NOTAS DE SOCIOLOGIA

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Notas de Sociologia

Ricardo Ernesto Rose


Ricardo Ernesto Rose Graduado em Filosofia (Centro Universitário Claretiano) Pós-Graduado em Filosofia (Universidade Cândido Mendes) Pós-Graduado em Sociologia (Universidade Gama Filho)

Notas de Sociologia

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Copyright © Ricardo Ernesto Rose (março 2019)

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Coordenação, revisão, design e diagramação: Ricardo Ernesto Rose

Capa: Gravura de Max Pechstein (1881-1955) 3


Índice

A arte na Idade Média e no Renascimento (6-8) A atualidade do pensamento de Josué de Castro (9-10) A crise civilizacional e a economia (11-13) A indústria cultural (14-16) A obra de Henry Wallon e sua influência na psicologia da educação (17-22) A questão da religião em Comte (23-25) A reforma protestante e a sociedade moderna (26-29) A revolução verde e a oferta de alimentos (30-31) Agricultura fome e desperdício de alimentos (32-35) Anti-intelectualismo? (36-37) Aspectos do imaginário popular na Baixa Idade Média (38-40) Atualidade da obra “O suicídio” de Durkheim (41-43) Aspectos sociológicos do capitalismo avançado (44-47) Capitalismo e a questão ambiental (48-52) Consumo e sensação de tempo (53-54) Correntes sociológicas e a questão ambiental (55-57) Durkheim e o fato social (58-59) Educação na Idade Média (60-61) Existe o tipo brasileiro? (62-63) Fatos contraditórios no século XX? (64-66) Florestan Fernandes e sua obra sociológica (67-69) Hobbes e a violência (70-71) Mais consumo é progresso? (72-73) Melhora e estagnação (74-76) Migrações e ambiente (77-78) No país das declarações (79-80) Novo êxodo rural afetará as cidades (81) O automóvel e o espaço urbano (82-83) O conceito de solidariedade em Durkheim (84-85) O consenso de Washington e seu efeito na educação (86-88) O contexto socioeconômico no qual surgiu a Escola de Frankfurt (89) 4


O desenvolvimento da sociologia no Brasil (90-94) O ensino da sociologia no nível médio (95-96) O fenômeno das fake news (97-100) O fim da guerra fria e as políticas neoliberais das últimas décadas do século XX (101-103) O surgimento dos regimes autoritários (104-109) Obras seminal “A origem das espécies” continua atual (110-111) Os índios e nós, os selvagens! (112-113) Pensamento político (114-115) Políticas educacionais no Brasil (116-117) População e recursos (118-120) Produção, população, poluição e pauperização (121-122) Protestantismo e capitalismo (123-124) Quem tem fome, tem pressa! (125-129) Sobre a cultura popular (130-132) Trabalho e produção (133-134) Viajantes e a antropologia (135-137)

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A arte na Idade Média e no Renascimento Há uma grande diferença entre a visão da arte no período medieval e no renascentista. Na Idade Média, principalmente no primeiro milênio, a arte era completamente influenciada pela religião cristã. Os temas dos afrescos, que se desenvolveram em Bizâncio e depois foram incorporados pelo cristianismo ocidental, giravam basicamente em torno de pinturas retratando os santos da Igreja, Jesus e Maria. Alguns textos importantes foram ilustrados com iluminuras (ilustrações em manuscritos feitos por monges copistas), mas de pouca sofisticação pictórica. Na arquitetura, imperava o estilo românico, a partir do século X, até pelo menos até o início do século XIII. O estilo era uma arquitetura eclesiástica, que havia herdado muitas técnicas de estilo e construção dos antigos templos romanos e simbolizava o poder das ordens monásticas que dominavam o universo da cultura medieval desde o século VI. As igrejas românicas eram geralmente construídas junto a mosteiros e faziam parte de uma sociedade estática e fechada em si. O estilo gótico (nome pejorativo, dado pelos intelectuais renascentistas a este estilo) foi gradualmente substituindo o românico, a partir dos séculos XIII e XIV. As catedrais góticas eram construídas em cidades com grandes recursos financeiros – já que sua construção era cada e requeria muitos anos de investimento –, geralmente provenientes de fundos arrecadados com festas religiosas e pelo fato das cidades serem locais de peregrinação. A cidade de Colônia, por exemplo, era famosa por possuir as ossadas dos três reis magos, o que atraiam anualmente milhares de peregrinos. A catedral gótica era o centro da vida da comunidade. Abrigava geralmente uma escola e uma biblioteca e, por vezes, era usada como câmara municipal. A catedral gótica, segundo Burns é “expressão do novo espírito secular, que resultara do crescimento das cidades e do progresso do esclarecimento” (Burns, 1971, p. 388). Convêm lembrar que a Idade Média não é um período uniforme, que se estende por cerca de 1000 anos entre o século V e o século XV. A partir do século X, a cultura ocidental sofre uma série de transformações – algumas delas têm origem no século VIII com o renascimento carolíngio – que implicam mudanças sócias, econômicas e culturais. O comércio e as comunicações entre as comunidades voltam a crescer, depois de séculos de paralisia. A cultura volta a expandir-se com a proliferação das escolas dominicais dos mosteiros e a fundação das primeiras universidades. É neste período que a doutrina da Igreja começa a tomar corpo, com a instituição da eleição do papa por um grupo de cardeais (século XI), da criação dos sete sacramentos, da Inquisição e do Purgatório (século XIII). Estas mudanças culturais e sociais também provocam alterações nas artes. A partir do século XIII podemos observar uma arte ainda tipicamente medieval, convivendo com o início do humanismo na Itália (que em seguida daria origem ao Renascimento). Este movimento tem suas origens nas cidades de Florença, Pisa, Gênova e Veneza, que desde o século XII viviam um intenso crescimento do comércio e da cultura. Sobre este período escreve Luc Benoit: “Por outro lado, a clientela dos artistas modificava-se e a riqueza tinha mudado de mãos. A Igreja perdera

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sua autoridade e seu poder. A aristocracia feudal arruinada pela guerra foi substituída por chefes de bandos (condottiere), por banqueiros, por grandes burgueses que tinham suas fontes de receita nas cidades livres alemãs e italianas. Em Veneza, em 1407, fundou-se a Casa di San Giorgio, o primeiro banco público da Europa. A arte encaminhou-se para os palácios particulares, para os palacetes dos burgueses enriquecidos pelo comércio, de que resultou do quadro feito à medida das habitações urbanas.” (Benoist, s/d, p.49). Sintetizando, poderíamos caracterizar a visão artística do período medieval e renascentista da seguinte maneira: Idade Média: - Universo cultural dominado pela religião e a preocupação com o além; - Desvalorização do corpo, do prazer e da curiosidade intelectual; - Universo estático, dominado pela vontade divina; - Sociedade hierarquizada em três classes: nobres, religiosos e servos; - Quase não havia apoio à arte, só fomentada pela igreja; - Pouca tradição artística (afrescos e iluminuras) e poucos artistas (monges geralmente); Renascimento: - Preocupação com este mundo, humanismo, naturalismo; - Valorização e reinterpretação do corpo, curiosidade intelectual, pesquisa científica; - Universo dinâmico, antropocêntrico, heliocentrismo, universo infinito (G. Bruno); - Sociedade em transformação, formação da burguesia comercial, queda do feudalismo; - Apoio à arte nas cidades, mecenas, igreja apoia a nova arte de influência clássica; - Escolas de artistas, artistas famosos (Michelângelo, da Vinci, Rafael, Dürer), desenvolvimento das artes plásticas, poesia e literatura. Esta divisão é apenas uma generalização, já que a arte na Idade Média foi encarada de várias maneiras e a passagem para o Renascimento também não se deu abruptamente. Por outro lado, não é possível abstrair a arte do ambiente social e econômico, como Friedrich Engels já havia escrito.

Bibliografia: ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Rio de Janeiro. Editora Globo: 1989, 224 p.

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BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental Vol I. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 581 p. BENOIST, Luc. História da Pintura. Lisboa. Publicações Europa-América: s/d, 115 p. ROMEIRO, Artieres E.; DALLA VECCHIA, Ricardo B.; KRASTANOV, Stefan V. Estética. Batatais. CEUCLAR, 2007, 100 p.

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A atualidade do pensamento de Josué de Castro

O espectro da fome sempre assustou a humanidade. Em algumas casas no interior do Brasil ainda encontramos antigos quadros que retratam Nossa Senhora, encimada pelos dizeres: “Nossa Senhora livrai-nos da guerra, da peste e da fome.” Memória de antigos tempos, principalmente na Europa, quando parte da população rural vivia sob a ameaça destas três pragas da humanidade. No Brasil também houve crises de fome em diversas épocas, principalmente no interior do Nordeste, o que provocou mortes, desagregação social e o consequente deslocamento de grandes contingentes populacionais para as capitais situadas no litoral. Um dos maiores estudiosos do problema da fome no Brasil foi o médico, professor, sociólogo e escritor Josué de Castro. Se ainda fosse vivo, completaria 105 anos em 2013. O grande mérito deste intelectual foi estudar o problema da fome e de suas causas. Não somente sob o aspecto histórico, mas utilizando-se dos mais avançados conceitos da bioquímica e da fisiologia de sua época. Com suas análises, Josué de Castro abriu novos campos de estudo na sociologia, geografia, antropologia e economia. Já na década de 1930, o grande cientista identificaria claramente as razões da formação dos mocambos (habitações pobres) nos mangues de Recife. “Por exemplo, não pode haver dúvida”, escreve Josué de Castro, “de que uma das causas diretas da miséria urbana de Recife é o estado de miséria rural condicionado pelo latifundismo da canade-açúcar. Na grande área do Estado, de monocultura açucareira, vive a população trabalhadora num estado de grande pauperismo, resultados dos ínfimos salários pagos nesta zona”. (Josué de Castro, 1965). O estudioso descreve assim, uma das causas da desestruturação urbana de Recife e de suas consequências; cujas origens estavam nos problemas fundiários localizados no interior do estado. Ainda hoje, o Brasil se ressente de um ordenamento dos problemas urbanos – falta de transportes, segurança, saneamento, saúde e educação – em parte originados pelo deslocamento de grandes massas populacionais do campo, à procura de melhores condições de vida na cidade. Para agravar a situação o estado, em seus três níveis administrativos, não alocou recursos suficientes para fazer frente a estes problemas, colocando os grandes centros urbanos na situação em que se encontram atualmente. Autor de várias obras tratando do problema da fome e da pobreza no Nordeste, Josué de Castro lançou seu principal livro em 1951, intitulado Geografia da Fome. Seu conhecimento do problema era tão profundo, que em 1952 foi eleito presidente da FAO (organização das Nações Unidas dedicada à agricultura e aos alimentos). Terminada sua gestão na FAO, Josué de Castro voltou ao Brasil, onde ingressou na política e desenvolveu um Plano Nacional de Alimentação. Eleito embaixador em Genebra em 1962, tem seus direitos caçados pela Revolução de 1964. Depois disso, impedido de voltar à sua pátria, torna-se professor universitário em Paris, onde vive até a sua morte em 1973.

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A obra de Josué de Castro ainda inspira estudos especializados no Brasil e no exterior, como um dos maiores pesquisadores do problema da fome – ainda mais agora quando este problema volta a ameaçar muitas regiões do globo. Um dos pioneiros também na questão ambiental relacionada com o desenvolvimento e a geopolítica, os livros de Josué de Castro merecem ser conhecidos por todos aqueles que se preocupam com a situação social no Brasil e a questão alimentar no mundo.

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A crise civilizacional e a economia O mundo todo está em crise. Não somente a civilização ocidental, mas todas as culturas, cada uma a seu modo, estão sentindo os efeitos desta situação. A crise é uma mudança nas relações sociais, provocada por alterações na economia, na sociedade e na cultura. Escreve Edgar Morin: “Nossas sociedades são máquinas não triviais no sentido em que elas também conhecem sem cessar crises políticas, econômicas e sociais. Qualquer crise é um acréscimo de incertezas.” (Morin, 2007, p. 82). A crise que ora passamos tem origens remotas; alguns a situam no Renascimento, na época das Grandes Navegações e no surgimento do Mercantilismo. Outros estabelecem o surgimento do capitalismo industrial, no final do século XVIII, como marco inicial da crise. Fato é que o processo se tornou mais agudo depois da 2ª Grande Guerra Mundial, durante as décadas de 1950 a 1980, quando o capitalismo industrial se espalhou por todo o mundo, criando novos mercados fornecedores de matérias primas e consumidores de produtos. Alguns aspectos desta grande expansão do capitalismo industrial no pós Guerra, foram: - Surgimento do bloco econômico capitalista, liderado pelos Estados Unidos e seus aliados. A União Soviética e seus países satélite, formavam o bloco socialista (dito comunista). No meio destes dois blocos, estavam os países do Terceiro Mundo; mais de 90 nações em diferentes graus de desenvolvimento; - Ajuda financeira e técnica (fornecida pela USAID, Banco Mundial, FMI, por exemplo), para que países estratégicos do Terceiro Mundo pudessem se desenvolver (por motivos políticoestratégicos, como a Coréia do Sul, a Índia e a Pérsia; ou por motivos político-econômicos, como a maior parte dos países da América do Sul); - Expansão das empresas multinacionais dos diversos setores – automobilístico, metalúrgico, químico, construção, eletroeletrônico – se estabelecendo em países que ofereciam infraestrutura, mão de obra e mercado consumidor. Estas indústrias acabaram fomentando diversas cadeias de produção nos países, criando condições para que se desenvolvesse também uma indústria nacional; - Estas mudanças econômicas criaram diversas mudanças culturais e sociais nos países, propiciando a ampliação da classe média e provocando o deslocamento de milhões de pessoas do campo para a cidade. A introdução da Revolução Verde também ajudou a reduzir os postos de trabalho no campo, aumentando a migração. Este o quadro geral. Ao longo dos anos 50, 60,70 e 80 o capitalismo se expandiu e modernizou. Sobre este período, escreve Octavio Ianni: “Este é o reino da razão instrumental, técnica ou subjetiva, permeando progressivamente todas as esferas da vida social. Em âmbito local, nacional, regional e mundial. No mesmo curso da modernização do mundo, simultaneamente à

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globalização do capitalismo, prossegue a generalização do pensamento pragmático e tecnocrático.” (Ianni, 2007, p. 103). Neste período a tecnologia – notadamente a eletrônica – tem um grande desenvolvimento a partir da década de 70, como resultado da corrida espacial e da Guerra Fria. Diversas tecnologias desenvolvidas durante este período, terão uma grande influência em uma expansão maior ainda do capitalismo, na década de 90. Em final dos anos 80, especificamente em 1989, ocorre a simbólica Queda do Muro de Berlim; em 1991 a União Soviética deixa de existir. Desaparece o socialismo e seus ideais (somente ideais) e expande-se mais ainda o capitalismo, aliado à abertura de novos mercados consumidores e fornecedores (os antigos países socialistas) e à expansão do liberalismo. Cresce a economia de mercado, aumenta o fluxo de capitais, as comunicações (apoiadas na informática e na internet) e o transporte; enfim, é o processo conhecido como globalização. Escreve Zygmunt Bauman: “Esta nova e desconfortável percepção das “coisas fugindo ao controle” é que foi articulada (com pouco benefício para a clareza intelectual) num conceito atualmente na moda: o de globalização.” (Bauman, 1999, p. 66-67). A expansão acelerada do capitalismo a todos os rincões da terra acabou acelerando o aparecimento de uma crise maior, que se manifestou em 2008. Antes disso, o sistema já vinha apresentando diversos problemas, como: - Exploração da mão de obra em países pobres. São comuns as empresas que montam uma base de produção em um país; com uma representação escolhem fornecedores e impõem preços de compra que permitem pouquíssima margem de lucro; - Desemprego em massa. A automação das linhas de produção e a substituição de muitas profissões acabaram criando uma multidão de desempregados e achatamento de salários. Apenas em algumas economias, como a chinesa, a indiana e a brasileira se mantêm a demanda por empregados; estes quase sempre com baixos salários; - Endividamento de grandes contingentes da população, incentivados pela propaganda, que tem como objetivo o aumento do consumo; - Crise financeira nos Estado Unidos que acabou dando origem à crise do capitalismo em 2008, a maior depois da de 1929; O capitalismo passa por uma grande crise. Conceitos válidos até a pouco, como “estado mínimo”; “autorregularão dos mercados”; “desregulamentação da economia”; “flexibilização do trabalho”, entre outros, estão bastante desacreditados. Aliada à crise econômica, o mundo enfrenta uma crise ambiental, que terá – cada vez mais – profundas influências na economia.

Bibliografia: O mundo está confrontado com uma crise estrutural e não somente conjuntural. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=34916

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Acesso

em

3/09/10.

Conjuntura da Semana. Uma leitura das 'Notícias do Dia' do IHU de 14 a 20 de maio de 2008.

Disponível

em

http://www.ihu.unisinos.br/uploads/publicacoes/edicoes/1217609769.2027pdf.pdf. Acesso em 2/09/10. Crise da civilização: A união de todas as crises. Entrevista especial com Jean Pierre Leroy. Disponível

em

http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_entrevistas&Itemid=29&task=entrevista&id=2 5200

Acesso

em

4/09/10.

BAUMAN, Zygmunt. Globalização – As consequências humanas. Jorge Zahar Editor. Rio de Janeiro:

1999,

145

p.

IANNI, Octavio. Teorias da Globalização – 14ª ed. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: 2007,

271

p.

MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo – 3ª ed. Editora Sulina. Porto Alegre:

2007, 120 p.

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A indústria cultural A indústria cultural surgiu em uma fase avançada do capitalismo, entre o final do século XIX e início do século XX, tendo estreita relação com o aparecimento dos meios de comunicação de massa e a produção de mercadorias em grande diversidade e quantidade: a produção em massa. Este desenvolvimento se deu inicialmente nos Estados Unidos, que neste período despontava como a sociedade capitalista onde, devido a uma série de fatores, ocorriam as maiores inovações na maneira de produzir e vender mercadorias. Foram os americanos que, ainda antes da 1ª Grande Guerra, introduziram a linha de produção, que padronizava e barateava mercadorias. Foi também nesse período que se desenvolveram as já existentes e se criaram novas tecnologias midiáticas, como a fotografia, o linotipo (que revolucionou as técnicas de composição das páginas dos jornais), o rádio e o cinema. O desenvolvimento tecnológico propicia de um lado a disseminação dos veículos de comunicação e de entretenimento em massa; por outro introduz novas tecnologias de produção, aumentando o volume de produtos fabricados. Para aumentar cada vez mais a demanda do que é fabricado utilizando-se dos veículos de comunicação, surge a propaganda. Esta atividade, que apareceu ainda na primeira década do século XX, usa os diversos tipos de mídia para transmitir mensagens comerciais, culturais e ideológicas (políticas e religiosas) aos seus leitores, ouvintes e assistentes. Este é o contexto social no qual Adorno e Horkheimer, através de suas análises, desenvolvem o conceito de “indústria cultural”. Em sua acepção inicial esta classificação se aplica às produções ditas culturais – objetos de arte, arquitetura, cinema, música, literatura, etc. – mas não à simples propaganda comercial. Adorno e Horkheimer iniciam sua análise da sociedade capitalista no início da década de 1930, pouco antes do Partido Nacional Socialista Trabalhista Alemão (leiase partido nazista) ser majoritariamente eleito. Os pensadores estudavam a sociedade alemã, mas também tinham os olhos voltados para o que acontecia nos Estados Unidos, já naquela época a “meca” do capitalismo, como se pode depreender de vários exemplos apresentados na obra Dialética do Esclarecimento. De suas pesquisas, Adorno e Horkheimer concluem que na indústria cultural a arte se transforma também em mercadoria, tornando-se sujeita às leis da oferta e procura. Neste processo, a verdadeira arte erudita e arte popular desaparecem com a indústria cultural, pois esta não permite a participação crítica de seus espectadores. Desta forma, encoraja-se uma atitude acrítica, já que se oferece ao público apenas o que ele quer (ou pensa querer); o que faz com que este passe a ter uma atitude passiva em relação às produções culturais apresentadas. Escrevem Adorno e Horkheimer: “Sob o poder do monopólio, toda cultura de massa é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade

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de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem.” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 100) Este o aspecto “mercantilista” da indústria cultura, onde o público é levado a gostar daquilo que, de uma maneira ou de outra, já vinha gostando – mais do mesmo, como dizem os críticos. “Não somente os tipos das canções de sucesso, os astros, as novelas ressurgem ciclicamente como invariantes fixos, mas o conteúdo do espetáculo é ele próprio derivado deles e só varia na aparência” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 103). Nesta situação o público almeja aquilo que os “donos da indústria cultural” querem vender, aquilo que estes (talvez por pesquisas) sabem que será consumido em grande quantidade; estilos de roupa, toda sorte de entretenimento, objetos de consumo em geral. Uma das principais atribuições da indústria cultural é incentivar o consumo, não a análise ou o raciocínio; incentivar o consumo do produto e não a incorporação do conhecimento. Para Adorno e Horkheimer, a indústria cultural surgiu junto – e também através – do cinema, que já em seu início ditava padrões “preferencialmente aceitáveis” de consumo (roupas, veículos, costumes, cultura). Alguns autores, como Nicola Abbagnano, afirmam que a indústria cultural é especificamente a manipulação das consciências, através dos meios de comunicação. Com isso, diminuem-se todas as atitudes críticas, facilitando assim a reprodução ideológica do sistema. Em relação a isso lemos em Adorno e Horkheimer: “Mas a afinidade original entre negócios e diversão mostra-se em seu próprio sentido: a apologia da sociedade. Divertir-se significa estar de acordo. Isso só é possível se isso se isola do processo social em seu todo, se idiotiza e abandona desde o início a pretensão inescapável de toda obra, mesmo da mais insignificante, de refletir em sua limitação ao todo. Divertir significa sempre: não ter que pensar nisso, esquecer o sofrimento até mesmo onde ele é mostrado. A impotência é sua própria base. É na verdade uma fuga, mas não, como afirma, uma fuga da realidade ruim, mas da última ideia de resistência que essa realidade ainda deixa subsistir. A liberação prometida pela diversão é a liberação do pensamento como negação.” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 119) Este o aspecto ideológico da indústria cultural. Foi, por exemplo, a maneira como a cultura de massa produzida pelos Estados Unidos – utilizando-se das mídias como a imprensa, o cinema, o rádio, a TV e, mais recentemente, a internet – conseguiu ao mesmo tempo divulgar toda a ideologia implícita no american way of living. O individualismo, a meritocracia, o antiintelectualíssimo, a valorização do consumo, o anticomunismo, entre outros, foram “constructos” culturais e ideológicos incorporados a indústria cultural americana, espalhados por todo mundo. Uma boa união entre negócios e ideologia, com interesse em manter e expandir o “negócio do capitalismo”. A indústria cultural desenvolveu-se cada vez mais com o próprio capitalismo, principalmente ao longo dos últimos sessenta anos. Utilizando-se das tecnologias mais sofisticadas – que muitas vezes são seu subproduto – a indústria cultural está atuante, faturando alto e, por isso mesmo, trabalhando para manter o status quo. Não é preciso dizer quais grupos estão por trás desta engrenagem, levando o homem e o planeta até este estado:

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“A indústria cultural realizou maldosamente o homem como ser genérico. Cada um é tão-somente aquilo mediante o que pode substituir todos os outros: ele é fungível, um mero exemplar. Ele próprio, enquanto indivíduo é absolutamente substituível, o puro nada, e é isso mesmo que ele vem a perceber quando perde com o tempo a semelhança.” (Adorno & Horkheimer, 2006, p. 120)

Bibliografia ADORNO, Theodor W. & HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro. Jorge Zahar editor. 2006: 223 p. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1210 p. INDUSTRIA CULTURAL em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ind%C3%BAstria_cultural> acesso em 24/01/12

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A obra de Henry Wallon e sua influência na psicologia da educação Dados biográficos Henry Paul Hyacinthe Wallon nasceu na França em 1879. Formado em filosofia em 1902, cursou também medicina, formando-se em 1908. Atuou como médico do exército francês durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Seu contato com ex-combatentes com lesões cerebrais, fez com que reavaliasse seus conceitos de neurologia, desenvolvidos no trabalho com crianças deficientes. A partir de 1920, atuando como médico de instituições psiquiátricas, Henry Wallon foi convidado a organizar as conferências sobre psicologia da criança na Universidade de Sorbonne e em outras instituições de ensino superior. O cientista permaneceu responsável por estas atividades até 1937. Em 1925, Wallon funda em Paris um laboratório de atendimento e pesquisas de crianças tidas como deficientes. No mesmo ano publicou sua tese de doutorado. Em 1931, Wallon viaja para Moscow, onde é convidado a integrar o Círculo da Rússia Nova. A proposta deste grupo, formado por intelectuais de várias áreas, era aprofundar o estudo do materialismo dialético e examinar sua aplicação em várias áreas do conhecimento. Foi durante sua permanência na Rússia que Wallon travou contato com Lev Vygotsky, filósofo, psicólogo e criador de um novo método pedagógico. Estudioso do marxismo, Wallon filia-se ao partido comunista em 1942, enquanto que paralelamente atuava na Resistência Francesa, lutando contra a ocupação nazista. Neste período, (1941-1945) Wallon permanece na clandestinidade, retomando sua atividades regulares ao final da Segunda Guerra. A partir de 1946, Wallon preside a seção francesa da Liga Internacional da Educação Nova, fundada em 1921, e que congregava pedagogos, psicólogos e filósofos críticos do ensino tradicional. Wallon irá presidir este grupo de estudos até sua morte, em 1962. Após a 2ª Grande Guerra, Wallon é convidado pelo governo francês a participar de uma comissão destinada a reestruturar o setor educacional da França. O projeto, conhecido como Langevin-Wallon, devido à participação inicial do físico Paul Langevin, morto em 1947, introduziu uma total reformulação do sistema educacional da França, tornando-o um dos mais eficientes do mundo. “A diretriz norteadora do Projeto é construir uma educação mais justa, para uma sociedade mais justa. As ações propostas, repousam sobre quatro princípios: Justiça – qualquer criança, qualquer jovem, independentemente de suas origens familiares, sociais, étnicas, tem igual direito ao desenvolvimento completo; a única limitação que pode ter é de suas próprias aptidões. Dignidade igual de todas as ocupações – todas as ocupações, todas as profissões se revestem de igual dignidade, ou seja, o trabalho manual, a inteligência prática não podem ser

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subestimados. A educação não deverá fomentar o predomínio da atividade manual ou intelectual em função de razões de origem de classe ou étnicas. Orientação – o desenvolvimento das aptidões individuais exige primeiro orientação escolar, depois orientação profissional. Cultura geral – não pode haver especialização profissional sem cultura geral. Em um estado democrático, no qual todo trabalhador deve ser um cidadão, é indispensável que a especialização não seja um obstáculo para a compreensão dos problemas mais amplos; só uma sólida cultura geral libera o homem dos estritos limites da técnica; a cultura geral aproxima os homens, enquanto a cultura específica os afasta.” (Laurinda R. Almeida, 2007, pg. 75). Depois de uma vida produtiva, dedicada ao estudo da psicologia e da reformulação dos métodos pedagógicos, Wallon falece em Paris em 1962.

Principais obras de Wallon Em francês: Le délire de persécution – le délire chronique à base d´interpretation (O delírio de perseguição – o delírio crônico interpretado), Paris 1909. La conscience et la vie subconsciente en Nouveau traité de psychologie (A consciência e a vida subconsciente em Novo em Novo tratado de psicologia), Paris, 1920-1921. L`enfant turbulent (A criança confusa), Paris, 1925. La vie mentale (A vida mental), Paris, 1932. L´acte de la pensée (O ato do pensamento), Paris, 1942. Em português: Evolução psicológica da criança, Rio de Janeiro, s.d. Psicologia e educação na infância, Lisboa, 1975. Objetivos e métodos de psicologia, Lisboa, 1975. Origens do pensamento da criança, São Paulo, 1989.

O pensamento de Henry Wallon Em seus estudos da criança, Wallon estabeleceu que esta passa por cinco estágios de desenvolvimento, cada um com suas características próprias:

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1.

Estágio Impulsivo-Emocional, de 0 a 1 ano. Nesta fase do indivíduo, predominam atividades

que visam a exploração do próprio corpo, em relação aos incentivos internos e externos. Os movimentos da criança ainda são desordenados, bruscos, devido ao enrijecimento e relaxamento muscular. Neste processo, são selecionados os movimentos que propiciam aproximação com o outro, para cuidar das necessidades, e que passam a funcionar como instrumentos expressivos de estado de bem-estar e mal-estar. Na segunda fase deste processo (3 a 12 meses de idade) já é possível reconhecer reações emocionais diferenciadas, como raiva, medo, e alegria, etc. 2.

Estágio Sensório-Motor e Projetivo, dos 12 meses aos 3 anos. A criação já inicia a

exploração do espaço físico, através de processos como agarrar, segurar, manipular, apontar, etc., acompanhados por gestos. Inicia-se também a discriminação dos objetos, separando-os. Toda esta atividade motora e sensória prepara as aptidões afetivas e cognitivas, base do próximo estágio. 3.

