Anotações de Filosofia

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Anotações de Filosofia

Ricardo Ernesto Rose


Ricardo Ernesto Rose Graduado em Filosofia, Centro Universitário Claretiano Pós-Graduado em Filosofia, Universidade Cândido Mendes Pós-Graduado em Sociologia, Universidade Gama Filho

Anotações de Filosofia

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Copyright © Ricardo Ernesto Rose (outubro 2018) O conteúdo desta obra é de responsabilidade do autor, proprietário dos direitos autorais.

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Coordenação, revisão, design e diagramação: Ricardo Ernesto Rose

Capa: gravura de Erich Heckel (1883-1970)

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Índice Antropologia filosófica (6-7) A crise da metafísica e o pensamento pós-moderno (8-10) A crítica da modernidade (11-13) A Crítica da Razão Pura de Kant e o desenvolvimento da ciência (14-15) A ética e a Ética a Nicômaco, algumas considerações (16-18) A filosofia e interação com a educação: Sócrates, Platão e Aristóteles (19-21) A filosofia no ensino médio (22-23) A História, os fatos e a interpretação (24-25) A metafísica (26-28) A origem das instituições em Marx (29-30) Alguns aspectos do pensamento de Descartes (31-32) Aspectos do imaginário popular na Idade Média (33-35) Comentando Marilena Chauí e Edmund Husserl (36) Comentários sobre o texto “Reflexões sobre a racionalidade científica: problemas, apostas e respostas” (37-38) Como percebemos o mundo (39-41) Desafios atuais da filosofia política (42-44) Direitos humanos: origens e fundamentos (45-48) Divagando sobre o tempo (49-50) Dualismo e sentido da história (51-54) É possível a neutralidade do pensamento científico? (55-56) É possível ensinar filosofia no Ensino Médio? (57-58) Economia e relação com ciência e tecnologia: pressupostos teóricos (59-61) Erasmo de Rotterdam e a Reforma (62-64) Eric Hoffer, o filósofo-estivador (65-68) Heráclito e Parmênides (69) História e generalização (70-73) John Locke e o liberalismo político (74-75) Kropotkin (e Hume) e as leis da natureza (76) Materialismo histórico e materialismo dialético (77-78) Metafísica: alguns aspectos (79-80) 4


O mundo sensível e ideal no pensamento de Platão (81) Nietzsche e Heidegger: convergências e divergências (82-83) O ambiente científico-filosófico do Renascimento italiano (84-87) Alberto Caraco, filósofo do caos (88-93) O muro está lá (94) O papel do pesquisador teórico na contemporaneidade (95-96) O pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (97-98) O ser humano e sua essência (99) Origens do pensamento filosófico brasileiro (100-102) Razão científica e racionalidade (103-104) Sartre e a liberdade (105-106) Sartre e o marxismo (107,108) Senso comum (108-111) Vida eterna, prazer eterno (112-113)

A antropologia filosófica 5


Pressupostos A ideia de que o homem está situado em dois mudos, o material e o ideal (espiritual, mítico, intelectual, psíquico) sempre permeou o pensamento da maior parte dos filósofos. Um dos precursores da antropologia filosófica (AF), segundo Abbagnano, foi o viajante, cientista e intelectual Alexandre von Humboldt. Este já no início do século XIX pretendia que a antropologia, além de determinar as condições naturais do homem (temperamento, raça, nacionalidade, entre outros) também descobrisse, através destas condições, o próprio ideal da humanidade; o padrão que continua sendo o objetivo para o qual todos os indivíduos tendem. Max Scheler, filósofo alemão do início do século XX e considerado o fundador da AF, coloca sua filosofia como situada entre a ciência positiva e a metafísica, no que se refere à sua análise do homem. Scheler fazia uma nítida distinção entre os diversos tipos de conhecimento e, talvez, seja por isso que tenha conseguido afirmar tantas coisas que – mesmo à sua época – conflitavam com o conhecimento científico. “Aquilo que pertence à esfera da crença religiosa, nasce no âmbito da história, cresce definha e morre. Nunca será estabelecido à maneira de uma proposição científica, provado e, mais tarde refutado” (Scheler, 1993). Objetivo A AF se propõe a ser uma ciência antropológica (ao lado das outras antropologias, como a física e a cultural) que estuda o homem além de seus aspectos físicos, biológicos e psicológicos; estudando “o lugar do homem no universo” e respondendo às eternas perguntas sobre sua situação (quem sou?), sua origem (de onde vim?) e seu destino (para onde vou?). Scheler em seu “A posição do homem no universo”, escreve: “É tarefa de uma antropologia filosófica mostrar exatamente como emergem a partir da estrutura fundamental do ser homem, tal como ela foi transcrita de maneira apenas resumida em nossas exposições, todos os monopólios específicos, as realizações e as obras do homem: assim a linguagem, a voz da consciência, o instrumento, as armas, as idéias de certo e errado, o estado, o governo, as funções representativas das artes, do mito, da religião, da ciência, da historicidade e da sociabilidade” (Scheler, 2003). A AF pretende ter, pelo exposto, uma visão completa das atividades do homem, considerando sua especificidade separada dos outros seres vivos. Em seu método se vale de “um discurso racional sobre o ser humano para explicar a essência do ser humano, as categorias abstratas, para isso precisa das contribuições do saber científico e do ontológico, precisa das contribuições das ciências do homem” (Acha e Piva, 2007). Histórico Os antecedentes da AF encontram-se em diversos pensadores que, de uma maneira ou outra, contribuíram para a formação desta disciplina. Entre os principais filósofos que influenciaram a AF, estão: - Kierkegaard e sua ideia do valor absoluto do homem diante de Deus, sem intermediários; - Herder, pensador influenciado pelo iluminismo e defensor da liberdade e da responsabilidade do homem; - Toda a escola dos pensadores considerados existencialistas (a prioridade da existência sobre a essência), como Heidegger, Jaspers, Buber, Sartre, Marcel, Hartmann, entre outros; - Pensadores da corrente personalista, de forte influência católica, como Mounier, Lesch e Jolif. Uma das grandes preocupações de grande parte dos filósofos, desde a Antiguidade, foi o homem em sua concretude. Cada um, a seu modo, procurou definir qual seria o papel do

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homem no cosmos. Nesta tentativa, cada pensador, evidentemente, tentou dar seu parecer sobre a situação do ser humano em sua visão do de mundo. Desde Heráclito e Parmênides, passando por Sócrates, Platão e Aristóteles; até a Idade Média com Agostinho e Tomás de Aquino; a pergunta principal da filosofia foi: “o que é o homem e qual seu papel no universo?” Ernst Cassirer, em sua obra “Ensaio sobre o Homem”, escreve em relação a esta pergunta: “Que o conhecimento de si mesmo é a mais alta meta da indagação filosófica parece ser geralmente reconhecido. Em todos os conflitos entre as diversas escolas filosóficas, esse objeto permaneceu invariável e inabalado: foi sempre o ponto de Arquimedes, o centro fixo e inamovível, de todo o pensamento” (Cassirer, 2005). O que é o homem? Quanto à pergunta sobre o que é o homem, a AF tenta respondê-la a seu modo, considerando a criatura humana como sujeita a fatores físicos, biológicos, psicológicos e sociais, e ao mesmo tempo dotando-a de uma “dimensão espiritual”. “Enquanto o Eu e o corpo permanecem relegados à finitude do ambiente, a pessoa espiritual pura consegue alçar-se ao absoluto. Sua dimensão é o mundo como mais alta representação de valores e ideais absolutos, como lugar de atributos puramente espirituais e divinos. O ser humano pertence a ambos os reinos; ele enquanto o ser cindido tem de se reconciliar entre si e o corpo e o centro espiritual pessoal. Neste sentido, refletem-se nele enquanto microcosmo as relações (metafísicas) do macrocosmo” (Arlt, 2008). Considerações A AF é baseada em pressupostos metafísicos. No entanto estes conceitos, como o das Ideias de Platão, o hilomorfismo de Aristóteles, a essência e existência de Tomás de Aquino, o res cogitans e res extensa de Descartes; os conceitos de substância, alma, entre outros, têm mais interesse histórico mas não são mais temas correntes na filosofia moderna. A AF, no entanto, se baseia em grande parte nestes conceitos. No pensamento de Scheler, iniciador da moderna AF, encontram-se temas que caberiam mais nos tomos de metafísica ou até na apologética cristã. Sob muitos aspectos, a AF não dispõe mais uma mensagem atual para o mundo moderno e tornou-se, assim, mais uma corrente filosófica relegada aos tomos de história do pensamento filosófico.

Referências Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Martins Fontes. São Paulo: 2007, 1210 p. Acha, Juan A.; Piva, Sérgio I. Antropologia Filosófica. CEUCLAR. Batatais: 2007, 71 p. Arlt, Gerhard. Antropologia Filosófica. Editora Vozes. Petrópolis: 2008, 299 p. Cassirer, Ernst. Ensaios sobre o Homem. Martins Fontes. São Paulo: 2005, 391 p. Scheler, Max. A posição do homem no Cosmos. Forense Universitária. Rio de Janeiro: 2003, 123 p. Scheler, Max. Morte e sobrevivência. Edições 70. Lisboa: 1993, 103 p.

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A crise da metafísica e o pensamento pós-moderno A crise da metafísica ocorre quando esta disciplina tem os seus princípios criticados e, de uma forma efetiva, colocados em questão. O processo, todavia, estende-se por um longo período na história da filosofia e não é causado por um só pensador. No final do período medieval a filosofia tomista, desenvolvida por Tomás de Aquino (1225-1274) e dominante desde o século XIII até o século XVI, perde sua hegemonia e passa a ser criticada (este o destino de qualquer escola filosófica) em seus diversos aspectos. Um dos primeiros pensadores críticos da filosofia da Baixa Idade Média foi o inglês Roger Bacon (1210-1294). Para este franciscano, são três as fontes do saber: a autoridade, a razão e a experiência. Em suas obras, Roger Bacon sempre deu ênfase ao empirismo e à matemática, tendo sido o primeiro pensador ocidental a empregar a expressão “leis da natureza”. Um dos primeiros críticos do pensamento tomista foi o escocês John Duns Scotus (1265-1308). Segundo este teólogo e filósofo franciscano, as verdades da fé não poderiam ser compreendidas pela razão. Por esse motivo, defendia uma separação entre a filosofia e a teologia. Sua ênfase nos aspectos volitivos da fé contribuem para que gradualmente a razão perca sua força para demonstrar aspectos da religião, isto é, da metafísica. Guilherme de Ockham (1285-1347), discípulo de Scotus, dá o passo seguinte nessa crítica, enfatizando que o conhecimento empírico é superior ao intelectual. Vemos neste movimento o desenvolvimento do experimentalismo inglês, cujos mais importantes representantes atuavam na Universidade de Oxford. A experiência torna-se cada vez mais importante, abrindo caminho para o empirismo e o enfraquecimento dos diversos conceitos metafísicos. Ideias como "Deus" e "alma", não sendo sensíveis, não poderiam ser cognoscíveis. Da mesma forma que não são experienciáveis as noções de "substância", derivadas da filosofia aristotélica e incorporadas no tomismo. No século XV e XVI aumenta a disponibilidade de traduções de textos da Antiguidade grega e romana, popularizando entre a elite letrada autores clássicos da filosofia, como Platão e Aristóteles, e textos de escolas do período do helenístico. Pensadores das escolas atomista, epicurista, cética, cínica, cirenaica e filósofos romanos; todos desconhecidos durante a maior parte da Idade Média, tornaram-se acessíveis aos humanistas da Europa renascentista. Grande parte destas escolas não se ocupava da metafísica, dando mais atenção à ética, à lógica e à física. Outro aspecto da gradual erosão da metafísica clássica é o surgimento da ciência teórica e do método experimental no século XVI e XVII, com Leonardo da Vinci (1452-1519); Galileu Galilei (1564-1642); Francis Bacon (1561-1626) e René Descartes (1596-1650), entre seus principais teóricos. Descartes, filósofo francês, foi o introdutor da moderna filosofia (metafísica) e da moderna matemática aplicada aos experimentos científicos. Na Inglaterra, desde o final do século XIV, desenvolve-se uma corrente de pensamento com forte tendência empirista contrária à metafísica, que iniciada por Scotus e Ockham, passa por Francis Bacon e Thomas Hobbes (1588-1679) até chegar a John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776). A metafísica antiga e medieval, desenvolvida por Aristóteles e mantida em grande parte inalterada pelos pensadores da Idade Média, baseava-se no pressuposto de que a realidade existe em si mesma e assim se apresenta ao pensamento, à razão. No século XVII, Descartes reformulou as bases da moderna filosofia e com isso criou a moderna metafísica ou metafísica clássica. Esta estava baseada na ideia de que a mente humana ou a razão, poderia conhecer a realidade através de raciocínios ou conceitos, que representando as coisas, as transformam em objetos de conhecimento. Em suma, a mente, com o uso da razão, poderia conhecer a

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realidade. Descartes em sua obra Discurso sobre o método, estabeleceu que a razão humana pode apreender o mundo, baseada no fato de que um ser infinito (Deus) garantia a realidade e sua inteligibilidade. O pensador empirista inglês David Hume, tendo como base a teoria do conhecimento, argumenta que o pensamento atua fazendo a associação de sensações, percepções e impressões, recebidas pelos sentidos e guardadas na memória. Assim, continua Hume, as ideias nada mais são do que hábitos mentais que operam baseados em associações de impressões semelhantes e sucessivas. A própria noção de causalidade é negada por Hume, não passando de um hábito repetido diversas vezes por nossa mente e levando-nos à crença de que existe uma causalidade real. A crítica de Hume foi devastadora. Com ela perdem valor todos os conceitos da metafísica – Deus, alma, infinito, mundo, céu, perfeição, etc. – já que não passam de constructos mentais e não tendo nenhuma realidade objetiva. As ideias do pensador inglês demoraram algumas décadas para serem amplamente divulgadas entre outros filósofos europeus, mas desde então a metafísica, como existia desde os gregos, não era mais possível. O filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804), ao ler o Tratado da Natureza humana de Hume, afirmou que este o havia “despertado do sono dogmático”, isto é, de sua crença inquestionável na metafísica clássica. Com isso dá início a uma crítica da razão teórica, ou seja, um estudo para determinar o que a razão pode ou não efetivamente conhecer. O filósofo realiza uma verdadeira “revolução copernicana” na filosofia, estabelecendo que não é a realidade que determina nossa maneira de pensar, como Hume argumenta, mas que é nossa maneira de pensar que determina a realidade. Através das formas a priori de sensibilidade (aquelas que existem antes da experiência) e dos conceitos a priori do entendimento, Kant demonstra que existem dois tipos de realidade: a) aquela que apreendemos através dos nossos “filtros” apriorísticos, os chamados fenômenos e b) a que é inapreensível à experiência e que Kant chama de noumeno. No entanto, é exatamente noumeno ou “coisa-em-si” (Ding-an-sich, no original alemão) o objeto da metafísica. Esta, então, não é possível. Escreve Marilena Chauí sobre este tema: “A ideia metafísica de um Deus é a ideia de um ser que não pode nos aparecer sob forma de espaço e tempo; de um ser ao qual a categoria de causalidade não se aplica; de um ser que, nunca tendo sido dado a nós, é posto, entretanto, como fundamento e princípio de toda a realidade e de toda a verdade. Assim, a ideia metafísica de Deus escapa de todas as condições de possibilidade do conhecimento humano e, portanto, a metafísica usa ilegitimamente essa ideia para afirmar que Deus existe e para dizer o que ele é. Kant emprega uma argumentação semelhante para dois outros objetos da metafísica: a existência da alma ou substância pensante e a discussão da finitude ou infinitude do mundo.” (Chauí, p. 200). A partir de Kant a metafísica deixa de ser realista (a realidade pode ser conhecida pelos sentidos) para se tornar idealista, ou seja, “a realidade estruturada pelas ideias produzidas pelo sujeito” (Chauí, p. 201). A escola idealista terá como seu maior representante o filósofo alemão Georg W.F. Hegel (1770-1831) e ao longo do século XIX terá como opositora a escola de pensamento materialista (Karl Marx, Ludwig Feuerbach, Friedrich Nietzsche, entre outros). Um dos principais aspectos da pós-modernidade é a morte da ideologia ou de qualquer metanarrativa; seja religiosa (cristianismo e sua explicação do mundo e da história humana) ou política (o marxismo que pretendia estabelecer uma sociedade sem classes). Os acontecimentos históricos dos últimos 70 anos mostraram à humanidade que a crença em constructos metafísicos como “o progresso”, “a humanidade”, “a revolução”, só trouxeram mais sofrimento e destruição ao invés do “paraíso terrestre”. As guerras, a evolução da tecnologia, e a falência das grandes ideologias políticas, são fatos que ajudaram a formar nossa visão de mundo pós-moderno.

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Os pensadores em sua maioria se convenceram de que os sistemas políticos, religiosos e filosóficos não podem mais apresentar uma explicação da realidade, nem indicar os caminhos que a humanidade deve seguir. Não se formulam mais sistemas filosóficos; o que sobrou foi a pluralidade de ideias, opiniões e pequenas narrativas, sob a égide do debate democrático. As verdades não existem mais, “só interpretações”, como escreveu Nietzsche. O pensamento pós-moderno é herdeiro filosófico de Nietzsche e de Heidegger. De Nietzsche o pensamento pós-moderno herdou a crítica a todo tipo de idealismo; filosófico, ideológico e científico. A frase “Deus está morto” sintetiza a falência de todos os fundacionismos e a impossibilidade do pensamento metafísico. Heidegger, em parte herdeiro de Nietzsche, ainda aprofunda mais esta crítica, colocando-a como fato dado. Ernildo Stein filósofo, discípulo e tradutor da obra de Heidegger para o português fala em uma entrevista: “Talvez convenha dizer que Heidegger finalmente, sem nenhuma inibição, libertou o ser humano como ser no mundo de qualquer amarra metafísica, deixando como tarefa sua, a instauração da verdade. Heidegger declara que não há verdades absolutas ou literalmente ‘não há verdades eternas’. A verdade só existe porque o ser humano opera com ela” (IHU On-Line, s/d). E referindo-se especificamente à pós-modernidade: “Assim como vivemos a chamada pós-modernidade e nela identificamos a fragmentação de toda a unidade entre a ciência, arte e religião, assim temos que reconhecer que, se ainda procuramos razões que não sejam razões da ciência, essas não são mais razões ou fundamentos metafísicos. O pós-metafísico é um mundo sem fundamentos absolutos.” (IHUOn-line, s/d – negrito nosso)

Referências A escolástica pós-tomista. Disponível em: <http://www.mundodosfilosofos.com.br/escolastica2.htm>. Acesso em 29/7/2013. A superação da metafísica e o fim das verdades eternas. Disponível em: http://amaivos.uol.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod_noticia=7197&cod_canal=41. Acesso em 29/09/2013 Chauí, Marilena. Convite à filosofia – 13ª edição. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 p.

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A crítica da modernidade A modernidade foi um período na história cultural da humanidade que se estendeu aproximadamente da Revolução Francesa, no final do século XVIII, até meados do século XX. Estes critérios não são unânimes, porque alguns historiadores e sociólogos consideram o século XVI como início deste período. Outros afirmam que a modernidade ainda não terminou e que a expressão “pós-moderno” não tem razão de ser. A divisão da história em períodos (Antiguidade, Idade Média e Modernidade), iniciada pelo historiador alemão Christoph Cellarius (1634-1707), não é isenta de influências ideológicas, representando interpretações de períodos da história da humanidade, baseadas em paradigmas culturais. No entanto, para seguir a interpretação majoritária, consideraremos que a modernidade teve início com a Revolução Francesa e terminou na metade do século XX, por razões que explicaremos ao longo do texto. O ponto principal da discussão sobre a modernidade tem a ver com a “mentalidade moderna”; uma maneira diferente de encarar o mundo; uma nova cultura – em comparação e oposição à mentalidade e cultura medieval. A temática não é nova e já ocupou os enciclopedistas, que foram os principais propagandistas da ideia de que a Idade Média foi um período de ignorância e opressão, o “período das trevas”. Sob esta perspectiva, pode-se considerar que o surgimento do protestantismo, da imprensa e o contato com as novas culturas das terras recémdescobertas no século XVI, já contribuíram para a formação de uma mentalidade moderna. Outro grande marco na formação da modernidade foi o surgimento da moderna ciência com Francis Bacon (1561-1626) e Galileu (1564-1642) junto com o desenvolvimento da matemática (geometria analítica) e da moderna filosofia (metafísica) por Descartes. A física newtoniana, que tanto influenciou o filósofo Voltaire – um dos inspiradores da Revolução Francesa – também é considerada um grande marco na formação da mentalidade moderna. Na França o século XVIII vê nascer a Enciclopédie, a enciclopédia; reunião de todos os conhecimentos disponíveis à época e colocados à disposição em livros para aqueles que os podiam comprar. Teoricamente, todo o conhecimento acumulado pela humanidade – artes, tecnologias, história, ciências – estava disponível para o cidadão. A divulgação da cultura e da educação foi uma revolução nunca vista e só ultrapassada pela Revolução Francesa, o mais importante evento político da humanidade – na perspectiva dos modernos. A revolta representou um marco no surgimento do indivíduo político; o cidadão com seus direitos, não mais passível de escravidão e opressão. Em síntese: o início do homem moderno e da modernidade. A Revolução Francesa abria novas perspectivas para a humanidade em todas as áreas. Se, por um lado, a Igreja Católica ainda forte na França, perdia gradualmente seu poder opressor, a filosofia alemã – com Kant, Fichte, Schelling e Hegel – saudava o evento como grande marco na história e absorvia sua ideologia de valorização do homem moderno – mesmo que Hegel mais tarde ficasse desiludido com os rumos tomados pela revolução. Além da cultura – chamada de superestrutura pelos marxistas – também contribuíram na formação do homem moderno os inventos tecnológicos e as mudanças na estrutura econômica (infraestrutura, segundo Marx). O mercantilismo, entre os séculos XVI e XVIII, foi responsável por modificar as estruturas sociais, aproximando povos através do comércio mundial. Alguns autores localizam neste período o início de um processo de globalização das relações econômicas, culturais, ambientais, que se tornou cada vez mais acentuado até nossos dias.

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O desenvolvimento da economia cria novas demandas tecnológicas e propiciou o aparecimento de novos inventos, dando início à industrialização da sociedade ocidental, iniciada no final do século XVIII em cidades como Manchester e Liverpool, na Inglaterra, para daí espalhar-se para a Europa, Estados Unidos e o resto do mundo. O avanço da industrialização da Europa e a sucessão de descobertas científicas e invenções tecnológicas aumentavam cada vez mais a fé no progresso e na gradual melhoria da condição de vida humana, pelo menos para os grupos política e economicamente dominantes – como, aliás, sempre aconteceu em todas as civilizações. Foi também nesse ambiente social e econômico que entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX surgiram ideologias que julgavam possuir a solução para todos os males da humanidade, através da instituição de novas ordenações políticas e econômicas: anarquistas, socialistas, comunistas, social democratas, fascistas e nacional-socialistas (nazistas). Havia – e ainda os há em pouca quantidade felizmente – uma vasta gama de reformadores, que imbuídos de um messianismo fanático diziam querer melhorar a condição da humana. Demonstrou a história que só seguiam seus mais baixos interesses ou, no melhor dos casos, seus delírios insanos. Temos então, resumidamente, alguns aspectos da chamada “modernidade” fortemente valorizados (em parte até nossos dias), mas considerados grandes engodos pela crítica pósmoderna. Algumas destas falácias da modernidade incluem: A) Supostos valores da modernidade: valorização do indivíduo, associado a paradigmas como democracia e direitos humanos; A1) A crítica da pós-modernidade: o imperialismo capitalista, propiciando a exploração de países fornecedores de matéria-prima e mão de obra desde o início do século XX; países transformados em colônias; duas guerras mundiais; genocídios; Hiroshima e Nagasaki, entre outros exemplos não muito edificantes; B) Supostos valores da modernidade: racionalidade atuando humanidade; educação e cultura elevando o padrão de vida;

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benefício

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B1) Crítica da pós-modernidade: uso da ciência para fins bélicos; massificação da cultura utilizada para fins econômicos; educação como formadora de mão-de-obra; destruição dos ecossistemas e recursos naturais da Terra; C) Supostos valores da modernidade: sistemas filosóficos e ideológicos capazes de explicar e dar um sentido às sociedades humanas e à história; ciência como detentora da verdade em substituição às religiões; C1) Crítica da pós-modernidade: ideologias que escravizaram os povos e os indivíduos impedindo seu livre desenvolvimento; doutrinas políticas racistas, classistas, promovendo destruição e morte: Stalin, Hitler, Pol Pot, Mao Dze Dong e outros açougueiros; ciência como forma de interpretar a realidade, sempre sujeita a mudança de paradigmas; acabaram-se as verdades definitivas. Associar a modernidade a valores políticos, culturais, econômicos, religiosos e sociais apresentados como “modernos”, “libertadores”, “progressistas”, justifica a crítica ao moderno. O futuro radiante avistado por entusiastas de todos os matizes nos séculos XVIII, XIX e parte do XX, não se concretizou. No final, depois de tantas ideologias, os valores efetivamente importantes que nos sobraram foram a democracia, que nunca será completa, e a liberdade individual do ser humano. Que seja bem-vinda a era pós-moderna!

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Referências Um panorama da modernidade: origem, formação e perspectivas. Disponível em: <http://www.unimep.br/phpg/editora/revistaspdf/imp29art06.pdf>. Acesso em 13/12/2013. Modernidade. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Modernidade> . Acesso em 13/12/2013. Mahavishnu Orchestra – The lost Trident sessions. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=C7lDW1OHK9k>. Acesso em 13/12/2013. Periodização da história. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Periodiza %C3%A7%C3%A3o_da_Hist%C3%B3ria>. Acesso em 13/12/2013.

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A Crítica da Razão Pura de Kant e o desenvolvimento da ciência A ciência, como a conhecemos, surgiu a partir do Renascimento, com a introdução da matemática e da experimentação ao processo de pesquisa científica. Efetivamente, tais práticas não existiam – pelo menos como método regular – na Idade Média, já que neste período vigorava uma ideia do funcionamento do mundo baseada na filosofia de Aristóteles. O filósofo grego influenciou o pensamento oficial da Igreja Católica a partir do século XIII, tornando-se o inspirador da filosofia tomista. Para esta escola filosófica a natureza estava explicada; o que não se conseguia explicar com os conhecimentos disponíveis era objeto de fé. No período do Renascimento os artistas-cientistas, como Leonardo da Vinci e os cientistasfilósofos, como Francis Bacon, passam a valorizar o uso da matemática (da Vinci) e do experimento (Bacon) nas ciências. Além disso, Copérnico e Kepler, ambos fazendo uso de cálculos matemáticos, provocam uma revolução na visão de mundo da época, quando demonstram (mais tarde comprovado com o uso de telescópios) de que a Terra não era o centro do universo (conhecido na época), mas sim o Sol. Entre os séculos XVII e XVIII surge Isaac Newton, cientista e matemático, que irá influenciar profundamente a filosofia de Kant. Newton desenvolve a teoria da gravitação universal, que explicará grande parte do funcionamento do universo em sua época, com a ajuda da matemática. Por outro lado, também na Inglaterra, surge no mesmo século o pensador David Hume, que com seu ceticismo colocará em dúvida a ciência da época e, principalmente, todo o conhecimento. Hume critica o princípio de causalidade, como um simples hábito mental, baseado na experiência freqüente de certos acontecimentos. Entre a lei de gravitação de Newton e a negação do princípio de causalidade por Hume, Kant tem um choque e acordou de seu “sono dogmático”. A crítica de Hume não é somente contra a metafísica e a estrutura da ciência, mas contra a razão em si. Kant decide, depois de longo período de meditação, escrever uma obra que descrevesse o método pelo qual podemos obter um verdadeiro conhecimento do mundo, baseado em critérios racionais. Tal obra é a “Crítica da Razão Pura”. Inicialmente, Kant estabelece uma distinção entre o conhecimento “a priori”, que independe de qualquer sensação, e o conhecimento “a posteriori”, que depende de uma sensação. Em seguida, Kant propõe a distinção entre juízos analíticos, “aqueles em que a conexão do predicado e do sujeito for pensada por identidade” (Kant, p.10) e juízos sintéticos, “aqueles em que esta conexão for pensada sem identidade” (Kant p.10). Daí Kant conclui que os juízos da experiência são todos sintéticos, mas que “a física contém, como princípios, juízos sintéticos a priori. Como exemplo, citarei duas proposições: nas alterações do mundo corpóreo a quantidade de matéria continua sempre a mesma, ou, nas comunicações de movimento, ação e reação precisam ser sempre iguais” (Kant p.13). Na Introdução da Crítica da Razão Pura, Kant pergunta: “Como a matemática pura é possível?” e “Como a ciência pura da natureza é possível?” Através de sua obra o pensador estabelece as condições nas quais a matemática (a priori sintético) e a ciência são possíveis, na pessoa do Sujeito Transcendental; princípios admitidos por Kant que possibilitam o conhecimento. Com isso, a principal influência de Kant sobre o desenvolvimento da ciência foi estabelecer novas teorias epistemológicas, que (pelo menos por um certo período na história do pensamento ocidental) estabeleciam as condições, nas quais poderíamos dizer que nossa

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interação com o mundo tem base real, de modo a validar nossos raciocínios, inclusive a interpretação científica da realidade. O pensamento kantiano, posteriormente, foi criticado por diversos autores, sob diversos aspectos, não sendo mais universalmente aceito como critério de validação da ciência. Mas isto já é outro capítulo do pensamento filosófico ocidental.

Referências KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. São Paulo. Ícone Editora: 2007, 541 p.

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A ética e a “Ética a Nicômaco”, algumas considerações Os atos morais são aqueles passíveis de aprovação ou desaprovação, de acordo com as normas aceitas. A este conjunto de atos e normas chama-se moral. A ética, por outro lado, é o estudo dos atos e fatos morais. A liberdade ética é a capacidade de autodeterminação do ser humano, sem a qual a moral não pode existir. Usando de sua liberdade, o homem aspira a ser feliz e para este fim se dirigem todos os seus atos. A ética investiga racionalmente os atos morais; é uma ciência porque investiga sistematicamente e de uma maneira racional os atos humanos. Os princípios universais nos quais a ética se baseia são, todavia, sujeitos as condições sociais de cada grupo humano. A moral é relativa no sentido de se adaptar cada vez mais às condições socioculturais, e não no sentido de ter valor relativo. O pensamento usado na análise ética é o do tipo sintético, no qual se parte de um caso ou casos particulares para então generalizar a regra (dentro de uma determinada sociedade, uma lei moral é geralmente válida de uma maneira universal). O objeto de estudo da ética são os atos humanos, baseado no que há neles de bom ou mau, com o objetivo de dar aos homens critérios de valores, para que eles possam julgar e balizar suas atitudes. A moral se estabelece em sociedade, para orientar e estabelecer a correção dos atos humanos, em relação aos outros membros da sociedade. A criação de uma sociedade de classes acaba propiciando o aparecimento da moral dos dominadores e a dos dominados; uma direcionada a manter o status quo, e a outra com um posicionamento crítico e contestador (o posicionamento dos dominados). A ética de Sócrates era baseada no autoconhecimento (“conhece-te a ti mesmo”). Segundo o pensador ateniense, ninguém é mau porque quer, mas porque é ignorante da verdade. A ética só pode ser desenvolvida através da convivência social – daí a íntima relação da ética e da política. A ética fundamenta-se em três princípios: liberdade, virtude e bem. Para Aristóteles a virtude é ao mesmo tempo liberdade e bem. Protágoras de Abdera, por sua vez, advogava um relativismo que influía na própria ética, já que “o homem é a medida de todas as coisas”. Em suas atividades filosóficas Sócrates se colocava contra este ceticismo ético, defendido pelos sofistas. Quando os homens se agrupam para viver em sociedade, criam governos que, segundo Platão, permitem o aparecimento de homens que não são éticos, nem sábios. Estes tipos de governos são: a timocracia, representada pelos donos de terras na antiga Grécia, a forma tradicional de governo. Depois desta fase original aparecem, segundo Platão, a oligarquia, que é o governo dos ricos, sem participação dos pobres; a democracia, onde reina o gosto de cada um, ocasionando a anarquia; e a tirania, onde o tirano torna-se vítima dos seus próprios apetites. No entanto, o Estado ideal, apresentado por Platão na obra A República, é formado por reis-filósofos que dirigem o governo com sabedoria. Aristóteles, discípulo de Platão, constrói sua filosofia baseada na experiência; todas as ideias são resultantes da experiência. Por isso mesmo, para Aristóteles, a ética não é intuída pelo espírito, mas desenvolvida através da prática social. Desta maneira, para ser feliz, justo e sábio, o homem deve manter-se longe dos excessos e encontrar a prudência, baseado em ações práticas. A ética, para Aristóteles, consiste em procurar a felicidade, organizando sua vida para trilhar o caminho da virtude. A Ética a Nicômaco é uma das obras fundamentais nesta

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área, tendo influenciado todo o pensamento ético ocidental, junto com a doutrina moral e religiosa judaico-cristã. Com sua obra filosófica, Aristóteles influencia toda a sociedade ocidental, desde a Idade Média. Na história do pensamento, a ética apresentou principalmente três modelos de conduta: a felicidade ou o prazer, o dever ou a obrigação e a perfeição. A vida em sociedade força o indivíduo a guiar suas ações livres por alguma regra e a moralidade consiste em viver de acordo com estas regras. Desta forma, a ordem moral é o conjunto de relações de utilidade; quem age de acordo com elas age bem, quem as desrespeita age mal. A maior parte dos pensadores aceita que a ação moral só pode ser executada por um ser livre dotado de inteligência. Este pressuposto, no entanto, é colocado em dúvida por filósofos como Espinoza, Hume, Hegel, Schopenhauer e Nietzsche, entre outros, e vem sendo bastante discutido pela moderna neurologia e psicologia. Mas é regra aceita que a conduta humana só tem significado se existe liberdade. O filósofo espanhol Adolfo Sanchez Vazquez (1915-2011), em sua obra “Ética”, escreve, entre outras coisas, que o conceito de consciência está relacionado ao da obrigatoriedade; a consciência é o juiz dos nossos atos morais. Apesar de livre, a consciência é determinada por fatores históricos e sociais e desenvolve-se através da prática social. Mas, apesar dos diversos determinismos aos quais somos sujeitos, gozamos todos de liberdade suficiente para exercermos nossos atos morais – pelo menos precisamos aceitar este fato para que nossa sociedade continue razoavelmente funcionando. O principal filósofo a estudar a ética na Idade Média foi São Tomás de Aquino, que fez um trabalho de harmonização do cristianismo e do aristotelismo. Nesse trabalho, Aquino omitiu certos aspectos do pensamento de Aristóteles e adaptou outros aos princípios cristãos. A moral de Tomás de Aquino é essencialista: a moralidade de uma ação é determinada por seu objeto e pela sua intenção. Além disso, Tomás de Aquino também afirmou que assim como existem diversos grupos humanos, existe uma diversidade de leis. A importância de Tomás de Aquino na síntese filosófica e moral da Idade Média são enormes. Os problemas do campo da ética são caracterizados por sua generalidade, diferentemente dos problemas morais, aqueles com os quais nos deparamos no dia-a-dia. O valor da ética está em suas explicações e não em suas prescrições. Em sua Ética a Nicômaco, no capítulo X, Aristóteles analisa se o prazer é bom ou mau. Afirma que existem várias opiniões e inicia a análise da questão. Apresenta inicialmente a opinião de Eudoxo, que dizia que o que é mais desejado é o maior de todos os bens. Aquilo que é bom para todas as coisas e a que todas elas tendem, é o bem por excelência. Platão, segundo o texto, diz que o prazer não é um bem e que a vida agradável é mais desejável quando acompanhada de sabedoria. Mais à frente, Aristóteles conclui que, baseado no raciocínio de alguns pensadores, o prazer também tem graduações e não pode ser o preenchimento de alguma carência, já que isto seria somente a supressão de sofrimento. Então, fazendo referência ao prazer de aprender, o prazer dos sentidos e de sensações, afirma que estes não envolvem sofrimento. Conclui seu raciocínio, afirmando que “meu prazer é o bem, nem todo prazer é desejável, e que alguns prazeres são efetivamente desejáveis por si mesmos, distinguindo-se eles dos outros em espécie ou quanto às suas fontes. Acerca das opiniões correntes sobre o prazer e o sofrimento, basta o que dissemos.” (Aristóteles, 2002, pg.221). Continuando sua análise do prazer, Aristóteles se pergunta o porquê de ninguém sentir prazer continuamente, já que isto seria impossível para o ser humano, como atividade constante. Quanto à questão de escolher, escolher a vida, tendo em vista o prazer, ou o prazer tendo em vista a vida, a questão fica, por enquanto, sem análise, já que os dois permanecem ligados, visto que sem atividade não há prazer. Mais à frente o texto afirma que algumas atividades têm

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efeitos contrários, sendo que prazer e certas atividades podem estar em lados opostos. Além disso, como existem atividades diferentes, há diferentes tipos de prazer; uns superiores e outros inferiores. Depois de falar das virtudes, as formas de amizade e as várias espécies de prazer, Aristóteles passa a discutir a natureza da felicidade, já que ela é o fim da natureza humana. O Estagirita inicia sua argumentação afirmando que à felicidade nada falta; ela é auto suficiente. As atividades desejáveis não visam mais nada do que a si mesmas, e as ações virtuosas são desta natureza. Já que muitos encontram o bem-estar em algum passatempo, Aristóteles inicia a discussão deste tema e conclui que a felicidade não está no divertimento. Todavia, não nega que o divertimento é necessário para o relaxamento, após muito trabalho. Em seguida, Aristóteles discute sobre a superioridade das atividades sérias sobre as risíveis. Conclui que a felicidade não está em passatempos, mas sim nas atividades virtuosas. Ao final da argumentação, conclui que “a sabedoria filosófica é reconhecidamente a mais agradável das atividades virtuosas”. (Aristóteles, 2002, pg. 229). Ainda sobre a contemplação filosófica, Aristóteles afirma que esta atividade será a felicidade completa do homem. Em outro ponto diz que não devemos nos ocupar com coisas humanas e mortais, já que nós próprios o somos. Devemos sim, assim que possível, ocupar-nos com assuntos imortais, “esforçando-nos para viver de acordo com o que há de melhor em nós.” (Aristóteles, 2002, pg.230). Comparando a vida dos deuses, Aristóteles afirma que a atividade perfeita é uma vida contemplativa equivalente aquela dos deuses, que vivem em bem-aventurança. O homem é feliz enquanto consegue imitar os deuses nesta atividade na contemplação; a contemplação e o cultivo da razão, aliadas a uma vida virtuosa, são exatamente as qualidades do filósofo, o mais feliz dos homens e querido dos deuses. Discutindo sobre como os homens adquirem vontade, Aristóteles conclui que a virtude é em grande parte motivada por uma predisposição dada pelos deuses, aliada ao cultivo de virtudes através da convivência social. “É indispensável que o caráter tenha alguma afinidade com a virtude, amando o que é nobre e detestando o que é vil.” (Aristóteles, 2002, pg.235). Aristóteles afirma que os homens que se empenham em tornar outros melhores, devem ser capazes de legislar. As leis e as constituições, segundo o Estagirita, podem tornar as pessoas melhores.

