Por Trás da Lona - Memórias do Circo

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Beatriz Viabone & Mariana Rennhard convidam para o grande espetaculo:



Beatriz Viabone & Mariana Rennhard


ilustrações

Respeitável Público Julia Rennhard Pingolé Thiago Fernandes Junior Marina Viabone Arturo Thiago Fernandes Allan Fernanda Yoshino Marcio Danilo Kato

capa e design

renangoulart.com


Trabalho de Conclusão de Curso de Jornalismo

Autoras

Beatriz Viabone Mariana Rennhard

Orientador

Welington Andrade

Faculdade Cásper Líbero Dezembro/2014



agradecimentos Nesses meses de trabalho, encontramos alguns desafios, lidamos com prazos e corremos contra o tempo. Mas, tivemos a sorte de escolher um tema inspirador, rico e que engrandeceu nossas almas. Durante esse percurso entre quatro circos, conhecemos pessoas humildes e absurdamente talentosas. Pessoas de garra, inteligentes, bonitas por dentro e por fora, pais de família, grandes artistas e mantenedores de uma cultura mágica e poética. Gostaríamos de agradecer, de todo coração, às pessoas que abriram suas vidas para nós. Que nos receberam em suas casas, ou melhor, trailers. Que dividiram seus medos, sonhos, paixões e frustrações conosco. E que, acima de tudo isso, nos envolveram em um mundo lúdico e inesquecível. Muito obrigada por terem nos recebido de braços abertos. Por conversar conosco enquanto faziam a maquiagem, minutos antes de entrar no picadeiro, ou durante seus momentos de folga. As histórias de cada um de vocês mudaram nossas vidas e, esperamos que com esse livro, elas mudem a vida de outras pessoas. Nossos agradecimentos também vão para o nosso querido professor e orientador, Welington Andrade. Desde as ideias embrionárias deste livro, nós já tínhamos a certeza de que queríamos você nesse projeto. Obrigada por tudo o que nos ensinou ao longo não só deste trabalho, como também de toda a graduação. Não podemos deixar de agradecer também, aos nossos amigos ilustradores que nos emprestaram um pouco de suas artes para deixar este livro mais bonito. Obrigada! Por fim, mas não menos importante, fica aqui o nosso agradecimento aos nossos familiares. Pais e mães que nos deram caronas até o circo, que tiveram a paciência de ouvir a gente falar sobre esse trabalho durante um ano inteiro. E também às nossas irmãs, que lidaram com nossa ausência em alguns momentos. Muito obrigada pelo apoio. Este livro também é de vocês.



o espetaculo p. 8

p.16

pingole,

o palhaรงo p.36

p.58

p.78

p.100



respeitavel publico!


por trás da lona: Memórias do Circo

N

o final de fevereiro de 2014, demos início ao processo de escrita deste livro. Desde então, fizemos parte do público e dos bastidores de quatro circos - Circo Spacial, Circo dos Sonhos, Big Brother’s Cirkus e Circo Stankowich, nessa ordem. Caminhamos, na maioria das vezes, em chãos de concreto, que levavam ao picadeiro, pela entrada principal. Em outros momentos, nossos pés pisaram a terra batida que abrigava os trailers dos artistas, nos fundos dos circos. Olhares desconfiados. Apertos de mãos que viraram beijos no rosto, abraços e troca de perfis no Facebook mais tarde. Conversas na porta do camarim. Um aviso de que é preciso tempo - e jeito - para conquistar a confiança dos mais resistentes circenses. Entrevistas na sala de estar de um trailer desarrumado a ponto de ser corretamente chamado de “casa”. Uma demonstração da simpatia daqueles que têm orgulho de falar das origens e do presente na lona. Palhaços, trapezistas, malabaristas, contorcionistas, produtores, donos, dançarinos curiosos com a presença de duas desconhecidas naquele ambiente de trabalho. Alguns foram se aproximando aos poucos, fazendo perguntas, rindo com brincadeiras, convidando-nos a fazer o mesmo. Outros preferiram, dessa vez, fazer parte do público e nos observaram de longe, como espectadores. Miudezas que construíram nossa experiência no circo.

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respeitavel publico!

Desde o início fomos avisadas: vão com calma. Os motivos? O mundo colorido do circo com certeza nos encantaria, mas a recepção daqueles que o mantêm vivo poderia nos surpreender com seu receio, principalmente em relação à imprensa. De fato, preconceitos vividos até os dias de hoje, problemas com jornalistas no passado, e outros motivos, talvez mais pessoais, fizeram daqueles que nos atenderam, cautelosos. Uns mais, outros menos, mas todos quiseram se certificar de que não seriam ofendidos, de que fariam parte de um projeto que não denegriria a imagem daquilo que tanto amam. Apresentamos declarações da faculdade sobre nosso trabalho acadêmico, explicamos inúmeras vezes e de diferentes formas o direcionamento do livro, marcamos muitos horários para conversas formais, antes que qualquer entrevista fosse feita. Respeitamos o modo de agir dos circenses nessas situações. E fomos igualmente respeitadas. Uma vez que a barreira das formalidades, dos medos e das burocracias era derrubada, sentíamo-nos em casa. “Pode entrar, não repara a bagunça”, ouvimos em diversas ocasiões. Tentamos aproveitá-las ao máximo. Outro aviso importante, mas menos reforçado, foi o de que a pesquisa e os dados sobre o circo no Brasil ainda eram precários e estavam, de certa forma, em seu início. Em pouco tempo, descobrimos que esse é um assunto que vem se tornando cada vez mais recorrente em trabalhos acadêmicos, filmes, documentários, etc. Mas também encontramos a falta de dados técnicos e objetivos sobre a atividade no país e o despreparo dos órgãos que cuidam dessa arte. Logo de início, fomos à procura de dados teoricamente simples e fáceis de encontrar, como, por exemplo, uma estimativa de quantos circos estavam em atividade no Brasil e na cidade de São Paulo atualmente. A busca não foi nada fácil. Já sabíamos que dados como esse, em se tratando de circo, eram quase impalpáveis, pelo fato de que muitos circos são itinerantes ou ficam, de tempos em tempos, 11


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sem se apresentarem. Mas desconfiávamos que a estimativa fosse certeira e que apareceria assim que perguntássemos por ela. Passamos pelo Centro de Memória do Circo, ligamos no Sindicato dos Artistas de São Paulo, perguntamos a alguns circenses, entramos em contato com a Funarte. Sem resposta às nossas perguntas. Foi assim também com outras indagações semelhantes: quantos artistas circenses tinham registro DRT no país e na cidade de São Paulo, qual era a burocracia exata por que os circos têm que passar para alugar um terreno para montagem da lona, etc. Correndo certo risco, resolvemos, então, deixar claro o panorama do circo atual por meio de nossa própria vivência nesse ambiente e com os dados e as informações que nos foram apresentados nas próprias conversas que realizamos para escrever este livro. Da forma mais sincera que conseguimos, preferimos deixar os personagens falarem. Suas gírias, histórias, explicações, indagações, reclamações, reflexões montaram o cenário do que é a atividade circense em 2014, pelo menos em um aspecto geral. A paisagem, os espetáculos, os trailers enfileirados completaram o contexto. Além dos personagens também há vida circense. Muita. Por meio, principalmente, da descrição, deixamos que os objetos, os figurinos, as expressões também mostrassem o que sabiam daquele mundo. A verdade é que sabemos que quatro circos é uma amostra relativamente pequena desse vasto mundo do circo no Brasil. Não foram poucas as vezes em que desejamos ter mais tempo para continuar o trabalho e ampliar tanto a nossa percepção quanto a do leitor. Além disso, gostaríamos de ter passado mais dias junto a cada uma dessas lonas, para aprofundar nossa pesquisa de campo e estreitar os laços com essa arte. Tanto é assim que temos a consciência de que existem algumas lacunas nos textos aqui apresentados. Gostaríamos de ter perguntado muito mais. De ter assistido aos espetáculos repetidas vezes. De ter escutado mais histórias. De ter fugido com 12


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o circo, pelo menos por uns tempos. Não raro nos entreolhávamos, nos bastidores, e dizíamos, em voz baixa, para ninguém ouvir: até que deu vontade de fugir com o circo. O amor que eles têm pelo circo, a pureza de sua arte, quando estão no alto do picadeiro, voando suavemente, ou firmes ao chão, arrancando suspiros ou gargalhadas é envolvente. Rapidamente nos apaixonamos por essas histórias que aqui contamos, chegando a nos emocionar ao vê-los em ação. Imaginando o quanto as outras pessoas, ali nas arquibancadas, mal sabem as vidas que estão por trás dos rostos pintados. Por séculos o circo tem representado um mundo lúdico, do impossível, da magia e do encanto. Quantos não gostariam de viver rodando, deslizando pelo tecido, fazendo os outros darem risada? Nesse universo, a riqueza não tem fim. Começamos esse trabalho gostando de circo e encerramos com a mais pura admiração e amor. As cores, os trailers, as figuras espalhadas em cada canto são extremamente convidativos. E múltiplos. De tal forma que, por mais tempo que tivéssemos, não conseguiríamos abraçar e mostrar o circo em sua totalidade. Mas, depois desses oito meses, alcançamos algumas certezas. Uma delas é a de que só se conhece o circo vivenciando seu dia a dia. Outra? A arte circense não perdeu - e não deve perder - sua força de expressão. Beatriz Viabone de Antonio Mariana Rennhard Bandeira de Mello

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A esperanรงa... Danรงa na corda bamba De sombrinha E em cada passo Dessa linha Pode se machucar... Asas! A esperanรงa equilibrista Sabe que o show De todo artista Tem que continuar. Joรฃo Bosco e Aldir Blanc, 1979



pingole,

o palhaço

S

ua roupa amarela era composta por duas peças, jaqueta e calça, ambas de cortes retos, não muito ajustadas ao corpo. A jaqueta era fechada com um zíper na frente e não tinha golas. Faixas transversais em verde brilhante eram os detalhes da calça enquanto na jaqueta, faixas horizontais levavam botões prateados em cada extremidade, remetendo às roupas oficiais de soldados ingleses. Nos pés, sapatos maiores que o normal, em azul e vermelho. Levava também uma peruca castanha, um pouco alaranjada, com um cabelo esticado e duro, que em suas partes maiores quase tocava os ombros. Uma franjinha cobria-lhe a testa. No rosto, sua maquiagem era expressiva e exagerada. A tinta branca preenchia o espaço entre as pálpebras, chegando acima das sobrancelhas. O contorno preto fazia com que as sobrancelhas fossem mais para cima, deixando-o sempre com expressão de surpresa. A linha preta 17


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e grossa descia próximo à parte de dentro dos olhos, seguindo o começo do nariz. Na boca, o lábio inferior estava preenchido com tinta preta e se estendia até à marca do sorriso, deixada pelas bochechas. O lábio superior estava pintado em vermelho e logo acima, uma faixa branca cobria toda a parte em que estaria um bigode, chegando até as narinas. Para terminar, bolas vermelhas nas bochechas combinavam com o seu nariz vermelho de bolinha, que não poderia faltar. Não havia como negar: tratava-se de um palhaço. Entrou no picadeiro empunhando um violino em uma mão e na outra um pedestal para apoiar a partitura. Arrumou tudo ao seu redor para começar a tocar seu instrumento mas, antes disso, com ajuda da mão direita, empurrou a cabeça para o lado esquerdo, acompanhado de um barulho de porta rangendo, para que encostasse no violino apoiado no ombro esquerdo. Enquanto tocava, ou mais precisamente simulava tocar, outro palhaço chegou com um enorme contra-baixo, pronto para atrapalhá-lo. O som grave tirou a concentração do violinista que, ao gritar de susto, fez sua peruca se levantar, deixando a testa à mostra. Então parou, furioso e expulsou o palhaço intrometido. Este, não contente, voltou com outros instrumentos para repetir o processo até o final da esquete, quando o palhaço resolveu correr atrás do intruso. Quando se pensa em circo, a figura do palhaço é uma das primeiras que vem à cabeça. E mesmo fora do picadeiro, o palhaço tem representatividade própria e expande a cultura circense. É o responsável pela alegria, pela dose de relaxamento após uma apresentação tensa de contorcionismo ou trapézio. É quem arranca risadas com as menores besteiras. Com um simples tropeção. Com uma flor que esguicha água, ou com a peruca que pula da cabeça. As esquetes podem sempre ser as mesmas, porque o riso será sempre o mesmo. Não tem como discutir: quando o palhaço entra no picadeiro, as crianças são tomadas pelo momento de ápice das gargalhadas. 18


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Faltavam dez minutos para o espetáculo de sexta-feira começar, mas a movimentação atrás do picadeiro era pouca; mais parecia um ambiente tranquilo e de brincadeira de criança. Buguinho, um dos palhaços do Circo Spacial, com a maquiagem já feita para a apresentação, colocava seus sapatos com calma, sentado em um banco, enquanto explicava que nasceu no circo e que, com treze ou catorze anos, apresentou-se pela primeira vez como palhaço, ao lado de seu tio Pingolé, colega de trabalho até os dias de hoje e quem lhe ensinou muito sobre a vida circense. De costas para o palco, nos fundos do circo, ainda embaixo da lona, os cantos eram preenchidos com camarins individuais. Pequenas cabines de ferro, com portas, que guardavam roupas e figurinos nos cabides, como também outros acessórios e pequenos aparatos para a apresentação. Um cantinho particular, o recanto de cada um. O baú de um caminhão ficava com as portas abertas, voltadas para dentro da lona. Com uma escada de aço móvel, que completava o espaço até o chão, o baú se transformava no camarim das meninas acrobatas. Elas chegavam aos poucos, com roupas normais, mas já com a maquiagem pesada e colorida que, mesmo de longe, causa efeito durante as apresentações. Dois homens de corpo atlético, com a força necessária para ficarem por muito tempo se apresentando no trapézio, brincavam com um menino de doze anos, esperando a hora em que a voz dos alto-falantes anunciaria ao público que o espetáculo do Circo Spacial estava começando. O menino permaneceu parado, com as pernas bem coladas e com o braço direito erguido, fazendo um ângulo reto com o corpo, para que os outros dois tentassem acertar argolas nele. Quem pontuasse mais ganhava o jogo. Um deles foi um completo fracasso, tentou algumas vezes e em alguns momentos não acertou argola nenhuma. O outro tinha mais êxito quando olhava para os colegas e, numa dancinha de quem faz graça e ainda assim 19


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ganha o jogo, arremessava as argolas, uma atrás da outra. Acertou várias, mas, quando resolvia olhar, algo dava errado. “Deixa só o Pingolé chegar aí. Outro dia ele acertou todas”, um deles falou em tom de aviso, enquanto os amigos assistiam e tiravam sarro do rapaz que nada acertou. “É melhor você ajudar a carregar as caixas, mesmo. Porque nisso aí você é muito ruim”, caçoavam. O tempo passava e, ainda assim, eles se mantinham tranquilos, como quem realmente faz aquilo com muita frequência e já sabe onde deve estar. E na hora certa. Atrás deles estava uma porta que diferia dos outros camarins: fundo branco, com uma pintura colorida de um palhaço que parecia estar prestes a ter um ataque de riso, tal era a abertura de sua boca e a expressão de seus olhos. Embaixo, letras garrafais anunciavam o dono daquele espaço: Pingolé. Esse era o único camarim decorado e colorido, e não era à toa. Ali no corredor onde acontece toda a correria de bastidores, porém, ainda não havia sinal do palhaço mais antigo do Circo Spacial, com vinte e sete anos de trabalho circense. Já era possível ouvir o público chegando e tomando seus lugares. As vozes das crianças se espalhavam ao redor do picadeiro enquanto músicas diversas distraíam o público. Até que, de trás da lona que separava a tenda do circo dos trailers e motorhomes em que os artistas moram, apareceu uma figura de bermuda jeans, camiseta branca, tênis preto, meia branca na canela e rosto pintado de palhaço. Era ele, o tio de Buguinho, Gilmar Pedro Querubin, o Pingolé. Chegou com uma aparência muito tranquila, de quem sabia que o espetáculo estava prestes a começar, não demonstrava o menor nervosismo e tinha confiança o suficiente para saber a hora exata em que deveria se preparar para tomar o picadeiro. Colocou-se direto na frente da criança, pedindo para participar do jogo também. Pegou as argolas e começou a atirá-las em direção ao braço do ga20


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roto, fazendo poucos pontos, enquanto os colegas e amigos diziam que não era possível que ele não estivesse acertando nenhuma argola. “Enquanto eu não fizer quatro pontos, não vou parar”, avisou. Continuou lançando os objetos. Parou novamente, voltou a cabeça em direção a nós, que olhávamos atentamente, e perguntou em tom de brincadeira: “Estão anotando quantos pontos estou fazendo?”. Foi interrompido pelo grito animado das crianças batendo palmas, que anunciava o início de mais um espetáculo do Circo Spacial, cuja lona estava montada em frente ao Shopping Center Norte, zona norte da cidade de São Paulo. Era meio de março de 2014 e aquele seria o último mês depois de mais de um ano no mesmo espaço. Enfim, a agitação típica de bastidores começou. Alguns correram para o camarim, outros para frente do palco e teve ainda quem ficou acertando os últimos detalhes. Ao lado do espelho, uma folha de papel mostrava a ordem de apresentação e um galão de água completava o ambiente. Pingolé, ao contrário dos outros, não parou de imediato e fez mais uma tentativa de acertar a argola no braço do menino. Caminhou, com passos tranquilos, pegou um copo de plástico para matar a sede e se virou em direção ao garoto de forma brusca, lançando, sem que os que ainda estavam ali esperassem tal movimento, o último objeto do jogo que tinha na mão. Seu rosto traz marcas de quem já viajou muito com o circo. De olhos azuis, cabelos grisalhos, que já não cobrem todo o couro cabeludo, e um sorriso quase constante no rosto, ele deixa claro que não tem nada a esconder e que se orgulha muito de sua história – tanto que tem até um projeto de lançar uma biografia oficial, o que lhe traria muita felicidade. Sentado com o corpo espalhado de forma desordenada na cadeira, começa a tagarelar, a lembrar, de forma confusa, episódios que considera interessantes. Quase pede para anotarmos as palavras que disse nesse momento de ansiedade para que não se esqueça de explicar tudo melhor depois. “O que você per21


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guntar, eu respondo, tá? Não fique com vergonha, pergunte mesmo. Porque eu falo pra cacete”, avisa. Gilmar Querubin tem cinquenta e quatro anos, dos quais vinte e sete foram dedicados ao Circo Spacial e à atividade de palhaço, fazendo com que ele mesmo diga ser o “vovô da turma”. Embora tenha nascido em Cascavel, no Paraná, sem ser debaixo de uma lona circense, Gilmar e seu personagem são praticamente filhos do Spacial, que surgiu no dia 9 de agosto de 1985, criado por sua irmã, Marlene Querubin. O circo é uma realização pessoal de Marlene que, aos vinte anos de idade e estudante de Engenharia, assistiu a um espetáculo de circo em sua cidade natal, Cascavel (PR), e de prontidão se apaixonou pela arte e pela vida na estrada. “Larguei tudo o que eu fazia na cidade e fui embora com o circo. Três anos depois, montei o Spacial e não me imagino fazendo outra coisa”. Caminha com passos decididos. Senta na cadeira de plástico vermelha, apoia os braços sobre a mesa, entrelaça as mãos. Com um ar impaciente, espera que a conversa comece imediatamente. Afinal, são muitas as tarefas que a aguardam diariamente em seu ambiente de trabalho que é o circo. Não pode perder tempo e faz questão de mostrar isso. Não de forma mal educada. Mas de maneira que não deixa dúvidas: Marlene é uma pessoa objetiva, de poucas e duras palavras. Responde aquilo que lhe perguntam, é verdade. Sem contar detalhes além, no entanto. Sem, muito menos, fazer digressões. Exalta-se quando o assunto lhe causa certa indignação. Levanta a voz, mexe os braços, coloca o dedo para cima quando tem que falar sobre a proibição de animais em espetáculos circenses, algo que ela é contra. Acalma-se, retoma a expressão séria ao retornar a assuntos burocráticos, como o número de pessoas no elenco. Mostra todo o espaço do circo, apresenta artistas, libera os bastidores. Tudo por pouco tempo. Para deixar um gosto de “quero mais”, inegociável. “Já trabalharam muito hoje, meninas. Vão para casa 22


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descansar”. É preciso respeitar a rotina de cada um ali. É preciso respeitá-la. A dona do Circo Spacial. A única ligação de Marlene com o mundo artístico, naquela época, era o teatro. Ela era atriz e diretora. O suficiente para deixar que uma paixão arrebatadora tomasse conta de seus pensamentos. Por alguém? Sua personalidade forte, decidida, de quem gosta de ditar as regras, os objetivos e os caminhos a serem percorridos na própria vida, não a deixa admitir que sim. Caiu de amores foi mesmo pelo circo. A sua experiência teatral falou mais alto no começo. De cabelos loiros, curtos, e sorriso largo, Marlene também já foi artista circense. Carrega as apresentações do Globo da Morte na memória. De voz rouca e com forte sotaque do interior da região sul do país, já gritou “pipoquinha” e “algodão doce” para aqueles que passaram, há muitos anos, pela área de entrada do Spacial. O balcão de guloseimas, depois de algum tempo, deu lugar a um escritório itinerante, montado em seu próprio trailer. Desejo de muitos trabalhadores cansados de suas rotinas. Foi quando o lado moldado pelo teatro passou a dar espaço para a jovem que havia estudado engenharia no passado. Com o punho cerrado, batendo na mesa de forma política, faz questão de dizer: “eu sempre tive esse olhar de administradora, de dirigir o espetáculo”. Dito e feito. Transformou-se, então, em uma verdadeira empresária. Só faltou a calça e a camisa social. Mas, no circo, uma camiseta vermelha com o logo do empreendimento combinou melhor. E virou, praticamente, um uniforme. O que não era tradicional de família, acabou se tornando tradição circense com o tempo. Das setenta pessoas que compõem o elenco principal do circo, trinta e cinco possuem parentesco com Marlene. Irmãos, filhos, sobrinhos e cunhados fazem parte do Spacial, que já se apresentou por todas as capitais do país, com vinte e duas carretas e trinta e cinco trailers. Viajar, inclusive, faz parte da 23


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rotina e da vida de quem mora no circo. “Eu não sou parede, não tenho porque ficar em um lugar só”, diverte-se a dona com a ideia de morar cada hora em um canto. Durante os quase trinta anos de circo, alguns espetáculos completam sua história e fazem do Spacial um circo reconhecido pelo país e uma referência para quem está começando. A apresentação em 1987, no Estádio Maracanã, antes de sua reforma, para 220 mil pessoas, torna o Spacial o único circo brasileiro com esse feito. Marlene tem orgulho em lembrar o que completa a trajetória do Spacial: a visita do Presidente da República, Itamar Franco (mandato de 1992-1994) ao Circo Spacial com mais onze Ministros. Na época, estavam em Brasília e convidaram o presidente, que compareceu. Pingolé, inclusive, foi o responsável por entregar a ele um Certificado de Honra Circense. Com a inexperiência da época já superada, ele se desloca para a ponta da cadeira, endireita as costas e coloca o braço direito para cima antes de começar a falar sobre esse momento tão especial em sua carreira. “Quando acabou o espetáculo, eu fui o responsável por ir lá entregar o certificado pra ele. Fiquei nervoso, gaguejei. Mas chamei ele de Vossa Excelência, de Presidente. Decorei tanta coisa e na hora não saiu nada do que eu tinha decorado”, lembra, com uma voz mais séria, parecendo sentir de novo o nervosismo que tomou conta dele na ocasião. A imprensa da época estampou nos jornais a foto de Pingolé entregando o documento a Itamar Franco, o que ele considera ter sido o “primeiro passo” para ganhar reconhecimento no mundo artístico. Aparecer na mídia. Algo que, embora tente disfarçar, arranca gargalhadas orgulhosas e pretensiosas de Gilmar. “Saiu no Brasil inteiro. Estadão, Folha, tudo quanto era lugar. Alguns jornais usaram isso como sátira, querendo dizer que havia muito mais coisa para resolver no país do que ir ao circo. Outros apoiaram o episódio. Depois disso, comecei a aparecer mais na mídia”, 24