Estágio do Personalismo, que ocorre dos 3 aos 6 anos. Nesta fase, o indivíduo já tem a

noção de ser um indivíduo separado dos outros. Através de processos de oposição (expulsão do outro) e de sedução (assimilação do outro) a criança inicia a separação do eu e do outro. 4.

Estágio Categorial, dos 6 aos 11 anos. Nesta fase, a criança já tem uma diferenciação nítida,

entre o eu e os outros. O indivíduo já tem condições de atividades de agrupamento, seriação, classificação, categorização em vários níveis. A classificação do mundo físico em categorias, propícia ao indivíduo uma compreensão melhor de si mesmo. 5.

Estágio Puberdade e Adolescência, que se inicia aos 11 anos. O indivíduo procede à

exploração de si mesmo, como entidade autônoma, através de processos de autoafirmação, questionamento, apoio a seus pares, em contraposição ao mundo adulto. Aumenta o nível de abstração e a percepção dos limites de autonomia e dependência. Estes processos ocorrem no indivíduo sempre de duas formas; de maneira centrípeta, quando o predomínio é de impulsos afetivos e voltada para si mesmo. De forma centrífuga, quando o predomínio é de impulsos cognitivos e voltados para o meio ambiente exterior. Para proceder a essas análises, Wallon elaborou um método baseado na psicologia genética e no materialismo dialético. O método consiste em fazer uma série de comparações para esclarecer, cada vez mais, o processo de desenvolvimento do indivíduo. Compara a criança normal com o adulto normal; o adulto atual com o adulto de civilizações primitivas; crianças normais de idades diferentes; criança com animal, conforme as necessidades de investigação do momento.

Alguns dos pressupostos que embasam a teoria de Wallon, são:

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A pessoa está continuamente em processo. Segundo a própria estrutura do materialismo dialético (tese/antítese/síntese), Wallon aponta o jogo de forças – orgânicas, neurofisiológicas e sociais – às quais o indivíduo está sujeito, sendo sempre um síntese do processo. Em cada instante deste processo de crescimento a pessoa é sempre uma totalidade. O indivíduo é sempre a síntese (no sentido dialético) de uma fase anterior do processo, onde houve a interação de diversos fatores, influenciando a individualidade da pessoa. Com relação a este processo, afirma Wallon; “É contra a natureza tratar a criança de forma fragmentária. Em cada idade, esta constitui-se em um conjunto indissociável e original. Na sucessão de suas idades é o único e mesmo ser, em contínua metamorfose.” (Wallon in Mahoney, 2007, pg. 17). Wallon nunca desenvolveu uma verdadeira teoria pedagógica, já que estava mais interessado nos aspectos psicológicos do desenvolvimento da criança. Todavia, muitos de seus pressupostos foram mais tarde incorporados ao projeto Langevin-Wallon, de reformulação do ensino na França. Alguns aspectos principais da visão de Wallon da Educação, são: A Educação deve atender às necessidades imediatas de cada fase do processo de desenvolvimento infantil, permitindo que o indivíduo possa desenvolver plenamente todas as aptidões inerentes em cada etapa de seu crescimento; A formação da inteligência não deve ser dissociada da formação da personalidade, já que ambas fazem parte constituinte de todo o indivíduo; O professor não deve se colocar como exclusivo detentor do saber e único responsável por sua transmissão.

Todavia,

também

não

deve

abdicar

deste

papel,

submetendo-se

indiscriminadamente à espontaneidade infantil. A Educação deve atender ao mesmo tempo a formação integral do indivíduo e à estruturação da sociedade, preparando o indivíduo a participar da vida social. Se a Educação visa a preparação do indivíduo para integrá-lo à sociedade, é preciso ter claro um modelo ideal de sociedade, o que exige um posicionamento político.

Diferenças entre as abordagens de Wallon, Piaget e Vygotsky: Primeiramente, existe uma diferença de formação acadêmica entre os três. Wallon, tem formação em medicina, Piaget em biologia e Vygotsky em direito. Todavia, é preciso observar que ambos, Wallon e Vygotsky, eram marxistas e permitiram que suas teorias fossem bastante influenciadas pelo materialismo dialético. Esta doutrina foi, durante certo período entre o final do século XIX e a década de 1980, considerado uma teoria científica. Piaget, pelo que transparece de sua biografia, não tinha ligações com o marxismo e, certamente, não considerava o materialismo dialético como necessário à sua teoria.

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Se, por um lado, Piaget encarava o desenvolvimento da criança como um processo principalmente biológico, Vygostky dava grande ênfase ao papel das interações sociais. Em um de seus textos, referindo-se a Piaget, e sua teoria do desenvolvimento da criança, Vygotsky escreve: “O primeiro tipo de soluções propostas parte do suporte da independência do processo de desenvolvimento e do processo de aprendizagem. Segundo estas teorias, a aprendizagem é um processo puramente exterior, paralelo em certa medida do processo de desenvolvimento da criança, mas que não participa ativamente neste e não o modifica em absoluto: a aprendizagem utiliza os resultados do desenvolvimento, em vez de se adiantar ao seu curso e de mudar a sua direção. Um típico exemplo desta teoria é a concepção – extremamente completa e interessante – de Piaget, que estuda o desenvolvimento do pensamento da criança de forma completamente independente do processo de aprendizagem.” (L. S. Vygotsky, 2007, pg.25). Wallon, baseado em sua formação médica, forma o contraponto entre as visões de Piaget e Vygotsky. Não encara o desenvolvimento da criança, principalmente sob o aspecto do desenvolvimento psico-biológico como Piaget, nem fortemente influenciado pela relações sociais, como Vygotsky. Além disso, é preciso notar que dentre os três pensadores somente Vygotsky tinha como objetivo estruturar uma pedagogia a ser aplicada na prática. Os demais, Piaget e Wallon, permaneceram mais no campo teórico de suas respectivas áreas de estudo e não produziram teorias pedagógicas com intuito de utilizá-las como método de aplicação prática.

Bibliografia AOQUI,

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Henry

Wallon,

disponível

em www.psicologiavirtual.com.br/psicologia/trabalhos/trab.1/html acesso em 20/03/08 CARVALHO,

Rebeca,

Henry

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Pensamento

pedagógico,

disponível

em http://www.appai.org.br/jornal_Educar/jornal39/historia_educacao/henry.asp acesso

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20/03/08 CENTRO

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REFERÊNCIA

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Wallon,

disponível

em: www.cetrorefeducacional.com.br/wallon.htm acesso em 20/03/08. DEWEY, John. Vida e educação in Os Pensadores, Abril Cultural: São Paulo, 1980, 318 pgs. LEONTIEV, A., VYGOTSKY L., e outros, Psicologia e Pedagogia – Bases Psicológicas da Aprendizagem e do Desenvolvimento, Centauro Editora: São Paulo, 2007, 125 pgs. GALVÃO, Izabel, Uma Reflexão Sobre o Pensamento Pedagógico de Henry Wallon, disponível em www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_20_p033-039_c.pdf. acesso em 20/03/08 MAHONEY, Abigail A., Almeida, Laurinda R., Henri Wallon – Psicologia e Educação, Edições Loyola: São Paulo, 2007, 87 pgs.

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NEWMAN, F., HOLZMAN, L., LEV VYGOTSKY – Revolutionary Scientist, disponível em: www.marxists.org/archive/vygotsky/works/comment/lois1.htm acesso em 20/03/08

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A questão da religião em Comte A questão da religião está presente de uma maneira ou de outra em grande parte da obra de Comte. Defendia Comte que a religião oficial de seu tempo não tinha mais muito a oferecer; não poderia atuar como guia para as massas de trabalhadores e técnicos da era industrial. A religião, com suas crenças e organização, era resquício do estado teológico e militarista, caracterizado pela força, guerra e pelo comando irracional; completamente diferente do estado industrial e positivista, baseado na cooperação, na livre produção e na racionalidade. Comte, no entanto, acreditava que o homem precisava de uma religião; algo em que pudesse acreditar se dedicar e ao qual viesse a amar. Em sua obra Sistema de Política Positiva Comte faz uma análise, entre outras instituições, também da religião. Nesta avaliação o autor chega à conclusão que a religião tem um aspecto intelectual, o dogma; um aspecto afetivo, o amor, que se manifesta no culto; e um aspecto prático, que Comte denomina regime. Pensava que era impossível estabelecer uma sociedade estável sem a condução de uma religião, já que esta era para a sociedade “comparável exatamente à saúde, com relação ao corpo” (Comte apud Aron: 2008, p. 130). Além disso, já em seus escritos iniciais, Comte se via ao mesmo tempo como cientista e como reformador social. Pretendia desenvolver uma ciência baseada em leis fundamentais da evolução humana, que servissem de guia ao desenvolvimento futuro da humanidade, assegurando a paz e a ordem. Outro aspecto no pensamento de Comte é que partia do pressuposto de que uma sociedade só podia existir, na medida em que seus membros partilhassem das mesmas crenças. Temos então os seguintes aspectos no pensamento de Comte, todos relacionados com o tema da religião: a) O homem precisa de uma religião; b) A sociedade também necessita de uma religião para subsistir; c) A sociedade só pode existir de maneira harmoniosa quando seus membros têm as mesmas crenças; e d) A antiga religião, o cristianismo, não cumpre mais as suas funções. Por outro lado, Comte defendia que o método positivo deveria ser estendido a todas as ciências – leia-se a todo o conhecimento humano –, ocupando o espaço que ainda era deixado à metafísica (filosofia) e à teologia (religião). Segundo Aron, “Para ele (Comte) há um modo de pensar, o positivo, que tem validade universal, tanto em política como em astronomia” (Aron: 2008, p. 111).

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Dados todos estes fatores é compreensível a posição de Comte ao querer fundar a religião da humanidade, baseado nos pressupostos da sociologia. Segundo Aron, Comte “acredita possuir a solução para o problema social” (ibidem p. 139). Com sua religião positivista, Comte pretendia ser um reformador social. A desigualdade produzida pela industrialização aliada a outros problemas do capitalismo; como as péssimas condições de vida, a criminalidade e a destruição de famílias, fizeram provavelmente com que Comte temesse pela continuidade da coesão social. Sendo assim, pretendia com a ajuda da sociologia – agora transformada também em uma práxis religiosa – criar um consenso, que ajudaria a reestruturar a sociedade. Para estabelecer os princípios de sua religião, Comte escreveria o Catecismo positivista, na forma de um diálogo entre o Sacerdote e a Mulher. Neste texto, além de descrever as crenças e os dogmas da nova religião, institui o culto aos grandes personagens da humanidade e estabelece um novo calendário com datas comemorativas homenageando grandes vultos da história, além de outras providências. Comte tinha tanta certeza do sucesso de sua religião, que esperava pregar o positivismo na catedral de Notre Dame, em 1860 (faleceu em 1857). Era evidente que a transformação de uma ciência em uma religião, acabasse gerando uma grande revolta entre a maioria dos discípulos; todos eles em sua maioria cientistas ou intelectuais. Seus interlocutores e discípulos ingleses, Spencer e Stuart Mill, cortaram relações com Comte, o mesmo acontecendo com vários apoiadores (inclusive financeiros) franceses, entre eles o jornalista Littré. No entanto, apesar das críticas à igreja positivista de Comte, há alguns paralelos interessantes entre a sociologia e o marxismo. Assim como Comte, Marx também tinha pretensões de reformador social, tendo dado seu apoio a organizações de trabalhadores comunistas. Assim como a sociologia de Comte, o marxismo também se transformou em uma religião – apesar de sua pretensão científica, como a sociologia comteana. Na União Soviética a pseudociência marxista (religião), na forma do materialismo dialético e do materialismo histórico, ditou as regras da produção cultural e científica por muito tempo. Por final uma pergunta: se a religião de Comte vingasse na França, teria este país também se transformado em um estado totalitário, governado por uma elite religiosa autocrática?

Bibliografia: ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo. Martins Fontes: 2008, 884 p. MORAES FILHO, Evaristo de (org.) Comte – Série Sociologia. São Paulo. Editora Ática: 1978, 207 p. GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian: 2010, 725 p.

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JOHNSON, Allan G. Dicionรกrio de Sociologia. Rio de Janeiro. Zahar Editores: 1997, 300 p.

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A reforma protestante e a sociedade moderna A Revolução Protestante não tem só origens religiosas, mas também políticas e econômicas. Dentre os motivos mais comuns que provocaram o surgimento da Reforma Protestante está a decadência moral da Igreja Católica no final da Idade Média. É fato que grande número de clérigos vivia de maneira escandalosa para a época, sustentando esposas e filhos. Muitos padres não tinham preparo algum para exercer o cargo; alguns não tinham nenhum conhecimento de latim. Os abusos às regras e as exceções criadas pela Igreja eram as mais variadas e escandalizavam a maioria dos fiéis. “Calcula-se que o papa Leão X fruía de renda anual de mais de um milhão de dólares, resultante da venda de mais de mil cargos eclesiásticos” (“...)” Uma segunda forma repelente de venalidade religiosa era a venda de dispensas. Uma dispensa podia ser definida como a isenção de qualquer lei da igreja ou de qualquer voto feito anteriormente. Nas vésperas da Reforma, as dispensas mais comumente vendidas eram as isenções de jejum ou das leis matrimoniais da igreja” (Burns 1971, p. 452). O movimento, no entanto, não ocorreu repentinamente. A Reforma Protestante teve seus precursores em vários pontos da Europa. No fim do século XIV, um professor de Oxford chamado John Wycliff já lançava ataques à Igreja, condenando a venda de indulgências, a ingerência da Igreja em assuntos temporais e negando vários dogmas da igreja, como a transubstanciação do pão e do vinho na missa. Wycliff também traduziu a Bíblia para o inglês e colocou esta a disposição dos crentes ingleses. As críticas de Wycliff foram disseminadas, chegando ao continente europeu, onde Johan Huss deu sequência a elas. Este, também foi professor na universidade de Praga, foi queimado na fogueira em 1415, como herege mas suas ideias ganharam muitos adeptos. Além destes aspectos doutrinários, também havia motivos políticos e econômicos para o surgimento de uma separação entre Roma e os países da Europa setentrional. Em regiões, como a França e a Alemanha, já havia uma aversão – principalmente entre os nobres – quanto à ingerência do papa e da Igreja nos assuntos políticos da região. Outro aspecto é o fato de que a Igreja era detentora de grandes extensões territoriais ao norte dos Alpes, o que evidentemente despertava a cobiça dos nobres. Afora isto, as terras pertencentes à Igreja não podiam ser tributadas, o que por outro lado sobrecarregava de impostos os outros proprietários de terras. Era natural que, dadas estas circunstâncias, todos tivessem interesse em se apoderar das terras da Igreja. No início do século XVI estava formado o cenário e só faltava um ator principal. Escreve Burns: “Ao raiar do século XVI estava a Alemanha madura para a revolução religiosa. Só falta encontrar um líder capaz de unir os elementos descontentes e emprestar às suas reivindicações um verniz teológico aceitável.” (Burns, 1971, p. 462). Este líder foi Martinho Lutero, nascido em

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Eisleben, na Turíngia. O movimento da Reforma foi datado como tendo início especificamente em 1517 quando o agora já monge agostiniano, Martin Luther, afixou suas 95 teses na porta da catedral de Wittenberg. A partir daí, reagindo e defendendo suas ideias dos ataques da Igreja de Roma, Luther foi colocado em uma posição de confronto, da qual não pôde mais voltar. Explorando o uso da nascente imprensa e contando com o apoio da nobreza alemã, Luther traduziu a Bíblia para o alemão (assim como 200 anos havia feito Wycliff para o inglês) e estruturou a doutrina da nova crença. Em termos culturais, se o humanismo e o Renascimento eram uma volta às origens, aos textos clássicos da literatura e filosofia greco-romana, o protestantismo também era uma volta às origens dos textos bíblicos, especificamente São Paulo e os Evangelhos, e à filosofia de Santo Agostinho. Escreve Edward McNall Burns: “Em suma, o que os reformadores queriam era a volta do cristianismo mais primitivo do que aquele predominava desde o século XIII. Inclinavam-se fortemente a rejeitar qualquer doutrina ou prática que não fosse expressamente sancionada pelas Escrituras, em especial pelas Epístolas Paulinas, ou que não fossem reconhecidas pelos Padres da Igreja” (Burns 1971, p. 455) A Reforma Protestante foi se espalhando em toda a Europa e angariando novos membros, tanto entre o povo, os nobres e a intelectualidade. Zwinglio e Calvino, ambos na Suíça, iniciaram reformas semelhantes. Este último governou a cidade de Basiléia por dezenas de anos, instituindo um governo autocrático, de constante vigilância sobre a vida de todos os fiéis. Aqueles que não se portassem de acordo com a doutrina oficial eram punidos de diversas maneiras. Em sua obra máxima, “Instituições da religião cristã”, Calvino coloca os pontos principais de sua doutrina, que mais tarde iriam influenciar fortemente todo o desenvolvimento da sociedade europeia neocatólica. Suas ideias são bastante influenciadas pela doutrina de Agostinho, muito mais do que qualquer outro teólogo protestante. Escreve Calvino que Deus criou um universo para sua glória, onde qualquer coisa existia na dependência da divindade todo-poderosa. Através de Adão o pecado entrou na história humana, tornando os homens irremediavelmente condenados. Somente Deus, em sua infinita misericórdia, destina alguns seres humanos à salvação, enquanto que o resto da humanidade é condenado aos tormentos do inferno por toda a eternidade. Nada do que os homens façam pode salvá-los. Todavia, não é por isso que os homens ficarão de braços cruzados sem fazer nada. Deus incute em seus eleitos uma vontade de ajudar os maus, mesmo sabendo de que estes estão condenados. O fiel também terá forte atuação na sociedade através de atividades profissionais. A Reforma Protestante, em suas várias vertentes teve diversos impactos sobre a nascente sociedade moderna, recém-saída do período medieval. Para facilitar sua explanação, podemos dividir estas influências em econômicas, políticas, sociais e culturais. Sob o aspecto econômico a Reforma provoca inicialmente uma redistribuição de terras nas regiões ao norte dos Alpes. Na França, Holanda, Alemanha e Inglaterra as terras da Igreja são confiscadas e distribuídas entre os nobres. Os servos ligados à terra muitas vezes aproveitam a oportunidade e deslocam-se para a cidade, onde muitos se transformarão em artesãos e

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passarão a engrossar os exércitos dos primeiros operários trabalhando em manufaturas. A médio prazo a Reforma Protestante, principalmente na forma do calvinismo, influirá todo o desenvolvimento do mercantilismo – o capitalismo comercial – desde o século XVI até o início do XVIII. O protestantismo de Calvino era mais radical que o de Lutero. Este, ainda tinha muitas censuras em relação aos banqueiros, às finanças e ao lucro. Calvino, por sua vez, santificava a empresa do comerciante e do financista e valorizava as virtudes comerciais da economia e da diligência. Todas as correntes religiosas que contribuíram para o desenvolvimento do capitalismo – os huguenotes na França, os puritanos na Inglaterra, os presbiterianos na Escócia e os protestantes na Holanda – eram todos calvinistas. Defendiam e divulgavam os valores da burguesia (classe média) nascente: dedicação ao trabalho, aversão ao luxo (seja no vestir ou na moradia), prática da economia (e investimento do dinheiro no negócio), aversão aos divertimentos (festas, banquetes, bailes) e dedicação aos estudos e à pesquisa. Sob certos aspectos, o calvinismo estava praticando no mundo o mesmo ascetismo que os monges católicos da Idade Média praticavam nos mosteiros. Max Weber em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, escreve: “De fato, o summum bonum desta ética, o ganhar mais e mais dinheiro, combinado com o afastamento estrito de todo o prazer espontâneo de viver é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura eudemonista, para não dizer hedonista: é pensado tão puramente como um fim em si mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade para o indivíduo parece algo transcendental e completamente irracional. O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida. A aquisição econômica não está mais subordinada ao homem como um meio de satisfação de suas necessidades materiais. Esta inversão daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio-guia do capitalismo, tanto quanto soa estranha para todas as pessoas que não estão sob influência capitalista” (Weber 2002, p.47). Sob o ponto de vista político a Reforma Protestante contribuiu indiretamente para a formação dos Estados e de monarquias absolutistas. A Reforma havia abolido a ingerência da Igreja nos assuntos de Estado, deixando ao soberano mais autonomia em suas decisões. Outro aspecto é que os vultosos recursos que eram carreados anualmente para Roma, a título de pagamentos de dispensas, indulgências, taxas de todos os tipos, permaneciam no país, possibilitando ao soberano arrecadar mais impostos. Além disso, a burguesia comercial, formada geralmente dentro da mentalidade protestante e/ou calvinista, tinha interesse em apoiar politicamente e financiar as iniciativas comercias do estado, já que estes empreendimentos poderiam lhes trazer lucros com o comércio. Exemplo típico é o caso das companhias inglesas criadas para explorar comercialmente os produtos do Novo Mundo (costa leste da América do Norte) e a Companhia das Índias Orientais, financiada por comerciantes holandeses e envolvida na principalmente da exploração do açúcar do Brasil e das Antilhas. Comerciantes huguenotes também estavam por trás das iniciativas francesas no Brasil, como a França Antártica, no Rio de Janeiro.

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Entre os países dominados por ambas as correntes religiosas havia forte rivalidade, como por exemplo, a Espanha e a Inglaterra (se bem que a rivalidade religiosa fosse apenas um Sob o ponto de vista social a Reforma Protestante acabou criando “zonas de influência” em toda a Europa, ou seja, regiões onde o protestantismo, calvinismo ou outras correntes reformistas tinham influência, e outras regiões ainda sob o domínio do catolicismo. Mesmo subterfúgio para acobertar interesses econômicos e políticos). A rivalidade entre católicos e reformistas acabou gerando ocasionalmente conflitos armados, quase guerras civis, como aconteceu na França entre 1562 e 1589, nos Países Baixos em 1565 e na Inglaterra no século XVII. Culturalmente a Reforma Protestante reforçou o movimento humanista, que já vinha se desenvolvendo desde o final da Idade Média. Este colocava o homem no centro do universo, tinha uma visão otimista e incentivava o estudo da natureza e da pesquisa, aliado ao estudo da tradição clássica. A Reforma, por sua vez, também pregava a liberdade do homem perante Deus, sem necessidade de intermediários, instituições ou dogmas. O homem, detentor de um espírito, poderia analisar as Escrituras e interpretá-las a seu modo, sem a necessidade de intérpretes. Apesar disso, o protestantismo, em geral, não tinha uma visão otimista do ser humano, considerando-o decaído e pecador, necessitando da misericórdia divina (“saco de imundícies, nascido entre as fezes e a urina”, dizia Lutero, referindo-se ao homem). Ponto positivo da reforma foi incentivar o individualismo, a autonomia e o espírito empreendedor, que darão origem a uma cultura mais voltada para o indivíduo (a filosofia de Descartes e John Locke; o desenvolvimento da ciência e do espírito empreendedor do capitalismo).

Bibliografia BURNS, Edward M., História da civilização ocidental – Vol I. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 581 p. WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo. Editora Claret: 2002, 224 p.

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A revolução verde e a oferta de alimentos As primeiras discussões globais sobre o futuro da humanidade ocorreram no final da década de 1960, durante as reuniões do já lendário Clube de Roma. Um dos assuntos que mais preocupava a todos os participantes daqueles encontros era a prevista escassez de alimentos. Já no início do século XIX, o cientista inglês Robert Malthus havia escrito que no futuro as sociedades passariam por grandes dificuldades, já que a produção de alimentos sempre cresceria em escala aritmética enquanto a população aumentaria em escala geométrica. Depois da Segunda Guerra Mundial, com a vacinação em massa contra várias doenças e o aumento do saneamento, diminuiu vertiginosamente o índice de mortalidade entre as crianças; o que aumentou ainda mais o crescimento populacional e com isso os temores de muitos em relação à disponibilidade de alimento para todos. A taxa de natalidade à época era bastante alta, principalmente nos países pobres e em desenvolvimento e, segundo cálculos de especialistas, não haveria produção agrícola suficiente para acompanhar o aumento do número de bocas a serem alimentadas. Previa-se assim, que antes do final do século XX haveria grandes carestias, assolando a maior parte das nações da Ásia, África e América Latina e provocando revoluções, conflitos armados e guerras entre nações. Nem todos, no entanto, sabiam que àquela mesma época estava em andamento uma grande mudança na maneira de praticar a milenar agricultura. Novas técnicas de preparação do solo e de plantio; uso de sementes híbridas; novos produtos químicos para combate às pragas que assolavam as plantas. Tudo isto apoiado na larga mecanização da semeadura e da colheita, com a ajuda de uma grande variedade de máquinas agrícolas. Para completar o novo quadro, mais assistência aos agricultores, através de um exército de técnicos agrícolas e engenheiros agrônomos, treinados nas novas tecnologias de plantio. Estas as principais características da mudança tecnológica na agricultura, que se convencionou chamar de Revolução Verde. Inicialmente, introduzida nos Estados Unidos a partir da década de 1960, a inovação rapidamente alcançou outros países e nos anos 1980 já estava difundida em grande parte do mundo. A Revolução Verde aumentou a oferta de comida. Segundo especialistas, temos quantidades de alimento suficientes para eliminar a fome do planeta. O problema, segundo eles, continua sendo a injusta distribuição destes recursos, causada pela especulação. Esta, fomentada pela possibilidade de grandes lucros em curto espaço de tempo e praticada por grandes grupos econômicos em todo o mundo, contribui para as oscilações dos preços dos produtos agrícolas, podendo confundir a capacidade de planejamento dos agricultores, levando-os à superprodução ou à subprodução. Mesmo com a oferta de alimentos tecnicamente garantida, não há tempo para descanso. As empresas, os governos e as instituições precisam urgentemente – segundo a Agência das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) – investir em pesquisa agrícola, a fim de

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aumentar ainda mais a produção agrícola. Até 2050, segundo a agência, a população mundial deverá aumentar de 6,3 para 9 bilhões de pessoas. Para alimentar este imenso contingente, a produção agrícola precisará crescer 70% acima dos padrões atuais.