Rerefências Aristóteles. Ética a Nicômano. Editora Martin Claret: São Paulo, 2002, 240 pgs.

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A filosofia e sua interação com a educação: Sócrates, Platão e Aristóteles A Apologia de Sócrates apresenta o julgamento do filósofo Sócrates e sua defesa perante seus juízes. É acusado de que “pesquisa sem discrição o que existe sob a terra e nos céus, de fazer que prevaleça a razão mais fraca e de ensinar aos outros o mesmo comportamento”. Em outras palavras, acusam Sócrates de negar os deuses e de ensinar estas teorias aos jovens, desviando-os dos costumes dos antepassados. Sócrates começa sua defesa dizendo que, ao contrário dos sofistas, não cobra pelo seu ensinamento. Além disso, nada ensina, já que afirma que “sabe que nada sabe”. O que faz é dialogar na rua com todos os que o procuram; ricos ou pobres, instruídos ou tolos; todos porém certos de que possuem um conhecimento definitivo. Os acusadores do filósofo insistem em acusá-lo de ateísmo, mas Sócrates afirma acreditar nos deuses “se bem que não sejam os deuses do povo”. Em sua defesa afirma que mesmo sob perigo de vida, não deixaria de filosofar. Confirma a importância do conhecimento ao responder aos seus acusadores: “Meu caro, tu, ateniense, da cidade mais importante e mais renomada por sua cultura e poderio, não te envergonhas de tentares adquirir o máximo de riqueza, fama e honrarias, e de não te importares nem cogitares da razão da verdade e de melhorar quanto mais tua alma” (Platão, 1999, pág.56). Ainda em sua defesa, Sócrates afirma nunca ter sido mestre de ninguém, apesar de não ter se oposto a que o ouvissem. Desta forma, tornou-se mestre do questionamento. Não estabeleceu doutrinas ou criou sistemas, apenas ensinou a perguntar; algo muito semelhante ao moderno método científico. O início do livro VII d’ A República de Platão descreve o universalmente famoso “Mito da Caverna”. A alegoria é, provavelmente, a mais citada em toda a história da filosofia. O personagem principal de todo o livro da República é o mestre de Platão, Sócrates, que na obra é transformado em arauto das ideias de Platão. O Mito da Caverna discute basicamente a percepção e os pensamentos que têm as pessoas que vivem acorrentadas no fundo de uma caverna, e que de nosso mundo exterior só enxergam as sombras projetadas na parede de sua prisão, escutando as vozes e os ruídos. Um dos prisioneiros da caverna consegue escapar para o mundo exterior e com o que vê altera toda a sua percepção da realidade. Compreende então, que aquilo que via em sua caverna eram apenas toscas impressões do mundo real. No texto de Platão, Sócrates comenta a libertação de um preso da caverna: “Considera agora o que lhe acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados de sua ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-se imediatamente, voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz; ao fazer todos estes movimentos, sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir objetos de que antes via as sombras. Que acha que responderá se alguém lhe vier dizer que não viu até agora senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza?” (Platão, 2004, pág. 226). Em seguida Platão, pela boca de Sócrates, expõe suas teorias sobre o supremo bem, fonte da verdade e da inteligência e necessário para se comportar com sabedoria na vida privada e na

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vida pública. O bem, para Sócrates, surge quando a alma se afasta das trevas (novamente a analogia da saída da caverna com a ascensão para o bem) e do que se altera (o contingente da existência humana) e se torna capaz de visualizar o que há de mais luminoso no Ser, ou seja, o Bem. Para Platão no livro A República – especificamente no Livro VII – a educação é um processo de aprimoramento constante que visa capacitar certos cidadãos a desempenharem tarefas políticas importantes no governo da polis. Mas, este privilégio não é concedido a todos, mesmo dentre aqueles que se dedicaram ao aprendizado: “Não é igualmente verossímil, de acordo com que dissemos, que nem as pessoas sem educação, sem conhecimento da verdade nem as que deixamos passar toda a vida no estudo são aptos para o governo da cidade, umas porque não tem nenhum objetivo determinado a que possam referir tudo o que fazem na vida privada ou na vida pública, as outras porque não consentirão em encarregar-se disso, julgando-se já transportadas em vida para ilhas dos mais afortunados?” (Platão, pág.230). Pelas palavras de Sócrates, Platão argumenta que a educação dos futuros governadores se fará com uma educação voltada para valores mais elevados, afastando-os das preocupações com os bens materiais. Mas, para chegar a governadores os cidadãos deverão passar por várias fases, sendo que somente alguns passarão por todo o processo educativo. Terão que percorrer a fase de guerreiros e como tal aprenderão a ginástica e a música. Em uma etapa seguinte aprenderão a matemática e a geometria. Os que apresentarem mais aptidões neste processo, aprofundarão seus conhecimentos, como diz Sócrates: “Seria excelente, portanto, Glauco, impor este estudo por uma lei e persuadir os que têm de desempenhar altas funções públicas a dedicarem-se à ciência do cálculo, não de modo superficial, mas até chegarem à contemplação da natureza dos números pela pura inteligência e a se dedicar a esta ciência não por interesse de vendas e das compras, como os negociantes e os mercadores, mas da guerra, e para facilitar a ascensão da alma do mundo da geração para a unidade da essência” (Platão, pág. 238). Ao final do processo, o objetivo desta formação proposta por Platão é possibilitar uma visão panorâmica de todas as ciências, como descreve através da fala de Sócrates: "Tenho para mim que, se o estudo de todas as ciências que examinamos conduz à descoberta das relações e do parentesco existente entre elas e mostra natureza do elo que as une, este estudo nos ajudará a alcançar o objetivo que nos propomos, e o nosso trabalho não terá sido inútil; caso contrário teremos labutado em vão” (Platão, pág. 245). Munido deste domínio das ciências, o aluno estará preparado para aprender o método dialético que se propõe “sem o auxílio de nenhum sentido, mas por meio da razão, alcançar a essência de cada coisa e não se detêm antes de ter apreendido apenas pela inteligência a essência do bem...” (Platão, pág. 246). A dialética é pois “a conclusão suprema dos estudos” e aqueles que se dedicam a este estudo serão, depois de um longo e cuidadoso processo de seleção, os governantes da polis, como diz Sócrates: [...] “Então, quando tiverem vislumbrado o bem em si mesmo, usá-lo-ão como um modelo para organizar a cidade; os particulares e a sua própria pessoa, cada um por sua vez, pelo resta da sua vida” (Platão pág. 255). O livro VII da República descreve um verdadeiro processo educacional, destinado a formação do cidadão, se aplicado ao indivíduo e à formação do estadista, se aplicado à sociedade. Para Aristóteles, na abertura de sua Ética a Nicômaco toda atividade tem um fim. Por outro lado, o fim último de todas as coisas que fazemos (já que o processo não é infinito) é o bem, ou melhor, o sumo bem. O conhecimento deste bem tem grande influência sobre nossa vida. A ciência política é a ciência que estuda o sumo bem; que determina quais ciências cada cidadão deve aprender. Portanto, segundo Aristóteles, já que a ciência política tem tanta influência, legislando sobre ações, sobre a finalidade das outras ciências, sua finalidade deve ser o bem

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humano. Ao determinar o objeto de estudo da ciência política deduz que este é a felicidade. Mas, resta estabelecer o que é a felicidade, a vida feliz, já que existem diversas opiniões, de acordo com o grau de educação do indivíduo. Desta forma, estabelece Aristóteles que existem três tipos de vida: a vida dos prazeres, a vida política e a vida contemplativa. Mencionando os diversos tipos de bens considerados pelos diversos tipos de pessoas, Aristóteles chega à conclusão de que o bem “não é uma espécie de elemento comum que corresponde a uma Ideia única”. Desenvolvendo seu argumento e apontando as diversas concepções de felicidade, o Estagirita afirma que: “A felicidade é, portanto, a melhor, a mais nobre e a mais aprazível coisa do mundo, e esses atributos não devem estar separados como na inscrição existente em Delos: ‘das coisas, a mais nobre é a mais justa, e a melhor é a saúde; porém a mais doce é ter o que amamos’. Todos estes atributos estão presentes nas mais excelentes atividades, e entre essas a melhor, nós a identificamos como felicidade.” (Aristóteles, 2002, pág.30). Em seguida, Aristóteles se pergunta se a felicidade deve ser adquirida pelo aprendizado, pelo hábito ou se ela nos é dada por alguma providência divina ou pelo acaso. Deduz então que a felicidade não vem do exterior, mas está ligada à disposição interna do sujeito. Mesmo que sofra desgraças ou desventuras, recuperará em pouco tempo sua felicidade. Deste modo, a felicidade, o objeto de estudo da ciência política, está ligada à virtude e o “homem verdadeiro político é aquele que estudou a virtude acima de todas as coisas, visto que ele deseja tornar cidadãos homens bons e obedientes às leis.” (Aristóteles, pág. 36). A principal relação entre as três obras; A Apologia de Sócrates, A República e A Ética a Nicômaco é que todas afirmam – cada uma à sua maneira – que o conhecimento filosófico visa a felicidade. Na Apologia, Sócrates menciona que o conhecimento é o verdadeiro motivo de felicidade. Ao final de sua defesa declara-se mais feliz – apesar de condenado à morte – do que seus algozes. A vida dedicada à filosofia e à virtude proporciona-lhe uma tranquilidade perante a perspectiva concreta da morte. Na República, o objetivo de todo o processo de aprendizado é formar cidadãos sábios e virtuosos que, por sua vez, seriam felizes e, sendo governantes, fariam feliz a sociedade que administravam. Aristóteles, na Ética a Nicômano, também apresenta a felicidade como condição dos virtuosos; daqueles que se dedicam aos verdadeiros bens. Assim, o político – o filósofo-administrador da República de Platão – estuda a virtude profundamente, já que quer tornar seus concidadãos virtuosos, ou seja, felizes. Portanto, em última instância, o objetivo das três obras é a felicidade humana através do conhecimento correto.

Referências Aristóteles. Ética a Nicômaco. São Paulo. Martin Claret: 2002, 239 p. Platão. Apologia de Sócrates. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2004, pp. 59-97 Platão. A República. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2004, 352 p.

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A filosofia no ensino médio Houve um período durante o governo militar (1964-1984) em que o ensino da filosofia foi dificultado, se não eliminado. O processo de supressão da filosofia dos currículos escolares começou no final da década de 1960, quando foi dada às escolas a opção de não ensinarem a matéria. As escolas, que já não tinham muito interessem em ministrar a disciplina (e de maneira nenhuma queriam se indispor com o governo), acataram a lei como mandatória. Finalmente, em 1971, o Ministério da Educação editou uma nova lei que proibia o ensino da filosofia nas escolas de todo o país. Ficamos assim um longo período sem ensino da filosofia. Quais as razões e as consequências disso? Por um lado, o país estava sob jugo de um regime militar autoritário, sem eleições livres, sem liberdade de imprensa e de expressão. Como todos os países do planeta entre os anos 1950 e 1980, éramos protagonistas de uma grande batalha entre os Estados Unidos, representando o sistema capitalista, e a União Soviética, representando o mundo comunista. Internamente tínhamos um capitalismo em desenvolvimento; o país estava começando seu processo de industrialização e urbanização. Havia uma pequena classe média ascendente, que pela primeira vez na história do país tinha acesso a bens com os quais no passado havia apenas sonhado. Sob o aspecto das carreiras profissionais, a grande maioria dos poucos brasileiros que chegava ao ensino superior optava pelas áreas de medicina, engenharia, administração de empresas e direito. Dentro deste contexto político, socioeconômico e educacional, a carreira de filósofo parecia, no mínimo, estranha. Além disso, com as revoltas estudantis em todo o mundo durante o mês de maio de 1968 – no Brasil especificamente encabeçadas pelos estudantes de filosofia da USP, da Rua Maria Antônia – os estudantes de filosofia acabaram adquirindo a pecha de “baderneiros e comunistas”. Definitivamente, no período da ditadura militar a filosofia não gozava de boa fama. Outro fator que no imaginário brasileiro causou desinteresse pela filosofia foi a imagem de ser uma matéria teórica, pouco afeita à prática. Os filósofos, com seus sistemas, eram retratados como estudiosos que viviam longe dos problemas diários do país – que envolviam o mundo do mercado e da produção, do trabalho e das grandes obras – com as quais o pensador supostamente, pelo menos segundo a caricatura criada pela mídia, nada tinha a ver. A profissão não tinha mercado de trabalho, já que a ênfase da época no país era o crescimento, a produção a mobilidade e não a análise, a crítica ou o questionamento. Os cursos em quase sua totalidade estavam extintos e a grande maioria dos filósofos ocupava cargos em outras áreas da cultura. Este período no Brasil pode ser comparado à segunda metade do século XIX na Inglaterra, tão criticado por Nietzsche, que chamava os ingleses de “povo de negociantes e industriais”, sem qualquer preocupação filosófica. Em 1984 inicia-se o período de redemocratização. As instituições voltam a funcionar, recuperase a liberdade de imprensa e de crítica. Antecedendo em alguns anos a volta da democracia, o país vivia iludido com a ideia de que bastaria a volta das instituições democráticas, para que a maior parte das estruturas voltasse a funcionar normalmente como antes, entre outros o sistema de ensino. Aqui convêm lembrar que durante o período militar a qualidade do ensino no Brasil caiu vertiginosamente.

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Muito mais do que uma intenção premeditada em manter o povo na ignorância, segundo Darcy Ribeiro, a queda na qualidade do ensino se deve à sua massificação; à intenção de pulverizálo, sem atentar para a qualidade. Todavia, é fato que depois da volta da democracia, a deterioração do ensino público foi ainda maior. A impressão que se tem é que desde o regime ditatorial a educação nunca mais achou seu caminho, sendo vítima de experiências educacionais diversas, que não conseguem melhorar a qualidade da estrutura responsável pelo ensino: planejadores, professores e escolas. Além disso, os próprios alunos muitas vezes não reúnem condições físicas e psicológicas para receber o ensino sem um acompanhamento especial, já que passam por problemas de carência de alimentação, de apoio familiar e de autoestima. A consequência desta situação é que todo sistema de ensino acabou se deteriorando. A reintrodução do ensino da filosofia, obrigatório a partir de 2008, também ficou comprometida com o baixo índice de qualidade do sistema educacional. Se, teoricamente, a Lei das Diretrizes e Bases da educação nacional prevê que o ensino secundário deve preparar o aluno para ter uma visão ampla sobre os diversos conhecimentos humanos – ciências naturais e humanas – e assim a filosofia seria como que um coroamento deste processo, capacitando o futuro cidadão a fazer uma síntese deste conhecimento, o objetivo não tem sido alcançado até o momento. Recentemente o governo Temer introduziu outra reforma do ensino, no qual as matérias tornadas obrigatórias no ensino médio a partir de 2008, filosofia e sociologia, já não o serão mais. Aparentemente, a formação do aluno no ensino médio deverá se tornar mais específica, abandonando a ênfase universalista, em benefício de uma educação voltada às áreas mais específicas e técnicas. Não é possível que com um ensino fundamental incipiente, no qual o aluno muitas vezes não chega a aprender a ler ou escrever corretamente, seja construída a base para o ensino da filosofia no ensino médio – ou outras matérias que venham a ser adicionadas ao currículo. A filosofia pode ampliar substancialmente o horizonte cultural dos alunos do ensino médio, mas nada ou pouco pode fazer se o solo está estéril e os alunos não têm a mínima capacidade – e, consequentemente interesse – em se aprofundar nos textos e nas ideias dos filósofos. Se não houver uma melhoria da qualidade do ensino no período fundamental e médio, o ensino da filosofia, da sociologia e de outras matérias técnicas, poderá ser mais um engodo, como o foram os outros planos para reforma do ensino ao longo da história do Brasil.

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A História, os fatos e a interpretação São diversas e infindas as causas dos fatos históricos; analisar-lhes as origens principais implica um posicionamento cultural, político e ideológico. A própria classificação de algo como fato histórico já remete a uma determinada maneira de interpretar os fatos passados. A maneira mais tradicional – que remonta a Tucídides (460 a.C.– 400 a.C.) com sua História da Guerra do Peloponeso e a Heródoto (485 a.C. – 420 a.C.) com As histórias de Heródoto – é o relato de fatos relevantes, envolvendo personagens importantes ou até aspectos estranhos e bizarros, como ocorre algumas vezes nos escritos de Heródoto, despertando a imaginação dos leitores ao longo dos tempos. O registro da história surgiu dentro do universo da cultura grega. Não que outras civilizações – como os sumérios, assírios, babilônios e egípcios – não mantivessem um registro dos fatos passados. Mas as compilações destes povos não tinham caráter pedagógico; não se procurava tirar algum ensinamento dos fatos passados. Os registros das batalhas realizadas por determinado soberano listando número de prisioneiros, quantidade de cidades incendiadas ou o nome dos filhos, têm essencialmente um caráter propagandístico. Não existe o objetivo pedagógico de ensinar à geração atual ou futura, através do registro dos fatos; o fim da compilação dos acontecimentos é político: impressionar e intimidar os contemporâneos, eventuais rivais. Outro aspecto é que na Antiguidade os fatos realmente importantes eram as guerras, a vida dos governantes e os costumes de povos estranhos; temas que já vinham sendo tratados desde as origens da história, com Tucídides e Heródoto. Esta mesma linha de análise seguem também quase todos os historiadores romanos, como Catão, Salústio, Tito Lívio, Tácito, Suetônio e Plínio o Velho, entre outros. Em muitos casos, no entanto, como nos escritos de Salústio e Tito Lívio, a história e seu relato têm nitidamente um caráter pedagógico, visando imprimir aos ouvintes as virtudes da honra e do patriotismo. A grande revolução na maneira de interpretar os fatos históricos aconteceu quando o cristianismo assumiu a hegemonia política – e principalmente cultural – na Europa do século IV. As culturas não cristãs – a exceção do judaísmo do qual o cristianismo é herdeiro – não enxergavam a história como tendo um sentido cósmico, global. No máximo, o desenrolar histórico – se pudesse contar com a ajuda dos deuses – visava a supremacia de certo povo sobre os outros, assim como Roma se enxergava pela pena de seus historiadores. Na ausência de uma ideologia hegemônica, compartilhada por várias nações e povos, cada cultura tinha a sua visão da limitada duração de sua própria organização social e influência sobre o meio, considerando outros povos apenas como figurantes dessa sua história. Culturalmente, antes do surgimento da visão cristã da história, cada cultura tinha sua visão particular da história e não havia um centro unificador a partir do qual todas as histórias – dos povos, das cidades, das instituições e até dos indivíduos – se uniam e faziam parte de um todo. Mesmo durante o período da hegemonia romana em parte do Mundo Antigo, povos como os egípcios, gregos e judeus, não se sentiam como parte de uma história maior; a história romana. Cada povo centrado em suas próprias tradições explicava a criação do mundo, das leis, das

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instituições e os fatos relevantes a partir de seu próprio ponto de vista (principalmente os judeus, que a partir do retorno do exílio babilônico desenvolveram toda uma teodiceia, que incluía os outros povos, mas na qual eles mesmos se consideram o protagonista principal). A hegemonia da religião cristã e de sua doutrina universalista teve uma profunda influência na cultura. Para o cristianismo, a criação do mundo e de todos os povos que o habitam tinha um objetivo único, válido para todos os tempos: a união de todos com Deus. Com o Deus cristão, evidentemente. Com a formação de uma cultura (literatura, filosofia, artes, arquitetura, história) especificamente cristã, a visão que o cristianismo tem do processo histórico passa a ser incorporado pela cultura oficial. Assim, o indivíduo concreto, a sociedade a que pertence, o período histórico em que vive, as instituições que respeita e mantêm, os ideais que compartilha; tudo é visto sob a ótica da ideologia cristã, que passa a conferir um sentido ao devir histórico e ao universo. No início está a criação (da qual até o moderno conceito cosmológico de Big-Bang ainda guarda reminiscências) e no final o Juízo Final ou a Parúsia (a vinda do Cristo). É a partir deste ponto de vista cristão, no qual todo o devir histórico tem um sentido e é dirigido por Deus para um determinado fim, que o estudo da história começa a se desenvolver. Desde o final da Antiguidade com Agostinho e sua obra A cidade de Deus, até os modernos historiadores marxistas, que substituíram Deus pelas forças econômicas, o Juízo Final pela Revolução e a Parúsia pelo advento da sociedade comunista. Toda esta introdução foi para mostrar que em última instância a história é sempre uma questão de interpretação; não existe um ponto de vista absoluto. Toda a visão cristã (ou hegeliana, ou marxista, ou nacionalista) da história é somente uma maneira de ver e analisar a sucessão de fatos que se consideram importantes e encaixá-los em determinada interpretação, como se querendo provar algo: o cristão, de que o Reino de Deus se aproxima e o socialista de que a sociedade sem classes está próxima. O historiador contemporâneo John Lukacs em seu O fim de uma era escreve: “A história é real, mas não se pode fazê-la “funcionar” por causa de sua imprevisibilidade. Um paradoxo curioso é que, embora a ciência seja abstrata, pode-se fazê-la funcionar”. (Lukacs, 2005, p.57). Em outras palavras, pode-se dizer que o campo de aplicação da ciência – os fatos do mundo físico – permite a repetibilidade. Qualquer um, munido de instrumentos e conhecimento necessários, poderá repetir as experiências científicas e deve chegar às mesmas conclusões que outros cientistas. Se não chegar, talvez tenha descoberto um erro na teoria científica oficialmente aceita e seja aí que ocorrerá a mudança de um paradigma científico. Com relação aos fatos históricos (considerados) relevantes o mesmo não ocorre. Assim, na impossibilidade de comprovar as principais causas de um fato histórico e premido pela necessidade de compreender, a mente do homem passa a interpretar. Não se trata de discutir a comprovação da existência dos fatos considerados históricos, não é esta a questão. É perfeitamente demonstrável que a tomada da cidade de Constantinopla pelos turcos comandados pelo sultão Maomé II, finalizando a destruição do Império Romano do Oriente, se deu no dia 29 de maio de 1453. A interpretação começa quando se quer determinar as principais consequências da queda de Constantinopla – uma delas, por exemplo, fixando aleatoriamente a data como o final da Idade Média. O objetivo deste comentário é lembrar que os fatos históricos merecem ser tratados com um pouco de ceticismo, já que o que se coloca como história oficial, é um relato em grande parte influenciado por fatores culturais, epistemológicos e políticos; na pior hipótese por interesses de grupos e ideologias.

Referências

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BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental – Vol II. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 1052 p. LUKACS, John. O fim de uma era. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2005, 216 p.

A metafísica Até o século XVII, quando teve início o desenvolvimento do pensamento científico com Galileu (1564-1642) e Bacon (1561-1626) e do moderno pensamento (metafísico) filosófico com Descartes (1596-1650), não se cogitava sobre o objeto do conhecimento, o mundo exterior. A filosofia grega e a medieval partiam do pressuposto de que a realidade (o mundo, a natureza) estava dada. Perguntavam-se os pensadores o que era esta realidade, que a razão podia conhecer. Este pressuposto filosófico, de que a realidade exterior era o que representava e podia ser conhecida pelo pensamento, chamava-se realismo. Foi neste contexto que surgiu a metafísica, que durante a maior parte da história da filosofia sempre foi a sua mais importante disciplina. As perguntas iniciais da filosofia foram: “O que existe?”; “O que é isto que existe?”; “Como é isso que existe?”; e “Por que existe?”. Estas questões marcaram o primeiro período da filosofia, quando esta ainda perguntava sobre a natureza e constituição última do cosmos. Daí Aristóteles escrever que os primeiros filósofos eram físicos, já que se ocupavam do estudo da physis, a natureza. Atualmente conhecemos os principais filósofos deste período como présocráticos, por terem atuado antes do aparecimento do filósofo Sócrates. A cosmologia (ou fisiologia) era a forma que pensadores como Tales de Mileto (624-546 AEC), Anaximandro (610-546 AEC), Anaxímenes (588-524 AEC), Pitágoras (570-495 AEC), Heráclito, Parmênides, só para citar alguns, procuravam – cada um à sua maneira – para explicar a constituição última do universo, a mudança das coisas e as oposições (frio/calor, verão/inverno, vida/morte). Ponto comum entre todos estes pensadores era a tentativa de estabelecer um elemento originário, a partir do qual os seres e suas transformações pudessem ser explicados. Água, ar, apeíron (ilimitado, indefinido), números, foram algumas explicações desenvolvidas por estes pensadores. Dentre os cosmologistas ou pré-socráticos destacaram-se dois filósofos, por sua originalidade, oposição de conceitos e importância no posterior desenvolvimento da metafísica grega e cristã: Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia. Heráclito (535-475 AEC) dizia que a realidade era o devir, a constante transformação de tudo; tudo flui e se transforma em seu oposto: o menino se transforma em um homem adulto e depois em um velho; a neve se transforma em água e depois volta a se congelar; uma estação sucede à outra. A metáfora que tornou este pensador famoso foi a do rio: “É impossível entrar no mesmo rio duas vezes”, já que nem as águas nem nós somos os mesmos. O Logos (o discurso sobre o ser) é a mudança e a contradição. Parmênides (530-460 AEC) negava o movimento e a mudança do Ser, da realidade. Se houvesse realmente mudança, afirmava, seria possível o Não-Ser, o que é uma contradição. O Não-Ser não existe, o que leva à conclusão de que só existe o Ser, a imutabilidade. Em seu poema épico Sobre a natureza e sua permanência, Parmênides defende três pontos principais a respeito do Ser: 1) O Ser é único. Se fosse múltiplo cada ser seria e não seria, o que é contraditório; 2) O Ser é eterno. Se fosse substituído por outro existiriam dois Seres, o que é absurdo. Se tivesse um fim, seria o Não-Ser, o que é absurdo; e 3) O Ser é imutável. Se o Ser

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mudasse, se transformaria no Não-Ser, o que é impossível que ocorra. Assim, o devir aparente do ser é uma ilusão. Parmênides estabelece uma importante diferença entre o pensar e o perceber. Ao mudar o foco do pensamento das coisas que se transformam – característica dos físicos que estudavam a physis – para o Ser imutável, o filósofo inaugura a ontologia (o estudo do Ser enquanto Ser), também chamada na história do pensamento ocidental de “metafísica”. Todavia, o pensamento de Parmênides, se levado às suas últimas consequências, também coloca um fim definitivo à história da metafísica. De acordo com seu pensamento, só eram possíveis três afirmações sobre o Ser: “o Ser é”; “o Não-Ser não é”; e “o Ser é único, idêntico e imutável”, nada mais. Platão (427-347 AEC), discípulo de Sócrates (469-399 AEC), é considerado pela tradição filosófica como o fundador da metafísica. Não por tê-la criado como disciplina, mas por ter colocado os fundamentos teóricos para que seu discípulo Aristóteles criasse a disciplina. Platão concorda com Heráclito no que se refere à constante mudança que ocorre na natureza, no mundo das aparências. Por outro lado está de acordo com Parmênides, quando este diz que o pensamento deve se concentrar no Ser imutável, único e eterno. No entanto, diferentemente de Parmênides, que não conferia nenhuma existência ao mundo das aparências, classificando-o de Não-Ser, Platão concede-lhe uma existência “fraca” no mundo, a fim de poder construir todo um arcabouço de ideias que se tornarão a base da filosofia ocidental. O filósofo inglês Alfred North Withehead (1861-1947) dizia que toda a filosofia era apenas comentário, notas de rodapé, ao sistema filosófico platônico. Platão provavelmente era discípulo ou conhecia bastante os mistérios órficos. Este culto é baseado na lenda do herói Orfeu que desceu ao reino dos mortos, o Hades, para salvar sua esposa Eurídice. A narrativa é bastante complexa e é citada por Homero, Píndaro e Eurípedes. Os cultos órficos eram secretos (daí o nome “mistérios”) e sua doutrina era aparentada com o pitagorismo, tendo também influência dos cultos orientais. Cogitam alguns autores, que a influência do orfismo tenha sido decisivo para que Platão desenvolvesse o conceito dos “Ideais” ou “Ideias”. Este sistema representa de certo modo a síntese das ideias que vinham sendo desenvolvidas pelos pensadores fisiologistas, por Heráclito e Parmênides. Explicava o fundamento último da realidade, a mudança constante e o imutável pelo conceito das Ideias, contraposto ao mundo material. Cada Ideia ou Ideal é equiparável ao Ser de Parmênides; eterno e imutável. Assim, em sua alegoria Platão afirma que existem Ideias de todas as coisas que encontramos no mundo do devir; existe uma Ideia de cavalo, do qual os demais exemplares vivos da espécie equus ferus caballus são apenas uma cópia. As mesas, as cadeiras também têm suas Ideias neste mundo da perfeição, que também é habitado por conceitos como justiça, beleza e amor, dos quais nossas versões terrenas são apenas cópias. Para completar a função de sua alegoria, Platão afirma que nossas almas antes de nascerem convivem e contemplam todas as Ideias. Ao voltar a viver no mundo das aparências, a alma se esquece das Ideias que contemplou. É através da prática da filosofia, que o homem pode recordá-las e tornando-se consciente delas, como Platão descreveu na famosa Alegoria da Caverna no livro A República. A metafísica tem início efetivamente com Aristóteles (384-322 AEC). Diferentemente de seu mestre Platão, o Estagirita não julga a natureza como mundo das aparências, ilusório e contraposto a um mundo perfeito, o das Ideias. Aristóteles parte do pressuposto de que o devir é verdadeiro e que sua característica é exatamente a multiplicidade e a transitoriedade. A essência das coisas não está em um além de Ideias, mas nas próprias coisas, cuja essência é estudada pela metafísica. No livro IV da sua Metafísica, escreve Aristóteles: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido a sua própria natureza” (Aristóteles, 2006). Outros aspectos do ser são estudados pelas ciências específicas – física, geometria, biologia, etc. A metafísica estudará o que é a essência e aquilo que faz com

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que haja essências particulares e diferenciadas. Em outras palavras, a ciência que estuda o Ser enquanto ser, sem levar em conta as diferenças entre os seres. Aristóteles desenvolveria a metafísica, transformando-a em uma ciência que estudaria fundamentalmente três coisas: 1) O ser divino, a realidade imutável, o que Aristóteles chamou de Primeiro Motor. Todas as coisas estão em constante mudança porque existe nelas um impulso que faz com que almejem a perfeição do Primeiro Motor; estado que, segundo Aristóteles, nunca alcançarão; 2) As causas primeiras de todos os seres, que explicam o porquê, o quê e o como das coisas; 3) Atributos e propriedades de todos os seres, através dos quais podemos determinar a essência de um ser particular. Esta essência é a realidade última de um ser, sem a qual não existe. A essência é chamada de “substância”, foco de estudo da metafísica; termo que será muito importante durante toda a filosofia medieval – principalmente a tomista – até os modernos como Descartes, Leibniz e Espinosa. A metafísica aristotélica será a base de toda a metafísica ocidental e é balizada por alguns conceitos, como: 1) Primeiros princípios: causalidade, não contradição e terceiro excluído; princípios lógicos que também são ontológicos; 2) Causas primeiras: que explicam o que é a essência de determinado ser, assim como origem e motivos de sua existência; e 3) Outros atributos como: matéria, forma, potência, ato, essência, acidente, substância e predicados. A metafísica cristã é uma adaptação da metafísica aristotélica ao cristianismo. Contribuíram para esta fusão de sistemas e ideias correntes de pensamento como o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. O maior desafio do nascente cristianismo era contemporizar a nascente fé – que partia de conceitos oriundos do judaísmo tardio – com a filosofia grega racionalista. Entre os séculos V e XII a filosofia, e com esta a metafísica, ainda era fortemente influenciada pelas ideias de Platão, pois em suas origens a síntese do cristianismo com a filosofia grega ocorreu sob a égide o neoplatonismo de Plotino (205-270) e Porfírio (234-309), já que por esta época a obra de Platão e Aristóteles era desconhecida para a cultura latina. No século XII aparecem as primeiras traduções do árabe para o latim de textos originais dos dois pensadores, e a partir daí as ideias de Aristóteles passariam a exercer influência hegemônica, tanto sobre a filosofia como a teologia, através de Tomás de Aquino. No século XVI e XVII surgem novas formas de interpretação da metafísica. Pensadores da época já não aceitavam mais ideias que não pudessem ser estabelecidas pelo intelecto. Esta nova mentalidade assume as seguintes características: 1) Incompatibilidade entre fé e razão; 2) Redefinição do termo “substância”, elemento importante na metafísica aristotélica e medieval. Para Descartes, por exemplo, há três substâncias: a pensante (alma intelecto), a extensa (corpos) e a infinita (Deus). Já Hobbes (1588-1679), negava a capacidade de conhecer a substância divina (Deus) e a anímica (alma). Aos sentidos era dada somente a substância corpórea (a matéria). Em sua filosofia Hobbes nega a possibilidade de elaboração de uma metafísica, permanecendo limitado ao âmbito da física. O pensador foi assim um dos primeiros detratores modernos da metafísica, inaugurando uma linha de pensamento que a partir do século XVII e XVIII – notadamente depois da crítica de Kant (1724-1804) – teria um número cada vez maior de adeptos. Ao longo de século XIX a metafísica, em sua forma tradicional, não estaria mais presente nas principais correntes de pensamento.

Referências A evolução da metafísica e a crítica kantiana. Disponível em: <http://www.consciencia.org/a-evolucao-da-metafisica-e-a-critica-kantiana>. 28/07/2013.

Acesso

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Chauí, Marilena. Convite à filosofia 13ª edição. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 p. História da Filosofia Orfeu, orfismo e mistérios órficos. Disponível em: <http://www.freemasons-freemasonry.com/8carvalho.html>. Acesso em 28/7/2013 Reale, G.; Antiseri D. História da Filosofia Vol I. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 683p.

A origem das instituições em Marx A filosofia de Marx teve como ponto de partida o pensamento de Hegel (1770-1831). Mas Marx, de certo modo, fez jus àquela máxima que diz que “o bom discípulo é aquele que ultrapassa o mestre”. Valendo-se do pensamento de seu mestre, Marx criou sua própria linha de pensamento para análise do mundo. O pensamento de Hegel era fortemente influenciado pelo devir histórico; o desenrolar histórico tinha um papel fundamental na explicitação da filosofia hegeliana. Este pensador explicava as instituições humanas como resultado de uma racionalidade inerente ao mundo. Esta racionalidade era uma manifestação do desenvolvimento do Espírito; uma entidade abstrata elaborada por Hegel, e que seria o impulsionador, principal personagem e o próprio sujeito da história humana e do cosmo (daí a importância da história). Segundo Hegel, todo o devir da história humana e do próprio desenvolvimento do universo é um processo (palavra importante no pensamento de Hegel) por que passa o Espírito – conceito que pouco ou nada tem a ver com o conceito de Deus do cristianismo, assemelhando-se mais ao conceito de Brahma do hinduísmo. Sobre este aspecto da filosofia de Hegel escrevem Reale e Antiseri: “Na Fenomenologia do Espírito (a principal obra de Hegel), como se evidencia do que foi dito, existem dois planos que se interseccionam e se justapõem: 1) há o plano constituído pelo caminho percorrido pelo Espírito para chegar a si mesmo ao longo de todos os acontecimentos da história do mundo que, para Hegel, é o caminho ao longo do qual o Espírito se realizou e se conheceu; 2) mas há também o plano próprio simples do indivíduo empírico, que deve percorrer novamente aquele caminho e apropriar-se dele. A história da consciência do indivíduo, portanto, outra coisa não pode ser senão o percorrer a História do Espírito.” (Reale, Antiseri, 1991, V. III, p. 112) Para Hegel, a estrutura social com todas as suas instituições, era efetivamente uma necessidade racional; algo no interior das cabeças dos homens que se exteriorizava (por serem estes, de certo modo, uma manifestação do Espírito). O mundo e todas as relações sociais eram – coerente com o papel que Hegel dava ao Espírito na história – a manifestação de uma racionalidade que gradualmente se exteriorizava no desenrolar histórico. Hegel estava tão convencido deste processo que escrevia que “o real é racional e o racional é real” – já que o real é manifestação de uma ordem racional, o Espírito. Hegel foi o maior expoente da filosofia idealista, cuja genealogia remonta a Platão (século V AEC). De modo simplificado, pode-se descrever a filosofia idealista como a que pressupõe que a realidade com a qual lidamos oculta uma ordem, ou uma dimensão que não é perceptível empiricamente. No entanto, através do conhecimento, da filosofia (ou da matemática para

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alguns pensadores) podemos apreender esta racionalidade oculta. Para alguns filósofos, esta realidade ou racionalidade oculta era Deus ou por ele era mantida. Estudando Hegel, Marx compreendeu que o surgimento, a mudança e a substituição das instituições jurídicas e políticas – o desenrolar da história humana – só poderia ser explicada pelas condições materiais e suas mudanças. Fortemente influenciado pelo materialismo, Marx não podia aceitar as teses idealistas de Hegel, que para ele eram ideologia, ou seja, uma idealização da realidade. Já em sua tese de doutorado “Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro”, Marx escreve: “Quando a filosofia, enquanto vontade, se opõe ao mundo fenomênico, o sistema se transforma em uma totalidade abstrata, num lado do mundo, ao qual se opõe um outro lado. Na medida em que tende a refleti-lo, ao desejar realizar-se, entra em luta com o Outro.” (Marx, s/d, p.30). Marx defendia que a filosofia de Hegel interpretava o mundo de cabeça para baixo. Daí ocorreu-lhe a grande ideia, munido das noções do materialismo e com profundos conhecimentos de história, de que ocorre exatamente o contrário: são as condições materiais que propiciam as alterações na sociedade civil, ou seja, nas instituições e ideias. Escreve Marx: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (Marx, 1974, p. 136). Identificar os fatos econômicos como sendo a base – mas não o único fator causador – das alterações na estrutura social, foi o grande passo para que Marx pudesse desenvolver toda uma nova interpretação da história e das relações entre os homens. Convencido de que são as relações de produção que dão rumo à história, Marx escreve com Engels em seu Manifesto do Partido Comunista: “Será preciso uma excepcional inteligência para compreender que, quando forem modificadas as condições de vida dos homens, as suas relações sociais e sua existência social, mudarão também em suas representações, as suas concepções, os seus conceitos – numa palavra, a sua consciência? O que prova a história das idéias senão que a produção espiritual se transforma com a transformação da produção material? As idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias da classe dominante.” (Marx, Engels, 2001, p.57).