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orgulha-se, fazendo questão de dizer que foi personagem de programas bastante conhecidos como Globo Repórter e Fantástico. Mas, antes de levar uma vida circense, Gilmar trilhou um caminho que inclui trabalhos em dois grandes bancos brasileiros e uma curta carreira no futebol profissional – como jogador e como árbitro. Agora, dedica-se integralmente ao Spacial. E quase que duplamente, já que diz que Gilmar e Pingolé são duas pessoas diferentes – e ambas têm o circo como trabalho, paixão e estilo de vida. Sem maquiagem, com o rádio comunicador da equipe do Spacial na mão, roupas normais, sentado em uma das mesas da área de convivência do circo, ele traz uma expressão séria, uma voz firme e lembra que faz parte da administração daquele lugar. Chega a criticar o jornalismo de hoje em dia e a dar dicas, em tom paternalista e, ao mesmo tempo, de quem está acostumado a dar entrevistas, de como abordar as fontes e de como se deve pensar muito bem nas perguntas a serem feitas. “Quantas e quantas pessoas não vêm aqui fazer matéria jornalística comigo. Eu dou umas dicas. Falo que estão fazendo perguntas erradas. Falo assim: tem que perguntar bem, perguntar quantos anos o cara tem de circo. São perguntas básicas. E por trás disso tem muita coisa”, diz. Explica, inclusive, que orienta seu sobrinho a como se comportar com a imprensa, querendo dizer que já é experiente nisso e sabe exatamente o que falar. “O Buguinho está começando agora, mas eu dou dicas pra ele. Falo que, quando tem uma câmera, um repórter, ele tem que falar coisas bonitas, coisas boas”. Sugestão que ele mesmo aparenta seguir. ëëë

Atrás do palco, sentado dentro do seu camarim, mas com o corpo curvado para fora, para que pudesse conversar, Pingolé estava ambientado. Deixou de lado a vontade de se impor como alguém experiente para dar lugar a um artista, pai, marido, avô 25


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que queria contar a sua história. O pequeno espaço estava repleto de objetos coloridos e típicos de um palhaço. Em cima de uma mesa, várias perucas coloridas estavam expostas. Entre elas, uma peruca castanha clara, uma com um enorme moicano em cores do arco-irís e uma peruca azul e branca. Ao lado, uma pequena TV antiga, de antena, ligada com o volume bem baixo. O recado “Não mexa na televisão” avisava que não poderia mais haver interferências ali. Na parede, uma arara de roupas segurava vários cabides com seus figurinos de palhaço e roupas embaladas em sacos plásticos protetores. Suas roupas de palhaço são quase sempre parecidas, mas mudando as cores. Muitas cores. Na maioria das vezes, ele usa as combinações de azul com branco, verde com amarelo, laranja com azul, azul com verde limão além de um figurino mais festivo, mas não menos informal: um enorme paletó metade branco e metade preto, com golas de lantejoulas prateadas. No chão, uma porção de objetos preenchia o ambiente, suficientemente para que não sobrasse muito espaço. Caixas de papelão e, claro, sapatos grandes de palhaço mostravam que aquele era o seu lugar. O cantinho do Pingolé. Lá dentro, a conversa é outra, cheia de brincadeiras, risadas e língua pra fora como quem diz “estou só brincando”. “Gilmar é o homem do dia-a-dia, o pai, o esposo que paga conta, compra roupas, vai ao mercado”, explica. “Já o Pingolé é uma figura que leva alegria para o público” e, por isso, ele usa a maquiagem, o nariz, o sapato grande: para diferenciar as duas figuras, os dois seres humanos. A diferença entre os dois é tão real que não demora muito para se acreditar quando ele diz que “se alguém vier me cobrar enquanto eu estiver pintado de palhaço eu digo: ‘Não pago! Agora é o Pingolé, não o Gilmar’”. “O bom menino não faz pipi na cama. O bom menino não faz mal criação. O bom menino vai sempre à escola. E na escola aprende sempre a lição”. Assim cantava o conhecido palhaço Ca26


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requinha antes de Gilmar sonhar em seguir essa mesma carreira. Mesmo assim, era isso o que ouvia quando era criança, ainda sem ter ideia de que, um dia, estaria completando vinte e sete anos de circo. Cresceu e teve que seguir para o mercado de trabalho, que, a princípio, nada tinha a ver com uma lona. Pelo contrário: aos treze anos de idade, começou a jogar futebol. “Diziam que eu era bom”. Logo aos dezesseis, começou a jogar no Atlético Paranaense, em Curitiba. Jogou por três meses, mas o fato de não receber salário o levou a questionar sua atividade. O Clube queria pagar o seu trabalho com uma vaga no alojamento dos atletas e também em forma de estudos, já que o dinheiro mesmo era utilizado para contratar jogadores de nome conhecido, dando visibilidade ao time e trazendo público para os jogos. Mas, sendo um garoto de família humilde, ele não podia aceitar a proposta. “Não dava pra viver a troco de comida”, desabafa. Em Cascavel, foi contratado pelo Sindicato dos Bancários de Cascavel e Região para jogar no Torneio Bancário de Futebol Suíço com profissionais desse segmento por três meses e, para tanto, passou a receber três salários mínimos, cesta básica e uniforme. Por se destacar como bom jogador, ele também ganhava tênis e eventualmente cem reais de “caixinha” a cada jogo, além do salário do Banco Bamerindus, onde era registrado para poder disputar o torneio. Diziam que ele era bom e ele mostrou que merecia o elogio: naquele ano, seu time ganhou o evento. Na segunda-feira seguinte, durante a festa em que entregaram o troféu, o diretor do Banco disse a ele: “Pingo, o campeonato acabou, mas todos no Banco gostam de você e querem o seu bem. Larga da bola e vem trabalhar com a gente”. Foi assim que, aos 18 anos de idade, começou sua carreira no extinto Banco Bamerindus, atual HSBC. Sua mãe concordou de prontidão que seria melhor para sua carreira, e logo começaram a 27


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investir no jovem talento. Ofereceram uma série de cursos administrativos e de vendas, mas Gilmar gosta mesmo é de se orgulhar das regalias que recebia por ser muito querido entre os funcionários do Banco Bamerindus. Tinha um carro à sua total disposição. “Até no Motel eu podia ir com o carro. Tô falando sério!”, diz sem vergonha de contar o quanto foi namorador em sua juventude. Depois, foi transferido para a cidade de Realeza, onde era conhecido por ter jogado bola. E, mais uma vez, sua boa fama lhe rendeu benefícios: o presidente do clube de Realeza se apressou em conversar com o gerente do Banco. “Ele vai jogar no time, se não os clientes vão tirar a conta do banco!”, alertou. Então, foi liberado para sair às cinco da tarde da empresa e ir para o campo treinar. Com isso, levou mais um título de um campeonato da região, até que o momento de fazer escolhas bateu à porta. “Aí eu comecei a ficar gordo”, diz dando risada. Como já não tinha tempo para treinar, passou a apitar os jogos e a função de juiz foi a sua última no mundo do futebol. “Se não queimaram os arquivos, até hoje tenho cadastro na Federação Paranaense de Futebol. Tenho diploma, medalha, tudo guardado em casa. Porque é muito fácil dizer que fiz isso tudo sem provar.” Foi sua experiência no Banco que levou sua irmã a chamá-lo para trabalhar no Circo Spacial, ajudando na divulgação dos espetáculos pelas cidades, auxiliando no marketing, na assessoria de imprensa e nas relações públicas do empreendimento circense. Passou a acompanhar de perto e com frequência as apresentações, o que fez com que não demorasse muito para ganhar outra função lá dentro. Na época, a dupla que se apresentava no picadeiro era Chupetinha e Chumbrega, sendo que o último acabou se machucando e teve que ser substituído por alguns dias. Surgia, então, a oportunidade de Pingolé descobrir se tinha afinidade com o espetáculo circense. “Por incrível que pareça, ensaiei de manhã e à noi28


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te já estreei porque eu conhecia as brincadeiras que eles faziam e era meio cara de pau”, conta. Ser “cara de pau”, no entanto, não fez com que ele não ficasse nervoso na estreia. Pelo contrário. “Mas claro que pra quem não estava acostumado, eu tremi quando vi o picadeiro lotado”. Mas, de lá, não saiu, até os dias de hoje. Quando se pintou de palhaço pela primeira vez, era preciso arranjar um nome característico, que fosse engraçado e marcante. Gilmar usou como ponto de partida o seu apelido de infância: Pingo. Quando nasceu, aos sete meses de gestação, Gilmar era muito magro e foi chamado de “Pingo de gente” pela madrinha. O apelido pegou. “Era Pingo aqui, Pingo ali”, lembra. Baseado em sua história ligada ao futebol, Gilmar escolheu a expressão “Olé” para juntar ao apelido de família, e então ficou: “Pingolé, o palhaço que só trabalha quando qué; Pingolé, o palhaço que rouba mulhé; Pingolé, palhaço que não tem chulé.”, se diverte fazendo rimas com o próprio nome de trabalho, justificando a escolha de algo tão gozador quanto ele próprio. Ele gosta de arrancar sorrisos e faria quantas combinações fossem necessárias para que concordássemos, através de gargalhadas, que o seu nome era totalmente próprio a um palhaço. Parecia uma criança buscando a aprovação dos pais para uma travessura que, sem saber, já havia cometido. O Gilmar, então, tornou-se Pingolé. Sem perceber, nesse momento, sua vida dividiu-se em dois, tornando tanto o Pingolé quanto o Gilmar, pessoas mais completas. O sorriso largo como o da irmã Marlene, as gargalhadas e a peruca peculiar trouxeram cor à vida de tantas crianças e adultos enquanto também adoçou a vida do menino de família simples que nasceu no interior do Paraná. O palhaço Pingolé tornou-se uma entidade. Mas isso não o isenta de ser quem é, uma pessoa séria e às vezes rígida, também como a sua irmã. Assim como suas referências circenses, a figura de palhaço que assumiu para si mesmo é uma figura tradicional. 29


por trás da lona: Memórias do Circo

E, seguindo os passos do Palhaço Carequinha do qual Gilmar escutava a música quando criança, Pingolé também tem uma canção para chamar de sua. No aniversário de vinte e cinco anos do Circo Spacial, a ideia de gravar um CD infantil abriu espaço para que Pingolé tivesse uma faixa dedicada a ele. “Quem é, que é/ O rei da palhaçada/ Que ama todo mundo/ Que ama a criançada?/ Quem é que tem/ Um baita barrigão/ E um sorriso embaixo do seu narigão?/ … Quem é/ Quem é?/ É o palhaço Pingolé!”. Seu interesse em participar das apresentações também foi influenciado pela vontade de passar mais tempo perto de sua mulher, Elaine, trapezista do Circo Spacial. Fora no circo em que eles dois se conheceram e decidiram casar. “São vinte e sete anos de circo e vinte e sete anos de casado”, diz com certa doçura e brilho nos olhos de quem ainda é apaixonado pela mulher. O amor pelo circo já era grande, mas uma história de amor o traria a certeza de que aquele lugar era o seu. Não era preciso fugir com o circo por amor. O amor estava dentro do circo e iria com ele para aonde quer que fosse. Apesar de ter começado a se apresentar como palhaço, ele continua ajudando nas questões administrativas, como escolher terrenos para montagem do circo. Sua figura é referência para os mais novos e sua experiência lhe garante capacidade para ajudar a tomar decisões importantes sobre os espetáculos e todo tipo de mudança na estrutura. Dessa forma, passado e presente se misturam. Um gesto, as palavras que saem da boca de forma delicada para construírem sugestões, o olhar concentrado nas crianças, tudo isso remete ao século XIX, quando começa a se registrar no Brasil a presença de famílias circenses da Europa. Elas trouxeram lonas, animais, números, muitos e muitos artistas. Envoltos, sempre, em uma tradição em especial: a da transmissão oral dos saberes. Como ressalta Ermínia Silva, “a transmissão do saber circense fez desse mundo uma 30


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escola única e permanente”. Gilmar sabe disso. Além de seu envolvimento com o lado técnico do circo, Gilmar sabe do valor da cultura e do estilo de vida circenses e assumiu para si, quando se tornou palhaço, a responsabilidade tradicional de repassar o que só se aprende no circo. Por esse motivo, não abriu mão da oportunidade de passar o que sabia para seu sobrinho Roger Querubin de Souza, hoje com vinte e três anos e conhecido como palhaço Buguinho. Buguinho é filho do Circo Spacial, assim como Roger, que nasceu em Araraquara quando o Circo estava instalado na cidade. Filho de circenses, sobrinho de Marlene Querubin e do Palhaço Pingolé, ele cresceu no circo, mas também fez do circo sua escolha: é formado em Artes Cênicas e hoje não se vê fazendo outra coisa. Mas, apesar da formação acadêmica, foi com Pingolé que ele aprendeu o que era ser palhaço. Em um sábado de trinta e cinco graus celsius em São Paulo, Buguinho preferiu fazer sua maquiagem dentro de sua casa, um trailer branco e laranja, modelo Brilhante, da marca Turiscar, que entre tantas outras coisas importantes para a moradia, tinha um importantíssimo ar-condicionado. Enquanto pintava a cara de branco, explicou que seu apelido o acompanha desde que nasceu – no circo. Sua mãe se vestia de macaco durante um número de dois palhaços e só ao final da esquete é que revelava que era uma mulher. O nome do animal interpretado por ela era Bugão. “Quando ela ficou grávida, teve o Buguinho. Aí o apelido pegou. Se você chegar aqui no circo e perguntar se o Roger está, a pessoa vai olhar pra você e perguntar quem é Roger. Eu sempre falo pra procurar pelo Buguinho”, conta o jovem palhaço. O apelido o acompanha desde 24 de setembro de 1990, quando ele nem sequer imaginava que, um dia, estaria no picadeiro, apresentando-se como palhaço ao lado de seu tio. Cerca de treze anos depois, recebeu o primeiro convite de Pingolé para fazer uma experiência e ser seu colega de profissão por 31


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alguns dias. Os dias tornaram-se mais de dez anos. “Por causa disso, de certa forma, todo mundo acha que o Pingolé é o meu pai”, conta. “Ele é meu parceiro de carreira inteira; foi ele que fez o convite pra eu trabalhar com ele pela primeira vez e é com ele que eu trabalho até hoje. Todo o meu aprendizado vem dele. E até mesmo o aprendizado sobre a vida, porque a gente conversa muito”. Buguinho foi adquirindo experiência ao longo das apresentações que fazia, sempre com Pingolé por perto para dar dicas, comentar erros, enaltecer acertos. Brincalhão, ele não esconde o fato de não ter uma boa memória, tendo sido uma dificuldade enorme lembrar os nossos nomes quando fomos conversar pela segunda vez. Mas muitos momentos no picadeiro, ao lado do tio, não foram, de modo algum, esquecidos. Em mais uma de muitas ajudas que Pingolé ofereceu ao sobrinho antes de entrarem no picadeiro, o experiente palhaço entregou um papel a Buguinho para que ele lembrasse de suas falas durante a apresentação. “Toma aqui esse papel, vai tranquilo, eu te ajudo, vou estar lá em cima”, disse, tentando acalmar Buguinho. “Teve uma vez em que eu já tava começando a ir bem, que ele parou de me ajudar um pouco. Eu lia a frase que eu tinha que falar e já lia qual era a próxima. Só que uma vez eu li a próxima, já estava bem no final da esquete, e guardei o papel. Na hora que eu guardei o papel, uma criança falou ‘eu vi o palhaço guardando um papel!’. Me deu branco, eu esqueci tudo. E não ouvi o Pingolé falando. Um apagão geral. Aí que só lembro do Pingolé falando ‘pega o papel no bolso!’, me zoando”, lembra Buguinho, com um sorriso no rosto, ainda não totalmente maquiado. A cada vez que passava a base branca, propriamente artística, ele também despejava um pouco de talco de bebê numa flanela laranja para depois, dar leves tapinhas no rosto com a flanela. O talco grudava na pele e ajudava a segurar a maquiagem. Esse processo foi 32


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repetido com mais intensidade no queixo e na faixa das pálpebras, se estendendo até à sobrancelha. Colocando pequenas quantidades de tinta preta artística em um pincel amarelo, e olhando-se em um pequeno espelho de maquiagem, ele contornou a linha inferior dos olhos, e caprichou em linhas grossas nas sobrancelhas. Ainda sem qualquer tremor nas mãos, ele parou de falar por alguns instantes para que desenhasse os lábios. Qualquer instante de silêncio, que são poucos já que ele preenche qualquer espaço com sua simpatia e bom humor, Buguinho aproveitava para pedir desculpas pela bagunça. Seus inúmeros objetos espalhados pelo trailer até que eram poucos para quem guardava pertences e objetos de uma vida inteira dentro de 4,8 metros de comprimento. Uma cama de casal, alguns armários, um banheiro simples, geladeira, fogão, pia e uma salinha com mesa para as refeições faziam daquele espaço a independência do jovem palhaço. “Morávamos eu, meus pais e minha irmã num trailer. Chegou uma hora que nossas coisas não cabiam mais dentro da casa. Meu pai perguntou se eu queria um carro ou um trailer. Eu escolhi um trailer”. Trailers. Brancos. Marrons. Laranjas. Novos. Velhos. Limpos. Empoeirados. Não importa. Se servem de casa para os artistas, é quase como se servissem também como casa para o próprio circo. Difícil não pensar na lona, nos seus espetáculos, nas pessoas que rodopiam e correm de um lado para o outro, sem imaginar que, mais tarde, tudo estará em silêncio com essas cabeças encostadas em um travesseiro no fundo desses veículos. Sensação parecida se tem com os palhaços. Altos. Baixos. Magros. Gordos. Pintura forte no rosto. Maquiagem leve. Uns causam medo. Outros só conseguem provocar o riso. Mas o circo não vive sem eles. Pelo menos não no imaginário de todos nós. Buguinho e Pingolé fazem parte de mais uma geração de palhaços, que sempre têm a missão de produzir memórias. Perpetuam, com muito pó de arroz e nariz vermelho, legados 33


por trás da lona: Memórias do Circo

deixados por duplas que existiram bem antes deles, como Chevrolé e Parafuso, Pintinho e Chupetinha, Atchim e Espirro, que estavam debaixo da lona já antes dos anos 1980. Buguinho não foi a primeira dupla de Pingolé. Não na lona. Talvez nas brincadeiras de criança, nas aulas – como podem ser chamadas – itinerantes da vida de circense. Mas, experiente, a solidão do circo não atingiu Gilmar. Em 1986, nascia o palhaço Paçoca, criação de Antonio Quintino da Silva, oriundo de Juazeiro do Norte, no Ceará. Pouco tempo depois, nos anos 90, os dois andavam sobre o mesmo picadeiro, um prestando muita atenção nos movimentos do outro, para que o riso inocente das crianças e a risada decidida dos adultos fossem garantidos. Ambos tinham em comum o fato de terem aprendido o que sabiam no dia-a-dia, por meio da observação e da experimentação, contracenando com outros palhaços em outros momentos. Um procedimento natural. Para o circo. A personagem e o repertório vão, aos poucos e com calma, sendo estruturados e levados ao momento da apresentação. O aprendizado é encenado para o público. A cena gera conhecimento. E, de repente, sabe-se de muita coisa, faltando, ainda, saber muito mais. Do mesmo jeito que Buguinho, o jovem palhaço, se orgulhava em dizer que morava sozinho em um trailer, além de ter seu próprio carro, Pingolé, o experiente palhaço, fez questão de nos mostrar a razão de suas mãos levemente sujas de graxa. Olhou para nós de modo a parecer implorar para que pedíssemos para conhecer sua verdadeira casa. Seu jeito ansioso, de quem pergunta e já dá a resposta, não esperou nem por segundos uma reação. Não fosse pela mão suja, teria nos puxado pelo braço, com carinho, mas determinação. Andou na frente, com passos cuidadosos, desviando da lama formada pela chuva do dia anterior e dos pedregulhos do terreno. Um motorhome metálico, pintado em azul, de doze metros de comprimento estava estacionado há poucos passos de seu 34


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camarim colorido, em que ele se transforma em alegria. “Estou vendendo, você conhece alguém que queira comprar?”, perguntava o Pingolé assumindo novamente o papel do Gilmar, pai de família. O veículo, assim como o dono, era igualmente “experiente”, já que acompanhou muitas viagens do circo, das quais o palhaço se orgulha. No circo, ele encontrou a oportunidade de conhecer diferentes lugares, aos quais ele talvez jamais fosse se não tivesse escolhido aquela carreira. “Conheço todas as cidades do Brasil de trás pra frente! Passei por Paulo São, passei em Araraquara e cutuquei a Arara com a Taquara, passei o Janeiro no Rio, passei em Santo Antônio do Pinto...”, diverte-se com sua trajetória. Hoje, Gilmar Querubin não se vê fazendo outra coisa e não vive sem se transformar em Pingolé por algumas horas. E avisa que tem uma “cabeça de vinte anos”, embora o corpo não o ajude mais a fazer tudo o que fazia antes. “E minha cara virou maracujá, meus cabelos caíram, mas minha voz continua a mesma”, falou, dando risada e inclinando a cabeça para trás. Depois de tantos anos de circo e de vida, a sensação é a de que sempre que tem a oportunidade, puxa um banco, senta e deseja que alguém o acompanhe enquanto ele conta sua história – dentro e fora da lona – da qual se orgulha muito. As marcas que traz no rosto e o tom de voz avisam ao interlocutor que, além disso, ele também sempre está pronto para dar conselhos nos quais acredita, depois de ter vivido as situações que ele conta. “Vocês são jovens, têm que aproveitar a vida, porque depois ficam velhas, casam, aí é outra vida”, diz, com voz doce, aquilo que poderia muito bem ter saído da boca de um avô preocupado com o futuro das netas. Logo retoma o assunto do circo, de sua carreira, considerando que essa é sua obrigação naquele momento. Ao final de tudo, pede para que o gravador seja desligado, agradece, coloca-se à disposição “para o que precisar” e diz, antes de soltar uma longa gargalhada, “agora vamos falar sobre vocês”. 35