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Agricultura, fome e desperdício de alimentos A busca por alimento, como em todos os seres vivos, sempre foi a maior preocupação da humanidade. Nossos antepassados do Paleolítico, ainda desconhecendo a prática da agricultura, dependiam da coleta e, principalmente, da caça. Durante mais de 100 mil anos o homem moderno, o Homo Sapiens, perseguiu manadas de gnus, zebras e antílopes pelas estepes africanas e mamutes, renas e bisões pelas geladas planícies da Eurásia. Aproximadamente há oito mil anos, no final do último período glacial, a caça começa a minguar. Com o aumento da temperatura, o clima começou a mudar e com isso flora e fauna também passam por mudanças adaptativas. Os animais, que por milhares de anos eram abundantes e proporcionavam grandes quantidades de proteína, decresceram em número, deslocaram-se para outras latitudes mais frias ou se tornaram extintos. Nossos antepassados, espalhados por uma extensa área que se estendia da África à Europa e do Oriente Médio à Ásia até a América – onde os antepassados dos povos indígenas já haviam chegado através de uma ponte de gelo cobrindo o estreito de Bering – iniciaram a primeira grande revolução da humanidade: a prática da agricultura. Observando o crescimento de plantas perto dos acampamentos, resultado da queda ocasional de sementes, os homens devem ter percebido que este processo poderia ser repetido em escala mais ampla, gerando volumes maiores de sementes. Nos vales pantanosos à época dos rios Tigre e Eufrates, na região onde atualmente se situam a Turquia, o Iraque e a Síria, a agricultura passou a ser praticada pela primeira vez em larga escala a partir de 5.000 A.C. Cerca de milênio e meio depois, a atividade agrícola já havia se espalhado para outras regiões; como o vale do rio Nilo, no Egito; o vale do rio Amarelo, na China; e o vale do Indo, entre o Paquistão e a Índia. A prática da agricultura se desenvolveu ao longo de toda a história, sempre ocupando novas áreas, acompanhando o crescimento e a expansão das populações humanas. Basta lembrar as extensões de terras agricultáveis que se abriram na Europa, depois que gradualmente os povos celtas, germanos e eslavos foram cristianizados e incorporados ao império romano e depois ao carolíngio. Ou no século XVI, quando espanhóis e portugueses descobriram imensas extensões territoriais agricultáveis no outro lado do Atlântico, além de uma grande variedade de novas plantas comestíveis, como a batata, o milho, tomate, abacaxi, abacate, amendoim, baunilha, mandioca, feijão, cacau, pimentas, entre outras. Apesar do constante aumento das áreas plantadas a fome, no entanto, sempre acompanhou a humanidade. Já na Roma antiga, o historiador Tito Lívio nos informa sobre uma grande fome que teria assolado a República romana em 441 A.C. Pouco antes da Queda de Roma (476 D.C.) a história registra mais um período de grande carestia no então império Romano, provocada pelo saque da cidade, pelo rei visigodo Alarico. Entre os anos de 400 e 800, a ausência de uma estrutura político-administrativa estável, fez com que grande parte da Europa fosse afetada por

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períodos de carestia. A situação se tornou tão confusa, que em certas regiões da Europa, durante o século VIII, até ocorreram casos de canibalismo. As ocorrências de grandes carestias sucedem-se durante a Idade Média, em grande número de países. No final da Idade Média, entre 1315 e 1317 ocorreu na Europa o que se passou a chamar de "A Grande Fome". Devido ao excesso de chuvas e frio em diversas regiões, perderam-se colheitas em extensas áreas, o que acabou provocando uma grande fome em todo o Velho Mundo. Milhões de pessoas morreram por falta de comida e em consequência de problemas sociais ligados à carestia, como o aumento de crimes, doenças e de assassinatos. Foi somente a partir de 1322 que a Europa conseguiu, aos poucos, se recuperar do terrível caos social que havia se instalado. Assim, mesmo com grande variedade de alimentos conhecidos a partir das Grandes Navegações – muitos autores falam em uma globalização do consumo de certas plantas, frutos e sementes – grande parte da humanidade ainda continuava a comer mal ou passar fome. O pintor e gravador alemão Albrecht Dürer (1471-1528), pintou em 1498 o famoso quadro “Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse”, representando os maiores terrores da sociedade europeia à época: a peste, a guerra, a fome e a morte. Foi somente a partir da gradual mecanização da agricultura e da utilização de fertilizantes químicos – processo iniciado na primeira metade do século XIX nos Estados Unidos, que já despontavam como grande potência agrícola – que as colheitas se tornaram mais garantidas. Mesmo assim, a fome ainda era uma ameaça real para a maior parte da população mundial, provocando grandes fluxos migratórios, principalmente da Europa para as Américas. Uma lista detalhada das principais ondas de fome ocorridas no mundo desde a Antiguidade até os dias atuais encontra-se em: http://en.wikipedia.org/wiki/List_of_famines. Ainda na década de 1960 a fome era uma preocupação para cientistas, políticos e empresários – além do perigo de uma guerra atômica. O aparente problema da progressão aritmética no aumento da produção de alimentos, frente à progressão geométrica no crescimento populacional, ocupava grande parte das discussões acadêmicas da época. Tomando como base a taxa média anual de crescimento da população mundial naquele período (2,1%), previa-se a explosão de uma bomba populacional. Mantido a taxa de crescimento, a população se multiplicaria oito vezes no espaço de um século, 64 vezes em dois séculos, 512 vezes em três séculos, 4.096 vezes em quatro séculos e 32.768 vezes no espaço de cinco séculos. Isto significava que a população mundial de três bilhões de habitantes em 1960, chegaria a 98 trilhões de habitantes no ano de 2460; um número assustador. Muitos cientistas diziam que as previsões feitas pelo economista e demógrafo Thomas Malthus (1766-1834) em seu "Um ensaio sobre o princípio da população ou uma visão de seus efeitos passados e presentes na felicidade humana, com uma investigação das nossas expectativas quanto à remoção ou mitigação futura dos males que ocasiona” poderiam se concretizar em um futuro próximo. A humanidade cresceria tanto em número, que não haveria mais alimento para todos. Esta foi, inclusive, a principal preocupação das primeiras reuniões do Clube de Roma, em 1968.

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Felizmente, o ritmo de crescimento da população mundial começou a cair ao longo dos anos, se estabilizando em torno de 1% ao ano nos dias atuais. Mas, não foi esse o principal motivo pelo qual as preocupações do Clube de Roma mudaram o foco do crescimento populacional para o crescimento da poluição. O que provocou uma verdadeira mudança na segurança alimentar mundial foi a introdução da assim chamada “Revolução Verde” na agricultura. A técnica foi desenvolvida nos Estados Unidos pelo agrônomo Norman Borlaug e prevê a mecanização da atividade agrícola, do plantio à colheita, associada ao uso de sementes geneticamente modificadas e insumos industriais (adubos e defensivos químicos). A disseminação destas tecnologias em todo o mundo a partir da década de 1970, fez com que as colheitas aumentassem e que o espectro da fome – pelo menos aquele causado por falta de alimentos – desaparecesse ao longo dos últimos trinta anos. Ainda persiste a fome originada por guerras, falta de recursos financeiros ou por especulação; mas esta não tem causas naturais. Resolvido por ora o problema da fome por falta de alimentos para grande parte da humanidade, defrontamo-nos agora com novo desafio: o desperdício de alimentos. Dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) dão conta que no mundo são desperdiçados 1,3 bilhões de toneladas de comida ao ano. Um estudo preparado pela entidade, intitulado Global food; waste not; want not (Alimentos globais; não desperdice; não sinta falta), mostra que grande parte dos alimentos em todo o planeta é perdida, principalmente, por condições inadequadas de colheita, transporte e armazenagem; por adoção de padrões visuais muito rígidos para os alimentos (maçãs vermelhas, bananas sem manchas, etc.); e fixação de prazos de validade rigorosos demais. Na Inglaterra, por exemplo, segundo reportagem do site da BBC, cerca de 30% dos legumes, frutas e verduras são sequer colhidos, por não corresponderem aos padrões de aparência que agradam aos consumidores. Outro aspecto apresentado pelo relatório da FAO é que depois de comprados aproximadamente 50% dos alimentos são jogados fora, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. O descarte de tão grande volume de alimentos representa uma perda de aproximadamente 550 bilhões de metros cúbicos de água, usados para produzir estas frutas e vegetais. Adicionalmente, segundo os cientistas, é preciso computar o volume de gases de efeito estufa (CO² e outros) emitidos para a produção e o transporte destes produtos, bem como o volume de metano (CH4) emitido quando de sua decomposição, sem terem sido consumidos. Liderado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), foi criado um movimento mundial, com o objetivo de reduzir as perdas e o desperdício de alimentos. A ideia, que surgiu durante a Rio+20, está sendo divulgada através de um site (www.thinkeatsave.org) no qual constam informações, relatórios, dados, dicas, eventos e iniciativas, sobre como economizar alimentos e evitar o desperdício. A ideia já estava em circulação há algum tempo: em 2012 o Parlamento Europeu aprovou uma recomendação para que fosse reduzido o desperdício de alimentos, que naquele ano chegou a 89 milhões de toneladas (equivalente a 179 Kg/ano/pessoa), com uma previsão de aumento para 126 milhões de toneladas até 2020.

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O Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), é um dos maiores desperdiçadores de alimentos do mundo. Segundo a instituição, 35% de toda a nossa produção alimentícia são jogados fora; algo em torno de 27 milhões de toneladas de comida ao ano. Dados do Instituto Akatu, publicados em 2003, informavam que 64% do que se plantava no País era perdido ao longo da cadeia produtiva: 20% na colheita; 8% no transporte e armazenagem; 15% na indústria de processamento; 1% no varejo; e 20% no processo de preparação dos alimentos e na alimentação. A questão da produção de alimentos é parecida com a da produção de eletricidade. Se ao invés de continuamente aumentar a produção fossem introduzidas medidas de eficiência, o consumo – tanto dos alimentos quanto dos KWhs – seriam otimizados. Reduzindo o desperdício e gerindo o processo de produção, distribuição e consumo de uma maneira mais racional, não haveria necessidade de se fazer tantos investimentos no aumento da produção – seja de alimentos ou de energia. O melhor aproveitamento dos recursos diminuiria a necessidade de aumentar área de plantio e de geração de eletricidade (hidrelétrica), reduzindo o impacto destas atividades ao meio ambiente. Voltamos assim a um dos princípios básicos da economia: os recursos são escassos e precisamos utilizá-los da melhor maneira possível.

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Anti-intelectualismo? Acompanhando manifestações aqui e ali, seja na imprensa, em programas de TV, nas conversas de rua, de supostos intelectuais e até de futuros membros do governo recentemente eleito, percebe-se uma crescente aversão a tudo que seja intelectualmente mais elaborado. Não que isso seja um fenômeno geral, mas esta oposição ao que não se compreende ou não se quer compreender porque é de difícil entendimento, parece estar aumentando no Brasil.

São várias as razões que levam parte considerável da população a pensar desta maneira. Abaixo tentarei listar algumas:

- O decrescente nível da educação - pública e também privada - no país, tem propiciado um certo distanciamento do cidadão médio da dita alta cultura. Foram-se os tempos em que nas escolas era ensinada a cultura clássica (grega e latina) e línguas como o latim e o francês. Até há pouco tempo o ensino da filosofia e sociologia era impedido, para posteriormente se tornar obrigatório e, recentemente, tornar-se facultativo. Com isso, o nível médio da educação e da cultura geral, acabou piorando.

- Outro motivo é o tradicional encastelamento dos intelectuais, da grande maioria das pessoas que produzem conhecimentos, em suas torres de marfim - notadamente certas "figurinhas carimbadas" do setor acadêmico brasileiro. Ainda são raras as iniciativas de uma aproximação dos detentores de um certo saber - saber este que confere um prestígio social ao seu proprietário - do povo e de seus movimentos.

- A diminuta oferta de aparelhos culturais; como museus, bibliotecas, centros culturais, teatros, salas de concerto, áreas de exposição, enfim, locais onde o povo possa tomar contato que a cultura produzida por todos as outras nações ao longo da história. Isto sem falar no baixo nível dos cadernos de cultura na mídia impressa em geral, nos últimos trinta anos.

- Aliado a estes fatos, não necessariamente os principais, temos também o pouco incentivo que historicamente a cultura e o conhecimento receberam por parte do Estado. Todos os governos, sem exceção, apoiaram a educação e, principalmente a cultura, para satisfazer pressões de grupos que os apoiavam. Na prática, o conhecimento em raríssimas ocasiões fez parte da agenda dos governos.

Este é assim o ambiente propício, do qual até formadores de opinião se aproveitam - sem falar de muitos políticos - para muitas vezes associar cultura e conhecimento elaborado, com discurso enganador, obtuso e até mentiroso. Forma-se a ideia, incentivada por muitos, de que os

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intelectuais e suas produções estão longe do povo; falam o que não é importante e têm ideias que não coadunam com a realidade, que muitas vezes são imorais.

Criam-se condições para que, como no passado, as críticas ao status quo sejam taxadas de sabotagem, tentativa de iludir o povo, e assim por diante. Situação propícia para calar opositores e todos aqueles que, de uma forma ou outra, enxergam um horizonte um pouco mais amplo seja na política ou na cultura - e que com suas manifestações possam colocar em cheque privilégios de grupos. Em suma, cria-se um ambiente cultural de conservadorismo retrógrado que aliena o país da cultura moderna ocidental. (Seria esta cultura mais uma manifestação de um “globalismo esquerdista”, como disse em outras circunstâncias uma futura autoridade do próximo governo?)

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Aspectos do imaginário popular na Baixa Idade Média Neste artigo sobre o período medieval, utilizei duas obras bastante importantes, que tratam do imaginário social deste período, abordando principalmente a Baixa Idade Média. Refiro-me à obra o Outono da Idade Média, obra seminal sobre o período, do historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945), da qual utilizamos o capítulo A imagem da morte. Outra obra consultada foi História do Riso e do Escárnio, do historiador Georges Minois (1946-), especificamente seus capítulos 6 – Rir e fazer rir na Idade Média; e 7 - O riso e o medo na Baixa Idade Média. No âmbito destas obras, me concentrei nos aspectos do imaginário social; o que causava medo e o que divertia o homem deste período extremamente rico em contradições. A Idade Média, sempre convêm lembrar, é um período histórico muito longo - vai do século V ao século XV - durante o qual praticamente se estruturou cultural e socialmente aquilo que a partir do século XVIII (e hoje quase fora de moda) se convencionou chamar de civilização ocidental. Mas a Idade Média é muito mais do que um período relativamente obscuro de transição entre o império romano e o mundo moderno surgido no século XVI. A riqueza deste período - seja sob o aspecto social, cultural, religioso - ainda nos reserva grandes surpresas, constantemente estudadas e divulgadas por historiadores como Georges Duby (1919-1996), Jacques Le Goff (1924-), Michel de Certeau (1925-1986), entre outros. O período sobre o qual trato neste artigo vai de aproximadamente 1300 a 1500. Não farei referência aos aspectos econômicos e políticos. Tampouco farei menção à cultura oficial, já permeada pelo humanismo com todas as suas implicações desde o século XIII, a começar na Itália. O tema deste artigo é o imaginário popular, o que hoje talvez pudesse ser comparado à cultura popular e cultura de massa. Minois afirma que este período se caracteriza pela crise, afetando todos os aspectos da vida humana e provocando uma verdadeira mutação das mentalidades. Alguns dos aspectos sociais do período são: - A volta da escassez dos alimentos, já que a população apresentava um crescimento desde o século XII; - O início da Guerra dos Cem Anos, que com todas as suas implicações foi a mais longa da história da humanidade; - O aparecimento da Peste Negra, cujo auge foi entre os anos 1346 a 1352, se estendendo até pelos menos 1460, gerou recessão econômica, tensões sociais e revoltas nas cidades e no campo; - no plano religioso ocorre o Grande Cisma da Igreja (1378-1477), quando existiam concomitantemente dois papados; um com sede em Roma e o outro em Avignon.

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Todos estes acontecimentos, agravados pelas mudanças econômicas e políticas, como a gradual erosão do sistema econômico feudal e o desaparecimento dos feudos substituídos pelo poder central, levaram a um clima de insegurança coletiva e individual em toda a Europa. Medo da morte individual iminente; medo do inferno, da vinda do anticristo e do fim do mundo; proliferação de heresias. Sobre estes aspectos escreve Minois: “... a Igreja dava aos fiéis meios de suportar essas angústias que ela própria suscitava. Procissões, bênçãos, intercessão dos santos, indulgências, novas devoções, sem dúvida, ajudaram as gerações do fim da Idade Média a não cair por completo no desespero e na neurose coletiva." (MINOIS, 2003). O clima de medo era geral, especialmente o medo da morte e da condenação eterna. Escreve Huizinga: "Eram três os temas que forneciam a melodia para aquele eterno lamento sobre o final de toda a glória terrena. Primeiro havia o motivo que perguntava: onde estavam todos aqueles que outrora encheram o mundo com sua glória? Depois havia o tema da visão horripilante da decomposição de tudo aquilo que um dia fora beleza humana. Por fim, o motivo da dança macabra, a morte que arrasta consigo as pessoas de qualquer profissão, de qualquer idade." (HUIZINGA, 2011). O pavor fazia com que centenas ou milhares de pessoas - muitas delas mendigos, sem-teto, deficientes e leprosos - vagassem pela Europa, esmolando, se autoflagelando, rezando e clamando por perdão por seus supostos pecados; eram os flagelantes. É famosa a cena do filme O Sétimo Selo (1957) de Igmar Bergman, que retrata o final da Idade Média, e em uma de suas cenas mostra um grupo de flagelantes entrando em uma aldeia, aterrorizando seus moradores. Outra cena do mesmo filme mostra um cadáver insepulto de alguém atacado pela peste. A morte era um dos principais temas na meditação religiosa do fiel. As imagens das danças macabras, representando esqueletos conduzindo pessoas de diversas classes sociais para morte, se tornaram famosas em livros de orações, nas capelas e nas paredes dos cemitérios. São os memento mori (do latim: lembra-te da tua morte); imagens que representadas de diversas formas sempre lembram o tema da finitude humana: "Em torno da dança macabra agrupam-se algumas ideias afins em relação à morte, igualmente apropriadas para serem usadas como elemento de advertência e terror. O conto dos três mortos e dos três vivos antecede a danse macabre. Já no século XIII, ela surge na literatura francesa: três jovens da nobreza encontram subitamente três mortos hediondos que lhes contam sobre a própria glória terrena e os alertam para o rápido fim que os aguarda." (MINOIS, 2011). Outro forte tema do imaginário social daquela época foi a segunda vinda do Cristo, que deveria julgar vivos e mortos conforme falavam os Evangelhos, sendo precedido pelo anticristo. A

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mensagem era repetida nas cidades e nas estradas pelos pregadores e pelos próprios membros da Igreja. Minois escreve que "O dominicano espanhol Vincent Ferrier deixa atrás de si um rastro de angústia. Em 8 de outubro de 1398, em uma visão, Cristo lhe confiou a missão de pregar o exemplo de Domingos e de Francisco para obter a conversão de multidões ante a vinda iminente do anticristo. Ele vai seguir esta ordem sem relaxar, acrescentando profecias de sua lavra." (ibidem, 2011). No entanto, segundo Minois, o homem da Baixa Idade Média foi salvo pelo riso. A grande pressão exercida pelo medo sobre o indivíduo e a sociedade também acabou provocando o riso. Nas festas populares as autoridades políticas e religiosas são ridicularizadas, fazem-se paródias engraçadas das missas, abundam as piadas sobre as relíquias de santos, sobre os monges. Orações da liturgia recebiam novas palavras; muitas vezes deboches de baixo nível. As crenças populares são transformadas em fábulas. Boccacio em seu Decameron escreve: "Eles afirmam que beber muito, usufruir, ir de um lado para outro cantando e se satisfazendo de todas as formas, segundo o seu apetite, e rir e zombar do que pudessem rir era remédio mais certo para tão grande mal." (Bocaccio apud Minois). Se nada sagrado escapa à zombaria e ao escárnio o mesmo também acontece com o diabo. Nas festas de Carnaval, realizadas nas cidades medievais e atraindo até milhares de visitantes, o “coisa ruim” apanha, é enganado e escorraçado. "Rir do diabo e do inferno é exorcizar o medo que se tem dele. Ora o diabo está em toda parte, essa época. Zomba-se dele e ele zomba dos homens, em uma bufonaria trágica. Ele é representado, às vezes, mantendo seu fogo nos mistérios, com orelhas de asno, o capuz de guizos, a túnica verde amarela." (Ibidem, 2011). Os homens, premidos por tantas desgraças reais e imaginárias parecem não ter outra alternativa senão rir. E neste processo fazem troça de tudo: dos pobres coitados, dos poderosos, da loucura, da morte, da miséria, das doenças, do diabo e até de Deus. Em sua amarga revolta, sem conhecer outra possibilidade de protestar contra um universo que o oprime, agride, mata e por fim o joga nas mãos de um deus raivoso, o homem ri. Ri amargamente.

Referências: Huizinga, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo. Cosac Naify: 2010, 652p. Minois, Georges. História do Riso e do Escárnio. São Paulo. Editora UNESP: 2003, 653 p.

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Atualidade da obra “O suicídio” de Durkheim A obra “O suicídio” (1897) de Émile Durkheim foi e ainda é considerada o grande marco da pesquisa sociológica. O tema escolhido por Durkheim, o suicídio, era à época objeto de grande preocupação na sociedade e ao mesmo tempo prática que infringia profundamente as normas sociais. Tratava-se, portanto de um importante fato social, digno de análise aprofundada. Escreve Durkheim: “Conseguimos, então, representar-nos, de um modo preciso, o domínio da sociologia. Este só compreende um determinado grupo de fenômenos. Um fato social reconhece-se pelo poder de coerção externa que exerce ou o suscetível de exercer sobre os indivíduos; e a presença desse poder se reconhece, por sua vez, pela existência de uma sanção determinada ou pela resistência que o fato opõe a qualquer iniciativa individual que tende a violá-lo.” (Durkheim: 2002, p. 38) Iniciando sua pesquisa, Durkheim percebe que a divisão social do trabalho, gerando o que chama de “solidariedade orgânica” – uma cooperação social baseada na diversidade – não deixa as pessoas mais felizes. Assim, constata Durkheim, que apesar dos avanços tecnológicos e sociais, o índice de suicídio mostra um aumento. Observa também que se tornaram mais comuns fenômenos como as crises econômicas, a inadaptação dos trabalhadores e a violência. O sociólogo também sabe que a sociedade tem certos valores sociais, que estando debilitados, podem colocar em risco o equilíbrio social. Neste contexto, Durkheim escreve sua dissertação acadêmica sobre o suicídio, procurando descobrir lhe as causas e procurando demonstrar que não se trata de um fenômeno individual, psicológico, como defendiam muitas correntes da psicologia à época. Apesar de admitir que existam predisposições psicopatológicas para o ato, o sociólogo considerava que o suicídio era antes de mais nada um fato social (para usar a linguagem durkheimiana) sobre o qual a sociologia poderia coletar dados, fazer avaliações e construir teorias – ferramentas científicas usadas por Durkheim e que definitivamente fundamentaram a sociologia como ciência. Munindo-se de estatísticas de diversas regiões da França e da Europa em relação aos suicídios, Durkheim inicia seu estudo refutando algumas teorias que circulavam sobre as causas sociais do suicídio. Uma destas teorias, elaborada pelo sociólogo Gabriel Tarde, dava grande valor à imitação como fator de integração social; o suicídio poderia assim também ser originado por este impulso. Mas, baseado em dados estatísticos, Durkheim prova que esta teoria e a da hereditariedade não tinham fundamentação científica para explicar o fenômeno do suicídio como fato social. Avançando em suas pesquisas, com base em comparações de dados, Durkheim consegue estabelecer os tipos sociais do suicídio. Os três tipos que o sociólogo propõe são: o suicídio egoísta, o suicídio altruísta e o suicídio anômico. Além disso, Durkheim consegue determinar alguns aspectos da incidência dos suicídios. Esta varia com a idade e com o sexo: é mais

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acentuada entre os homens do que entre as mulheres; varia com a religião, sendo mais baixa entre os católicos do que entre os protestantes. A taxa de suicídio aumenta entre os solteiros, divorciados, viúvos e idosos; a existência de uma família e filhos é geralmente fator de proteção contra o suicídio. Os diversos tipos e níveis de relacionamentos criam condições para que se manifestem os tipos de suicídios. Os suicidas egoístas são aqueles que pensam essencialmente em si mesmos, não estando bem integrados em um grupo social e tendo desejos e aspirações incompatíveis com o grupo social a que pertencem. “Os suicídios egoístas caracterizam-se por uma fraca integração na sociedade e ocorrem quando o indivíduo está sozinho, ou quando os laços que o prendem ao grupo estão enfraquecidos ou quebrados” (Giddens: 2010, p. 10). Aron resume o drama deste indivíduo: “O suicida egoísta se manifestará por um estado de apatia e pela ausência de vinculação com a vida.” (Aron: 2008, p. 487). O suicida altruísta é aquele indivíduo que tem um alto grau de integração em seu grupo social, submetendo-se, inclusive, a sacrifícios em favor deste. O indivíduo se anula completamente em prol do grupo, aceitando completamente a imperativos sociais, chegando a abrir mão de seu direito à vida. Casos exemplares são, por exemplo, o capitão do navio, que é o último a deixar a embarcação, ocorrendo afundar com ela. Outro exemplo é o bombeiro, que sacrifica sua vida em benefício de pessoas que não conhece. Exemplo extremo são os “bonzos”, monges budistas vietnamitas, que se deixavam queimar em praça pública como protesto contra a guerra do Vietnã (1959-1975). A característica principal do suicida altruísta é a sua energia e sua paixão por uma causa. O suicida egoísta e o suicida altruísta representam tipos opostos. Um, o egoísta, se afasta demais das aspirações de seu grupo e o outro, o altruísta, se confunde com as aspirações de seu grupo. O terceiro tipo de suicida é o que mais interessa a Durkheim, o suicida anômico. Este tipo de suicídio tem grande relação com os ciclos econômicos, variando de acordo com o aparecimento de períodos de prosperidade e recessão. O suicida anômico associa sua situação à irritação e situações de decepção por que passa; por desgosto, ao se dar conta da desproporção entre suas aspirações e aquilo que a vida lhe oferece. Outra conclusão que Durkheim tira com seu estudo é que apesar de ser um fenômeno individual, as causas do suicídio são eminentemente sociais. Por isso, o sociólogo fala em “correntes suicidógenas”. Estas correntes originam-se na coletividade, atravessam a sociedade e parecem vitimar indivíduos com certas predisposições psicológicas. Sobre as “correntes suicidógenas” escreve Aron: “As causas reais dos suicídios são, em suma, forças sociais que variam de sociedade para sociedade, de grupo para grupo e de religião para religião. Emanam do grupo e não dos indivíduos isoladamente” (Aron: 2008, p. 488) “O suicídio” ainda continua uma obra atual, além de ser seminal para o estudo da sociologia. Suas informações e conclusões continuam sendo usadas pelas ciências, apesar da discrepância

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de alguns dados em relação à incidência do suicídios em períodos de recuperação econômica (pesquisa de Maurice Halbwachs em 1930 in Durkheim: 150 anos). Tal fato, porém, não reflete uma falha na coleta de dados ou em sua interpretação, mas mostra certas características da sociedade e época onde foram coletados. Em relação à obra escreve Establet: “Atualizando o livro “O suicídio”, nos convencemos de que a obra mantêm sua relevância. Tomando como objeto um fenômeno minoritário, porém de grande repercussão social e psicológica, Durkheim encontrou o verdadeiro terreno da sociologia.” (Establet: 2009, p. 128).

Bibliografia: Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo. Martins Fontes: 2008, 884 p. Durkheim, Émile. As regras do método sociológico. São Paulo. Editora Martin Claret: 2002, 155 p. Giddens, Anthony. Sociologia. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian: 2010, 723 p. Massella, Alexandre B. et al. Durkheim: 150 anos. Belo Horizonte. Argumentum: 2009, 261 p.

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Aspectos sociológicos do capitalismo avançado Foram várias as transformações econômicas, sociais, tecnológicas, culturais e políticas pelas quais vem passando a sociedade industrial ao longo das últimas décadas do século XX e início do século XXI. Um dos principais fatores de mudança – segundo pensadores cujas ideias serão descritas adiante – é a importância assumida pela informação e seu fluxo. Este talvez seja o aspecto que melhor poderia resumir a sociedade pós-industrial ou pós-moderna. A primeira grande característica deste grande quadro de mudanças foi o desaparecimento da União Soviética e do mundo socialista, resultando na incorporação de mais países à economia de mercado. Tais fatos, aliados ao uso disseminado das novas tecnologias de informação, formaram a base do que depois se convencionou chamar de "sociedade pós-industrial", "sociedade do conhecimento", "sociedade em rede", "sociedade pós-moderna", entre outras denominações. O sociólogo americano, Francis Fukuyama (1952) em seu livro "O fim da história e o último homem" (1991) à época falava no “fim da história” – clara alusão ao fim do embate capitalismo versus socialismo, com a (aparente) vitória do sistema de livre mercado. Na área da produção, por exemplo, deixa de vigorar o modelo taylorista-fordista; baseado na divisão de tarefas nos diversos níveis hierárquicos e na clara divisão entre planejamento e execução. Esta forma de organização fabril foi criada por F. W. Taylor (1856-1915) no início do século XX, nos Estados Unidos. Entre a Primeira e Segunda Guerra Mundial o conceito da linha de montagem foi adotado por parte das indústrias produtoras de bens de consumo e equipamentos – até porque o esforço de guerra exigia rápida reposição de produtos e equipamentos. A partir da década de 1950 a linha de produção teve grande expansão, sendo implantada tanto nas fábricas dos países fortemente industrializados, quanto nas nações que davam início a sua industrialização, como o Brasil. A partir da década de 1960 são incorporados mais desenvolvimentos tecnológicos, os quais a partir dos anos 1980 delinearão um novo tipo de indústria, baseada no paradigma informacional. Para este avanço contribuíram o desenvolvimento da tecnologia eletrônica, com a invenção do transistor e do circuito eletrônico miniaturizado (anos 1950) e do circuito lógico programável (anos 1980). As aplicações destes inventos às diversas atividades – telecomunicações, automação, mobilidade, segurança – foram variadas e levaram a um aumento da capacidade de produção e distribuição. Estas mesmas inovações possibilitaram o desenvolvimento de computadores, da automação industrial e bancária e da rede mundial de computadores e das redes sociais (com a internet versão 2.0). No entanto, com unidades de produção e comercialização automatizadas, diminuía a necessidade de mão de obra. A economia demandava um novo tipo de profissional; dotado de mais conhecimentos, flexível, capaz de trabalhar em equipe e tomar decisões. No mundo da administração o final dos anos 1980 e início dos 1990 é caracterizado pelas políticas do downsizing, da reengenharia e da normatização; que fizeram com que milhões de trabalhadores do sistema fordista-taylorista perdessem seus empregos.