Referências MARX, KARL e ENGELS, FRIEDRICH. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo. Editora e Livraria Anita: 2001, 80 p. MARX, KARL. Para Crítica da Economia Política in Coleção Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1974, 410 p. MARX, KARL. Diferença entre as filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro. São Paulo. Global Editora: s/d, 128 p. REALE, GIOVANNI e ANTISERI, DARIO. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 1111 p.

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Alguns aspectos do pensamento de Descartes O filósofo e matemático francês René Descartes (1596-1650) foi o fundador da filosofia moderna. Se, na Antiguidade, a filosofia como disciplina organizada teve início com Platão (427-347 AEC), a filosofia moderna foi estruturada pelo pensador francês. Alfred North Whitehead (1861-1947), filósofo e matemático inglês, escreveu que toda a filosofia era apenas nota de rodapé ao pensamento de Platão. Da mesma forma, referindo-se a Descartes registrou que “a história da filosofia moderna é a história do desenvolvimento do cartesianismo em seu duplo aspecto, de idealismo e mecanicismo”. Descartes teve uma educação esmerada, tendo frequentando uma das melhores escolas de sua época, conduzida pela jesuítas. Sendo de origem nobre, teve recursos financeiros para acessar a maior parte do conhecimento disponível a sua época. Em linguagem atual pode-se dizer que Descartes, além de muito inteligente, era um dos mais capacitados intelectuais de seu tempo. Além disso, teve oportunidade para viajar pela Europa, conhecendo outros povos, culturas e costumes, o que contribuiu para lhe dar uma mentalidade mais aberta e, principalmente, inquiridora. Além disso, havia todo um novo ambiente intelectual na Europa na qual Descartes circulava. A filosofia ainda dominante à época, bastante influenciada pelo tomismo (a filosofia oficial da igreja católica, elaborada por Tomás de Aquino), não tinha mais como incorporar todas as novas descobertas das ciências físicas e matemáticas. A invenção de novos instrumentos científicos, como o telescópio ou o microscópio, abrindo novas fronteiras no espaço imenso e diminuto, requeriam urgentemente uma nova filosofia que justificasse a confiança na razão. Reale e Antiseri escrevem que “só era possível opor ao ceticismo desagregador uma razão metafisicamente fundada, capaz de se sustentar na busca da verdade, e um método universal e fecundo.” Influenciado pela nova física de Galileu, Descartes desenvolveu um pensamento fundado em novos pressupostos, baseado no pensamento matemático. A metafísica de Descartes teve grande peso em todo o pensamento filosófico posterior, pois conseguiu interpretar os resultados da ciência de sua época, também influenciando toda a ciência posterior com seu mecanicismo. Como escreve Descartes em seus Princípios de filosofia “toda a filosofia é como uma árvore, cujas raízes são a metafísica, o tronco é a metafísica e os ramos que procedem do tronco são todas as outras ciências”. Para apreender e explicar o mundo Descartes precisava de um método, uma metodologia de pensamento para avaliar as informações, julgá-las e a partir delas estabelecer um sistema de pensamento que pudesse interpretar a realidade de uma forma racional. Escreve Descartes: “O método consiste na ordem e na disposição das coisas, para as quais é preciso direcionar as forças do espírito para se descobrir alguma verdade. Nós o estaremos seguindo exatamente se

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reduzirmos gradualmente as proposições complicadas e obscuras às mais simples e se, em seguida, partindo das intuições das mais simples, procurarmos nos elevar pelos mesmos degraus ao conhecimento de todas as outras” (DESCARTES apud Reale e Antiseri). Ao desenvolver seu método, Descartes não faz uma divisão entre a filosofia e a ciência. Mais importante que tudo, é desenvolver um método que lhe traga segurança nos raciocínios posteriores, seja em seus trabalhos de matemática, quanto de filosofia. Em seu Discurso sobre o método, Descartes estabelece quatro regras, que conforme o filósofo são “regras certas e fáceis que, sendo observadas exatamente por quem quer que seja, tornem impossível tomar o falso por verdadeiro e, sem qualquer esforço mental inútil, mas aumentando sempre gradualmente a ciência, levem ao conhecimento verdadeiro de tudo o que se é capaz de conhecer” (Ibidem, p. 361). A primeira regra é a da evidência, enunciada da seguinte maneira por Descartes: “Não se deve acatar nunca como verdadeiro aquilo que não se reconhece ser tal pela evidência”, ou seja, evitar juízos apressados sobre aquilo de que não se tem certeza. A segunda regra é a de “dividir cada problema que se estuda em tantas partes menores quantas for possível e necessário para melhor resolvê-lo”. Trata-se de uma regra que hoje nos parece evidente, sendo usada na pesquisa científica, na moderna tecnologia e administração de empresas e em diversos setores da economia atual. No início dos tempos modernos, à época de Descartes, o método era revolucionário. Como terceira regra, Descartes estabeleceu “conduzir com ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-se pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais complexos.” A última e quarta regra do método cartesiano é a “de fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais a ponto de se ficar seguro de não ter omitido nada.” O método cartesiano serviu como base para toda a filosofia e metafísica posterior. A validade ou não do argumento da certeza fundamental – o cogito ergo sum – e a prova da existência de Deus como seu corolário, são pontos que no estágio atual do desenvolvimento da filosofia não são mais decisivos. O principal legado de Descartes, a nosso ver, foi ter colocado as bases para o desenvolvimento do moderno pensamento filosófico e científico.

Referências Reale, Giovanni; Antiseri Dario. História da Filosofia – Vol II. São Paulo. Paulus: 1990, 956 p. Rose, Ricardo. A religião e o riso & outros textos de filosofia e sociologia. São Paulo. Editora LpB: 2013, 221 p.

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Aspectos do imaginário popular na Baixa Idade Média Neste artigo sobre o período medieval, utilizei duas obras bastante importantes, que tratam do imaginário social deste período, abordando principalmente a Baixa Idade Média. Refiro-me à obra o Outono da Idade Média, obra seminal sobre o período, do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945), da qual utilizamos o capítulo A imagem da morte. Outra obra consultada foi História do Riso e do Escárnio, do historiador Georges Minois (1946-), especificamente seus capítulos 6 – Rir e fazer rir na Idade Média; e 7 - O riso e o medo na Baixa Idade Média. No âmbito destas obras, me concentrei nos aspectos do imaginário social; o que causava medo e o que divertia o homem deste período extremamente rico em contradições. A Idade Média, sempre convêm lembrar, é um período histórico muito longo - vai do século V ao século XV - durante o qual praticamente se estruturou cultural e socialmente aquilo que a partir do século XVIII (hoje quase um termo anacrônico) se convencionou chamar de civilização ocidental. Mas a Idade Média é muito mais do que um período relativamente obscuro de transição, entre o império romano e o mundo moderno surgido no século XVI. A riqueza deste período - seja sob o aspecto social, cultural, religioso - ainda nos reserva grandes surpresas, constantemente estudadas e divulgadas por historiadores como Georges Duby (1919-1996), Jacques Le Goff (1924-), Michel de Certeau (1925-1986), entre outros. O período sobre o qual trato neste artigo vai de aproximadamente 1300 a 1500. Não farei referência aos aspectos econômicos e políticos. Tampouco farei menção à cultura oficial, já permeada pelo humanismo com todas as suas implicações desde o século XIII, a começar na Itália. O tema deste artigo é o imaginário popular, o que hoje talvez pudesse ser comparado à cultura popular e cultura de massa. Minois afirma que este período se caracteriza pela crise, afetando todos os aspectos da vida humana e provocando uma verdadeira mutação das mentalidades. Alguns dos aspectos sociais do período são: - A volta da escassez dos alimentos, já que a população apresentava um crescimento desde o século XII; - O início da Guerra dos Cem Anos, que com todas as suas implicações foi a mais longa da história da humanidade; - O aparecimento da Peste Negra, cujo auge foi entre os anos 1346 a 1352, se estendendo até pelos menos 1460, gerou recessão econômica, tensões sociais e revoltas nas cidades e no campo; - no plano religioso ocorre o Grande Cisma da Igreja (1378-1477), quando existiam concomitantemente dois papados; um com sede em Roma e o outro em Avignon (França). Todos estes acontecimentos, agravados pelas mudanças econômicas e políticas, como a gradual erosão do sistema econômico feudal e o desaparecimento dos feudos substituídos pelo poder central, levaram a um clima de insegurança coletiva e individual em toda a Europa. Medo

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da morte individual iminente; medo do inferno, da vinda do Anticristo e do fim do mundo; proliferação de heresias. Sobre estes aspectos escreve Minois: “... a Igreja dava aos fiéis meios de suportar essas angústias que ela própria suscitava. Procissões, bênçãos, intercessão dos santos, indulgências, novas devoções, sem dúvida, ajudaram as gerações do fim da Idade Média a não cair por completo no desespero e na neurose coletiva." (MINOIS, 2003). O clima de medo era geral, especialmente o medo da morte e da condenação eterna. Escreve Huizinga: "Eram três os temas que forneciam a melodia para aquele eterno lamento sobre o final de toda a glória terrena. Primeiro havia o motivo que perguntava: onde estavam todos aqueles que outrora encheram o mundo com sua glória? Depois havia o tema da visão horripilante da decomposição de tudo aquilo que um dia fora beleza humana. Por fim, o motivo da dança macabra, a morte que arrasta consigo as pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade." (HUIZINGA, 2011). O pavor fazia com que centenas ou milhares de pessoas - muitas delas mendigos, sem-teto, fanáticos religiosos, deficientes e leprosos - vagassem pela Europa, esmolando, se autoflagelando, rezando e clamando por perdão por seus supostos pecados; eram os flagelantes. É famosa a cena do filme O Sétimo Selo (1957) de Igmar Bergman, que retrata o final da Idade Média, e em uma de suas cenas mostra um grupo de flagelantes entrando em uma aldeia, aterrorizando seus moradores. Outra cena do mesmo filme mostra um cadáver insepulto de alguém atacado pela peste. A morte era um dos principais temas na meditação religiosa do fiel. As imagens das danças macabras, representando esqueletos conduzindo pessoas de diversas classes sociais para morte, se tornaram famosas em livros de orações, nas capelas e nas paredes dos cemitérios. Monges, nobres, mulheres e camponeses sendo conduzidos por esqueletos cobertos de trapos, a caminho de sepulturas abertas. São os memento mori (do latim: lembra-te da tua morte); imagens que representadas de diversas formas sempre lembram o tema da finitude humana: "Em torno da dança macabra agrupam-se algumas ideias afins em relação à morte, igualmente apropriadas para serem usadas como elemento de advertência e terror. O conto dos três mortos e dos três vivos antecede a danse macabre. Já no século XIII, ela surge na literatura francesa: três jovens da nobreza encontram subitamente três mortos hediondos que lhes contam sobre a própria glória terrena e os alertam para o rápido fim que os aguarda. " (MINOIS, 2011). Outro forte tema do imaginário social daquela época era a Segunda vinda do Cristo, que deveria julgar vivos e mortos conforme falavam os Evangelhos, sendo precedido pelo Anticristo. A mensagem era repetida nas cidades e nas estradas pelos pregadores e pelos próprios membros da Igreja. Minois escreve que: "O dominicano espanhol Vincent Ferrier deixa atrás de si um rastro de angústia. Em 8 de outubro de 1398, em uma visão, Cristo lhe confiou a missão de pregar o exemplo de Domingos e de Francisco para obter a conversão de multidões ante a vinda iminente do anticristo. Ele vai seguir esta ordem sem relaxar, acrescentando profecias de sua lavra." (ibidem, 2011). No entanto, segundo Minois, o homem da Baixa Idade Média foi salvo pelo riso. A grande pressão exercida pelo medo sobre o indivíduo e a sociedade também acabou provocando o riso. Nas festas populares, as autoridades políticas e religiosas são ridicularizadas; fazem-se paródias engraçadas das missas, abundam as piadas sobre as relíquias de santos, sobre os

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monges. Orações da liturgia recebiam novas palavras; muitas vezes deboches de baixo nível. As crenças populares são transformadas em fábulas. Boccacio em seu Decameron escreve: "Eles afirmam que beber muito, usufruir, ir de um lado para outro cantando e se satisfazendo de todas as formas, segundo o seu apetite, e rir e zombar do que pudessem rir era remédio mais certo para tão grande mal." (Bocaccio apud Minois). Se nada sagrado escapa à zombaria e ao escárnio o mesmo também acontece com o Diabo. Nas festas de Carnaval, realizadas nas cidades medievais e atraindo até milhares de visitantes, o “coisa ruim” apanha, é enganado e escorraçado. "Rir do diabo e do inferno é exorcizar o medo que se tem dele. Ora o diabo está em toda parte, essa época. Zomba-se dele e ele zomba dos homens, em uma bufonaria trágica. Ele é representado, às vezes, mantendo seu fogo nos mistérios, com orelhas de asno, o capuz de guizos, a túnica verde amarela." (Ibidem, 2011). Os homens, premidos por tantas desgraças reais e imaginárias parecem não ter outra alternativa senão rir. E neste processo fazem troça de tudo: dos pobres coitados, dos poderosos, da loucura, da morte, da miséria, das doenças, do Diabo e até de Deus. Em sua amarga revolta, sem conhecer outra possibilidade de protestar contra um universo que o oprime, agride, mata e por fim o joga nas mãos de um deus raivoso, o homem ri. Ri amargamente.

Referências: Huizinga, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo. Cosac Naify: 2010, 652p. Minois, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo. Editora UNESP: 2003, 653 p.

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Comentando Marilena Chauí e Edmund Husserl Em Convite à Filosofia a filósofa Marilena Chauí faz a seguinte afirmação: [...] “não há 'coisa em si' incognoscível. Tudo o que existe é fenômeno e só existem fenômenos. Fenômeno é a presença real de coisas reais diante da consciência; é aquilo que se apresenta diretamente, 'em pessoa', em 'carne e osso', à consciência”. A fenomenologia parte do pressuposto da realidade e da verdade dos fenômenos, das coisas que “aparecem”, dos dados que se nos apresentam à consciência. Não se trata, como na filosofia kantiana, de que as coisas estão só na mente, na percepção e que além desta percepção se estende o misterioso mundo da “coisa-em-si”. Todavia, de Kant o filósofo Husserl ainda conserva a afirmação de que não conhecemos uma realidade em si mesma, mas a realidade estruturada a priori pela razão. Esta realidade que captamos pela razão é a essência dos fenômenos, o eidos. Husserl afirma que a filosofia é eidética, pois apreende a essência dos fenômenos. Para Husserl a fenomenologia (diferente da psicologia que é uma ciência dos fatos) é a ciência das essências. A fenomenologia utiliza-se da redução eidética, através da qual expurga os fenômenos psicológicos de suas características reais ou empíricas, levando-os ao plano da generalidade essencial, transformando-os em essências, em universais. Para conhecer as essências, os universais, segundo Husserl, partimos de uma intuição das essências. Assim, redução eidética e o processo de intuir para conhecer as essências dos fenômenos, é a mesma coisa. Todavia, para que possamos conhecer a essência do fenômeno, é preciso utilizar-se da epoché, que é um movimento mental de “colocar entre parênteses” as próprias convicções filosóficas, científicas e nosso senso comum. Suspendendo todo tipo de juízo sobre as coisas e olhando-as em sua essência, alcançamos a consciência daquilo que é absolutamente evidente (fico pensando se Hume teria a mesma opinião sobre estas “ginásticas mentais” e se Husserl alguma vez efetivamente atingiu o estado de “ver a essência do fenômeno”). Como corolário desta investigação, Husserl chega à conclusão de que o movimento da consciência é intencional, já que toda a consciência é consciência de alguma coisa. Isto quer dizer que todo pensamento tem sempre um objeto. Por toda esta atividade que exerce, Husserl afirma que a consciência é “doadora de sentido”, já que as essências nada mais são do que significações produzidas pela consciência, tendo como matéria prima os fenômenos (por que será que sinto um cheiro forte de kantismo aqui?). A realidade adquire sentido através da ação da consciência.

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A consequência do pensamento fenomenológico em relação à metafísica é que esta deixa de existir como algo além do sujeito, para tornar-se algo que o sujeito, através do pensamento, transmite à realidade – cujo sentido, aliás, é dado pelo próprio sujeito.

Referências ABBAGNANNO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 p. CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo. Editora Atica: 2010, 424 p. CRESPO, Luís F.; COLOMBINI, Elaine A. M. Filosofia Geral: Problemas metafísicos II. Batatais. CEUCLAR: 2007, 37p. SOKOLOWSKI, Robert. Introdução à fenomenologia. São Paulo. Edições Loyola: 2004, 247

Comentários sobre o texto “Reflexões sobre a racionalidade científica: problemas, apostas e propostas” O texto Reflexões sobre a Racionalidade Científica: problemas, apostas e propostas é de autoria de Daniel Durante Pereira Alves, professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Neste curto artigo comentaremos este trabalho, que analisa a atividade científica e a epistemologia. No início de seu texto o autor afirma querer fazer uma crítica sobre alguns aspectos cognitivos da ciência, em seus pressupostos herdados de Descartes e defendidos pelo empirismo lógico. O texto também pretende apontar a conexão íntima existente entre certos problemas epistemológicos e éticos, considerando a extrema inter-relação entre ambos. Em sua argumentação, o texto elabora uma crítica ética da ciência, dadas as “consequências muitas vezes nocivas do conhecimento científico”. Assim, para iniciar sua apresentação, o autor começa seu texto com uma explicação do que considera as características mais fundamentais da racionalidade científica hegemônica: o atomismo e o método axiomático. O conhecimento científico é socialmente construído e não “temos nenhum motivo intransponível que nos impeça de procurarmos novas formas de fazer ciência”. A ciência é uma construção histórica e sua maneira de ser feita não se deve necessariamente à natureza ou a estrutura de nossa racionalidade (racionalismo). Esta visão da prática científica, baseada no construtivismo, não se fundamenta em nenhuma teoria sobre a realidade (ontologia), mas na prática do sujeito; em seu próprio ponto de vista. Assim, as diferentes interpretações da natureza são baseadas na interação do observador com o mundo; construções (constructos) que visam dar sentido aos seus projetos subjetivos. O conhecimento científico não é uma descrição exata da realidade; trata-se muito mais de uma teoria descritiva que na prática funciona. Um dos fundamentos da teoria científica é baseado no atomismo de Demócrito: o átomo (ou outras partículas e subpartículas) como sendo as últimas partes constituintes da realidade. A epistemologia atomista leva a uma visão dualista da realidade, formada pela interação entre o sujeito (o que observa a realidade) e o objetivo (tudo o que é observado). Outro fundamento do pensamento científico é o método axiomático, herdado do geômetra Euclides e desenvolvido pelo pensador francês do século XVII René Descartes. Segundo esta metodologia de análise – mais tarde aplicada por Descartes também à geometria analítica – os problemas devem ser desmembrados em partes, de modo a facilitar sua apreensão. Desta forma, segundo o autor, pode-se ver a teoria científica como um conjunto de propostas (axiomas da antiga geometria

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euclidiana), organizados na forma de um todo harmônico, capaz de explicar certo fato científico. No entanto, ao longo do desenvolvimento da ciência e da matemática durante os últimos 350 anos, foram aparecendo fatos que gradualmente colocaram em cheque a visão ortodoxa da racionalidade científica. O matemático Kurt Gödel (1906-1978) provou com seu Teorema da Incompletude, que resumidamente diz que em um sistema de axiomas auto consistentes sempre existirão proposições que não poderão ser comprovadas pelo sistema, ou seja, o sistema é incompleto e incapaz de dar uma explicação total às questões que ele mesmo coloca. Outro exemplo é dado pela física de partículas, com o Princípio de Indeterminação, elaborado pelo físico Werner Heisenberg (1901-1976). Segundo este princípio, nunca será possível determinar a posição e a velocidade de um elétron. Isto porque, o fóton emitido pelo equipamento de medição já tira o elétron de sua posição original. O mesmo acontece se os cientistas tentarem medir o sentido de sua rotação (spin). Na física quântica também ocorrem fenômenos que colocam em cheque muitos aspectos da suposta racionalidade da ciência: partículas que têm o mesmo comportamento como se formassem pares, mesmo que situadas a longas distâncias. Outras, que têm um comportamento completamente aleatório, imprevisível. Isso tudo sem falar nos paradoxos (aparentes) da Teoria da Relatividade, segundo a qual objetos se deslocando a velocidades diferentes em relação a um mesmo ponto de referência, têm diferente percepção do desenrolar do tempo. Em suma, a visão de que a realidade material pode ser explicada através de teorias simples, num encadeamento lógico que ganha em complexidade, não é mais possível. A matemática e a física têm levantado tantas questões, que a ciência convencional – e com ela a epistemologia – já não pode mais explicar a realidade em sua totalidade e de uma maneira harmônica. Outro aspecto que o autor levanta é com relação à ética na ciência. O desenvolvimento científico, além de não resolver grande parte dos problemas sociais, acabou criando novos; como os impactos ambientais, as armas de destruição em massa ou o descontrole da prática científica (os perigos da nanotecnologia e da inteligência artificial sem limites). Além disso, aponta o artigo o problema da superespecialização de setores da ciência, gerando um conhecimento cada vez mais fragmentado, compartimentado, com profusão de teorias; situação característica do modelo axiomática de ciência. O autor também coloca a questão sobre quais interesses estão por trás da prática científica. Além de sua função utilitária de fazer prognósticos, a quem servem estes prognósticos? Se a ciência reflete os projetos e interesses do observador, de que observador estamos falando? Recomenda o autor que a ciência não seja distante da ética e que seja mais responsável e reflexiva, considerando que há uma crescente desconfiança por parte da opinião pública em relação à prática científica. Paralelamente desenvolvem-se novas visões do pensamento científico; mais abrangentes e englobando ideias como a transdisciplinaridade, o pensamento complexo, a holística, ultrapassando os paradigmas do atomismo e do método axiomático. Ao invés de “prognosticar para manipular e controlar” as novas correntes epistemológicas são orientadas para “mapear para equilibrar e dar autonomia”. A frase do autor conclui nosso texto: “Ainda que tenhamos nos concentrado neste ensaio apenas nos aspectos epistemológicos e éticos da ciência, ela é uma atividade coletiva e social, sendo este aspecto extremamente importante para qualquer consideração, pois a ciência só mudará quando os cientistas mudarem, quando nós, coletivamente, aceitarmos e praticarmos novas formas de cientificidade.”

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Como percebemos o mundo Quem é que não se emociona, ou pelo menos fica admirado com uma bela paisagem natural? O pôr do sol em uma tarde de outono, o céu estrelado à noite ou cheio de nuvens, à beira mar. Montanhas cobertas por florestas em meio à neblina, a imensidão de um deserto, um lago congelado... A natureza, não importa a paisagem, desde que inusitada, atrai nossa atenção e admiração; espanto e arrebatamento. Desperta em nós um misto de emoções influenciadas por nosso condicionamento cultural e lembranças individuais. Interessante observar como nosso modo de perceber uma paisagem é bastante influenciado pelas experiências que tivemos ao longo de nossa vida. No entanto, este aspecto quase não é mais percebido em nossa civilização do século XXI, na qual a fotografia e o cinema, a TV e a internet tornaram comuns para qualquer pessoa – mesmo para aquela que nunca tenha saído de sua pequena cidade do interior – as paisagens mais distantes e diferentes. Todavia, há relatos sobre nativos africanos, que levados pelos europeus para montanhas, não sabiam num primeiro instante como interpretar a perspectiva inédita através da qual estavam enxergando a paisagem abaixo, que sempre havia habitado. O mesmo ocorre ainda modernamente – apesar da quantidade de informações de que dispomos –, quando alguém embarca em avião pela primeira vez e observa a paisagem de cima. Pelo que se sabe até hoje, somos a única espécie de animal que tem esta capacidade de contemplar paisagens ou fenômenos naturais, de lhes dedicar atenção e sentir outras emoções, além do medo. Várias espécies de mamíferos, aves e até répteis temem os clarões dos raios e o ribombar dos trovões, a beira dos precipícios ou a escuridão, por causa de seu instinto de preservação. O animal percebe em seu íntimo que aquela situação está ligada ao perigo. O sentimento de espanto ou estranheza perante uma paisagem, cena ou fenômeno natural incomum, deve ter contribuído para despertar em nossa espécie os sentimentos que levaram nossos antepassados longínquos a iniciar as primeiras práticas de adoração, de reconhecimento de forças ou entidades mais poderosas. Poderiam ter intuído que por trás de tais paisagens ou fenômenos haveriam entidades, que premeditadamente as criaram ou os provocaram.

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Voltemos agora ao ser humano do século XXI, vivendo e atuando em uma civilização mundial, contando com ininterrupto fluxo de informações e dados sobre os mais diversos assuntos e interesses. Um universo cultural e tecnológico baseado na ciência, cujas origens remontam à Idade Moderna; período a partir do qual se impôs uma visão antropocêntrica do universo e da história. Foi preciso um demorado desenvolvimento da ciência e cultura, notadamente na física, na psicologia, na biologia e na filosofia – além de uma série de outras disciplinas a elas relacionadas – para que a visão antropocêntrica do universo, da história e do ser humano fosse colocada em questão. Avanços em diversas áreas como a física quântica, a neurologia e a epistemologia colocam em discussão, sob diversos aspectos, o antropocentrismo sobre o qual se baseou, para o bem ou para o mal, todo o desenvolvimento cultural da sociedade ocidental desde o século XV. O salto na cultura, que para a maior parte das pessoas ainda é imperceptível, talvez seja equivalente àquele que ocorreu no início do período do Renascimento (século XIV), quando o foco principal da cultura passou do teocentrismo para o antropocentrismo. Os principais aspectos que colocam em discussão a visão antropocêntrica baseiam-se em alguns pontos que, sem conhecimento aprofundado nas ciências envolvidas, tento resumir da seguinte maneira: - O princípio da incerteza da física quântica, enunciado pelo físico Werner Heisenberg (19011976) afirma, colocado de maneira bastante simples, que a partir do momento em que tentamos observar uma subpartícula, não conseguiremos mais determinar sua posição ou velocidade. A descoberta não afetou somente a física quântica, e mostra como, a partir de um certo nível – o nível subatômico – nossas certezas desaparecem e os fatos transforma-se em suposições. Baseados nesta teoria alteram-se nossas visões do mundo e dos fenômenos. Isto quer dizer que na escala humana os fatos e fenômenos são o que parecem ser, mas em escala quântica são possibilidades. As implicações filosóficas são evidentes e não podem passar despercebidas; - Ainda com relação às ciências, é atualmente bastante consistente a visão de que as teorias científicas não são explicações da natureza e dos fenômenos. São muito mais maneiras de interpretar ambos, natureza e fenômenos particulares, baseadas em determinadas informações e experiências disponíveis num determinado momento histórico. A lei da gravitação universal de Isaac Newton (1643-1727), explicou e ainda explica determinados fenômenos em certo nível e ainda se aplica muito bem às situações comuns, seja na engenharia ou na física básica. Já para a astronáutica, astronomia, a cosmologia e até as modernas aplicações tecnológicas, a lei da gravitação é suplantada pela teoria da relatividade geral, de Albert Einstein (1879-1955). Esta teoria física atende a todas as necessidades da ciência atual, mas não permanecerá para sempre. O físico e filósofo da ciência Thomas Kuhn (1922-1996) escreveu em seu A estrutura das revoluções científicas que a ciência tem “paradigmas”; teorias que explicam determinados fatos em determinadas épocas, que são substituídos por outros paradigmas em períodos sequentes; - A psicologia, que como ciência independente da filosofia teve início na segunda metade do século XIX, alcançou grande desenvolvimento com as teorias de Freud – ao estabelecer o conceito de inconsciente – e demais psicólogos que a partir do século XX conduziram pesquisas de laboratório, descobrindo diversos aspectos do funcionamento da mente. A partir dos anos 1980, juntou-se a este esforço a neurologia, ramo da medicina que estuda o cérebro e o sistema nervoso, que vem dando importantíssimas contribuições ao conhecimento deste órgão. Estas pesquisas revolucionaram a visão atual sobre o que é a mente e como funciona; a interação mente/cérebro; a maneira como percebemos o mundo, a questão do livre arbítrio, etc.;

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- A filosofia deixou de ser “a mais importante das ciência” para ser uma ciência entre outras, com determinados objetos de estudo, adotando técnicas específicas. Não deixa de chamar a atenção de que os estudos filosóficos atuais, ainda que se baseando em uma tradição própria milenar, têm na ciência um grande aliado e quase que um parâmetro para muitas de suas conclusões. Tendo o ser humano como sua principal meta em seus estudos, a filosofia moderna abandonou em grande parte os conceitos metafísicos com os quais trabalhava no passado; a transcendência foi substituída pela imanência. As grandes teorias que dedutivamente tentavam explicar toda a realidade humana e universal estão ultrapassadas. Pelo desenvolvimento da própria filosofia, pela experiência da história e pelos exemplos da ciência, a maior parte dos filósofos atuais entende que não é mais possível desenvolver sistemas que tentem abarcar toda a realidade. Não há mais “verdades eternas” ou “princípios” a serem descobertos ou explicados – e muito menos implantados, como no caso comunismo. A filosofia, assim como a ciência, concluiu que a realidade natural e humana é complexa e que não pode ser abarcada por teorias abrangentes, com pretensão de serem universais. Conclui-se, apenas ressaltando estes três ramos do conhecimento atual, de que civilização ocidental; a cultura ocidental que foi gestada no continente europeu e que ao longo da história recebeu influências da África e da Ásia, navega por um amplo mar, do qual não enxerga mais os limites. Chegamos a um ponto no qual já acumulamos muito conhecimento sobre o mundo e sobre nós e, paradoxalmente, descobrimos que tudo o que sabemos não é definitivo e não é exato; são conhecimentos mudarão ao longo do tempo, além de nunca representarem “o que é”, sendo apenas uma interpretação. Isto nos possibilita saber: a) que o que sabemos ainda é muito pouco em relação ao que sabemos que não sabemos; e b) o que sabemos é quase nada em relação ao que nem sabemos que não sabemos. No entanto, mesmo aquilo que pensamos saber, o que pensamos não saber e o que nem pensamos não saber, é apenas conhecimento humano; produto das elucubrações de uma espécie animal específica, surgida há cerca de 150 mil anos, em um dos bilhões de sistemas solares existentes em uma galáxia de porte médio, dentre as bilhões de outras galáxias existentes no universo; este talvez contemporâneo de bilhões ou trilhões de outros. No passado acreditávamos que o universo e a vida humana haviam sido explicados pela crença. Mais tarde pensamos que ambos, universo e vida humana, quase estavam sendo explicados pela ciência. Hoje sabemos que crença e ciência são constructos, elaborações de nossas mentes – das quais também pouco conhecemos – tentando explicar “algo”, o mundo, que nem apreendemos efetivamente. O universo físico e o universo mental; os dois únicos possíveis para nós, e nos quais existimos por um curto período, são muito, mas muito mais complexos do que (vagamente) pensamos.

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Desafios atuais da filosofia política Nimirum insanus paucis videatur, eo quod Máxima pars hominum morbo jactatur eodem (No entanto poucos os julgam loucos, porque quase todos padecem do mesmo mal) Horácio, Sátiras

Política é a prática e o conhecimento utilizados para tomar o poder e gerir um Estado ou organização humana, com objetivos determinados. Toda instituição humana está sujeita a regras, mesmo que estas não tenham sido escritas. Estas regras foram estabelecidas por grupos ou indivíduos e refletem a ideologia – a maneira de administrar – que rege cada organização. Clubes, igrejas, empresas, condomínios, associações, sindicatos, times de futebol, municípios e estados; todos têm as suas regras e suas políticas (ou ideologias). A palavra tem origem na língua grega, na qual o termo politiká é uma derivação da palavra polis que designa aquilo que é público. Marilena Chauí apresenta três significados distintos para a palavra política: “1. O significado de governo, entendido como direção e administração do poder público, na forma de Estado. O senso comum social tende a identificar governo e Estado, mas governo e Estado são diferentes, pois o primeiro diz respeito a programas e projetos que uma parte da sociedade propõe para o todo que a compõe, enquanto o segundo é formado por um conjunto de

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instituições permanentes que permitem a ação dos governos.” (CHAUÍ, 2006, p. 346) “2. O significado de atividade realizada por especialistas (os administradores) e profissionais (políticos), pertencentes a um certo tipo de organização sociopolítica (os partidos), que disputam o direito de governar, ocupando cargos e postos no Estado.” (Ibidem, p. 347) “3. O significado, derivado do anterior, de conduta duvidosa, não muito confiável, um tanto secreta, cheia de interesses particulares dissimulados e frequentemente contrários aos interesses gerais da sociedade e obtidos por meios ilícitos ou ilegítimos.” (Ibidem p. 347). A política em sua forma mais simples, não é atividade exclusivamente humana. O primatólogo holandês Frans de Waal, autor de diversas publicações sobre o comportamentos de macacos – principalmente chimpanzés e bonobos – descreve várias situações onde já se encontra uma primitiva prática política. Esta, portanto, não é exclusiva da espécie homo sapiens, mas provavelmente influiu e foi influenciada pelo comportamento gregário humano, tendo sido aprimorada através dos variados processos culturais. A filosofia política é a disciplina da filosofia que envolve o estudo dos fenômenos políticos. A disciplina surgiu quando os estudos filosóficos passaram a se concentrar no ser humano, enfocando suas atividades e convivência com os outros. Esta atenção aos temas humanos apareceu pela primeira vez na filosofia da Grécia antiga, no final do 5º século AEC, com os filósofos da escola sofista. O primeiro e mais famoso pensador a tratar exclusivamente dos temas humanos foi o ateniense Sócrates (470 – 399 AEC), mestre de Platão. Este último foi o primeiro filósofo a se ocupar especificamente da política; da administração de um estado. Seus escritos estabeleceram a filosofia política (ou filosofia da política) como disciplina específica dentro do estudo da filosofia. Segundo o filósofo Norberto Bobbio (1909-2004), existem quatro caracterizações principais da filosofia política. A primeira é aquela que busca a melhor forma de governar. Nesta categoria se incluem todos os pensadores que procuraram construir ou idealizar um estado ideal, como Platão, Thomas Morus, Thomas Müntzer, entre outros. Platão foi o primeiro filósofo a apresentar o quadro de um estado ideal (em sua avaliação), cujo principal objetivo era promover uma convivência harmônica entre os homens, submetendo-os às leis e dividindo-os em hierarquias. Segundo alguns autores, esta ordenação do Estado platônico é na realidade uma metáfora da alma humana: as três classes representam tendências inatas no homem que levam a alma para o desejo, para a ira e para a sabedoria. Sob esta ótica, a obra A República, apesar dos detalhes quanto ao governo que apresenta, é uma analogia sobre a vida humana, sob a ótica das Ideias. Sobre este ponto escreve o historiador alemão Werner Jaeger: “O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a Alma do Homem. O que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos veem a medula da República platônica, não tem outra função senão apresentar-nos a “imagem reflexa ampliada” da alma e da sua estrutura respectiva. E nem é nunca atitude primariamente teórica que Platão se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prática: na atitude do modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates mover todo o Estado.” (Jaeger: 2003, p. 752).

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As diversas formas de governo, Platão trata mais profundamente em suas obras A Política e As Leis. Nestes escritos Platão considera a hipótese – bastante real, aliás – de que nem todos os Estados teriam governantes perfeitos como a sua República. A segunda categoria de filosofia política, segundo Bobbio, é aquela que procura identificar o fundamento último do poder. Nesta categoria se incluem todos os pensadores que se preocuparam com a origem do Estado, como Hobbes, Locke e Rousseau. Para Thomas Hobbes (1588-1679), o Estado é efetivamente a única possibilidade de os homens poderem viver de uma maneira relativamente aceitável sobre a Terra. Em seu estado natural, utilizando seu direito natural a tudo que querem, os homens necessariamente viveriam em constante guerra entre si. Decididos a abrirem mão de parte de seus direitos naturais em benefício de outras vantagens, os homens fundam o Estado para garantir a paz e a possibilidade de alcançar os seus outros objetivos. Nesse processo, segundo Hobbes, restringirmos nossa liberdade natural, nos submetendo a um poder soberano, formado por um indivíduo (monarquia), um grupo (aristocracia) ou todo um povo (democracia). Hobbes não é necessariamente defensor de uma monarquia absolutista, mas de um estado, seja de que tipo for, com força para manter a coesão social. A terceira categoria de filosofia política refere-se a todos os pensadores que se perguntam sobre características peculiares da política, ou seja, o que distingue esta atividade humana das outras. Entre os filósofos representantes desta escola distinguem-se o italiano Benedetto Croce (1866-1952) e o alemão Carl Schmitt (1888-1985). A quarta classificação de filosofia política, segundo Bobbio, interpreta a filosofia política como uma ciência destinada ao estudo das linguagens e dos métodos da ciência política. Alguns pensadores desta escola interpretaram a filosofia política como tendo função de pesquisa descritiva, baseada nos critérios do empirismo, isenta completamente de valores. Sobre esta corrente de pensamento da filosofia política, escreve Abbagnano: “Nascida como teoria do ‘bem viver’ e como ‘ciência coordenadora e arquitetônica’ da convivência humana, a filosofia política acabou assim por reduzir-se a um filosofar asséptico e metateórico sobre a política e sobre suas estruturas linguísticas e conceituais.” (Abbagnano, 2007, p. 906) À parte a classificação elaborada pelo pensador Norberto Bobbio, a filosofia política teve vários temas como foco central de suas preocupações, ao longo de sua bimilenar história. Assim, associado a determinados assuntos, podemos elencar filósofos que sobre eles escreveram: - O tema do “bem comum”, característica da filosofia política de Aristóteles (384 – 322 a.C.; - A “servidão voluntária” (a irracionalidade da submissão a um poder absoluto) analisada por Etienne de La Boétie (1530-1563); - Os limites da organização do Estado frente ao indivíduos, analisada por pensadores como Hobbes, John Locke (1632-1704), Montesquieu (1689-1755) e Jean Jacques Rousseau (17121778); - As relações entre a economia, o Estado e a Moral, que aparece nas obras de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e Augusto Comte (1798-1857); - A questão da liberdade individual, tema nos trabalhos de John Stuart Mill (1806-1873), Raymond Aron (1905-1983) e Norberto Bobbio; - Os temas da justiça e do direito, discutidos por Immanuel Kant (1724-1804), Georg W.F. Hegel (1770-1831), John Rawls (1921-2002) e Jürgen Habermas (1929-).

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No século XX, sob influência de pensadores como Hanna Arendt, Jürgen Habermas, Norberto Bobbio e, principalmente, John Rawls, a filosofia política deixou de ser disciplina descritiva e voltou a se preocupar com os grandes temas. A questão da liberdade política, da justiça social, dos direitos individuais, da autonomia dos povos, das relações internacionais, entre outros, são assuntos discutidos pela moderna filosofia política. Sob a égide da ética e da epistemologia, filósofos discutem a natureza das leis, dos governos, a origem da organização social e a melhor forma de convivência entre os indivíduos e os povos. O mais destacado pensador da moderna filosofia política é o americano John Rawls, autor da obra Uma teoria da justiça (1971) que influenciou profundamente todos os pensadores que posteriormente vieram a falar sobre o tema. Rawls, influenciado por Kant é um grande defensor da liberdade para o indivíduo e da igualdade de oportunidades (sociais, econômicas e políticas) para todos. O individualismo e o liberalismo econômico implícitos na filosofia de Rawls têm sido motivo de crítica de várias correntes (marxistas, anarquistas) ao longo dos últimos anos.