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o produtor

E

ra domingo à tarde e o público se revezava entre a fila da pipoca e aquela para entrar na lona e ocupar os lugares do primeiro espetáculo do dia, que começava às 15h30. Crianças posavam para fotos ao lado de animais feitos em fibra de vidro. Girafa, elefante, tigre e macaco eram alguns dos que decoravam o espaço, que comporta o público antes e depois das apresentações, antecipando o mundo mágico da selva para a qual seriam transportados em alguns minutos. Algumas crianças esperavam ansiosas pela primeira vez em que entrariam em um circo e os pais, que em sua grande maioria haviam assistido a um espetáculo há muito tempo, quando ainda tinham a idade de seus filhos, pareciam ter esquecido que estavam prestes a viver um mundo lúdico e encantador. 37


por trás da lona: Memórias do Circo

No caminho até o lugar em que todos os esforços para esse mundo de fantasia nascer estão concentrados, atravessamos a plateia ainda vazia e subimos a pequena escada que leva ao picadeiro para, depois, cruzar as cortinas que separam o espetáculo dos bastidores. Em camada dupla, os tecidos pretos primeiramente levam à escuridão para depois elucidar um espaço amplo, em que tudo acontecia: os bastidores do circo. Enquanto descíamos uma rampa de madeira que levava ao nível do chão, uma figura sorridente se aproximava. Em passos rápidos e curtos, que se observados com calma pareciam pequenos pulos, nos recebeu com cumprimento no rosto e anunciou discretamente a sua marca registrada: a simpatia. Magro e não muito alto, já estava com a maquiagem pronta. Metade de seu rosto, da testa ao nariz, estava pintado de branco, e um risco preto e fino ia da parte de baixo de seus olhos até as têmporas. Um desenho arqueado demarcava suas sobrancelhas, dando-lhe mais expressão. Sua roupa de veludo molhado era composta por uma peça única verde musgo que, como um macacão, ia até os pés. Em cima, o smoking vinho de cauda com gola preta tinha a parte da frente despontada o suficiente para tornar-se informal. Os sapatos eram bem colados aos pés, como botas de couro preto, próprias para dança. O chapéu verde brilhante era pequeno demais para ser uma cartola e grande demais para ser um chapéu coco, mas dava o toque final em sua roupa de anfitrião. A roupa caía-lhe bem. E o papel de receber as pessoas caía-lhe melhor ainda. Junior Lima é atualmente produtor do Circo dos Sonhos e cabe a ele a função de fazer a ponte entre os artistas e a parte administrativa do circo. Nos espetáculos, não dispensa pequenas aparições no palco e as faz, hoje, como ajudante, que coloca objetos integrantes de números, auxilia algumas coreografias e, 38


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entre tantas outras assistências, ajuda a dar mais graça ao ambiente. Essa é uma função que exige bastante, já que é necessário estar atento a todos os números para entrar na hora certa e não deixar ninguém na mão. Seria uma correria, se o responsável pelo cargo não fosse Junior. Como alguém que tem “olhos nas costas” e uma audição mais aguçada do que o normal, ele entra e sai do palco com a maior naturalidade e calma que um artista poderia ter, sem nunca deixar de ajudar seus amigos no momento exato. Construindo um número à parte, em uma espécie de making of que só poderia ser assistido uma única vez por aqueles que estivessem de “folga”, ainda consegue tempo para conversar com quem está por perto, fazer brincadeiras e dar risada. Sai correndo do palco, atravessa as cortinas e vem em nossa direção após quase todas as suas aparições para nos contar algum detalhe ou até mesmo curiosidade sobre as pessoas que ali trabalham e sobre o Circo dos Sonhos. Com todas as apresentações acontecendo logo ali na frente. Junior não precisa de muito para contar sua história, já que adora falar e tem orgulho de sua trajetória. Seu rosto jovem, sem marcas de cansaço, engana a qualquer um. Aparenta estar ainda nos seus vinte e poucos anos, mas, aos trinta e um anos de idade, tem mais experiência do que qualquer um imagina, por ter presenciado momentos marcantes para a história mundial do circo. Ibison Lima Silva Junior nasceu em 2 de julho de 1983, no Rio de Janeiro. Na época, sua mãe, Sandra Lucia dos Santos, trabalhava no Circo Bartolo, que estava em Minas Gerais, mas como era nova por lá, preferiu ir até o Rio de Janeiro, onde estava sua família, para que ele nascesse em um ambiente mais acolhedor. Porém, foi no circo que ele cresceu e se tornou quem é. Olhando firme em nossos olhos, com um sorriso no rosto, as mãos cruzadas sobre a mesa da sala de estar de seu trailer, é assim que 39


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começa a nos contar sua história, de forma cronológica, embora goste de fazer pausas para relembrar fatos do presente ou falar de assuntos relacionados com o que viveu. Ele faz parte da terceira geração circense de sua família. Seu pai, Ibison Lima Silva também nasceu no circo, assim como os avós. Sandra não tinha tradição circense, morava no Rio de Janeiro e era professora, mas passou a viver no circo e trabalhar na área administrativa depois de se casar com Ibison. Primeiro nasceu José Carlos, depois Junior e, por último, as duas irmãs, Bruna e Vanessa. Hoje, todos trabalham no circo. O pai, no Circo dos Sonhos, na unidade Vermelha. Seu irmão mais velho, conhecido como Hulk, está no Circo de Moscou, e sua mãe e irmãs têm funções no Big Brother’s Cirkus. Mesmo após a separação de seus pais, Sandra não voltou para a cidade como todos pensaram que faria. Quem conhece a vida no circo, dificilmente o abandona. E, ao lado dos irmãos, Junior também teve contato com essa vida. Chegaram a trabalhar todos juntos no Circo Garcia e no Big Brother’s’s. Não por muito tempo, mas o suficiente para que a irmã Vanessa, de 27 anos, tenha guardado memórias, mesmo se considerando péssima para se lembrar do que viveu. Do outro lado do telefone, uma voz doce e simpática diz um “oi” extremamente animado, colocando-se à nossa disposição para responder a qualquer coisa sobre o irmão produtor. Não se lembra de muita coisa, é verdade, e a timidez prejudica ainda mais a lembrança. Mas a preocupação de Junior com a família é recorrente na fala de Vanessa e exemplificada com as poucas histórias que conseguiu contar. “Eu e o Junior fizemos um número de bambu juntos no Garcia. Sofremos até um acidente. A corda que ficava amarrada no meu pé arrebentou, e eu segurava ele. Nós dois caímos. Quando eu caí, desmaiei, e o Junior quebrou o pulso. Mas na hora ele ficou tão preocupado comigo que nem percebeu. Só de40


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pois é que ele se deu conta”, relembra. Com toda essa tradição passada de geração em geração, era difícil que Junior não seguisse os mesmos caminhos. Ainda quando era criança o suficiente para não precisar – e nem ter ideia – escolher sua profissão futura e quando tudo se resumia à frase “quando eu crescer, eu quero ser...”, fez sua primeira entrada no picadeiro, aos sete anos de idade. Naquela época, os espetáculos contavam com pequenas inserções, entre os diferentes números, de personagens consagrados, como o Pica-Pau. Junior entrava com essas fantasias e, mais tarde, começou a fazer parte da abertura do espetáculo. Mas não era ali que se sentia mais à vontade. Por sempre acompanhar a mãe nas tarefas administrativas, aprendeu a cumprir algumas funções e, aos treze anos, já ajudava no caixa da lanchonete. Ao contrário das outras crianças também nascidas no circo que, desde pequenas, faziam treinos físicos. Desde muito pequeno, Junior se descobria diferente. “Eu nunca me achei um artista talentoso. As crianças davam salto mortal e eu caía de cara no chão. Sempre fui o patinho feio, não conseguia fazer as coisas”. Sua falta de habilidade no picadeiro era compensada por outro lado. “Pelo contrário, eu era um estudante muito bom. Cheguei a estudar em dezenove escolas em um ano, e sempre que eu chegava, eu era o melhor aluno da sala”. A família concorda e admira o lado estudioso do irmão do meio. “Lembro de uma vez na época da escola que ele tirou 9 e chorou demais. Ele sempre ensinava umas coisas da escola pra mim, eu é que não tinha muita paciência”, diz Vanessa. A sua facilidade com os estudos o incentivavam a abandonar a carreira circense, mas o seu amor pelo circo o mantinha dentro da lona. Durante esse impasse e essa dúvida sobre qual caminho seguir, Junior acabou ficando no circo até os dezenove anos, desempenhando funções administrativas e pequenas participações nos 41


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números. Sentindo falta dos estudos e levando em consideração que gostava muito de se comunicar, decidiu fazer faculdade de Jornalismo e ficou fora de seu primeiro ambiente de trabalho por dois anos. As palavras, as teorias da comunicação, os livros que teve que ler o encantaram, mas não o suficiente para impedir que a saudade apertasse. Voltou. E foi então que descobriu o que queria realmente fazer. Aos vinte e um anos, Junior foi para o Circo Venegas, de seu padrasto, decidido a voltar para esse universo. Então, começou a ensaiar e chegou a fazer números de acrobacia no bambu. Mas, um imprevisto com o apresentador do circo abriu portas para que ele tentasse algo diferente. “Acho que eu consigo me comunicar e falar bem. E o apresentador não tem só que apresentar. Porque às vezes acontece alguma coisa, e você tem que saber contornar a situação e ter jogo de cintura. Acho que sou bom nisso”, pondera. Ouvindo-o falar assim, não há como discordar. Junior não só gosta de falar, como se expressa bem e transmite, junto às suas palavras, o seu bom humor. Se não for interrompido por ninguém, pode falar por horas a fio, sempre se lembrando de algum detalhe que se esqueceu de contar e, se por preciso, fazendo perguntas para si mesmo, divertindo-se em dar respostas que sempre quis dar. Enquanto Junior contava como descobriu que queria ser apresentador, os bastidores do Circo dos Sonhos começavam a se agitar. Os artistas chegavam aos camarins, montados dentro de dois grandes baús de caminhão. À esquerda, o local reservado às mulheres. À direita, os homens tomavam conta do veículo. Aquele espaço era necessário e de extrema importância, já que grande parte da equipe de sessenta pessoas não mora no circo. Moradores da cidade de São Paulo, a maioria dos artistas, entre palhaços, malabaristas e trapezistas, chegam pouco antes da 42


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apresentação e se dirigem direto aos caminhões, onde vestem suas roupas, fazem suas maquiagens, ensaiam e se divertem conversando entre si. Já vestidos, de cara pintada, a família do Circo dos Sonhos – como gostam de se denominar – perambulava por trás do palco. Alguns se alongavam no chão. Outros pulavam e faziam acrobacias na cama elástica que ali estava posicionada, sem medo de se machucarem, embora frases como “não vai se matar aí não, hein!” fossem reproduzidas aos montes quando alguém se arriscava. Não havia espaço para o nervosismo. Mesmo em se tratando do início da temporada. Há duas semanas, no dia 11 de maio de 2014, o Circo dos Sonhos havia feito sua estreia no estacionamento do Mooca Plaza Shopping. O espetáculo “Quyrey - Uma Aventura na Selva” contou com a participação de um dos maiores representantes do circo no mundo midiático, o ator e circense Marcos Frota. Antes de declarar o seu amor por aquela atividade, o ator contou que ainda criança sonhou pela primeira vez em ser artista quando foi ao circo, em sua cidade natal Guaxupé, em Minas Gerais. Considerado o Embaixador do Circo no Brasil, Marcos Frota resumiu o espetáculo que estava prestes a estrear como “muito mais que um show de circo, é um tributo e uma homenagem” e lembrou a frase de Orlando Orfei: “O circo nunca vai morrer. Enquanto houver uma criança, sempre haverá um circo. E onde houver um circo, aqueles que têm amor no coração voltam a ser crianças”. E de criança, aquele lugar estava cheio, contrariando o pensamento atual de que quase não há mais pessoas interessadas em ir ao circo. Nesse dia, o público convidado lotou a capacidade máxima de 1500 pessoas do Circo dos Sonhos, em sua unidade fixa na cidade de São Paulo. A equipe conta com mais duas lonas, denominadas como Vermelha e Lilás, que, com uma equipe menor, viajam pelo país. 43


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“Eu junto minha mão à sua, junto meu coração ao seu, para fazermos juntos aquilo que sozinho não consigo”, diziam os artistas do Circo dos Sonhos, abraçados uns aos outros em uma grande roda, antes do primeiro espetáculo de domingo. Junior foi o último a se juntar ao grupo. Preocupado em nos deixar à vontade nos bastidores, teve que ouvir seu nome sendo chamado por seus colegas para se juntar a eles, porque já era hora de entrar no picadeiro. “Agora é o momento de a gente rezar, calma aí”, disse, como se estivesse pedindo licença. Foi, mas voltou a cabeça para trás, perguntando com o olhar se estava tudo bem. E se afastou, de forma sutil, para poder completar o círculo atrás das cortinas do palco. Junior rezou. E logo após entrou no camarim para pegar um pequeno pedaço de papel, levemente amassado – sinal de que era usado repetidamente nos dias em que havia show. Com o microfone em mãos, ainda atrás das cortinas do picadeiro, começou a dar os avisos antes que o espetáculo começasse. “Atenção para as empresas que estão patrocinando esta temporada”. Sem nem mesmo respirar fundo ou concentrar-se antes, Junior leu toda a sua frase como se continuasse conversando informalmente. Enquanto falava o nome das empresas, olhava-nos e sorria, grato em mostrar parte da sua função preferida. “As empresas que apoiam e incentivam a arte e a cultura circenses”, encerrou se aproximando novamente com o sorriso no rosto. Desligou o microfone e suspirou aliviado por ter cumprido, mais uma vez entre tantas, a sua tarefa. As luzes do picadeiro se apagaram, e a correria, enfim, começou. Junior correu, com seus passos apertados e rápidos, para fazer a entrada em um dos primeiros números. Voltou e começou a conversar sobre assuntos externos ao circo com a maior naturalidade do mundo e como se tivesse o dia todo para falar sobre o 44


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que quisesse, mesmo sabendo que dentro de poucos minutos teria que atravessar a cortina novamente. Tratava-nos como amigas e mantinha a conversa sempre em um tom leve, com gargalhadas e tapinhas na perna e nos ombros entre cada assunto. O sorriso parece ser – e é, em se tratando de circo – a ferramenta de trabalho de Junior. Só que, para ele, não há uma barreira entre a alegria e o trabalho. O sorriso faz parte dele e a vivacidade que demonstra no palco é a mesma que ele carrega fora deste. Durante todo o espetáculo e os bastidores, faz questão de manter essa expressão no rosto - sem sacrifício -, sendo simpático com seus colegas de trabalho e amigos, com o público, com os funcionários. Dessa forma, todos ali o conhecem. E fazem questão de dizer que ele é a alegria em pessoa. Para tirar um pouco de seu ânimo, só mesmo o frio, com quem ele briga de tempos em tempos, por detestar temperaturas baixas. E naquele dia, o frio não perdoava. Já era próximo das cinco horas da tarde e a temperatura estava caindo rapidamente. Vestindo uma blusa de frio, Rodrigo Orion, namorado de Junior, aproveitou o tempo que tinha até a próxima apresentação, e sutilmente ocupou o lugar deixado por Junior segundos antes. Apresentou-se, perguntou nossos nomes e logo depois suspirou, em uma mistura de cansaço e reflexão, antes de dizer: “O Junior é a figura desse lugar”. ëëë

Três dias depois o ambiente do circo ainda tinha aquela aparência tranquila. Faltavam duas horas para o show começar e muitos funcionários ainda não estavam no local. No Circo dos Sonhos, os espetáculos acontecem em três horários diferentes aos sábados, domingos e feriados. Era quinta-feira de primeiro de maio, ironicamente, mais um dia de trabalho para quem fazia parte do elenco. 45


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Do outro lado da lona que cobria o circo, trailers dividiam espaço com equipamentos, cabos de aço que sustentam a estrutura, gatos e cachorros. Eram poucos trailers, já que na matriz do Circo dos Sonhos, a maior parte dos artistas mora em suas casas fixas. Quem mora ali no circo é quem realmente está acostumado com essa vida, e não se imagina longe da lona, mesmo nos dias em que não há espetáculo. Para os que nasceram no circo, estranho é residir fora desse lugar. Junior é um deles. Sempre viveu em circo e possui um trailer próprio, em que nos recebeu, não sem antes dizer “não reparem na bagunça”. Sentamos em um sofá em forma de “u”, com uma mesa de madeira ao centro. Todo o sofá era cercado por janelas e, acima delas, armários que não mostravam facilmente o que guardavam. O trailer era grande, modelo Diamante, com mais de seis metros de comprimento. Além do sofá, havia pia, fogão, geladeira, outra mesa para refeições, banheiro com box e uma cama de casal na outra ponta. Tinha o suficiente para acomodar quatro ou até seis pessoas, mas o espaço era, na verdade, dividido entre dois. Junior e Rodrigo moram juntos desde que chegaram ao Circo dos Sonhos, há quase dois anos. Em cima da mesa de madeira, dois pequenos peixes estavam em aquários separados, com pedrinhas coloridas no fundo. “Como é o nome dos peixes, Rodrigo?”, perguntou, aumentando o tom de voz para que seu interlocutor, que terminava de se arrumar no quarto, pudesse escutar. “Ele vive mudando o nome dos peixes”, riu, como se estivesse contando um segredo. “Até eu não lembro mais! Um era Steven... E o outro era David”, respondeu Rodrigo enquanto penteava os cabelos. “Sou casado com o Rodrigo. Sim, o pestinha”, explicou Junior quando perguntamos se aquele a quem se referia era o que continuava arrumando os cabelos no quarto, agora com ajuda do secador. Junior e Rodrigo estão juntos há quatro anos, mas des46


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de que começaram a morar juntos, fazem questão de dizer que estão casados. Ambos nasceram no circo e a construção do sentimento que os une carrega muito desse universo. Eles já haviam se encontrado quando Rodrigo ainda era criança. A aproximação se deu mesmo quando Junior foi, pela segunda vez, para o Big Brother’s Cirkus. “O mais engraçado é que geralmente quando faço amizade com alguém, acaba qualquer tipo de interesse. Vira amigo e acabou”, explicou, enquanto apoiava as mãos em cima da mesa, sobre sua facilidade em fazer amigos e a maneira como pensava que jamais teria interesse por seu atual marido, como gosta de dizer. “As pessoas falavam ‘Ah, você e o Rodrigo...’ e eu falava que não tinha nada a ver. A família dele ainda nem sabia abertamente da homossexualidade dele”. Mas, como a maior parte dos acontecimentos da vida de Junior, portas abrem-se e coisas inesperadas acontecem. “Ficamos muito próximos e foi acontecendo, acontecendo, acontecendo...”, relembra em tom nostálgico. Junior gosta de contar sobre sua história de amor e demonstra sempre muita admiração pelo namorado e também marido. “Ele sempre foi um prodígio, um artista espetacular”, elogiava de boca cheia, enquanto explicava que foi o talento de Rodrigo que os trouxe até o Circo dos Sonhos. Tinham um relacionamento há dois anos quando Rodrigo recebeu uma proposta para trabalhar no Circo dos Sonhos e ganhar o dobro de seu salário de então. Era irrecusável. Mas era uma oportunidade que, a princípio, restringia-se apenas a ele. Não havia proposta de trabalho para Junior, que além de apresentador do Big Brother’s Cirkus, já era também Diretor Artístico. Estava em uma posição confortável. Mas, segundo os dois, àquela altura já não havia mais a possibilidade de ficarem separados. “O Rodrigo disse que só iria se eu fosse também. Então nós decidimos: ele foi na frente e eu fui quinze dias depois”. Como no 47


por trás da lona: Memórias do Circo

Circo dos Sonhos não há a figura do apresentador, Junior teve que começar tudo de novo. “Entrei vendendo pipoca, não conhecia quase ninguém aqui. Eu não tinha contrato nem nada, eu vim porque ele veio”, conta em tom de voz firme, mas cheio de emoção nos olhos. Junior pode não ser um acrobata talentoso, mas é um pequeno notável. Com seus 1,73 metros de altura, o sorriso gigante e a força de vontade maior ainda, ele foi logo reconhecido. Conquistou, mais uma vez, o seu espaço e ganhou a atribuição de coordenar os bastidores do circo. Depois começou a organizar os artistas e, hoje, é Produtor do Circo dos Sonhos. Apostaram numa ambiguidade: um tinha o emprego garantido; o outro tinha o árduo trabalho de construir mais uma etapa profissional de sua vida do zero. As coisas deram certo e, hoje, ele e Rodrigo dividem a casa, a vida e o picadeiro. Rodrigo William Luiz Ferreira tem 19 anos, sendo, então, 11 anos mais novo que Junior. A diferença de idade não impediu que eles se apaixonassem e, hoje, parece, inclusive, ajudar no relacionamento. Junior tem espírito de criança e demonstra ter muita paciência para acompanhar Rodrigo em seu amadurecimento. Rodrigo é o jovem talento, a pedra rara ainda sendo lapidada. Faz acrobacia em tecido, lira e corda. Mas sua habilidade já o fez dele professor, dando aulas no próprio Circo dos Sonhos. Junior parece às vezes ser o mentor de Rodrigo, o seu apoio e também sua alegria. “Eu nunca vi uma pessoa tão bem humorada. Eu acordo de mau humor e ele já levanta cantando”, disse Rodrigo enquanto se alongava no solo. “Ele só é muito ciumento”, completou dando uma risada meio tímida. Quem acompanha Junior nas redes sociais, nas quais ele é bastante ativo, percebe isso de longe. Além do frio, o que o tira do sério é alguém mexer com Rodrigo. Junior mantém seu Facebook sempre atualizado com fotos dos espetáculos, desabafos pessoais, letras de músicas e muitas 48


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fotos com os amigos - a maioria deles, artistas circenses -, em noites de conversa jogada fora no trailer e também em muitas festas. Rodrigo e Junior compartilham da mesma juventude. Saem todos os fins de semana. Mesmo depois de seis espetáculos. A noite, então, vira sua melhor amiga, com festas como a Gambiarra, a preferida dele. “Gambiarra é uma balada de artista, então quem tem DRT paga meia e as pessoas que vão são geralmente quem não trabalha de segunda, ator, gente de circo e tal”, explica Junior, que se diz ser um “Gambiarreiro”. Hoje, Junior sabe o que faz e tem muita segurança em ser quem é. Nem sempre foi assim. Certamente, assumir a sua homossexualidade foi descobrir um novo mundo. Até os dezenove anos, quando vivia com sua família no circo, ele nunca tinha conversado sobre isso com seus pais, apesar das irmãs e alguns amigos já terem algumas dicas. “Apesar de ter sido apenas há dez anos, o mundo era diferente em relação à homossexualidade. Quando eu estudava, não tinha nenhum gay assumido na escola. Eu não tinha contato com esse mundo”, conta sem timidez ou pudor. Os dois anos que passou estudando Jornalismo no Rio de Janeiro foram decisivos. Morar com a avó, muito religiosa, que o queria sempre dentro de casa, o fez perceber que algo precisava mudar. Foi quando Junior deu uma pausa nos estudos, a princípio com previsão de seis meses, e foi para o Circo Venegas. Ao conviver com o irmão de seu padrasto, que é homossexual, percebeu que não era o único. “O circo estava em Votorantim e, um dia, fomos para uma praça comer um lanche. Vi um grupo de meninos que identifiquei como gays. Nos aproximamos e a partir daí comecei a ter contato com esse universo, com as gírias, as festas”, relembra como quem nunca mais vai esquecer o marco de sua vida. “Percebi que existiam mais pessoas como eu, que não eram uma aberração. Acho que eu nunca cheguei a 49


