Souza As atrizes Flรกvia Strongolli, Michelle Boesche e Maura Hayas em Os Adultos Estรฃo na Sala Ligiane Braga As atrizes Solange Akierman, Flรกvia Strongolli, Maura Hayas e Michelle Ferreira em Reality [Final] Kim Leekyung O dramaturgo Rudinei Borges Christiane Forcinito O ator Rodrigo Sampaio em Agruras: Ensaio Sobre o Desamparo Christiane Forcinito Os atores Lukas Torres, Rodrigo Sampaio, Nayara Meneghelli e Alexandre Ganico em Agruras Christiane Forcinito

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bibliografia 149


bibliografia Livros ARAUJO, L.; COLOMBINI, G.; DIETRICH, M.; LAURIANO, J.; LIMA, A. L. Carta de intenção. São Paulo: 2013 BORGES, R. Chão de terra batida. São Paulo: All Print Editora, 2009. 59 p. BORGES, R. Dentro é lugar longe. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2013. 104 p. BORGES, R. Teatro no ônibus: Pesquisa cênica da Trupe Sinhá Zózima. São Paulo: Cooperativa Paulista de Teatro, 2013. 163 p. COLOMBINI, G.; TURCHI, J. Histórias para serem lidas em voz alta. Trechos. DAL FARRA, A. Manual da destruição. São Paulo: Hedra, 2013. 188 p. DESGRANGES, F. A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral. São Paulo: Hucitec Editora, 2012. 228 p. FARIA, J. R. História do teatro brasileiro – vol. II. São Paulo: Senac, 2013. 496 p. FERNANDES, S. Teatralidades contemporâneas. São Paulo: Perspectiva, 2013. 243 p. FERNANDES, S.; GUINSBURG J. O pós-dramático. São Paulo: Perspectiva, 2010. 259 p. ROUBINE, J. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. 226 p.

Peças BORGES, R. A vida é o que a vista traz para dentro dos olhos e guarda na alma. (Fé e Peleja) BORGES, R. Agruras: ensaio sobre o desamparo. BORGES, R. Chão de terra batida.

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BORGES, R. Poemas amazônicos. COLOMBINI, G. A sinfonia. COLOMBINI, G. Dentro. COLOMBINI, G. Essa Casa. COLOMBINI, G. Laertes & Polônio. COLOMBINI, G. O espaço sugerido pelo vento. COLOMBINI, G. O silêncio depois da chuva. COLOMBINI, G. Os vivos. COLOMBINI, G. Para meninos e gaivotas. COLOMBINI, G. Planta. DAL FARRA, A. A rua é um rio. DAL FARRA, A. Abnegação II: O começo do fim. DAL FARRA, A. Abnegação. DAL FARRA, A. Conversas com meu pai. DAL FARRA, A. Helena pede perdão e é esbofeteada. DAL FARRA, A. Mateus, 10. DAL FARRA, A. Pele de Outro. DAL FARRA, A. Petróleo. DAL FARRA, A. Quem vem lá. FERREIRA, M. Hitler de peruca. FERREIRA, M. Os adultos estão na sala. FERREIRA, M. Reality (final). FERREIRA, M. Sit down: drama. FERREIRA, M. Tem alguém que nos odeia. FERREIRA, M. Urubu comum.

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FONTES Caecilia LT Std, League Gothic, Traveling Typewriter.

DESIGN renangoulart.com




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