Referências Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo. Editora Martim Fontes: 2007, 1210 p. Chauí, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo. Editora Àtica: 2006, 424 p. Filosofia Política em <www.sites.google.com/site/filosofiapopular/filosofia/filsofia-política>. Acesso em 29/08/2013 Jaeger, Werner. Paidéia. São Paulo. Martins Fontes: 2003, 1413 p. Primatas têm algo próximo ao senso de justiça humano. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jul-26/ideias-milenio-frans-waal-primatologo-holandes>. Acesso em 29/08/2013

Direitos humanos: origens e fundamentos

Existem diversas interpretações sobre a origem e o desenvolvimento da ideia dos direitos humanos. No entanto, dada a complexidade do assunto, e por ser difícil se traçar uma gênese das ideias e conceitos filosóficos, apresentaremos a seguir um resumo do desenvolvimento mais provável do conceito, de acordo com nossa visão. Não resta dúvida que o conceito dos direitos humanos muito deve ao cristianismo. A religião cristã foi a primeira que em sua doutrina estabelecia um relacionamento direto entre a criatura e o Criador; ideia esta que fortalecia a noção da responsabilidade individual da criatura perante o Criador. Tanto assim, que – segundo o que estabeleceu a tradição cristã no Concílio de Nicéia em 325 – o próprio Deus fez-se homem e como este viveu, sofreu e morreu. A ideia era revolucionária no universo religioso da época. Não mais os deuses egípcios ou da Babilônia, os gregos e romanos, que afastados dos homens raramente se preocupavam com o indivíduo e desconheciam a realidade humana sob ponto de vista do homem concreto e individual; homem “de carne, sangue e ossos”, como escrevia o filósofo Miguel de Unamuno. O cristianismo trouxe a noção de ser humano para um patamar mais alto. Deus se (pre)ocupava com o fiel individualmente e a Igreja era união de todos os fiéis, membros da comunidade de crentes. Muito diferente da impassibilidade dos deuses antigos, que através de

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seus sacerdotes tratavam com uma massa de servidores e cujo contato se baseava principalmente em sacrifícios e oferendas, para aplacar a ira ou obter a simpatia de uma divindade instável. No entanto, esta relação que existia entre o crente e a divindade no início do movimento cristão foi sendo deturpada ao longo da história da igreja católica. Esta se considerava a única detentora da verdade cristã, da mensagem oficial do Cristo, e como toda instituição hegemônica criou verdadeiras cadeias de comando entre o fiel e Deus, formada por sacerdotes, bispos, arcebispos, cardeais e o pelo papa. A hierarquia católica era responsável exclusiva pela manutenção e o ensino da doutrina, pela distribuição dos sacramentos e, principalmente, pelo contato da Igreja (a totalidade de seus membros o “corpo dos fiéis”) com Deus. No século XVI, eclodem mudanças que há muito tempo estavam em gestação na sociedade medieval europeia. Na economia, o sistema de produção feudal entra em decadência, sendo gradualmente substituído por uma economia baseada no mercantilismo. A consequência política dessa mudança é que os senhores feudais perdem sua força, passando a ser comandados por um único rei, que se torna o chefe da nação. No aspecto cultural o Renascimento, surgido na Itália com a revalorização da cultura clássica grega e romana, difunde-se por grande parte da Europa, formando uma nova classe de intelectuais, críticos de muitos aspectos do cristianismo católico. Erasmo de Rotterdam, chamado de "Príncipe dos Humanistas", foi o maior representante deste novo tipo de intelectual, bastante crítico ao catolicismo. Um de seus textos diz, por exemplo: "O cristianismo hoje, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixa no esquecimento o seu nome e o põe de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos." No aspecto religioso ocorre a Reforma protestante; concretização de varias mudanças no cristianismo, tanto na doutrina quanto na instituição, que já vinham sendo fomentadas desde o século XIV por toda a Europa. Martinho Lutero, um monge agostiniano, que colocou em discussão aspectos da doutrina católica e se rebelou contra uma hierarquia corrompida por práticas desonestas, foi o líder desta verdadeira revolução. Em sua interpretação do cristianismo, Lutero dizia que o aspecto mais importante da vida do crente era a fé – sola fide (somente a fé). Por esta apenas o homem poderia se salvar, e não através das obras - como enfatizava a doutrina católica depois de ter incorporado muitos aspectos da filosofia de Tomás de Aquino. A fé, no entanto, era algo concedido por Deus ao homem; este só poderia aceitá-la e passar a viver inspirado por ela. A nova interpretação de Lutero colocava em cheque toda a estrutura católica, baseada na hierarquia, nos sacramentos e na exclusividade de interpretação das escrituras (e consequente desenvolvimento da doutrina). O novo fiel não poderia e não precisaria mais usar de intermediários para contatar a divindade; ele sozinho deveria colocar-se perante Deus, tornando-se mais responsável e autônomo. A Reforma Protestante influenciou profundamente o pensamento da civilização ocidental; sua filosofia e a maneira desta encarar a dignidade e a liberdade do ser humano. Grandes filósofos, principalmente da escola alemã como Leibniz, Kant, Schelling, Hegel, Feuerbach e Nietzsche levaram a interpretação cristã do homem aos extremos. Nos anos 1960 a escola teológica da "morte de Deus", fortemente influenciada pelos teólogos e filósofos alemães do início do século XX, teorizava que o cristianismo necessariamente levaria a uma completa imanência de Deus e à total secularização da sociedade. Em relação a isto o filósofo Giuseppe Cantarano, pesquisado da Universidade da Calábria, escreve em artigo no jornal L`Unità: "Do céu do cristianismo, o sagrado - aquela dimensão do divino inacessível e indiferenciada, temível e ao mesmo tempo atraente -

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teria saído em êxodo. Emigrado para a terra. Já que, fazendo-se homem, Deus não perde apenas a transcendência. Com ela, Ele também perde irremediavelmente a sua sacralidade." (Cantarano, 2013) No aspecto político, a gênese dos Direitos Humanos remonta ao filósofo inglês, John Locke (1602-1704), considerado o precursor do liberalismo político. Ponto importante de sua doutrina política é que: a) Todos os homens ao nascerem tinham direitos naturais; direito à vida, à liberdade e à propriedade; b) Para garantir estes direitos, os homens acordaram entre si formarem governos, que garantiriam seus direitos naturais; c) Esquecidos estes direitos inatos e este contrato social originário, surgiram os reis por direito divino - situação que, segundo o filósofo, absolutamente não existe e deve ser combatida. O liberalismo de Locke influenciou a Revolução Gloriosa, ocorrida na Inglaterra em 1688, abolindo o absolutismo e introduzindo a monarquia parlamentarista. O pensamento político do inglês também foi parcialmente absorvido por filósofos franceses, que colocaram as bases ideológicas da Revolução Francesa (1789) como Voltaire, Rousseau, Diderot, D`Alembert e muitos outros. Críticos dos reis absolutistas da França e de outras nações, estes pensadores foram autores de obras que analisavam e procuravam identificar as origens das monarquias autocráticas, apontando-lhes os erros. As ideias liberais inglesas também exerceram forte influência sobre a elite econômica da mais importante colônia britânica, as "Treze Colônias" da América do Norte. Depois de uma guerra revolucionária que se estendeu de 1775 a 1783, na qual a nascente nação também recebeu apoio da França, Espanha e dos Países Baixos - inimigos históricos da Inglaterra - os Estados Unidos se tornaram o primeiro país do mundo a dispor de uma constituição embasada por princípios democráticos. A Declaração da Independência, documento votado e ratificado pelo Congresso em 4 de julho de 1776, contêm uma das mais famosas frases da língua inglesa, que exerceria muita influência sobre movimentos sociais ao longo da história desde então: "Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade." Em 14 de julho de 1789, com um sistema monárquico odiado pelo povo e passando por uma crise econômica que faz parte do povo passar fome, ocorre a Revolução Francesa, iniciada com a tomada da prisão da Bastilha, ocupada por muitos opositores do regime e desafetos pessoais do rei Luiz XVI. A revolta passa por diversas fases, alternando períodos de relativa calmaria social com outros de extremo terror, com milhares de execuções públicas. A comoção social termina definitivamente em 9 de novembro de 1799, quando ocorreu o chamado "golpe de 18 de Brumário" (extensamente analisado por Karl Marx), durante o qual as forças conservadores voltam a tomar o poder, para logo depois instituírem uma ditadura. Foi, no entanto, em 2 de outubro de 1789 que a Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária aprovou os 17 artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento completamente inovador para a época, ultrapassando inclusive a Declaração americana. Em 1948, passados os horrores da 2ª Guerra Mundial (1938-1945) e criada a Organização das Nações Unidas - ONU (1945), os países membro resolvem promulgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). A declaração começa em seu primeiro artigo com a seguinte declaração: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade".

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Passados 67 anos desde sua promulgação, a Declaração Universal dos Direitos Humanos exerceu muita influência na história. Seus princípios foram incorporados às constituições de países, às instituições e, consequentemente, à consciência dos cidadãos da maior parte dos países. A questão de que se estes princípios são de inspiração divina, ou o simples coroamento de um processo evolutivo da cultura que tem suas origens na biologia, pouco importa. O importante é de que os princípios dos direitos humanos são considerados por grande parcela da humanidade como conceitos fundamentais para a convivência e para a condução de uma vida digna. Ainda com relação à questão da validade universal dos direitos humanos não é possível, penso, transigir. É evidente que esta é uma posição filosófica pessoal sem validade universal, assim como o relativismo cultural. Se existem argumentos suficientes para condenar certas práticas consideradas degradantes – a opressão da mulher, a homofobia, os castigos brutais e a tortura, entre outros - por outro lado também há sociedades onde estas práticas são fundamentadas na religião, tradição e na prática política. Nossa sociedade, no entanto, optou pelos direitos humanos, seguindo a tradição deixada pelo cristianismo, pela filosofia liberal, pelas lutas dos povos por liberdade e dignidade. Milhões de seres humanos que nos antecederam na história, sacrificaram bens, saúde e a própria vida em nome destes direitos. É neste contexto que toma significado a frase de Sartre: "O importante não é o que fizeram de nós, mas o que nós próprios faremos com aquilo que fizeram de nós”. Para este filósofo a liberdade humana tem valor absoluto. O ser humano, segundo Sartre, está "condenado a ser livre", sendo responsável pela construção de sua vida e da sociedade em que vive. “Em sua consciência, o homem está direcionado para algo que não é ele próprio, ou seja, em sua consciência está sempre fora de si; voltado para fora de si mesmo. Disso resulta que na concepção de Sartre a consciência do homem, o “ser-para-si”, é vazia, baseado no nada (melhor seria dizer no “vazio”). Com isso, Sartre deduz que o homem não é determinado por uma essência anterior, algum tipo de “natureza humana”, seja do tipo que for. Ao contrário, como a consciência do “ser-para-si” é vazia, e direcionada para o mundo, para um “ser que não é o que ele é”, o homem é determinado por sua existência e só cria uma essência a partir de seus projetos e de suas ações, de sua relação com o mundo – o “ser-no-mundo”. É a partir desta estrutura, segundo Sartre, que o homem pode ser efetivamente livre. Para Sartre, como para outros existencialistas, existir é para o homem fixar alvos, persegui-los, projetar-se a si próprio em direção ao futuro. É ultrapassando os obstáculos que impedem a consecução destes objetivos, que o homem é livre. É através do transcender dos obstáculos que o “ser-para-si”, com base no nada (vazio) de sua existência, é livre a cada momento – já que Sartre nega o efeito de condicionamentos passados sobre a consciência. Desta forma Sartre afirma que “o homem é condicionado a ser livre”; por sua própria condição ontológica. Mas a liberdade só se forma através do confronto, do embate; daquilo que Sartre chama de “situação”, obstáculo. Por isso o filósofo afirma que “só existe liberdade em situação e só há situação por meio da liberdade”. (Rose, 2011)

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Assim, o homem é completamente livre para fazer de si o que quiser, seguindo os ditames de sua consciência. Possa a sociedade brasileira neste importante momento histórico ter discernimento para conduzir-se cada vez mais seguindo os princípios dos direitos humanos.

Referências: Declaração da independência dos Estados Unidos. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_da_Independ %C3%AAncia_dos_Estados_Unidos>. Acesso em 21/06/2012. Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara %C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o>. Acesso em 21/6/2012. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em 21/6/2012. Erasmo de Rotterdam. Disponível em: <http://pensador.uol.com.br/autor/erasmo_de_rotterdam/>. Acesso em 21/6/2013. Galimberti e a religião do céu vazio. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521063-galimberti-e-a-religiao-do-ceu-vazio>. Acesso em 17/06/2013. John Locke. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke>. Acesso em 21/06/2012 Sartre e a liberdade. Disponível em: <http://ricardorose.blogspot.com.br/2011/01/sartre-e-liberdade.html>. Acesso em 21/6/2013.

Divagando sobre o tempo "Do mesmo modo, o triste plantador de uma vinha hoje velha e enfezada acusa a ação do tempo, queixa-se repetidamente da sua geração e resmunga que os homens antigos, cheios de piedade, passavam uma vida fácil num pequeno campo, quando era menor a quantidade de terra que cabia a cada um: e não vê que tudo se enfraquece pouco a pouco e se dirige para o esquife, fatigado pelo decrépito tempo da idade." Tito Lucrécio Caro - Da natureza

Platão falava “que tudo está se tornando, nada é”.

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Lembro-me de quando era criança e passava férias na praia. Ao lado de nossa casa havia uma família de caiçaras, que morava em uma casa de madeira, um pouco melhor que um barraco. Pois bem, passou o tempo e alguns anos depois estas pessoas construíram uma casa de tijolos. Viveram lá por mais alguns anos. Depois, morreu o patriarca da família e eles também se mudaram, vendendo a casa para veranistas de São Paulo. Pergunto-me onde está aquela casa de madeira que primeiro conheci e como tudo foi se transformar em outra coisa, no mesmo espaço, mas completamente diferente, habitado por outros indivíduos, com histórias completamente diferentes. Como entender esta mudança? É este processo de mudança completamente aleatório, sem qualquer vínculo com o passado? Em outras palavras, o que uma coisa – neste caso a casa de madeira, habitada por caiçaras, que lá viviam suas vidas – tem a ver com o que existe lá agora, a casa de tijolos, eventualmente visitada por pessoas em férias e vazia na maior parte do tempo, fora da época de temporada? Existe uma ordem de mudança nisto, ou seja, há uma maneira de, partindo do presente, fazermos uma ideia do passado? Talvez olhando o fato de certa maneira sim, com relação à substituição da casa de madeira pela de tijolos. O que não sabemos é porque esta mudança ocorreu – como saberemos o que levou os antigos habitantes construir uma casa de tijolos e depois vendê-la? Isto nos leva a outra questão, muito antiga e não respondida ainda, mas tratada por inúmeros filósofos e físicos: o que é o fluxo do tempo? Penso que não há fluxo nenhum. O que ocorre são transformações na matéria; movimento no espaço, mudanças na aparência (quebra, envelhecimento, doença, destruição por substâncias ou organismos, por exemplo). Trata-se, essencialmente, de transformação da matéria, principalmente no nível atômico e subatômico (as menores partículas das quais é constituída a matéria). Imagino que se fosse possível cessar completamente o movimento dos átomos, dos elétrons, fótons e todas as outras subpartículas, não haveria mais qualquer movimento na matéria, não ocorreriam mais interações e transformações e o que nós chamamos de fluxo do tempo pararia. Não havendo mais qualquer tipo de transformação na matéria, não há mais escoamento do tempo. Um universo congelado. Mas, voltando ao exemplo inicial, da casa do caiçara transformada em casa de praia. A transformação das coisas ocorre porque na natureza (penso aqui nos fatores não-humanos) existem duas principais tendências: a entropia crescente, ou seja, a desagregação e perda de energia e organização, como afirma o segundo princípio da termodinâmica. A outra tendência, presente em todos os seres vivos, é a tendência de aumentar e manter a organização – a entropia decrescente. (Fica a pergunta se formações cristalinas podem ser incluídas nessa segunda tendência). Todos os seres vivos lutam contra a desagregação, representados pelo desgaste do organismo (gradual falência dos órgãos e demais sistemas de manutenção da vida) e doenças (ataques de outros seres vivos, como bactérias e fungos e não vivos, como os vírus).

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Dualismo e sentido da história O filósofo Heráclito de Éfeso (535-475 AEC) dizia que tudo muda, uma coisa se transforma em outra e que nunca conseguimos entrar no mesmo rio; as águas não são as mesmas e nós também não. Seu colega quase contemporâneo da cidade de Eléia, no sul da Itália, Parmênides (530-460 AEC), dizia que só existia o Uno, que a mudança era aparente. Mais tarde, Platão (428- 348 AEC), influenciado por ambos, criou o mundo dos Ideais. Este é eterno e nunca muda, contraposto ao mundo onde vivemos, que Platão considerava uma cópia sempre efêmera e mutável do mundo eterno e imutável dos Ideais.

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O mundo ideal de Platão tinha influência dos cultos órficos e foi incorporado conceptualmente pelo nascente cristianismo. Esta religião já continha uma carga considerável de dualismo, que herdou em sua maior parte dos conceitos dualistas da religião judaica. O judaísmo trazia em seu bojo conceitos religiosos dualistas diversos: de que haveriam dois princípios, um bom e outro mau, tentando dominar o mundo; a ideia de que ocorreria um Final dos Tempos, quando o princípio Bom e o Mau travariam uma batalha definitiva pelo domínio do universo; a crença de que os mortos ressuscitariam para serem julgados e separados em salvos e condenados. Todas são ideias que o judaísmo incorporou da religião persa, o zoroastrismo. No judaísmo as ideias religiosas originadas no zoroastrismo e assimiladas depois do exílio babilônico (século VI AEC) concretizaram-se em concepções como a implantação do um Reino de Deus, em contraposição ao mundo real da época, no qual os judeus eram dominados por uma cultura grega e por uma política romana. A instituição do Reino de Javé significaria a destruição do império romano e o domínio de um reino judeu comandado por Javé. Estas ideias foram defendidas pelas correntes apocalípticas, que mais tarde também exerceram forte influência no nascente cristianismo, como mostra o livro cristão do Apocalipse. As crenças apocalípticas e escatológicas eram correntes entre grupos judeus do século II AEC até o século I EC, como os fariseus, os essênios e os zelotes. O cristianismo em sua fase de estruturação, entre os séculos II e V, absorveu conceitos platônicos através da filosofia de Plotino (204-270 EC), corrente nas principais cidades do império romano no início da era cristã. Líderes dos primeiros séculos da religião, como Orígenes e Agostinho, ajudaram a construir conceitos e dogmas do cristianismo, fortemente influenciados pela filosofia de raízes platônicas de Plotino. Assim, o dualismo herdado pelo cristianismo do zoroastrismo através do judaísmo, passou a permear a doutrina cristã, com apoio da doutrina de Platão, transmitida por Plotino. Foi, provavelmente, sob influência do zoroastrismo persa que o judaísmo passou a enxergar a história - mais especificamente a história do povo judeu - como tendo um objetivo; como um processo em direção à implantação do Reino de Deus na terra, junto com a vinda de um Messias. Interessante notar, que o nascente cristianismo interpretou este fato de maneira diferente. Isto porque ainda na segunda metade do século I EC, passou a firmar-se a ideia de que Jesus de Nazaré era o Messias prometido. Assim, de certo modo, para a primeira e segunda geração de cristãos restava apenas esperar pelo "Fim do Mundo", pela Parúsia; quando todos os mortos ressuscitariam para um julgamento e seria implantado o reino de Deus, com a vitória de Jesus Cristo sobre o Demônio. Muitos cristãos de primeira hora, como Paulo, estavam certos de que ainda em vida veriam a chegada do Fim do Mundo. Mas, a vinda do Reino demorava para chegar, apesar do que diziam os escritos apocalípticos e haviam vários Apocalipses circulando na região do Mediterrâneo no início da era cristã entre as comunidades de crentes. Assim, aos poucos, as igrejas locais se agruparam em torno de uma igreja única, com crenças (quase) comuns, com seus ritos e sua doutrina. Desta forma, a nascente igreja cristã incorporou do judaísmo as noções escatológicas e dos fins últimos do homem e da filosofia grega o platonismo dualista. A ideia grega de uma história cíclica não foi adotada pelos pensadores cristãos, já que esta não coadunava com a visão herdada do judaísmo. Desde o início, para o cristianismo a história humana tinha um sentido que girava em torno da mensagem de Jesus - ou daquilo que as comunidades cristãs primitivas acreditavam que fosse sua pregação. O sentido da história da humanidade dizia respeito especificamente a Cristo e seu reino, e a atitude que cada ser humano teria em relação à sua mensagem. A ideia filosófica de que a história tivesse um sentido, uma direção, um desenvolvimento, foi defendida principalmente por Santo Agostinho em sua obra A Cidade de Deus. Nessa o patriarca da Igreja interpreta a história como sendo basicamente uma luta do Bem contra o Mal. Em suas

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ações, cidadãos, reis e estados se perfilam de um lado ou de outro desta titânica luta. No final Deus, que é o Bem Supremo, vencerá o Demônio, quando então se dará fim à história como a conhecemos. Ao longo da Média surgiram diversas interpretações, populares e intelectuais, deste processo que em pouco tempo, esperava-se, levaria à Parúsia, ao Final dos Tempos. Perto do ano 1000 a Europa passava por uma crise econômica e social bastante grave. A Igreja enfrentava problemas internos. Interpretações de partes da Bíblia pareciam predizer que na virada do primeiro milênio da história da cristandade ocorreria a implantação do Reino de Deus, com todas as suas implicações. Assim, alguns anos antes da virada do milênio, espalharam-se os movimentos formados principalmente por camponeses, pobres e peregrinos, que defendiam uma volta à vida ascética dos Evangelhos e o arrependimento, frente ao Julgamento Final iminente. Intelectuais da Igreja mais tarde também incorporaram a ideia de que Deus era o "senhor da História", mas de uma forma bem mais sofisticada. Joaquim de Fiore (1135-1202), monge cisterciense italiano, criou, baseado no livro do Apocalipse, a teoria das Três Eras. Fiore dividia a história humana em três períodos distintos: o período do Pai, o do Filho e pregava a chegada (em sua época, no século XIII) do período (ou reino) do Espírito Santo. A Era do Pai correspondia ao período histórico relatado pelo Antigo Testamento, o período de obediência aos mandamentos de Deus. O período do Filho compreendia o tempo desde o aparecimento do Cristo até 1260, quando o homem havia se tornado filho de Deus. O terceiro tempo referia-se ao do Espírito Santo, o mais importante da história, que seria aquele no qual a humanidade teria contato direto com Deus e quando a ordem eclesiástica seria substituído pela “ordem do justo”, que na época, se pensava, referia-se ao aparecimento da ordem religiosa franciscana. Este terceiro período da história da humanidade seria de paz e nele a humanidade teria um contato diretor com a divindade, o que eliminaria a necessidade de uma estrutura eclesiástica. A doutrina de Fiore, evidentemente, foi condenada pela Igreja e pelos escritos de seus teólogos oficiais, como Tomás de Aquino. Os conceitos principais de Fiore, no entanto, continuaram presentes na ideologia de diversos movimentos milenaristas durante a Idade Média e o Renascimento. As ideia das “Três Eras Históricas” exerceram forte influência em pensadores posteriores, como o historiador italiano Giambattista Vico (16681744) e o filósofo alemão Georg F. Hegel (1770-1831). A história, que para os gregos como para várias outras culturas (hindus, chineses, entre outros) era um processo cíclico, formada por fases que regularmente se repetiam, assumiu uma forma linear, tanto no judaísmo quanto no cristianismo. A origem disso encontra-se, provavelmente, nos mitos da criação que eram comuns a diversos povos do Oriente Médio e que também foram incorporados pelos antigos judeus ao seu corpo de crenças. Os judeus, provavelmente em tempos mais recentes, transformaram este em um mito fundador de seu povo, como vários outros povos o fizeram, e passaram a ver a sua história de uma maneira linear - visão fortalecida pelos dois exílios e pelas profecias da reinstituição do reino de Israel através da interferência de Javé. A história do povo judeu tinha assim seu mito de Criação e do surgimento de seu povo, com as histórias de Abraão e Moisés. Mais tarde, após o segundo exílio, esta visão teleológica da história foi ainda mais fortalecida com as visões apocalípticas, cujo teor era essencialmente de destruição da dominação grega e mais tarde romana, e instituição do domínio de Javé. Tudo isto foi incorporado pelo cristianismo e através dele à filosofia cristã. A discussão se a filosofia moderna ainda pode ser chamada de cristã ainda está em aberto. Inegavelmente nossa filosofia, mesmo aquela posterior à Revolução Francesa, tem muitos pressupostos que tiveram sua origem na cultura cristã.

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A filosofia ocidental contemporânea teria conseguido equacionar a eterna discussão entre Heráclito e Parmênides - a dicotomia entre o mundo das Ideias (ou dos Ideais) e o mundo criado pelo Demiurgo, segundo Platão? Seria possível conciliar a visão de ambos os filósofos gregos? Sob ponto de vista de Heráclito tudo muda, mas para Parmênides é apenas a superfície que muda, o Uno não. O que seria este Uno? O fundamento do universo? Sob certo aspecto a história muda, mas, de certa forma permanece a mesma. Dependendo dos parâmetros que consideramos, Heráclito está certo; tendo por base outros aspectos, a razão fica com Parmênides. É, por exemplo, o caso da dialética de Hegel, que numa primeira visão parece ir de encontro ao pensamento de Heráclito. No entanto, todo o processo dialético da história é a manifestação e crescente presença do "Espírito Absoluto", ou seja, a velha ideia do Uno, já defendida por Parmênides. Influenciada pelo cristianismo e pelo filosofia, a civilização ocidental incorporou dois conceitos bastante importantes na história da cultura: a ideia de que existem dois mundos; um material e o outro oculto, “espiritual”, como afirma a religião cristã e a metafísica. O segundo conceito diz respeito à história, quando afirma que o desenrolar das ações humanas, dos grupos e da civilização, tem um direcionamento e finalidade. Para a religião esta finalidade é algum tipo de união com a divindade, seja no mundo ou em um plano espiritual. ---------------------------------------------------------------------No entanto, o pensamento moderno acabou com o dualismo “matéria – espírito”, pelo menos como o enxerga a religião. A tendência no pensamento filosófico de uma forma geral, pelo menos a partir do final do século XIX é o de um monismo materialista ou fisicalista. Assim, para a predominante linha filosófica não existe nenhum mundo ou dimensão além deste que vivemos, dominado pela matéria e pela energia. Com relação ao sentido da história é conceito comum entre a maioria dos pensadores contemporâneos, que a história não tem qualquer sentido além daquele que o homem possa lhe dar. Diferente do que pensam as religiões, a visão moderna, influenciada principalmente pela ciência, não vê sentido algum na história humana ou na história do universo. Este, passa por diversas fases de desenvolvimento desde seu surgimento com uma explosão inicial (conhecida como “big-bang”) até acabar em morte térmica daqui a centenas de bilhões de anos, segundo as modernas teorias da cosmologia e da física. O avanço da astrofísica e da cosmologia permite atualmente a construção de teorias – baseadas em projeções matemáticas – que apresentam outras variantes do surgimento e evolução do universo. A hipótese do “universo cíclico” diz que o atual universo no qual existimos não é o único nem o primeiro; cálculos baseados em teoria físicas permitem afirmar que antes existiam outros e ao atual se seguirão novos. Outra teoria, a dos multiversos, diz que além do nosso também existe um número muito grande de outros universos, cada um com características diferentes do nosso. Assim, fora de uma visão religiosa da história do universo e da humana, a moderna ciência e a filosofia não pensam mais em um “sentido último” ou em uma “outra dimensão”, na forma de um mundo além deste. Tal visão já vinha se delineando no final do século XIX com as descobertas das ciências físicas, e com as ideias da filosofia. A ideia do universo e do desenrolar histórico completamente “dessacralizado”, como dizia o sociólogo Max Weber, tornou hegemônica ao longo do século XX.

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É possível a neutralidade do pensamento científico? Usualmente divide-se a ciência em naturais, que incluem todas as ciências físicas e biológicas; e ciências humanas, aquelas que se dedicam ao estudo das atividades humanas. Até há cerca de quarenta anos, era comum o conceito de que as ciências naturais tinham condições de oferecer uma maior previsibilidade do que as ciências humanas. Por essa razão, ainda se classificava as ciências em exatas, relativas àquelas que faziam uso de processos verificáveis

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e, principalmente, matematicamente calculáveis; biológicas, relativas a todas as ciências que envolviam o estudo dos seres vivos, inclusive a medicina; e as ciências humanas. A origem desta classificação remota ao século XIX, quando as ciências físicas e biológicas apresentaram um grande desenvolvimento e a pesquisa científica passou a basear-se em experiências que podiam ser repetidas, criando-se o conceito da repetitibilidade. Uma hipótese só poderia ser admitida como teoria, caso pudesse ser comprovada por experiências controladas, que repetidas nas mesmas condições, sempre dariam o mesmo resultado. Através da indução, a ciência pode afirmar que o que acontece na experiência – repetidas inúmeras vezes – acontecerá sempre. Assim, por um raciocínio, elabora-se uma lei universal. O método dedutivo, largamente utilizado pela ciência tem muitos críticos na filosofia, como David Hume (1711-1776), Karl Popper (1902-1994) e Paul Feyerabend (1924-1994). Todavia, o conceito de “ciências exatas” já passa por uma crise na década de 1930, quando o físico alemão Werner Heisenberg (1901-1976) desenvolve o conceito de “princípio de indeterminação” na física atômica. Basicamente, o conceito diz que não se pode determinar a posição de uma partícula (no caso o elétron) na estrutura do átomo. Isto porque, a partir do momento em que procurássemos identificar a posição da partícula através de luz ou radiação, o fóton emitido por nosso equipamento deslocaria o elétron de sua posição original. Deste modo, só podemos saber estatisticamente, probabilisticamente, a posição de uma partícula. Escreve Werner Heisenberg: “Na física clássica a ciência partia da crença – ou devemos dizer da ilusão? – de que podíamos descrever o mundo em suas menores partes, sem alguma referência a nós mesmos” (Heisenberg, 2007 – tradução nossa). Esta teoria abalou a certeza do processo da repetitibilidade na física, colocando em cheque todo o conceito de “ciência exata”. A descoberta também influenciou a filosofia. Pensadores como Popper e Feyerabend passaram a tratar a ciência em geral como uma maneira especial de enxergar o funcionamento da natureza; uma maneira de interpretá-la. A ciência não era um retrato fidedigno da natureza, apenas a nossa interpretação desta. Escolas pós-modernas de pensamento (como Derrida e Baudrillard) vão mais longe: negam a neutralidade do pensamento científico, argumentando que as teorias científicas são influenciadas pela posição ideológica do cientista (ou de grupos financiadores) e que justificavam e validavam determinada posição de classe ou de grupos dominantes. A história tem demonstrado que determinadas ideologias podem influenciar a ciência, tirandolhe a neutralidade. Este tipo de manipulação da ciência por regimes ou grupos ocorre, pelo menos em sua forma mais violenta, em regimes autoritários. Basta lembrar dos processos da Inquisição da igreja católica e do que ocorreu, mais recentemente, na antiga União Soviética stalinista, quando a ideologia do materialismo dialético exerceu nefasta influência sobre as pesquisas genéticas. Todavia, dado o próprio desenvolvimento da ciência, através da constante pesquisa, é improvável que sempre haja interferência ideológica no pensamento científico. A ciência é dinâmica e baseia-se, principalmente no princípio da verificabilidade. Caso um grupo de cientistas falseie um resultado, visando certos interesses, outro grupo cedo ou tarde descobrirá o embuste. O que limita a ciência são principalmente os nossos instrumentos, que foram desenvolvidos baseados em nossos sentidos. Assim, a neutralidade do pensamento científico poderá ser atingida na maior parte das vezes, já que as teorias serão sempre testadas por diversos agentes. Por outro lado, admitindo-se a teoria de que a ciência nunca poderá apresentar neutralidade, qual é a garantia que temos de que esta mesma teoria tem neutralidade? É um falso dilema.

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É importante lembrar de que, todavia, a ciência não é uma “verdade”. Trata-se apenas de uma interpretação da natureza, limitada pelos recursos de pesquisa e pelo conhecimento geral disponível em um determinado período histórico. Escreveu sobre isso o pensador Milton Vargas: “Em princípio, é possível fazer teoria sobre tudo o que se encontra e tal como se o encontra. Isto é, sobre a realidade. É, entretanto, de se lembrar, que uma teoria sobre a realidade já é, em si, outra realidade.” (Vargas, 1994).

Referências: HEISENBERG, Werner. Physics and philosophy. New York. HarperCollins Publishers: 2007, 201 p. VARGAS, Milton. Para uma filosofia da tecnologia. São Paulo. Editora Alfa –Ômega: 1994, 285 p.

É possível ensinar filosofia no Ensino Médio? Recentemente, o governo do presidente Michel Temer (2015-2018) introduziu novas mudanças no curriculum escolar, fazendo com que o ensino da filosofia e da sociologia perdesse

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importância. Historicamente, no entanto, a filosofia tornou-se matéria obrigatória (depois de longo período de proibição) por força da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1997) e da Lei 11.684 de 2/6/2008. O ensino da filosofia já era reclamado há muitos anos, desde que se tornou matéria optativa em 1968, sendo excluída dos currículos em 1971, com a Lei 5.692/71, durante o período da ditadura militar. A estratégia por trás da abolição do ensino da filosofia era evidentemente político. A filosofia, pelas características de seu ensino, promove o debate, a análise dos fatos; práticas pouco incentivadas em regimes autoritários. Manter o espírito crítico dos estudantes paralisado era uma das maneiras de fazer com que a parcela instruída da população aceitasse o sistema político-econômico implantado pelo golpe de Estado de março de 1964. Vale lembrar que o ensino público daquela época ainda tinha um bom nível e formava grande parte da população instruída. A abolição (ou proibição velada) do ensino da filosofia dava-se em uma situação política e econômica mundial bastante característica. O mundo era dominado por dois blocos antagônicos. De um lado, o sistema comunista, liderado pela União Soviética, seguida de seus países satélite. De outro o regime capitalista, auto proclamado “mundo livre” (o que, todos sabiam, era uma farsa, já que era formado por uma série de ditaduras militares), capitaneado pelos Estados Unidos e seus acólitos europeus. O embate destas duas forças econômica e politicamente antagônicas era chamado de Guerra Fria. O próprio contexto da Guerra Fria era desfavorável ao debate filosófico. De ambos os lados a liberdade de expressão era pouco valorizada e o debate era proibido, ou tolerado no melhor dos casos. Escrevendo neste período, um dos filósofos mais lidos à época e ídolo das revoltas estudantis de 1968 (nos EUA, México, Brasil, Argentina, França, Alemanha e vários outros países), Herbert Marcuse, afirmava: “Numa sociedade baseada no trabalho alienado, a sensibilidade humana está embotada: os homens só percebem as coisas nas formas e funções em que lhes são dadas, feitas, usadas pela sociedade existente; e só percebem as possibilidades de transformação tal como são definidas e limitadas na sociedade existente” (Marcuse, 1973). Além disso, a maior parte da filosofia das décadas de 1960 e 1970 tinha influência do estruturalismo e, principalmente, do marxismo, sendo muito crítica em relação à economia de mercado. Mais um motivo para desfavorecer o ensino e o debate filosófico. Fato interessante é que foi exatamente neste período de exceção, quando não havia ensino da filosofia no Brasil, que foi lançada pela primeira vez a coleção de textos filosóficos clássicos Os Pensadores, pela editora Abril, no início dos anos 1970. O período entre 1964 e 1984 foi de repressão cultural; proibição de livros, filmes, peças de teatro. Jornais (tablóides) de caráter político e cultural, que por vezes traziam artigos sobre temas filosóficos – como Versus, Ex, Politika, Opinião, Pasquim – eram censurados e, eventualmente, confiscados pela Polícia Federal e pelo DOPS (a temida Delegacia de Ordem Política e Social). A cultura e o estudo da filosofia só sobreviveram porque ainda havia um número suficiente de pessoas que – formadas em grande parte na antiga escola pública – se interessava pelo assunto. Voltou a democracia (1984), caiu o Muro de Berlim (1989) e com ele todo o sistema de socialismo de Estado (eufemisticamente chamado de comunismo). O livre-mercado (leia-se liberalismo) se expande em todo o mundo. Instala-se um sistema econômico e social voltado para a produção e o consumo exagerado, mesmo que às expensas dos recursos naturais e de milhões de subempregados e miseráveis.

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É neste contexto social e econômico que ressurge o interesse pelo ensino da filosofia no Brasil. Qual o significado deste retorno? Porque não voltou também o ensino do latim, do francês e de outras matérias? Dadas as condições sociais e econômicas é compreensível que o latim e o francês não seriam muito producentes; teriam pouca aplicabilidade para os alunos em sua carreira futura. Mas, e a filosofia? Que ela tenha uma função de integração de conhecimentos, que seja instrumento de análise e de crítica da realidade, é ponto pacífico; isto consta em qualquer manual para iniciantes no estudo da matéria. Mas, chegaremos efetivamente a isto? Conseguiremos formar estudantes que com o estudo da filosofia tenham uma visão mais crítica da sociedade, de seu papel no mundo? Louis Althusser em sua obra Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado faz uma análise do que seriam os aparelhos ideológicos de Estado (aiE) e sua função. Os aiE, segundo os lista o pensador, são instituições como: igrejas; sistemas escolares públicos e privados; ambiente familiar, instituições jurídicas; o sistema político e seus diversos partidos; a organização sindical; a informação (imprensa, TV, rádio) a cultura (artes, desportos). A função dos aiE é de formar a mente dos cidadãos; influenciá-los. Escreve Althusser: “Mas vamos ao essencial. O que distingue os aiE do aparelho repressivo do Estado é a diferença fundamental seguinte: o aparelho repressivo de Estado funciona pela violência, enquanto os aiEs funcionam pela ideologia.” (Althusser, 1974). Assim, a pergunta que se faz não é “É possível ensinar filosofia no ensino médio?”, mas “A quem interessa (ou não) o ensino da filosofia no ensino médio e em que condições?” Outra questão que se coloca é se claramente existe a vontade política em promover o ensino e, especificamente, o ensino da filosofia. Existe efetivamente interesse por parte dos grupos dominantes – os que dominam os aparelhos ideológicos de Estado que Althusser menciona – em formar cidadãos capacitados e críticos? Darcy Ribeiro escreveu referindo-se ao ensino: “...o pressuposto mais importante para a sobrevivência e manutenção do poder de nossa classe dominante constituía em manter o povo na ignorância. Ter um povo ignorante é naturalmente o melhor que se pode imaginar em um mundo onde o ensino é oferecido de maneira tão superficial e despreocupado. Se o povo é mantido na ignorância, não será capaz de eleger seus representantes políticos...” (Ribeiro, 1980, tradução minha). Há intenção real em se promover o ensino da filosofia? Se este é o caso, ela poderá contribuir para um debate sobre a situação socioeconômica do País? Ainda em caso afirmativo, o que se pretenderá com este debate? Mudanças, ou a simples constatação de que temos muitos problemas, temos algumas possíveis soluções, mas falta iniciativa para sua efetivação? Talvez esteja aí um tema de debate para a filosofia brasileira: quem estabelece a “agenda” política, social e econômica do País?