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Este, o quadro geral introdutório. Para efetuar a análise dos fatos que descrevemos nas linhas acima, fazemos referência à visão de três sociólogos, cuja interpretação da sociedade póscapitalista resumiremos e comentaremos abaixo. Adam Schaff (1913-2006), influente filósofo e sociólogo marxista polonês, foi membro do Partido Comunista Polonês e do Comitê Executivo do Clube de Roma. Em sua obra “A sociedade informática” (1985) o filósofo faz análises bastante acertadas, sobre como se desenvolveria a sociedade industrial poucos anos depois, apontando a rápida difusão da tecnologia da informática e, consequentemente, a diminuição dos postos de trabalho. Em outro trecho de seu livro, Schaff aponta as mais importantes áreas da revolução técnico-científica então em andamento: a microbiologia e a engenharia genética; a revolução técnico-industrial e a revolução energética. Efetivamente, foram estas tecnologias – amparadas pelo grande desenvolvimento da atividade agrícola (revolução verde, OGM), da medicina, da informática e da difusão das energias renováveis – que rapidamente se desenvolveram ao longo dos últimos 20 anos. Schaff também faz referência aos aspectos humanos da nova sociedade: o papel do Estado, a questão da democracia e o papel do cidadão. Fato é que muitos autores marxistas tinham uma visão pessimista das novas tecnologias da informação, encarando-as como novo instrumento de dominação do homem. Se isto efetivamente ocorreu nos meios de produção, o mesmo não é válido para a circulação da informação (o mais importante elemento da sociedade pós-industrial). A posterior história mostrou que a informática e a internet contribuíram para colocar em cheque o poder de elites de diversos países, apoiando movimentos democráticos, como no caso da "Primavera Árabe". Outro autor a ser citado é o futurista e escritor Alvin Toffler (1928). Em seu livro Powershift (1990) Toffler anuncia o surgimento de uma nova economia baseada no conhecimento, na qual a produção de riquezas é totalmente dependente da comunicação instantânea e disseminação de dados e ideias. Assim como Schaff, Toffler (escrevendo em 1990, depois da Queda do Muro de Berlim) também aponta dois fatores influentes na economia: a automatização aliada à procura por trabalhadores treinados, com capacidades diversificadas. Convencido da importância do conhecimento e de sua comunicação, Toffler também alerta para o perigo da formação de elites com acesso quase exclusivo à informação e conhecimentos, provocando a divisão da sociedade em “inforricos” e “infopobres”. Outro pensador de relevância na análise deste período é o sociólogo espanhol Manuel Castells (1942), autor de importante obra em três volumes "A sociedade em rede”. Em sua análise do novo quadro da sociedade industrial Castells apresenta quatro aspectos principais: 1) A importância da tecnologia da informação; 2) A substituição do conceito de "modo de produção" por "modo de desenvolvimento"; 3) A compreensão da importância do Estado como indutor do processo de desenvolvimento; e 4) A visão da sociedade informacional como uma sociedade em rede (conexões de todos os tipos). Neste contexto, a exemplo de Toffler, Castells considera a informação e sua comunicação como suportes do novo sistema de riqueza e poder, apontando cinco principais aspectos deste paradigma: a) A informação é a matéria prima principal, fazendo

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com que; b) As novas tecnologias se façam presentes em todas as atividades humanas; c) Organizadas na forma de redes; d) Provocando a flexibilidade na organização e reorganização de processos e organizações; e implicando na e) Crescente integração entre biologia e microeletrônica. Castells, talvez porque escreva em uma fase mais avançada da mudança social que ora analisamos, consegue apresentar uma visão mais ampla da sociedade pós-industrial, incorporando em sua análise todas as características apontadas por vários outros autores. Um fator de grande influência no desenvolvimento da sociedade pós-industrial é o tema do meio ambiente. A questão ambiental afetará tanto aspectos econômicos quanto sociais, tecnológicos e culturais da sociedade pós-industrial. No capitalismo "turbinado" da sociedade pós-industrial as novas tecnologias (web, informática, automação, etc.) estão disponíveis para todos, não sendo mais vantagem competitiva. Os grandes fabricantes de produtos de consumo não ganham mais dinheiro com a valorização da qualidade de seus produtos, como no passado. Está atualmente está acessível a todos os concorrentes com o uso da tecnologia. Hoje a taxa de lucro do fabricante depende de volumes vendidos. As vendas, por sua vez, dependem de design, propaganda, distribuição - basicamente do marketing. Para lucrar bastante, cabe aos fabricantes e distribuidores inundar o mundo com produtos de ciclo de vida curto, para forçar o consumidor a acelerar seu ritmo de consumo e assim aumentar a taxa de lucro das empresas. Se o lucro está na quantidade, é necessário fabricar volumes cada vez maiores, aumentando o consumo de recursos (água, eletricidade, matérias primas). No entanto, o maior uso de insumos eleva o impacto ao meio ambiente: destroem-se mais recursos naturais (mineração, desmatamento para agricultura, uso de água, etc.) e geram-se mais resíduos (efluentes, poluição atmosférica, resíduos). Não existe processo produtivo sem geração de resíduos; a produção 100% eficiente é impossível. Por um lado, parece que para sobreviver na forma atual, o capitalismo baseado no consumo de massa precisa continuar funcionando dentro da lógica que tem como consequência a depleção rápida dos recursos naturais. Por outro, sabe-se que estes são finitos e que já estão mostrando sinais de exaustão - falta de água em diversas regiões do planeta, aquecimento global, rareamento de certos metais, exaustão de solos para atividades agrícolas, entre outros. A humanidade está perante um grande impasse envolvendo a reestruturação econômica, social, política e tecnológica; talvez o maior que já enfrentou. A população ainda apresenta um crescimento vegetativo considerável em algumas regiões, aumentando o número de consumidores, pelo menos até a metade deste século, segundo especialistas. É fato que todos precisamos sobreviver, direta ou indiretamente dependentes de atividades produtivas. No entanto, o sistema de produção está organizado de forma a explorar os recursos naturais, utilizando-os em um ritmo mais rápido do que podem ser repostos pela natureza. Novas tecnologias não representam uma solução definitiva, já que a demanda crescente por recursos está na lógica do sistema. O que fazer?

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Fontes pesquisadas: O microchip, pequena invenção, grande revolução. Disponível em : <http://www.lsi.usp.br/~chip/era_da_informacao.html>. Acesso em 22/4/2013 Adam Schaff: from semantics to political semiotics. Disponível em: <www.susanpetrilli.com/Papers%20cart/2._HommageAdamSchaff.pdf>. Acesso em 21/04/2013 O fim da história e o último homem. Disponível em: <http://www.periodicos.udesc.br/index.php/percursos/article/viewFile/1451/1224>. Acesso em 24/4/2013 A sociedade em rede. Disponível em: <http://www.abdl.org.br/filemanager/fileview/374/>. Acesso em 24/04/2013 Executive book report: Alvin Toffler Powershift. Disponível em: <http://www.oss.net/dynamaster/file_archive/040321/cd603a2279fc75351f313ac4e194d5c9/OS S1992-01-08.pdf> Acesso em 23/04/2013 Breve histórico do desenvolvimento das atividades econômicas e da destruição ambiental. Disponível em: <http://ricardorose.blogspot.com.br/search/label/Meio%20Ambiente?updated-max=2010-1014T12:53:00-07:00&max-results=20&start=85&by-date=false>.

Acesso

em

22/04/2014

Sociedade em rede e modo de desenvolvimento informacional: descrições sociológicas da sociedade

contemporânea

sob

o

capitalismo

avançado.

Disponível

em

<http://devotuporanga.edunet.sp.gov.br/OFICINA/geografia-Sociedade_Rede_paradigma.pdf>. Acesso em 10/05/2013

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Capitalismo e a questão ambiental Nos últimos sessenta anos, o capitalismo passou por várias mudanças. Até o início da década de 1960 cabia ao mundo capitalista – ou do que havia sobrado dele depois da Segunda Grande Guerra – como tarefa principal a reconstrução das economias europeia e japonesa. Assim, os países aliados liderados pelos Estados Unidos (a nação mais capitalizada ao final do conflito) criaram o Plano Marshall, que visava destinar recursos para a recuperação da infraestrutura e do setor industrial dos países envolvidos no conflito. O principal objetivo do Plano era fazer frente a um possível avanço do domínio soviético; era o início da Guerra Fria em seu aspecto econômico, a luta do capitalismo contra o comunismo. Os investimentos ajudaram a recuperar os setores de infraestrutura e industrial da Alemanha, França, Inglaterra, Itália e Japão. Construíram-se novas indústrias, mais modernas e com maior produtividade, vários segmentos industriais introduziram a linha de produção em série e muitas empresas passaram a estabelecer padrões de qualidade. Nos Estados Unidos, este período do pós-guerra foi posteriormente chamado de “os anos dourados do capitalismo”. A indústria crescia rapidamente, movida pelo aumento do consumo e pelos baixos preços das matérias-primas (devido à valorização do dólar à época), inclusive do petróleo – a mais importante matéria-prima do sistema econômico, matriz de uma longa cadeia de produtos e combustíveis. Os países não industrializados e não pertencentes ao bloco soviético eram então chamados de países do Terceiro Mundo. Estes continuavam – assim como nos séculos anteriores – como grandes fornecedores de matérias-primas destinadas aos mercados industrializados (EUA, Europa e Japão). Durante a década de 1950 muitos destes países foram incorporados à estratégia de descentralização encetada pelo capitalismo (isto é, por seus agentes, as grandes empresas). É deste período o estabelecimento de fabricas de automóveis, máquinas, equipamentos e produtos químicos em países com o Brasil, a Argentina, o México e a África do Sul, onde havia mão-de-obra e insumos baratos, além de incentivos de diversos tipos oferecidos pelos governos destes países. Assim, o sistema capitalista expande-se, entrando em uma nova fase de produção através da incorporação de novos mercados, o que acabou proporcionando maior volume de negócios no mercado global. Este período de crescimento da economia mundial estende-se até a década de 1980. Novas mudanças ocorrem no final da década de 1980. O quadro agora já é bastante diferente: as grandes economias estão recuperadas da catástrofe da 2° Guerra, seus setores industriais cresciam e se sofisticavam e a economia mundial já havia passado por duas crises do petróleo (aumento unilateral dos preços do petróleo bruto). Paralelamente, são cada vez maiores os avanços tecnológicos, tanto no processamento eletrônico de dados (informática), quanto na automação do processo produtivo (robotização). Por outro lado, aumentam as pressões sobre a indústria, seja pela opinião pública ou leis ambientais recém-criadas. Em 1987 o “Relatório

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Brundtland” representa a preocupação de diversos setores sociais quanto aos rumos do capitalismo em seus aspectos ambientais e socioeconômicos. Fora do Primeiro Mundo a situação é diferente. Os países do bloco soviético enfrentam uma grande crise econômica e política, que em seu desenvolvimento acaba precipitando a queda do regime comunista na União Soviética e em seus satélites. O ápice do processo é a queda do Muro de Berlim, em 1989, considerado por décadas a simbólica divisa geográfica entre o mundo capitalista e socialista. Ao mesmo tempo em que submergia definidamente o sistema socialista, a crise econômica afetava os países do Terceiro Mundo: alta inflação e incapacidade de honrar dívidas, contraídas no mercado financeiro internacional, afetavam muitas economias, inclusive a brasileira. A queda do Muro de Berlim – e, evidentemente, todas as suas implicações socioeconômicas – provocando a abertura das ex economias socialistas à economia de mercado, ocasionou uma grande mudança nos rumos de desenvolvimento do capitalismo. A economia de mercado adquire a hegemonia mundial, provocando a abertura das economias de países também do Terceiro Mundo. É a época do neoliberalismo, do “Consenso de Washington”, dos reaganomics do governo de Ronald Reagan e das reformas políticoeconômicas promovidas pela primeira-ministra Margareth Thatcher, na Inglaterra. No Brasil a economia passa por uma série de mudanças, que, de certa forma, refletem o ambiente do capitalismo no mundo inteiro, durante os últimos anos da década de 1980 e início dos anos 1990, tendo em vista as mudanças já mencionadas: - Abertura das economias, queda das barreiras comerciais, fluxo de capitais; - Estado deixa de ser indutor do desenvolvimento econômico, início do processo de privatização; - Democratização dos governos, valorização crescente da economia de mercado; - Crescente introdução da informática e robótica e rápido desenvolvimento das telecomunicações (internet e telefonia móvel); - Crescente preocupação com a questão ambiental e proteção do consumidor; - Aumento da preocupação com a qualidade, primeiros processos de certificação. A segunda metade dos anos 1990 e os primeiros anos do século XXI representam uma ampliação e aprofundamento deste processo. Ocorre um aumento generalizado do comércio internacional, do fluxo de capitais de investimento, globalização e maior descentralização das unidades produtivas, aumento exponencial das comunicações. A China desponta como a grande economia do século XXI, reunindo e ampliando todos os grandes problemas ambientais e sociais característicos do capitalismo, desde suas origens no final do século XVIII: - Geração de energia à base de combustíveis fósseis (carvão mineral e petróleo), altamente poluentes e causadores do efeito-estufa; - Uso intensivo e exaustão de recursos naturais, como água, solo e biosfera;

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- Produção maciça de bens de consumo descartáveis; - Criação de uma mentalidade voltada para o consumo inconsequente; - Exploração da mão de obra através de baixos salários; - Prepotências das elites governamentais e empresariais, entre outros. Apesar do ritmo acelerado em que o sistema vem se desenvolvendo (mesmo com o curto hiato causado pela crise econômica iniciada em 2008), exaurindo os recursos naturais, ainda é possível alterar curso e reduzir o ritmo da destruição ambiental. Não há, todavia, possibilidade nenhuma de reverter o processo de extinção de espécies, iniciado há aproximadamente 10.000 anos, com a introdução da agricultura, o surgimento das cidade-estado e o aumento gradual da população. Este processo se acelerou definitivamente há 200 anos com o início da industrialização. Com relação a isso, a maioria dos biólogos está de acordo que o processo de extinção de espécies, provocado pelas atividades humanas e a consequente destruição de habitats naturais, é quase igual às destruições em massa ocorridas em outros períodos da história geológica da Terra, como a grande destruição do Permiano há 250 milhões de anos e a do Cretáceo há 60 milhões de anos. Deste modo, segundo muitos especialistas, o processo de exaustão dos recursos naturais pode ser desacelerado – através de uma série de providências na produção e na distribuição – mas não pode ser definitivamente estancado, mesmo com vontade política e boas tecnologias. O aspecto mais grave em toda a degradação ambiental é o impacto dos fenômenos que a acompanharão: furacões, aumento do nível do mar, secas e inundações com todas as suas consequências socioeconômicas – fomes, guerras, migrações em massa, doenças, entre outros. O homo sapiens é muito provavelmente a espécie que provocou o maior impacto sobre o restante dos seres vivos da Terra. Como espécie, desenvolvemos maneiras de nos adaptar ao meio ambiente, baseadas na herança cultural. Tipos de instrumentos e ferramentas, já usados em formatos primitivos por certas espécies de símios, foram aprimorados junto com o uso do fogo e da criação de relações sociais complexas. Foi graças à criação e o desenvolvimento da cultura – transmitida através de uma linguagem gradualmente aprimorada – que evoluímos além dos outros animais. Olhando sob esse aspecto, podemos dizer que as origens de todas as nossas máquinas estão no machado de pedra. Da mesma forma, as mais avançadas pesquisas científicas e produções culturais iniciam-se ao redor do fogo, durante as escuras e frias noites do Paleolítico. O desenvolvimento da cultura humana proporcionou a criação da agricultura, da navegação, da domesticação dos animais, das ferramentas, das religiões e das culturas, da organização social (o Estado), até chegarmos à sofisticação do capital social no qual hoje vivemos. Neste estágio, exercemos um impacto considerável no meio ambiente através de nossa atividade econômica. Os principais impactos que estamos provocando na biosfera são:

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a) Destruição dos últimos biomas intactos, destruindo espécies vivas em um ritmo cada vez mais rápido; b) Poluição dos estoques de água; c) Contribuímos para acelerar o processo das mudanças climáticas através das emissões dos gases de efeito estufa – principalmente metano (CH4), dióxido de carbono (CO2) e clorofluorcarbono (CFC). A própria lógica do sistema capitalista requer que cada vez mais aumente o ciclo de produção de mercadorias. Armando de Melo Lisboa, em seu texto “A Crítica de Karl Polanyi à Utopia do Mercado”, escreve: “O valor é determinado pela escassez. Ele precisa da escassez em alguma medida para se manter elevado. Por isto, o capitalismo é um sistema de criação de desejos e produção de necessidades; é uma civilização fundada no consumismo e no desperdício, sobre processos de obsolescência planejada (as mercadorias não são produzidas para serem consertadas, mas para serem substituídas quando apresentarem defeitos). Esta destruição sistemática de riquezas é intrínseca à racionalidade econômica moderna.” (Lisboa, s.d., pg. 4). As empresas, para sobreviver, precisam ter ganho de escala, colocando cada vez maiores quantidades de produtos no mercado. Por outro lado, o consumidor, através da propaganda, é incentivado a consumir cada vez mais de uma gama cada vez maior de produtos. O sistema econômico baseia-se no consumo e acaba criando sua demanda através de bem elaboradas campanha de marketing. Em outras palavras, o consumidor é induzido a consumir para que as empresas – ou grande parte delas – possam continuar vendendo seus produtos, existindo. Esta lógica, no entanto, aumenta cada vez mais o consumo de energia, insumos e matérias primas, obtidas à custa dos recursos naturais. O problema da exaustão da natureza, seja devido à atividade industrial ou por causa das atividades agrícolas, já vem sendo estudado desde a década de 1960. O Clube de Roma, já naquela época, lançou um alerta a toda a humanidade. A Conferência de Estocolmo em 1972, o Relatório Brundtland em 1987, a Conferência do Rio em 92 e de Johanesburgo em 2002; todas, com diferentes graus de detalhes e propostas, abordaram o tema sustentabilidade. Como resultados destes encontros foram desenvolvidos conceitos como os da eco eficiência, produção mais limpa, gestão ambiental, eficiência energética, entre outros. Muitos destes sistemas estão sendo aplicados em diversos lugares do mundo, inclusive no Brasil. Paralelamente, de forma variada, os países desenvolveram legislações ambientais, criaram órgãos de controle e assinaram acordos mundiais, visando reduzir a poluição (acordo de Montreal, Protocolo de Kyoto, entre outros). Já existem diversas tecnologias disponíveis, capazes de reduzir o impacto das atividades econômicas sobre o meio ambiente. Nos últimos vinte anos, o foco tem mudado do conceito de “final de tubo” - a reparação dos danos ambientais já causados - para uma visão direcionada à precaução – evitar os danos antes que eles aconteçam. Prever e evitar a poluição – o desperdício de matérias-primas, insumos e energia – pode ser evitado através da introdução de sistemas

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racionais de gestão das atividades econômicas. Todavia, o grande dilema é que cada vez mais continuaremos a utilizar recursos naturais. Mesmo que as tecnologias sejam as menos poluidoras possíveis (no sentido de não se dissipar matérias primas, recursos e energia), sempre continuaremos a retirar nossos insumos da natureza. Por outro lado, por mais que reciclemos, não será possível reciclar 100% dos materiais. A acumulação de entropia no sistema só tenderá a aumentar, forçando-nos no futuro a optar pelo que efetivamente deverá ser preservado. A partir do momento em que passamos a depender de recursos que não se renovam – a maior parte deles por sinal – nos tornamos irremediavelmente insustentáveis. No futuro, quando tivermos usado todos os nossos recursos, chegaremos a um ponto em que precisaremos procurar outras fontes. Será que então apelaremos para os minérios da Lua ou de Marte?

BIBLIOGRAFIA Foster, John Bellamy, A Ecologia de Marx – Materialismo e Natureza, Editora Civilização Brasileira: Rio de Janeiro, 2005, 418 pags. Lisboa, Armando de Melo, A Crítica de Karl Polanyi à Utopia do Mercado, disponível em acessado em 10/04/08 Penteado, Hugo, Ecoeconomia – Uma nova abordagem, Lazuli Editora: São Paulo, 2003, 239 págs. Wright, Ronald, Uma Breve História do Progresso, Editora Record: Rio de Janeiro, 2007, 238 pags.

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Consumo e a sensação do tempo “A aceleração contemporânea é, por isso mesmo, um resultado também da banalização da invenção, do perecimento prematuro dos engenhos e de sua sucessão alucinante. São, na verdade, acelerações superpostas, concomitantes, as que hoje assistimos. Daí a sensação de um presente que foge”. (Márcio Rodrigues Alves) O sistema de produção capitalista atingiu uma nova fase de seu desenvolvimento a partir da década de 1950. Os Estados Unidos passam a ser a economia mais forte do planeta, impondo o sistema capitalista a todos os cantos do mundo, incorporando países fornecedores de matériasprimas e consumidores de produtos. Aos países europeus – tanto aliados quanto a Alemanha vencida – o governo americano reserva um lugar especial dentro da estrutura mundial do capitalismo, principalmente para fazer frente ao comunismo soviético e seus aliados da Europa oriental. A este sistema mundial de confronto de forças econômicas e bélicas foi dado o nome de Guerra Fria. Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que a Guerra Fria acabou com a queda do comunismo – a Queda do Muro de Berlim em 1989. Deixam de existir as economias socialistas e em todo o planeta, para o bem e para o mal, passa a vigorar o sistema de livre mercado. Abrem-se novos mercados consumidores e fornecedores (os países do leste europeu também se tornaram fornecedores de mão-de-obra especializada) e o capitalismo mundial entra em uma nova fase. A própria China, baluarte do socialismo de estado, decide promover mudanças em sua economia a partir da década de 1980 e acaba-se rendendo a um capitalismo sui generis. Ao mesmo tempo em que o socialismo desaparecia como sistema econômico, o mundo capitalista realizava e já havia realizado uma série de avanços tecnológicos que impulsionaram o comércio mundial, mais ainda: disseminação da informática, expansão das telecomunicações e da rede mundial (internet). Associado a isso veio a abertura dos mercados, a queda das barreiras alfandegárias na maior parte dos países; fatos que facilitaram mais ainda a circulação de mercadorias e de capitais. Estava assim pronto o ambiente para a mais recente fase de crescimento do capitalismo – antes que tivesse início a crise da economia americana em 2008, com suas consequências na Europa e demais países até o presente. Mas este é um assunto que não trataremos neste curto artigo; limitar-nos-emos a descrever aspectos da última fase de desenvolvimento do capitalismo, que tenham relação com a afirmação do professor Márcio Rodrigues Alves, apresentada acima. Neste estágio o capitalismo tem algumas características específicas. Um dos aspectos principais é a produção em massa, gerando ganhos de escala. O lucro por unidade não é mais tão alto, devido à concorrência entre os fabricantes. Assim, ganha mercado quem – já que os preços são mais ou menos parecidos – investir em inovação, propaganda e distribuição. Um capitalismo movido pelo marketing. A inovação é resultado das demandas do mercado, daquilo que os

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consumidores querem comprar – ou são levados a querer comprar, no caso de produtos de massa. Assim, como diz o professor, ocorre a “banalização da invenção, do perecimento prematuro dos engenhos e de sua sucessão alucinante.” Há uma sucessão constante de novos modelos de produtos, fazendo com que modelos se sucedam e rapidamente saiam de moda – caso dos computadores, celulares e automóveis e toda uma montanha de produtos de baixo custo e giro rápido. É a obsolescência programada. O desejo dos consumidores, no entanto, não é autônomo ou espontâneo. Geralmente é produto de uma maciça campanha publicitária, constante, sempre a despertar novos desejos no consumidor. Em pouco espaço de tempo sucedem-se modelos, marcas e produtos, com uma aceleração cada vez maior do processo de criação, produção e consumo – processo que quanto mais acelerado mais acentua a acumulação capitalista. Os consumidores são envolvidos neste vórtice de consumo pela propaganda e por todo um ambiente social que valida e reafirma este impulso de consumir em um ritmo crescente. Passam a associar a sensação de tempo decorrido com a frequência do consumo: “A última vez que viajei estava com meu penúltimo modelo de celular...” ou “Quando casaram compraram o mais novo modelo de sedam...”, ou ainda “Quando começou a trabalhar aqui ainda utilizava um laptop de modelo antigo...”, e assim por diante... Sob certo aspecto, mede-se o decorrer do tempo pelos objetos consumidos, demonstrando cada vez mais a frequência do consumo. Este fenômeno nos dá a sensação de “acelerações superpostas, concomitantes, às que hoje assistimos. Daí a sensação de um presente que foge”.

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Correntes sociológicas e a questão ambiental No texto “O lugar da ‘Natureza’ na teoria sociológica contemporânea”, o sociólogo e professor da UFRGS, Dr. Luciano F. Florit, apresenta resumidamente certos aspectos das discussões que atualmente ocorrem na sociologia ambiental: o debate entre a linha do realismo ambiental e a do social construtivismo. Ao mesmo tempo, ainda segundo o autor, o texto pretende superar o que ele chama de “clássico dualismo sociológico da estrutura e da ação, ou como também têm se chamado, o dualismo do objetivismo e subjetivismo.” Segundo o autor, não é fácil incorporar a influência dos fatores naturais às discussões sociológicas. Efetivamente, desde sua origem a sociologia sempre procurou se afastar das explicações biológicas, até há pouco classificadas como reducionistas. Um dos fundadores dos estudos sociológicos no Brasil, Gilberto Freyre, escreve em sua obra “Sociologia – Introdução ao estudo dos seus princípios” (1945): A Sociologia, no seu primeiro esforço para firmar status de ciência, baseou-se quase exclusivamente sobre a Biologia, adotando-lhe a terminologia (organismo social, evolução, sobrevivência do mais apto) e por tal modo identificando o social com o biológico ou com o sócio biológico que acabou por não restar quase lugar nenhum, em tal sociologia biológica, para o cultural, muito menos dentro do cultural, para o elemento histórico-biográfico a que acabamos de nos referir. Tentou-se a explicação do fato sociológico pelo fato biológico: do processo sociológico pelo processo biológico (FREYRE, p. 230, 1973). O fato de que os fenômenos sociais não são naturais é, segundo o autor do texto, “um axioma fundador do mainstream do pensamento sociológico sistemático”, fazendo com que a sociedade e o mundo natural se tornassem mundos essencialmente antagônicos. No entanto, a partir da década de 1970 autores como os americanos Riley E. Dunlap e William R. Catton, Jr. começaram a considerar certos aspectos do meio ambiente – como a capacidade de carga de um ecossistema e a finitude dos recursos naturais – em seus estudos. Catton, citado textualmente por Florit, escreve que é preciso perceber os seres humanos “não somente como uma criatura da cultura, mas também como um mamífero em desenvolvimento que faz parte de um ecossistema em transformação.” A discussão proporcionou o surgimento de duas principais correntes de abordagem do problema no interior da sociologia: de um lado o “novo paradigma ambiental” (NEP – New environmental paradigm); de outro o “paradigma excepcionalista humano” (HEP – Human excectionalist paradigm). A primeira corrente advoga que a natureza, o meio ambiente, efetivamente tem influência sobre as sociedades, já que estas estão inseridas e sobrevivem pela atividade econômica que busca seus recursos na natureza. A outra linha, afirma que o estudo das sociedades humanas pode ser feito sem considerar os aspectos naturais, já que estes não têm forte influência sobre as interações sociais.

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Ao longo dos anos 1990, surgem diversos autores na sociologia (Freudenberg & Gramling, 1989; Giddens & Beck, 1996; Irwin, 1997; Buttel, 1996) que de uma maneira ou outra, com mais ou menos ênfase, colocarão os aspectos ambientais no desenvolvimento de estudos e teorias no campo da sociologia. Não por coincidência, surge no mesmo período a economia ecológica, que diferentemente da economia clássica baseia-se no fato de que a atividade econômica é um sistema aberto; retira e devolve matéria da natureza para subsistir. Retiramos recursos (minerais, energia, água) da natureza e submetendo-os a processos industriais os transformamos em produtos. Estes depois de usados voltam ao ambiente na forma de resíduos, lixo. O processo, no entanto, não pode ser repetido indefinidamente, já que todos os recursos – água, solo fértil, minerais – são finitos. A economia ecológica explica de outra maneira aquilo que o sociólogo Anthony Giddens fala na sociologia: a situação atual da humanidade tem conotações bastante diferentes daquela do passado (pré-industrial), por estarem os produtos da cultura humana – a tecnologia e a indústria – na origem dos próprios riscos ambientais. Não há mais como separar natureza e cultura (o famoso dilema nurture and culture), já que são os produtos culturais que estão colocando em risco a sobrevivência da nossa e de outras espécies. Isto é, é nossa atividade econômica, resultado de nossa cultura, que está erodindo os recursos naturais, colocando a sobrevivência do “ecossistema Terra” (segundo expressão de James Lovelock) em perigo no longo prazo. Mesmo assim, como mostra Florit em seu texto, diferentemente daqueles que seguem uma agenda realista, existem correntes na sociologia, como os construtivistas, que encaram esta relação com a natureza de outra maneira. Estes avaliam toda a problemática ambiental como sendo mais um produto da cultura, “produto de uma construção social, envolvendo os processos sociais e sua definição, negociação e legitimação.” Esta linha de pensamento sociológico estima os impactos ambientais (ou sua divulgação) como sendo fatos elaborados em certas circunstâncias socioeconômicas. Um dos maiores representantes desta corrente sociológica, John Hannigan, reporta, por exemplo, que os grandes problemas ambientais, surgidos principalmente entre as décadas de 1980 e 1990 são efetivamente elaborações, constructos, de diversos grupos de pressão (países, empresas, cientistas, universidades), com interesses econômicos e políticos específicos, mostrando desta forma que a atividade científica não é neutra. A chamada “crise ambiental” é para os construtivistas, resultado de atividades socioeconômicas, cujos efeitos sobre a natureza são “interpretadas” pelas projeções intelectuais dos grupos de pressão e formadores de opinião. Em outras palavras, a crise ambiental é muito mais uma construção sociopolítica do que fato científico. No entanto, apesar da aparente oposição entre a linha construtivista e a realista, Florit conclui que em última instância “ambas as perspectivas não tratam, na verdade da natureza em si, mas de construções sociais, sejam estas materiais ou cognitivas.” Mais à frente afirma em seu texto

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que “a atribuição do caráter de ‘natural’ a quaisquer dos objetos analisados por quaisquer destas perspectivas é mais uma construção social.” Esta última avaliação causa estranheza, partindo de um sociólogo. É evidente que toda produção cultural, desde as teorias científicas à tecnologia, é uma construção social baseada em um substrato – aparente um imperceptível – ideológico. No entanto, é preciso fazer uma separação entre componentes efetivamente ideológicos, refletindo interesses de classes ou grupos sociais, e aquilo que pode ser tomado como interpretação (quase) verídica da realidade. Seguindo esta linha de análise teríamos que validar as críticas de Feyerabend, que identificou teorias científicas comprovadas como construtos sociais refletindo interesses diversos. Sendo assim, teorias como a da gravitação universal de Isaac Newton, a teoria da evolução de Darwin, a teoria da relatividade de Einstein e a teoria do modelo do DNA de Crick e Watson também seriam constructos sociais. É fato que todas as nossas teorias científicas não espelham exatamente a realidade; são representações as mais aproximadas possíveis daquilo que ocorre na natureza. Mas nem por isso são simples e meras construções sociais.