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pensar que eu era uma aberração, mas sempre fui uma pessoa diferente”, pondera. E diferente ele é, mesmo. Não pela sua homossexualidade. E sim por sua história. Os seis meses se tornaram dez anos, e Junior nunca mais voltou para o Rio de Janeiro e para o Jornalismo. Ainda quando era criança, Junior já entrou para a história do circo. Aos três anos de idade ele se mudou, junto com sua família, para o Circo Garcia que, durante sua existência, entre 1928 e 2002, foi um dos maiores circos da América Latina. Era, praticamente, um universo e um acontecimento à parte. E, desde muito cedo, Junior se viu, pequeno, em meio às pernas bagunçadas, às maquiagens em cima da mesa, aos trailers, às vozes de mais de 300 pessoas que faziam parte daquela que, na sua opinião, era uma “grande família”. Que, por esse motivo, via diariamente pessoas brincarem, ajudarem umas às outras, e também brigarem. Tudo pelo aprendizado. Tudo pelo bem do Circo Garcia. Não foram poucas as vezes que as cidades brasileiras assistiram trailers e mais trailers passarem pelas ruas, acompanhados de três elefantes, carretas de macacos, leões, zebras, girafas e sabe-se lá mais o que. Era o fantástico mundo do Circo Garcia anunciando sua chegada. Um grande acontecimento na vida de quem tinha a oportunidade de ver a cidade ganhando outras cores. E Junior presenciou muitos grandes acontecimentos. Assim como criou fortes vínculos com quem conviveu dentro do Circo Garcia. Relações que se mantêm até hoje, por conta principalmente, segundo ele explica, da falta de rotatividade que ali existia, coisa rara nos picadeiros atuais. “O que eu acho mais interessante é que lá não tinha muita rotatividade. Quem chegava, ficava por 10, 15 anos. Por isso todos têm um vínculo muito grande. Nós que nascemos e fomos criados lá ainda temos esse vínculo. Mesmo que tenha dispersado, a gente ainda se encon50


junior, o produtor

tra. As pessoas sempre falam ‘Ah, chegou o pessoal do Garcia’. Eles já sabem que a gente vai se juntar e fazer muita festa. Todo mundo era festeiro. Esse era o diferencial lá”, conta, nostálgico, esperando pelo próximo encontro dessa turma. De lá, Junior também tirou aprendizados que só a convivência com diferentes culturas pode proporcionar. Conviveu com poloneses, chineses, americanos, equatorianos, chilenos, numa espécie de volta ao mundo sem sair do lugar. “Era uma mini ONU”, compara, sem perceber o quão sofisticada pode soar a comparação. A própria dona circo, Andréa Françoise Carola Boets, conhecida por Carola, apresentou-lhe uma cultura diferente. A belga. E logo abriu um mundo de possibilidades e conhecimentos que Junior jamais poderia ter imaginado e, justamente por isso, ainda traz em sua memória recordações tão vivas e boas dessa figura. Com fluência em nove línguas, depois de ter viajado por tantos países diferentes, Carola era uma verdadeira referência sob a lona. De personalidade dócil e simpática, não raro era vista rodeada por crianças sedentas em arrancar-lhe o máximo de aprendizado possível. “Ela foi e ainda é o mito no mundo do Circo. É um dos símbolos mais importantes do circo brasileiro, apesar de não ser brasileira”, demonstra sua admiração de menino, agora adulto. Com pouca idade, Junior mal podia ajudar na rotina do circo, embora vontade não lhe faltasse. Aproveitou, então, sua curiosidade para observar cada passo, cada alongamento e cada acrobacia no trapézio. “Mesmo não trabalhando lá, eu via de perto alguns dos melhores artistas de circo do mundo”, agradece a experiência. “Ter contato com esses artistas de um nível absurdo foi muito importante artisticamente, além do intercâmbio cultural que me proporcionou”. Ingênuos seriam aqueles que achassem que, como criança, Junior buscava o aprendizado apenas nas figuras humanas com 51


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nítida experiência no picadeiro. Os rostos ainda com a maquiagem inacabada, as risadas adultas depois do espetáculo, as crianças correndo entre os adultos que se alongavam têm um grande espaço em sua memória e na sua postura profissional de hoje em dia. Mas ver os elefantes, em toda a sua magnitude, sendo alimentos, os leões sendo domados e os macacos fazendo companhia à Carola também teve sua importância. O Garcia tinha criação de chimpanzés, animais pelos quais a dona nutria um carinho especial. Em determinada época, quatro filhotes brincavam juntos no espaço reservado a eles no trailer de Carola. Quando um deles ficou gripado, teve que ser separado do grupo para que a doença não se espalhasse. Surgia, então, a oportunidade de Junior conviver, de fato, com um desses animais. Com o chipanzé André. Uma criança a mais dentro de casa para dividir experiências e peraltices. “A gente criava ele dentro de casa. Ele ficou lá até os 2 anos de idade. É um criança com força de adulto. Subia nas coisas, arrancava as cortinas, controle da televisão tinha que esconder porque ele arrancava todos os botões. Dormia na cama e ficava solto. Era muito gratificante”, refaz as cenas de sua infância. Mas um chimpanzé era muito pouco. Aquelas pessoas, incluindo Junior, gostavam de encher a casa, mesmo que os convidados não fossem humanos. André merecia uma companhia. O trailer da família Lima recebeu, então, dois filhotes de leões, que passaram a ser amigos tanto de Junior quanto do primata que já se sentia em casa. Só que, ao contrário dos humanos, os animais não poderiam permanecer muito tempo ali, cultivando os vínculos criados. Junior teve que se despedir de seus companheiros depois de dois anos de convivência. Não ficou triste. Entendeu os motivos. Aliás, teve que entender. Era só tentar brincar com o macaco para 52


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perceber que sua enorme força não podia mais ser controlada. “Não tinha medo porque eles foram criados com a gente e eram filhotes. Quando tiraram o macaco da gente, com dois anos, ele já era muito grande, tinha muita força. E o chimpanzé faz o que quer e teve que ir para a jaula”, conta, demonstrando compreensão. Mas o vazio ficou. E um reencontro se fez necessário depois de quatro anos. “Aí eu fiquei com medo. Ele ficou dentro da jaula e eu não entrei, óbvio. Quando me viu, ele colocou o dedinho pra fora e ele lembrou de mim”, recorda, com a felicidade de quem reencontra um amigo que não via há dez anos e percebe que, mesmo assim, as coisas continuam as mesmas entre eles. Do Circo Garcia, Junior carrega o aprendizado de construir uma família além da biológica, de estreitar laços e de usufruir o maior aprendizado que se pode obter dos colegas de picadeiro – sejam eles poloneses, chineses, leões ou chimpanzés. Colocou tudo isso em sua bagagem e voltou à estrada. Sem Circo Garcia, mas ainda repleta de palhaços, trailer, cores. ëëë

Antes de se despedir, Junior fez questão de abrir os vários pequenos armários que estavam sobre nossas cabeças. Todos eles guardavam livros e DVDs. “Estou lendo a série do George R. R. Martin, ‘Game Of Thrones’, mas fiquei com raiva dele porque pensei que acabava no quinto livro e não acabou”, comentou dando risada enquanto passava os dedos nas lombadas dos cinco livros guardados em pé dentro do mesmo armário. “Eu leio de tudo, sabe? Desde ‘Cinquenta Tons de Cinza’, até literatura, sou super eclético. Não sou muito de torcer o nariz para as coisas. É igual música, se tem duas latas batendo eu já estou lá, me chacoalhando”, finalizou enquanto já mexia os braços como se estivesse sambando. 53


por trás da lona: Memórias do Circo

Junior não torce o nariz para a vida e, como uma criança curiosa, está sempre à procura de algo novo para descobrir, um novo desafio para enfrentar. Desistiu de se dedicar a uma profissão que lhe parecia fluir facilmente, para enriquecer o seu mundo. Sempre sonhou em ser jornalista, desde pequeno demonstrava interesse por jornais. “E quando entrei na faculdade, pra mim era tudo muito natural. No primeiro semestre eu já escrevia para o jornal da faculdade e os professores gostavam dos meus textos. Eu fazia crônica e gostava muito disso”, disse enquanto gesticulava com as mãos, um comunicador nato. Porém, a dificuldade em conviver com a avó no Rio de Janeiro o trouxe de volta para São Paulo e ele nunca mais voltou para terminar o curso. Quase dez anos se passaram, Junior descobriu o seu lugar no circo, mas como um aluno dedicado sentia falta de estudar. A escolha de vir para o Circo dos Sonhos para acompanhar o namorado acabou lhe garantindo mais do que esperava. Além de ter conseguido conquistar o seu espaço dentro daquele ambiente profissional, artístico e lúdico, a permanência fixa na cidade de São Paulo permitiu a ele voltar a estudar, sem precisar abrir mão de sua vida circense, dúvida que sempre o assombrou, já que ele mesmo se diz ser uma pessoa indecisa. Achou que se estudasse jornalismo se tornaria um profissional deslocado no mercado. “Quem vai pegar um foca sem experiência, com 35 anos de idade?”, nos pergunta e pergunta a si mesmo, querendo reafirmar a decisão tomada de desistir da carreira e buscando uma resposta que confirmasse sua convicção. Pensando no futuro e em um novo desafio, escolheu o Direito. Nessa carreira ele acredita que pessoas mais velhas ainda conseguem conquistar seu espaço. Junior ainda está no primeiro ano da faculdade, mas já sabe que a melhor maneira de mesclar o Direito com o circo é lutar 54


junior, o produtor

pelos direitos dos artistas e pela própria arte, tão marginalizada. Por incrível que pareça, até se imagina trabalhando em um escritório, já que de certa maneira já o faz dentro do Circo dos Sonhos, durante os dias úteis da semana, em que não há espetáculos. Mas sabe que essa seria mais uma virada drástica em sua vida, física e psicológica. “O mundo do Direito é muito formal e o mundo do Circo é muito informal. Eu tenho cabelo pra cima, tenho brinco. Vou ter que mudar isso, mas aos poucos gente, calma!”, já nos avisa logo de cara antes que falássemos alguma coisa, enquanto mostrava os dois brincos de argola que leva na orelha direita e o cabelo, raspado nas laterais, com um grande topete arrumado com gel para ficar levantado. Como se, de repente, a indecisão tivesse feito cócegas nele naquele momento, ele fez uma cara pensativa e disse que ainda pensa em estudar História e que ainda o fará mesmo que tiver cem anos de idade. “O circo vai estar sempre aí para mim, né? Se não der certo, eu volto!”, completou com a certeza que poucas pessoas podem ter sobre o futuro. E sobre o futuro, é como se Junior já se sentisse satisfeito da maneira com que a vida o tem presenteado. “A pessoa que sou hoje aos trinta anos é muito diferente do que eu imaginava que seria. Não que eu seja frustrado, mas me imaginava um homem sério e me sinto um moleque”, diz o que nem mesmo precisava ser dito. “Acho que não tenho mais nenhum sonho grande. Quero me formar, trabalhar, eu quero estar no Circo, quero conseguir adotar uma criança”, fala em tom sonhador. Se isso é sonhar pequeno, que o mundo esteja pronto se esse pequeno grande moleque resolver sonhar grande. “Eu já estou mais num ritmo ‘deixa a vida me levar’”, explicou dando risada quando viu nossas caras perplexas. Mas é justamente a sua leveza de criança que lhe dá uma vivacidade invejável. A impressão que se tem é a 55


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de que, realmente, quem vive no circo vive diferente. E aqui não cabem questões burocráticas como ter um endereço fixo para receber contas ou a vida na estrada. Quem vive no circo, pode viver cem anos. E cada um desses anos será vivido no mundo da fantasia, no encanto de um amor fugido com o circo, na poesia de uma criança que conviveu desde cedo com a arte, com o cuidado com os animais e com a riqueza de quem formou a sua personalidade enquanto conhecia tantas outras culturas. Não é difícil de ouvir de um artista circense que o circo é a vida dele. Para Junior, isso não é diferente. O que muda é que ele faz questão de ressaltar essa sua relação com o picadeiro. Mas essa é uma realidade que dificilmente poderia mudar, já que são 30 anos convivendo com esse ambiente, desde que nasceu. “O circo pra mim é a minha vida, é tudo pra mim. É onde eu vivo, onde eu nasci, é uma arte que tem que perpetuar, por mais que seja difícil”, diz, sentado em seu trailer, com os punhos cerrados batendo na mesa à sua frente. Perpetuar a arte de sua vida, para ele, é praticamente uma causa pela qual ele luta diariamente. Acreditar naquilo que gosta é uma de suas grandes características. “Desde que sou criança, as pessoas falam que o circo vai acabar. Até agora não acabou e acho que não vai acabar nunca”, sorri. Mais um espetáculo estava se aproximando e Junior tinha que se preparar para, novamente, ser o núcleo dos bastidores. Vestindo sua roupa verde musgo e vinho e andando com seus passos curtos e rápidos, o Circo dos Sonhos ganhava um “Grilo Falante”, como o personagem do clássico Pinóquio. Um companheiro sábio e sempre bem humorado, que não precisa que seja perguntado para que comece a falar, sem trava-línguas que o possam parar. O apoio que dá aos artistas é como o apoio que o Grilo Falante dá ao personagem do nariz que não para de crescer. É a consciência pousando no ombro direito, ou seguindo cada 56


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um dos passos. É o conselho com a sabedoria de quem já tropeçou em algumas pedras desse mundo. E o que faz de Junior um personagem tão especial no mundo do circo é, justamente, o que faz dele uma pessoa especial na vida real: o seu sorriso.

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o contorcionista

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aminhavam há dias. No asfalto. Na terra. No mato. Os pés já não aguentavam mais, cheios de calos e machucados. As três crianças, Arturo, Jhonatam e Mauro, tinham uma expressão de cansaço, mas eram muito pequenos para entender o que estava acontecendo ali. Tanto eles quanto seus pais sabiam que era preciso aguentar firme e andar o quanto fosse necessário para que chegassem ao seu destino: o Brasil. A viagem entre a Argentina e a cidade de Bauru, em São Paulo, foi teste de resistência e união para cada membro da família Carcere. Durou cinco dias. E sabe-se lá quantas rodoviárias, onde paravam, na maioria das vezes, para dormir e comer. Quase sempre a pé. Os bolsos estavam vazios. O dinheiro faltava, o que tinham precisava ser guardado para quando chegassem ao destino final. Era preciso reinventar-se todo dia. Descobrir uma nova maneira de ganhar um prato de comida. Conquistar a simpatia dos desconhecidos era uma tarefa diária. 59


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Mesmo cansadas, as crianças brincavam pelo caminho, levantando a poeira da estrada por onde andavam. Não havia por que estarem tristes. Logo eles chegariam a Bauru, e tudo estaria resolvido. Afinal, já estavam no Brasil. Inocência da infância. Conseguiram chegar, com as próprias pernas, literalmente, a Toledo, no Paraná. Bauru não poderia estar muito além. Arturo, Jhonatam e Mauro corriam um atrás do outro, jogando pega-pega, e, de vez em quando, paravam em frente aos pais e lançavam perguntas e afirmações típicas da idade deles. Estamos chegando? Mãe, estou com fome. Ali, naquela cidade, eles eram novidade. Chamaram a atenção das vizinhanças por onde passaram. Por sorte, havia um circo instalado na cidade, o circo dos Irmãos Power, mas o que ninguém esperava aconteceu: lá, naquela lona, não havia emprego para José Luiz Carcere, o chefe da família. E novamente estavam à deriva no novo país cuja língua não falavam. Despertaram a curiosidade de alguns policiais. Com um sorriso no rosto, os oficiais se aproximaram, fizeram caretas para os meninos, tentando ganhar sua confiança. Perguntaram se os Carceres precisavam de ajuda. Essa era a função deles. Inocente, sem dinheiro e desesperado para chegar ao circo que haviam indicado na cidade de Bauru, o pai de Arturo revelou, em tom suave, o seu objetivo, e de onde estavam vindo para poder realizá-lo. A ajuda dos policiais veio. Em forma de deportação. Eles não tinham garantia alguma daquele emprego em Bauru e a previsão mais óbvia era a de que não conseguiriam chegar até São Paulo. Os segundos entre a frase proferida pelos agentes e a atitude tomada pela família pareceram durar uma eternidade. Tempo suficiente para o pai de Arturo relembrar toda a caminhada, de longos dias, que haviam percorrido e todo o sofrimento pelo qual haviam passado. Não podiam desistir. Gritou: corram! Sem tempo para pensar, as crianças, a mãe e o pai esqueceram todo o cansaço que tinham nas pernas e as colocaram para 60


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trabalhar. Saíram correndo, o mais rápido que conseguiram, sem virar a cabeça para trás. Não sabiam se os policiais estavam perto, mas, enquanto corriam, rezavam para que tivessem ficado bem longe de onde estavam agora. Não ouviam nada, exceto a frase “corram para o meio do mato”. Foi o que fizeram. Ao perceber que tinham efetuado a fuga com êxito, embrenharam-se na primeira mata fechada que encontraram e por lá permaneceram escondidos. Sentados na terra. Desviando-se das plantas. Os olhos arregalados, à espreita. Qualquer barulho os assustava. Não podiam ser encontrados. Tinham que chegar a Bauru. Ao mesmo tempo em que muita coisa passava pela cabeça, mal sabiam o que pensar. O que esperar. O desespero, enfim, passou. O Carcere pai começou a sair do esconderijo para procurar comida. Logo encontrou um senhor disposto a ajudá-lo após perceber o desespero em seu rosto. Todos os dias, no mesmo horário, o homem o encontrava e mal lhe entregava o prato ele já voltava correndo para alimentar a família. Poucos dias se passaram até que o senhor resolveu seguí-lo para descobrir o que lhe afligia: ele precisava alimentar os três filhos e a mulher. Foi a solidariedade do homem que lhes dava cinco pratos de comida todos os dias que os salvou do pior. A vida praticamente refugiada no Paraná durou um mês. Foi o tempo que o pai Carcere teve para conseguir alguns bicos e juntar dinheiro. Pouco, mas suficiente para prosseguir a viagem. E não mais a pé. Já haviam arriscado tudo o que podiam. Pegaram o ônibus e chegaram, finalmente, a Bauru, onde se instalaram no circo Fiesta. Conheceram o dono do circo, César, que por sorte falava espanhol, e a promessa tão incerta se cumpriu: José Luiz conseguiu o emprego. No começo eles não tinham onde morar e dormiam dentro de uma carreta, o que já era confortável perto das geladas rodoviárias pelas quais passaram. Com muito trabalho 61


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e paciência, o dinheiro veio aos poucos, à medida que as pessoas do circo os conheceram melhor. Conseguiram uma casa com televisão, a alegria dos três meninos. O pai trabalhava sozinho para preservar a infância dos filhos que, finalmente, começaram a estudar pela primeira vez. O contrato de trabalho foi renovado e a família Carcere se instalou no Brasil de forma definitiva. ëëë

José Luiz Carcere começou a trabalhar no circo aos 17 anos de idade no Peru, país onde nasceu. Filho de donos de pequenos parques de diversão, o entretenimento já fazia parte da sua vida, antes mesmo de entrar para o mundo do circo itinerante. Trabalhava como capataz, termo circense para nomear a pessoa responsável pela manutenção e montagem e desmontagem da estrutura do circo. Como uma boa história circense não existe sem uma grande paixão, Mercedez, nascida no Equador, abandonou a cidade para se casar com José Luiz e então, a viagem pela América Latina começou. Vieram os três filhos meninos e a mudança constante entre circos pelos países latinos. O que determinava a nova cidade era a possibilidade de conseguir emprego no próximo destino. Mercedez ajudava a vender água e refrigerante enquanto o marido trabalhava em capatazia. A cada novo circo, uma nova casa de aluguel, em que os filhos pequenos ficavam enquanto Arturo ajudava sua mãe. Quando todas as casas mais baratas da cidade já estavam alugadas, eles dormiam em barracas montadas no terreno do circo. Trinta reais por semana era o orçamento médio da família. Quando o contrato no circo Hermanos Gasca, na Argentina, terminou, a única oportunidade em vista era um convite para trabalhar em um circo de Miami, nos Estados Unidos. Era uma possível chance de José Luiz melhorar a condição de vida de sua 62


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família, mas isso poderia separá-los. Entre o dinheiro e a união, ele escolheu sua família. Um amigo comentou sobre rumores de um circo no Brasil que estava precisando de funcionários. Mesmo sem contrato ou certeza alguma, essa era a única oportunidade naquele momento. O Brasil era um desafio ainda não explorado, o único país da América Latina que não haviam conhecido. E o único em que se instalaram de vez. ëëë

Assim começou a vida de Arturo e sua família no Brasil, depois de muitas viagens já feitas. Arturo Ricardo Carceres nasceu no Equador, no dia 2 de janeiro de 1986. Aos nove anos de idade, já conhecia muitas estradas da América Latina quando chegou às terras brasileiras. Viagem. Estrada. Novas culturas. Experiências. Tudo isso também fazia parte dos trabalhos internacionais que o seu futuro lhe reservava. Arturo, como o irmão mais velho, foi o primeiro a ajudar o seu pai. Sem nunca ter tido uma festa de aniversário ou um bolo para cantar parabéns, algo de que ele se lembra, com certa dor, até hoje, aprendeu desde cedo a conseguir dinheiro e gastar com o necessário para a família. Ele sabe que a vida de seu pai foi muito sofrida para que todos tivessem o melhor, ou o mínimo. E essa responsabilidade ele tomou para si desde muito pequeno. Foi a pressão de uma vida sofrida que o fez amadurecer rápido e também a se confundir com a própria história. Arturo viveu tanto que tem dificuldade em relembrar pequenos detalhes. Tem orgulho em contar sua história, mas sua conversa, muitas vezes, pode ser permeada de pausas e dúvidas. Esforça-se para lembrar a ordem dos países latinos pelos quais passou. Pensa, gagueja, olha para o céu. Depois, lança-nos um olhar de dúvida, pedindo para que nós o ajudemos a lembrar os fatos de sua vida. Em vão. Então, alguma lembrança viva e concreta cruza a sua mente e ele 63


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volta a falar com firmeza. A vinda tão penosa para o Brasil deixou marcas. É algo do qual ele jamais esquecerá por completo e que faz parte de quem ele é hoje, mas muito do infortúnio no passado hoje está apagado em sua memória. ëëë

O esforço que a vida lhe cobrou desde cedo fez com que ele aprendesse a se esquivar das dificuldades, ou melhor, a se contorcer diante delas. Foi a maleabilidade com os problemas que o fez descobrir o seu talento no circo: o contorcionismo. “É o que o meu pai sempre fala: muito sofrimento às vezes vira conquista. Eu só tive a ganhar. Se não tivesse acontecido tudo isso, acho que a gente não teria nada, eu não teria nem mesmo o número de contorção”, explica com um sentimento de recompensa. O contorcionismo foi o primeiro número próprio de Arturo. Antes, ele já havia trabalhado na cama elástica e na báscula, uma espécie de gangorra em que os artistas ficam trocando de posição. Com as experiências vividas na estrada e com duas tias na contorção, Arturo resolveu passar a ver o mundo – ou, ao menos, o público e o cenário circense – de outros pontos de vista ao se contorcer. Funcionou. E ele gostou de observar o rosto das pessoas na plateia de ponta-cabeça, ou entre as pernas e os braços. Em um ano, aprendeu as “manhas” da atividade, como ele mesmo diz. Falar parece sempre mais fácil do que fazer. Mas, no caso de Arturo, a facilidade realmente existiu. “Meu pai dizia que, desde pequeno, eu já tinha a espacate, a abertura que todo mundo quer ganhar. Ganhei de presente. Desde pequeno eu corria e caía de abertura. Meu pai já sabia que alguma hora eu ia fazer contorcionismo”, conta, feliz por ter sido “presenteado”. No entanto, mais uma vez, Arturo teve que se adaptar a novas circunstâncias. O número de contorção é mais conhecido e mais 64