Referências: Ribeiro, Darcy, Ungewöhnliche Versuche (Ensaios Insólitos), Suhrkamp, Frankfurt a.M., 1980, 396 p. Althusser, Louis, Ideologia e Aparelhos Ideológicos do Estado, Editorial Presença, Lisboa, 1974, 120 p. Marcuse, Herbert, Contra-Revolução e Revolta, Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1973, 129 p. Pimenta, A., Ensino de filosofia no Brasil: um estudo introdutório sobre sua história, método e perspectiva, disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/index.php?option=content&task=view&id=265&Itemid=255 Consulta em 19/03/09

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Economia e sua relação com a ciência e a tecnologia: pressupostos teóricos Nossa atividade econômica está em grande parte baseada em certos princípios científicos e desenvolvimentos tecnológicos que tiveram sua origem no Renascimento. A efervescência social deste período, aliada às Grandes Navegações e uma série de outros eventos culturais e políticos (e.g. a Reforma protestante, o despertar do pensamento científico, o aparecimento dos Estados absolutistas) deram um impulso econômico e técnico à Europa como nunca houvera acontecido antes. O desenvolvimento do comércio, aliado às novas rotas abertas pelos navegadores portugueses e espanhóis – oferecendo acesso a novos mercados fornecedores –, revolucionou a economia europeia, criando demanda para novas técnicas no comércio, na agricultura, na navegação e no artesanato industrial. Sobre este período, escreve o historiador Fernand Braudel: “Em suma, bem ou mal, uma certa economia liga entre si os diferentes mercados do mundo, uma economia que não só traz em sua esteira algumas mercadorias excepcionais, mas também os metais preciosos, viajantes privilegiados que já dão a volta ao mundo. Os dobrões espanhóis, cunhados com o metal branco da América, atravessam o Mediterrâneo, atravessam o império turco e a Pérsia, atingem a Índia e a China. A partir de 1572, via Manila, o metal branco americano atravessa também o Pacífico e, em fim de viagem, chega uma vez mais à China, agora por essa nova rota.” (Braudel, 1987, p.30) A classe social que representa esta nova fase da história, a burguesia comercial, tem forte influência no desenvolvimento da política, economia e ciências deste período. Sobre a relação desta nova elite com o desenvolvimento científico da época, comenta Escobar: “Na leitura que ‘espontaneamente’ se faz da revolução no pensamento provocado pela Física, se situam, sobretudo os temas colonialistas do poder do ‘homem sobre os meios’, mas de um poder decididamente do ‘homem burguês’, que então sentia-se o ‘homem universal’ e contrastava com o homem medieval contemplativo. A Física é aqui compreendida como ciência ativa (física de Galileu, de Descartes, de Hobbes), como um testemunho do homo faber, como a estratégia e a prática desta dominação da natureza.” (Escobar, 1975, p. 91) No desenvolvimento do capitalismo, desde sua fase mercantilista entre 1400 e 1700 (BURNS, 1971), passando pelo início da industrialização no final do século XVIII até os dias atuais, sempre houve estreita interação das atividades econômicas com a ciência e tecnologia. No campo das ideias, a ciência desenvolveu teorias explicativas da realidade, que posteriormente seriam aplicadas à prática, através da tecnologia, atendendo demandas econômicas concretas. Exemplo desta relação é o desenvolvimento da balança hidrostática. Em 1586 o filósofo e cientista Galileu Galilei (1564-1642) construiu um mecanismo experimental, destinado ao estudo da força de impulsão exercida pelos líquidos sobre os corpos nele mergulhados. Este invento, conhecido como balança hidrostática, contribuiu para a posterior criação do relógio de pêndulo e desenvolvimento de uma bomba destinada à irrigação (GOMES, s/d). A física de Isaac Newton (1642–1727) é outro exemplo deste processo. Elaborada com base nos princípios da física de Kepler e Galileu e utilizando-se de conhecimentos matemáticos de Euclides, sua Lei da Gravitação Universal transformou-se no fundamento da mecânica clássica. De sua teoria, resultariam entre o século XVIII e XIX a física clássica, a mecânica, a descrição da eletricidade, o magnetismo, a ótica e a termodinâmica (FEULNER, 2010). Formulações teóricas somadas a experiências práticas resultariam em conhecimentos, que posteriormente possibilitariam o aparecimento de vários inventos, como a máquina a vapor. No entanto, segundo Granger (1994) “(...) podemos afirmar que as teorias científicas só tiveram realmente

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relações estreitas e orgânicas com a técnica a partir da Grande Revolução Industrial europeia do século XVIII”. Ainda com relação à interação das atividades econômicas com a ciência e a tecnologia, é preciso considerar que este processo sempre foi largamente influenciado pela realidade material da sociedade onde se desenvolveu. Comentando a relação da economia com as atividades intelectuais (nas quais se incluem a elaboração de teorias científicas e o desenvolvimento de novas tecnologias), escreve Marx: (...) “na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (Marx, 1974, p. 135136) Como exemplo desta influência da realidade material sobre a vida social, tome-se o uso do vapor para a geração de energia e mecanização de processos industriais. Esta tecnologia foi desenvolvida por James Watt na Inglaterra do final do século XVIII e aplicada inicialmente ao setor de tecelagem e mineração, disseminando-se depois para vários outros usos industriais, a partir do início do século XIX (BURNS, 1971) e (DOBB, 1974). Graças a estas inovações tecnológicas, barateando e aumentando a produção, a Inglaterra atingiu uma posição de hegemonia na produção e venda mundial de vários produtos industrializados. Assim, os industriais ingleses tornaram-se a nova classe dominante da sociedade inglesa, desbancando a antiga elite dos donos de terra. Sobre a relação da economia com a tecnologia, atendendo a interesses de classe, escreve Andrew Feenberg: “Escolhas sociais intervêm na seleção da definição do problema, bem como de sua solução. A tecnologia é socialmente relativa e o resultado das escolhas técnicas é um mundo que sustenta a maneira de vida de um ou outro influente grupo social. Nesses termos as tendências tecnocráticas das sociedades modernas poderiam ser interpretadas como efeito de limitar os grupos que podem interferir no design junto a peritos técnicos e às elites corporativas e políticas a que servem” (Feenberg, s/d, p. 8) A crise ambiental que atravessamos é representada pela crescente exaustão dos recursos naturais, como resultado da atividade econômica, aliada aos avanços tecnológicos da ciência. Todavia, a condução da economia, em seus aspectos práticos, atende aos interesses das “elites corporativas e políticas” (Feenberg); os “proprietários dos meios de produção”, na expressão de Marx. A ciência e a tecnologia se desenvolvem influenciadas pelas demandas práticas e teóricas levantadas pela economia. Assim, condicionada pela agenda de interesses dos grupos dominantes, a atividade científica acaba projetando sobre a natureza esta influência recebida. Sob este ponto de vista, ciência e a tecnologia funcionam como uma metafísica (no sentido aristotélico de uma ciência que fornece o fundamento a todas as outras); uma interpretação ou leitura da natureza feita por grupos sociais que partem de premissas supostamente validadas (através de sua visão de mundo) e têm o poder de impor esta visão aos demais grupos. Heidegger, em A questão da técnica, escreve a respeito desta relação do homem com a ciência e a tecnologia: “O comportamento de “investidor” vindo do homem, de uma forma correspondente, revela-se em primeiro lugar na aparição da ciência moderna, exacta da natureza. O modo de representação próprio desta ciência persegue a natureza considerada como um complexo calculável de forças. A física moderna não é uma física experimental por aplicar à natureza

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aparelhos que a interroguem, mas inversamente; é porque a física – já como pura teoria – a coloca na situação (stellt), de se mostrar complexo calculável e previsível de forças que a experimentação é (bestellt) encarregada de interrogar a fim de que se saiba se e como a natureza assim intimada (stellt) responde ao apelo” (Heidegger apud Macedo 1985, p. 119) Nesta linha de análise fica evidente que a crise ambiental tem origem nas atividades econômicas, influenciadas pelas ideias e expectativas das classes ou grupos política e economicamente dominantes em todo o mundo. A crise ambiental é, portanto, essencialmente uma crise de visão do mundo, da natureza e do papel do ser humano neste contexto. Para que possamos ultrapassar esta situação crítica, seria necessário no plano das ideias: a) renunciar a uma visão metafísica da natureza, fruto de uma visão elaborada pelos grupos dominantes, que se manifesta também no funcionamento da economia e sua relação com a natureza; e, consequentemente b) reavaliar os paradigmas que devem nortear os objetivos e a condução da economia, visando gradualmente reduzir seu impacto sobre a biosfera e sobre os recursos não renováveis e proporcionar bem estar a um número maior de pessoas.

Referências BRAUDEL, Fernand. A dinâmica do capitalismo. Rio de Janeiro. Editora Rocco: 1987, 76 p. BURNS, Edward M. História da civilização ocidental – Vol. 1 e Vol. 2. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 581 p. DOBB, Maurice. A evolução do capitalismo – 4ª edição. Rio de Janeiro. Zahar Editores: 1974, 482 p. DUARTE, André. Heidegger e Foucault, críticos da modernidade: humanismo, técnica e biopolítica. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s010131732006000200008&script=sci_arttext>. Acesso em 24/08/10 ESCOBAR, Carlos Henrique. Epistemologia das Ciências Hoje. Rio de Janeiro. Pallas Editora: 1975, 176 p. FEENBERG, Andrew. Teoria crítica da tecnologia. Disponível em: https://www.sfu.ca/~andrewf/critport.pdf Acesso em 23/10/18 FEULNER, Georg. Os grandes físicos que mudaram o mundo. Escala Editora. São Paulo: 2010, 127 p. GIANOTTI, José Arthur. Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos in Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1974, 413 p. GOMES, Morgana. A vida e o pensamento de Galileu Galilei. São Paulo. Editora Minuano: s/d, 98 p. GRANGER, Gilles-Gaston. A ciência e as ciências. São Paulo. Editora UNESP: 1994, 122 p.

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Erasmo de Rotterdam e a Reforma Usualmente encara-se a Revolução Protestante do século XVI como sendo a irrupção de algo inesperado, quando muito de disposições religiosas e sociais vagamente em maturação, se levamos em conta as críticas de pré reformadores como Wyclif e Huss. Superficialmente, muitas análises daquele período histórico consideram que em seu início a Reforma não tenha tido amplo apoio, e que a oposição à Igreja Católica era algo social e geograficamente localizado. Esta posição, porém, não é historicamente defensável. Para analisar este tema precisamos voltar à Idade Média. Com relação aos movimentos sociais faz-se geralmente uma precária caricatura histórica do período medieval; como se este fosse um intervalo de domínio hegemônico da Igreja Católica. Na realidade, através da pesquisa histórica – principalmente a chamada “História do cotidiano” – chegou-se presentemente à conclusão de que a Idade medieval era bem mais interessante, criativa e insubmissa do que se imaginava. Esquematicamente, podemos separar os acontecimentos do período em seus aspectos socioeconômicos, socioculturais e religiosos. Considerada em seus fatores socioeconômicos, a Baixa Idade Média apresenta as seguintes características: - A partir do ano 1.100, impulsionado por alguns progressos tecnológicos (reintrodução do moinho a vento, cela, arado com roda, entre outros) há um reaparecimento do comércio em toda a Europa, propiciando o crescimento das cidades, a circulação do dinheiro e a formação de uma classe social que – apesar de ainda ser vista com desconfiança pela Igreja e pelos senhores feudais – representava a nova classe econômica em formação: o burguês. - Inicia-se uma mobilidade social desconhecida nos cerca de 1.000 anos anteriores. Servos tornam-se independentes de seus senhores ou simplesmente fogem para as cidades maiores, onde os senhores não tinham mais poder, para se dedicarem ao artesanato, trabalhando em oficinas muitas vezes financiadas pelos mercadores. Estes, por sua vez, compravam os produtos fabricados pelos artesãos e os trocavam ou vendiam por outros produtos. Fortaleciase o comércio regional e internacional e surgiam as cidades-mercantes (Veneza, Gênova, Florença, Hamburgo, Londres, entre outras), que atraiam comerciantes, artistas e artesãos especializados. - A relutância dos nobres em propiciar melhores condições para seus servos (supressão de restrições ao comércio de produtos, introdução do trabalho assalariado, etc.) provoca revoltas sociais e levantes de camponeses em toda a Europa. John Ball foi um clérigo que chefiou uma destas revoltas, a Revolta Camponesa da Inglaterra em 1381. Outras revoltas importantes que antecederam esta foi a Revolta de Flandres, entre 1323 e 1328 e a “Jacquerie” na França, em 1358. Sob o aspecto sociocultural e religioso o período se marca pelos seguintes aspectos: - A retomada do comércio, significava que as ideias também voltavam a circular. As informações e o conhecimento passavam de uma cidade para outra e não estavam mais concentrados somente nos mosteiros ou em universidades. Veja-se o exemplo do filósofo São Tomás de Aquino, que ensinou em Bolonha, Colônia e em Paris. O grande filósofo alemão Meister Eckart, estudou na Alemanha e foi ser professor em Paris. Quase todos os grandes filósofos medievais viajaram e ensinaram em diversos centros universitários, disseminando seus conhecimentos entre inúmeros alunos. - A hegemonia da crença em Deus não é inconteste. “A importância dada à busca das provas da existência de Deus, por exemplo, com Santo Anselmo e São Tomás, deveria bastar para

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despertar as dúvidas. Se a fé se impusesse por si, essa preocupação seria supérflua” (Minois, pg.79, 2004). “...ao redor de Aristóteles, Averróis, dos nominalistas e de Siger de Brabante, a expressão de um agnosticismo, de um materialismo e de um ateísmo implícitos, disfarçados por razões de segurança, longe das disputas formais” (Minois, pg 79, 2004). Pouco conhecidos do público leigo, Davi de Dinan, Boécio de Dácia, Siger de Brabante, Amaury de Bennes, no século XIII e Nicolas d´Autrecourt no século XIV, eram pensadores cujas obras haviam sido condenadas em parte ou em sua totalidade pela Igreja, por esta considerar seus escritos ateus. Incluso à crítica dos conceitos filosófico-teológicos da religião, estava a crítica à hierarquia e aos dogmas da instituição. Vê-se assim, que a crença na religião não era absolutamente hegemônica, apesar da terrível repressão no período (acentuada mais ainda depois da criação da Inquisição, no século XIII). - O período da Baixa Idade Média também era palco do surgimento de diversas heresias, geralmente de cunho milenarista (anunciando o fim do mundo), pregando a libertação dos pobres, a destruição da Igreja e a abolição dos poderes do corpo eclesiástico. Algumas destas seitas heréticas pregavam pobreza voluntária, como a dos valdenses, criada por Pierre Valdo, um mercador de Lyon, que em 1173 abandonou todos os bens e passou à pregação. Outra “falsa doutrina”, mais radical, era a dos Irmãos do Livre-Espírito, aparente fundada pela mística Marguerite Poret em 1310, mas provavelmente mais antiga. Um dos líderes dos Irmãos do Livre-Espírito, Konrad Schmid, capturado pela Inquisição em 1317, declarava que “O homem verdadeiramente livre é rei e senhor de todas as criaturas. Todas as coisas lhe pertencem e ele tem o direito de fazer uso de seja o que for que lhe agrade” (Cohn, pg.151, 1981). A própria Ordem dos Irmãos Menores, nome inicialmente dado aos Franciscanos, teve dificuldades em ser aceita pelo papa. Somente depois que membros da Ordem foram acusados de heresia na França, na Holanda e na Alemanha – o que fez São Francisco aceitar a alteração de certos pontos da Regra da Ordem –, é que esta foi aceita pelo papa Gregório IX. No século XII dissemina-se na Itália e no sul da França a seita dos cátaros, que acreditavam em um forte dualismo inspirado no gnosticismo antigo. O mundo, diziam, foi criado pelo Diabo – associado a Javé do Antigo Testamento – e será salvo por Jesus, enviado por um Deus bom e luminoso. Assim como estas, ainda existiam dezenas – ou centenas – de outras seitas heréticas, como os albigenses, os flagelantes e muitos outros. Interessante notar, que é no século XIII que a Igreja institui oficialmente a existência do Purgatório (1259), abrindo a possibilidade de um estado intermediário entre o céu e o inferno. Com isso, era possível que mesmo os comerciantes e banqueiros – apesar de visarem o lucro condenado pela Igreja – tivessem a chance de salvar suas almas. Depreende-se de que no final da Idade Média existia uma forte oposição ao sistema econômico, social e cultural sustentado pela Igreja, o feudalismo. Ao começar a Era Moderna em 1453, com a Queda de Constantinopla - capital do remanescente Império Romano do Oriente, que havia sobrevivido por cerca de 1.000 anos – o universo cultural e religioso da Europa se encontrava em uma situação tal, que seria inevitável uma comoção envolvendo a Igreja Católica. Zwinglio, Lutero, Karstadt, Melachton, Calvino e outros de menor importância, que apareceram posteriormente ainda no século XVI (Menon, Münzer, entre outros), representam os furos de um dique que não podia mais comportar a pressão da imensa oposição à Igreja, externando-se na teologia, mas de abrangência muito mais ampla. Iniciada a Reforma, a Igreja perdeu muitos territórios, junto com os fiéis. O avanço da Reforma só foi barrado através da ação da Inquisição, da Contra Reforma e da intervenção de novas ordens religiosas, principalmente a dos jesuítas.

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A simples incorporação de fracas reformas sugeridas pelo filósofo Erasmo de Rotterdam – hipótese histórica aventada por alguns especialistas modernos – que no fundo seguia a política dos “panos quentes”, por não querer um confronto com a Igreja e ao mesmo tempo querer manter certa autonomia individual frente à instituição, não poderia estancar o movimento da Reforma. O fato é que todas as ideias de Erasmo: a crítica aos rituais, a pilhéria à venialidade dos religiosos, a sátira ao enclausuramento, a philosophia Christi, a noção da máscara; praticamente cada uma de suas reflexões, já haviam sido levantadas por grupos opositores e seitas heréticas na Idade Média. A ideia de reforma da Igreja é tão velha quanto à própria instituição. Além disso, a implementação destas reformas sugeridas pelo filósofo holandês não seriam possíveis. A oposição interna na Igreja contra tais mudanças, dados a inércia e o apego aos privilégios por parte de seus membros, era muito grande. Isto é comum em qualquer instituição autoritária, dominadora e burocrática, haja vista os exemplos das máquinas estatais dos regimes despóticos como a da antiga União Soviética, e a Alemanha nazista e outros já desaparecidos. Admitindo-se que o fosse possível reformar a Igreja, isto não seria realizável em curto espaço de tempo. O próprio Concílio de Trento, destinado a reorganizar a Igreja depois que a Reforma já havia se alastrado, teve início em 1545 e só acabou em 1563. Mesmo assim, as reforma instituídas por Trento – aquelas que em parte Erasmo havia defendido – só foram implementadas ao longo de várias décadas ou séculos. Outro fator que teve muito peso na ocorrência da Reforma, foi a grande oposição que existia nos países situados longe de Roma, como por exemplo a Suíça, a Alemanha, os Países Baixos e a Inglaterra, em relação à autoridade e à influência do papa. Por outro lado, havia grande interesse dos nobres destes países em tomarem posse dos bens da Igreja. A Reforma era uma ótima razão para isso. Finalizando, concluímos que: - 1. A Igreja não aceitaria as reformas propostas por Erasmo – julgava-se muito forte. - 2. Mesmo que as aceitasse, levaria muito tempo para implementá-las – não o fez, em alguns pontos, até hoje. - Admitindo 1 e 2, mesmo assim a Reforma aconteceria, pois as propostas de Erasmo não eram novas, já haviam sido cobradas há pelo menos 300 anos pela sociedade e, desta forma, não teriam mais impacto – o tempo da Igreja se reestruturar já havia passado.

Referências Cohn, Norman, Na Senda do Milênio – Milenaristas Revolucionários e Anarquistas Místicos na Idade Média, Editorial Presença: Lisboa, 1981, 333 pgs. Dobb, Maurice, A Evolução do Capitalismo, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1974, 482 pgs. Eliade, Mircea, História da Crenças e das Idéias Religiosas – Tomo III, Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1984, 400 pgs. Minois, Georges, História do Ateísmo – Os Descrentes no Mundo Ocidental das Origens aos Nossos Dias, Editorial Teorema: Lisboa, 2004, 739 pgs.

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Eric Hoffer, o filósofo-estivador "Meus textos são feitos nos pátios das ferrovias, enquanto espero um comboio, nos campos enquanto espero por um caminhão e à noite, depois da janta. Cidades são muito distrativas." Eric Hoffer

As chances de ascensão econômica e social através do trabalho são mais acentuadas em economias em crescimento. Nestas sociedades é comum que indivíduos ultrapassem as condições em que nasceram e através do esforço individual se transformem em grandes empresários, políticos e intelectuais. Esta foi a situação da sociedade norte-americana, entre o final do século XIX e parte do século XX. A rápida expansão da atividade econômica, aliada às mudanças tecnológicas e incorporação de grande número de trabalhadores, inclusive emigrantes, fazia com que as estruturas sociais mudassem rápida e constantemente, facilitando a mobilidade social, como ocorreu em poucas sociedades ao longo da história. Foi neste período que Eric Hoffer nasceu na cidade de Nova York, no então bairro pobre do Bronx, em 1902. Filho de um casal de emigrantes alemães da Alsácia, Elsa e Knut Hoffer, Eric aprendeu a falar e ler o idioma inglês e alemão ainda pequeno. Aos cinco anos, caiu do colo da mãe, rolou por uma escada, e ficou com a cicatriz da lesão na cabeça para o resto da vida. Aos sete anos, falece sua mãe, o que fez com que o menino entrasse em choque, perdendo a memória e a visão, para somente recuperá-la aos quinze anos. Durante esse período o pequeno Eric tinha pouco contato com o pai, que exercia a profissão de carpinteiro e estava constantemente fora de casa. Foi cuidado por uma amiga dos pais, Martha Bauer, também alemã, de quem Eric guardou boas recordações. Ainda cego, quando ficava entediado, Eric passava o tempo arrumando os poucos livros da estante do pai. Assim que recuperou a visão, Hoffer passou a ler com voracidade, com medo de voltar a perder a visão. Nunca chegou a frequentar regularmente uma escola ou a aprender uma profissão, vivendo apenas de biscates e lendo tudo que era possível comprar nos sebos ou emprestar nas bibliotecas públicas de seu bairro. Seu pai morreu quando tinha 19 anos. O sindicato dos carpinteiros pagou pelo enterro e entregou ao rapaz um seguro de 300 dólares, feito por seu pai, com o qual comprou uma passagem de ônibus para Los Angeles. Lá se estabeleceu no bairro central de Skid Row, à época frequentado por vagabundos, marginais e trabalhadores pobres. Hoffer viveu em Los Angeles por dez anos, mantendo-se através de empregos baratos, sem, no entanto, abandonar seu grande interesse pela leitura. Em 1933, passando por uma profunda crise pessoal, Hoffer pensou em suicídio. Aos poucos mudou de ideia e deu início a um longo período de viagens através de várias regiões da Califórnia, trabalhando principalmente como trabalhador nas colheitas. Algumas vezes, durante este período, também tentou a vida como garimpeiro de ouro. Em seus deslocamentos, fixavase em pequenas cidades, e se hospedava perto das modestas bibliotecas municipais, das quais emprestava livros. Tempos depois, em um determinado inverno, Eric adquiriu em um sebo de São Francisco um exemplar dos Ensaios do filósofo francês Michel de Montaigne (1533-1592). A obra o impressionou de tal maneira, que permaneceu uma forte influência por toda a sua vida. Nesse período Eric começa a escrever algumas novelas e tenta alistar-se como soldado, para lutar na Segunda Guerra. Impedido por uma hérnia, Hoffer arranja trabalho como estivador nas

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docas do porto de São Francisco. Permaneceu nessa atividade por muitos anos, vindo a aposentar-se em 1964. Ao trabalho no porto aliou a atividade literária e filosófica, escrevendo a maior parte das obras que depois o tornariam famoso. Através de suas pesquisas, passou a interessar-se pelos problemas de todos aqueles com os quais se identificava: os imigrantes, os trabalhadores migrantes, os deficientes, e todos aqueles que não tinham encontrado um lugar ao sol na sociedade americana, no "sonho americano". Seu livro mais famoso, lançado em 1951 chama-se The True Believer: Thoughts on the Nature of Mass Movements (Do Fanatismo: O Verdadeiro Crente e a Natureza dos Movimentos de Massa), que em língua portuguesa teve somente uma edição em Portugal, já esgotada. Neste livro Hoffer analisa como e por que tem origem aos movimentos de massa. Descreve as similaridades entre os diversos tipos de movimento; os políticos radicais e reacionários e os religiosos. Hoffer argumenta que apesar de seus objetivos e valores serem diferentes, os movimentos de massa e suas motivações são intercambiáveis, de maneira que seus aderentes mudam de uma corrente para outra. Assim, movimentos nacionalistas, sociais e religiosos, sejam radicais ou reacionários, tendem, estruturalmente, a atrair o mesmo tipo de seguidores, comportam-se da mesma maneira e tendem a usar as mesma táticas e discursos retóricos. Como exemplo Hoffer cita o comunismo, o fascismo, o nacional socialismo (nazismo), o cristianismo, o protestantismo e o islamismo. A publicação, apesar de desconhecida na Brasil, teve influência nos estudos de sociologia e antropologia nos Estados Unidos e é considerada uma das 100 mais influentes obras do século XX. Depois deste livro, Hoffer escreve uma série de ensaios acadêmicos, discutindo a intervenção americana na Ásia após a 2ª Guerra Mundial, analisando a Guerra da Coréia e a Guerra do Vietnã. Nestes trabalhos Hoffer defende o ponto de vista de que os Estados Unidos deveria diminuir sua ingerência nos assuntos internos destes países. Estas suas ideias influenciaram bastante a geração que nos anos 1960 e 1970, contribuindo na fundamentação teórica dos movimentos que dariam início à luta pelos direitos civis e que se colocaria radicalmente contra a guerra do Vietnã. Ao longo de sua carreira, depois de lançar The True Believer, Hoffer ainda publicou diversas outras obras (todas inéditas no Brasil), dentre as quais se destacam: The Passionate State of Mind, and Other Aphorisms, 1955 (O estado de espírito apaixonado e outros aforismos); The Temper of Our Time, 1967 (O temperamento de nosso tempo); Reflections on the Human Condition, 1973 (Reflexões sobre a condição humana); Before the Sabbath,1979 (Antes do Sabá). Hoffer passou longos anos entre a carreira de acadêmico, como pesquisador tratando de temas políticos e sociais da sociedade americana, e a de estivador. Certos dias da semana frequentava a Universidade da Califórnia, pesquisando e discutindo com professores e alunos, enquanto que outros trabalhava nos escritórios das docas do porto de São Francisco. Em 1971 o filósofo recebeu o título Doutor Honoris Causa da Faculdade Stonehill, e em 1983 a Medalha Presidencial da Liberdade, do presidente Ronald Reagan. Sempre voltado às suas origens na classe trabalhadora, Hoffer, quando chamado de intelectual, dizia ser apenas um estivador. Por isso, muitos autores o designavam como "o filósofo-estivador". Tendo exercido grande influência no meio acadêmico e nos nascentes movimentos sociais, Hoffer faleceu em sua casa, em São Francisco, em 1983 aos 84 anos. Abaixo apresentamos algumas citações do filósofo, extraídas de diversas publicações:

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"Pessoas que ferem a mão que os alimenta, usualmente lambem as botas de quem os chuta." (Reflections on the Human Condition); "Quando as pessoas estão livres para fazer o que gostam, geralmente imitam as outras." (Reflections on the Human Condition); "A melhor educação não imunizará uma pessoa contra a corrupção do poder. A melhor educação não fará, automaticamente, as pessoas mais compassivas. Nós sabemos disso mais claramente do que qualquer geração precedente. Em nosso tempo, existe a sociedade melhor educada, situada no coração da mais civilizada parte do mundo, dando nascimento ao mais assassino e vingativo governo da história." (Before the Sabbath); "A natureza não tem compaixão...[Ela] não aceita desculpas e a única punição que conhece é a morte." (Reflections on the Human Condition); "Marx nunca trabalhou um dia de sua vida e sabia tanto sobre o proletariado quanto eu sei sobre coristas." (Before the Sabbath); "Uma cabeça vazia não é realmente vazia; está entulhada de lixo. Por isso a dificuldade em empurrar algo para dentro de uma cabeça vazia." (Reflections on the Human Condition); "O século dezenove semeou as palavras que o século vinte colheu nas atrocidades de Stalin e Hitler. Dificilmente há uma atrocidade cometida no século vinte, que não tenha sido prenunciada ou mesmo defendida nas palavras de alguns homens nobres do século dezenove." (Reflections on the Human Condition); "A proporção entre o pessoal de supervisão e o de produção é sempre alta onde intelectuais estão no poder. Em países comunistas, é necessária uma parte da população para supervisionar a outra." (The Temper of our time); "Orgulho é um senso de valor derivado de algo que não é organicamente parte de nós, enquanto que a autoestima deriva de nossas potencialidades e de nossos ganhos. Somos orgulhosos quando nos identificamos com um eu imaginário, um líder, uma causa sagrada, um corpo coletivo ou bens materiais. Há um medo e uma intolerância no orgulho; é sensível e intransigente. Quanto menos promessa e potencia na pessoa, mais imperativa é a necessidade de orgulho. O âmago do orgulho é a autorejeição. É verdade que quando o orgulho libera energias e atua como um incentivo para a realização, pode levar a uma reconciliação entre o eu e a conquista de uma autoestima genuína." (The Passionate State of Mind); "Para algumas pessoas a solidão não é uma fuga dos outros, mas delas mesmas. Isto porque, veem nos olhos dos outros apenas um reflexo delas mesmas." (The Passionate State of Mind); "Mentimos mais alto, quando mentimos para nós mesmos." (The Passionate State of Mind); "Como é mais fácil o autossacrifício, do que a autorrealização." (Reflections on The Human Condition); "O homem é transformará subsistência. racionais, ou Mind);

um animal que ama o luxo. Tire dele o jogo, as fantasias e a pompa, e você o em uma criatura estúpida e indolente, quase incapaz de obter a simples A sociedade torna-se estagnada quando seus membros são excessivamente sérios demais para serem seduzidos por fantasias." (The Passionate State of

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"Agressividade é a imitação da força, feita pelo homem fraco." (The Passionate State of Mind); "Somente Deus está satisfeito com o que é, e pode proclamar: 'Eu sou o que sou.' Diferente de Deus, o homem anseia com toda a sua força a ser o que ele não é. Ele incessantemente proclama: 'Eu sou o que não sou.” (The Passionate State of Mind); "Homens livres sabem da imperfeição inerente aos assuntos humanos, e estão preparados para lutar e morrer pelo que não é perfeito. Eles sabem que problemas humanos básicos podem não ter uma solução definitiva, que nossa liberdade, justiça, equidade, etc, estão longe do absoluto, e que a boa vida é composta por meias medidas, compromissos, males menores e tentativas em direção ao perfeito. A rejeição de aproximações e a insistência em absolutos são a manifestação de um niilismo que rejeita a liberdade, a tolerância e a equidade." (The Temper of Our Time); "Fé em uma causa sagrada é, em considerável extensão, um substituto à fé em nós mesmos ." (The True Believer); "Quanto menos o homem está decidido em reivindicar importância para si próprio, mais está pronto para dar importância para sua nação, sua religião, sua raça ou sua santa causa ." (The True Believer).

Referências: Eric Hoffer, disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Eric_Hoffer> Acesso em 10/11/2017; Eric Hoffer Quotes, disponível em: <http://erichoffer.blogspot.com.br/ > Acesso em 15/11/2017; The True Believer, disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/The_True_Believer> Acesso em 15/11/2017; Brainy Quote, Eric Hoffer Quotes, disponível em: <https://www.brainyquote.com/quotes/authors/e/eric_hoffer.html> Acesso em 15/11/2017;

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Heráclito e Parmênides A oposição entre o pensamento de Heráclito e Parmênides é clássico na história da filosofia e marcou também o desenvolvimento da ciência. A oposição entre o devir heraclitiano e a imutabilidade parmenidiana, são paradigmas que influenciaram todo o pensamento ocidental e cuja harmonia muitos pensadores e intelectuais encontraram no pensamento oriental. Quanto a questão da mutabilidade e imutabilidade do ser, básica na filosofia ocidental, a posição de Heráclito era que o Ser está permanentemente em mutação; o ser é e logo depois já não é mais. É assim que ocorre na natureza: as estações, os ciclos de vida dos animais – tudo está em constante transformação. Processos físico-químicos e biológicos se sucedem e toda vida se transforma. Darwin já afirmava que não existem dois indivíduos de uma mesma espécie exatamente iguais, ou seja, a espécie não é imutável. Alguns biólogos levantam a questão se o conceito de “espécie” é, de fato, absolutamente válido – qual espécime seria o “padrão” da espécie? O acúmulo de diferenças vai propiciando o aparecimento de indivíduos cada vez mais diferentes de seu ancestral original. Assim a mutabilidade proporciona a transmutação (evolução) das espécies. Esta constante mudança se aplica a toda a natureza; desde as partículas subatômicas, ao homem e às outras espécies, e destes às galáxias e ao próprio universo. A principal ideia do pensamento de Heráclito está expresso no seguinte texto escrito pelo filósofo Plotino: “Em rio não se pode entrar duas vezes no mesmo, segundo Heráclito, nem substância mortal tocar duas vezes na mesma condição; mas pela intensidade e rapidez da mudança dispersa e de novo reúne (ou melhor, nem mesmo de novo nem depois, mas ao mesmo tempo) compõe-se e desiste, aproxima-se e afasta-se”. Como tudo no universo heraclitiano está sempre em mutação, o filósofo alemão Hegel mais tarde argumentou que a essência deste processo é o tempo. Parmênides, por outro lado, afirma a imutabilidade; o Ser é e não-ser não pode não ser. O argumento principal do pensador é que não é possível pensar o não-ser, porque se o pensarmos, ele é. Daí argumenta que o pensar e o ser são o mesmo. Com estes argumentos, Parmênides conclui que admitindo que seja possível existir o não-ser, este seria a negação do ser, sua mudança, o que é impossível. Portanto, o ser é eterno e imutável. O mundo das aparências, onde ocorrem as mudanças, é somente uma concessão que Parmênides faz. Em seu pensamento não existe o mundo das mudanças, do não-ser. Parmênides abstrai seu pensamento daquele nível que nós chamamos realidade e coloca o Ser em uma outra esfera, classificando-o como uno, eterno e imutável. O pensador eleata foi o precursor da lógica, já que de suas ideias deduziram-se raciocínios como o princípio de identidade (o Ser é, cujo equivalente é A=A) e o princípio de não-contradição (o Ser é e não pode não ser, cujo equivalente é A=A e não pode ser A diferente de A).

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História e generalização "Uma linha que não é reta apresenta singularidades intrínsecas, ou seja, é uma linha de inflexões [...] isso quer dizer que o que conta é o acontecimento. O acontecimento é a inflexão. A inflexão é a figura abstrata do acontecimento. O acontecimento é o caso concreto de inflexões. E o mundo, o que é? É uma sucessão infinita de inflexões ou acontecimentos que são chamados estados do mundo." Gilles Deleuze, citado por Djalma L. Benette em Em branco não sai - Um olhar semiótico sobre o jornal impresso diário)

"Para onde caminha o nosso país?", perguntamos. Será que faz algum sentido dizer que uma sociedade, um movimento cultural, a economia, ou o desenvolvimento de uma espécie estavam "ali" (ou "assim") - significando isso determinada condição, com características específicas em um tempo passado -, e agora está "aqui" (ou "dessa nova forma"), representando isso uma nova situação sob diversos pontos de vista, em um tempo posterior? Esta é uma forma bastante comum de encarar um fato ou um acontecimento, que se estende por certo tempo (a queda de um meteorito, uma revolução, um movimento literário, a construção de uma hidrelétrica). É a tentativa de ressaltar certos aspectos de um acontecimento e através deles caracterizar o fato em determinado instante no tempo. Por exemplo, a divisão da escola impressionista de pintura em impressionismo, pósimpressionismo e neo-impressionismo. Em cada uma dessas fases, o movimento apresenta certas características pictóricas expressas por determinados pintores. No entanto, a delimitação de períodos históricos e situações servem apenas para facilitar seu entendimento, através da generalização. Reunimos certo número de fatos - muitas vezes pouco numerosos - a respeito de determinado tema ou período de tempo, e disso tiramos conclusões. Geralmente generalizações, baseadas em informações, amalgamadas por pressupostos ideológicos. É desta maneira que, conscientemente ou não, com maior ou menor profundidade de análise e quantidade de dados, se formam as teorias históricas. Os diversos fatos históricos são, assim, como que "instantes congelados" de um longo processo, que a nosso ver é limitado, por considerar o fluxo histórico (a própria expressão "fluxo" já transmite a ideia) como um processo linear. Não considera a complexa inter-relação entre fatos desconhecidos, que antecedem ou são contemporâneos ao fato histórico em consideração e sobre ele exercem influência. O ponto fulcral da questão é que não há como exatamente caracterizar cada fase de processos deste tipo; são fatos naturais (que incluem fatores humanos) onde um número imenso de fatores exerce sua influência no processo que se observa. São o que modernamente se denomina sistemas complexos. O clima, a bolsa de valores, revoluções, períodos econômicos, desenvolvimento de movimentos culturais, etc. Falaremos disso mais adiante.