Fontes de pesquisa: FLORIT, Luciano F. O lugar da natureza na teoria sociológica contemporânea. XXIV Encontro anual ANPOCS, GT 14, 2000. FREYRE, Gilberto. Sociologia – Introdução ao estudo dos seus princípios Vol I e II – 5ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Editora José Olímpio, 1973. Hannigan, John. Environmental sociology. Disponível em: <http://www.untagsmd.ac.id/files/Perpustakaan_Digital_1/ENVIRONMENTAL%20SOCIOLOGY%20Environmental %20sociology.pdf>. Acesso em 4/5/2013. Perspectivas para uma economia ecológica. Disponível em: <http://ricardorose.blogspot.com.br/2013/03/perspectivas-para-uma-economia.html>. Acesso em 28/04/2013 Setor ambiental brasileiro: estrutura e tecnologia. Disponível em: http://ricardorose.blogspot.com.br/2010/07/o-setor-ambiental-brasileiro-estrutura.html >. Acesso em 4/5/2013 Sociologia ambiental: estudo na perspectiva da sociedade de risco e bioética na esfera da educação. Disponível em: <www.fevale.br/site/hotsite/tpl/86/arqiovos/4-2-2012/8%20%20SOCIOLOGIA%AMBIENTAL.pdf>. Acesso em 28/04/2013.

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Durkheim e o fato social Durkheim, define o fato social da seguinte maneira, em uma passagem de seus escritos: “Fato social é toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então, que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independente das suas manifestações individuais”. Mais à frente no texto, o sociólogo escreve: “Com efeito, os fatos sociais não se realizam senão através dos homens; são resultado da atividade humana” (Durkheim, 2002). A definição de Durkheim é resultado de longas elaborações e sínteses; é uma explicação. Mas, não nos diz (pelo menos neste texto) o que é um fato social de uma maneira clara, de modo a não deixar dúvidas. Segundo a Wikipedia, “fato social é qualquer forma de coerção sobre os indivíduos, que é tida como uma coisa exterior a eles, tendo uma existência independente e estabelecida em toda a sociedade, que é considerada então como caracterizada pelo conjunto de fatos sociais estabelecidos”. A definição da Wikipedia também não parece clara. Mais à frente, no mesmo verbete da Wikipédia vemos que: a)

O fato social tem característica coercitiva, baseada nos padrões culturais do grupo;

b)

O fato social é exterior ao indivíduo e independe de sua consciência; e

c) O fato social é geral, existe para o grupo social e não para o indivíduo específico. Desta forma, segundo Durkheim e a Wikipedia, os fatos sociais são exteriores ao indivíduo, influenciam coercitivamente seu comportamento, têm existência própria e se realizam através da ação dos homens. Baseados nestas afirmações, podemos dar as próximas eleições municipais como exemplo de um fato social, devido as seguintes razões: a) Mesmo que não fossem obrigatórias, as eleições têm caráter coercitivo sobre todos aqueles que delas participam. Existem certas regras, criadas socialmente, que precisam ser cumpridas (regras para votar, regras para os partidos, etc.); b) As eleições são um fenômeno externo a mim, ocorre independente de minha vontade; c) As eleições existem para todo um grupo social, não somente para mim. As eleições, como fato político, só podem acontecer em uma sociedade. Antiga prática das sociedades para facilitar a convivência dos diversos grupos, as eleições modernas têm origem na Inglaterra do século XVIII, quando esta se tornou uma monarquia parlamentarista.

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Por falar na Inglaterra, Robinson Crusoé, perdido sozinho em uma ilha, antes do aparecimento de Quinta-Feira, não pensaria em organizar uma eleição. Para Robinson somente os seus próprios princípios eram sua regra, não havia coerção social, pois só havia ele, tudo o que tinha vontade de fazer, fazia. (Fato é que mesmo depois não precisou organizar uma eleição já que Quinta-Feira era-lhe completamente submisso, pois Robinson tinha um forte argumento: a espingarda). Por outro lado, o terremoto de Los Angeles ou o tsunami da Ásia foram fatos que não tiveram uma origem social, não foram criados em nenhuma sociedade. Podem provocar uma série de fatos sociais (deslocamentos populacionais em massa, realização de milhares de enterros, corrida aos supermercados, etc.), mas não foram fatos sociais – foram desastres (fatos) naturais. Outro aspecto interessante é que para Durkheim o assassinato – apesar de perpetrado por um indivíduo – é um fato social, já que tem origens sociais, diferentemente do tsunami, que tem origem na natureza (ou na vontade de um deus zangado que não faz parte da nossa sociedade). Com relação ao crime, Durkheim escreve: “Em primeiro lugar, o crime é normal, porque uma sociedade isenta dele é completamente impossível” (Durkheim, 2002). Bibliografia: Durkheim, Émile, As Regras do Método Sociológico, Martin Claret Editora: São Paulo, 2002, 155 pgs. Wikipedia, verbete “fato social” http://pt.wikipedia.org/wiki/Fato_social, consulta em 7/08/2015

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Educação na Idade Média O processo de decadência do Império Romano durou cerca de quatro séculos – do século I ao V – e foi acompanhado de uma gradual desestruturação das instituições. As cidades começaram a perder seus habitantes, que se mudavam para os campos, longe das epidemias, das invasões dos bárbaros e onde havia alimentos. Os ricos, igualmente, fugiam das cidades e se estabeleciam em suas propriedades rurais, onde – baseados no trabalho de seus escravos – sobreviviam e mantinham-se afastados das cidades. Neste período (entre os séculos III e X), a vida urbana na Europa sofreu um grande retrocesso, o que também causou impacto sobre todas as atividades caracteristicamente urbanas como a política, o comércio e a cultura. Aos poucos, com a diminuição das atividades citadinas, os agrupamentos humanos tornaram-se cada vez mais isolados, de maneira que somente as cidades mais importantes (então bastante reduzidas de suas populações) mantinham contato regular umas com as outras. No século IV o cristianismo já havia se tornado a religião oficial do império romano e seguia se expandindo pela Gália Transalpina (atual França), Ibéria (Espanha e Portugal) Germânia (Alemanha e Países Baixos) e Britânia (Inglaterra). O grande núcleo difusor do cristianismo naquela época era a Irlanda. Mosteiros da Irlanda mantinham relações diretas com a sede do catolicismo, Roma. Monges irlandeses como São Patrício ajudaram no século V na cristianização de regiões da Gália e da Britânia, de onde, por sua vez, saiam monges para cristianizar a Germânia (com São Bonifácio, padroeiro da Alemanha). Aos poucos se estabelece uma cadeia de mosteiros por toda a Europa Ocidental e Central, que serviria de centro irradiador do catolicismo como centros de cultivo da cultura. Com a derrocada quase que completa de toda a atividade intelectual e cultural na Europa, os mosteiros – principalmente os beneditinos – passaram a ser a sede do conhecimento por muitos séculos. O índice de analfabetismo no início do período medieval era altíssimo, haja vista o pouco valor do saber na sociedade em geral. Os monges cristãos foram praticamente os únicos entre o século V e IX a se dedicarem ao estudo, à produção de conhecimento e à sua conservação. O saber e a cultura não tinham utilidade naquela sociedade. Com a criação do Sacro Império Romano Germânico por Carlos Magno (coroado no ano 800) a estrutura imperial passa a ter uma demanda por funcionários com certos conhecimentos a serem empregados na administração do Estado. Antevendo esta demanda, Carlos Magno criou as escolas monacais. Estas escolas estavam estabelecidas em mosteiros, onde era oferecido o ensino básico (trivium) da época. Para alunos mais adiantados e talentosos era também ensinado o quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música). As escolas monacais foram aos poucos se separando dos mosteiros e tornaram-se autônomas.

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No século XII surgem as primeiras universidades, criadas com o apoio da Igreja para transmitir o conhecimento de nível superior da época – focado principalmente na medicina, no direito e na filosofia e teologia. A criação das universidades começou em Salerno, na Itália, onde se estabeleceu a primeira faculdade de medicina. Logo depois, em Bolonha, cria-se uma faculdade de direito. No decorrer de poucas décadas, toda a Europa está repleta de universidades, congregando um grande número de estudantes. A universidade de Sorbonne em Paris, por exemplo, congregava mais estudantes no século XIII do que no século XIX. Outra característica das universidades é que havia um grande fluxo de professores de uma universidade para outra. São Tomás de Aquino, por exemplo, ensinou em Colônia e Paris e Nápoles. Seu mestre, Alberto Magno, ensinou em Colônia, Estrasburgo, Friburgo e Paris. Este fluxo de professores permitiu uma difusão e nivelamento do conhecimento em toda a Europa, fato que trouxe várias outras consequências para a cultura ocidental.

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Existe o tipo brasileiro? Como introdução ao texto, vale lembrar uma passagem do sociólogo Max Weber, afirmando que: “Não existe qualquer análise permanente “objetiva” da vida cultural, ou – o que pode significar algo mais limitado, mas seguramente não essencialmente diverso, para nossos propósitos – dos “fenômenos sociais”, que seja independente de determinadas perspectivas especiais e parciais, graças às quais estas manifestações possam ser, explícita ou implicitamente, consciente ou inconscientemente, selecionadas, analisadas e organizadas na exposição, enquanto objeto de pesquisa.”(Weber apud Gabriel Cohn, 1989). Nesta citação Weber afirma que nenhuma análise tem uma objetividade absoluta, defensável sob quaisquer circunstâncias. Para descrever o tipo brasileiro ideal já tivemos a contribuição de Gilberto Freire e Sérgio Buarque de Holanda. O primeiro criou um brasileiro típico, como resultado da miscigenação das raças (termo que hoje está ultrapassado nas ciências humanas) negra, branca e ameríndia. Para Freire, foi no cadinho de mistura destes grupos humanos, que se formou a cultura brasileira em todos os seus aspectos – cultural, arquitetônico, gastronômico, religioso, tecnológico, entre outros. Todavia, como não pode haver análise com total imparcialidade, Freire também exagerou em alguns aspectos. O sistema patriarcal no nordeste, baseado economicamente na cultura da cana-de-açúcar e na mão-de-obra escrava, era muito mais violento e opressor do que o grande sociólogo de Recife procurava descrever com sua obra. Enganou-se também Freire ao comparar a casa-grande e a senzala ao feudalismo ibérico. Na verdade, o sistema econômico do ciclo da cana-de-açúcar não tinha mais nada de medieval; estava inserido em um mercantilismo dominado principalmente por mercadores europeus. Sérgio Buarque de Holanda já tem uma análise menos romântica do homem brasileiro, mas também – influenciado por Max Weber – coloca aspectos da sociedade ibérica como formadores da mentalidade brasileira. Holanda ressalta a pouca valorização do trabalho como elemento integrante da cultura ibérica, devido à influência da crença católica. Nesta tradição o trabalho é um castigo, sendo destinado às classes subalternas e aos escravos. Outra característica do homem brasileiro, segundo Holanda, é o pouco respeito pela burocracia. Neste caso nos referimos à burocracia como a organização dos cargos e das atividades de uma instituição, fazendo com que atue com determinados fins, de maneira racional e organizada. Esta aversão a este tipo de organização propiciou o aparecimento das práticas do personalismo, do apadrinhamento e da troca de favores, comuns e atualíssimos na sociedade brasileira. No entanto, os “tipos” descritos por Freire e Holanda, sem dizer algo sobre o tipo ideal brasileiro, refletem muito mais certas características que ainda hoje estão presentes na mentalidade brasileira. Por outro lado, cabe considerar também a forma como as análises de Freire e Holanda estavam influenciadas por ideologias de classe, já que o primeiro pertencia à elite latifundiária do nordeste e o segundo à burguesia do sudeste. Assim, fica a pergunta se ainda é possível apresentar um brasileiro típico, dado a complexidade de grupos e subculturas que compõem o

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caldo cultural do país. A resposta é que a tipificação de uma cultura, de um povo ou país depende sempre do grau de profundidade com que realizamos a análise. Esta, quanto mais superficial, menos atenta a detalhes ou generalizante, tanto menos enxerga e assim acaba finalmente encontrando seu “perfil do brasileiro típico”. O mesmo se aplica, evidentemente, a outras análises onde se deseja identificar o “consumidor típico”; o “torcedor típico”; o “eleitor típico”, e assim por diante; enxerga-se a floresta, mas não as árvores. As generalizações – sobre isso é preciso tomar cuidado – são sempre tendenciosas e não refletem a objetividade dos fatos. A própria análise cultural, segundo Weber, não é objetiva, sendo sujeita a “perspectivas especiais e parciais”.

Bibliografia: FERNANDES, Florestan; COHN, Gabriel. Sociologia – Weber. São Paulo. Editora Ática S/A: 1989, 167 pgs.

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Fatos contraditórios no século XX? Sempre parece fácil analisar a história e apontar-lhe os aspectos que nos interessam. Os fatos já ocorreram, estão registrados, e nós os juntamos, associamos, tentando justificar, provar ou refutar algo. Assim a história se torna um vasto campo de ideias, formadas por fatos, matéria prima para que possamos construir nossa teoria sobre o que ocorreu e o significado que damos a isso. A contradição ocorre quando uma afirmação é falsa e a outra verdadeira. Todavia, fatos são fatos, e o que os torna verdadeiros ou falsos é a sua interpretação – e aí também se incluem os fatos históricos. A contradição não está, portanto, na história, naquilo que ocorreu – exatamente porque aconteceu – mas na nossa maneira de usar as palavras. O século XX foi aquele no qual se deram os maiores desenvolvimentos científicos de toda a história humana. Basta pensar na invenção do avião, na descoberta dos antibióticos, o chip, o foguete e a moderna biotecnologia. Por um lado, o avanço científico e tecnológico foi imenso, em comparação com períodos anteriores da história. Por outro, o ser humano continua a ser o mesmo em seus impulsos básicos – seja a cobiça, o orgulho, e a raiva; ou a compaixão, o respeito e a solidariedade. Foi por influências dos filósofos iluministas e seu entusiasmo pelo desenvolvimento das ciências e da humanidade que surgiu a ideologia do progresso. D`Alembert, Condillac, Voltaire, Diderot e muitos outros, acreditavam que a expansão do conhecimento – educação e cultura – junto com o desenvolvimento científico, conduziriam a humanidade para um futuro de menos obscurantismo e fanatismo religioso (ou político) e mais tolerância. O século XVIII trazia grandes promessas à humanidade: a independência dos Estados Unidos e todos os ideais de igualdade a ela relacionados; a Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; e o início do capitalismo, só para citar os principais aspectos. Para grande parte da intelectualidade do início do século XIX, estaríamos em processo de constante desenvolvimento, a caminho da perfeição (de acordo com as teorias de Hegel). No decorrer do século XIX ocorrem maiores desenvolvimentos nas ciências (química, física, matemática, biologia) e, cada vez mais, tudo parecia estar caminhando em direção ao progresso constante. E é esta a visão ingênua que ainda em parte temos hoje, apesar de tudo que se passou no século XX. Freud, escrevendo ainda antes da 1ª Guerra Mundial e depois dela, chamava nossa atenção para a agressividade inerente no homem, apesar de todos os vernizes culturais. Em O Mal Estar na Civilização Freud teoriza que a sociedade só é possível, porque o homem abre mão de impulsos e desejos que gostaria de realizar, mas vivendo em sociedade não pode. Assim, para que a sociedade humana pudesse persistir, os indivíduos foram obrigados a reprimir parte de suas pulsões, o que por outro lado trouxe descontentamento e, por vezes, agressividade. De certo modo, enveredando por outros caminhos, Freud chegara às mesmas conclusões que o filósofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes. Por baixo da aparente civilidade e cultura, o

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homem ainda é o lobo do homem. Treblinla, Dachau, os diversos gulags, Ivo Jima, Dresden, Hiroshima, A Grande Marcha, Mi Lai, Pol Pot, e muitos outros nomes lembram que os filósofos iluministas e os entusiastas do progresso no século XIX fizeram interpretações limitadas na história. Sendo assim, temos os “aspectos contraditórios” ao qual se refere o texto. A Alemanha como o país educacional e culturalmente mais desenvolvido no início do século XX, mas ao mesmo tempo fechando os olhos à perseguição de seus vizinhos e amigos, só porque eram judeus. A pesquisa da energia nuclear, com grande potencial de aplicação energética e médica, recebendo imensos volumes de investimento (Projeto Manhattan, nos EUA) para construir uma bomba com poder destrutivo como nunca houve igual. Regimes políticos que prometiam liberdade, prosperidade e paz para os povos, transformaramse em organizações criminosas, perseguindo, encarcerando e matando milhões de pessoas em nome de ideais – práticas que seriam consideradas puro fanatismo por Voltaire ou Diderot, se estes pudessem presenciá-los – como a causa da pátria e da raça, a causa do operariado e do socialismo, a causa da Revolução, e outros delírios. Por outro lado, depois da guerra surgiu um tipo de capitalismo novo, mais dinâmico. Espalhado por todo o globo, extrai de todos os rincões sua matéria prima e mão de obra barata, para ganhar bilhões de dólares com especulação. O constante aumento dos níveis de produção – para vender mais – demandam cada vez mais matéria prima (recursos naturais transformados) e geram imensos volumes de resíduos: poluição do ar, do solo e das águas. A produção de alimentos, apesar de ser suficiente para alimentar toda a humanidade, é objeto de especulação e altos lucros. Países com pouca produção agrícola, como todos os países do Oriente Médio, sofrem a cada vez que aumenta o preço de certos produtos agrícolas, por força da especulação de grandes grupos econômicos. Se tivesse que resumir as “contradições” do século XX usaria uma frase do filósofo Blaise Pascal (1623-1662): “Quando, às vezes, me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e os castigos a que eles se expõem, na corte, na guerra, originando tantas contendas, tantas paixões, tantos cometimentos audazes, e muitas vezes funestos, descobri que toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é não saberem ficar quietos dentro de um quarto. O homem que tem suficientes bens para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia dela para ir ao mar ou ao cerco de uma praça. Não se pagaria tão caro um posto no exército, se não se achasse insuportável não sair da cidade; e só se procuram as conversas e os passatempos dos jogos porque não se sabe ficar em casa com prazer.” (Pascal, 1973, p. 75)

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Bibliografia: PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo. Abril Cultura: 1973, 280 p.

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Florestan Fernandes e sua obra sociológica Florestan Fernandes foi um sociólogo que em toda a sua obra sempre se colocou sob o ponto de vista dos excluídos. De origem bastante humilde, descendente de imigrantes portugueses que não tiveram sucesso em São Paulo, Florestan Fernandes começou a trabalhar desde criança, vivendo em condições adversas na região central da São Paulo da década de 1930. Com muito esforço e dividindo seu tempo entre trabalho e estudo, Florestan conseguiu se formar e tornarse professor. Um dos aspectos interessantes da personalidade de Florestan foi sua persistência e seu senso de urgência. Em um depoimento dados por Antônio Cândido, este relata que Florestan, por não ter tempo livre (precisava trabalhar e estudar), aproveitava qualquer minuto disponível para ler. Por ser pobre, trabalhava para se manter, diferente dos outros intelectuais seus colegas, que pertenciam todos a famílias abonadas. Sendo assim, Florestan evitava a todo custo perder tempo com atividades não ligadas ao estudo. As primeiras produções intelectuais de Florestan datam da década de 1940 – época em que também obteve sua graduação e pós-graduação em sociologia –, já demonstrando um forte interesse pelo folclore e pela cultura negra. No final dos anos 1940 produz suas primeiras obras de envergadura, analisando a sociedade e a guerra dos índios tupinambá. A partir dos anos 1950 seus textos aprofundam-se cada vez mais em temas relacionados com sua área de estudos, como as relações raciais entre negros e brancos, o ensino e desenvolvimento da sociologia, a questão do folclore, o subdesenvolvimento e as questões políticas. Suas últimas obras, em 1994 e 1995, tratam da democracia e do socialismo. Apesar de ser um grande intelectual – um dos maiores do século XX no Brasil – Florestan nunca deixou para trás suas ideias políticas, marcadas pela influência da filosofia marxista e do socialismo. Sintomaticamente, um dos primeiros textos escritos pelo grande sociólogo foi “Marx e o pensamento sociológico moderno” (in Marx, Karl, Contribuição à crítica da economia política, traduzido pelo próprio Florestan). Mesmo conhecido no Brasil e no exterior e tendo ocupado um cargo de deputado federal no Congresso, Florestan sempre continuou fiel e solidário aos explorados e oprimidos pelo sistema social. Um dos primeiros textos representativos do autor, retratando um personagem marginalizado – porque pertencente a um grupo indígena – é o texto “Tiago Marques Aipobureu: um Bororo marginal”, publicada na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo em 1946. Neste texto Florestan procura retratar um caso concreto: a crise de personalidade revelada em sua conduta pelo índio bororo Tiago Marques Aipobureu, utilizando-se de material pesquisado por terceiros. Aipobureu foi um índio inteligente, tendo estudado com os salesianos e completando sua educação na Europa. Com saudades volta para o Brasil e se casa. Mas, por não se adaptar completamente à vida do branco ou à do índio, tem uma série de problemas com a esposa, a

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comunidade indígena e a branca. A situação acaba trazendo-lhe vários problemas. Como escreve Florestan: “No fundo, pois, por ser um Bororo civilizado, não “serve” para ambos os grupos”. O tema escolhido reflete a preocupação de Florestan com as camadas mais baixas da sociedade, o que o levará em uma fase posterior a estudar a situação do negro e do racismo. Em sua obra em dois volumes “A integração do negro na sociedade de classes”, Florestan trata das relações raciais no Brasil, contrapondo-se à posição de miscigenação defendida por Gilberto Freyre na década de 1930. No estudo, Florestan também discorda de seu mestre Roger Bastide, professor na USP, que defendia a ideia de uma democracia racial no Brasil. Na obra, Florestan Fernandes utiliza-se de dados empíricos e relatos diversos, para descrever as difíceis condições de adaptabilidade das populações negras a uma sociedade de trabalho livre. Os negros, recém libertos, não estavam adaptados a uma sociedade mercantil. Por não terem tido uma educação, condicionamento e não saberem dispor de certa liberdade que caracteriza o sistema de produção capitalista, os negros sentiram-se em grande parte despreparados para enfrentar este novo ambiente que se lhes abria com a abolição da escravatura. O negro, sempre tutelado pelo senhor, era agora simplesmente “jogado” no mundo e obrigado a tomar suas próprias decisões, sem ter sido preparado para isso. Além disso, as populações negras ainda sofriam a concorrência dos imigrantes brancos – estes já preparados para uma economia capitalista; muitas vezes com experiência de atuação em fábricas e sabendo exercer uma profissão. Os negros, por outro lado, por não terem como se adaptar a sua nova situação social, eram classificados como indolentes, irresponsáveis, incapazes de cumprir acordos – quando na verdade para tal nunca haviam tido oportunidade de se preparar. Em outras palavras, o negro, abolida a escravidão, foi abandonado a sua própria sorte e não recebeu nenhum tipo de assistência para poder participar da nova sociedade que se formava. O que acontece então é que o negro tende a ocupar postos subalternos na sociedade, por não ter sido preparado a utilizar sua liberdade. Apesar de a Constituição de 1891 garantir a igualdade jurídica de todos os brasileiros, o Estado não dá condições para que todos os cidadãos tenham condições de alcançar esta paridade. Os negros, de modo geral, continuaram sendo injustiçados de várias maneiras. Mesmo entre os negros, segundo Florestan Fernandes, havia distinção. Existiam os “negros da casa grande” e os “negros do eito”. Estes últimos tinham exercido funções mais rústicas e por isso não sabiam ler ou escrever; não tinham pessoas que lhes indicassem um cargo ou que lhes dessem alguma roupa para provocar uma boa impressão. As mulheres deste grupo ainda tiveram um pouco mais de sorte, podendo atuar como empregadas, lavadeiras ou cozinheiras. Aos homens estava reservado um destino mais cruel: sem ocupação regular, sobreviviam de serviços temporários e passavam as horas vagas em bares, terrenos baldios tornando-se muitas vezes viciados no em álcool. Esta mesma situação social fazia com que famílias se desestruturassem, gerando promiscuidade e encaminhando as novas gerações muitas vezes para o roubo ou a prostituição.

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Os “negros de casa grande” tinham um pouco mais de chance. Alguns sabiam ler ou escrever e por vezes eram bem relacionados, chegando a receber apoio do antigo senhor. Os trabalhos que exerciam não eram os mesmos exercidos pelos brancos, mas pelo menos ofereciam certas garantia e estabilidade, proporcionando uma melhor integração na sociedade. Conclui Florestan Fernandes que dado este quadro histórico, é impensável a ideia de um povo brasileiro único, na forma de uma democracia social, como escreveram alguns autores do século XX. Fato é que os negros nunca foram totalmente excluídos da sociedade de classes, nunca houve um conflito aberto inter-racial. Mas por outro lado também é verdade que os negros nunca foram tratados como iguais; a promessa da abolição continuou sendo uma promessa não realizada.

Bibliografia: Democracia racial, Disponível em: < www.fflch.usp.br/sociologia/asag/Democracia%20racial.pdf> Acesso em 14/09/2011

Fernandes, Florestan. Leitura & Legados. São Paulo. Global Editora: 2010, 374 p.

Florestan Fernandes e o negro: uma interpretação política. Disponível em: < HTTP://grabois.org.br/beta/imprimirev.php?id_sessao=50&id_publicacao=151&id_indi...> Acesso em 15/09/2011 Resenha “Integração do Negro na Sociedade de Classes”: uma difícil via crucis ainda a caminho da redenção. Disponível em: < www.cchla.ufrn.br/cronos/pdf/9.1/r1.pdf> Acesso em 13/09/2011

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Hobbes e a violência A concepção de Estado em Hobbes é consequência de como o filósofo enxerga a natureza humana. O filósofo, talvez influenciado pela visão pessimista do homem vigente em seu tempo e baseado em relatos de exploradores em visita às Américas, não enxerga a natureza humana com otimismo. Hobbes declara que o homem em seu estado natural, antes da criação da sociedade organizada, vivia impulsionado por suas paixões e desejos. Estes, entretanto, não são necessariamente bons ou maus, já que não existe uma lei destinada a controlar estas volições. No estado natural os homens, movidos por suas paixões – resumidas na competição, na desconfiança e na glória (o orgulho) – estão em constante estado de beligerância, agressão e rivalidade. Hobbes fala em estado de guerra, mas ele mesmo em seu texto explica que não se refere somente a um conflito estabelecido, mas a toda uma situação de violência, onde todos estão competindo contra todos. Escreve o filósofo: “Alguém talvez possa pensar que nunca existiu um tempo ou condição para uma guerra semelhante; eu creio mesmo que, de modo geral, nunca ocorreu em algum lugar do mundo; entretanto há lugares em que o modo de vida é esse. Os povos selvagens de vários lugares da América, com exceção do governo de pequenos grupos, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem um governo geral e vivem, em nossos dias, da forma embrutecida acima referida.” (Hobbes: 2011 p. 96). Esta é, segundo o filósofo inglês, a situação do homem em seu estado natural. Nesta condição, cada homem tem o jus naturale, a liberdade que cada indivíduo tem de seguir seus próprios impulsos, a fim de preservar sua própria vida. Consequência desta situação é que se estabelece a lei natural, a lex naturalis, que pela razão obriga a cada homem a agir de acordo com seus interesses, protegendo a própria vida e tudo aquilo que ajude a mantê-la (família, propriedades, riquezas e recursos). Esta situação é levada ao extremo, quando efetivamente existe uma guerra de todos contra todos, cada qual seguindo sua jus naturale, baseado na lex naturalis. Escreve Hobbes: “Uma vez que a condição humana (como vimos no capítulo anterior) é a guerra de uns contra outros, cada qual governado por sua própria razão, e não havendo algo que o homem possa lançar mão para ajudá-lo a preservar a própria vida contra os inimigos, todos têm direito a tudo, inclusive ao corpo alheio. Assim, perdurando este direito de cada um sobre todas as coisas, ninguém poderá estar seguro (por mais forte e sábio que seja) de que viverá durante todo o tempo que normalmente a Natureza nos permite viver.” (Ibidem, p. 98). Segundo Hobbes, vendo que a vida humana era “solitária, pobre embrutecida e curta” os homens gradualmente decidiram abrir mão de parte de seus direitos, da lex naturalis, com o objetivo de procurar a “paz entre os homens”. Cria-se um processo de transferência mútua de direitos na forma de um contrato social, cuja consequência última é a criação de um Estado.