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efetuado por mulheres. Não tinha como ele manter os ritmos e movimentos femininos. Era preciso reinventar-se. Pediu ajuda ao pai, tão acostumado com criações diárias, seja por sobrevivência, trabalho ou arte. Desenvolveram um contorcionismo diferente, com o qual Arturo trabalha há dez anos. Tudo se baseia no deslocamento. Ombro esquerdo para um lado. Ombro direito, para outro. Tronco fora do lugar. Típico número que causa desconforto, para o bem e para o mal. Algumas pessoas ficam vidradas em cada movimento. Querem entender como alguém consegue fazer aquilo com tanta facilidade, como o corpo humano é capaz de se modificar tanto. Outras abaixam a cabeça, fecham os olhos, preferem não ver. Pura aflição. Ao final do número, no entanto, a opinião é unânime: Arturo domina a contorção. “Eu gosto muito desse número e ele é único, não tem muita gente fazendo. Deve ter uns três que fazem, e a maioria nem fica no Brasil”, conta. Esse orgulho dá ainda mais força a ele em cima do palco. Amando o que faz e com tantos anos de experiência, os movimentos de Arturo beiram a perfeição. Com uma roupa que cobre todo o corpo, de forma bem apertada e com uma estampa de cobra, Arturo entra no palco com mão e pés apoiados no chão e cabeça e barriga voltadas para o teto. Com leveza e calma, em movimentos ligeiramente demorados, ele vai tirando as mãos de apoio e começa a se levantar, para, então, subir na mesa posicionada no centro do palco. Nesse momento, as expressões nos rostos das crianças e adultos já mostram tensão e atenção. Lá de cima, Arturo, começa, então a deslocar ombros e tronco. Passa os braços por cima da cabeça, desce com eles até as pernas, em uma espécie de túnel, e, em questão de segundos, os braços voltam à posição normal, depois do corpo ter sido totalmente invertido. Como quem faz graça, ele ainda dá as mãos e inclina o corpo à frente. Ao invés de tocar o chão com as mãos, ele as passa por baixo dos pés. Seus ombros fazem o impossível e completam a rotação de quase 65


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360º. Ele pula corda com os próprios braços. O público mal acredita. Foi por volta dos 12 anos que Arturo resolveu testar os limites do seu corpo na contorção. Muito tarde para um artista circense. Normalmente, segundo ele, com quatro ou cinco anos a criança já começa a treinar esse número. O tempo, porém, não criou barreiras. Com muito treinamento, só se nota essa defasagem se o próprio Arturo a confessa. Hoje, o número está tão incorporado em sua vida, que, muitas vezes, nem parece trabalho. “Hoje é uma brincadeira”, ri, nos fazendo imaginar as posturas malucas com as quais ele vai até à cozinha em um domingo à tarde para buscar algo na geladeira. Mas, logo enfatiza que é uma “brincadeira séria”. Afinal, por mais experiência que se tenha, algo pode dar errado. E é aí que se encontra parte da tensão de seu número. “Porque se eu vacilar de um lado, meu corpo pode passar do limite e estourar meus ligamentos. A gente sente o limite. Aqui eu posso, aqui eu não posso. A gente fica controlando”, explica. Ainda muito forte e bastante jovem, Arturo garante que, por enquanto, não sentiu que teria que parar com a atividade em nenhum momento, por conta de dores. Mas sabe que esse dia chegará. “Uma vez eu machuquei a coluna. Foi uma lesão porque cheguei atrasado ao circo e eu comecei a forçar. Eu sorri lá dentro, mas estava doendo demais. Ficou tudo inchado. A coluna inteira. Fiquei dois dias sem trabalhar. Nunca mais deixei isso acontecer”. Arturo conhece muito bem os limites. Enquanto está ali, deslocando-se como pode e como seus limites deixam, muitas lembranças cruzam sua mente. Ao virar de cabeça para baixo, ele se recorda, em alguns momentos, das estradas que percorreu para chegar até ali. Da ajuda de seu pai na hora dos alongamentos. Pensa também nos aplausos que virão. Espera por eles do começo ao fim. Mas sabe que com a contorção é diferente. Nem todo mundo entende. Nem todo mundo tem a reação de bater palmas quando o número acaba. Compreende, mas se sente descon66


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fortável quando não ouve esse barulho com o qual está tão acostumado. Quando não escuta os aplausos, respira fundo, retoma sua posição invertida para sair do palco e, lá atrás, sente o mundo sobre suas costas. Parece que vai desabar. Seu passado e suas raízes falam mais alto. Fecha os olhos e decide: “tenho que melhorar alguma coisa”. “Normalmente, o artista quando já está com o número pronto e não quer mais saber de fazer outro, relaxa. Meu pai nunca deixou fazermos isso. Sempre melhoro. Todo dia”, enfatiza. O público mal se cansa de aplaudir o contorcionismo de Arturo, a assistente de palco entra para entregar-lhe uma argola metálica. Em seu ritual de demonstração, Arturo segura o objeto com as duas mãos e depois, com uma só, exibe-a para todas as diferentes posições da plateia. Não há truques, não há uma abertura ou flexibilidade sequer na argola. A mágica do espetáculo fica por conta da habilidade, do treinamento e do amor de Arturo pelo o que faz. Abrindo o corpo em espacate, ele leva o tronco à frente, encostando a testa no joelho da perna direita, enquanto a esquerda está para trás. A argola então é colocada nos pés, aproximando-se cada vez mais do tronco e da cabeça. Com pequenos chacoalhos, Arturo acomoda o seu corpo troncudo dentro da argola. Faz suspense ao passar pelos ombros, toma o seu tempo necessário, mas o prolonga para que fiquemos tensos, pensando em como ele teria que ser resgatado caso ficasse preso. E o corpo todo passa pela argola, que chega ao pé da perna esquerda. Ele ainda repete o número, mas com o corpo deitado de barriga para cima, com as pernas flexionadas. Não há truques. São 28 centímetros de argola, que, para ele, ainda parecem muito. “Quando eu comecei, a argola tinha 30, aí agora tem 28. Lembro que meu pai falou que estava muito visível que era grande.”, explica como se alguma de nós pudesse, ao menos, levar o pé à cabeça para achar que 30 centímetros eram um exagero. “Tem gente 67


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que faz amizade e pede pra ver o arco. Aí veem que não tem nada mesmo. Lógico! Eu treino pra isso, vou ficar fingindo?”, responde lidando com a desconfiança de maneira divertida. ëëë

Deslocamento. Não apenas físico, mas também geográfico. Ainda criança, Arturo já tinha um currículo de viagens invejável – não fossem as dificuldades e as razões que o levaram a pegar a estrada. Pequeno, pensando apenas em perguntar à mãe se estavam chegando, jamais poderia imaginar que estava fadado a ainda percorrer milhares de quilômetros. No Brasil, foi se dando conta, aos poucos, de que havia chegado para ficar e que, aqui, teria uma casa de verdade. Mas só por algum tempo. Aos 18 anos, novamente juntou suas coisas e começou a andar. Dessa vez, sozinho. Olhou para trás, avistou o trailer da família, suspirou de maneira ansiosa. Queria ir. O que não queria é ter que, talvez, lidar com dificuldades que deixassem marcas dolorosas, que fariam companhia àquelas do passado. Respirou uma vez, de cabeça baixa. Na segunda vez, já tinha cruzado o portão em direção à Arábia Saudita, onde ficou por cinco anos. Seu contrato no Circo dos Sonhos havia acabado antes que o de seus irmãos. Segurando a rescisão, sentado em uma das cadeiras de plástico no exterior do trailer, passou a mão na cabeça, preocupado. Não sabia o que fazer dali para frente. Ainda não era casado e nem tampouco tinha filhos. Ainda assim, tinha uma família ali, na qual teria que pensar inúmeras vezes se quisesse tomar uma decisão acertada. Começou, então, a considerar uma palavra específica que, mais tarde, virou seu objetivo: experiência. Aos 16 anos, Arturo era apenas instrutor do Circo dos Sonhos. “Eu só ajudava, não sabia o que sei hoje. Só dava uns toques, passava pros alunos que tinha aqui”, recorda. Reuniu os irmãos, que fitaram seus olhos e deposi68


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taram suas esperanças nele, no mais velho dos filhos Carcere. Mal conseguiram disfarçar o desespero quando Arturo, enfim, anunciou que sairia do Brasil em busca de aprendizado circense. Decidido, Arturo embarcou. Chegou à Turquia com suas experiências latinas e seu espanhol e português para se defender. Inocente, mal sabia que essas línguas, dessa vez, não seriam suficientes para sua adaptação. Mais tarde, incorporou ao seu vocabulário frases do turco, do italiano, do grego e de outros idiomas. Entre sorrisos de felicidade e risadas de angústia, Arturo viveu em território turco por dois anos. Foram 730 dias em um país desconhecido, sem deixar de pensar em nenhum momento em Mauro, Jhonatam e seus pais. Filho mais velho, sentiu que tinha um papel de grande responsabilidade na família. Arrumou a mala. Maquiagens importadas. Roupas circenses. Ilusões. Acertos. Tudo na bagagem de quem voltava para o Brasil, ansioso por reencontrar quem havia deixado. A partir daí, Arturo só conseguiu viver assim: em busca pela experiência constante do desconhecido e convivência extrema com a família. Assim, intercalando as duas coisas. Voltou para o Brasil. Retomou suas responsabilidades – principalmente a de cuidar dos irmãos mais novos. Assegurou-se de que não havia deixado mágoas entre aqueles que mais considerava. Certo de que sempre haveria quem o recebesse com amor, arriscou-se mais uma vez. Foi conhecer a Itália. Deu aulas de equilíbrio e trapézio, misturando espanhol, português e italiano em um novo dialeto que não se tornou exatamente um problema de comunicação. Voltou. Viajou à Grécia, levando na mala suas, agora, já consolidadas aulas. Retornou. Arrumou de novo a casa. Fez questão de confirmar a união de todos os Carcere. Olhou cada um deles. Dessa vez, queria permanecer mais tempo no Brasil. As viagens eram cansativas, assim como a rotina profissional. Estar longe afetava seu lado emocional. Escolheu ficar. Mas o telefone logo tocou. 69


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A experiência de Arturo começou a chamar atenção. Vários circos ao redor do mundo ficaram admirados com seu currículo. Seus movimentos de contorção foram notícia até na Arábia Saudita, de onde ligaram para a casa dos Carcere para oferecer um contrato de cinco anos. Proposta irrecusável. Sentiu o peso da responsabilidade em seus ombros. Deixar os irmãos novamente? E, dessa vez, por tanto tempo? Chacoalhou a cabeça, como se quisesse apagar todos os pensamentos e questionamentos que surgiam, em forma de palavras soltas em um fundo preto, em sua mente. Tentou ser simplista: só tinha que escolher entre ir ou não ir, sem pensar em consequências. Ficou com a primeira opção. ëëë

28 anos com carinha de 18. Arturo se define assim. “Acho que é a alegria que a gente tem aqui no circo que rejuvenesce”, defende. A pele morena, livre de marcas e expressões de idade, e o corpo atlético, forte e alto, de um contorcionista e trapezista, contribuem para uma aparência jovial. Arturo é o típico artista circense que chama a atenção nos bastidores e nos palcos, primeiro pela beleza e imponência e, mais tarde, pelo talento circense. Anda com passos firmes, mãos e braços juntos ao corpo. Sorri, com dentes extremamente brancos, aos que passam, sejam conhecidos ou não. É nítido como tenta ganhar a simpatia de todos à sua volta. Não por questão de vaidade. Mas pelo seu jeito de ser, acostumado a ter que sorrir nas estradas, rodoviárias e circos novos por onde passou desde criança para que continuasse vivendo de forma tranquila. Não demoramos a perceber essas características, que nos foram explicadas mais tarde, quando passamos a entrevistá-lo. Em nossa primeira visita ao Circo dos Sonhos, sentadas em duas cadeiras de plástico nos fundos do palco, Arturo nos abordou, sorrindo, para perguntar o que estávamos fazendo. A pergunta veio em tom de brincadeira, acom70


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panhada de risadas curtas, mas, mesmo assim, passava um tom de seriedade. Ele realmente queria entender por que duas desconhecidas estavam ali, observando cada detalhe. Quando descobriu que se tratava de um livro com perfis de personagens circenses, não resistiu. “Eu também vou estar no livro? Meu nome vai aparecer?”, disse, curioso. Era a vontade de imortalizar toda aquela história confusa e sem, a princípio, organização cronológica que nunca deixou sua mente. As brincadeiras entre irmãos, quase sempre complementadas por muitas risadas, também ajudam. A maturidade no picadeiro e no quesito família, no entanto, pertence a um homem que, facilmente, poderia ser bem mais velho do que Arturo realmente é. Hoje no Circo dos Sonhos os três irmãos estão quase sempre juntos, e não somente a aparência física quanto também a voz e o jeito de andar faz com que eles sejam facilmente confundidos. Nós mesmas chegamos a chamar o Jhonatam de Arturo, que não entendeu nada quando falamos sobre a entrevista marcada. Além do tronco musculoso e da força no trapézio, os três compartilham aprendizados e a garra para lidar com a vida. Talvez os trabalhos de Arturo no exterior os tenham afastado. Por falta de tempo, por sobra de mágoas, por ressentimento de não ter ido junto. São muitos motivos, ou talvez hoje pequenos demais, para que eles mesmos mal se lembrem. Mas, a admiração e a vontade de trabalhar juntos de novo superou tudo. “A gente se afastou um pouco, não se falava direito, tivemos algumas brigas também. Mas quando surgiu a oportunidade de vir pra cá, a dona do circo perguntou se eu não conhecia nenhum outro trapezista, e eu lembrei na hora do meu irmão mais velho”, conta Mauro de 23 anos, o irmão mais novo. Arturo pode até achar que seu sacrifício pelos irmãos e os bolos de aniversário que só ele nunca teve não sejam lembrados, mas de todas as memórias apagadas pela dor e pelo tempo, ficou a gratidão e o orgulho: “O orgulho de ter esse irmão mais velho é que ele sem71


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pre cuidava da gente, sempre nos apoiava”, diz Mauro após algumas tentativas de concluir sua narrativa. Ele pode não ter pensado nisso antes, mas no fundo ele sempre soube. ëëë

Enquanto eu esperava Arturo para mais um dia de conversa, fiquei observando o chão de terra batido no fundo do Circo dos Sonhos, espaço em que os dois trailers da família Carcere estavam. Toldos protegiam a porta dos trailers da chuva e do sol e embaixo deles, pares de sapato revezavam o espaço com cadeiras de plástico, antenas de televisão e vasos com plantas. Na frente do trailer branco e laranja, uma menina de três anos brincava de pegar com um potinho a água que estava empoçada no chão de terra. De camiseta amarela e bermudinha lilás, o seu charme era o tênis de cano alto todo colorido e com glitter. Demorou a perceber que eu estava ali, mas quando me viu, não pensou duas vezes. Observou como eu me comportava de longe, entrou no trailer de sua família por puro acanhamento e depois voltou decidida. Veio direto até mim, parou a um passo e olhou pra cima com um sorriso no rosto, como quem diz “oi”. Quando eu abri um sorriso de volta, ela entendeu aquilo como sendo a deixa perfeita para brincar comigo. Passou por mim, foi até a lona do circo e começou a procurar algo entre caixas de madeira. Até que encontrou. Uma peteca branca, com penas no topo. Quando eu perguntei o que era aquilo, ela entendeu que eu estava disposta a ser a sua nova amiga naquele momento. E nada mais legal do que alguém novo para brincar, entre tantos adultos já cansados de correr por todo o circo. Ela arremessava a peteca desajeitadamente para o alto, até que me estendeu a mão para que eu pegasse o brinquedo. Quando lhe mostrei como se fazia, ela soltou a primeira gargalhada de muitas que ainda viriam. Começamos a jogar a peteca uma 72


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para a outra e a cada vez que chegava à minha mão, ela já soltava um gritinho de animação de quem mal espera pra ver até onde a peteca irá voar. Camily, a filha mais velha de Arturo, ganhou os olhos levemente puxados do pai, mas verdes assim como os da mãe. Tem a alegria de uma criança que vive em meio a palhaços e artistas do riso. Já arrisca os seus próprios passos. Se deixar, fica pulando na cama elástica o dia todo e já subiu com o seu pai no trapézio sem nem mesmo sentir medo. Para a surpresa da mãe, ela gosta que façam nela a mesma maquiagem que o pai usa no picadeiro. Casado com Ingrid Raissa dos Santos, de 21 anos, Arturo tem dois filhos, Camily (3) e Miguel (9 meses). Os quatro moram no trailer da família no fundo do Circo dos Sonhos, ao lado dos irmãos Mauro e Jhonatam, que moram com os pais. O trailer e a paisagem que acompanham a moradia deles têm aquele estilo do cenário do filme The Circus, de Charlie Chaplin. Veículos um ao lado do outro. Portas abertas, mostrando pedaços do interior. Mesas e cadeiras, muitas vezes improvisadas, no meio de tudo isso. Um clima interiorano e familiar. Entrosados, brincam, conversam, ajudam uns aos outros. Todos trabalham no picadeiro, exceto, é claro, os filhos pequenos, embora até eles já se mostrem encantados com esse universo e dispostos a entrar nele. “A Camily sobe no trapézio comigo e não tem medo. Ela fica na cama elástica e adora, pode ficar lá 10 horas”, conta Arturo, que logo fecha a cara. Engana-se quem acha que, amando o circo e o que faz, ele quer o mesmo para seus filhos. As marcas daquelas caminhadas entre um picadeiro e outro, as incertezas da infância e juventude, fizeram dele muito cauteloso. Noites frias sem dormir. Carretas servindo de cama. Falta de dinheiro. Refeições diárias que nem sempre vinham. Arturo não consegue – e nem quer – imaginar seus filhos passando por isso. 73


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Mas é cauteloso a ponto de saber que a decisão não é apenas sua. “Eu falo pra minha mulher que não queria que eles fossem de circo, porque querendo ou não é uma vida sofrida. Pra ter o que tenho hoje, batalhei, sofri pra caramba. Mas se quiserem, não posso fazer nada”, aceita. Ingrid e Arturo se conheceram no Circo Spacial. Arturo estava sem contrato e quando já estava pensando em ir para o exterior novamente, o convite para trabalhar durante um ano no Circo Spacial apareceu, mas foi o amor que fez com que ele desistisse de trabalhar fora do país novamente. Ingrid, filha de brasileira com boliviano, já estava no Spacial há três anos, mesmo não sendo de família circense. Ela começou a treinar em circo-escola, onde a mãe a inscreveu para que ela não ficasse na rua. Ingrid, que pouco conviveu com o pai, ajudou em casa desde cedo. Ela namorava outra pessoa quando Arturo chegou ao Circo Spacial, mas logo largou tudo para namorar com ele e então, formar uma família. “A gente se conheceu no circo. Ele estava no pranchão, eu passei, vi ele, dei um tapa nele sem querer achando que fosse outra pessoa”, relembra ela ainda tímida. “Eu gosto do companheirismo dele. Mas não deixa ele ouvir não, que se não ele se sente o rei da cocada preta”, responde Ingrid, dando risada mas já menos envergonhada em dizer que admira também o corpo do seu marido. Enquanto Ingrid se esforçava para responder às perguntas, ela traçava um risco preto, reto e perfeito nos olhos. Sentada em uma das duas camas de casais do trailer, ela dividia espaço com uma caixa rosa de maquiagem, com produtos suficientes para maquiar o circo todo. Além disso, uma amiga também se preparava para o primeiro espetáculo do dia. Ingrid, talvez por falta de palavras ou por incômodo ao ser perguntada sobre sua própria vida, pouco conseguiu contar sobre sua história. Mas ali, dentro daquele trailer dava para perceber que a vida simples que levam 74


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os fazem felizes o suficiente para viverem despreocupados. Um espetáculo por vez. Do outro lado do trailer, que comporta quatro pessoas, Arturo e Camily estavam deitados na cama assistindo juntos a um filme. Talvez Arturo escutara os elogios contidos de Ingrid e esteja se sentindo o “rei da cocada preta”, ou apenas e merecidamente um homem feliz. Ou talvez ele mal suspeitasse que a mulher de poucas palavras sérias e muitas risadas estivesse falando bem dele. Camily mal se mexia enquanto assistia à televisão, talvez porque essa mostrava muitas cores e sons diferentes. Ou apenas e compreensivelmente ela se sentia feliz por estar ao lado do pai, que mesmo pequena já admira. Camily não herdou apenas os olhos puxados e a vontade de usar a mesma maquiagem do pai. Ela tem muito do seu carisma, e da capacidade de manter as pessoas por perto. ëëë

Os três irmãos já se desentenderam muito no passado, mas hoje Arturo tem a maturidade de um pai de família para deixar para trás discussões adolescentes e desenvolver sua arte na companhia de seus familiares. Foi a oportunidade de voltar ao Circo dos Sonhos que fez essa vontade ser realizada. Os irmãos Jhonatam e Mauro, que se dividem entre números de equilíbrio e acrobacia, são também trapezistas. Convidaram o irmão para formar uma equipe no trapézio e hoje, no Circo dos Sonhos, esse número é realizado em família: os três irmãos Carcere, a esposa Ingrid Raissa e Rodrigo Orion, grande amigo deles. O mesmo respeito que cultivaram em família foi necessário para treinar no trapézio. “Medo a gente tem todo dia naquele trapézio. Mas a gente tem que ter mesmo, se não, não respeitamos nada. Uma pessoa que vai pro trapézio e fala que não tem medo, esquece, ela perdeu o respeito de tudo”, explica com semblante 75


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sério. Foram os irmãos de Arturo que lhe ensinaram essa modalidade, já que sua especialidade sempre foi o contorcionismo. Demorou um ano até ficar bom, mas isso também não o impediu de sofrer um acidente, do qual sobreviveu com sorte. Há cerca de dez anos, na primeira vez em que esteve no Circo dos Sonhos, o cabo que segura a barra do trapézio arrebentou e ele despencou na rede. A velocidade foi tanta que seu corpo foi arremessado e por pouco não caiu para fora da rede. O impacto foi suficiente para que ele acordasse imobilizado em uma ambulância sem saber o que havia acontecido. Ainda hoje tem nas mãos as marcas da força com que segurou na barra aquele dia. Foram essas marcas que salvaram a sua vida. ëëë

É quando o espetáculo faz um intervalo que a rede é esticada e bem presa na estrutura do Circo dos Sonhos. É necessário prender os cabos a uma estrutura fincada ao chão, para que a rede comporte o peso e a instabilidade. Todo cuidado precisa ser tomado, e cada detalhe faz parte de uma rotina criteriosa. Esse é o último número do espetáculo e possivelmente um dos mais esperados. Quando as luzes se acendem e a música começa a tocar, cinco pessoas entram no picadeiro em fila. Acenam para o público e logo escalam as escadinhas acopladas aos pilares que sustentam o circo. Elas levam até o topo, em que uma pequena plataforma serve de base para o espetáculo no ar, as acrobacias milimetricamente calculadas. É hora do trapézio. As roupas são azuis e verde-limão, podem ser vistas de longe, e é impossível que alguém tire os olhos desses pontinhos coloridos que brincam ali em cima. A música é animada e eles arriscam bater palmas em alguns momentos. Soltam gritos ao mesmo tempo, o que ajuda a aliviar a tensão de estar nas alturas. Uma das cinco 76


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pessoas fica na barra do lado direito do picadeiro, balançando até atingir a altura e velocidade suficientes. É o que os circenses chamam de “volante”, a pessoa que irá segurar e conduzir o número. Jhonatam é o volante, e quando ele se pendura pelas pernas, com a barra na parte de trás dos joelhos, e bate as mãos, significa que é hora de alguém se lançar pelo picadeiro. Entre palmas e gritos eufóricos do público, o volante se encontra com a pessoa na barra na segunda vez em que ambos se balançam como pêndulos. Às vezes o volante a pega pelos braços, ou até mesmo pelas pernas, para depois devolvê-la de volta à barra. Já parece complicado o suficiente, mas a parte mais arriscada é conhecida como o “cruzo da morte”, quando uma pessoa se arremessa na barra quando outra ainda está retornando. Até mesmo quando alguém erra e cai na rede o público fica eufórico. Uma mistura de emoção com alívio pelo fato dos cabos de aço aguentarem o tranco. Entre voos leves e coreografados, os artistas chegam perto da lona azul, decorada com um desenho vermelho, em formato de sol, no topo. Pernas que vêm e vão, rodopios e o segundo perfeito para agarrar de volta à barra. A adrenalina toma conta de quem assiste, mas somente quem se arremessa no ar sente a liberdade de ser quem é. De trabalhar aos rodopios, em movimentos de balé. Sem roupas sociais e papéis burocráticos. No circo, o trabalho é colorir o rosto e dar piruetas no ar. O espetáculo chega ao fim. Mas, apenas para quem estava na plateia e volta para casa. Para quem vive no circo, a magia nunca acaba.