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_________________________________________ A delimitação de períodos e fatos históricos serve apenas para facilitar seu entendimento, por meio de generalizações. Apontamos certos fatos de um determinado período histórico dos quais temos conhecimento e tentamos formar um quadro do período, identificando tendências que, já o sabemos de antemão, depois se confirmaram. Mesmo assim, quanto à pergunta com a qual abrimos nosso texto, perguntando sobre a direção para onde caminhavam reinos, impérios e repúblicas (ou nosso país), esta sempre existiu em todos os lugares ao longo da história humana. Profetas do antigo reino de Israel perguntavam-se qual seria o destino reservado ao seu povo, afastado da prática da Lei. Cônsules romanos condenavam a lassidão de uma sucessão de imperadores, enquanto se preocupavam com o futuro do Estado. Paladas de Alexandria, poeta do século IV, lamentavam o gradual esquecimento da cultura grega, suplantada pela expansão de um culto popular, o cristianismo, e se indagava sobre o que seria da fenecente tradição helênica. A resposta a estas perguntas que os antigos se faziam, ou seja, o que ocorreria ao reino de Israel, ao império romano e à cultura da Grécia Antiga no período cristão, hoje nos é clara. Causada por acontecimentos, ações de indivíduos, fenômenos naturais e outros fatores, a história tomou determinado rumo. E as sociedades que existiram posteriormente interpretaram os fatos antigos de determinada maneira - à sua maneira. A esta interpretação, esta "leitura" dos fatos antigos (ditos históricos) - baseada em condições culturais, econômicas e sociais atuais, já que o "ambiente" do reino de Israel ou da Antiga Roma não existiam mais -, convencionamos chamar de história. Ou História, como preferem alguns que acreditam na história como uma coisa única possível; como se esta sucessão de fatos aceitos, batizados de "história", fosse a única maneira de olhar este vasto universo de acontecimentos ocorridos em determinado período; como se fosse a verdade (esta, outra palavra sempre dada a interpretações). Chamamos de história aquela quase infinita sucessão de fatos que ocorrem em um tempo e espaço definidos, dos quais, por diversas razões culturais, políticas e econômicas, escolhemos alguns em uma sucessão e interligação, e lhe damos o nome de "história". A história sob o ponto de vista de determinado grupo étnico e cultural. É dessa forma que se contam e escrevem as "histórias" das nações, por exemplo - preponderantemente sob o ponto de vista da ótica cultural de grupos que detêm o domínio da cultura; os que dominam direta ou indiretamente a produção e reprodução da cultura nessa sociedade. O mesmo ocorreu com o cristianismo em seus alvores. A Bacia do Mediterrâneo pululava de seitas cristãs entre os séculos II e IV. Foi somente através dos concílios eclesiásticos, que grupos (política e economicamente) dominantes puderam impor sua maneira de interpretar a nascente religião ao restante das comunidades cristãs. Assim, aos poucos foi sendo estabelecida a ortodoxia e a ortopraxia, sob o comando de um grupo que se tornou hegemônico, que se denominou Igreja Católica (do grego katholikos, universal). Se nos aprofundarmos na análise do assunto, podemos também chegar a concluir que não existe uma só História, mas várias histórias. Histórias do Brasil, histórias da religião cristã, histórias da ciência, histórias (ou biografias) da vida de Thomas Edison e Pelé, histórias da rede de lanches McDonalds, histórias do hospital das Clínicas, histórias do conceito de crime político... Diversas maneiras de interpretar uma sucessão de fatos biológicos, culturais, econômicos, políticos, religiosos, etc. (prefiro usar o termo "teia de fatos" ao invés de "sucessão de fatos", já que "sucessão" me parece por demais linear e, assim, unidimensional).

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Estas histórias particulares sobre cada assunto (Brasil, cristianismo, Pelé, McDonalds, crimes, etc.) são incorporadas a um "relato maior"; a história universal. Vários aspectos em comum são encontrados entre as duas narrativas e, assim, minha história pessoal e a da minha dor nas costas se inserem perfeitamente na história da humanidade. Mas, todas as "histórias", não esqueçamos, são elaboradas sob determinada ótica; o relato da minha biografia junto com minha dor lombar é narrado de acordo com aquilo que penso que seja a "minha" visão de minha situação no mundo - visão ideológica que reúne os fatos num todo. As interpretações da "grande história" são baseadas em certos pressupostos, muitas vezes sob uma perspectiva teleológica, isto é, com a intenção de dar um objetivo ou sentido àquela "história" que se interpreta. Este é, aliás, mais um aspecto implícito e pouco percebido por trás da história. A grande maioria das pessoas sempre tem em mente que a história, seja qual for, sempre teve ou tem um sentido, um objetivo. Como se o sentido implícito da Revolução Francesa fosse disseminar os ideais do Iluminismo por toda a civilização ocidental da época. Como se a história tivesse alguma meta, objetivo, a "realização do Espírito", segundo o filósofo G. F. Hegel ou o conceito de Parusia do cristianismo. A noção de que a história humana tem algum sentido - uma história linear, muitas vezes conduzida por e em direção a uma divindade ou seu reino - é comum a diversas religiões, que tomaram este conceito por diversas rotas culturais do Zoroastrismo, religião persa fundada pelo mítico taumaturgo Zoroastro, que supostamente floresceu no XI século AEC na Pérsia. O que defendo aqui, junto com muitos outros autores modernos, é que não existe um conceito único de história. Aquilo que assim denominamos é apenas uma generalização para facilitar o entendimento de certos fatos e estabelecer um parâmetro comum, uma "linguagem", que possa ser compreendida e usada por todos pertencentes a determinado grupo. Algo comparável ao Sistema Métrico Decimal, sistema de medidas criado durante a Revolução Francesa, que foi adotado como padrão na maior parte do mundo. É assim que, por exemplo, países orientais como a China ou a Arábia, em negociações com governos ocidentais, aceitam certos parâmetros da nossa maneira ocidental de ver a história - mas isto somente nestas ocasiões, já que países com longa herança cultural (e histórica) são muito zelosos de suas tradições (leiase de suas visões culturalmente particulares de interpretar a história). _____________________________________ Para concluir, gostaria de agregar e sintetizar os pontos que tentei defender neste curto ensaio: - A chamada história, História ou "Grande história" reúne relatos, os quais, devido a inúmeros aspectos culturais, políticos, econômicos, técnicos, religiosos e históricos formam a maneira comum, universal e mais simples de disseminar conhecimentos relevantes sobre períodos de tempo na história da humanidade, de um povo, de ideias ou de outra coisa qualquer. Esta maneira de "contar" o que supostamente ocorreu em detalhes no passado é uma interpretação; - Os reais acontecimentos e seus encadeamentos (se é que os houve) nunca poderão ser recuperados. (Apenas, talvez, através de um "túnel do tempo", como imagina a ficção científica. Isto, no entanto, suscita outra pergunta: caso seja possível, como teoriza a ciência, um dia viajar através do tempo, que "tempos" encontraremos? A volta ao passado teria que ocorrer alcançando-se exatamente um instante no tempo e um ponto específico no espaço. Não sendo assim, o viajante do tempo poderia, tentando presenciar o "fato histórico" da chegada de Colombo à América, aterrizar na costa brasileira, exatamente no dia 12 de outubro de 1492, e não encontrar frota alguma); - Não existe a história sob o ponto de vista do "Olho que tudo vê"; um ponto de vista absoluto, divino. Essencialmente há quase infinitas "histórias". Cada diferente maneira de associar os

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fatos, agregados por variadas ideologias, forma uma diferente visão da história. A visão que os índios têm do processo de colonização das terras brasileiras é bem diferente daquela do civilizado. A visão que membros de um partido têm de um período histórico, é bem diferente da de indivíduos de outra agremiação política rival; - Outro aspecto é que existem histórias ignoradas, se desenrolado paralelamente à história oficial - outras visões do processo, outros pontos de vista. Sob o aspecto político, será que a história do império no Brasil terminou? Descendentes da Casa Real brasileira ainda estão vivos - os Orleãs e Bragança - e seguramente existem dezenas, se não centenas de milhares de brasileiros que se colocam a favor da volta da monarquia; muitos deles de uma forma ou outra lutam por isso. Assim, podemos considerar que existe uma história da monarquia no Brasil, que ainda se desenrola. Paralelamente à história da monarquia, existe a história da padaria da esquina, a história do grão de areia da praia e a história da árvore da floresta amazônica; aquela que nunca ninguém viu cair; - A história não é linear. O conceito hegeliano de "tese-antítese-síntese" é linear (pelo menos em sua ideia original) e tem influência na maneira como a maior parte dos estudiosos encara o estudo desta disciplina. Para teóricos de história influenciados por correntes políticas marxistas, socialistas, fascistas, liberais, etc. -, o devir histórico tem uma meta, que coincide com os anseios políticos do próprio intelectual - o caso de Marx e do comunismo é o mais famoso; - O conceito de "teia de acontecimentos", que tomamos da moderna ecologia (Odum, Capra) e do budismo, dá uma dimensão mais rica à inter-relação que existe entre os fatos; qualquer fato que ocorra. O devir histórico não é assim linear, mas um nó em uma extensa rede (que poderíamos representar mentalmente como uma estrutura tridimensional onde nos nós se juntam às linhas e cada nó representasse aquilo que chamamos de fato histórico - vide: (https://thumbs.dreamstime.com/b/estrutura-de-rede-tridimensional-abstrata-do-wireframe-dopol%C3%ADgono-70049972.jpg). Nessa rede, interpretamos apenas alguns nós (os maiores?) como sendo os fatos que consideramos na elaboração do relato histórico "oficial". Haverá, assim, a possibilidade de inúmeras história, dependendo do ângulo de visão do intérprete; - Assim como todas as "histórias" a "Grande história" não tem sentido algum fora dela. Não há algo ou algum ente externo a ela - seja um Deus, um Princípio Último, um Controlador Alienígena ou uma Ordem Oculta. Nada do que ocorre - do Big-Bang e anterior a ele, até a morte térmica deste universo, incluindo os prováveis multiversos - está fora do âmbito da história. Mas, sob qual ponto de vista?

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John Locke e o liberalismo político John Locke foi um filósofo inglês do século XVIII que exerceu muita influência sobre todo o pensamento político desde então. Um dos aspectos importantes da filosofia de Locke foi o conceito de “tabula rasa”, a ideia da “folha em branco”. Segundo este filósofo, todas as pessoas nascem sem qualquer ideia ou conceito sobre algo. Isto quer dizer que não nascemos sabendo o que é certo ou errado, o que é bonito ou feio, entre outras coisas. Ninguém quando nasce já sabe se existe Deus ou não, qual a forma certa de educar os filhos ou qual o lugar que deve ocupar na sociedade. Tudo o que sabemos na vida, seja o que for, aprendemos com a educação, com a convivência, isto é, socialmente. Fora da vida social não se aprende nada. Esta noção é importante para nós, já que ficamos sabendo de que todo conhecimento, de qualquer pessoa, também foi aprendido e só varia do nosso em grau. Isto quer dizer, como o próprio Locke afirmava, que ninguém é infalível, não existem instituições e pessoas livres de erro. É preciso, pois, que haja o respeito às opiniões, já que se ninguém é dono da verdade, todo mundo só tem opinião, adquirida através das experiências e da incorporação de ideias e conceitos. Apesar de hoje existirem teorias mais elaboradas, ainda existe a alegoria comum de que em determinado ponto do desenvolvimento do homem, este se juntou aos seus semelhantes para formar o Estado primitivo. A coisa evidentemente não sucedeu de maneira tão simples assim, pois desde quando evoluíram de ancestrais primitivos, os antepassados do homem sempre viveram em pequenos bandos, formados por algumas famílias, como seus primos mais próximos, os macacos. As teorias mais recentes dizem que depois de viver por dezenas de milhares de anos em bandos nômades, os humanos, provavelmente, por fatores climáticos, não encontraram mais abundância de caça e viram como alternativa a prática mais intensiva da agricultura – eles já conheciam o processo de semear e colher certos vegetais. Com a prática mais intensiva da agricultura tiveram que se fixar em determinada região, perto de um lago ou rio, onde houvesse abundância de água. Ali, provavelmente, cada um foi tomando conta de um pedaço de terra e iniciando a plantação. O tempo foi passando e outras famílias se fixaram na região. As relações sociais foram se tornando cada vez mais complexas; era necessário criar certas regras sobre como trocar produtos (o que vale mais, a cevada ou o sal?); como evitar fraudes e roubos, como defender propriedades de estrangeiros mal intencionados, etc. Foi, muito provavelmente, durante condições de convivência como essa que os homens daquela aldeia se reuniram, foram pra casa do mais forte (ou o que tinha mais armas) e pediram que se tornasse chefe, rei, protetor, legislador, ou algo assim. Esta é apenas uma hipótese, parecida com a teoria da formação do Estado, segundo Locke. Este dizia que os homens, antes de se juntarem para formar um Estado, de acertarem o

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“contrato social”, já tinham certos “direitos naturais”, ou seja, direito à propriedade, à liberdade e à defesa. Quando os homens voluntariamente se juntaram para formar um Estado, não queriam abrir mão destas liberdades que já detinham antes. É por este motivo que, para Locke, não podem existir opressores e oprimidos dentro de um Estado. O filósofo inglês dizia que as injustiças começam quando certos grupos passam a ter mais poder econômico (Locke se referia à propriedade da terra) e com isso dominam o governo e a sociedade. Locke foi chamado de liberal porque era a favor da liberdade para todos os súditos, já que vivia em uma monarquia. Hoje em dia pode parecer uma coisa banal e evidente, mas no século XVIII isto não era nada comum. Salvo a Inglaterra e talvez a Suíça e a Holanda, o restante da Europa (e do mudo) era constituído por reinos absolutistas. O Brasil nesta época era uma colônia abandonada e explorada por uma monarquia decadente e absolutista, que sobrevivia principalmente por causa do ouro extraído em Minas Gerais. Baseado em sua visão da formação do Estado, Locke também estabeleceu que o fundamento do Estado fosse a liberdade, considerando o fato de que todos são iguais perante a lei, de que todos têm direito à felicidade, à liberdade e de decidir que rumo dar às suas vidas, desde que não prejudiquem a liberdade do outro indivíduo. O Estado deve fazer as leis através do poder legislativo e colocá-las em execução através do poder executivo. A ação do Estado é limitada pelos direitos naturais dos cidadãos (direito à propriedade, à liberdade e à defesa) e se este interferir nestes direitos, os cidadãos podem reagir e se rebelar. Como consequência disso, os governantes são sempre sujeitos ao julgamento do povo. Mais uma vez vale lembrar que estes conceitos são bastante revolucionários para a época em que foram elaborados. “O Estado deve temer o povo e não o contrário”, máxima adotada posteriormente pelo patriarcas da independência americana e pelos revolucionários franceses. Na França, a filosofia de Locke foi estudada por Voltaire e por Montesquieu. Este utilizou o liberalismo de Locke para desenvolver seu sistema de governo escrevendo “O Espírito das Leis”. Nesta obra, classifica os tipos de governo e acrescenta à proposta de Locke um terceiro poder: o poder Judiciário (ficando então os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário). O livro de Montesquieu serviu de fundamento para os revolucionários da Revolução Francesa em 1789. Nos Estados Unidos, então colônia da Inglaterra, o pensamento de Locke influenciou os mentores da independência; George Washington, John Adams e Thomas Jefferson (respectivamente 1º, 2º e 3º presidentes na nova nação). Em todas as nações do mundo, o ideal do liberalismo político – que muito tem a ver com o liberalismo econômico desenvolvido por Adam Smith – tornou-se conhecido e acabou quase sinônimo de democracia. O estudo do filósofo John Locke nos permite pensar sobre conceitos banalizados e por isso esquecidos, como liberdade individual, direito à propriedade e legalidade de um governo. Trazendo o pensamento de Locke para os nossos dias, podemos nos dar conta de quanto suas ideias ainda não foram totalmente colocadas em prática.

Referência Reale, Giovanni, Antiseri Dario, História da Filosofia Vol. II, Paulus Editora: São Paulo, 1990, 889 pgs. História da Civilização Ocidental Vol I, Editora Globo: Porto Alegre, 1971, 581 pgs.

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Kropotkin (e Hume) e as leis da natureza Texto interessante de Kropotkin (1842-1921) sobre o anarquismo. Em determinado ponto o autor diz que não existem "leis da natureza". Trata-se, segundo ele, do fato de que a suposta lei toma aspecto de causalidade: "Se tal fenômeno é produzido sob certas condições, outro fenômeno necessariamente se seguirá. Não existe uma lei colocada fora do fenômeno: todo fenômeno governa aquele que o segue, não há lei." A questão das "leis da natureza", de certa forma já foi analisada pelo filósofo David Hume (1711-1776), que coloca em discussão até a lei de causalidade. Hume se pergunta se a repetição constante de sequências de acontecimentos pode ser vista como uma regra invariável da natureza, uma "lei", ou se é apenas uma coincidência que sempre se repete. O filósofo inglês quer com isso mostrar que nossa interpretação da natureza é uma generalização de um processo que ocorre da mesma maneira; o que, no entanto não quer dizer que ocorrerá sempre. Fatos ocorrem na natureza, quando determinadas condições são dadas. São, em outras palavras "acontecimentos que ocorrem, invariavelmente, quando determinadas condições são dadas no início da sequência de acontecimentos que estamos analisando". Por exemplo, se damos início a um "acontecimento observável" impulsionando uma esfera que estava em repouso sobre uma mesa. Dependendo da aceleração que dermos à esfera e do tamanho da mesa, aquela se deslocará até cair no chão, rolar e perder o impulso, parando. Podemos analisar esta sequência de acontecimentos como sendo uma demonstração da lei da causalidade. No entanto, nestas dadas condições a causalidade ocorre de determinada maneira, que podemos chamar de lei da física (envolvendo aceleração, atrito, gravidade, etc.). A "lei" efetivamente não está colocada fora do fenômeno; ela não existe por si só. A lei da natureza é apenas um acontecimento que destacamos do mundo físico, e que invariavelmente ocorre, quando certas condições são dadas. Algo como "Se P => S". Como disse Kropotkin "não existe lei colocada fora do fenômeno", como se esta fosse alguma entidade à parte da natureza, como por exemplo os números.

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Materialismo histórico e materialismo dialético Ao longo de seus debates com os membros da “esquerda hegeliana” e através de suas pesquisas de economia, Marx havia chegado à conclusão de que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, o seu ser social que determina a sua consciência”. Ou seja, são as condições econômicas, as relações de produção, que determinam os aspectos espirituais de uma sociedade, as ideias e as instituições; a síntese do materialismo histórico. Escreve Marx no prefácio à Para a Crítica da Economia Política: “O resultado geral a que cheguei e que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade destas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência.” (Marx, 1974, p. 136). A descoberta de que as condições materiais de uma sociedade condicionavam a superestrutura – a cultura, a religião, as leis, os costumes, a ciência e a tecnologia, entre outros fatores – foi muito importante nos estudos posteriores de Marx. A conclusão seguinte à qual chegou Marx é que aqueles que dominavam os meios de produção – a classe dominante – sejam patrícios romanos, nobres feudais, burgueses comerciantes ou industriais; ditavam a superestrutura, utilizando-a para perpetuar sua situação de dominação. Em outras palavras, a superestrutura é uma reprodução, sob certos aspectos, da infraestrutura. Sobre esta análise dos aspectos materiais e espirituais da sociedade, escreve Stalin: “O ser da sociedade, as condições da vida material da sociedade, eis o que determina as suas ideias, as suas teorias, as suas opiniões políticas, as suas instituições políticas.” (Stalin, s/d, p. 29). Com o desenvolvimento do capitalismo, principalmente depois da 2ª Guerra Mundial, a complexidade das relações econômicas e sociais fez com que ficasse cada vez mais difícil este tipo de análise. Na década de 1960 Louis Althusser, filósofo marxista francês, ainda tentou explicar através de sua obra Aparelhos Ideológicos de Estado a maneira como a superestrutura – os aparelhos ideológicos de Estado: a família, a escola, a estrutura jurídica, a organização sindical, a cultura, entre outros – era manipulada pela classe dominante.

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Hoje, no entanto a superestrutura se tornou ainda mais complexa. Em nossa moderna sociedade de consumo, baseada nas telecomunicações e na informática, como determinar qual será a influência destes instrumentos – a linguagem e as imagens digitais – sobre a superestrutura? Será que efetivamente a “classe dominante” tem real controle sobre estes meios, sobre esta superestrutura? Ainda quanto a isso, o que nos mostraram as revoluções nos países árabes, a chamada “primavera árabe”, ou as eleições por todo o mundo – inclusive no Brasil –, com a ação das redes sociais? O materialismo dialético de Marx é baseado na dialética de Hegel. Para este, todo o processo do “ser” (da totalidade) continha três “momentos”, que Marx transformou em três “fases” do processo de perpétuo desenvolvimento da matéria e do desenrolar histórico: a tese, a antítese e a síntese. Marx, por assim dizer, inverteu a dialética hegeliana e a apontou para o mundo material, para a história. A dialética materialista não é um processo mental (do espírito), idealista, como o via Hegel, mas um processo inerente à natureza e ao devir histórico. Sobre este ponto escreve Henri Lefebvre: “O método é assim a expressão do devir em geral e das leis universais de todo o desenvolvimento: essas leis são abstractas em si mesmas, mas reecontram-se sob formas específicas em todos os conteúdos concretos. O método parte do encadeamento lógico das categorias fundamentais, encadeamento pelo qual se encontra o devir de que elas são a expressão concentrada.” (Lefebvre, s/d, p. 95) Materialista, Marx não seguia o “materialismo vulgar” (como o chamava Engels); o materialismo mecanicista e metafísico dos iluministas franceses, da esquerda hegeliana ou de Feuerbach, entre outros. Marx havia descoberto uma dinâmica, que se aplica aos fatos históricos e à natureza. O materialismo dialético foi fortemente propagado por Friedrich Engels, em obras como AntiDühring (1877) e A dialética da natureza (1870), onde deu ao materialismo dialético um caráter filosófico, aplicando-o às várias ciências e quase o transformando em uma metafísica disfarçada. Depois da Revolução Russa, na União Soviética, o materialismo dialético acabou transformando-se no “Diamat”, instrumento de análise e de verificação da ortodoxia marxista nas ciências sociais e naturais. Atualmente a maioria dos filósofos não marxistas considera o materialismo histórico e o materialismo dialético como ideias filosóficas, com pouco ou nenhuma fundamentação científica, comparáveis às teorias psicanalíticas de Freud.

Referências LEFEBVRE, HENRI. O materialismo dialético. Alfragide (Portugal). Edições Acrópole: s/d, 160 p. MARX, KARL. Manuscritos Econômico-Filosóficos e outros textos escolhidos in Os Pensadores. São Paulo. Abril Cultural: 1974, 413 p. REALE, GIOVANNI, ANTISERI, DARIO. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 1113 p. STALIN, JOSEPH. Materialismo dialético e materialismo histórico. São Paulo. Global Editora: s/d, 63 p.

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Metafísica: alguns aspectos A questão do ente, “o que é?”, foi uma das principais ideias que deram origem à metafísica. Historicamente, a metafísica remonta a Aristóteles, que a chamava de “filosofia primeira”, pois a partir dela é que construiu todo o seu sistema filosófico. No livro IV da Metafísica, Aristóteles escreve: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido a sua própria natureza” (Aristóteles, 2006). Na própria obra Metafísica, Aristóteles faz um relato histórico, mostrando como a partir dos pré-socráticos a filosofia sempre procurou uma base imutável para seus raciocínios, ou seja, um princípio único material (água, ar) ou imaterial (O Número, As Formas) a partir do qual toda a physis (mundo material) fosse constituída. O grande passo na filosofia foi quando o enfoque passou da cosmologia (que estudava o mundo em sua diversidade, mudança e multiplicidade) para a ontologia (que pensa a unidade, a identidade e a imutabilidade). Esta mudança se deu com o pensamento de Parmênides (século VI AEC), quando pela primeira vez na filosofia se empregou o termo “ser” na acepção que depois foi usada na metafísica aristoteliana. A história da questão sobre o ser (“por que os entes existem se simplesmente nada poderia existir?”) é, de certo modo, a história da própria metafísica. O termo “metafísica”, tinha o sentido de "além dos livros de física”, na acepção “os livros que aparecem depois dos livros de física” (Andrônico de Rodes, séc. I AEC). Apesar da interpretação diferente, a disciplina passou a ser chamada por esse nome, já que se propunha a estudar a essência das coisas, daquilo que elas são além das aparências, “além da física” (o que é o sentido original da disciplina). No século XVII o filósofo alemão Thomasius criou a palavra “ontologia” (no sentido de “estudo do ser”) para substituir a expressão “metafísica”, mas não teve grande sucesso. A expressão ficou restrita principalmente aos países que foram influenciados pela filosofia alemã. A metafísica divide-se historicamente em três períodos principais (Chauí e outros autores): - O período que vai de Platão e Aristóteles (séc. IV e III AEC) até David Hume (séc. XVIII). Este primeiro período caracteriza-se pela investigação do que é, da realidade em si. Todavia, seus raciocínios baseiam-se mais em conceitos do que na realidade; o conhecimento é sistemático, interligado, enfatizando a distinção entre a aparência e a realidade. Este período termina quando Hume esclarece que os conceitos metafísicos não correspondem a uma realidade existente em si mesma, sendo apenas ideias e conceitos. - O período que vai de Kant (séc. XVIII) até Husserl (séc. XX);

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Este segundo período inicia-se com Kant, que demonstra ser impossível manter uma metafísica tradicional. A partir desse período a metafísica, mesmo usando os mesmos termos, não se referirá mais a algo que exista em si, mas que existe no nosso conhecimento. - A metafísica contemporânea, a partir dos anos 20 do século XX. A metafísica contemporânea investiga aspectos como os modos de existência do ente, a significação/sentido destes entes, as maneiras diversas como estes entes se apresentam a nossa consciência. A metafísica atual é descritiva porque não apresenta mais uma explicação causal da realidade. A disciplina se ocupa atualmente do estudo de temas como a liberdade e o livre arbítrio, o tempo, Deus, a questão da individualidade, e ética, entre outros. Sob o aspecto ontológico (investigação filosófica dos entes) a pergunta pelo ser das coisas ainda é válida. A ontologia estuda “os entes ou seres antes que sejam investigados pelas ciências e depois que se tornaram enigmáticos para nossa vida cotidiana” (Chauí, 2006). A ontologia, portanto, ainda continua estudando o ser, a essência ou o sentido das coisas; o sentido do ente físico ou natural, do ente psíquico, do lógico, matemático, estético, moral, etc. Neste aspecto os entes podem ser reais (“as coisas”), ideais (as ideias, as instituições, tudo que é produto do raciocínio humano), valorizados (os valores) e podem mudar de acordo com as alterações na cultura das sociedades, não sendo mais eternos e imutáveis, como no passado. Quanto à questão “por que há simplesmente o ente e não primeiramente por Leibniz e depois ampliada em importância por uma das mais importantes questões da filosofia (dependendo, filosófica). Alguns pensadores afirmam que a única resposta para que não poderá ser provado.

antes o Nada”, colocada Heidegger, continua sendo evidentemente, da escola esta questão é Deus, ente

Outros respondem que a resposta não tem sentido. Já outros argumentam que a questão se baseia em uma hipótese falsa – “a hipótese segundo a qual poderia não existir literalmente nada, um mundo absolutamente vazio” (Garret, 2008)

Referências Aristóteles. Metafísica. Edipro. São Paulo: 2006, 363 p. Chauí, Marilena. Convite à filosofia. Editora Ática. São Paulo: 2006, 424 p. Crespo, Luis F.; Colombini, Elaine, A.M. Filosofia Geral – Problemas metafísicos I. CEUCLAR. Batatais: 2008, 68 p. Garrett, Brian. Metafísica. Artmed. Porto Alegre: 2008, 190 p. Taylor, Richard. Metafísica. Zahar Editores. Rio de Janeiro: 1969, 141 p.

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O mundo sensível e ideal no pensamento de Platão O princípio das coisas sensíveis, segundo Platão, tem origem no antagonismo entre o pensamento de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia. Cada um dos dois pensadores, a seu modo, procurou dar uma explicação para o problema do ser. Enquanto os filósofos cosmológicos como Tales de Mileto, Anaxímenes e Anaximandro, buscavam um princípio do ser na própria physis, na natureza, Heráclito de Éfeso colocou como princípio de todo o ser a mudança. “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”, escrevia Heráclito. Todo o ser estava sujeito ao devir e em constante alteração cíclica. No final, todo o ser (a physis, a natureza) será destruído pelo fogo e então o processo começará novamente: “Por fogo se trocam todas (as coisas) e fogo por todas, tal como por ouro mercadorias e por mercadorias ouro.” (Heráclito, 1996). Já Parmênides parte do princípio (talvez influenciado pelo pensamento de Pitágoras) de que o mundo das mudanças e das aparências é ilusório e é sobre ele que formamos as nossas opiniões, diferentes do conhecimento. A este quadro permanentemente mutável Parmênides contrapõe o Ser – to on, on – aquilo que é e não muda; é sempre idêntico a si mesmo, eterno, imperecível e invisível aos nossos olhos. A este Ser imutável, o filósofo contrapôs o Não-Ser, o qual declarou não existir efetivamente, apenas nas aparências. Parte da obra de Platão foi dedicada a resolver este antagonismo entre a filosofia de Heráclito e a de Parmênides. Por um lado, Platão é influenciado pelo pensamento de Heráclito no que se refere à natureza impermanente e imperfeita do mundo material, sempre em mutação. Por outro, o pensador ateniense concorda com o filósofo eleata de que para verdadeiramente conhecer o “Ser das coisas” a filosofia deveria abandonar o mundo sensível – da aparência, da mutabilidade, dos contrários – para se dedicar à esfera do inteligível. Nesta última imperam a verdade, o conhecimento puro e a imutabilidade. O primeiro mundo, vislumbrado por Heráclito, é a realidade sensível, é o reino das coisas, o mundo do Não-Ser. O segundo, é o mundo das ideias ou das essências verdadeiras, o mundo do Ser, como imaginado por Parmênides. A diferença básica entre Parmênides e Platão é que para o primeiro o mundo sensível é o do Não-Ser em sentido efetivo, sem nenhuma realidade. Para Platão o mundo do Não-Ser é um mundo real, mas que apenas é uma cópia daquele do Ser, das Ideias ou Ideais. Este um dos principais aspectos do pensamento platônico: para resolver a dicotomia entre o fluxo heraclitiano (o mundo da realidade sensível) e a imutabilidade parmediana (o mundo da

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imutabilidade do Ser). Platão introduziu o conceito das Ideias, que irá influenciar toda a filosofia ocidental, notadamente a metafísica. Dentro desta visão, as coisas têm então dois princípios: um sensível, sujeito à mutação e a desintegração e o outro inteligível (as ideias) imutável perfeito e modelo para toda a realidade sensível. A partir do século III o nascente cristianismo, influenciado pelo neoplatonismo, construirá os alicerces de sua teologia com estas ideias elaboradas por Platão. Mais tarde, Aristóteles fará em sua obra "Metafísica" uma crítica das posições dos cosmologistas, de Heráclito e de Parmênides, sem, inclusive poupar o conceitos das ideias de seu mestre Platão. Aristóteles introduzirá um novo conceito do ser. Mas isto já é história para um próximo texto.

Referências Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424 p. Souza, José Cavalcante. Os Pré-Socráticos. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1996, 319 p.

Nietzsche e Heidegger: convergências e divergências Toda a filosofia moderna foi influenciada pelo pensamento de Nietzsche. Seu pensamento foi o coroamento de um processo de constante crítica à metafísica moderna, a qual tendo origem em Descartes, passa por Hume e Kant. A crítica de Nietzsche, todavia, foi mais longe que as outras. Em seu pensamento criticava qualquer verdade metafísica, até os conceitos defendidos pela ciência de seu tempo. Escreve Viviane Mosé “Ao fazer uma avaliação da filosofia, da mora, da religião, da arte, da política, enfim, da cultura, o que a genealogia de Nietzsche faz é uma crítica da racionalidade, do conhecimento, colocando em questão a crença em todo e qualquer fundamento originário: verdade, ser essência, identidade, unidade, princípio, causa.” (Mosé, 2005, p. 31). Martin Heidegger, evidentemente, não poderia escapar à influência de seu conterrâneo e afirma dele: "Nietzsche é o primeiro pensador que, perante a história universal pela primeira vez aflorada em seu conjunto, coloca a pergunta decisiva e a reflete internamente em toda a sua extensão metafísica. Essa pergunta reza: como homem, em sua essência até aqui, está o homem preparado para assumir o domínio da terra?" (Heidegger apud Giacóia Junior, 2000). Alguns dos pontos de convergência entre os dois grandes pensadores são: 1. Ambos se ocupavam primordialmente com a metafísica. Toda a crítica de Nietzsche, em última instância, é a crítica da metafísica de seu tempo. Heidegger, da mesma forma, tem na metafísica o tema focal de sua filosofia. Paradoxalmente, ambos os pensadores afirmavam que a metafísica estava morta; Heidegger queria fundar uma nova, em outras bases; 2. Tanto Heidegger quanto Nietzsche foram bastante influenciados pelos filósofos présocráticos, principalmente Heráclito de Éfeso. Para Nietzsche, a filosofia se tornou racionalista e dualista (no sentido de contrapor um mundo ideal platônico-cristão a outro do dia-a-dia) a partir de Sócrates e Platão. Heidegger, por sua vez, pensa que o discurso racional da metafísica provocou o “esquecimento do ser”;

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3. Ambos têm uma posição bastante crítica em relação à tecnologia, como solução para todos os problemas humanos. Nietzsche de certo modo a desprezava e Heidegger temia sua ação na história futura do homem. Os principais pontos de divergência entre ambos são: 1. Nietzsche valorizava a vida, o princípio dionisíaco; tinha uma aversão contra a morbidez da doutrina cristã em sua negação da vida e dos princípios vitais. Heidegger, por sua vez, afirmava que é através do enfrentamento do pensamento da morte, da finitude, que o homem poderia alcançar uma nova mentalidade. A angústia, produto deste processo de pensamento, levaria o homem a sair de sua mentalidade do dia-adia, a mentalidade do homem comum (Das Man); 2. Heidegger, talvez por suas origens humildes, valorizasse sobremodo a cultura e a tradição alemã, a ponto de contrapô-la no pós-guerra à influência da União Soviética e dos Estados Unidos. Nietzsche, por outro lado, não era entusiasta das tradições alemãs. Desdenhava certos costumes da então sociedade alemã (o anti-semitismo e o costume de tomar cerveja), como costumes pequeno-burgueses (os filisteus). Admirava, a exemplo de seu mestre Schopenhauer, a cultura italiana e os costumes mediterrâneos. Referências CRAGNOLINI, Mônica. Nietzsche por Heidegger: contrafiguras para uma perda. Cadernos Nietzsche, 10 p.11-25, 2001, disponível em < http://www.fflch.usp.br/df/gen/pdf/cn_010_02.pdf > Acesso em 9/8/2009 JUNIOR GIACÓIA, Oswaldo. Nietzsche. São Paulo. Publifolha: 2000, 96 p. MOSÉ, Viviane. Nietzsche e a grande política da linguagem. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira: 2005, 237 p.

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O ambiente científico-filosófico do Renascimento italiano “É próprio do ceticismo ser perigoso. Ele desafia as instituições estabelecidas. Se ensinarmos a todo mundo, inclusive os estudantes do segundo grau, os hábitos do pensamento cético, eles provavelmente não vão restringir seu ceticismo aos UFOs, comerciais de aspirina e às mentes canalizadas de 35 mil anos de idade. Talvez comecem a fazer perguntas incômodas sobre as instituições econômicas, sociais políticas e religiosas. Talvez desafiem a opinião de quem está no poder. Então, o que aconteceria conosco?” Carl Sagan, O mundo assombrado pelos demônios

O Renascimento em seus diversos aspectos A diferença básica entre o homem medieval e o homem renascentista era a maneira como ambos encaravam o mundo. O homem medieval habitava um universo ordenado por Deus que, segundo a crença, havia dividido a sociedade em religiosos, nobres e camponeses; não havia possibilidade de mudar esta ordem social. Cada classe devia, à sua maneira, contribuir para o funcionamento e manutenção da sociedade. Os interesses do todos os membros da sociedade estavam submetidos à vontade de Deus e, como esta já estava estabelecida (segundo a intérprete da vontade de Deus, a igreja) não havia o que mudar – tratava-se de uma sociedade estática. Já que não havia muito no que pensar, as pessoas se preocupavam constantemente com a salvação da própria alma – sobre a qual não tinham certeza – e assim descuidavam-se dos assuntos mundanos (e por que se importar se Deus estava cuidando disso?). A religião tinha

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um papel primordial para estas vastas populações ignorantes e supersticiosas. Foi somente na Alta Idade Média, a partir do século XIII, que aos poucos a sociedade européia passou por alterações de caráter econômico, social e cultural, o que acabou provocando profundas alterações nos interesses intelectuais e espirituais do homem, mudando suas expectativas em relação à vida. Já o sucessor do homem medieval, o homem renascentista, enxergava o mundo com outros olhos. Seus interesses começavam, pouco a pouco, a se direcionar para este lado da vida: festas populares, comércio, crescimento das cidades, camponeses abandonando seus senhores e emigrando para as cidades. As estruturas sociais haviam se tornado mais flexíveis e os interesses pelos aspectos agradáveis da vida – antes condenados pela Igreja e por uma visão apocalíptica na religiosidade popular – haviam aumentado. Este novo tipo de mentalidade teve importância em vários campos. O homem mais característico do Renascimento, Leonardo da Vinci (1452-1519), foi uma mente universal. A princípio dedicou-se à pintura e à escultura. Espírito curioso, estudou anatomia, botânica, geologia, astronomia, mecânica e matemática. Leonardo é considerado por muitos autores como o típico cientista do Renascimento, já que foi o primeiro a enfatizar a importância do uso da matemática nas ciências. Além de artista e pesquisador, Leonardo também foi inventor, músico, poeta, sendo considerado um dos maiores gênios da humanidade. Nas artes, retorna o interesse pelos autores antigos clássicos. A Antigüidade grega e latina volta a ser estudada: a filosofia de Platão, Aristóteles, o epicurismo, o cinismo e o ceticismo, Cícero Sêneca e Lucrécio; todos voltam a se tornar acessíveis para um maior número de pessoas. Os historiadores gregos Tucídides e Heródoto, os romanos Salústio, Lívio e Tácito voltam a ser lidos e comentados; a Ilíada e a Odisséia de Homero, a Teogonia de Hesíodo, são textos que voltam a figurar na ordem do dia. Na literatura, como na pintura, os temas relacionados com a mitologia da Antigüidade tornam-se assunto principal. Um dos aspectos mais importantes do renascimento é o humanismo. Originalmente, humanista era no século XIV aquele que se dedicava à reestruturação dos estudos universitários. Mais tarde, o conceito foi estendido a todos os intelectuais que se dedicavam aos estudos humanísticos, ou seja: a filosofia, a história, a literatura e a poesia, etc. Não é que os autores clássicos não fossem conhecidos dos intelectuais da Idade Média. Mas o homem renascentista comparou o ideal clássico ao seu próprio mundo e daí tentou tirar novas conclusões. Neste contexto Francisco Petrarca (1304-1374) foi considerado o primeiro humanista, distanciando-se de Aristóteles e valorizando o socratismo, mais voltado ao conhecimento de si mesmo. Outro aspecto importante da cultura humanista é a retomada dos textos originais do Evangelho, em sua versão grega. Principiava então a reavaliação dos escritos originais da religião cristã, antes exclusividade da igreja católica, passando pelo crivo dos humanistas, que identificavam inserções realizadas ao longo dos séculos pelos diversos copistas nos mosteiros. Um dos primeiros filólogos a enveredarem por esse caminho e iniciar uma forte tradição nesta área foi Lourenço Valla, que provou a falsidade de um documento no qual o imperador Constantino (séc.IV) supostamente transferia o controle do império ao papa. Na filosofia o Renascimento caracterizou-se pela retomada dos textos originais dos filósofos clássicos, que então estavam disponíveis em primeira mão e não através de traduções do árabe, como na Baixa Idade Média. Com relação à filosofia platônica, seu maior expoente foi Marcílio Ficino, que em 1462 recebeu de Cosme Médici uma vila nos arredores de Florença, onde fundaria a “Academia Platônica”. Em suas atividades, traduziu para o latim todos os principais textos do platonismo e iniciou a divulgação das doutrinas herméticas (ensinamentos supostamente relacionados com a mítica figura egípcia Hermes Trimegistro). Outro expoente do platonismo renascentista foi o pensador Pico de Mirândola, que ao lado do platonismo também divulgou a cabala, ensinamento místico com origem no judaísmo medieval.