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Hobbes resume todo este processo no capítulo XVII de seu livro Leviatã: ” A causa final, fim ou desígnio dos homens (que apreciam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir a restrição a si mesmos que os leva a viver em Estados, é a preocupação com a própria conservação e a garantia de uma vida mais feliz.” (Ibidem, p.123). Com relação ao medo da morte, este sempre acompanhou a humanidade desde a pré-história. As próprias religiões representam uma resposta a este medo atávico da “indesejada das gentes”. Este medo da morte, presente em toda a cultura humana, é natural e está relativamente sob controle, excedendo-se apenas em uma ou outra personalidade mais perturbada. A pesquisa, apresentada recentemente na imprensa brasileira, constatando altos índices de medo por morte violenta entre os pesquisados, é claramente um fato social, pelas suas características. O medo da morte violenta reflete uma anomia social – para utilizar a expressão de Durkheim – não representando uma situação normal em uma sociedade. O fator causador mais provável deste tipo de medo coletivo é a presença de um risco; de que tal fato efetivamente possa vir a ocorrer com qualquer pessoa, em determinadas condições. Sendo assim, é real – não apenas uma ficção criada pelos meios de comunicação – e provoca uma situação de medo entre a população. Nestas condições, é evidente que falta uma intervenção do Estado para coibir este tipo de problema social; o aumento dos assassinatos – seja em que condições for (roubos, sequestros, vinganças, etc.). O Estado tem a função de zelar pela ordem e aplicar a justiça, em quaisquer situações. O não cumprimento de sua função de mantenedor da ordem, coloca o Estado – e seus governantes – em uma situação de ilegalidade, de não cumprimento de sua parte em um contrato social. Em casos extremos, este tipo de situação poderia dar origem a movimentos de sedição, com a derrubada da ordem instituída e sua substituição por outra.

Bibliografia: Hobbes, Thomas. Leviatã – 5ª. Reimpressão. São Paulo. Editora Martin Claret: 2011, 489 p.

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Mais consumo é progresso? Nossa civilização existe há pouco mais de 1.500 anos, nascida das instituições que restaram depois do desaparecimento do império romano, no século V. No plano das ideias, desde o final do século XVIII com os filósofos iluministas e o advento do capitalismo industrial, firmava-se o conceito de que nossa civilização (ou a sociedade europeia da época) estava em evolução. Associamos as mudanças que ocorrem – o avanço científico e tecnológico, as mudanças sociais e econômicas – necessariamente a uma melhoria, ao progresso. Esta ideologia foi largamente divulgada pela cultura europeia do século XIX, tendo também forte repercussão no Brasil através da filosofia do positivismo – o lema “ordem e progresso” em nossa bandeira reflete esta influência. No século XX, depois da 2ª. Guerra Mundial, o capitalismo avançou sobre todas as regiões do mundo. A linha de produção em massa, que permitia aumentar a oferta e baratear bens e produtos, difundiu-se por todo o globo. Regiões que historicamente não pertenciam à civilização ocidental passaram a ser incorporadas a esta comunidade, através das forças econômicas do capitalismo. A possibilidade de consumir uma grande diversidade de produtos industrializados passou a ser sinônimo de progresso. Ainda nessa linha de raciocínio, o nível de industrialização e de negócios realizados no país – o Produto Interno Bruto (PIB) – era a medida da evolução do país. Este tipo de raciocínio avançou tanto ao longo dos últimos quarenta anos, que as instituições financeiras internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), passaram a medir a evolução (ou o crescimento) da economia mundial e dos países através do aumento do PIB. Assumia-se tendenciosamente que o aumento da atividade econômica de uma nação significa necessariamente progresso, evolução. Neste raciocínio estava embutido o falso conceito de que assim como a economia de um país crescia, melhoravam as condições de vida de sua população. Utilizava-se o mesmo padrão para comparar duas situações diferentes. De um lado, os países desenvolvidos, que em grande parte já tinham resolvido seus problemas de infraestrutura, educação, saúde, entre outros. De outro, os países pobres e em desenvolvimento, que em sua maioria ainda precisavam encaminhar soluções para todas estas carências. No Brasil atual temos a mesma situação. Progresso, para grande parte da população é associado ao aumento do consumo de bens. Esta ideologia é divulgada e defendida – explicita ou implicitamente em suas mensagens – por empresas e governo. Quando se fala em educação, por exemplo, é sempre para capacitar cidadão a exercer uma função produtiva (engenheiro, técnico de enfermagem ou padeiro) dentro do sistema econômico, a fim de que possa produzir e consumir mais. Da mesma forma é tratada a cultura, geralmente como lazer do cidadão, quando este não está voltado para a produção ou o consumo. A mudança desta situação só acontecerá quando a educação, a cultura, a saúde e outros benefícios que uma sociedade deve oferecer aos seus membros, existirem para o benefício do

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cidadão, e não como “itens adicionais de um pacote de vantagens para o produtor/consumidor”. Progresso, se esta palavra tiver realmente algum significado, é muito mais do que aumento da produção e do consumo.

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Melhora ou estagnação? Em um recente artigo publicado na imprensa, o sociólogo e acadêmico paulista José de Souza Martins trata de um fenômeno social relativamente recente no nosso pais: a crescente dificuldade para a ascensão econômica. Enquanto que em meados do século XX o filho trabalhava, progredia e alcançava um padrão de vida melhor que o de seu pai e bem superior ao do avô, hoje são felizes os que ainda conseguem viver tão bem quanto seus pais. O fenômeno não é exclusivo do Brasil. Na Europa, há quase duas décadas, existe o problema dos jovens que não conseguem emprego fixo. A maioria, sem formação superior, já se conformou com o fato de que não obterão um trabalho regular, com boa remuneração, ao longo de sua vida. Parte deles vive geralmente com os pais e recebe ajuda do Estado. Bem diferente da sorte de seus pais, que nas décadas de 1950 e 1960 viviam em economias de pleno emprego, já que a Europa estava reconstruindo os estragos da Segunda Guerra. A demanda por trabalhadores era tal, que países como a Alemanha e a França importavam mão de obra de outros países europeus e do Norte da África. Nos Estados Unidos o fenômeno ocorreu de maneira semelhante. Depois de vertiginoso crescimento ao longo dos anos 50, 60 e 70, exportando produtos e o estilo de vida americano para todo o mundo, a economia começou a fraquejar. Alternância de crises e recuperações, associada à automatização e desnacionalização de parte da indústria, somada à transferência das fábricas para o México e, principalmente, para a China, deixaram milhões de americanos desempregados. Grande oferta de empregos para operários (blue collars) e altos salários e comissões para executivos (white collars) já não existem mais para a maior parte da classe média, principalmente depois da crise financeira de 2008. A decepção com o governo Obama e a eleição de Donald Trump, são sintomas da insatisfação de parte da população com esta situação. Voltando ao Brasil, são diversos os fatores econômicos, sociais e tecnológicos que nos colocaram nesta situação de estagnação da renda. No aspecto social houve rápido crescimento populacional, principalmente a partir dos anos 1950, e aumento do acesso à educação - não que esta fosse de bom nível, mas era (e ainda é) melhor do que nenhuma. Na área tecnológica a partir dos anos 1990 cresceu a informatização e automatização de processos comerciais e industriais. Tais aspectos contribuíram para criar mais concorrência no mercado de trabalho e, consequentemente, reduzir salários. Por outro lado, uma economia burocratizada, engessada por dispositivos legais de todo tipo, além de pouco aberta ao mercado internacional, ajudou também a limitar a criação de maior número de postos de trabalho. Nos últimos vinte anos a economia brasileira praticamente não se inovou. Foram os períodos de alto consumo - acelerado pela facilidade de crédito e pelos investimentos do Estado em obras de infraestrutura -, que contribuíram para aumentar o número de postos de trabalho. A maior

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parte destes empregos, no entanto, era de cargos com baixa remuneração (1-2 salários mínimos). Em todo esse processo, o que mais parece ter crescido nas últimas décadas foi o tamanho do Estado. Aumentou o número de ministérios (para acomodar aliados políticos e membros do próprio partido) e, consequentemente, o número de autarquias, agências e demais órgãos públicos. Não havendo mais tantas estatais onde alocar cabos eleitorais, militantes e filiados muitas delas, criadas nos anos 1970, haviam sido privatizadas -, foi preciso ampliar a estrutura do Estado. Assim, criada a estrutura, foi necessário contratar profissionais para administrar e operar a máquina estatal com certa competência. Abriram-se concursos públicos para milhares de cargos, pagando salários relativamente altos em relação ao restante do mercado. Por essa razão os empregos públicos são os mais procurados pelos jovens formados. Melhores salários, estabilidade, regalias dos mais diversos tipos, são atrativos para os profissionais em início de carreira, que não veem muitas possibilidades de ascensão profissional e financeira na iniciativa privada - ainda mais agora, com salários reduzidos. Quais outras oportunidades oferece a combalida economia brasileira para um jovem recém-formado? Enquanto que em outras economias, a posse de um diploma de curso superior é fator decisivo para encontrar um emprego com remuneração bastante aceitável para um jovem profissional, por aqui o mercado pouco valoriza o esforço, o tempo e o dinheiro gastos pelo do jovem para obter a titulação (se o diploma habilita o profissional a atender às demandas do mercado é outra questão que envolve a qualidade do ensino no Brasil). Voltamos agora ao que tratamos no início de nosso texto. Dadas as condições da economia brasileira nos últimos trinta ou quarenta anos - uma sucessão de "voos de galinha" -, é difícil uma ascensão econômica estável para os indivíduos. A fase de prosperidade é seguida pela de crise; as economias e os bens amealhados nos bons tempos precisam ser gastos na sobrevivência durante o período das "vacas magras". Não há mais possibilidade de uma crescente melhoria do padrão das novas gerações. Será este um novo paradigma do moderno capitalismo e de seus capitalismos periféricos, como o do Brasil? Sobre isso há várias teorias. O economista francês Thomas Piketty, em seu livro mundialmente famoso O Capital no século XXI, depois de analisar grande volume de dados, concluiu que há fases na história do capitalismo em que o capital tem maior valorização. Em outros períodos, bem mais curtos é verdade, a remuneração do trabalho é mais alta. De acordo com o economista, estamos em um período de valorização do capital, que teve início nos anos 1980 e deve continuar nos próximos anos, caso não haja reformas nas políticas de taxação da maior parte dos países. Outra linha de pensamento econômico fala da "estagnação secular". Segundo esta teoria econômica, a lenta recuperação das economias avançadas depois da crise de 2008 não é uma exceção limitada ao atual período histórico. Esta tendência deverá se tornar uma situação normal

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ao longo dos próximos anos. Isto ocorre por diversos fatores, principalmente devido ao pouco controle que os bancos centrais exercem sobre o mercado financeiro mundial. Teorias, principalmente na área econômica, são baseadas em grandes generalizações sobre os fatos; não são previsões. Mas, além do que preveem as teorias, o que podemos dizer às futuras gerações quanto às suas aspirações e seus planos de vida melhor? Será que um dos fortes argumentos das vantagens do capitalismo em relação a outros sistemas, de que cada geração viveria em melhores condições do que a precedente, não existe mais?

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Migrações e ambiente Desde a pré-história os homens se deslocam para outras regiões, em busca de melhores condições de vida ou para fugir de alguma ameaça. A atual região do deserto do Saara, por exemplo, já teve exuberante vegetação e era cortada por rios, habitados por crocodilos, hipopótamos e bandos de caçadores. No entanto mudanças climáticas ocorridas ao longo dos últimos 10 mil anos, relacionadas com o fim da mais recente Era Glacial, tornaram o clima do Saara mais seco, com menos precipitação pluviométrica. O avanço do deserto fez com que grupos humanos que habitavam a região se deslocassem para as margens do rio Nilo, onde havia fertilidade e oferta de água. Aos poucos esta população humana foi desenvolvendo uma cultura peculiar, dando origem à civilização egípcia. O processo de formação da civilização suméria (cerca de 4.500 a.C. na região dos rios Tigris e Eufrates) e da civilização de Mohenjo Daro (situada no vale do rio Indo em 2.500 a.C.) deve ter sido semelhante. Fato parecido ocorreu no início da Idade Média, entre os séculos V e VIII, quando povos germânicos vindos do leste da atual Rússia invadiram a Europa central e ocidental, provocando grandes transformações políticas e sociais. A chegada destes povos – ostrogodos, visigodos, alanos, vândalos, entre outros – contribuiu para a formação da organização social que mais tarde se convencionou chamar de civilização cristã ocidental e da qual também somos herdeiros. As migrações de povos sempre exerceram grande influência sobre o meio onde ocorreram. A chegada de pessoas com outros costumes, outras tecnologias, crenças e organização social diferente, provoca um grande impacto; seja no ambiente humano ou natural onde se estabelecem. Tal fato fica claro se compararmos a chegada dos primeiros povos ao território onde hoje fica o Brasil, há cerca de 15 mil anos, com a vinda dos europeus, há 500 anos. Os primeiros habitantes que aqui se estabeleceram provocaram um impacto ambiental bastante reduzido. Apesar de promoverem queimadas para o plantio, praticarem o manejo florestal em pequena escala e terem práticas de adubagem do solo (a “terra preta de índio” da Amazônia), poucas marcas sobraram das atividades destes primeiros moradores. Bem diferente foi o impacto provocado pela chegada dos europeus. Além de destruírem o ambiente natural – começando pela extração do pau-brasil e a derrubada da mata para o plantio de cana-de-açúcar – os europeus (ou portugueses) também destruíram o ambiente cultural das tribos indígenas. A escravidão, os massacres e as doenças, contra as quais os indígenas não tinham anticorpos, acabaram dizimando povos e culturas que levaram milhares de anos para se formar e estavam bem adaptados ao seu habitat. Aqui ainda cabe lembrar que tal processo ainda não terminou. A cada ano se descobrem novas tribos indígenas, que nunca tiveram contato com a nossa cultura, e que deixarão de existir nas próximas décadas – graças ao processo de expansão de nossa atividade econômica, com a construção de estradas e barragens, a mineração, o desflorestamento, criação de gado e avanço da fronteira agrícola.

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Especialistas tentam hoje escrever uma história da espécie humana, sob ponto de vista dos deslocamentos e do impacto que estes provocam em outros ambientes e culturas. Trata-se de uma nova perspectiva, mais dinâmica e interativa, da qual todos nós fazemos parte.

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No país das declarações O Brasil, que já foi intitulado, entre outras coisas, de “país dos magistrados”, “país do futuro” “país do samba, futebol e carnaval”, “país tropical”, está prestes a adquirir mais um título. Desta vez será o “país das declarações”. Durante toda a história do país provavelmente não houve um período histórico – desde o surgimento da imprensa evidentemente – em que foram dadas tantas declarações nas mais diferentes situações. Em nosso país de tradição autoritária, tanto na política quanto nas relações sociais, uma declaração é muitas vezes tomada como uma entrevista; um relato sobre determinado acontecimento ou explicação de algo que ocorreu – quando na prática não é isso. As chamadas “entrevistas”, que aparecem na mídia, relacionadas a acidentes envolvendo a morte de pessoas, danos ao patrimônio e meio ambiente são, na prática, declarações. Executivos de empresas, ou porta-vozes de instituições quando “entrevistados”, eventualmente respondem a algumas perguntas, desde que não sejam questionados aspectos do que informaram (leia-se “declararam”). Em situações envolvendo o governo ou políticos o procedimento é geralmente o mesmo. São poucas as ocasiões em que o entrevistado efetivamente está disposto a responder a todas as perguntas e nas quais os jornalistas possam colocar em questão afirmações do entrevistado. Tais situações, em geral, só ocorrem no ambiente protegido dos estúdios de TV, durante entrevistas cujo resultado já está tacitamente acertado entre as partes. Declarações são situações em que se faz um relato sobre determinado fato ou acontecimento, em favor de outra pessoa, causa ou ideia, procurando evidenciar uma verdade na qual se acredita ou quer se fazer acreditar. Tal declaração também pode ser utilizada como ato de prova a favor ou contra algo ou pessoa. Uma declaração sempre expressa um ponto de vista ou uma opinião. Ou seja, – e aqui um aspecto muito importante – a declaração envolve sempre um posicionamento, uma conclusão que se defende a respeito de um acontecimento. No Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa (edição de 1982) lemos a definição: s. f. (l. declaratione). 1. Ação ou efeito de declarar. 2. Aquilo que se declara; afirmação formal; asserção explícita. 3. Documento em que se declara alguma coisa. 4. Depoimento. 5. Informação ou documento que informa a respeito de quantia, número e espécie de rendas, lucros, bens [...] A tática da declaração geralmente funciona, quando o receptor da mensagem não dispõe de nenhuma ou poucas informações sobre o assunto que está sendo tratado pelo emissor. Assim, na falta do contraditório, pelo menos naquele momento, o declarante tem uma grande vantagem sobre seu público. A possibilidade de evitar as perguntas dos jornalistas sobre o ocorrido, faz com que a declaração (ou versão) seja tida como interpretação verdadeira dos fatos – pelo menos até que surjam mais informações sobre o assunto em questão.

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A estratégia da declaração muitas vezes funciona; se não completamente, pelo menos de maneira a impedir ou postergar a apuração dos fatos como verdadeiramente ocorreram. Isto por diversas razões. Sob aspecto da psicologia social é bastante importante a primeira versão do fato, aquela dada através de declaração à imprensa pelo causador do ocorrido ou por seu agente. No caso das tragédias sucedidas ultimamente no país, trata-se daquela primeira “entrevista” dada à imprensa pelo presidente da mineradora ou do clube de futebol, dizendo-se consternado e profundamente triste com o acidente. Nesta declaração, sempre são utilizadas frases e palavras que mostrem a surpresa perante o ocorrido e sensibilização com o sofrimento das vítimas. Implícita também fica a mensagem de “estamos sofrendo com vocês!” Outra razão pela qual a declaração funciona é que grande parte da população não segue o desenrolar das investigações sobre o fato em detalhes. Geralmente, apesar do trabalho da imprensa, as informações são absorvidas parcialmente e a maior parcela do público não chega a conhecer os detalhes e as implicações do acidente com a empresa, ou do crime envolvendo o político. Por final resta ainda falar sobre a atuação da imprensa, que na opinião de muitos – principalmente jornalistas tarimbados – perdeu parte de sua capacidade investigativa nos últimos anos. Interesses econômicos, pressão política, além da necessidade de sobrevivência do próprio veículo de imprensa, fazem com que em muitos casos o ocorrido não seja investigado com a imparcialidade que se espera – principalmente em acontecimentos envolvendo políticos. Assim, permanece a questão se a sociedade brasileira se dá por satisfeita com declarações, ou se valoriza a liberdade de imprensa, exigindo acesso, o mais próximo possível, aos fatos.

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Novo êxodo rural afetará as cidade Mais uma previsão preocupante acaba de ser divulgada pelos cientistas nas últimas semanas. Segundo especialistas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o êxodo do campo para as cidades deverá aumentar em todo o mundo durante a próxima década. A tendência é que o aumento da mecanização reduza cada vez mais a oferta de trabalho na agricultura, forçando a população a procurar melhores oportunidades nas cidades. Esta movimentação de pessoas fará com que cresça a demanda por serviços como educação, saúde, transporte e saneamento, além de acelerar a procura por moradias. O fato deverá gerar uma grande pressão sobre as estruturas urbanas, forçando as administrações municipais a aumentarem seus investimentos nestas áreas. Não é a primeira vez que este fenômeno acontece. Vários países em desenvolvimento viram ocorrer grandes deslocamentos da cidade para o campo durante as décadas de 1950 a 1980, quando se formaram grandes metrópoles em todo o mundo. Nos últimos 20 anos o fato se repetiu na China, onde cerca de 20% da população (260 milhões) se mudou dos campos para os centros urbanos. Na África, 45% dos habitantes do continente (360 milhões) deverão estar morando em cidades até 2015. No Brasil, cuja população se tornou majoritariamente urbana em menos de meio século, o êxodo rural também deverá continuar. A mecanização cada vez maior de diversas culturas agrícolas diminui cada vez mais o número de postos de trabalho, como já vem acontecendo gradualmente na cultura da cana-de-açúcar. Baseado em dados atuais, a União da Agroindústria do Açúcar (Única) estima que ocorra uma redução de 114 mil empregos até a safra 2020/2021. Ainda segundo a OIT, este deslocamento populacional para as cidades criará a necessidade de 440 milhões de novos empregos em todo o mundo, durante os próximos anos. Os grandes centros, alvos principais destas migrações, precisarão necessariamente ampliar sua infraestrutura, capacitando-se a atender esta nova população, para evitar que se repita o mesmo erro do passado. Premidos pela falta de espaço e moradias, milhões de pessoas passaram a habitar áreas de várzea, fundos de vale ou as bordas das metrópoles, destruindo as últimas reservas de área verde e invadindo áreas de proteção aos mananciais. As ocupações de partes da reserva da Serra da Mantiqueira e da região da represa Guarapiranga, em São Paulo, são exemplos deste fato. Segundo dados da Secretaria Municipal de Habitação de São Paulo (SMH/SP), a cidade precisaria investir cerca de 56 bilhões de reais para resolver seus problemas de habitação, promovendo reurbanização de favelas, urbanização e regularização de loteamentos, recuperação de cortiços e implantação de infraestrutura e serviços públicos nas áreas de mananciais. No planejamento das grandes cidades é cada vez mais importante a possibilidade de se prever a ocorrência de fenômenos sociais, econômicos ou ambientais que influirão no desenvolvimento urbano. A velocidade cada vez maior das mudanças e a inter-relação dos acontecimentos exigirá crescentes esforços das administrações, procurando se antecipar às consequências.

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O automóvel e o espaço urbano Os veículos automotores têm uma influência muito grande no desenvolvimento das cidades. Além de provocarem alterações no clima e na temperatura das metrópoles, são responsáveis por um processo de urbanização que prioriza a mobilidade do automóvel e não a das pessoas. Assim, grandes aglomerados urbanos como São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Belo Horizonte e outras regiões metropolitanas, sofreram grandes mutações em função dos veículos. Atualmente, as ruas servem essencialmente à circulação dos carros, ocupando muito espaço e transportando poucas pessoas. O pedestre foi expulso para as estreitas calçadas; estas muitas vezes em desnível, esburacadas e transformadas em depósito de tudo aquilo que não pode ficar na rua – material de construção, entulho, lixo e veículos menores. Na cidade, as ruas se transformaram em ligação entre um ponto e outro; percorre-se a maioria das ruas e avenidas como se estivesse passando por uma autoestrada, sem qualquer tipo de atrativo. Deslocamonos do ponto A para o ponto B, mas não temos nenhum interesse pelo caminho que percorremos. As ruas são o que se denomina de “as artérias de circulação” da cidade, por onde se deslocam pessoas e produtos, sempre visando chegar a um outro lugar. Já se foi a época em que as avenidas e ruas eram locais de passeio, de convivência, de – mesmo que curta – permanência das pessoas. Com este reordenamento urbano formam-se verdadeiros guetos e fortalezas, representados pelos condomínios fechados e apartamentos, com sistemas de segurança eletrônicos e equipes de vigilantes. Parte dos habitantes das cidades, por sua vez, desloca-se de uma base – a casa, o emprego, o shopping-center, o restaurante – para outro ponto da cidade, usando horas nesta movimentação, já que nas megacidades as atividades são separadas por grandes distâncias. A inexistência de um sistema de transporte público amplo e eficiente faz com que aqueles que podem se movimentem com seu próprio veículo: o automóvel. Em São Paulo, por exemplo, são mais de sete milhões de veículos que diariamente formam verdadeiras "correntes"; "rios" de veículos fluindo pelas ruas e avenidas. Assim, dois fatores principais – o crescimento rápido e desordenado das cidades e a priorização do transporte individual através do automóvel –, fizeram com que muitas cidades em todo o mundo se transformassem em arquipélagos, formados por “ilhas” ou centros de atividades, localizados em diferentes locais da metrópole. Existem os locais ou “ilhas” de compras, nos shopping-centers ou regiões que concentram as lojas; as “ilhas” residenciais, onde se localizam os condomínios; as “ilhas” ou bairros empresariais, sede dos escritórios e das indústrias. Em sua vida diária, os habitantes precisam se deslocar (ou navegar) entre estas diversas “ilhas”, cada uma com suas características próprias. Existem cidades de grande porte, como Londres, New York e Berlim, que desenvolveram um sistema público de transporte que atende a população, permitindo que esta não dependa tanto

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do automóvel. No Brasil, apenas nos últimos anos se começou a perceber que a forma de mobilidade do cidadão tem uma forte influência na urbanização da cidade. Ou seja, a maneira de como a população urbana se desloca para suas atividades diárias deixa uma marca na aparência da cidade. No caso das grandes metrópoles, o automóvel - efetivamente a mobilidade rodoviária - praticamente modelou a paisagem nos últimos cinquenta anos.

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O conceito de solidariedade em Durkheim Durkheim foi o grande sistematizador da sociologia. Defendia que a principal tarefa da sociologia era a análise dos fatos sociais, já que estes tinham uma existência externa e independente dos indivíduos. Outra característica dos fatos sociais é que estes têm um poder coercitivo sobre os indivíduos, que muitas vezes nem percebem esta ação. Exercem seu poder condicionador sobre os indivíduos através de formas que podem variar de um simples mal-entendido (como no caso do uso de uma palavra errada em uma conversa) até o castigo ou pena (no caso de uma infração ou crime). Os fatos sociais, ensina Durkheim, são intangíveis e só podem ser analisados através dos seus efeitos, como as leis escritas, as normas técnicas, etc. Para estudá-los, o pesquisador deve deixar de lado ideias preconcebidas e utilizar-se de conceitos gerados apenas na práxis científica. Uma das primeiras questões que Durkheim se colocou em seus estudos é como um grupo de indivíduos pode constituir uma sociedade e como esta se mantém coesa, persistindo no tempo? Chamou a este fenômeno de solidariedade social e moral, ou seja, a maneira como os membros de um grupo permanecem unidos, compartilhando um conjunto de valores e costumes. Mas, o que é e como se dá esta solidariedade? Em sua obra A divisão social do trabalho (1893), Durkheim criou os conceitos de solidariedade mecânica e solidariedade orgânica, para explicar a origem da coesão entre os membros de uma sociedade. A solidariedade mecânica é aquela das sociedades onde os indivíduos não se diferenciam. Quando uma sociedade é pouco desenvolvida cultural e tecnologicamente existe pouca diferença entre seus membros. Os componentes do grupo social se assemelham em diversos aspectos; têm os mesmos sentimentos, os mesmos valores, iguais objetivos, as mesmas posses. Este fato é observado em sociedades primitivas do passado e nas sociedades não-letradas ainda espalhadas pelo mundo, como a tribo indígena dos Pirahã, da região amazônica de Manicoré, quando foi contatada nos anos 1970. Existe uma coesão entre os vários integrantes da aldeia neolítica ou da tribo indígena, porque seus membros pouco se diferenciam, sendo em sua maioria intercambiáveis. “Nas sociedades primitivas”, escreve Aron, “cada indivíduo é o que são os outros; na consciência de cada um predominam, em números e intensidade, os sentimentos comuns a todos, os sentimentos coletivos” (Aron: 2008, p. 459). Em tais grupos, a crença comum é de natureza repressiva – basta lembrar as sociedades que têm proibições extremas, como os tabus – na quais os indivíduos que desrespeitam as convenções são prontamente castigados. A solidariedade orgânica representa uma nova fase nas sociedades. A industrialização e a urbanização, que tiveram um forte impacto sobre as sociedades europeias do século XIX (e sobre as sociedades dos países pobres e em desenvolvimento na segunda metade do século XX), propiciaram o surgimento de uma maior divisão do trabalho. O aumento da atividade econômica,

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o desenvolvimento tecnológico, criam uma especialização cada vez maior, ao mesmo tempo em que cada atividade ou tarefa depende cada vez mais das outras. Cada indivíduo tem uma função diferente na sociedade. No entanto, sua atividade contribui para a harmonia social. Cada membro atua como se fosse um órgão, essencial para o funcionamento de um grande organismo – daí o nome de solidariedade orgânica. O fato que era visto como auspicioso por Durkheim em sua análise da sociedade industrial, é que apesar da diferença entre seus membros, a dessemelhança contribuía para uma harmonia maior, mantendo a sociedade coesa.