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o globista da morte

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ra o último dia de agosto. Não havia nenhuma lona de circo montada na cidade de São Paulo. Pela primeira vez precisaríamos sair da cidade e também conhecer outro lado do universo circense. O destino era o bairro de Bonsucesso, periferia de Guarulhos, a cerca de 40 quilômetros de nossas casas. Em um terreno ao lado do Shopping Bonsucesso, estava montada uma lona azul e amarela, cercada de alguns trailers e carretas brancas com o emblema do circo. A região em volta tem ruas de terra, mas a Estrada Juscelino Kubitschek de Oliveira é asfaltada e longa, ligando a Rodovia Presidente Dutra ao bairro. Foi embaixo de uma garoa fina, num domingo frio, que chegamos ao Big Brother’s Cirkus. Era o segundo dia de espetáculo naquela praça (termo circense para denominar o espaço em que o circo está montado) e restavam apenas três semanas antes que fossem para outro lugar. A permanência em determinado espaço 79


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depende dos custos do terreno e do quanto o circo fatura na bilheteria. Se essa conta trouxer lucros, os planos podem mudar, e a estadia pode ser estendida. Meia hora antes de o espetáculo começar, a praça de alimentação estava cheia e o público chegava de carro, moto ou até mesmo a pé. O preço do ingresso varia de acordo com o posicionamento da cadeira, mas com o cupom de desconto, distribuído na região ou impresso no site, é possível comprar entradas para a cadeira lateral por R$9,99. O preço precisa ser acessível para o local. “Distribuo 150 mil panfletos por semana com os ingressos a R$9,99. É o preço que eu trabalhava dez anos atrás. Não adianta cobrar caro, porque ninguém vem. 95% do público vem com panfleto. Assim eu atinjo as escolas, o comércio, as casas”, diz, querendo se explicar o máximo possível, Ewerton Lestar, dono do Big Brother’s. Mas, em tempos de crise da arte circense, muitas vezes isso não é suficiente para atrair o público. O Big Brother’s Cirkus apresenta seu espetáculo completo de terça a sexta-feira. Nos fins de semana, a primeira metade de apresentação, antes do intervalo, é elaborada com os principais números circenses, e a última metade, a de encerramento, é ocupada por um “show infantil”. No momento, esse show é feito pela turma da Peppa Pig, uma animação britânica que está fazendo muito sucesso entre as crianças e que tem como personagem principal uma porquinha de pouca idade, que vive histórias com sua mãe, seu pai e seu irmão. Pessoas sobem ao picadeiro, vestidas com fantasias de espuma cor-de-rosa, para dançar músicas infantis e interpretar uma pequena história da animação. Assim que os personagens aparecem, quase todas as crianças já estão em pé nas cadeiras, segurando seus bichos de pelúcia do desenho animado, comprados na entrada do circo. Quase ou mais vidradas do que estiveram ao ver os trapezistas e palhaços. 80


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Essa é, definitivamente, uma maneira do circo ocupar mais cadeiras dentro da lona. Em tempos de dominância dos produtos da indústria cultural e crise de artes como a circense, muitos empresários que circulam no meio admitem que buscam outras formas de manter-se. Ali, com as figuras rosas em cima do palco, dançando e cantando músicas da Xuxa que nada têm a ver com o roteiro original, é possível enxergar uma dessas muitas maneiras de “sobrevivência”. Mas, nesse momento, Allan prefere se ausentar. Faz parte da terceira geração de uma família circense. Não está acostumado às mudanças em cima do picadeiro. Não reclama. Mas não se oferece para ser protagonista. A menos que algum imprevisto aconteça. E aconteceu. Naquele último domingo de agosto, a queda brusca de temperatura trouxe consigo muitas nuvens e uma chuva fortíssima. A água caía, misturava-se à terra. As pessoas tinham que se apertar na praça de alimentação para não se molharem. As mães cobriam os filhos. Tiravam guarda-chuvas das bolsas. Nada que, no entanto, atrapalhasse a fila ou que fizesse alguém desistir de ocupar o melhor lugar em frente ao picadeiro. O espetáculo das 20h30 começou. A chuva parou. Os bambolês rodaram dos pés à cabeça. As motos aceleraram dentro do globo da morte. Os saltos foram feitos no trapézio. A primeira parte chegou ao fim. No intervalo de dez minutos, alguns pingos voltaram a ser ouvidos do lado de dentro da lona, fazendo eco. Mesmo assim, as crianças não tiravam os olhos da cortina vermelha prestes a se abrir. Perguntavam, impacientes, quando veriam a Peppa. Bastaram poucas palavras da apresentadora do show para que o ambiente fosse tomado de gritos agudos e infantis de empolgação. Cinco minutos se passaram. Olhares vidrados. Até que a escuridão tomou conta do lugar. Nada se via. Nada se ouvia. Lanternas começaram a surgir de todos os cantos. Nin81


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guém estava preparado para aquele apagão. Crianças, adultos e artistas estavam perdidos. Foram longos minutos até que um dos geradores começasse a funcionar. Insuficiente para retomar o show. O palhaço, atônito, subiu ao palco correndo, fazendo barulhos com seu apito e tentando animar aqueles que ali estavam. Mais alguns minutos. Sem resolução. Allan, do lado de fora, já com o microfone na mão, pensava em como poderia ajudar. Percebeu que não podia perder tempo. Correu para dentro da lona, subiu ao picadeiro e começou a narrar a “apresentação” do palhaço. Enquanto falava, lançava olhares para a equipe. Estava preocupado. A luz demorava a voltar e, mesmo com os geradores, os funcionários não conseguiam ligar o som dos microfones e da música para o número. Com sua experiência como apresentador, engrossou a voz e informou ao público, com firmeza, que estavam passando por problemas técnicos, mas que logo resolveriam e tudo voltaria ao normal. Naquela noite, o espetáculo terminou quase meia hora mais tarde. Allan voltou ao trailer, ainda com a roupa do picadeiro, sem forças para nada. Mas já era hora de dormir porque, em pouco tempo, ele estaria em pé novamente. O Big Brother’s Cirkus sabe o que faz. Está nesse universo há tempo suficiente para que soubesse de seus pontos fracos e aproveitasse os bons elementos que tem. Em março de 2015, a lona (que, agora, conta com mais três unidades) completa onze anos de existência. Criação dos irmãos Lestar, que trabalharam em “grandes empresas circenses do Brasil” e, cansados da rotina de ter um chefe, resolveram eles mesmos ser donos de um negócio do qual gostavam tanto. Hoje, os dois se dividem: cada um cuida de uma lona específica. O dono da unidade que se instalou em Guarulhos é Ewerton Lestar. Atencioso, fazia questão de responder todas as nossas solicitações. Por WhatsApp ou no telefo82


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ne, onde era objetivo mas também simpático. Não houve dificuldade para marcar visitas em seu circo. E nem para conversar com ele em tom informal. Recebeu-nos em frente à bilheteria e ao lado de sua casa. Convidou-nos a sentar nas cadeiras de plástico vermelhas. Começou a contar sua história. Interrompido pela filha pequena, que queria saber se podia comer pipoca àquela hora da tarde, disse, em tom paternal e definitivo: agora não, espera um pouco, que o pai está dando entrevista. ëëë

Já em setembro, em um domingo de muito sol e calor em Guarulhos, havíamos chegado cedo pela manhã, conforme o combinado com Ewerton para prosseguir com o trabalho. No entanto, ele próprio deve ter se esquecido disso, já que demos de cara com um portão fechado e acordamos sua esposa ao ligar para seu celular. Assustada, ela perguntou se queríamos falar com alguém “agora, agora? Mas agora mesmo?”. Esperamos por uma hora até que alguém nos recebesse. Allan era um dos únicos acordados no Big Brother’s por volta das dez horas da manhã. Veio do fundo da lona, escura e quente, de onde só era possível enxergar sua sombra e delinear as formas de seu corpo. Quando a luz do dia começou a alcançá-lo, o que se viu foi um homem alto, de bermuda jeans, chinelos e sem camisa. Não só o calor, mas sua personalidade e a função que exerce dentro do circo explicavam o tipo de roupa escolhida. Sorridente e com a energia de um garoto que não se cansa de brincar, nos recebeu com beijos de cumprimento no rosto. Pediu desculpas pela demora – que não havia passado de dez minutos desde que o mandaram chamar. Sentiu-se incomodado com a claridade e, antes de se sentar na cadeira de plástico logo à sua frente, abaixou os óculos escuros espelhados que trazia em cima da cabeça. Esta83


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va pronto. “Podemos começar”, disse, seguro de si, enquanto nos acostumávamos com a nossa própria imagem refletida em seus olhos cobertos. Perguntamos se podíamos gravar a entrevista. Com uma expressão assustada, ele se levantou rapidamente e começou a andar em direção aos trailers, explicando que, então, colocaria uma camisa. Deixamos claro que era apenas áudio, não tinha imagem. “Ah, então tudo bem”, sentou-se, aliviado. Jogou seu tronco e seus ombros para trás e inclinou a cadeira, esticando suas pernas para frente em busca de um equilíbrio para a posição em que resolveu se acomodar. Mesmo que estivesse equilibrado em apenas dois pés da cadeira, assim se sentia relaxado. E demonstrava tranquilidade, como se estivesse conversando com os amigos em uma mesa de bar. Antes de começar a contar sua história, entendeu, sem que falássemos nada, que o fato de pouca gente estar acordada àquela hora nos fazia questionar o porquê disso. Adiantou-se e foi logo dizendo que, aos sábados, o espetáculo acaba muito tarde e os artistas vão dormir de madrugada, então aproveitam para dormir o máximo que podem no dia seguinte. Mas não hesita em brincar e dizer que, no fundo, a maioria tem mesmo é preguiça de levantar da cama. Vangloria-se por estar acordado tão cedo. Não sem deixar claros seus motivos: entre suas funções no circo, está a de cuidar da montagem e dos cuidados com a estrutura da lona. Então, durante a manhã, reúne dois ou três funcionários, que o veem como chefe, e sai em busca de consertos e melhorias a serem feitos antes do próximo espetáculo. “Quem não tem função de acordar cedo, acorda tarde demais. Os globistas são todos preguiçosos, menos eu”, ri. “Meu nome é Allan Tardelli de Azevedo, nasci em Cabo Frio, região dos Lagos do Rio de Janeiro, em 1990. Tenho 24 anos só”, diz, sorridente e com um sotaque carioca que dificil84


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mente o deixaria mentir sobre sua origem. “Mas pode colocar só Tardelli mesmo”, adverte, dando destaque ao sobrenome pelo qual é conhecido no picadeiro. Neto de dono de circo, Allan está acostumado com essa vida e sua trajetória no picadeiro é longa. Desde os nove anos de idade sabe o que é seu próprio dinheiro e conhece sua independência, como ele mesmo gosta de dizer. Antes disso, sabia o que era andar de bicicleta pelos terrenos em que morou e como brincar com as outras crianças do circo. Mas sempre rodeado por uma lona. Sua pele morena, queimada de sol, não é escura o suficiente para esconder os traços desenhados em seu corpo. Facilmente visíveis, Allan parece querer mostrá-las ainda mais, ao passar constantemente as mãos pelo ombro esquerdo e ao deixar o antebraço à mostra entre uma pergunta e outra. Não havia como não perguntar sobre suas tatuagens. A impressão que dava era a de que, mesmo se não mencionássemos nada, ele mesmo falaria sobre o assunto – coisa que, inclusive, ele faz em diversos outros momentos. Sentado no sofá de sua casa, ao lado de sua avó, Allan assistia a um jogo do Vasco quando o jogador Dedé apareceu na tela. A câmera focou a tatuagem do atleta, um terço na altura do ombro até a região peitoral, feita em 2012. Para a surpresa do globista, sua avó ficou admirada com o desenho. “Poxa, se você tivesse feito uma tatuagem assim, a Vó não iria brigar, porque é muito bonita”, disse, ainda reprovando as outras duas já feitas por Allan. Seu antebraço traz, em letras grandes e com uma fonte que imita a caligrafia, o sobrenome Tardelli. “Eu fiz o meu sobrenome aí ela reclamou. Ela não gosta de tatuagem, acha que é uma falta de respeito com o corpo”, contou. Muito apegado à família, o globista não desistiu. Queria agradar a todos, principalmente à vó. Pensou muito antes do próximo passo. Saiu em busca de uma homenagem gravada na pele. De origem 85


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italiana, procurou traços que retomassem suas raízes. Hoje, carrega na costela as palavras “sem amor eu não sou nada”, escritas em italiano e acompanhadas pelo nome da avó. Lembra, com um pouco de tristeza, que, mesmo assim, a homenagem não foi bem recebida. Sua redenção veio, então, naquele jogo do Vasco. Ouviu as palavras da avó e não pensou duas vezes. Em pouco tempo, estava com um terço eternizado em seu corpo, no ombro esquerdo, pegando um pouco a lateral do pescoço e parte do braço. “Essa é a tatuagem mais bonita que você já fez, agora pode parar”, elogiou a senhora, sem parecer conhecer realmente o neto. Allan não se impõe limites. Quando encontra algo de que gosta, sonha, planeja, vai atrás, se dedica. Olhou para nós e avisou: não vou parar, não. “Não consigo, quero mais. Vou fazer uma homenagem para o meu avô. Tenho uma foto do circo dele montado e vou fazer aqui na batata da perna. Em cima, o nome do circo Molina e, embaixo, o apelido dele que era Pinga. Aí eu acho que paro”, revelou. Acha. “A minha história começa já no berço”, é como Allan descreve sua relação com o mundo do circo. Ele é a terceira geração de sua família circense. Seu avô Silvino Bernardo foi uma criança pequena o suficiente para ganhar o apelido de Pingo. Quando cresceu, logo virou o Pinga. Ele foi dono do próprio circo, Circo Molina, e o responsável por apresentar a arte circense à família. Adriana Molina, uma das filhas do Pinga, trabalhou no circo do pai até conhecer o primeiro marido, Sérgio Tardelli. Ele, que não era de circo, levou Adriana para viver na cidade, e foi em Cabo Frio que Allan nasceu. Quando o casamento terminou, cinco anos depois, Adriana e Allan voltaram para o Circo Molina. Aos sete anos de idade, Allan arriscou sua primeira aparição no picadeiro. Depois de tanto assistir aos próprios familiares e imitar as piadas e coreografias enquanto espiava pelas cortinas 86


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do circo, ele entrou como palhaço. Uma criança com nariz vermelho e sapatos enormes já era engraçada por si própria, e Allan se tornou o “palhacinho oficial do circo”, como ele mesmo descreve. A princípio, seu nome de palhaço era “Babusinho”, mas a piada e a gozação nos fundos do circo gritaram mais forte e ele passou a ser o “Cuchiarita”. “Porque meu tio falava que eu era muito menininha. Ele sempre falava ‘Cuchiarita, vem cá!’, aí ficou”, conta dando risada de si mesmo. Foi quando uma das unidades do Circo Beto Carrero esteve no Rio de Janeiro que as vidas de Adriana e Allan mudaram. Adriana conheceu Mauro Henrique Dias, conhecido como “Maurão”, eletricista responsável pelas quatro lonas do circo. Após dois meses, os dois se casaram, mudaram-se para o Circo Beto Carrero e, já estão juntos há 17 anos. Adriana então encontrou alguém pra vida toda e Allan, um circo para lhe ensinar tudo o que sabe. Aos nove anos de idade, Allan ainda não tinha um número só seu. Assim como todos os meninos do circo, Allan era um dos “Betinhos Carreros”, a figura do Beto Carrero em versão desenho animado, que era o mascote do circo. Ele entrava no picadeiro com a máscara pesada, que ele próprio descreve como “horrorosa”, vestido como uma miniatura do próprio Beto. Seguia as batidas da música e o locutor que anunciava o nome do circo e entrava dando voltas no picadeiro, acenando para a plateia. Sua função no picadeiro era, principalmente, cobrir os dias em que Beto estava ausente. Apesar de outras sete crianças terem sido escaladas para revezar na função de “Betinho”, era Allan quem acompanhava o chefe, dono do circo e “pai de todos” em programas de televisão e eventos. Era o mais comportado de todas as crianças, o que é difícil de acreditar, visto que Allan é falador, brincalhão e traz em seu rosto o sorriso de quem já aprontou demais. “Criança de circo é um de87


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mônio. É sério. São umas pestes desde quando nascem. É muito diferente de criança de cidade”, fala dando risada. “Não tô brincando. Eles nascem com uma inteligência sobrenatural. Olha um ali”, termina, apontando para o filho mais novo de Ewerton, que mal tinha acordado e já estava correndo de um lado para o outro, pegando pedras do chão, arrastando objetos, se sujando de terra. Adriana sempre foi uma mãe exigente com o estudo dos filhos, pagou escola particular para que Allan estudasse e não deixava que ele fizesse muita bagunça. Sua preocupação era a de que seu filho não fosse visto com os olhos do preconceito, que muitas vezes enxerga as pessoas de circo como pouco estudadas. “Então minha mãe sempre falou que o mínimo que eu tinha que ter era terminar os estudos, depois eu podia fazer o que eu quisesse”, explica Allan, que hoje entende o cuidado da mãe. Durante a infância, não gostava de ter que ficar estudando e fazendo tarefa de casa enquanto todos brincavam, mas teve sua recompensa. Beto Carrero reconheceu sua dedicação e sabia que o menino se daria bem se entrasse mais no picadeiro. “O Beto era uma pessoa muito humilde. Me perguntou o que eu queria fazer no circo, disse que eu podia escolher”, lembra Allan cheio de admiração. “Eu disse que gostava da bicicleta”. Apesar de ter arrancado algumas risadas como palhaço e de ter sido um dos melhores Betinhos Carreros, Allan queria algo que lhe desse mais adrenalina. Sua personalidade inquieta e que gosta de enfrentar desafios revelou, desde pequeno, sua aptidão para números radicais. Para dar uma bicicleta especial para Allan, Beto pediu que quem mais entendesse do assunto comprasse a melhor. Chamou o especialista em BMX, modalidade que faz acrobacias com bicicleta, Daniel Veterany, conhecido como Danny. O seu show de BMX fez sucesso por muitos anos nos circos Beto Carrero, tanto que estreou também no parque de diversões, Beto Carre88


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ro World, no dia de sua inauguração, em 1991. Com sua bicicleta profissional, Allan não demorou para arriscar suas manobras. Aos dez anos, estava em Brasília com o Circo Beto Carrero, e em uma competição de BMX, Allan foi a primeira criança a realizar um salto mortal em uma rampa de oito metros de altura. Tão novo, ele já tinha feito muito. Mas, ainda era pouco. Ele queria dar um passo além da bicicleta. E conseguiu. Desde os oito anos de idade, ele já subia em cima de uma moto e acelerava pelos terrenos circenses. Sem pretensão. Brincadeira de criança. Daquelas de deixar a mãe brava. Entrar para o globo da morte era só questão de tempo. “Eu sempre gostei de moto e meu tio fazia o globo da morte. Ele sempre me pegava e me botava pra andar, mas eu também já andava sozinho”, explica Allan. Ainda com pouca altura, as mãos sujas de terra, a roupa empoeirada, ele se esforçava para subir na moto e conseguir sentar. Mas não pedia a ajuda de ninguém. Queria aprender sozinho. Sentir a liberdade em cima das duas rodas. A mãe, Adriana Molina, ficava preocupada, mas dizia a si mesma que era só uma fase, logo seu filho se cansaria da brincadeira motorizada. Quatro anos depois, a brincadeira, de fato, havia acabado, porque aos treze anos, Allan passou a ouvir o barulho do motor como profissão. Feliz com seus passeios despretensiosos em cima da moto, e ainda muito pequeno para falar sobre trabalho, Allan não procurou oportunidades. Elas vieram até ele. Na época, vivia com a família na lona do circo Beto Carrero armada no Rio de Janeiro. Viu funcionários conversando pelos cantos. Assuntos misteriosos. Sussurros. O dono, Beto, que nunca deixava de aparecer para decidir mudanças em seu próprio circo, surgiu batendo os saltos de suas botas de couro. Descobriu-se, mais tarde, que estavam em busca de uma solução: um dos artistas do globo da morte, número essencial para o espetáculo, havia deixado a equipe e era preciso 89


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encontrar alguém para substituí-lo. Mas quem? Não queriam arriscar a contratando alguém de fora, que não conhecesse a cultura daquela lona. Era preciso encontrar um novo nome ali mesmo. Chegaram à conclusão de que a melhor saída seria treinar um jovem para que se tornasse globista “formado” pelo Beto Carrero. Olharam em volta. Muitas possibilidades. Nem todas boas. De repente, viram a figura de Allan. Parado ao lado da moto. Pensando em sua próxima manobra por diversão. Os funcionários se entreolharam. Não disseram nada. Estava decidido. Entraram na casa da família, para pedir permissão à mãe Adriana e ao padrasto Mauro. Talvez um menino tão jovem em cima do palco, fazendo um número de risco, não fosse agradar aos pais. Surpreenderam-se com a resposta. “Se ele quiser… Com o Allan não adianta, se ele quiser, vai entrar”, responderam os pais. Ele queria. Allan era, então, o novo globista do Beto Carrero. Estreou no Globo da Morte aos treze anos de idade. Mesmo sem poder dirigir uma moto pelas ruas da cidade, ele já pilotava em manobras arriscadas. E como tudo na vida de Allan aconteceu cedo, um ano depois, apenas com catorze anos, ele foi morar sozinho. Allan estava com sua família em uma das unidades do Beto Carrero em Brasília, mas estavam precisando de globistas em outra lona, em Minas Gerais. Sua mãe, sempre preocupada com os filhos, queria ele por perto. Só deixou que ele fosse porque um tio estava lá e poderia ajudá-lo e também, olhar por ele. Allan por algum tempo dormiu na moradia do circo. Dividia sua privacidade com outros artistas. Dormiam em camas e beliches dentro de carretas improvisadas. Cada um tinha uma cama e uma prateleira para guardar roupas e objetos pessoais. Isso pareceu pouco para Allan e, mais uma vez, ele surpreendeu. Logo aos 15 anos de idade, comprou o próprio trailer, um modelo Brilhante da marca Turiscar. Com espaço suficiente para quatro pessoas, essa casa com 90