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Pedro Pomponazzi (1462-1525) foi um dos maiores aristotélicos do período renascentista. Em seus escritos o filósofo discute a imortalidade da alma e demonstra que não há necessidade de explicações sobrenaturais para fenômenos naturais, antecipando um posicionamento logo seguido pela ciência. O maior expoente da filosofia política neste período foi Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de uma das obras mais importantes da história da filosofia política, O Príncipe. Neste livro, Maquiavel parte das condições sócio-políticas reinantes na península itálica em seu tempo e desenvolve um manual para que o príncipe ou governante conquiste e mantenha o poder. A obra não considera aspectos morais. Efetivamente, explorando as fraquezas humanas (cobiça, inveja, sede de poder) o príncipe consegue tomar e manter o poder. Por esta visão amoral do comportamento humano, a obra popularizou a expressão “os fins justificam os meios”.

Diferença entre a ciência renascentista e a medieval A visão do universo na Idade Média era bastante diferente da visão renascentista. Na sociedade medieval, o foco das preocupações humanas era para assuntos relacionados com a divindade. O universo havia sido criado por Deus e neste o homem tinha apenas um papel de personagem na história da Salvação. A sociedade, por sua vez, era mantida por Deus e não havia uma possibilidade de mudança, de progresso. Analisando a visão medieval, W.H. Werkmeister, em seu livro A Philosophy of Science escreve: “No que concerne à ciência e à filosofia, a síntese medieval culminou no todo-abrangente sistema de Tomás de Aquino. O racionalismo escolástico foi aqui fundido ao misticismo cristão, e o conhecimento dos gregos foi soldado aos ensinamentos da Igreja, formando uma visão única do universo. Fins últimos eram vistos por trás de todo processo da natureza. Uma inteligência divina permeava o todo. E a vontade de Deus – mesmo incompreensível em detalhes – dava racionalidade e sentido a todas as coisas. O fato de que uma criatura de Deus pudesse existir à parte do curso da Providência, de que uma única pedra pudesse cair sem o conhecimento e o planejamento do Construtor do Céu e da Terra, era um pensamento intolerável.” [...]” esta visão tomística do mundo era sublime em sua concepção. Foi pelo menos, como exaltado, comparável à melhor criação do gênio grego. Mas, infelizmente, era amarrada pelas falsas concepções das leis naturais feitas por Aristóteles e o esquema geocêntrico de Ptolomeu.” (Werkmeister, 1940, p. 3, tradução nossa). Com as mudanças sociais, econômicas e culturais proporcionados por diversos fatores já citados e ocorridas no período do Renascimento, a ciência deixou de considerar o universo explicado por uma filosofia, o aristotelismo; deixou de se preocupar com o “por que” medieval e passou a se interessar pelo “como”. Os filósofos-cientistas deste período (Copérnico, Kepler, Leonardo, Galileu, Servet, entre outros) passaram a realizar experiências. Por sua vez, desta maneira descobriram a existência de “leis” inerentes aos fenômenos naturais, o que permitiu a aplicação cada vez maior da matemática. O desenvolvimento gradual da ciência fez com que o homem vislumbrasse a possibilidade de dominar a natureza, compreendendo suas leis, e ao mesmo tempo podendo extrair dela as riquezas. Em Epistemologia das Ciências Hoje, Carlos Henrique Escobar, escreve: “Na leitura que “espontaneamente” se faz da revolução no pensamento provocado pela física, se situam, sobretudo, os temas colonialistas do poder do “homem sobre os meios”, mas de um poder decididamente do “homem burguês”, que então se sentia o “homem universal” e contrastava com o homem medieval contemplativo.” (Escobar, 1975, p. 91). Foi no período do Renascimento que se desenvolveu o fundamento do que se convencionou chamar de “redução naturalista”, isto é, a “exigência de encontrar em todas as coisas e em cada uma delas o princípio explicativo natural, excluindo todos os outros.” (Reale, Antiseri,

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1990, p. 151). Galileu, o grande cientista do período, foi o iniciador de uma atividade que hoje domina o universo cultural da sociedade: a pesquisa científica.

O aspecto religioso no Renascimento O período medieval foi dominado pela presença quase hegemônica da igreja católica. Apesar do grande número de seitas heréticas – combatidas fortemente pela Inquisição criada no século XIII – e de opositores à visão tomística, o catolicismo conseguiu manter-se por mais de um milênio. Todavia, por diversos fatores, o paradigma medieval acabou se exaurindo, permitindo o aparecimento de novas interpretações. Thomas Kuhn, referindo-se a mudanças de paradigmas, escreve: “A transição de um paradigma em crise a outro novo, do qual possa surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo de acumulação, ao qual se chega por meio de uma articulação ou ampliação do antigo paradigma. É muito mais uma reconstrução do terreno, a partir de novos fundamentos, reconstrução que muda algumas das generalizações teóricas mais elementares do terreno, assim como também muito dos métodos e aplicações do paradigma.” (Kuhn, 2006, p.139). A análise aqui feita sobre a mudança de paradigma na ciência, aplica-se também aos paradigmas religiosos. O homem deixou sua visão fatalista, sua completa submissão a Deus e a seus desígnios, e cogitou da possibilidade de uma participação humana maior na história da Salvação. A partir desta visão, iniciam-se os questionamentos da hierarquia e dos dogmas da igreja católica, (já ocorridos a partir do final da Idade Média) e a possibilidade de um contato com a divindade, sem ação de intermediários (os sacerdotes). Paralelamente a este questionamento da teologia e da organização da igreja, surgiram novas forças, que reinvindicavam uma maior autonomia social, econômica e política, sem o controle da instituição religiosa. A proibição dos lucros, a posse das terras da Igreja e a influência junto ao governante, eram campos onde a hierarquia religiosa competia com a ascendente burguesia comercial. Esta, então, tinha o maior interesse possível em apoiar os movimentos que se antepunham ao ainda restante poderio da Igreja. Neste contexto, a Reforma Protestante e outros movimentos de ruptura institucional com a Igreja, foram apenas o coroamento de um longo processo, que já se iniciara no século XII, após as Cruzadas.

Conclusão O Renascimento foi uma das fases mais revolucionárias de mudanças de paradigmas da humanidade – se não a maior. Neste período se encontram as origens daquilo que no decorrer dos próximos 600 anos veio a constituir a civilização moderna ocidental. No Renascimento encontramos: a) Uma nova visão do homem; agente de seu próprio destino, não mais sujeito a Deus, mas sujeito da história. O homem é chamado a construir nações através de sua própria ação; da ação do Príncipe (Maquiavel); b) O mundo é para ser estudado; o homem deve conhecer as leis da natureza, a fim de dominá-la e desenvolver a tecnologia. “Saber é poder” (Francis Bacon); c) O homem não precisa de intermediários para conhecer a vontade de Deus ou para contatáLo. Não precisa da hierarquia sacerdotal para comunicar-se com a divindade, já que todo crente é um sacerdote e pode interpretar livremente a Sagrada Escritura (Lutero);

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d) O homem não aspira mais ao ascetismo, como o homem medieval. A nova maneira de agradar a Deus é através do trabalho duro, no comércio e na manufatura. O sucesso econômico de um homem é indício de ter sido escolhido por Deus (Calvino).

Referências ADLER, M ; WOLFF P. Foundations of Science and Mathematics. Encyclopaedia Britannica, Inc.: Chicago, 1960, 233 p. BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental Vol. I. Editora Globo: Porto Alegre, 1971, 581 p. ESCOBAR, Carlos Henrique. Epistemologia da Ciências Hoje. Pallas S.A.: Rio de Janeiro, 1975, 176 p. GOMES, Morgana. A vida e o pensamento de Galileu Galilei. São Paulo: Editora Minuano, 2007, 98 p. KUHN. T. S. La Estrutura de las Revoluciones Cientificas. Fondo de Cultura Economica de Argentina S.A.: Buenos Aires, 2006, 319 p. REALE, G. ANTISERI, D. História da Filosofia – Volume II, Paulus Editora: São Paulo, 1990, 233 p. SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios, Editora Schwarcz Ltda.: São Paulo, 2006, 509 p. WERKMEISTER, W. H. A Philosophy of Science. Harper & Brothers Publishers: New York, 1940, 551 p.

Albert Caraco, filósofo do caos "Eu nasci para mim mesmo entre 1946 e 1948, foi então que abri meus olhos para o mundo, até este momento era cego." Albert Caraco em "Ma Confession" (Minha Confissão)

As primeiras três décadas do século XX foram um período de grandes movimentos sociais, econômicos e culturais. Depois da guerra entre a Rússia e o Japão (1905), ocorreram uma série de eventos catastróficos que moldaram a história do século XX e também do século XXI: a Primeira Grande Guerra (1914-1918), a Revolução Russa (1917), a quebra da bolsa de Nova York (1929); dando início a uma grave crise econômica que afetou o mundo por vários anos e contribuiu para a ascensão do nazismo (1933). No campo da ciência, os avanços construíram a base da tecnologia eletrônica dos nossos tempos: a teoria Quântica, criada por Planck em 1900 e desenvolvida ao longo das primeiras décadas do século XX por outros cientistas; a teoria da Relatividade (1915) por Einstein e o Princípio da Indeterminação (1927) por Heisenberg. Nas artes a criatividade também foi muito grande: Expressionismo, Fauvismo, Cubismo, Futurismo, Abstracionismo, Dadaísmo e Surrealismo, entre os principais movimentos. Compositores como Schoenberg e Stravinsky revolucionavam a música, enquanto que intelectuais como Husserl, Durkheim, Russel, Heidegger, Tönnies, Scheler, Wittgenstein, Weber, Simmel, Dewey, Pareto, Ortega y Gasset, Whitehead e Sartre, foram alguns dos pensadores que ditavam novos rumos na filosofia e sociologia.

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Um mundo em ebulição. No meio de toda esta agitação cultural e social, ocorria a movimentação de milhões de pessoas das regiões rurais para as cidades. O velho ditado medieval alemão "Stadtluft macht frei nach Jahr und Tag" (O ar da cidade torna livre depois de ano e dia) concretizava-se para aqueles que ainda viviam no campo (as primeiras grandes migrações para as cidades ocorreram na segunda metade do século XIX) e queriam participar da vida agitada das cidades. Ao mesmo tempo, grandes contingentes humanos, sem oportunidades nas cidades afetadas pela crise econômica, emigravam do continente europeu para as Américas, principalmente os Estados Unidos. Foi nesse ambiente que nasceu Albert Caraco. Filho de José Caraco e Elisa Schwarz, judeus sefarditas, Albert veio ao mundo em Istambul, em 8 de julho de 1919. A família Caraco viajou muito pelo Europa, passando por Viena, Praga e Berlim, para se estabelecer em Paris. Foi lá que Albert se graduou na École des Hautes Études Commerciales (Escola de Altos Estudos Comerciais) em 1939. Pressentindo o perigo do nazismo se alastrando na Europa, José Caraco toma a família e deixa Paris em direção à América do Sul, passando por Honduras, Brasil (Rio de Janeiro) e Argentina, estabelecendo-se no Uruguai. Lá a família se converte ao catolicismo e passa a morar em Montevidéu. A permanência em tantos países durante sua infância e juventude fez com que Albert Caraco falasse e escrevesse alemão, francês, inglês e espanhol, o que lhe proporcionou acesso a grande parte da produção cultural desta línguas. Assim, ainda morando em Montevidéu, Albert Caraco publica peças de teatro e coleções de poemas. Em 1946, terminada a Guerra, a família volta para Paris, onde Albert Caraco permanecerá até o final da vida. Em Paris Caraco não exercia nenhuma atividade profissional, vivendo dos recursos da família. Também não se tem notícias de qualquer ligação sentimental que tivesse tido ao longo de sua vida. Era dedicado aos pais, principalmente a mãe, que chamava de "Señora Madre" em seus escritos. Levava vida regrada, dedicando seis horas por dia aos seus escritos - sua colossal obra até hoje não foi editada completamente. Depois de voltar a Paris, Caraco abriu mão do catolicismo ao qual havia se convertido junto com seus pais e voltou ao judaísmo. Em seus escritos declara-se ateu, nutrindo, no entanto, uma admiração pelo misticismo, a exemplo de seu contemporâneo em Paris, o filósofo romeno Emil M. Cioran (1911-1995). O sofrimento e a morte por câncer de sua mãe, "Señora Madre", o marcou profundamente. Tanto, que escreveu um livro, Post Mortem, descrevendo o desenvolvimento da doença e o efeito que o processo causava sobre ele. Mais tarde, no dia 7 de setembro de 1971, alguns dias depois da morte de seu pai, Caraco aos 52 anos dava cabo de sua própria vida, como já havia comunicado anteriormente a um editor. Albert Caraco não foi um filósofo acadêmico, e talvez seja esta a grande característica de seu pensamento. O conteúdo único de suas obras, suas análises e críticas, caracterizam um pensamento filosófico peculiar. A maior parte da obra mais conhecida de Caraco foi publicada após sua morte. Apesar de ter produzido material bastante variado, formado por peças de teatro, poesias, ensaios filosóficos, meditações sobre arte e sociedade, diários e artigos diversos, Caraco sempre continuou ignorado pelo grande público. Mesmo na França, país onde lançou parte de seu trabalho, o autor é pouco conhecido, até mesmo no meio universitário. Pessimista e acusado de misógino e racista, Caraco reuniu em seus textos todas as contradições de sua época. Criticava um mundo que caminhava para a superpopulação e a destruição dos recursos naturais, guiado por governantes cegos e cínicos, que se utilizavam de falsas ideias para iludir as massas. Com relação a essas, criticava a situação do homem

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comum, atomizado e ao mesmo tempo massificado, tornado engrenagem de uma máquina imensa, da qual a finalidade lhe é desconhecida. Partindo de pontos comuns às filosofias de Nietzsche (1844-1900), Schopenhauer (1788-1860) e Mainländer (1841-1876), entre outros, Caraco desenvolveu uma filosofia da indiferença, partindo dos temas clássicos do niilismo europeu. Um dos aspectos de sua obra é a análise e crítica de toda a hipótese explicativa das origens do universo; caos, absoluta indiferença, nada. Caraco analisou as consequências deste "nada" na sociedade, na arte, na política, na condição humana. Recusava as explicações religiosas - apesar de respeitar a espiritualidade -, qualquer forma de transcendência, toda forma de ordem. Estava preocupado com as catástrofes, a morte, a corrupção e a decadência e não tinha nenhum tipo de fé no progresso e na modernidade, ao contrário. Caraco sempre foi um grande demolidor destes mitos. Devido à estranheza de suas ideias, somente uma pequena parte das obras do pensador foram traduzidas para outras línguas, além do francês. O pessimismo de Caraco fez com que algumas vezes fosse chamado de "Heresias de Cirene moderno". Heresias, pensador nascido na cidade de Cirene no século III AEC, argumentava que a felicidade é impossível de alcançar e que o objetivo da vida era evitar dor e tristeza. Para o filósofo, valores convencionais como riqueza, pobreza, liberdade e escravidão, são todos indiferentes e não produzem mais prazer do que dor. Heresias, provavelmente influenciado por missionários budistas que conheceu ao longo de sua vida, provocou vários suicídios por causa de sua doutrina, tendo sido proibido de ensinar. Em seus escritos Caraco externou várias vezes a ideia de que nada no mundo merece ser salvo; nem a arte que degenerou em produto de consumo e embrutecimento das massas; nem a religião que além de fazer o mesmo também instrumentaliza as massas; nem a política e a economia, que levaram milhões de pessoas à morte e à miséria. As obras mais famosas de Caraco são Bréviaire du chaos (lançado postumamente em 1982) e Post mortem (lançado em 1968). Pelo que pudemos pesquisar, são estas as únicas obras do autor traduzidas para outras línguas; a primeira para o espanhol e o turco e a segunda somente para o espanhol. Outras obras escritas por Caraco e já lançadas, incluem: 1941. Inès de Castro (suivi de) Les martyrs de Cordoue. Rio de Janeiro: Livraria Geral Franco Brasileira. 173 p. (Deux tragédies classiques. La couverture porte: Editions Bel-Air). Curiosamente, este livro consta como tendo sido lançado na cidade de Rio de Janeiro. Não conseguimos encontrar informações sobre qual foi o período de permanência da família Caraco na cidade. 1942. Le cycle de Jeanne d’Arc (suivi d’un choix de poèmes). Buenos Aires: Argentina Aristides Quillet. (Plaquette illustrée par l’auteur). 1942. Le mystère d’Eusèbe, illustré par l’auteur. Buenos Aires: Argentina Arístides Quillet. 187 p. 1942/43. Contes. Retour de Xerxès. Buenos Aires: Argentina Aristides Quillet. 303 p. (Colophon daté 1942. Contes symboliques, fantastiques et philosophiques illustrés par l’auteur). 1949. Le livre des combats de l’âme. Paris: E de Boccard. 235 p. (Recueil de poèmes mystiques. Prix Edgar Poe, Paris).

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1952. L’école des intransigeants: Rébellion pour l’ordre. Paris: Nagel. 289 ou 291 p. (Maximes morales). 1952/53. Le désirable et le sublime: phénoménologie de l’Apocalypse. Neuchâtel: A la Baconnière. 395 p. (Somme philosophique. Copyright 1952, imprimé en 1953). Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 1978 ou 1979, 395 p. 1957. Foi, valeur et besoin. Paris: E de Boccard. 241 p. 1957. Apologie d’Israël, 1: Plaidoyer pour les indéfendables. Paris: Fischbacher. 202 ou 203 p. Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 2004, avec La marche à travers les ruines et Colonne d’ombre, colonne de lumière, 323 p. 1957. Apologie d’Israël, 2: La marche à travers les ruines. Paris: Fischbacher. 205 ou 211 p. Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 2004, avec Plaidoyer pour les indéfendables et Colonne d’ombre, colonne de lumière, 323 p. 1963. Huit essais sur le mal. Neuchâtel: A la Baconnière. 370 p. Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 1976 ou 1978, 370 p. 1965. L’art et les nations: la physique des styles. Neuchâtel : Ed. de la Baconnière. 333 p. Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 1979, 333 p. 1966. Le tombeau de l’histoire. Neuchâtel: La Baconnière. 605 p. Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 1976, 604 p. 1967. Le galant homme: un livre de civilité. Neuchâtel : A la Baconnière. 343 p. Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 1979, 341 p. 1967. Les races et les classes. Lausanne: L’Age d’Homme. 413 p. 1968. Post mortem. Lausanne: L’Age d’Homme. 119 p. (La Merveilleuse Collection, 13). Rééd. sous le titre Madame Mère est morte, (Paris) : Lettres Vives, 1983 ou 1984, xiii-110 p. (Coll. Entre 4 yeux, préface Michel Camus). Repris sous le titre original en fin de volume du Semainier de l’agonie, 1985. 1968. La luxure et la mort: relations de l’ordre et de la sexualité. Lausanne: L’Age d’Homme. 257 p. 1970. L’ordre et le sexe. Lausanne: L’Age d’Homme. 272 p. (Préfaces en anglais, allemand, espagnol et français). 1974. Obéissance ou servitude. Lausanne: L’Age d’Homme. 403 p. 1975. Ma confession. Lausanne: L’Age d’Homme. 260 p. 1975. La France baroque. Lausanne: L’Age d’Homme. 245 p. 1975. Simples remarques sur la France. Lausanne: L’Age d’Homme. 168 p. 1976. L’homme de lettres: un art d’écrire. Lausanne: L’Age d’Homme. 293 p. 1982. Bréviaire du chaos. Lausanne: L’Age d’Homme. 126 p. (Collection Le bruit du temps). Rééd. Lausanne: L’Age d’Homme, 1999, 126 p. (coll. Amers, 1)

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1982. Essai sur les limites de l’esprit humain. Lausanne: L’Age d’Homme. 257 p. 1983. Supplément à la « Psychopathia sexualis ». Lausanne: L’Age d’Homme. 174 p. (Collection Le bruit du temps) 1984. Ecrits sur la religion. Lausanne: L’Age d’Homme. 346 p. 1985. Le semainier de l’agonie: le semainier de 1963, suivi de Post mortem. Lausanne: L’Age d’Homme. 329 p. 1994. Abécédaire de Martin-Bâton. Lausanne: L’Age d’Homme. 156 p. (Coll. La Fronde). 1994. Semainier de l’incertitude. (Lausanne) : L’Age d’Homme. 202 p. 2001. Semainier de l’an 1969: du 10 mars au 27 juillet. Lausanne: L’Age d’Homme. 157 p. 2004. Apologie d’Israël. Lausanne: L’Age d’Homme. 323 p. (Contient une réédition de Plaidoyer pour les indéfendables et de La marche à travers les ruines (1957) et la première édition de Colonne d’ombre, colonne de lumière). Abaixo, algumas citações do filósofo, extraídas de algumas de suas publicações: "Quanto mais eu fico velho, tanto mais a Gnosis fala à minha razão. O mundo não é ordenado por uma Providência, é intrinsecamente mau, profundamente obscuro, e a Criação é o sonho de um intelecto cego ou o jogo de um Princípio sem moral." (Ma Confession) "...O Nada ou a História; temos que escolher entre duas alternativas, mas a segunda é muito frequentemente uma agonia perpétua e o Nada parece preferível... A Graça parece estar excluída, mas apesar da lógica, não é impossível que nos aconteça a Graça cair em uma linha vertical, abrindo um buraco entre nós e o atemporal, nós que estamos à mercê do rio no qual flutuamos." (Le Tombeau de l' Histoire) "As cidades que habitamos são as escolas da morte, porque são desumanas. Cada uma se converteu em centro de boato e mau cheiro, cada uma convertida em caos de edifícios, onde nos empilhamos em milhões perdendo nossas razões de viver. Infelizes sem remédio, nos sentimos, querendo ou não, expostos aos labirintos do absurdo, do qual não sairemos a não ser mortos, porque nosso destino é sempre o de nos multiplicarmos, com o único objetivo de parecermos inumeráveis. A cada volta da roda, as cidades que habitamos avançam imperceptivelmente umas contra as outras, aspirando a confundirem-se. É uma mancha em direção ao caos absoluto, no ruído e no mau cheiro." (Breviario del caos) "Quando quiserem saber quais foram nossos verdadeiros deuses, deverão julgar-nos segundo nossas obras e nunca segundo nossos princípios. Então não nos envergonharemos em responder e dizer que não nos permitiram dizer e nem sequer pensar: "Adorávamos a loucura e a morte". Na realidade, já não adoramos outra coisa, no entanto não podemos reconhecê-lo, porque a loucura e a morte são o fim das religiões reveladas, e estas religiões as contêm em potência, a começar pela cristã. Colocamos a morte e a loucura sobre os altares.. ." (Breviario del caos) "Nossos intelectuais não sabem mais do que representar e nossos religiosos não sabem mais do que mentir. Nenhum sonha com repensar o mundo, nenhum nos propõe formas de

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examinar as evidências. Todos querem fazer carreira e é admirável a capacidade com a qual se utilizam uns dos outros, sem jamais ferirem as conveniências." (Breviario del caos) "A catástrofe é necessária, a catástrofe é desejável, a catástrofe é legítima, a catástrofe é providencial. O mundo não se renova de outra maneira e se o mundo não se renova, deverá desaparecer com os homens que o infectam. Os homens se propagaram sobre o universo como uma lepra e quanto mais se multiplicam, mais o desnaturam. Creem servir aos seus deuses tornando-se mais inumeráveis. Seus comerciantes e sacerdotes aprovam sua fecundidade; uns porque os enriquece, os outros porque se lhes acreditam." (Breviario del caos) "O mundo que habitamos é duro, frio e sombrio, injusto e metódico. Seus governos são imbecis patéticos ou grandes perversos. Nenhum deles está mais de acordo com esta época, estão superados. Sejam pequenos ou grandes, sua legitimidade parece inconcebível e o poder não é mais que um poder protocolar, um mal menor ao qual nos resignamos." (Breviario del caos) "Pois vamos morrer com nossas obras e por nossas obras." (Breviario del caos) "Nossos inimigos são aqueles que nos falam de esperança e nos anunciam um futuro de trabalho e paz, onde nossos problemas se resolverão e nossos desejos se realizarão." (Breviario del caos) "Quando cada qual tem razão, tudo está perdido, tudo se torna permitido e possível; é a hora trágica por excelência e esta é a nossa." (Breviario del caos) "Se os homens não esperassem nada, sua sorte não seria a mesma. Se os homens não acreditassem em nada, sua condição talvez mudasse. Assim a esperança e a fé só aumentam seus males, mas fazem felizes os seus amos." (Breviario del caos) "Me contento com o Deus dos filósofos. Eu mesmo sou uma pessoa e não busco nada fora de mim. Consinto em minha morte eterna e a ideia de salvação me parece um delírio; ser salvo é uma violação metafísica." (Post mortem)

Referências http://albert-caraco.blogspot.com.br/p/bibliographie.html http://illusioncity.net/albert-caraco/ http://p2.storage.canalblog.com/25/21/1366039/111029471.pdf https://archive.org/details/caracoca http://albert-caraco.blogspot.com.br/p/bibliographie.html Caraco, Albert. Post mortem. México, D.F. Editorial Sexto Piso: 2006, 119 p. Caraco, Albert. Breviario del caos. Madrid. Editorial Sexto Piso: 2004, 128 p. Bréviaire du chaos (em francês) disponível em: (https://ia601403.us.archive.org/2/items/caracoca/caracoca.pdf)

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O muro está lá O muro cinza, com partes mal-acabadas, coberto somente de massa grossa. Aspecto de abandono, onde há muito não foi feito renovado mais nada. Uma cor cinza. Talvez me lembre de muros velhos, de casas velhas que vi na infância. O cimento áspero, lavado pela chuva durante muitos anos. Na massa grossa desgastada que cobre o muro, há pedaços diminutos de quartzo e mica refletindo a luz do sol. Quem terá construído este muro, esta parede? Quem foram eles? Quando? Há dez anos, há 20 anos, talvez? Difícil saber pela aparência do muro. O que pensavam, viviam e falavam, enquanto era feita a construção? E agora o muro está lá. Desde que foi erguido permanece firme, em pé, cumprindo a função para a qual foi destinado. Quantos dias de sol, chuva e frio já teriam passado desde que foi construído? Acontecimentos, vivências, e o muro há muito esteve lá. Não tem nenhum significado especial. É uma parede com cerca de quatro metros de altura e uns vinte de comprimento. Algumas partes não foram bem rebocadas e provavelmente desde que foi construído não foi reformado. Parece ter sido feito às pressas, sem muito cuidado. Por que temos que colocar ordem em tudo? Essa obsessão por tentar ordenar teórica e praticamente todo o universo não seria a nossa perdição? Não é melhor deixar a natureza

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(nome que damos às complexas inter-relações que atuam sobre tudo e acabam transformando o ente) tomar o seu rumo e atuar livremente com suas forças, como acontece neste muro? Ordenar, organizar, intervir, adaptar; essa ação de antropomorfizar o ente. Uma tentativa de arrumar um universo, que não tem a ordem que os homens pensam lhe impor, ou que pensam ter que lhe impor. Aparentemente caótico, o universo parece não ter uma lógica de funcionamento, mesmo que imperceptível, que fuja à nossa compreensão. A teoria da indeterminação e a física quântica especificamente. Não sabemos e não podemos prever o que acontecerá com as partículas (e o ente). Nossas construções teóricas, visões de mundo, teorias, doutrinas, ordens sociais, engenhos, estruturas; tudo simples tentativas (talvez vãs) de procurar entender aquele muro, o universo.

O papel do pesquisador teórico na contemporaneidade O pesquisador teórico desempenha um importante papel na elaboração do conhecimento especializado. Historicamente, grande parte das teorias nas áreas da sociologia, filosofia, economia e outras ciências humanas, é produto do trabalho constante de gerações de pesquisadores teóricos. Basta estudarmos as origens da sociologia, para constatarmos o peso que o trabalho de pesquisa desempenhou na formação desta ciência. Parcela considerável das teorias de Durkheim, Weber e Mannheim, por exemplo, foram elaboradas tendo como base informações disponíveis em registros, livros, estatísticas e relatos. Coletando e interpretando este material, os três grandes sociólogos desenvolveram novas teorias, que serviram como base ao desenvolvimento da sociologia e de outras ciências relacionadas. Outro exemplo de incansável pesquisador é Karl Marx, que formado em filosofia e munido de imensa cultura geral, iniciou uma longa pesquisa em diversas fontes, desenvolvendo uma análise crítica da sociedade e do sistema econômico de seu tempo. Este estudo, analisando o início do desenvolvimento do capitalismo, resultou em uma obra que até hoje ainda tem validade em diversos aspectos. Marx vai tão longe, que considera a sua própria obra como um trabalho de pesquisa.

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No prefácio à primeira edição de sua obra “O Capital”, o pensador escreve: “O físico observa processos naturais seja onde eles aparecem mais nitidamente e menos turvados por influências perturbadoras, seja fazendo, se possível, experimentos sob condições que assegurem o transcurso puro do processo. O que eu, nesta obra, me proponho a pesquisar é o modo de produção capitalista e as suas relações correspondentes de produção e circulação.” (Marx, 1983). A pesquisa não tem só papel importante nas ciências humanas. Mais um exemplo de pesquisador teórico, especificamente no campo da física, foi Albert Einstein. Este desenvolveu considerável parte de sua teoria da Relatividade Restrita (1905) e da Relatividade Geral (1916) a partir de experiências publicadas por outros cientistas e baseado em dados teóricos disponíveis em vasta literatura especializada. O grande mérito de Einstein foi fazer uma síntese com os dados disponíveis e a partir deles desenvolver uma nova teoria física, que explicava o funcionamento de certos aspectos do universo, sobre os quais a ciência da época ainda não tinha respostas. A principal habilidade de todo pesquisador teórico – seja em que área da ciência for – é a capacidade de reunir um grande número de dados e informações, interpretá-los e então desenvolver uma nova teoria sobre o assunto. Foi isto o que basicamente fizeram todos os grandes cientistas teóricos e filósofos dos últimos 150 anos. A filosofia, mais especificamente, foi em toda a sua história uma constante tentativa de reunir informações (teorias das escolas anteriores) e reinterpretá-los sob novos moldes; sempre um trabalho de pesquisa, análise e desenvolvimento de novas teorias. Por essa razão, é de vital importância o trabalho do pesquisador teórico, seja em que área for; tanto nas ciências exatas quanto nas humanas. A partir desta pesquisa é que se desenvolvem as novas teorias, as quais apesar de não explicarem definitivamente o fenômeno estudado (o que seria impossível, dado o constante desenvolvimento do conhecimento e das diversas maneiras de obtê-lo), ajudam-nos a interpretar nossa vida e nossa sociedade de uma nova maneira, abrindo novos horizontes ao pensamento. Este processo é enfatizado pelo teórico da ciência, Thomas S. Kuhn, que escreve: “La transición de un paradigma em crisis a otro nuevo de que pueda surgir uma nueva tradición de ciencia normal, está lejos de ser un processo de acumulación o una ampliación del antiguo paradigma. Es más bien uma reconstrucción del campo, a partir de nuevos fundamentos, reconstrucción que cambia algunas de las generalizaciones teóricas más elementales del campo, así como también muchos de los métodos y aplicaciones del paradigma.” (Kuhn, 2006).

Referências KUHN, Thomas S. La estrutura de las revoluciones científicas. Fondo de Cultura Econômica de Argentina. Buenos Aires, 2006. 319 p. MARX. Karl. O Capital: Crítica da Economia Política, Vol I, Livro 1º. Abril S.A. Cultural. São Paulo, 1983. 301 p.

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O pensamento de Georg Wilhelm Friedrich Hegel Um dos principais aspectos do pensamento de Kant eram as “categorias”. Estas estruturas mentais representam a maneira através da qual o pensamento e a consciência funcionam. Estes esquemas mentais têm caráter a priori, isto é, existem antes e não são resultado da experiência. Sendo assim, essas estruturas são independentes do que pensamos e de todo desenvolvimento biológico e cultural pelo qual passamos. Estas estruturas de mentais incluem conceitos como “substância”, “causa”, “existência”, “realidade”. Assim, segundo Kant, podemos ter experiência do mundo exterior, mas apenas podemos ter certeza desta existência porque temos a priori a categoria que nos proporciona uma estrutura para esta experiência. Como consequência, só podemos ver o mundo de um modo bastante particular, condicionado pela correspondente categoria, e nunca da maneira como o mundo realmente é, “em si mesmo”. Este mundo “em si mesmo” é o do noumeno, definitivamente incognoscível para o homem. O mundo que para nós se revela por meio das categorias é o mundo da experiência cotidiana ou fenomênico. Hegel começa suas críticas ao pensamento do antecessor atacando a noção do mundo “em si mesmo”. Para Hegel este conceito era completamente vazio, uma abstração sem qualquer fundamento. O noumeno não existia para Hegel e o que efetivamente existia vinha manifesto à

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consciência através do pensamento e do sentimento. Outro aspecto da crítica é que segundo Kant as categorias eram distintas e imutáveis, o que significava que a experiência humana era imutável. Diferentemente Hegel assume que as experiências são mutáveis, assim como a realidade experimentada o é. Trata-se, pois, de um processo dialético, no qual a interação mente/realidade é sempre sujeita e causadora de mudanças num processo constantemente em evolução. Esta noção da constante mudança Hegel encontra tanto na mente, quanto na realidade histórica. Tudo está em frequente mutação e cabe à filosofia explicar como e porque ocorre este processo. Hegel então faz referência ao processo através do qual a consciência evolui, primeiro pela apreensão do mundo, como “consciência sensível”, aquela que faz com que o sujeito perceba a si mesmo e seu mundo. Todavia, esta consciência é enganosa, já que considera como verdadeiro aquilo que percebe. Depois, através da experimentação do mundo e ao reconhecer-se nesta experimentação, a consciência amplia sua percepção e seu saber, encontrando-se a si mesma. Através de um processo de substituição de conhecimentos cada vez mais abrangentes e profundos, a consciência passa, finalmente, a abarcar a totalidade. A idéia de Hegel, segundo Abrão, é “atingir o absoluto, isto é, a inserção consciente do espírito na totalidade”. A consciência em uma primeira etapa se afirma distinta do mundo. Após percorrer um trajeto de contingências históricas diversas, a consciência reencontra-se no mundo, mas agora de modo consciente, conhecendo a realidade em todos os seus aspectos. Resolve-se nesta etapa a oposição que existia entre o mundo e a consciência em uma primeira fase; agora com a afirmação da consciência ante a totalidade. Vemos aqui de forma bastante conceitual o princípio básico da lógica de Hegel: “Toda noção ou ‘tese’, contém dentro de si uma contradição, ou ‘antítese’, que só é solucionada pelo surgimento de uma nova noção, mais nova e mais rica, chamada ‘síntese’, a partir da própria noção original.” (Buckingham et al p. 183) Este desenvolvimento da consciência Hegel explicitou em sua primeira obra, a Fenomenologia do Espírito. Depois de descrever a maneira como uma consciência individual pode operar, Hegel projeta este mesmo sistema sobre formas coletivas de consciência, mostrando que tais princípios também ocorrem em períodos históricos e em acontecimentos específicos, como revoluções. O desenvolvimento social, econômico e político por que passa a humanidade traz, segundo Hegel, um desenvolvimento cada vez maior da consciência. Este desenvolvimento tem um sentido e uma finalidade particular e Hegel o chama de “Espírito Absoluto” ou “Razão”. Sobre este Espírito Absoluto escreve Abrão: O que é então o ser absoluto? Não se trata de algo que o homem concebe, como pensaram as filosofias ainda prisioneiras da separação entre sujeito e objeto – separação que para Hegel é apenas provisória. O absoluto é autoconceber-se, e o objeto final da Ciência da Lógica é superar a separação entre sujeito e objeto, conceito e coisa, para afirmar a identidade do absoluto. Mas autoconceber-se significa ser sujeito. Para Hegel, no entanto, não se trata mais de um sujeito que se põe como exterior a seu objeto, e sim de um sujeito que se reencontra pelo lado objetivo, incorporando o objeto em uma totalidade que ultrapassa a oposição. (Abrão, p. 358). Não se trata de um indivíduo ou entidade, mas de um estágio de consciência, de evolução, que não se refere apenas aos indivíduos, mas a toda a realidade. Esta realidade corretamente compreendida, já é razão, como afirma a famosa frase de Hegel: “O que é racional é real, e o que é real é racional”. O processo de realização do “Espírito Absoluto” é um processo dialético, envolvendo o devir histórico – a história sempre influenciou bastante a filosofia de Hegel. Interessante comparar o processo de evolução em direção ao Espírito Absoluto formulado por Hegel, com o impulso que

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faz com que os seres almejem a perfeição em direção ao Primeiro Motor – e que segundo Aristóteles nunca alcançará. Hegel, também sempre afirmou a realização do Espírito Absoluto, apesar de não indicar quando isto aconteceria.

Referências Abrão, Bernadette Siqueira. História da Filosofia. São Paulo. Editora Nova Cultural: 1999, 480 p. Buckingham et al. O livro da filosofia. São Paulo. Globo: 2012, 352 p. Rodriguez, Manuel Cruz et al. História da Filosofia. São Paulo. Editora Moderna: 2008, 317 p. Os Pensadores. Hegel. São Paulo. Abril Cultural: 1980, 392 p.