Fontes consultadas: Aron, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo. Martins Fontes: 2008, 884 p. Giddens, Anthony. Sociologia. Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian: 2010, 723 p. Sociologia e Modernidade: Durkheim. Filósofo Paulo Ghirardelli. Disponível em Acesso em 17/7/2011

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O consenso de Washington e seu efeito na educação Pressupostos econômicos: Durante o início da década de 1990, fortemente influenciado pelos ditames do Banco Mundial, o Estado brasileiro assumiu uma nova postura com relação à economia e à educação. Estas diretrizes, que acabaram por influenciar o desenvolvimento posterior do país, foram engendradas em um contexto econômico-social bastante específico. Lembremos que no final da década de 1980 ocorreu a Queda do Muro de Berlim (1989), o que resultou na falência de todo o já decadente sistema socialista, liderado pela antiga União Soviética. A queda do Muro significou a vitória da economia de mercado contra a economia “planejada”, autoproclamada economia socialista. Todas as estruturas dos governos socialistas ruíram em poucos meses, e rapidamente se instalou nos países saídos do socialismo uma pseudo-economia de mercado (arquitetada pelos executivos do Banco Mundial e FMI), que por falta de estrutura passou a se fundamentar em favores políticos e na corrupção. Com isso, a Rússia entrou em uma crise econômica e social, da qual até hoje não se recuperou completamente. Nos países capitalistas, principalmente a Inglaterra e os Estados Unidos, onde governava a dupla Margareth Thatcher e Ronald Reagan, o clima era de vitória pela derrocada dos países comunistas. Na imprensa neoliberal o sociólogo americano Francis Fukuyama proclamava à época o “fim da história” – numa irônica alusão à Marx, que no Manifesto Comunista lançava a ideia do “fim da história”. Afirmava Marx que depois da eliminação do capitalismo e da abolição do Estado, vigoraria a sociedade comunista em todo o mundo. Para Fukuyama, com a queda dos regimes socialistas, a democracia liberal e a sociedade de mercado haviam dominado o planeta, eliminado toda oposição socialista. (Hoje sabemos que mesmo sem ter oponentes, o capitalismo não melhorou a situação dos trabalhadores, deixando bilhões de pessoas na miséria, à margem do sistema. Além disso, com a crise de 2008, os ferrenhos defensores da economia de mercado tiveram, em todos os países, que depender da ajuda do Estado como indutor do crescimento econômico). Thatcher por seu lado, sempre foi grande incentivadora das privatizações na Inglaterra, tirando o apoio do Estado a diversas atividades econômicas. Reagan sofreu muita influência de sua equipe econômica, em grande parte constituída por egressos da Universidade de Chicago, meca do pensamento liberal de Milton Friedman (Prêmio Nobel em 1976). Forma-se assim, a partir do final dos anos 80 e início dos anos 90, uma situação política, social e econômica que iria influenciar o desenvolvimento da economia mundial – e de outros setores sociais – dali em diante. Algumas características deste período foram: - Redução da ação do Estado, processos de privatização; - Economia de mercado, valorização do capital e da livre-iniciativa;

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- Suspeita em relação a grandes projetos estatais, já que significavam grandes aportes de capitais e mais domínio do Estado; - Privatização das companhias estatais, desvalorização da carreira pública; - Concessão de serviços, antes monopólios do Estado, ao capital privado, entre outros; - Crença incondicional de que a economia de mercado seria a solução para todos os problemas econômicos e sociais; entre outros fatores. A questão da educação: No Brasil governava Fernando Collor, eleito com uma proposta nitidamente neoliberal, com o apoio maciço do grande capital nacional e internacional, das classes médias dependentes e das massas iludidas. Vigorava, desde o governo Sarney, a abertura da economia brasileira, o que forçou a acomodada indústria nacional a melhorar seus produtos. No governo Collor e FHC ocorrem as grandes privatizações de estatais (telefonia, ferrovia, energia, entre outras), seguindo o receituário estabelecido pelo Banco Mundial e FMI: o “Consenso de Washington” – uma série de diretrizes a serem seguidas na área econômica e social pelos países em desenvolvimento. Por essa época, o Banco Mundial impôs uma série de restrições aos países em desenvolvimento interessados em obter financiamento. Estas medidas previam redução dos investimentos em infraestrutura; entre outros uma redução das verbas destinadas à educação. Criaram-se Medidas Provisórias e Decretos, visando desincompatibilizar gradualmente o Estado de suas funções de mantenedor do ensino público, incentivando o aumento da participação privada. O ensino deveria ser dirigido para a racionalidade empresarial: eficiência, objetividade e lucros. A situação pode ser resumida da seguinte maneira. Por um lado, havia todo um clima mundial de entusiasmo com a livre empresa. O desaparecimento das burocracias estatais no bloco soviético anunciava novos tempos em todo o mundo. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, eram influenciados também por estas ideias, como vimos acima. Inegavelmente, esta situação trouxe benefícios e desvantagens. Na parte econômica livrou o país de uma série de obstáculos, estabelecidos ao longo de décadas de políticas estatizantes, nepotismo, populismo e manutenção de privilégios. A abertura de mercado fez com que empresas – nacionais e estrangeiras localmente estabelecidas – perdessem o monopólio do mercado; propiciou o acesso a produtos e serviços melhores, através da concorrência. Por outro lado, este tipo de mentalidade fez com que fossem reduzidos os investimentos em vários setores da infraestrutura, inclusive a educação. Ao invés de inserirem a educação brasileira em novos patamares de qualidade e atuação – como efetivamente aconteceu na indústria, por exemplo – esta mentalidade mercantilista apenas degradou mais ainda a o já baixo nível do ensino no Brasil, colocando o país em um dos mais ínfimos patamares educacionais no mundo. Agora, para que o país recupere a qualidade do ensino público da década de 1960, ainda serão necessários muitos anos de trabalho. Valeria a pena colocar a educação como prioridade

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máxima na estratégia de médio e longo prazo do país – apesar dos interesses em contrário, já que um povo ignorante é mais facilmente manipulável. Aspecto positivo que podemos citar de todo este processo foi a adoção do ensino à distância, o EAD. Todavia, tal fato foi muito mais um resultado do desenvolvimento tecnológico mundial, com os computadores e a internet, do que iniciativa do governo brasileiro. Este, como de costume, foi atropelado pelos fatos e só contribuiu na elaboração de algumas leis que procuram organizar este inovador sistema de ensino. Para resumir, podemos dizer que de todo este processo a educação brasileira muito pouco se beneficiou, ao contrário. Resta saber até quando grande parte da população brasileira, que depende do ensino público, continuará vivendo a reboque da história.

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O contexto socioeconômico no qual surgiu a Escola de Frankfurt A Escola de Frankfurt surgiu como um anexo à universidade de Frankfurt ainda em 1923. O clima político na Alemanha da época não era dos melhores. A República de Weimar, fundada depois da queda do imperador Guilherme II em 1919, com a derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial, já nasceu conturbada. Dívidas externas, desemprego, rivalidades entre diversas correntes políticas, greves, tudo isso assolava a nação alemã. Como se não bastasse, houve uma tentativa de um golpe político, dado em 1922 por um obscuro líder político de grupos direitistas, chamado Adolf Hitler. Nesse ambiente deram-se as primeiras produções intelectuais da Escola de Frankfurt. Em 1930, Max Horkheimer assume a diretoria da instituição e escolhe alguns intelectuais para fazerem parte da agremiação. O ambiente social e político da Alemanha não havia melhorado muito, ao contrário. Foi no início dos anos 1930 que a Alemanha começava a sentir os fortes efeitos da crise da Bolsa de Nova York (1929). As rivalidades políticas aumentam; de um lado socialistas, comunistas e socialdemocratas e de outros grupos direitistas de diversos graus de radicalismo. Os liberais perdem gradativamente a força, enquanto aumentava o desemprego, a miséria e a falta de perspectivas. Em 1933 o partido nacional-socialista tem maioria no Parlamento e consegue guindar Adolf Hitler para o cargo de Chanceler. Começa então um período de crescente autoritarismo e antissemitismo. A Escola de Frankfurt, que sempre teve uma visão crítica, influenciada pelo marxismo (neomarxismo) não tem mais função nessa sociedade. Ainda mais, porque a maioria de seus integrantes era de origem judaica. Este o contexto de totalitarismo político no qual nasceu a Escola de Frankfurt. No entanto, o fato de ter nascido em um ambiente político e social como este, diferente do atual, em nada invalida as teorias críticas elaboradas por esta escola de pensamento. Em muitos aspectos, ainda vivemos em um ambiente sociocultural semelhante àquele da Alemanha da década de 1930, principalmente no que se refere à valorização da racionalidade, associada à produção industrial e a uma suposta visão objetiva do mundo. Igualmente, nossa sociedade capitalista pós-industrial sustenta cada vez uma ideia de racionalidade, principalmente através de seus frutos diretos; a ciência e a tecnologia – que por sua vez servem à economia. Outro aspecto é que indústria cultural, identificada e analisada pelos pensadores da Escola de Frankfurt, está muito mais entranhada na própria estratégia de desenvolvimento do capitalismo. Atualmente, muito mais do que na Alemanha nazista e no capitalismo de 1930, a indústria cultural está associada com a produção cultural, de uma maneira quase inseparável.

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O desenvolvimento da sociologia no Brasil O desenvolvimento da sociologia no Brasil é dividido em quatro períodos pela maioria dos estudiosos do assunto. O sociólogo e filósofo Nildo Viana, em seu livro Introdução à Sociologia (2006), estabelece os quatro períodos da seguinte maneira: 1) Do final do século XIX até a década de 1930, a fase de elaboração; 2) De 1930 até 1945, o início da institucionalização; 3) O período da consolidação, que se inicia a partir de 1945; e 4) O pleno desenvolvimento da ciência, com aprofundamento dos temas e que se inicia aproximadamente entre os fins dos anos 1950 e início dos anos 1960. A seguir descreveremos em mais detalhes as características de cada um destes períodos. 1) A fase de elaboração: O primeiro período, o período de elaboração da sociologia brasileira segundo Viana, representa uma fase em que o Brasil e a América Latina como um todo não tinham produção original na área de sociologia. Liedke Filho se refere a este período como “O período dos pensadores sociais”, caracterizando-o como uma fase pioneira. O pensamento sociológico desta fase da história é produzido por intelectuais e políticos, influenciados pelo pensamento sociológico europeu e americano. Baseados em correntes de pensamento como o iluminismo, o positivismo de Comte, o evolucionismo de Spencer e Haeckel e o determinismo biológico de Lombroso, entre outras linhas de pensamento, os autores brasileiros tentavam encontrar explicações para os problemas nacionais da época. A oposição entre liberais e autoritários e a questão da identidade nacional, tendo como aspecto principal a questão racial, eram alguns dos principais temas que ocupavam o debate sociológico da época. Também são neste período que se realizam estudos de antropologia física e cultural no Brasil, geralmente por missões conduzidas por estrangeiros em viagem pelo país. Influenciados por tais iniciativas autores brasileiros, como Nina Rodrigues e Roquette Pinto, também efetuaram estudos antropológicos, produzindo vasto material sobre a cultura dos negros de Salvador e a organização social indígena. O sociólogo Fernando de Azevedo (1884-1974) avaliou a interação entre as teorias sociais europeias e os estudos antropológicos realizados por brasileiros, como muito importantes para o posterior desenvolvimento da moderna sociologia brasileira. Florestan Fernandes, citado por Liedke Filho, divide este primeiro período de elaboração da sociologia no Brasil em duas fases. Uma primeira, que ele chamou de “período de autodidatismo”, e que principia no terceiro quartel do século XIX, quando se desagrega a ordem social escravocrata e se iniciam os primeiros estudos sociais. Os temas abordados nestes trabalhos são, por exemplo, a conexão entre o Direito e a Sociologia, a Literatura e as condições

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sociais, e o Estado e a organização social. A segunda fase tem início no princípio de século XX, quando a sociologia se desenvolve “tanto sob a forma de análise histórico-geográfica como sociológica do presente, quanto sob a inspiração de um modelo mais complexo de análise histórico-pragmática, em que a interpretação do presente se associa a disposições de intervenção racional no processo social (Fernandes apud Liedke

Filho:

2005,

p.

380).

Segundo a interpretação de Liedke Filho deste período de desenvolvimento da sociologia, cabe aqui ainda incluir a fase chamada de “sociologia de cátedra”, quando a disciplina foi incluída nos cursos de filosofia, direito e economia. Na década de 1920 a sociologia também passa a ser ministrada nas escolas normais. Foi durante este período que se multiplicaram as publicações de manuais, que divulgavam as ideias dos cientistas europeus e americanos. Também foi nesta fase histórica em que se discutiram as ideias sociológicas a respeito de problemas que afetavam diretamente a sociedade da época, como os temas da urbanização, da migração, do analfabetismo e a pobreza. Diversos fatores propiciaram o desenvolvimento da sociologia neste período. As migrações internas, as diferentes culturas (incluindo os imigrantes), as variadas realidades sociais. Estes aspectos, associados aos movimentos que cercaram a revolução de 1930 nas letras, artes e política, foram importantes na consolidação da sociologia. No entanto, o principal fator impulsionador foi o início da industrialização e a urbanização. Escreve em relação a este ponto o sociólogo Fernando de Azevedo: “... [o] que nos compeliu a essa revolução intelectual, que nos iniciou no espírito crítico e experimental, em todos os domínios, e nos abriu o caminho aos estudos e as pesquisas sociológicas, foi, no entanto, o desenvolvimento da indústria e do comércio nos grandes centros do país e, particularmente em São Paulo e no Rio de Janeiro” (Azevedo apud Liedke Filho: 2005, p. 381). 2) A institucionalização: O período da institucionalização da sociologia corresponde à fase do aparecimento da “sociologia científica”, que baseada no paradigma estrutural-funcionalista, procurava dar ao ensino e à pesquisa sociológica o mesmo nível dos países europeus e Estados Unidos. Foi em 1930 que ocorre a criação da Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo (1933) e da Seção de Sociologia e Ciência Política da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (1934). Esta última, influenciada pelo pensamento da Escola de Chicago, representada pelo professor Donald Pierson, realizou uma série de estudos de comunidade, que hoje podem ser consideradas as primeiras pesquisas sociológicas do Brasil, tratando da transição da sociedade tradicional para a moderna. Importante aspecto nos estudos sociológicos deste período foi a vinda de diversos intelectuais para lecionarem na Universidade de São Paulo. Jacques Lambert, Levi-Strauss e Roger Bastide – este último mestre de Florestan Fernandes – foram figuras importantes na consolidação da

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ciência no país. A publicação das obras de Caio Prado Júnior (Formação do Brasil Contemporâneo,1942 e História Econômica do Brasil, 1945) e de Gilberto Freyre (Casa Grande e Senzala, 1933 e Sobrados e Mucambos, 1936) também tiveram influência importante no desenvolvimento dos estudos sociológicos. Sobre este período escreve Florestan Fernandes que a preocupação dominante era “De subordinar o labor intelectual, no estudo dos fenômenos sociais, aos padrões de trabalho científico sistemático. Esta intenção se revela tanto nas obras de investigação empírico-indutivas (de reconstrução histórica ou de campo), quanto nos

ensaios de sistematização

teórica (Fernandes apud Liedke Filho). 3) A consolidação O terceiro momento de formação da sociologia, segundo Viana, tem início em 1945. Esta fase representa a consolidação desta ciência no país. Apesar de se utilizarem ainda parâmetros e referenciais europeus, é neste período que a sociologia brasileira começa a desenvolver sua originalidade. Sob o ponto de vista político, o país atravessava uma fase de redemocratização com a renúncia de Vargas, que se estenderia somente até 1947, quando o então presidente Dutra toma uma série de medidas antidemocráticas. Por volta de 1954 organiza-se um grupo de sociólogos, chamado de “Escola de Sociologia Paulista” ou “Escola da USP”, sob a liderança do sociólogo Florestan Fernandes. Este grupo desenvolveu diversos projetos de pesquisa sobre temas como as relações raciais no Brasil, a empresa industrial em São Paulo e o desenvolvimento brasileiro. Grande influência no pensamento sociológico do período foi o pensamento de Karl Marx. Um dos paradigmas sociológicos da época foi a “Teoria da Modernização”, que concebia o processo de desenvolvimento da sociedade brasileira como uma transição de uma sociedade rural tradicional para uma sociedade industrial moderna. Não sendo completa esta transição, existe a convivência destes dois tipos de sociedade, formando então o que se convencionou chamar de “sociedade dual”. Algumas das características desta dualidade contrapunham aspectos como: sociedade tradicional e sociedade moderna; rural e urbano-industrial; estagnada e dinâmica; iletrada e letrada; religiosa e secularizada, etc. Segundo Liedke Filho, “Esperar-se-ia que um patamar superior de modernização societária, caracterizada pela evolução para uma “sociedade racional, democrática e urbano-industrial” levaria à institucionalização plena da “Sociologia Científica”, típica da terceira etapa de evolução da sociologia na América Latina. Esta abordagem sustenta, portanto, uma estreita associação entre modernidade, democratização e condições favoráveis à evolução da sociologia.” (Liedke: 2005, p. 389). Uma das grandes preocupações na sociologia deste período é fugir do sincretismo, dogmatismo, dedutivismo, alienação e inautenticidade, características de uma sociologia “enlatada”,

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“consular”. Este tipo de sociologia continuava sendo uma simples cópia ou adaptação daquela praticada na Europa e nos Estados Unidos. 4) O pleno desenvolvimento: A quarta fase de desenvolvimento da sociologia se dá em um ambiente de pleno desenvolvimento da industrialização no país e em meio a um grande processo de migração interna, do campo para a cidade e das regiões rurais para as industrializadas. Politicamente o país vivia uma democracia sujeita a todas as pressões de grupos conservadores e antipopulares, que temiam uma tomada do poder pelas forças democráticas de tendência socialista – fato que acabou precipitando o Golpe de 1964. Durante a década de 1960 e início dos anos 1970 o número de cursos de graduação e pós-graduação aumentaram. No ramo da pesquisa sociológica aumentava a preocupação com os temas contemporâneos, como o modelo econômico excludente e autoritário, os movimentos urbanos e rurais, o novo modelo sindical, a questão política no âmbito da Teoria da Dependência. Grande expoente da sociologia neste período foi o sociólogo Florestan Fernandes. Ingressou na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo em 1941, onde depois da saída de Roger Bastide assume a cadeira de Sociologia I. Dentre seus principais colaboradores encontravam-se sociólogos que posteriormente formariam a elite desta ciência no Brasil: Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Renato Moreira Jardim. Este grupo, atuando na Faculdade de Filosofia da USP dedicou-se à pesquisa de temas que seriam referência no desenvolvimento posterior da sociologia. Atualmente a sociologia brasileira procura uma nova identidade. Os estudos relacionados à dependência econômica, característica da primeira metade da década de 1970, foram seguidos por pesquisas relacionadas com a temática da sociedade civil, que se transformou em temáticas dos movimentos sociais e da redemocratização. Em sua transição da década de 1970 para a década de 1990, os interesses da sociologia se tornaram bastante amplos, abrangendo várias áreas de conhecimento. Segundo Liedke Filho, o diretório de grupos de pesquisa do CNPq tinha as seguintes linhas de pesquisa: Sociologia, 181 linhas; sociologia do conhecimento, 60 linhas; sociologia urbana, 59; sociologia rural, 57; sociologia do desenvolvimento 50; fundamentos da sociologia, 39; sociologia da saúde, 23; e outras sociologias específicas, 233. As influências atuais do exterior são bastante diferentes das de outros períodos. Nos últimos anos os estudos sociológicos mostraram grande influência de pensadores como Bourdieu, Foucault, Giddens, Elias e Habermas, além da releitura das obras de Weber. Os estudos sociológicos ganham em abrangência e diversidade de temas e espera-se que mesmo assim, a produção acadêmica possa gerar estudos que tenham relevância e despertem o interesse da sociedade. Bibliografia:

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Por uma história da sociologia no Brasil: a obra sociológica de Florestan Fernandes – algumas questões preliminares. Disponível em: http://www.iea.usp.br/textos/limoeirocardosoflorestan2.pdf Acesso em 9/9/2011 A sociologia no Brasil: história, teorias e desafios. Disponível em: www.scielo.br/pdf/soc/n14/a14n14.pdf Acesso em 8/9/2011

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O ensino da sociologia no nível médio De maneira diferente ao restante da América Latina e Europa, onde a sociologia começou a ser ensinada no curso superior, no Brasil o ensino da sociologia começou no curso secundário. No Rio de Janeiro o ensino da sociologia teve início no tradicional colégio Pedro II; em São Paulo e Recife em escolas normais, que – equivalentes ao atual nível médio – preparavam professores para o ensino básico. Deduz-se disto, que o ensino da sociologia no Brasil não visava formar novos professores desta matéria. As cadeiras de sociologia nas escolas, como dizem os próprios historiadores da matéria, eram dadas a autodidatas, profissionais sem conhecimentos aprofundados sobre a disciplina. É somente a partir de 1933 que passa a existir um curso superior de sociologia, na escola livre de Sociologia e Política de São Paulo. Neste início do ensino da sociologia no Brasil, grande parte dos professores era de origem estrangeira, como pode ser constatado do quadro de professores da Universidade de São Paulo (USP), fundada em 1934. O ensino da sociologia foi se desenvolvendo, principalmente no estado de São Paulo, onde grandes nomes como Florestan Fernandes se destacavam como docentes da USP. Em 1958 o educador Anísio Teixeira funda no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos; o Núcleo de produção de estudos da Sociologia da Educação, que se dedicará a produzir pesquisas nesta área. A iniciativa, no entanto, foi suspensa com as novas diretrizes educacionais estabelecidas depois do golpe militar de 1964. Em 1968, com a reforma do ensino, a pesquisa universitária passa a ser definitivamente desvinculada do ensino. A partir daí ocorre um crescente distanciamento da pesquisa e do ensino da sociologia que perdura até hoje. Um dos grandes debates referentes ao ensino da sociologia no nível médio na década de 80 e 90 era com relação à qualidade do material didático. Não havia material específico; os manuais eram generalistas ou eram publicações destinadas aos primeiros semestres dos cursos de ciências humanas e jornalismo. Outro aspecto é que as escolas de ciências sociais, como a escola da USP, não se preocuparam em criar cursos específicos para a formação de professores para o ensino secundário. Além disso, não havia material disponível para os professores; não havia uma prática longamente experimentada e implantada. Parte destes problemas começou a ser resolvida com a nova Lei das Diretrizes de Base (LDB nº 9.394/96), que também estabeleceu alguns aspectos no ensino da sociologia no nível médio. Mesmo assim, no entanto, os parâmetros do ensino desta matéria ainda não estão totalmente unificados, havendo grandes variações na sistemática e no conteúdo de escola para escola. Outro aspecto é que o ensino da sociologia, apesar de obrigatório no nível médio, ainda não está implantado no currículo de todas as instituições de ensino. Persiste a falta de material didático específico e ainda não existem professores capacitados em número suficiente.

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Lançadas as bases para o ensino de matérias banidas pelo período ditatorial, como a filosofia e a sociologia, é preciso que o Ministério da Educação e as secretarias estaduais efetivamente se envolvam com o tema, estabelecendo as diretrizes para o ensino científico da sociologia, impedindo que a matéria seja ministrada sob a ótica de ideologias e metodologias políticas reducionistas.

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O fenômeno das fake news O debate sobre as fake news, notícias falsas, tomou conta dos principais órgãos de comunicação no Brasil. O fenômeno, pelo menos em sua versão mais recente, teve início nos Estado Unidos, há cerca de dois anos, por ocasião das eleições presidenciais daquele país. A agressiva disputa pelo voto dos eleitores na reta final das eleições, trouxe à discussão o uso das novas mídias sociais. As assessorias do republicano Donald Trump e da democrata Hillary Clinton travaram uma forte batalha através das mídias sociais; correio eletrônico, Facebook, Twitter, Instagram, Whatsapp, entre as principais. As acusações de lado a lado foram várias, mas as que tiveram mais divulgação e impacto foram duas. Por seu lado, os republicanos acusaram a candidata Hillary Clinton de ter usado sua conta particular no e-mail, para tratar de assuntos de governo enquanto era Secretária de Estado do governo Barak Obama – o que é considerado um crime, por colocar em risco segredos de Estado. Os democratas, entre outras reclamações, incriminam Trump e sua equipe de terem obtido ajuda do governo russo, que através de contas falsas no Facebook, operadas por hackers, supostamente influenciou o voto de centenas de milhares de cidadãos americanos. O cerne da discussão sobre as fake news é que as redes sociais, que começaram como instrumento de mobilização durante a campanha que culminou na reeleição de Barak Obama em 2012, passaram a ser utilizadas como instrumento de propaganda e de fake news nas campanhas das eleições presidenciais de 2016. A página da Wikipedia que trata sobre fake news informa que as notícias falsas não exerceram influência sobre eleições anteriores a 2016. Todavia, admite que notícias falsas foram usadas como armas na batalha eleitoral entre Trump e Hillary Clinton, e que o fenômeno passou a exercer influência ainda maior sobre o processo político americano no período posterior à eleição. A atuação das redes sociais – e das falsas notícias – não terminou ao findarem as eleições. Logo no início do mandato, o novo presidente eleito acusou a imprensa de estar publicando notícias falsas sobre seu governo. Segundo o jornal The Thelegraph, “fake news” foi o termo favorito do presidente Donald Trump em 2017 e “fake” foi eleita a “palavra do ano”, ainda segundo o diário britânico. Fato é que por algumas vezes parte da mídia americana efetivamente noticiou acontecimentos que não foram devidamente investigados e que depois foram constatados como inverídicos. O pior, porém, é a enxurrada de notícias falsas e claramente fantasiosas que passaram a ser divulgadas pelas mídias sociais. Independentemente dos partidos políticos, grupos interessados em fazer humor, divulgar boatos e semear a confusão, continuaram a divulgar todo tipo de notícia enganosa. O site Information is Beautiful (https://informationisbeautiful.net/visualizations/biggestfake-news-of-2017/), por exemplo, fornece uma extensa lista de fake news que circularam na mídia social de todo o mundo, especialmente na americana, em 2017. Nesta lista aparecem manchetes como: “Papa Francisco: Deus me instruiu a mudar os dez mandamentos!”; “Islândia

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paga a mulheres 5 mil dólares por mês para casarem com imigrantes”; “Palestinos reconhecem Texas como parte do México”; “Obama e Michele estão se divorciando”; “Imigrantes ilegais começaram incêndios na Califórnia”, entre outros. Querendo chamar a atenção para importantes notícias posteriormente comprovadas como falsas, o presidente Donald Trump lançou em janeiro de 2018 o seu próprio “Prêmio de Fake News”. Entre os primeiros quatro colocados estavam mídias do porte do jornal The New York Times (noticiou erroneamente que com Trump a economia não se recuperaria); ABC News (informou incorretamente que Trump havia feito contato com os russos antes das eleições); e CNN (que falsamente informou que Trump e seu filho haviam recebido cópias de documentos da WikiLeaks). Outros veículos como o Washington Post, Newsweek, Vanity Fair e Time também foram “premiados” pelo presidente. A situação das notícias falsas já avançou de tal maneira, que a Wikipedia colocou no ar uma página contendo uma extensa (mas não definitiva, como informa o site) lista de sites de informações falsas, com a seguinte observação: “Esta é uma lista de sites de fake news. Estes sítios publicam intencionalmente, mas não unicamente, farsas e desinformação, com outros objetivos que não a sátira”. Em 8 de dezembro de 2016, após as eleições, a senadora Hillary Clinton fez uma palestra, na qual mencionou “a epidemia de notícias falsas maliciosas e propaganda falsa que inundaram a mídia social durante o último ano”. O fenômeno das notícias falsas não é recente; a história está cheia de exemplos. Otávio (posteriormente chamado Augusto), que junto com Marco Antônio e Lépido formou o Segundo Triunvirato de Roma, depois do assassinato de Júlio César, fez uso de uma campanha de desinformação para vencer Marco Antônio na batalha de Áccio, a última da República romana. O historiador Robert Darnton, em entrevista ao jornal Folha de São Paulo em 2017, relatou diversos casos de notícias falsas ao longo da história. “Procópio foi um historiador do século VI, famoso por escrever a história do império de Justiniano. Mas ele também escreveu um texto secreto, chamado ‘Anekdota’, e ali ele espalhou fake news, arruinando completamente a reputação do imperador Justiniano e de outros.”, relata Darnton. Em Londres no século XVII, ainda segundo o historiador, existiam os chamados “homens-parágrafo”, que recolhiam fofocas redigidas resumidamente em um parágrafo sobre pequenos papeis, depois vendidos às editoras. Estas os imprimiam na forma de reportagens, muitas vezes difamatórias. Em junho de 2018 o jornal El País publicou interessante matéria intitulada “A longa história das notícias falsas”, na qual o jornalista Guillermo Altares descreve como as notícias falsas desempenharam importante papel em diversas fases da história. Altares cita como exemplo três guerras nas quais os Estados Unidos se envolveram com base em notícias falsas: a Guerra de Cuba (1898), com a manipulação da imprensa; a guerra do Vietnã (1955-1975), com o incidente do Golfo de Tonkin; e a invasão do Iraque em 2003, baseada nas inexistentes armas atômicas de Saddam Hussein.