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rodas acompanhou Allan por quatro anos. Ele só vendeu o xodó porque foi para a unidade do Circo Beto Carrero que estava em Belém e não valia a pena guinchar o trailer do Sudeste alé lá. Após crescer e aprender tudo o que sabe nos Circos Beto Carrero, chegou a hora de ir embora. Depois que o fundador e a alma dessa rede de circos morreu, em 2008, aos 70 anos de idade, a família decidiu seguir apenas com o parque temático Beto Carrero World. Muitos artistas foram pegos de surpresa pela atitude tomada de uma hora para outra. Allan conta que tudo teria sido fruto da má fé de Alex Murad, filho de Beto, que nunca teve uma chance no picadeiro. Ele mandou que os caminhões retirassem todos os equipamentos e avisou a todos que fossem até Santa Catarina acertar com ele os valores. “Comigo e com meus familiares ele não fez isso, pra sorte dele. Estávamos lá há muito tempo, sabíamos muita coisa”, relembra Allan com ressentimentos pelas outras famílias. Porém, tudo isso Allan deixa para trás. Do Beto Carrero, ele só guarda boas lembranças. Allan sempre procurou se esforçar como profissional, para que Beto gostasse dele. Mesmo que a família de Allan tivesse muito contato com Beto e isso aproximasse os dois, ele queria fazer a parte dele nessa amizade. “A minha convivência com ele foi maravilhosa, ele me ensinou bastante coisa”, lembra. Beto Carrero é o nome artístico de João Batista Sérgio Murad (São José do Rio Preto, 9 de setembro de 1937). Desde pequeno sonhava em ser o “Zorro” brasileiro e seu talento artístico o fez presente em diferentes projetos, desde o rádio, televisão, circo e, mais tarde, o parque temático que leva o seu nome. Escolheu o nome “Carrero” em homenagem ao pai, Alexandre, conhecido como “Carreiro”, por conduzir o carro de boi, na fazenda onde era empregado e morava com a família. O menino pobre do interior de São Paulo ficou conhecido 91


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como um caubói no estilo brasileiro, sempre acompanhado de seu cavalo branco, Faísca. Além de ser uma figura carismática, ele representava a luta pelos animais. E esse amor, não só por cavalos, é uma memória ainda viva para Allan. “O Beto era carinhoso demais com os bichos dele”, diz Allan enquanto conta da vez em que Beto comprou um tigre branco, o Musatafá, que estava sendo maltratado em um circo. Mesmo sem os dentes e as garras, o animal era muito agressivo devido ao jeito como foi domado. Ainda assim, quando via Beto, ele fazia xixi de emoção, como se fosse um cachorro dócil. Beto, que não era domador, gostava tanto de seus animais que entrava nas jaulas, para o desespero de quem tinha que segurar o animal e cuidar do chefe. “Aquele homem não tinha medo de morrer, não”, conclui Allan. Beto não ajudava somente os animais, como também os artistas e as pessoas ao seu redor. Allan se recorda bem do quanto Beto era prestativo. “Se quebrasse alguma coisa em algum circo, ele mandava caminhão dele pra ajudar e não cobrava nada por isso”. Desde criança, Beto era uma inspiração para Allan, e continua sendo. “Desde pequeno eu via o Beto como se fosse um super-heroi, achava que ele nunca fosse morrer”, lembra Allan com inocência. Mas, todo mundo tem a sua hora, e a de Beto chegou em 1º de fevereiro de 2008, após uma cirurgia cardíaca. Com o fim dos circos do Beto Carreiro, Allan ficou por pouco tempo no Circo Molina, até que Ewerton, que também trabalhou com Beto, o convidou para ser globista em seu próprio circo, o Big Brother’s Cirkus. Allan aceitou a proposta e já completou três anos nesse circo. Apesar de hoje ser apresentador do Big Brother’s Cirkus, já ter praticado trapézio e báscula, é dentro do Globo da Morte que o seu coração bate mais forte. É em cima de sua moto azul, decorada com luzes de led verdes que ele se realiza e se sente como 92


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um super-herói, fazendo o que o seu ídolo Beto o incentivou a fazer. Quando ele se prepara para o show, nada pode ser esquecido. Todo o equipamento de segurança e protetores são imprescindíveis. Nunca se sabe se haverá uma queda. E como será. Sentado na cadeira vermelha, na praça de alimentação do circo, Allan fala sobre sua maior paixão. “Medo eu tenho até hoje. Se eu perder o medo, acho que paro de fazer o globo. Não vai ter mais graça. Medo é bom porque você respeita o que está fazendo”, confessa Allan em tom sério. Tudo pode ser uma brincadeira, mas arriscar a própria vida é coisa de gente grande. Mas, ele já se arriscou ainda mais do que hoje. Já se apresentou em seis motos, dentro de um Globo de quatro metros de diâmetro. Por muito tempo também se apresentou, no Circo Monte Carlo, da rede Beto Carrero, em um globo que abria ao meio durante o número. Formava um vão de 2,5 metros, enorme o suficiente para, num piscar de olhos, cair fora. Em uma temporada no Paraguai, chegou a se apresentar em um globo que abria as duas bandas laterais, sobrando uma pista estreita em que ele precisava ficar em looping. “Tem que esquecer essa abertura do lado. Porque se você olhar, perde a concentração e vai parar lá fora”, explica. “Mas nessa hora, o povo na plateia ficava maluco”, conta com um sorriso contente de quem se arrisca, mas consegue o reconhecimento do público. Com o braço esquerdo e a perna direita quebrados mais de duas vezes, luxações e deslocamentos são coisas normais na vida de Allan. O último acidente grave em que esteve envolvido foi em Corumbá, no Mato Grosso do Sul. O Globo ficava a uma altura de 7,5 metros do chão. Eram quatro pessoas, ele, um amigo e mais dois tios. Um dos tios errou em seus movimentos, e bateu a cabeça de encontro à cabeça do quarto menino. Este acabou batendo no outro tio de Allan que, por último, ficou sem escolhas. 93


por trás da lona: Memórias do Circo

Com três motos caídas na base do Globo, não há como não bater. Depois que um erra seu movimento, os outros não conseguem escolher. Allan foi o único que não ficou desacordado e correu para levantar as motos e resgatar os três companheiros de número. Todos foram encaminhados para o hospital em ambulâncias e Allan achava que não precisava ir. Estava bem. Até que um enfermeiro observou o seu braço, reparou uma forma diferente. Allan estava tão preocupado que nem mesmo sentia dor. Foi então que descobriu uma fratura exposta. Mais uma para a coleção. Por fim, todos acabaram bem. “Minha mãe nunca me viu no globo da morte, nem em filmagem”, contava enquanto caminhava conosco em direção à lona. Queria nos mostrar o Globo de perto. A cada vez que Adriana sabia que seu filho iria se apresentar, o seu coração ficava apertado, para depois aliviar, como se soubesse que tudo tinha corrido bem, e que Allan já estava a salvo, bem colocado no solo. O Globo do Big Brother’s Cirkus fica em cima de uma plataforma com rodas, para que saia de trás das cortinas e chegue o mais próximo possível do público. É uma estrutura cara, que sempre precisa de manutenção, e precisa ser desmontada e montada, a cada mudança de circo. Mas que Ewerton Lestar faz questão de manter. Quando nos aproximamos, a sensação é de adrenalina. Mesmo com o Globo vazio, escondido atrás das cortinas vermelhas de veludo, com feixes de luz passando por seus losangos, é como se sentíssemos sua energia e também, o seu perigo. Ao nos ver paradas, quase de boca aberta, observando o Globo, ele logo propôs: “Se vocês quiserem voltar mais tarde, posso colocar uma de vocês aí dentro”. Mal sabíamos o que responder, em uma mistura de vontade de arriscar, com medo de gelar a espinha. Quando respondemos que não teríamos coragem, ele zombou: “Vocês não confiam em mim não, mulheres?”. 94


allan, o globista da morte ëëë

A primeira moto entra no globo de metal trançado, sua geometria parece uma renda, que de delicada não tem nada. O globo do Big Brother’s Cirkus tem 4,40 metros de diâmetro, não é dos menores, mas quando três, ou até mesmo quatro, motos estão lá dentro, não dá para chamar de espaçoso. Para aquecer, a primeira moto roda na horizontal, faz cruzamentos na diagonal, até rodar na vertical, completamente de ponta-cabeça. Durante essa parte do número, é normal que o apresentador, ou alguém da plateia, entre no globo para ser um obstáculo a mais. Mas é preciso ter autocontrole, manter-se quieto. Qualquer movimento do braço para os lados, ou mudança na posição da perna pode acabar com o número. Todo espaço livre é precioso. O público grita, assobia, descarrega a adrenalina que eles próprios sentem. Quando a segunda moto entra, a primeira volta a rodar na horizontal, o mais alto possível, para que a segunda moto faça o mesmo logo abaixo. Depois, as duas rodam na diagonal, sincronizadamente em lados opostos. A essa altura, o público já está em choque, em pura aflição e até mesmo desespero. Há quem cubra os olhos, que prefira não sentir a ansiedade de que qualquer segundo pode se transformar em uma tragédia. Até mesmo o momento da parada é perigoso. Pois quando a primeira moto para, já não sobra muito espaço para que a segunda moto faça a mesma coisa. Quando as duas motos emparelham, lado a lado, o público respira de alívio. Mas o apresentador logo anuncia: “Não acabou aqui! Vamos receber a terceira moto do Globo da Morte”. As três motos, ainda paradas, mal cabem juntas dentro do globo. É comum que eles nem mesmo fiquem parados enquanto são apresentados e se preparam para o número. Muitos deles já começam a jogar o peso do corpo para frente e para trás, como em um balanço, em que você tem duas opções para sair: ou colo95


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ca os pés no chão, parando com força e machucando os pés, ou se atira com a balança em movimento, sem saber exatamente a qual distância será lançado. Com o Globo da Morte, é mais ou menos assim. Nenhuma das opções é certamente segura. O risco está presente, mesmo quando tudo corre normal. É hora do show. A primeira moto entra, repete o mesmo movimento, rodando na horizontal, o mais alto possível. A segunda moto acelera, repetindo os mesmos passos. Por um tempo os dois rodam juntos, até que a segunda moto roda mais alto, na mesma linha em que a primeira moto. Como se disputasse pega-pega. Então, voltam a girar na horizontal, um acima do outro, para que a terceira moto faça parte da brincadeira mortal. A terceira moto entra de uma só vez, acelerando, fazendo o público gritar ainda mais alto. Rodando na vertical, enquanto as outras duas motos rodam na horizontal, o espaço é de centímetros, o tempo é cronometrado. Cada segundo é precioso. A essa altura, algumas pessoas na plateia já estão em pé, querem ver melhor, precisam acreditar que os próprios olhos estão vendo aquela acrobacia tão perigosa. Antes que o número acabe, as luzes do circo se apagam, e tudo que se pode ser visto são as luzes de led das motos, uma de cada cor, como borrões na escuridão. Enquanto rodam, os globistas não conseguem pensar em nada. O segredo é manter a postura em cima da moto, e nunca deixar de olhar onde estão os companheiros de número. A cada volta da moto, o pescoço vira, procurando os borrões que mostram os amigos, e a distância a ser mantida. O coração bate forte, se fosse silêncio, aposto que daria para ouvir, mesmo de fora do Globo. As mãos suam, mas graças às luvas, não deslizam no guidão da moto. A cabeça roda, as imagens se embaralham, mas a atenção está a postos. É hora de parar. Cada um para sozinho, um por vez. Não tem como frear. Não existe um botão que desligue tudo e faça o 96


allan, o globista da morte

Globo ser um local seguro. É preciso desacelerar pouco, o suficiente para calcular o espaço e de repente, parar. É quando todo o público levanta, espera que cada globista saia de dentro do Globo para aplaudir. Olhar nos olhos de cada aventureiro. É hora de respirar fundo e agradecer a Deus, mais uma vez, por tudo ter dado certo. Allan volta, então, para seu trailer, aliviado. Encontra conforto e descanso nos braços da esposa Kris Oliveira, que também trabalha no circo. Casamento recente. Mas que dá a ele certa segurança, embora não deixe de brincar com sua condição. “Não casa, não, gente, tô falando sério. Eu juro! Porque tudo muda”, adverte-nos, rindo muito. Ele sabe que diz essas coisas da boca para fora. Quando tira os sapatos antes de entrar em sua casa sobre rodas, sente-se feliz por ter certeza do que vai encontrar ali: confiança e cumplicidade. Essa é a família que ele tem no Big Brother’s. Seus irmãos, que também trabalharam no picadeiro, não fazem mais parte do universo circense. Nem sua mãe, que foi morar em Salvador. Tem, ainda, uma filha. Pietra, de cinco anos, que mora no Rio de Janeiro com a mãe. Fruto de uma aventura adolescente e circense quando Allan ainda estava em terras cariocas com o Beto Carrero. ëëë

Depois de praticamente 24 anos vivendo no circo, Allan continua com energia. Sente-se cansado às vezes. Senta na beira da cama, leva as mãos à cabeça e começa a refazer sua trajetória. Repensa. Questiona. Faz planos. Com sono, decide que já chegou a uma conclusão e fecha os olhos. Mais um dia de trabalho o espera. Desperta e cumpre o que lhe cabe. Sem reclamar. Sempre com alguma brincadeira na ponta da língua para divertir aqueles que estão por perto. Para em frente ao globo da morte e fixa o 97


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olhar na estrutura de ferro. Em busca de algum reparo a ser feito. Apenas aparentemente. Seu olhar atravessa as barras e viaja até um lugar desconhecido por nós. Vai ao encontro da imagem que tem de seu futuro: ser dono da sua própria lona. “Eu tenho um sonho. Queria ter um circo meu”, responde, sem nem pensar duas vezes, a nossa pergunta. Até lá, o percurso é longo. E ele sabe disso. Diz que, em dois anos, pretende deixar de ser funcionário e artista circense. Quer estudar. Tem o desejo de fazer faculdade de Marketing, embora boa parte de sua família por parte de pai seja formada em Direito e, por isso, “bem estruturada”. “Gostaria de fazer Marketing, mas é um campo em que você tem que ser muito, muito bom mesmo pra viver disso aí”, diz, sem perder a confiança. Ele percebe nosso espanto ao falar em largar o circo. Não tínhamos ouvido uma resolução dessa sair da boca de um homem de circo até então. Joga a culpa no cansaço. Tô cansado já. “Estou com 24 anos, mas me sinto como se tivesse uns 40. A vida inteira dentro de circo. Quero ter meu trailer só pra viajar. Se Deus quiser não vou sentir saudade, não. Se eu sentir, vou ter minhas coisas ainda. Posso ir no circo de um amigo, dar uma rodada no globo só pra matar a vontade. Mas eu quero parar porque tenho uns projetos”, justifica. Viajar e conseguir um diploma. Depois disso, ser chefe de seu próprio picadeiro. Parar com a vida circense. E, ao mesmo tempo, retomá-la. Paradoxo. Hoje, Allan continua agitado. Com a mesma disposição para se reinventar. Achar um novo jeito de subir na moto. A correria que a vida circense exige só aumentou. É globista, locutor, homem-pássaro e ajuda a montar e desmontar a estrutura. Tem a possibilidade de vivenciar o circo sob perspectivas diferentes. Em cima do palco, apresenta seus colegas de profissão e evidencia detalhes que nem ele mesmo percebe quando os executa. 98


allan, o globista da morte

Executa giros a grandes alturas, sobrevoa o público, se segura firme em argolas para não cair e esperar os aplausos. Acelera e inspira o cheiro de gasolina antes que a porta de ferro se feche atrás dele para que passe a enxergar o picadeiro em movimento. Agradece a presença e as palmas daqueles que estão no circo. Vira as costas e some por trás da cortina. Nos bastidores, está dando risada, fazendo brincadeiras com os colegas com seu sotaque de “menino do Rio”. Cansado, mas pronto para a próxima.

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marcio,

o mágico

E

stacionou o carro, um Volkswagen Fox novo, no terreno em frente aos trailers e atrás da lona vermelha e branca. Desceu, colocando os pés e caminhando com cautela sobre as poças de água e lama que se formaram na grama com a chuva forte que caía em uma sexta-feira, 26 de setembro. Esperávamos no toldo em frente ao motorhome preto, protegendo-nos da água. Sorriu e disse que estava com frio, perguntando se não nos importávamos em esperá -lo colocar uma calça. A música do toque de seu celular interrompeu nossa resposta. Era “Rude”, da banda MAGIC!, popular nas rádios jovens de atualmente. Que coisa. Ali, já começávamos a delinear sua personalidade. Um mágico, fã da banda “MAGIC!”. Mais tarde, descobriríamos que a magia está mesmo por toda parte de sua vida. Atravessamos o terreno com passos rápidos, fugindo da chuva forte que caía, para nos sentarmos no pátio do circo, que ainda estava escuro, faltando cerca de quatro horas para o primeiro e único 101


por trás da lona: Memórias do Circo

espetáculo do dia. O tempo nublado e chuvoso deixava o ambiente ainda menos iluminado, de modo que mal podíamos enxergar os nossos rostos. Sentadas nas cadeiras de plástico vermelhas, estávamos prontas para descobrir mais sobre o artista que escolhemos depois de assistir o espetáculo do Circo Stankowich, cuja lona está armada em Barueri, São Paulo. Um mágico. Seus truques no picadeiro nos chamaram a atenção. Ficamos envoltas pelo imaginário que a magia traz consigo. E nem podíamos imaginar que fazíamos a escolha certa. Quando começamos de fato a entrevista, logo ouvimos: “meu nome é Márcio Antônio Stankowich Júnior”. Não sabíamos que ele era “filho” de um dos circos tradicionais mais conhecidos do Brasil. Deixamos ele contar sua história. Márcio Antônio Stankowich Júnior nasceu em 23 de junho de 1990, quando a lona do Stankowich estava na cidade de Limeira, São Paulo. De origem romena, o circo tem mais de um século de tradição, transmitindo a arte de geração em geração. Márcio faz parte da sexta e mais recente geração. Dedicou seus 24 anos à família e, logo, ao circo. Em 1856, Pedro Stankowich chegou à pequena cidade de Soledade, no Rio Grande do Sul, onde se instalou com seus animais. São 176 anos de circo e mais de 150 anos de espetáculos no Brasil. De amores circenses. De viagens longas. De despedidas. De recomeços. De números reinventados. Reinvenção. Palavra que faz parte do vocabulário circense de Márcio. Assim como magia. Mistério. Aplausos. Sua aparição nos espetáculos não é uma só. Entra e sai do picadeiro quatro vezes, apresentando truques diferentes. O nível de dificuldade vai aumentando. Os olhos da plateia focados no centro, tentando descobrir qual o segredo. Em vão. A mágica veio da identificação. Quando criança, Márcio fazia de tudo um pouco. Queria aprender. Curiosidade infantil. Corria com os amigos pelos chãos de terra. Pulava em cima do picadeiro. Ficava 102


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atrás da cortina durante os ensaios, espiando os movimentos calculados. Quando os mais velhos se retiravam do palco, prontos para descansarem e começarem os preparativos do espetáculo, as crianças tomavam aquele espaço. Riam. Definiam as funções de cada um. “Eu quero ser o palhaço”, pedia um. “Deixa eu fazer o malabarismo!”, gritava outro. Tudo o que queriam era brincar de imitação. Imitar o que haviam visto há pouco. Fingir que estavam diante de uma lona lotada, sem espaços nas cadeiras. Agradeciam os aplausos que não tinham som. Sem nem imaginar que, um dia, com certeza passariam por aquela situação de fato. “A gente quer imitar eles lá dentro quando é criança. Aí com quatro anos, já começa a querer brincar. Cada época é um negócio. A gente aprende de tudo”, comenta Márcio, apontando para o interior da lona, de onde saíam ruídos de vozes doces, delicadas e finas de pequenos imitadores da arte circense. Por enquanto. “Mas aquela coisa que a gente se identifica mesmo é a que a gente continua, então eu continuei na magia, porque eu gostava muito. Desde pequeno”, ressalta. E gosta até hoje. A magia é apenas uma parte de tudo o que relaciona Márcio ao mundo circense. Circo para ele é família, amizade, profissão e política. Quando começamos a conversar, uma das primeiras coisas que nos contou foi que na última semana havia marcado presença em um encontro, na Barra Funda, com a então candidata à presidência Marina Silva, para entender quais propostas ela tinha para proteger o circo e o teatro. “O circo é a primeira arte de todas, mas é a menos valorizada”, explica sua luta por direitos garantidos aos artistas de circo. “Na época do Lula ele ajudou muito o circo, deu uma levantada legal na arte. Então fomos lá para saber o que a Marina tinha a dizer sobre isso”. Sua luta é para manter o circo vivo, garantir direitos e, quem sabe, recuperar os que foram perdidos. Uma criança que viveu rodeada de artistas e animais selvagens teve, literalmente, uma infância 103


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mágica. Como conviveu com esses animais e viu de perto o amor que sua família sempre teve por cada um deles, discorda da maneira como os animais foram arrancados do circo quando se estabeleceu a Lei Estadual Nº 11.977 de 25 de agosto de 2005, que proíbe a criação e uso de animais em espetáculos circenses em todo o Estado de São Paulo. “Tem uns que pagam pelos outros”, explica Márcio após dizer que sabe que alguns circos realmente não mantinham os animais em boas qualidades. Mas ele viu com os próprios olhos que no Stankowich não era bem assim. “Um elefante custa 170 mil dólares, você acha que a gente ia gastar isso para maltratar o animal?”, explica enquanto lamenta mais uma vez que os animais tenham sido doados a zoológicos. “Por que não acabam com o rodeio também?”, nos pergunta com a dúvida que sempre passa pela sua própria cabeça. “Os tigres comiam carne de melhor qualidade que a nossa”, lembra. Antes mesmo de subir no picadeiro para se apresentar como mágico, Márcio repetia o que seu pai e seu avô faziam: domar animais. Entre tantas espécies, estavam elefantes, tigres, cavalos, camelos, dromedários, e mini pôneis. Seu avô nutria o maior carinho por cada um deles, e cuidava bem da alimentação de todos. Mandava caminhões até a feira mais próxima para trazer as melhores frutas possíveis e também até os açougues para trazer quilos de carne, tudo para os animais. E para Márcio, as melhores provas de que o Stankowich tratava bem os animais, é o carinho que os próprios bichos tinham por seu avô. Ele entrava em uma jaula com doze tigres dentro e nada acontecia. Se eles fossem mal tratados, a reação seria outra quando vissem seu domador. Quando o caminhão com frutas e carnes chegava, Márcio já saía de dentro do trailer de sua família, pronto para a diversão: dar alimento aos animais. Mas, de todos os bichos, um deles em especial tinha a atenção do pequeno Marcinho: a elefante Bambi. Ela chegou ao circo antes mesmo dele nascer, mas logo que ele cresceu, se inte104


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ressou por ela. Um animal tão grande, tão esperto e igualzinho aos livros da escola. Marcinho mal podia esperar para se aproximar da Bambi e fazer amizade. No começo, saía do trailer para espiar a sua jaula, pensar em como agradá-la. Mas, parece que Bambi também gostou do Marcinho assim que ele apareceu. A amizade começou rapidinho e não acabou até hoje. A maioria das crianças de escola tinha animais de estimação como cachorro e gato, ou no máximo um peixe ornamental. Marcinho tinha uma elefanta. Nenhum alimento que ele passasse comendo perto da jaula de Bambi era desapercebido. Ela sabia que o seu grande amigo iria dividir aquele momento, qualquer que fosse o alimento. Se ele estava tomando refrigerante no pátio do circo, Bambi já esticava sua tromba, só esperando tomar um gole. Ou a lata inteira. Se ele quisesse tomar sozinho, tinha que ser escondido. Marcinho passava tardes inteiras se divertindo com Bambi, tanto que quando começaram a entrar juntos no picadeiro, não foi nem um pouco difícil. O número da Bambi era muito simples, até porque qualquer coisa que um elefante faça já se torna divertido. Ela subia no seu platô, esticava a pata, dava uma volta completa, sentava-se e depois saía do platô para que o seu fiel amigo deitasse embaixo dela, totalmente tranquilo, sabendo que ela jamais o esmagaria. Depois, ela dava uma volta no círculo do picadeiro, não sem antes fazer a limpa em tudo o que estivessem comendo no camarote. Churros, pipoca, algodão doce. Tudo o que era adocicado a agradava. Tanto que ela aprendeu o truque de que, quando quisesse ganhar doce, era só fingir que não ia fazer nenhum passo sequer do seu número para que trouxessem doce para ela comer no picadeiro. Quando a lei foi criada, o animal que mais doeu perder à família Stankowich foi a Bambi. Conseguiram mantê-la em um sítio da família até que, em 2010, foi retirada dos donos. Márcio Stankowich, o pai, estava sendo acusado de maus tratos e lutou até o fim para 105