O ser humano em sua essência O ser humano sendo criatura viva, sujeita às leis da natureza é, assim como todos os outros seres vivos, marcado pela provisoriedade. Todos os seus projetos, ideias, realizações e aspirações são efêmeras, porque nunca definitivas. A percepção de sua transitoriedade, de sua mortalidade – e de todos os seus projetos – causa ao homem um sentimento de angústia. No passado, apoiado nas promessas das religiões, o homem transformava este sentimento em esperançosa expectativa. Hoje, já bastante cético em relação a tal possibilidade, o homem tenta enganar “a indesejada das gentes”. Escreve o filósofo Max Scheler: “A morte recalcada, a morte “presente”, mas tornada invisível e que deixou de ser temida ao ponto de se ter tornado inexistente, é, de agora em diante, poder e brutalidade sem sentido, tal como aparece ao novo tipo de homem quando se vê confrontado com ela. A morte surge apenas como uma catástrofe. Não é mais vivida de modo leal e consciente. E já ninguém mais sente e sabe que tem de morrer a sua própria morte” (Scheler, 1993)

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O ser humano não pode ser definido somente através de sua existência passageira. Outras criaturas, instituições, paisagens e até planetas e galáxias também são transitórios; a diferença é a escala de tempo. A efemeridade é uma característica de todo o ente; aparentemente nem mesmo os átomos – dados como eternos pela filosofia grega – são permanentes. Decaem, se decompondo em outras subpartículas, que por sua vez também desaparecem. No final de um tempo imenso, assim dizem os cosmólogos, as mínimas partículas de matéria – formadas de energia concentrada – também se dissolverão e deixarão de existir. Assim como veio do nada, ao nada retornará o universo – e provavelmente surgirá outro universo, depois de um tempo que não temos como estimar, já que para isto a física atual não tem qualquer informação. Dotado de raciocínio e animal social por natureza (todos os nossos antepassados símios eram sociáveis) o homem é, diferentemente de todo o resto da criação, consciente de sua mortalidade e da finitude de todo o universo. Porém, o avanço das ciências biológicas está tornando cada vez mais tênues as diferenças que nos separam dos outros seres vivos. Diferente do que dizia Descartes, descobrimos que os animais têm sentimentos, além de também fazerem ferramentas e de possuírem traços de cultura. O ser humano, no estágio atual do conhecimento, se caracteriza pela sua capacidade única de formular complicados raciocínios lógicos e de elaborar complexos conceitos de ética. Talvez seja esta a essência do homem – por enquanto.

Referência SCHELER, Max. Morte e Sobrevivência – 1ª ed. Lisboa: Edições 70, 1993

Origens do pensamento filosófico brasileiro A origem da filosofia brasileira encontra-se em Portugal, já que até certo período de nossa história – pelo menos até a vinda da família real ao Brasil em 1808 – não existiam universidades e outros tipos de fóruns para a discussão filosófica. As únicas exceções eram os cursos nos seminários de Olinda e Salvador, onde se ensinava filosofia e teologia. Portugal, por outro lado, era um país de contrastes. Foi uma das primeiras nações europeias a estabelecer um governo centralizado, sob a batuta de um rei, eliminando o poderio dos nobres – uma típica característica das nações consideradas modernas nos séculos XV e XVI. Além disso, Portugal tinha conseguido reunir grande parte do conhecimento disponível à época referente às navegações ultramarinas; astronomia, geografia, cartografia, engenharia náutica e técnicas de navegação. Por cerca de um século (1450 -1550) o português foi o povo que mais descobriu e viajou por todo o mundo (Bartolomeu de Gusmão, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães, eram todos portugueses). Sintetizando, temos Portugal como país politicamente e tecnologicamente avançado para a época.

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Sob aspecto cultural, desde a Idade Média até o século XVIII houve sempre predomínio da ideologia da Igreja. Na literatura floresceram as obras de Camões, Sá de Miranda, João de Barros e Gil Vicente, todos com forte influência renascentista. Alguns autores, todavia, tratavam os temas religiosos sob a ótica tradicional da Igreja – como mostram os diversos Autos encenados por Gil Vicente encenados na corte portuguesa. Na filosofia, no entanto, a coisa era diferente. Fortemente dominada pela Igreja e sua hierarquia, o ensino da filosofia (sempre associado ao da teologia) era monopólio das ordens religiosas. Os poucos intelectuais portugueses que se aprofundaram no estudo da filosofia durante este período, acabaram emigrando principalmente para a França, onde reinava mais liberdade de pensamento. Desta forma, como não podia deixar de ser, as origens da filosofia brasileira estão fortemente ligadas ao pensamento das ordens religiosas, que por aqui iniciaram suas atividades catequéticas (e políticas) logo a partir do Descobrimento. A própria fundação das cidades brasileiras ainda guardava certas características que remontam ao Renascimento Carolíngio, no século IX, ou seja, a prática de fundar um povoamento a partir de uma igreja e junto com esta uma escola, onde eram ensinados os rudimentos da leitura, da escrita e, principalmente, da religião. Foi o que fizeram Nóbrega, Nunes, Anchieta e outros jesuítas, ao fundarem as primeiras cidades brasileiras. Os núcleos de povoamento foram evoluindo e crescendo, tornando-se centros administrativos (Salvador) e comerciais (Paraty, Rio de Janeiro, Iguape), mas a educação era basicamente ministrada nas escolas religiosas. Aqueles cidadãos mais abastados, que podiam custear uma educação superior, visitavam a universidade de Coimbra, também sob a batuta dos jesuítas. Gregório de Matos (1636-1695), por exemplo, o primeiro poeta caracteristicamente brasileiro, pertencia à elite portuguesa da Bahia e havia feito seus estudos de Direito em Coimbra. Não é de estranhar então que pelo menos até a Reforma Pombalina, ocorrida no século XVIII, quando o Marquês de Pombal reprimiu as ordens religiosas de Portugal e do Brasil, todo o ensino superior, e com ele o ensino da filosofia, estivesse dominado pela ótica religiosa, com suas preocupações, questões e temas característicos. Além disso, é preciso observar que Portugal vivia sob o espectro da Inquisição desde o final do século XV. O rei havia se aliado à Igreja e apoiava fortemente as ações desta instituição; na verdade, tinha até interesse nela. Exemplo disso foram as perseguições aos judeus no final do século XV, quando o Estado português estava sem capital para as aventuras ultramarinas. Apoiando-se na Igreja, o rei de Portugal iniciou uma grande perseguição aos judeus, muitos deles comerciantes e banqueiros bem sucedidos. Assim, nada mais providencial do que em nome do cristianismo católico forçar os judeus à conversão ou expulsá-los, tomando-lhe todos os bens. Em uma ambiente de repressão ideológica e cultural quanto este, era pouco provável, portanto, que surgissem pensadores como Erasmo de Rotterdam, Montaigne, Hobbes, Francis Bacon ou Machiavel. Desta forma o início da filosofia brasileira se caracteriza por uma continuação do pensamento escolástico praticado nos seminários e universidades católicas, chamado de Ratio Studiorum e com forte influência do aristotelismo medieval. Foi baseado neste pensamento que se desenvolveu aos poucos uma filosofia praticada no Brasil, principalmente nos seminários – nos cursos de teologia e filosofia – que no entanto ainda tinha muitas características tomistas. O padre Antônio Vieira (1608-1697) não foi exatamente um filósofo. Influenciado pela filosofia tomístico-inaciana, escreveu e pronunciou centenas de sermões, muitos dos quais ainda hoje figuram como joias da literatura brasileira e valem a pena ser estudados. Em suas prédicas, Vieira utiliza-se de uma técnica bastante comum no período barroco, que visava mostrar a irrelevância ou a falácia de certos valores socialmente aceitos e almejados (a riqueza, o poder, a vaidade, etc.) – geralmente associados aos sete pecados capitais. Vieira denunciava estes valores como fonte de dor e insatisfação e procurava induzir sua audiência a uma reavaliação de seus ideais, tentando conduzir os ouvintes para os valores cristãos.

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Digno de nota e estranhamente esquecido da maioria dos manuais é o pensador nascido em São Paulo Matias Aires (1705 – 1763). Este paulistano estudou em Coimbra, em Paris e desenvolveu uma filosofia baseada em aforismos, parecida à dos moralistas franceses La Rochefoucauld, Bossuet e La Bruyère. Alceu Amoroso Lima, escritor, ensaísta e filósofo católico do século XX, prefaciando a obra Reflexão sobre a vaidade dos homens de Matias Aires, considera este o primeiro filósofo brasileiro. Pensador mordaz e pessimista, Aires tem aforismos interessantes como este: “Porém deste mesmos delírios resulta e depende a sociedade; porque a vaidade de adquirir a fama infunde aquele valor aos homens, que quase chega a transformá-los em muralhas para a defesa das cidades, e dos reinos; a vaidade de serem atendidos os reduz à trabalhosa ocupação de indagarem os segredos da divindade, o giro dos astros, e os mistérios da natureza; a vaidade de serem leais os faz obedientes; a vaidade de serem amados os faz benignos; e finalmente a vaidade ou amor da reputação os faz virtuosos. Daqui vem que o homem sem vaidade entra em desprezo universal de tudo, e começa por si mesmo: olha para a reputação como para uma fantasia, que se sustenta de um sussurro mudável, e de uma opinião sempre inconstante; [...]” (Aires, 1993, p.34) Outros pensadores de destaque foram José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), cognominado de “o patriarca da independência” e o padre Diogo Antônio Feijó (1784-1843). José Bonifácio foi um dos maiores intelectuais de seu tempo; estudou em Coimbra, viajou pela Europa e estudou mineralogia em Paris e Freiburg. De volta a Portugal, integrou um grupo de intelectuais com o objetivo de reformar a política do império português. Tendo-se mudado para o Brasil, ainda a fim de reestruturar o império português, envolve-se com a independência do Brasil e com a política do Segundo Império, como tutor de D. Pedro II, sendo posteriormente desterrado. Como pensador, José Bonifácio deixou vários escritos sobre política brasileira, economia, literatura, filosofia e religião, de importância secundária. Padre Feijó além de sacerdote foi político – curiosamente inimigo político de José Bonifácio de Andrada e Silva. Foi professor de filosofia, tendo sido muito influenciado pelo pensamento de Kant. Talvez, em função dessa influência, Feijó tenha sido liberal na política, inimigo da escravidão e favorável à eliminação do celibato sacerdotal. O pensamento de Gonçalves de Magalhães – talvez o primeiro pensador eminentemente filosófico do Brasil – ainda revela resquícios da tradição filosófica que sempre ocupou, com raras exceções, os pensadores luso-brasileiros: a questão da interação (ou oposição) entre o espírito e a matéria. Mas aqui não se trata de um espírito como sinônimo de atividade mental somente. Trata-se sim, daquele velho termo metafísico, tão caro à filosofia pré-kantiana. Segundo Gonçalves de Magalhães, “não é com os olhos pregados no mundo exterior, com todos os sentidos abertos e atentos aos fenômenos sensíveis que há de o espírito humano conhecer a sua própria natureza, os seus atributos e seu destino; é recolhendo-se ao santuário de sua consciência, refletindo sobre os seus próprios atos, examinando os fatos atestados por eles, que poderá penetrar neste mundo espiritual da metafísica, de que ele é um dos habitantes que por este mundo exterior viaja [...]" (Madeira, 2009). Nossa filosofia continuava muito longe da realidade concreta do país. Enquanto o Brasil se via as voltas com a escravidão, sendo um império econômica e tecnicamente pouco desenvolvido, com um sistema educacional quase inexistente, o filósofo-diplomata-poeta Gonçalves de Magalhães convidava seus contemporâneos a “penetrar neste mundo espiritual da metafísica”. Neste aspecto, o pensador Luís Pereira Barreto (1840 – 1923), contemporâneo de Gonçalves Magalhães e ligado à filosofia positivista, tinha pensamentos muito mais concretos e críticos em relação à realidade brasileira, à ciência, à metafísica, à política e outros pontos. Suas principais obras foram As três filosofias, Soluções positivas da política brasileira, Positivismo e teologia e O século XX sob o ponto de vista brasileiro.

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A filosofia de Farias de Brito (1862-1917) tem grande influência da filosofia europeia de sua época (Bergson, Wundt, entre outros) e ao mesmo tempo parece ser um dos primeiros autores filosóficos relativamente originais, sendo influenciado pelo ambiente político, econômico e cultural do Brasil da Primeira República; o mesmo ambiente descrito por Machado de Assis, Lima Barreto, Oliveira Vianna, Euclides da Cunha, entre outros. Fato interessante é que Farias de Brito também faz longas referências à psicologia, que havia se tornado popular entre os intelectuais, por influência da crescente popularização da obra de Sigmund Freud. O estudo do pensamento filosófico brasileiro é bastante importante para compreender melhor o desenvolvimento cultural do país. No entanto, deve sempre vir acompanhado do contexto histórico do período estudado. A filosofia, sempre é bom repeti-lo, é produto da interação de filósofos com seu ambiente; não é produto de divagações sem qualquer relação com a realidade concreta.

Referências AIRES, Mathias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. São Paulo. Martins Fontes: 1993, 202 p. BARRETO, Luís Pereira. Soluções positivas da política brasileira. São Paulo. Editora Escala: 2007, 139 p. MADEIRA, João Batista. Filosofia no Brasil. Batatais. Ceuclar: 2009, 44 p. ANDRADA E SILVA, José Bonifácio. Projetos para o Brasil. São Paulo. Publifolha: 2000, 212 p. BANDEIRA, Manuel. Apresentação da poesia brasileira. São Paulo. Cosac Naify:

Razão científica e racionalidade A razão científica, assim como utilizamos a expressão modernamente, não era conhecida na Antiguidade. Apesar da forte influência que cientistas gregos como Aristarco Estrabão e Arquimedes exerceram na tradição ocidental, o pensamento grego pouco contribuiu para a elaboração de hipóteses científicas sobre a natureza. O pensamento científico como o conhecemos modernamente remonta ao século XVI, com o pensador e cientista inglês Francis Bacon – apesar de este ter tido precursores ainda na Baixa Idade Média, como o mongecientista Roger Bacon no século XIII e o pensador William de Ockham, no século XIV. Em vários dos seus escritos, Bacon deu grande valor à análise e à investigação científica; “Saber é poder”, é uma de suas famosas frases. Foram figuras como Leonardo da Vinci, Bacon, Copérnico, Kepler, Galileu e Newton, que colocaram os fundamentos da moderna ciência, baseada na investigação e na elaboração de teorias. Do campo da filosofia, a grande contribuição ao desenvolvimento do pensamento científico veio de René Descartes, contemporâneo de Galileu e introdutor da geometria

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analítica e da álgebra geométrica, conhecimentos que fundamentam a moderna matemática e base dos sequentes estudos de física. Descartes também foi o iniciador da filosofia racionalista, que junto com a física newtoniana assentaria as bases do moderno pensamento científicoracionalista. O pensamento científico – ou razão científica – passou a existir quando a ciência foi capaz de observar um fenômeno na natureza, elaborar uma hipótese para explicá-lo e depois tentar – através da indução – provar que esta hipótese se aplicava a outros fenômenos parecidos (o processo indutivo foi motivo de crítica de vários filósofos, como Hume, no século XVIII e Popper no século XX). Filosoficamente pode-se dizer que o racionalismo estava descobrindo através de métodos racionais uma aparente ordem implícita na natureza a qual o homem, utilizando-se de certas técnicas de raciocínio, poderia desvendar. Grandes pilares deste tipo de pensamento foi o filósofo holandês Baruch Espinoza (1632-1677) e o alemão Gottfried Leibniz (1646-1716). A razão tornou-se o principal instrumento de análise do mundo através dos filósofos iluministas. O iluminismo – ou pelo menos muitas ideias que o influenciaram – teve início com o filósofo empirista inglês John Locke (1632-1704). Pouco depois, suas ideias foram desenvolvidas por Jean-Jacques Rousseau, que valorizava a liberdade individual e o estado democrático. Este por sua vez era contemporâneo de Voltaire, grande crítico da Igreja e de todas as formas de autoritarismo. Pouco depois Montesquieu (1689-1755), também influenciado pelo liberalismo inglês, lançou a ideia de um estado governado por três poderes - legislativo, executivo e judiciário. Também franceses foram Denis Diderot (1713-1784) e Jean Le Rond d´Alembert (1717-1783), que juntos organizaram a Enciclopédia, reunindo conhecimentos práticos e teóricos de todas as áreas; desde como fazer trabalho de marcenaria à filosofia de Platão. O objetivo da Enciclopédia era divulgar conhecimento; acreditavam os iluministas que com o conhecimento o povo se livraria do obscurantismo da religião e da opressão política. Além desses iluministas houve outros, que se dedicaram à literatura, filosofia e às ciências, como Condillac, La Mettrie. A razão científica, proposta pelo iluminismo, influenciou todo o pensamento filosófico, científico e político do Ocidente, a partir da Revolução Francesa. Mas foi através do pensamento de Hegel que a razão se transformou em doadora de sentido ao pensamento histórico, tendo moldado todo pensamento político da segunda metade do século XIX e grande parte do século XX. Foi ainda no século XIX, que surgiram filosofias como o cientificismo, o marxismo e o pensamento sociológico, filhos diletos do iluminismo. Todavia, foi com as duas guerras mundiais, no século XX, que ficou patente até onde poderiam ir regimes políticos que se consideravam intérpretes exclusivos de uma suposta racionalidade inerente ao processo histórico. O nazismo, o comunismo e o fascismo são os herdeiros desta visão que provêm de Hegel e cuja inspiração este buscou nos iluministas franceses. A noção da racionalidade da história ou de teorias que queriam explicar racionalmente o devir histórico, foram definitivamente enterradas com a Queda do Muro de Berlim. Da mesma forma, a razão científica ficou desacreditada. A ideia de que o mundo é racional e só precisa ser interpretado pela atividade científica é mais uma forma de metafísica que já foi em grande parte abandonada pela ciência moderna. A ciência utiliza-se da razão para desenvolver seu raciocínio, mas não espera mais descobrir uma racionalidade inerente à natureza, como ainda acreditavam os filósofos e cientistas dos séculos XVIII, XIX e parte do XX. Podemos dizer que o uso da razão científica obteve sucesso e desempenhou sua função dentro de um contexto histórico, durante certo período. Falhou, quando se tentou usá-la para embrulhar toda a realidade material e toda a história; quando se tentou empregá-la como fim e não como meio.

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Sartre e a liberdade O pensamento de Sartre parte da fenomenologia de Husserl. Na fenomenologia Sartre vê a possibilidade de pensar a consciência e o mundo não como duas entidades isoladas uma da outra, mas como estrutura básica da intencionalidade, como possibilidade de conservar ao mesmo tempo a soberania da consciência e o peso realista do mundo. Seguindo a linha de Husserl, Sartre elimina a dicotomia entre o fora e o dentro, o mundo da intencionalidade, da psique, e o mundo dos dados positivistas. Em sua consciência, o homem está direcionado para algo que não é ele próprio, ou seja, em sua consciência está sempre fora de si; voltado para fora de si mesmo. Disso resulta que na concepção de Sartre a consciência do homem, o “ser-para-si”, é vazia, baseado no nada (melhor seria dizer no “vazio”). Com isso, Sartre deduz que o homem não é determinado por uma essência anterior, algum tipo de “natureza humana”, seja do tipo que for. Ao contrário,

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como a consciência do “ser-para-si” é vazia, e direcionada para o mundo, para um “ser que não é o que ele é”, o homem é determinado por sua existência e só cria uma essência a partir de seus projetos e de suas ações, de sua relação com o mundo – o “ser-no-mundo”. É a partir desta estrutura, segundo Sartre, que o homem pode ser efetivamente livre. Para Sartre, como para outros existencialistas, existir é para o homem fixar alvos, persegui-los, projetar-se a si próprio em direção ao futuro. É ultrapassando os obstáculos que impedem a consecução destes objetivos, que o homem é livre. É através do transcender dos obstáculos que o “ser-para-si”, com base no nada (vazio) de sua existência, é livre a cada momento – já que Sartre nega o efeito de condicionamentos passados sobre a consciência. Desta forma Sartre afirma que “o homem é condicionado a ser livre”; por sua própria condição ontológica. Mas a liberdade só se forma através do confronto, do embate; daquilo que Sartre chama de “situação”, obstáculo. Por isso o filósofo afirma que “só existe liberdade em situação e só há situação por meio da liberdade”. A questão da responsabilidade é tema importante para o existencialismo, principalmente em Sartre. Para o existencialismo, o homem é mais livre quando se vê obrigado a escolher. A liberdade, além de ser inerente ao homem é valiosa, porque através dela o homem pode exercer sua dignidade e triunfar sobre a infelicidade, à qual é condenado pela vida. E a liberdade escolhida implica assumir responsabilidades, assumir riscos. Em Existencialismo é um humanismo, Sartre escreve: “O homem não é nada mais do que ele objetiva, ele só existe enquanto se realiza, ele é por isso, nada mais do que a soma de suas ações, nada mais do que a sua vida” (Sartre apud Kaufmann, 1989 – tradução nossa). O argumento de Sartre é de que a completa liberdade de que gozamos – ou melhor, à qual estamos condenados – faz com que sejamos totalmente responsáveis por tudo aquilo que pensamos e fazemos. Escreve Sartre em Ser e Nada: “Sou o responsável por tudo, de fato, por minha responsabilidade mesmo, pois não sou o fundamento de meu ser. Portanto, tudo se passa como se eu estivesse coagido a ser responsável.” (Sartre, 2007). Enxergando a questão da liberdade e da responsabilidade sob uma ótica diferente de Sartre, concluímos que somos limitados por uma série de fatores. Aspectos genéticos, sociais, psíquicos, fazem com que sejamos seres condicionados em diversos aspectos, portanto limitados em nossa liberdade. O próprio conceito de liberdade de Sartre tem suas origens em Kant, “quando este definia a liberdade como o poder de começar por si mesmo uma série de modificações. Estas palavras – “por si mesmo” – conduzidas à sua verdadeira significação, querem dizer “sem causa antecedente”, o que é idêntico a “sem necessidade” (Schopenhauer, s/d, p. 36). Muito semelhante à consciência a partir do “nada” ou “vazio”, de O Ser e o Nada. Este tipo de “consciência” preconizada por Sartre mais parece uma peça do vasto (e ainda inesgotável) mostruário da metafísica. Por outro lado, a responsabilidade pertence ao campo da ética, da moral, assim como a justiça e a tolerância. Desta forma, mesmo não existindo uma liberdade plena – e assim dirão alguns que não somos responsáveis pelos nossos atos – devemos afirmar a responsabilidade como valor social e individual, sem o qual o funcionamento das sociedades não seria possível.

Referências FELISCHER, Margot. Org. Filósofos do século XX. São Leopoldo, Ed. Unisinos: 2000, 334 p. KAUFMANN, Walter. Existentialism from Dostoievsky to Sartre. New York. Penguim Books: 1989, 384 p. OLSON, Robert G., Introdução ao existencialismo. São Paulo. Ed. Brasiliense: 1970, 251 p. SARTRE, Jean Paul. O Ser e o Nada. Petrópolis. Editora Vozes: 2007, 773 p. SCHOPENHAUER. Arthur. O livre arbítrio. Rio de Janeiro. Ediouro: s/d, 123 p.

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Sartre e o marxismo “O marxismo [...] permanece, pois, a filosofia de nosso tempo: é insuperável, pois as circunstâncias que o engendraram não foram ainda superadas”. Jean-Paul Sartre

Sartre sempre teve uma relação ambígua com o marxismo. Adere ao materialismo histórico, segundo o qual as relações de produção condicionam o desenvolvimento da cultura e das instituições. Por outro lado, Sartre nunca chegou a concordar como materialismo dialético, que julgava ser uma metafísica – como outros pensadores contemporâneos a Sartre, entre os quais

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Bertrand Russel e Karl Popper. O problema com o materialismo dialético, segundo Sartre, era que este era “projeção” sobre a natureza e não poderia ser provado – apesar de que Sartre admitisse de que eventualmente pudesse existir. Em sua obra Questão de Método (1957), da qual foi tirada a citação acima, Sartre escreve por que permanece existencialista, não se tornando marxista: “O que faz então com que não sejamos muito simplesmente marxistas? É que consideramos as afirmações de Engels e de Garaudy princípios diretores, indicações de tarefas, problemas e não verdades concretas; é que elas nos parecem insuficientemente determinadas e, como tais, suscetíveis de numerosas interpretações: numa palavra, é que elas nos aparecem como ideias reguladoras.” (Sartre, 1972, p. 34). Em toda a obra Questão de Método Sartre – apesar de esta obra ser de certo modo um “acerto de contas” de Sartre com o marxismo – o filósofo francês mantêm uma relação crítica em relação à filosofia marxiana, escrevendo, por exemplo, que: “O marxismo estacionou: precisamente porque esta filosofia quer transformar o mundo, porque visa “o tornar-se-mundo da filosofia”, porque é e quer ser prática, operou-se nela verdadeira cisão que jogou a teoria de um lado e a práxis do outro.” (Ibidem, p.23) No entanto, parece que Sartre reconhece a importância da filosofia marxista, ao considerá-la como a filosofia de seu tempo, resultado de condições econômicas e sociais que ainda não haviam sido ultrapassadas. O marxismo era uma filosofia crítica à burguesia e a seu sistema econômico, o capitalismo. E é exatamente por este fato – a não superação das circunstâncias que o engendraram – que o marxismo permanecia tão forte, na visão de Sartre. Escreve Renato dos Santos Belo: “Quando Sartre, em Questões de Método, explicita a posição do existencialismo em relação ao marxismo é para definir este último como a “filosofia reinante de nossa época”, frente à qual o existencialismo só poderia figurar como uma ideologia, que vive às margens da “filosofia insuperável de nosso tempo” e dela é dependente.” (Belo, 2011). Sartre nunca aderiu explicitamente ao marxismo, apesar de considerá-lo a principal filosofia de sua época. De nossa parte, cabe analisar se nos dias atuais o marxismo ainda permanece atual, e em que aspectos. Como teoria crítica do capitalismo é inegável que as ideias de Marx permanecem atuais. Por outro lado, é preciso abandonar aquelas ideias que acabaram se tornando ideologia dentro do marxismo, como o materialismo dialético, transformado em dogma científico na União Soviética nos tempos stalinistas. Se muitas previsões feitas por Marx e relacionadas com o desenvolvimento da economia não se concretizaram até o momento, pode ser que a médio e longo prazo algumas venham efetivamente a ocorrer. Talvez, a própria dinamicidade do capitalismo, com suas idas e voltas, acabe dando razão ao pensador alemão.

Referências BELO, RENATO DOS SANTOS. Sartre e as marcas de seu tempo: investigação sobre as figuras da subjetividade e da alienação na relação entre existencialismo e marxismo Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/df/site/posdoc/2011.posdoc_renato_belo.pdf> Acesso em 11/12/2011 REALE, GIOVANI, ANTISERI, DARIO. História da Filosofia Vol. III. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 1113 p.

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SARTRE, JEAN-PAUL. Questão de método. São Paulo. Difusão Européia do Livro: 1972, 148 p.

Senso comum Senso comum, segundo Aristóteles é a capacidade geral de experimentar o mundo através dos diversos sentidos. Já para os escritores clássicos e filósofos latinos, esta expressão tem o significado de costume, gosto, modo comum de viver ou de falar (Abbagnano, 2007). Esta interpretação do termo "senso comum" é a que ainda utilizamos atualmente e como ocorreu durante quase toda a filosofia ocidental - pelo menos até o século XVIII, antes de Hume.

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O senso comum ou conhecimento vulgar, segundo a tradição filosófica, é a forma como interpretamos o mundo sem uma análise mais aprofundada; criteriosa. O senso comum se reflete, segundo esta tradição, na vida do dia a dia, nas opiniões, na maneira como culturas e povos encaram determinados temas. Sobre isto escreve o filósofo e educador John Dewey: "Temos de reconhecer que a consciência ordinária do ser humano comum (...) é uma criatura de desejos e não de estudo intelectual, investigação e especulação. O ser humano vive em um mundo de sonhos antes que de fatos, e um mundo de sonhos organizado em torno de desejos, cujos sucesso ou frustração constitui sua própria essência." (Dewey apud Fontana, 2007). Seguindo esta linha de raciocínio de Dewey é interessante comentar a comparação que se poderia fazer entre a cultura popular ou folclore e a cultura (dita) clássica. Como exemplo podemos comparar a cerâmica de Vitalino Pereira dos Santos, "mestre Vitalino" (1909-1963), e a de Pablo Picasso (1881-1973). A de mestre Vitalino, considerada popular, retrata a vida diária do sertão do Nordeste e de suas pequenas cidades: o padre no confessionário, os retirantes, cenas de caça, casamento, músicos, enterros, entre outros temas. A arte de Picasso, mais intelectualizada e abstrata, mostra figuras estilizadas de animais, rostos, cenas de touradas. A arte de mestre Vitalino é em grande parte baseada nos costumes, nas opiniões e nos hábitos da cultura da qual é representante. Picasso desenvolveu estilo próprio, produto de longos estudos e prática, sem necessariamente se limitar ao universo cultural do qual procede. A expressão utilizada por Dewey "criatura de desejos e não de estudo intelectual, investigação e especulação" mostra o quanto o conceito de senso comum e seus sinônimos como "conhecimento vulgar", "consciência ordinária" e outros, estão eivados de platonismo; de um pensamento metafísico. A própria tradição filosófica desde os gregos procura colocar o senso comum como um conhecimento superficial, imperfeito e obtuso sobre o mundo. A mesma diferenciação que muitos fazem entre a cultura popular e a (assim chamada) alta cultura. A alegoria do Mito da Caverna, apresentado por Platão n´A República reflete muito bem essa dissociação. O senso comum é representado pela visão dos homens acorrentados no fundo da caverna, vendo sombras projetadas; a visão real pertence aqueles que conseguem sair da prisão e enxergar a luz do sol e assim contemplar o mundo com mais clareza. Esta visão real do mundo, obtida à luz do sol - ou seja, à luz do conhecimento - foi sempre uma característica do discurso filosófico. Desde a Antiguidade até o período moderno, quase todos os filósofos e sua filosofias declaravam que o verdadeiro conhecimento, além do senso comum, só seria possível através da análise do mundo pelas lentes da filosofia. Esta tendência foi ainda foi mais acentuada, a partir do século III e IV, quando a doutrina cristã passou a ser incorporada ao neoplatonismo para formar a metafísica cristã. A filosofia moderna, a partir de Descartes (1596-1650) e de suas elaborações intelectuais n´O Discurso sobre o método solidifica ainda mais o antagonismo entre o conhecimento comum, o senso comum e o conhecimento filosófico e científico. O filósofo inglês Francis Bacon (15611626), um dos precursores do método científico e da epistemologia, tem como objetivo tornar o pensamento mais claro e sistemático, eliminando ideias preconcebidas que classificou em "ídolos"; ídolo da tribo, ídolo da caverna, ídolo do mercado, ídolo do teatro. O filósofo e fundador dos modernos estudos de história, Giambattista Vico (1668-1744) escreve sobre o senso comum que: “O senso comum é o juízo sem reflexão, comumente sentido por toda uma ordem, todo um povo, toda uma nação, ou por todo o gênero humano”. (Vico apud Cizotti, 2013). Esta divisão entre o senso comum e o assim chamado verdadeiro conhecimento estende-se por toda a filosofia ocidental até praticamente os tempos atuais. Martin Heidegger (1889-1976) se refere à situação de inautenticidade do ser humano, quando este apoia suas opiniões e ideias naquilo que a massa anônima fala e pensa - Heidegger utiliza o termo homem, ( Mann),

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com o artigo neutro das para realçar a falta de um sujeito definido. A opinião do das Man é o senso comum; que não chega às raízes do pensamento e da verdadeira situação do homem, segundo o pensador alemão. Na história da filosofia eram exceções as escolas filosóficas que valorizavam o senso comum. Entre estas correntes de pensamento estavam os: a) pensadores da linha empirista inglesa, já que o empirismo enfatiza o papel da experiência sensorial na formação de ideias; e b) os pensadores materialistas, que se antepunham a toda a visão idealista (metafísica). Dentre estes podemos destacar Karl Marx, que em sua em sua obra Teses sobre Feuerbach escreve em sua Segunda Tese: ” A questão de saber se ao pensamento humano pertence a verdade objetiva não é uma questão da teoria, mas uma questão prática. É na práxis que o ser humano tem de comprovar a verdade, isto é, a realidade e o poder, o caráter terreno do seu pensamento. A disputa sobre a realidade ou não realidade de um pensamento que se isola da práxis é uma questão puramente escolástica." (Marx, 1982) A filosofia sempre defendeu a dicotomia entre o senso comum e o verdadeiro pensamento (que para seus cultores era evidentemente a filosofia), porque se considerou a detentora da verdade, das opiniões e visões corretas sobre a realidade, sobre o mundo. No entanto, a partir da crise da metafísica iniciada por Hume e Kant, aprofundada por Nietzsche e definitivamente estabelecida pela filosofia pós-moderna, fica cada vez mais difícil falar de um "discurso verdadeiro" sobre a realidade, em contraposição a outros discursos "sem reflexão" como havia escrito Vico. O próprio discurso filosófico, segundo o pensador americano Richard Rorty (19312007), é um entre vários outros discursos e não tem a vantagem ou exclusividade da verdade coisa que segundo Rorty não existe. A filosofia seria assim apenas um discurso que se utiliza de ferramentas específicas, não necessárias no dia a dia do senso comum, e tratando de temas específicos à sua área - sem que isto signifique que seja mais verdadeiro que outros. A ciência do passado também dispunha de um discurso que estabelecia uma nítida divisão entre o senso comum do cidadão e os métodos de pesquisa cientista. O que, no entanto, efetivamente acontecia - segundo algumas interpretações - é que o homem da rua não persegue um objetivo específico em seu contato com o mundo, quando emite suas opiniões e vive seus costumes. Por outro lado, o pesquisador faz sua abordagem com métodos e objetivos predefinidos e coletando fatos vai fortalecendo sua hipótese científica, até que possa fundamentar sua teoria. A questão entre o senso comum e o conhecimento filosófico ou científico pode ser considerada um falso dilema. Em última instância a origem do pensamento elaborado - seja a filosofia ou a ciência - está no próprio senso comum, criador dos costumes e das opiniões, mas também dos mitos, das religiões, da tecnologia e da moral. É a partir do contato com o mundo; da prática do dia a dia na caça, na coleta, na agricultura ou no pastoreio - como avaliam os empiristas e materialistas - que os humanos começaram a desenvolver sua cultura. Então, através da interação entre ideias existentes e a realidade concreta desenvolveu-se cada vez mais o pensamento abstrato. Tudo, no entanto pela interação entre os organismos e o meio ambiente - como já vem acontecendo há 3,8 bilhões de anos.

Referências Abbagnano, Nicola. Dicionário de filosofia - verbete senso comum. São Paulo. Editora Martins Fontes: 2007, 1210 p. A filosofia do senso comum. Disponível em <http://revistavilanova.com/a-filosofia-do-sensocomum/>. Acesso em 10/11/2013.

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A filosofia da ciência de Rubem Alves. Disponível em: <http://ciberteologia.paulinas.org.br/ciberteologia/wpcontent/uploads/2009/05/01afilosofiadacienciaderubemalves.pdf> Acesso em 8/11/2013. Arte popular no Brasil: Mestre Vitalino. Disponível em: <http://artepopularbrasil.blogspot.com.br/2010/11/este-blog-sera-inaugurado-com-uma.html>. Acesso em 11/11/2013 Cerâmica de Pablo Picasso. Disponível em: <http://www.masterworksfineart.com/inventory/picasso/ceramics? kmas=1&kmca=picasso+ceramics&kmag=picasso+ceramic&kmkw=picasso %20ceramics&kmmt=b&gclid=CNu9pYOR3boCFSdp7AodrwUAHg>. Acesso em 11/11/2013. Empirismo. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Empirismo>. Acesso em 11/11/2013

Vida eterna, prazer eterno O que será este impulso, a vontade inconsciente que todo ser vivo tem de sobreviver? E no ser humano, uma vontade de sobreviver eternamente?

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No caso de nós, humanos, pressupõem-se que esta sobrevivência seja de modo positivo, ou seja, que traga ao indivíduo uma situação prazerosa por longo tempo - o máximo possível. Mas, e quando não é assim? Não há casos em que indivíduos, dotados de todas as suas faculdades, não têm mais vontade de viver, por causa de profundo desconforto provocado, por exemplo, por uma doença? Há casos como esses relatados na literatura, em filmes, e muitos conhecemos situações como esta na vida real. Assim, há situações nas quais nem todos os humanos têm vontade de viver ou sobreviver pelo menos em condições ditas terrenas - eternamente. Quando chega a dor provocada pela doença de qualquer tipo, a vontade de viver se reduz. Poderia se admitir que a maior parte das pessoas gostaria de viver muito, eternamente, se as condições prazerosos de que gozam no momento fossem mantidas. Isto quer dizer que a maior parte das pessoas não quer simplesmente existir eternamente; quer, em outras palavras, eternizar sua situação de prazer. Mesmo se no momento não vivem em circunstâncias boas, agradáveis, prazerosas, esperam que no além (no Paraíso, Plano Astral, ou outra denominação qualquer) possam "viver olhando a face de Deus" (alguém sabe exatamente o que isso significa?), "encontrar os entes queridos" (esquecem das brigas, dos ressentimentos). O anseio, a sede pela vida eterna é principalmente a vontade de eternizar a fruição dos prazeres da vida terrena, sejam quais forem (intelectuais, sensoriais, emocionais, etc.). Não se pensa, por exemplo, como esta situação aparentemente prazerosa - pelo menos sob a perspectiva daqui do "mundo terreno" - será por toda a eternidade. Não é por outra razão que existem relatos, histórias e anedotas de quanto seria tedioso o Paraíso. Por isso, muitas religiões, como o hinduísmo e o budismo (principalmente em suas versões populares) e correntes de pensamento religioso, como os espíritas kardecistas, fazem da vida além-túmulo uma atividade agitada e variada, com toda sorte de peripécias. Encarnações diversas (passagens por muitas vidas), inclusive no reino animal e no reino das divindades (no caso das religiões orientais), encontro com seres de outros planetas, etc. Enquanto isso, as religiões monoteístas (qual seria a relação entre um forte monoteísmo e a falta da metempsicose?) não têm muitas imagens e ideias sobre o além. Os relatos sobre o mundo post mortem são raros e as poucas histórias existentes são baseadas em alegorias e lendas tecidas sobre a vida de santos e pessoas admiradas como extraordinárias Concluindo, temos que a "vontade de viver eternamente", dada por muitos como fundamento de que tal vida eterna deve existir, não é nada mais que uma vontade de fruir prazer por um longo tempo - já que não sabemos o que é eternidade. Aqui ainda não levantamos a questão de como seria a nossa personalidade nesse mundo por vir. Se já aqui, no curto espaço de tempo da vida humana, notamos alterações em nossas personalidades - algumas para melhor e outras para pior -, o que dizer das mudanças que podem ocorrer durante uma "eternidade"? Isso sem mencionar - ou perguntar - o que realmente somos; o consciente, o inconsciente ou os impulsos? Somos o resultado desta constante interação entre nossa constituição genética, nossa herança cultural e nossa capacidade (inata, mas nem sempre consciente) de fazer interagir estas heranças. Então, admitindo de que existe qualquer tipo de sobrevivência depois da morte, o que de nós vai para o "além"?

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