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provar o contrário. E conseguiu. Mas Marcinho faz questão de falar que “isso a imprensa não mostrou”, com a dor de quem também se sentiu acusado por algo que nunca fez. Hoje, Bambi está com idade entre 35 e 40 anos e vive no sítio em Riberão Preto. Marcinho sempre vai visitá-la, ele nunca esquece da sua amiga de infância. E da parte dela, o sentimento é o mesmo. Afinal, como dizem, elefantes nunca esquecem. ëëë

Aos 15 anos, Márcio pisou pela primeira vez no picadeiro vestido como mágico. Estava nervoso. Tinha medo que algo desse errado. Que alguém gritasse na plateia, expondo o truque a todos os presentes. Um ano e meio de ensaios. Para, então, poder deixar de imitar e passar a ser imitado pelas crianças. Com o público, estava acostumado. Já havia se apresentado como trapezista e malabarista. Mas, com a curiosidade humana em relação à magia, não tinha ainda tanta intimidade. Apresentava seus truques para os pais. Para os amigos. Para o espelho. Não falhou. Foi aplaudido. E se sentiu tão bem fazendo aquilo, que nunca mais parou. Nem mesmo largou seu truque de estreia, o único que permanece em sua rotina de mágica até hoje. Márcio entra no picadeiro vestindo calças pretas, um paletó casaca, do tipo mais comprido, que vai até a altura dos quadris. Mas há algo diferente. E não se trata da cor amarela capa de chuva do paletó. E nem mesmo a troca de sapatos sociais por tênis quadriculados. A diferença é impossível de não ser notada. Márcio entra no picadeiro andando com quatro pernas. O movimento é perfeito. Duas para frente, duas para trás. Sem desequilíbrio algum. Ele anda até o centro do picadeiro. Para e sorri. Mesmo usando óculos escuros, é possível imaginar que ele esteja dando uma piscadela com um dos olhos, como quem diz “A-há!”. Certo de que o público está de olhos pregados em suas pernas qua106


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drigêmeas, mas mesmo assim confiante, Márcio arrisca pequenos passos de dança e coloca suas pernas de um lado para o outro seguindo as batidas da música. Sempre com as mãos dentro dos bolsos da casaca amarela, mas com a cabeça reta, olhando para frente. Após exibir suas quatro idênticas pernas, Márcio dá meia-volta em direção ao fundo do picadeiro, onde ao centro estão as cortinas que levam às coxias. Ao seu lado direito já se encontra uma mesa aparadora com tudo o que ele precisa para esse número: um tecido preto e uma motosserra. Enquanto uma das mãos segura o tecido preto que esconde do pescoço até o quadril, a outra mão segura a motosserra, ou melhor, algo que imita uma motosserra. O som é sincronizado e conforme ele leva a serra elétrica na altura das quatro pernas, um barulho alto dela em funcionamento invade o circo e, quando menos se espera, uma das pernas é arremessada para trás. Márcio então, guarda os seus objetos e se prepara para o novo desfile. Agora com três pernas ele volta ao centro do picadeiro e as exibe, com a mesma coreografia e a mesma sincronia. Como em um número de memorização, o público perde tempo tentando descobrir qual delas é a próxima perna a ser descartada. Dificilmente nota-se quais delas são as verdadeiras. Ele volta para trás e repete o processo e pronto, mais uma perna que se vai. Enquanto isso, crianças estão vidradas no mágico e os adultos se revezam entre gargalhadas e pensamentos comuns como “será que eu conseguiria fazer igual?”. Quem senta na plateia lateral e vê o mágico de perfil não ganha vista privilegiada ou entende os segredos. Ele criou o número já contando com esses olhares curiosos. Por fim, ele volta para o seu último desfile e passos de dança, ainda de óculos escuros e com as mãos nos bolsos. Pela primeira vez, um par de pernas verdadeiras chamou tanta atenção. Apesar de ser um número totalmente de brincadeira, afinal apenas as crianças por algum momento realmente se perguntam se ele tem quatro pernas, 107


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não deixa de prender a atenção do público. Poderia-se esperar que os jovens e adultos zombassem de um número aparentemente tão simples. Mas, ninguém ousa criticar. Sua habilidade é incrível. ëëë

Mesmo depois de quase dez anos como mágico, os aplausos ainda instigam Márcio. Não se cansa deles. E sabe que pode aproveitá -los quando sai do picadeiro. “Eu digo que os aplausos são a melhor parte. É quando tudo ocorreu bem e o pessoal gostou. Se não estou sendo muito aplaudido, é porque tenho que ensaiar mais. E tenho que ir trocando sempre”, conta, em tom bastante sério, demonstrando que encara aquilo como uma profissão como qualquer outra. Como deve ser. Passa pelas cortinas e chega aos bastidores. Guarda os objetos que fazem parte de seu número. Troca a roupa, desejando chegar logo ao trailer e descansar. Mas a mágica o atrasa alguns minutos em relação aos outros artistas. A rotina de um mágico dentro do circo é um pouco diferente. Não pode ser tratada da mesma forma. Márcio não pode sair do picadeiro e ir dormir, simplesmente. Antes, tem que, de certa forma, esconder os pedaços de seu truque. Olhar ao redor para garantir que ninguém está vendo. Não pode ensaiar com os outros artistas. Tem que esperar todos se retirarem do picadeiro para, então, repetir inúmeras vezes suas ilusões e seus movimentos. Não bastasse isso, ainda tem que se esquivar da curiosidade. Achar uma saída no imaginário que as pessoas trazem consigo. Todos querem entender o que viram. Alguns entendem que devem conviver com a dúvida do que acontece, de fato, no palco para que o número dê certo. Faz parte da magia. Outros não se conformam. Querem descobrir como foram ludibriados. Márcio não diz. É irrefutável em todas as suas respostas. Tarefa difícil. “Tem que se esquivar. Eu me transformo mesmo. Nunca pode revelar o segredo, né. Sabendo que 108


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a gente não pode falar, perguntam do mesmo jeito. Às vezes tentam adivinhar. Falam ‘ah, você faz desse jeito’, pra ver se eu conto. Às vezes algumas pessoas até acertam, mas eu digo que não”, diverte-se, escondendo a tensão que é guardar esse segredo. Seus números são chamados de “grandes ilusões”. Precisam ser visíveis a uma distância de 10 a 20 metros, e totalmente compreensíveis. Mas nunca o suficiente para terem os segredos revelados. Para públicos de até 1500 pessoas, “números de manipulação”, como são chamadas as magias com cartas ou bolinhas, não causam efeito, apesar de serem mais facilmente controladas. Já o trabalho de Márcio exige que seus equipamentos sejam muito bem feitos e que funcionem com precisão. Para realizar os números que atualmente apresenta no Circo Stankowich, ele precisa de um tubo onde desliza sua cabeça de cima para baixo, um pano vermelho para levitar a assistente, óculos escuros que talvez sejam só para dar charme, e uma cama para desaparecer. Além de equipamentos importados, Marcinho conta com duas dançarinas ajudantes e horas de treino. “Na magia é preciso saber até a hora de errar, para não deixar o público perceber”, explica com a sinceridade de quem já errou feio. Alguns erros foram pequenos e nem todos perceberam, mas houve uma vez em que na parte final do truque, ele deveria abrir uma porta para que a dançarina fosse revelada. Mas a porta emperrou e após várias tentativas, ele percebeu que teria que desistir. “Falei para ela ‘desce, não vai dar’, aí a gente cumprimentou, saiu e o público já começou a vaiar”, lembra, hoje com certo riso. “Eu ainda tinha que entrar de novo para outro truque. Foi uma pressão psicológica que você não sabe!”. Mas, isso já faz muito tempo e hoje, em sua rotina de treino, existe um espaço reservado para lidar com erros. Márcio sempre gosta de ter um número pronto, perfeito para ser apresentado, de reserva para quando bem entender apresentá-lo. E para começar um 109


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novo número, ele precisa primeiro de quinze dias para repetir seus movimentos, diariamente, até que ele funcione sem erro algum. Depois, mais dez dias são necessários para que o número seja ensaiado com coreografia, com a posição e função de cada uma das ajudantes. Nessa parte, eles ensaiam os erros possíveis do número, para que cada um saiba como “tapar buraco”, como ele mesmo diz. Então, começam a ensaiar com música e iluminação e se preparam para a estreia. Todo pequeno detalhe vira um gigante. O monstro do fracasso e das vaias, que assombra qualquer mágico. ëëë

Tiramos os sapatos, cheios de lama, para conhecer a casa de Márcio Stankowich. O trailer dele se destaca no terreno. Ficamos admiradas. Um veículo que parece recém-saído da fábrica. Limpo de uma maneira que conseguimos até enxergar nossos rostos no reflexo. Preto. Imponente. Em frente à porta, uma cozinha limpa e organizada, sem sinal de refeições passadas ou de lanches rápidos da tarde. “O microondas é o melhor cozinheiro”, apressa-se em dizer, tentando explicar o porquê de um cenário tão calmo naquele cômodo e deixando claro que gastronomia, em sua execução, não é seu forte. À direita, um sofá relativamente grande para aquele espaço e com uma aparência extremamente confortável, nos fazendo imaginar como seria assistir a um filme deitadas ali. Uma maravilha, com certeza. Ainda mais com a grande televisão de plasma instalada um pouco acima dos móveis. Seguimos o corredor. Nenhum sinal de meias, camisetas, figurinos, maquiagens. Chegamos ao quarto. Uma cama de casal grande e alta estava arrumada com um edredom preto, lençóis brancos e almofadas. Tudo em harmonia, combinando. Mais uma TV, de tamanho menor. Organização pura. Um espaço tão comum nos circos e, ao mesmo tempo, tão diferente de outros que havíamos visitado. Foi a primeira casa de circense totalmente 110


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arrumada que visitamos. Parece até mesmo que ele arrumou tudo, em um passe de mágica. Márcio mora sozinho em seu motorhome. Seu pai mora ao lado, mas, ali, ele tem a sua privacidade. Não é casado e nem namora. Gosta de viver sua liberdade. Mesmo que isso signifique passar 24 horas por dia no circo. “Quando eu não tô no circo, eu tô aqui. Fico aqui 24h”, diz ironicamente. Tranquilo, não sai muito. E essa solidão, positiva para ele, não o incomoda. Está acostumado. Mora sem ninguém desde os 15 anos de idade. Por necessidade. E por saudade do pai. Morava com a mãe Zelândia e as irmãs, Kamila e Érica, na lona do Rio de Janeiro, mas sempre teve a vontade de viver com o pai, Márcio Stankowich. Depois disso, segundo ele, sua vida mudou. Deixou para trás a comida sempre pronta quando chegava em casa. A falta de preocupação em lavar roupa. Teve que se adaptar. “Quando a gente é mais novo, se adapta melhor. Se fosse pra me mudar agora, eu voltava. Às vezes a gente acorda tarde, daí vai comer no shopping, come Mc Donald’s e minha mãe liga perguntando se comemos bem. Quando digo que comi lanche, ela xinga”, ri, como um menino que sabe que está aprontando em casa, mas não liga. Encontra o que gosta ali mesmo. Diverte-se no picadeiro e, depois, em casa. Assistindo a jogos de futebol. Ouvindo música. Duas paixões. Dois hobbys. “Eu gosto muito de futebol, fico o dia inteiro assistindo. Mesmo jogo repetido, não importa”, conta, mostrando a TV, que sempre sintoniza nos canais SporTV e ESPN. Está sempre atento aos campeonatos europeus. Admira muito os clubes espanhóis Real Madrid e Barcelona. No Brasil, torce para o São Paulo. “Quando vai ter jogo deles eu tento nem sair”, já vai logo avisando. A paixão pela bola rolando em campo é tão grande, que a Copa do Mundo no Brasil se tornou uma decepção para Márcio. Quando toca nesse assunto, abaixa um pouco a cabeça, coça o couro cabeludo, faz movimentos com a boca enquanto está procurando palavras. “Na 111


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Copa eu me decepcionei muito. Quase quebrei o trailer todo. No jogo contra a Alemanha, a gente fez churrasco, colocou telão porque nem ia ter espetáculo. Mas no terceiro gol eu já vi que não ia dar, dei um chute na cadeira que quase quebrei o dedo. Fui pro trailer, desliguei tudo e dormi. Morri de raiva”, relembra, ainda ressentido. Mas, mesmo depois disso tudo, enquanto Márcio conversa conosco, está vestindo uma camisa da seleção brasileira. Porém, contra sua vontade, com cinco estrelas. Às sete horas da noite, durante a semana, o futebol dá lugar à música. E tudo isso misturado a conversas no Facebook e no WhatsApp. “Eu coloco no Multishow para ouvir música, no TVZ. Gosto de várias, mas a banda com que eu mais me identifico é Jota Quest. Também gosto de Jorge e Mateus, de reggae...”, conta, fazendo questão de dizer que seu gosto é eclético e explicar o toque de seu celular. Contamos que Jota Quest fará um show em nossa formatura. Márcio se animou tanto quanto nós, para logo dizer que, infelizmente, não tem muita oportunidade de ir a concertos e eventos. Abrir mão de muita coisa faz parte da vida circense. “Eu vejo que tem show mas nem procuro saber mais, se não passo raiva. Às vezes a gente monta a lona, principalmente no interior, e do lado está tendo show. Um dia a gente estava em Santos e o Jota Quest ia tocar ao lado. Pensei em pular o muro. Escutei todas as músicas enquanto estava me arrumando e não pude ir”, relembra. ëëë

E, assim, Marcinho, como é chamado pelo pessoal do circo, vai levando a vida. Sua maior preocupação é acordar, ensaiar e fazer um bom espetáculo. A tranquilidade transparece em sua expressão. A todo momento, parece dizer: calma, por que a pressa? Tanto que a palavra “futuro” lhe causa surpresa. Quando tocamos no assunto, sentiu-se desconfortável. Por não ter uma resposta imediata. Teve 112


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que pensar. A resposta, no entanto, depois de muito tempo de conversa era óbvia. Márcio é, de fato, um filho do circo. Não abre mão disso. E nem se afasta por um segundo se quer. “Daqui dez anos?! Imagino eu dando continuidade ao circo, mas não sei se vou estar no picadeiro. Às vezes tem que largar o picadeiro para continuar fora. Não sei se estarei fazendo mágica, mas acho que sempre vou querer entrar no palco pra fazer. Vou precisar de um substituto”, pondera. Manter o circo vivo, para Márcio, é o seu segundo sonho, não menos importante, já que ele mesmo diz: “o meu sonho eu já realizei. Era ser mágico, entrar no picadeiro e receber os aplausos no final”, revela essa pequena vaidade de um jeito muito humilde. A lona está presente, inclusive, em suas pretensões acadêmicas. Fala, com determinação, que pretende fazer faculdade. Mas quer se formar para ser ainda mais útil ali dentro. “Pretendo fazer administração e gosto de informática também. Não pode parar. Quanto mais estudo a gente tiver, melhor para a continuidade do circo. Querendo ou não, tem que ter um estudo, saber alguma coisa. Os antigos não tinham isso, mas são outros tempos. Precisa ter uma visão por fora do circo”, afirma, buscando nossa aprovação com o olhar. E dessa forte ligação com o espaço circense decorre um trauma na vida de Márcio, que ele nos contou em tom de brincadeira, dando risada. Pensando no futuro, a família Stankowich resolveu comprar um apartamento em São Paulo, no bairro de Santana. Quando precisassem passar um tempo maior na cidade, teriam um endereço fixo. E têm até hoje. Mas só por precaução. “Eu nem gosto de lá. Tenho trauma”, ri. A mãe Zelândia estava preocupada com os estudos de Kamila, Érica e Márcio. Determinou que eles parariam de se apresentar por um tempo no picadeiro e se instalariam em São Paulo para terminar o colégio. Rotina totalmente diferente. Difícil adaptação, principalmente para um menino de dez anos de idade que não conhecia outro ambiente que não o circo. De forma que até hoje Márcio se lembra: os novos hábitos, 113


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na nova casa, não duraram nem três dias. Em uma sexta-feira, voltou da escola e não encontrou as irmãs. Foi logo procurar uma resposta com a mãe. Kamila e Érica deram o primeiro passo e já tinham voltado para a lona e para os trailers. Ficou desesperado. Quis fazer o mesmo em questão de segundos. “Comecei a chorar, nem três dias e eu já liguei para o meu avô. Ele mandou o motorista me buscar. Aí minha mãe não tinha mais o que fazer lá e também voltou. Esse é meu trauma. Tanto que nem vou lá no apartamento”, conta, sem saudades. O amor por aquele espaço que ocupa desde que nasceu é tão grande, que Márcio falou em nos mostrar os bastidores e o picadeiro desde a hora em que chegamos para entrevistá-lo. Mal via o momento de nos apresentar aquele cenário tão comum aos seus olhos. Quando dissemos que a conversa havia sido suficiente naquele dia, levantou eufórico da cadeira, nos guiando pelo corredor que levava à entrada do Circo Stankowich. Tudo estava escuro. Imóvel. Faltavam horas até o primeiro espetáculo, às 20h30. Acendeu a lanterna de seu celular para enxergarmos melhor. Mas conhecia cada centímetro daquele espaço de cor. Foi nos alertando sobre os pequenos obstáculos, até que chegamos ao centro do picadeiro. Bem ali ao meio, impossível de não ser notado, estava o pêndulo usado no primeiro número da apresentação do Circo Stankowich. O enorme pêndulo já estava posicionado, pronto para ser erguido na lona do circo enquanto o acrobata se equilibra e corre dentro de um círculo aberto, sem qualquer tipo de cinto ou proteção. Márcio faz questão de nos apresentar cada detalhe, até mesmo o que não diz respeito à sua apresentação. Mesmo sendo o mágico, o número que mais desperta curiosidade e que guarda mistérios, Márcio não acha que sua participação é a mais importante. Além de humilde, ele é muito calmo, o que é até mesmo raro entre pessoas do circo. Mas, sua tranquilidade faz parte da sua cabeça pronta para, no futuro, ser o novo líder do Stankowich. 114


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Caminhamos até o fundo do picadeiro, próximo às cortinas. Mas, antes de entrar nos bastidores do circo, ele fez questão de nos mostrar uma aquisição única do circo. O lugar que parece ser um palco, bem abaixo do letreiro luminoso e amarelo que diz “Stankowich”, é um tanque de água. Raso, mas poderoso. De cada um dos lados estão as cortinas de tecido metálica, abertas para mostrar o que acontece ali. É um espetáculo de águas dançantes com direito à iluminação sincronizada com a música. Esse show, um tanto quanto diferente para um circo, acontece no fim dos espetáculos, enquanto os artistas preparam-se para voltar ao picadeiro em seu desfile de adeus. São mais de cinco minutos o tempo em que esguichos de água voam alto, colorindo os fundos do picadeiro. Essa ideia muito provavelmente faz referência aos shows de águas em Las Vegas, nos Estados Unidos. Afinal, mesmo quando estão de férias, as viagens são ligadas ao mundo do circo. Ou Márcio visita a prima, Arielle Stankowich, acrobata de um dos maiores circos do mundo, o americano Ringling, ou visita os parentes na França, onde sempre passa por algum circo novo. São essas referências que mantêm o alto padrão do Stankowich. “É o sobrenome do meu pai, do meu avô que está nas carretas, na televisão, no nome do circo. A gente quer manter a tradição”, explica sua preocupação em sempre melhorar e criar novos números de magia. Depois de fazer questão de ligar as máquinas para que víssemos de perto as águas dançando, ele desligou tudo e atravessamos as cortinas. São várias camadas para que a luz das coxias nunca invada o picadeiro. Mas, àquela hora do dia, as luzes do circo ainda estavam todas apagadas e quase confundimos as próprias cortinas com a imensidão do circo às escuras. O espaço no fundo do circo era de tamanho médio, mas em comparação com outros, era também muito organizado. Poucos objetos pelo caminho. Podia-se ver as carretas que viraram camarins dos artistas e, em um canto, cobertas por um 115


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tecido preto, estavam os instrumentos de magia. Após tanto tempo conversando com nós sobre seus segredos e treinos, ele nem mesmo cogitou em nos dizer para não encostarmos em nada. Sempre muito calmo, ele confiou que não iríamos em momento algum revirar tudo atrás de uma brecha, de uma pista de seus segredos. O maior objeto à mostra era a cama de estrutura branca, com um colchão de roupa de cama colorida, e um grande relógio pendurado na cabeceira, desses que quando despertam fazem barulhos de pratos batendo. Nossas mãos curiosas não resistiram, chegamos a encostar no colchão para ver sua textura e ele logo disse “é um colchão macio”, como quem conhece muito bem a cama que o faz desaparecer quando se cobre com o lençol, dando espaço a uma de suas dançarinas e assistente de palco. Sem pressa alguma, deixando que víssemos tudo pelo tempo que fosse necessário, nos levou de volta ao picadeiro, e lá ficamos, de costas para o tanque das águas dançarinas, observando a plateia vazia que pode acomodar até 1500 pessoas. Após o silêncio em que ficamos pensando como é se apresentar para tantas pessoas, ele completou nossa ideia e disse “é muita gente te olhando quando se está aqui”. E como quem ainda não se acostumou, ou melhor, como quem nunca vai enjoar dessa situação, ele disse “imaginem a sensação de se apresentar aqui”. O sol ainda espalhava pequenos feixes de luz dentro da lona do circo, mas logo ficaria noite e as luzes seriam acesas. Aquele silêncio seria substituído por gritos e risadas de crianças e adultos. O cheiro de pipoca e cachorro quente entraria naquela atmosfera e, mais uma vez, seria hora da magia. ëëë

Despede-se. Não sem antes se colocar à disposição para o que precisarmos. Diz que se precisássemos voltar mais vezes, era só falar com ele. Sorrindo, com timidez para soltar as palavras que estavam presas, enrola um pouco, dá passos para trás, mas resolve seguir em 116


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frente e nos pergunta, curioso: o livro vai sair quando? Tratandose de Márcio, esse não é um questionamento vaidoso, embora ele deseje conferir como sua história se sai como narrativa escrita. A pergunta é movida pela sua paixão pelo circo. Quer que cada detalhe fique gravado para a posteridade. Que sua arte seja levada adiante. Que o circo tenha voz. E palavras. “É difícil. Só tem livros antigos de circo, não tem nada de agora. E os poucos que tem são de fora do Brasil”, argumenta, insinuando que nosso trabalho é muito importante e que fará diferença na bibliografia que ele tanto preza. Nos assiste caminhar em direção à saída, parado, firme, onde o cumprimentamos. Tem um brilho no olhar de quem tem esperança. De que a atividade circense no Brasil cresça cada vez mais e conquiste o espaço e o respeito que merece. Quer seguir os passos do pai Márcio, representante do circo no país, não só dentro da lona, como fora dela também. Quer áreas oficiais para o circo. Mais incentivos. Maior visibilidade. E promete lutar por tudo isso. Entre as suas últimas palavras para nós naquele dia, algumas ganhavam mais ênfase, em um tom de missão. Filho do circo, hoje, é assim que Marcinho se sente: um dos escolhidos, entre tantos, para perpetuar essa arte. Se pudesse, faria passes de mágica para alcançar seus objetivos nesse sentido. Como não pode, deixa a magia para o picadeiro. Escapando para o mundo real, às vezes.

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FONTES “Carnivalee Freakshow” e “Ribbons and banners” nos títulos; “Chaparral Pro” nos textos.




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