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As notícias falsas não surgem do nada e sem motivos; sempre são criadas por interesses de pessoas, grupos sociais e econômicos, com intuito de tirar vantagens de situações. Expulsar judeus e se apoderar das riquezas dos templários na Idade Média, tomar as terras dos fazendeiros na União Soviética sob regime stalinista, ocupar as áreas indígenas e explorar as riquezas minerais em nome do progresso do país... Sobre o uso de notícias falsas para justificar certas atitudes, escreve o historiador Marc Bloch (1886-1944): “Um erro só se propaga e amplifica, só ganha vida com uma condição: encontrar um caldo de cultivo favorável à sociedade onde se expande. Nele, de forma inconsciente, os homens expressam seus preconceitos, seus ódios, seus temores, todas as suas emoções.” O movimento de denúncia das notícias falsas é oportuno, dado o início do período das campanhas eleitorais no Brasil. Assim como ocorreu nos Estados Unidos, é certo que partidários dos diversos postulantes utilizem as mídias sociais para fazer propaganda das qualidades de seus candidatos. Alguns provavelmente chegarão ao ponto de exagerar os atributos de seu político e difamar os demais concorrentes. Outro aspecto a considerar é que nossa imprensa não está isenta de cometer, premeditadamente ou não, os mesmos erros de certos segmentos da mídia dos Estados Unidos, divulgando informações que não são verdadeiras. Os tempos mudam, mas a maneira de conquistar o poder continua o mesmo, com outros instrumentos. Em tempos de mídias sociais e imprensa em tempo real, continuam válidas as palavras do matemático e teólogo francês Bernard Lamy (1640-1715): “Para convencer o povo de que se diz a verdade, basta falar com mais ousadia do que seu adversário; basta gritar mais alto e dizer-lhe mais injúrias do que ele diz, queixar-se dele com mais aspereza, afirmar tudo o que se adianta como oráculos, zombar de suas razões como se fossem ridículas, chorar, se for preciso, como se a verdade que se estivesse defendendo provocasse uma verdadeira dor quando atacada e obscurecida. Aí estão as aparências da verdade. O povo só vê essas aparências, e são elas que convencem.” (Em “A retórica ou a arte de falar”). O jornalista americano Walter Lippmann (1889-1974) e o relações públicas austro-americano Edward Bernays (1891-1995), este último sobrinho do criador da psicanálise Sigmund Freud, estudaram profundamente as relações entre as notícias, a propaganda e as reações do público. Lippmann, depois de analisar a grande imprensa americana e mundial, chegou à conclusão que as pessoas, inclusive os jornalistas, são mais propensas a acreditar em suas opiniões do que em julgamentos baseados no pensamento crítico. O grande público, segundo Lippmann, não está interessado em investigações aprofundadas e precisas. O cidadão médio está por demais ocupado com seus próprios assuntos, para se preocupar com políticas públicas ou temas parecidos. Bernays foi relações públicas, mas teve forte atuação na propaganda, trabalhando para que a indústria americana aumentasse o número de consumidores na primeira metade do século XX. A maneira de Bernays conciliar a manipulação através da propaganda com o liberalismo, estava baseada na convicção de que as massas inevitavelmente sucumbiriam à manipulação. Por isso, o bom propagandista, aquele com objetivos honestos, atua sem qualquer drama de consciência.

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Bernays estava convencido de que “a minoria que utiliza esta força (a propaganda) é crescentemente inteligente, e trabalha mais e mais a serviço de ideias que são socialmente construtivas.” O fenômeno das fake news tem a ver com poder e manipulação das massas. A grande diferença em relação aos períodos históricos anteriores e, principalmente em relação ao século XX, é que atualmente a influência sobre as mentes e corações do grande público pode ser exercida por grupos de blogueiros, hackers e demais operadores de mídias sociais, a um custo relativamente baixo. Não é mais necessária a estrutura de um grande jornal, estação de rádio ou canal de televisão. Esta talvez seja uma das razões da preocupação da grande imprensa com o tema. A informação, verdadeira ou falsa, e sua divulgação, para o bem ou para o mal, não são mais monopólios de uns poucos. (Este texto foi escrito em agosto de 2018. A análise das notícias falsas divulgadas pelas redes sociais no período eleitoral brasileiro de 2018 merecerá um artigo à parte)

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O fim da guerra fria e as políticas neoliberais das últimas décadas do século XX A Guerra fria terminou quando o império soviético e seus satélites ruíram definitivamente, a partir da queda do Muro de Berlim em novembro de 1989. O desaparecimento da URSS e dos governos aliados do leste europeu teve consequências políticas e econômicas que nos afetam até os dias atuais. Paradoxalmente, a ausência da URSS ainda é usada como argumento dos articulistas de política internacional, quando escrevem sobre como seria o mundo – ou certo aspecto da realidade que estão analisando – caso ainda existisse o regime soviético. O binômio USA/URSS de tal modo condicionou a política internacional e a economia capitalista do pósguerra, que o espectro da Guerra Fria ainda permanece presente no inconsciente dos mais antigos e no imaginário de muitas instituições internacionais. A genealogia do final da Guerra Fria remonta ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Até esta época a União Soviética e os Estados Unidos vinham travando uma batalha pela hegemonia mundial que envolvia entre seus principais fatores a economia, a estratégia militar e o desenvolvimento tecnológico. Por muitos anos a disputa permaneceu empatada, sem vencedores. A situação começou a mudar de figura no início dos anos 1980, quando diversos acontecimentos começaram a afetar a coesão interna da União Soviética, dos quais destacamos: a) fatores econômicos: - Crises de alimentos devido a uma sucessão de planejamentos malfeitos pelos órgãos do governo na área agrícola; - Aumento da burocracia e da ineficiência da economia como um todo, por falta de modernização dos procedimentos e ausência de recursos para investimento em novos equipamentos; b) fatores políticos - Intelectuais reclamando mais liberdade eram aprisionados nos gulags. Tais presos de consciência (como Solzhenitsyn e Sakharov) atraiam a simpatia de todo o Ocidente; - O governo soviético estava em uma corrida armamentista com os Estados Unidos, o que absorvia grande quantidade de recursos que acabavam faltando em outras áreas. Os investimentos americanos em armamentos eram cada vez maiores, chegando a um ponto a partir do qual a URSS não podia mais competir; - Crescentes revoltas nas diversas repúblicas, resultado de uma gradual oposição ao regime dos “russos brancos”, governando em Moscou. Estes apenas alguns fatores que preparam a queda. O golpe final, depois do qual o império soviético não conseguiu mais se recuperar, foi a Guerra do Afeganistão (1979-1989). A guerra – coincidentemente travada contra o mesmo movimento, o Taliban, que vinte anos depois seria o

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grande inimigo dos Estados Unidos – demandou investimentos em equipamentos e logística de tropas, provocando um imenso rombo nos cofres de Moscou. Além disso, a morte de cada vez mais soldados criou um clima crescente de oposição à guerra e ao governo central. Não é por outra razão que a guerra do Afeganistão foi chamada de “o Vietnã soviético”. Os Talibãs em batalha contra os russos, foram treinados, armados e apoiados estrategicamente pelos americanos, através de seu serviços secreto, a CIA. A estratégia do governo Reagan (1980-1989) era desgastar ao máximo o governo soviético; seja no campo militar, político e, principalmente, no econômico. Já sabiam os americanos que a economia soviética era pesada e burocrática. Nas fábricas, por exemplo, havia vários níveis de hierarquia, o que faziam com que as tarefas eram executadas com vagar e comprometimento da qualidade. O mesmo acontecia em relação às técnicas gerenciais, onde a indústria americana era líder à época (mais alguns anos e os japoneses desbancariam os Estados Unidos). Além disso, a livre concorrência entre as empresas no sistema capitalista fazia com que a cada momento eram desenvolvidas novas tecnologias, novos produtos. Vigorava aquilo que o economista austro-americano Joseph Schumpeter chamava de “a destruição criativa”, ou seja, novos produtos, novas empresas, substituíam as antigas, criando novos paradigmas de produção e consumo. Não por coincidência, foi por esta época que nos Estados Unidos surgiu a reaganomics, o protótipo do neoliberalismo, produto da escola econômica de Chicago, cujo representante mais famoso era o Prêmio Nobel Milton Friedman. Esta política econômica – também aplicada pela primeira ministra Margareth Thatcher na Inglaterra e no Chile de Pinochet – tinha como pressuposto básico um estado mínimo, a hegemonia da economia de mercado e a redução dos benefícios sociais. O objetivo era acabar com o estado de bem estar social, permitindo que “a mão invisível do mercado” (a lei da oferta e da procura) regulasse as relações. O neoliberalismo de certo modo conseguiu contribuir para que os países capitalistas ocidentais, capitaneados pelos Estados Unidos, alcançassem a “exaustão econômica” da União Soviética. Assim, derrotado o maior inimigo, os Estados Unidos – principalmente as empresas e bancos que dirigem o país – expandiram seu sistema econômico por todo o mundo. Consequência imediata desta aparente vitória do capitalismo na forma de neoliberalismo foi, por exemplo, a criação do “Consenso de Washington”, que também arregimentou muitos entusiastas aqui no Brasil. No Brasil este processo exerceu profunda influência na eleição de Collor, na abertura da economia e posterior processo de privatização de parte do setor público no governo Fernando Henrique. Seguiu-se um período de hegemonia do capitalismo baseado no consumo, espalhando-se por todas as regiões do planeta. Se, por um lado, beneficiou países e grupos sociais, esta nova estrutura também levou outras nações à crise e pauperização de parte de sua população. A supremacia do neoliberalismo terminou – formalmente e como ideal de economia – com a crise

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dos subprimes, muito depois do desaparecimento da URSS e da Queda do Muro. Mas isto já é outra história.

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O surgimento de regimes autoritários: o nazi-fascismo Já no final do século XIX a Guerra Franco-Prussiana (1870) havia provocado uma grande rivalidade entre a França e a então Alemanha (unificada em 1870). A derrota que a Alemanha impôs à França fui extremamente humilhante, com as tropas prussianas bombardeando Paris. Depois desta guerra, as principais correntes políticas e a intelectualidade passaram a manifestarse abertamente contra a Alemanha. No livro O séculos dos intelectuais, escreve Michel Winock: Léon Bloy (intelectual católico), cujo Journal é entremeado das atrocidades – reais ou imaginárias – cometidas pelos alemães no território francês, escreve ao amigo Philippe Raoux, em 20 de dezembro de 1914; seu sentimento é o de muitos intelectuais, na época: “A verdade, a evidência que salta aos olhos, é que a Alemanha, em todos os estágios, é uma abominável canalha odienta e invejosa, que nunca perdoará nossa superioridade milenar, e sabe muito bem, apesar de sua Kultur de pedantes e escravos, e percebe, com raiva, que não tem outra razão de existir, outro meio de subsistência real a não ser nossas migalhas, nem outra função a não ser a de lavar nossos urinóis” (Winock, 2000, p. 177-178). O texto acima dá um quadro aproximado de como a França – seus formadores de opinião, a intelectualidade – se sentia em relação à Alemanha às vésperas da 1ª Guerra Mundial. Associado a outros fatores, era quase inevitável que ocorresse um embate entre as duas nações, mesmo que os motivos estivessem em outro lugar. O estopim foi o assassinato do arquiduque Francisco Fernando, futuro imperador austro-húngaro, em 28 de junho de 1914. A Áustria então declara guerra à Sérvia. A Rússia, grande aliada da Sérvia e da França declara guerra à Áustria, imediatamente seguida pela aliada da Áustria, a Prússia, que declara guerra à ambas, seguida pela entrada da Inglaterra, do lado russo e francês. Para resumir, o conflito causou um total de 11 milhões de mortos e destruição, representando o fim de um período de quase 100 anos de paz na Europa. É exatamente nas negociações de paz que muitos especialistas localizam algumas das origens do movimento nazista. Pelas disposições do tratado de Versalhes (1919) a Alemanha perderia parte de seu território, teria que pagar reparações de guerra e sofreria uma série de sanções. Por força de disposições dos aliados, a Alemanha ficaria despojada de um sexto das suas terras aráveis, dois quintos do seu carvão, dois terços do seu ferro, e outros minerais. Perderia extensos territórios no Leste e ficaria obrigada de entregar à Inglaterra, França e Bélgica praticamente todos os seus navios mercantes ainda em operação, gado, materiais de construção e máquinas. A Alemanha foi considerada o único culpado pela 1ª Grande Guerra. O total de perdas e danos sofridos pelos governos da Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia) era de aproximadamente 10 bilhões de dólares à época; valor estabelecido pelo tratado de Versalhes. No entanto, a Comissão de Reparação estabeleceu em 1921 a soma de 33 bilhões. O então presidente Wilson, dos Estados Unidos, era contra o grande peso das sanções contra a

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Alemanha. No entanto, foi voz vencida, frente ao negociador francês (Clemenceau) e inglês (Lloyd George). Escreve o historiador Edward McNall Burns que: “Os franceses, em particular, faziam questão de arruinar a Alemanha de modo tão completo que esta nunca mais pudesse recuperar o seu poderio econômico e militar.”(McNall Burns, 1971, p. 866). Tanto na Alemanha, como na Itália o final da guerra trouxe períodos de penúria e humilhação para o povo. A Itália acabou não recebendo uma série de benefícios que lhe foram prometidos ainda no final da guerra pelos ingleses e franceses. Apesar de ter recebido a maior parte dos territórios austríacos que almejava, a Itália não foi chamada para a partilha dos territórios que pertenciam à Alemanha na África. Além disso, vigorava na Itália, desde antes da 1ª Guerra Mundial, uma forte oposição ao governo, tido como inepto, corrupto e covarde. O pós-guerra na Itália foi também um período de profunda crise econômica, gerada pela alta inflação e o desemprego. Por outro lado, ocorria uma organização cada vez maior dos operários e desempregados, apoiados pelos partidos de esquerda; estes fortemente influenciados pela Revolução Russa, ocorrida em 1917 e com sua ideologia em franca expansão por toda a Europa. Líder do movimento fascista – uma tendência radical de direita – desde 1917, Mussolini começou sua carreira como jornalista socialista ainda antes do conflito. Tomou o poder na Itália em 1922, através de um levante que comandou em Roma, e foi convidado a fazer parte do governo pelo rei Vitor Manuel II. Já a essa época, ainda segundo McNall Burns “[...] em muitas regiões da Itália os filhos de ricos industriais e proprietários rurais eram demasiado conhecidos como discípulos de Mussolini”.

Uma vez com maioria no parlamento, o primeiro-ministro Mussolini gradualmente introduziu uma série de medidas autoritárias, que aos poucos eliminaram todo tipo de oposição. Ao mesmo tempo, levado por um idealismo romântico (“o espírito fascista é vontade, não intelecto”, dizia o ditador) que transmitia às massas, Mussolini conseguiu aumentar cada vez mais o apoio ao seu regime. Por outro lado, é preciso reconhecer que o governo fascista conseguiu melhorar as condições econômicas do país, desenvolvendo a agricultura, modernizando a indústria, aumentando a geração de energia e reduzindo drasticamente a taxa de analfabetismo. O lado negro desta história é que a Itália precisou comprar esta estabilidade pagando com a liberdade individual, a liberdade política, a paz (a Itália começava a se envolver em conflitos na Etiópia, na Espanha e mais tarde como aliada da Alemanha), e com o dirigismo cultural, além de vários outros problemas relacionados a qualquer ditadura. Na Alemanha a situação foi – coincidentemente – bastante semelhante. Após a derrota na 1ª Guerra Mundial, o país entra em um período de reestruturação política e econômica (a república de Weimar com seus planos econômicos). Fundam-se partidos de esquerda e o movimento operário tem forte influência da Revolução Russa – liderado pelos ativistas Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht. O próprio Lênin, em uma de suas declarações logo após a Revolução, dizia que

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a Alemanha seria o estopim para uma revolução socialista em toda a Europa. Por outro lado, havia uma imensa população que não tinha qualquer interesse em política e queria apenas voltar a ter um trabalho regular e poder sustentar sua família. A inflação altíssima castigava a maior parte da população (os maiores sacrificados com a inflação são sempre os desempregados e assalariados). Acima destes grupos sociais pairava uma alta burguesia industrial, comercial e financeira, que queria voltar o mais rapidamente à normalidade dos negócios e temia que um governo socialista tomasse o poder. Quando a situação social e econômica parecia melhorar, a crise de 1929 (a quebra da bolsa de Nova York) afundou a Alemanha em uma crise mais profunda ainda. Aliado a toda esta situação vigorava o grande ressentimento contra os antigos inimigos de guerra – principalmente a França – o que mantinha um clima de humilhação e revolta no país. Foi nesse ambiente social que surge um ex-pintor fracassado, ex-cabo ferido na 1ª Guerra; um austríaco chamado Adolf Hitler. Apoiado por grupos conservadores da Baviera recebe a cidadania alemã e tenta um golpe em 1922 (ano em que Mussolini toma o poder), chamado de “O levante da cervejaria” (foi planejado em uma cervejaria). Todavia, sem apoio popular, Hitler acaba preso. Na prisão destila todo o seu ressentimento, como indivíduo e como alemão, contra a situação vivida pela Alemanha; em crise constante e humilhada. Em seu Mein Kampf (Minha luta) Hitler elege o principal alvo para todas as desgraças por que passava a Alemanha: os judeus. Livre da prisão por seus aliados, Hitler funda o Partido Nacional Socialista Trabalhista Alemão (NSDAP – Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei). O partido é formado em sua base por operários com tradição anticomunista, pequeno-burgueses, membros da igreja protestante, alguns intelectuais e recebe apoio financeiro de grupos econômicos interessados em barrar o avanço dos grupos e partidos socialistas. Assim como Mussolini, através de eleições Hitler ascende ao posto de chanceler (primeiro-ministro), graças ao apoio de grupos conservadores. Uma vez no posto máximo, coloca a máquina partidária e grupos paramilitares (os SA) no encalço do pessoas e grupos de oposição. Fecha a imprensa de oposição e implanta as primeiras medidas contra todos os judeus alemães. O fim desta história é mais do que conhecido. Depois de decorrido tanto tempo, no entanto, é possível tirar algumas conclusões – bastante gerais – da razão do desenvolvimento do nazifascismo. Aqui vamos elencar algumas razões, muitas delas já bastante conhecidas, outras nem tanto:

a) As causas econômicas Tanto a Alemanha como a Itália, ambas lutando de lados opostos na 1ª Guerra Mundial, foram profundamente abaladas pelo conflito. A Itália não recebeu grandes benefícios, mesmo tendo

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lutado do lado vencedor, o que manteve a economia do país em estagnação, com grande número de desempregados e alta inflação. A Alemanha enfrentou uma situação muito pior. Teve que ceder territórios, equipamentos e minérios, além de grande parte de seus superávits econômicos serem usados para as impagáveis dívidas de guerra. O grande economista inglês John Maynard Keynes era contrário a submeter a Alemanha a tal sacrifício, prevendo que no futuro seu povo se vingaria – o que efetivamente veio a acontecer. A inflação na Alemanha no início da década de 1920 alcançava a casa de dezenas de milhares por centos ao ano (em 1923 a inflação alcançou 32.400%). Inflação, desemprego, fome, foram fatos que acompanharam a população alemã por grande parte da década de 1920. Quando parecia que aos poucos a situação iria melhorar, a quebra da bolsa de New York provocou também uma onda de falências nos bancos alemães, afetando toda a economia mais uma vez.

b) causas políticas A Alemanha e a Itália foram países com uma forte tradição de organização operária. Grupos e partidos anarquistas e depois socialistas e comunistas eram bastante presentes na política das duas nações. Enquanto antes da 2ª Guerra a Itália era um país agrário, dominado pelas oligarquias latifundiárias, a Alemanha já era uma país industrializado, onde existiam grande grupos que dominavam vários segmentos da economia (Siemens, Krupp, Porsche, Solingen, Deutsche Bank, BASF, entre outras). Tais grupos dominantes, tanto na Alemanha quanto na Itália, tinham grande influência política junto ao respectivo imperador (Alemanha) e rei (Itália) e não queriam perdê-la depois da primeira guerra. Por isso, se aliaram naturalmente aos grupos políticos que não colocariam em perigo seus interesses, ou seja, os nazistas e os fascistas. Foram este grupos que – apoiados nas massas doutrinadas – por trás dos bastidores apoiaram financeiramente e abriram o caminho dos dois ditadores rumo ao poder.

c) causas sociais Na Itália vigorava um sentimento de oposição aos políticos em geral; ao parlamento e ao rei Vitor Manuel II. A situação econômica permanecia imutável e não se apresentavam novas perspectivas para o cidadão, pelo menos no médio e curto prazo. O desemprego e as constantes necessidades materiais poderiam fazer com que um líder carismático, dinâmico e empreendedor cativasse mentes e corações. O mesmo ocorria na Alemanha, onde a situação ainda era pior. As próprias expectativas da população eram ainda maiores, já que o nível educacional e cultural do país era o mais alto da Europa à época. Vivia-se os extremos: uma elite intelectual produzia nas universidade e institutos

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de pesquisa o que de melhor se fazia no mundo em termos de física, química, história, sociologia, psicologia, filosofia, literatura e música; por outro lado havia milhões de trabalhadores desempregados, famílias desestruturadas, aumentava a criminalidade e todo tipo de atividade ilegal. Tal situação não agradava às elites econômicas, que com um líder forte e carismático pretendiam acertar a situação do país. Outro aspecto social era o extremo antissemitismo de Hitler, de todos os integrantes do partido e de parte reduzida da população. A eliminação gradual das liberdades dos judeus, a perseguição, o encarceramento e, finalmente, o assassinato de milhões de pessoas, também foi uma componente do nazismo, já presente nos escritos de seus idealizadores – Hitler, Rosemberg e outros. O antissemitismo era um elemento que fazia parte da cultural de toda a Europa e aflorava com violência de tempos em tempos, desde aproximadamente o século X. No entanto, Hitler transformou os judeus em bodes expiatórios e culpados por grande parte dos males que afetavam os alemães não-judeus (ironicamente, os mesmos males que também afetavam os alemães judeus). Cabe ainda assinalar o forte sentimento de humilhação e opressão que a população sentia em relação ao “castigo de Versalhes”. A falta de terra arável e minérios deu origem ao movimento Blut und Boden (sangue e solo), que visava ampliar o espaço vital a ser ocupado pelo povo alemão. Baseados em diversos fatos históricos interligados, somo capazes de tecer certas explicações sobre o nascimento do nazi-fascismo na Europa de antes da 2ª Guerra Mundial. Quanto mais soubermos e pesquisarmos, mais aspectos ajuntaremos – mais peças do mosaico – e nosso quadro deste período da história humana se tornará mais nítido. No entanto, precisamos ter em mente que são conhecimentos parciais e que mantêm ainda muitas perguntas sem resposta. Como foi possível este imenso morticínio, tanta crueldade, tanta dor e desespero, e tudo por nada? Pois, que grande proveito trouxe à humanidade esta guerra? Aprendizado? À custa de milhões de vidas de inocentes judeus e não-judeus? Na avaliação de muitos historiadores e filósofos, foi todo o contexto do nazi-fascismo, da 2ª Grande Guerra e suas consequência posteriores (Guerra Fria, globalização, etc.), que definitivamente contribuíram para unificar o relato da história da humanidade. O evento teve influência em todas as regiões do globo. A partir daquele ponto da história não era mais possível ficar à parte da cadeia de acontecimentos que ocorriam concomitantemente em todo o planeta.

A diferença entre esta interpretação da história e aquela vigente desde a Antiguidade, é que dados os fatos que ocorreram, dada a amplidão da tragédia, percebeu-se que a história humana não poderia ter qualquer sentido fora dela, ou seja, a história é feita pelos homens em suas ações, não sendo dirigida por qualquer entidade sobre-humana ou princípio, para um determinado objetivo. A história é humana e só isso.

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Bibliografia: BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental – Vol II. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 1052 p. LUKACS, John. O fim de uma era. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2005, 216 p. WINOCK, Michel. O século dos intelectuais. Rio de Janeiro. BCD União de Editores: 2000, 900 p.

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Obras seminal “A origem das espécies” continua atual Em 2013 o livro A Origem das Espécies, com o qual o cientista Charles Robert Darwin lançou a teoria da evolução, completou 154 anos. Publicado inicialmente em Londres, em novembro de 1859, com o nome Sobre a origem das espécies através da seleção natural, ou a preservação de raças favorecidas na luta pela vida, o trabalho de Darwin representa um marco importantíssimo na Ciência. A ideia da evolução no mundo natural é relativamente recente. Até o século XVIII poucas pessoas admitiam a possibilidade de que podiam ocorrer mudanças na natureza. Todavia, com o desenvolvimento de ramos da ciência como a geologia e a paleontologia, os cientistas foram percebendo que o mundo havia mudado bastante durante as sucessivas eras. As rochas e os fósseis traziam informações de uma Terra diferente, povoada por animais e plantas que não mais existiam. Por que os seres vivos se transformavam ao longo do tempo? Haveria algum elo entre as espécies atuais e aquelas encontradas nos fósseis? (Ou seriam apenas animais que Deus não colocou na Arca de Noé, como diziam alguns religiosos da época?) O que faltava era desenvolver uma teoria que explicasse como estas alterações ocorriam. Charles Darwin nasceu em 1809, na Inglaterra. Iniciou estudos de medicina, que depois abandonou, tentando uma carreira eclesiástica que também não terminou. Interessado no estudo da biologia, participou de uma viagem exploratória do navio MS Beagle, que durou de 1831 até 1836 e que lhe deu a oportunidade de estudar várias espécies de animais e plantas de todo o mundo. Ao voltar, tendo reunido muito material, Darwin pesquisou e aprimorou sua teoria durante mais de 20 anos, até que a tornou pública através livro A origem das espécies, em 1859. A “teoria da evolução”, como foi chamada, tornou-se uma das mais sólidas explicações de certos fatos em toda a história da Ciência, tendo sido comprovada por várias outras descobertas feitas por muitos outros cientistas, ao longo dos últimos 150 anos. A teoria de Darwin diz que nenhum indivíduo de uma mesma espécie – sejam formigas, aves, ratos ou humanos – é igual ao outro. Sempre haverá uma mínima diferença entre um indivíduo e outro; fato confirmado pela moderna genética. Estas diferenças – mínimas mutações genéticas transmitidas aos descendentes – podem se acentuar e transformar os sucessores em uma espécie diferente, desde que ao longo das gerações consigam sobreviver em seu meio ambiente (que também pode mudar) e aos competidores. Isolamento geográfico parece ter sido um dos mais importantes fatores na formação de novas espécies. As mutações que provocam a gradual diferença entre indivíduos da mesma espécie são, entretanto, completamente aleatórias; não são provocadas por nenhuma lei ou força ou propósito. Este é a parte revolucionária e perigosa do pensamento de Darwin: as espécies transformam-se ou desaparecem sem que haja por trás deste processo qualquer objetivo, qualquer programa pré-definido. A conclusão pode parecer estranha, mas é assim mesmo que

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a evolução funciona. O “projeto inteligente” (intelligent design), concepção segundo a qual haveria uma intenção (divina) por trás da evolução, não tem fundamento na história da evolução. Ainda com relação a isso, Darwin evitava usar a expressão “evolução”, que dá ideia de melhoria, preferindo usar o termo “transmutação”. Hoje, passados mais de 150 anos do lançamento da Evolução das Espécies, ainda existem opositores da teoria. Para a Ciência, todavia, a teoria já está bastante comprovada. Sem ela não seriam possíveis os grandes avanços na biologia, genética, medicina, ecologia e várias outras ciências.

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Os índios e nós, os selvagens! No Brasil existe uma longa tradição de tirar vantagens dos índios. Quando os portugueses por aqui chegaram, a população indígena, segundo alguns cálculos, deveria ser de cinco milhões de pessoas. No entanto a escravidão, as doenças contra as quais os índios não tinham anticorpos (gripes, varíola, etc.), e o sistemático assassinato de tribos que se opunham à dominação europeia, acabou reduzindo esta população. Durante todo o período colonial e imperial principalmente, foram grandes as barbaridades praticadas contra a população indígena, sempre com o objetivo de se apoderar de seu território. Muitos latifúndios ainda hoje existentes ou outros que deram origem a grandes fortunas foram construídos com o sangue e a vida de milhares de indígenas. As memórias destas atrocidades estão esquecidas, enterradas com suas vítimas. A história acabou sendo escrita para e por aqueles que venceram. Diga-se, a bem da verdade, no entanto, que este tipo de tratamento dos povos indígenas não é absolutamente exclusividade da sociedade brasileira; do Canadá à Argentina estes povos foram exterminados para dar lugar ao branco agricultor, pecuarista, garimpeiro e colonizador. Na década de 1960 e 1970 a expansão da fronteira agrícola, a exploração de minerais e a construção de estradas contribuíram para diminuir mais ainda a população silvícola, que no início da década de 1980 havia caído para apenas 380 mil indivíduos. Com a introdução, em passado recente, de políticas de proteção ao índio e da criação de reservas por todo o país – com maior concentração da região Norte – o número de nascimentos aumentou e a população indígena vem lentamente se recuperando; atualmente em torno dos 870 mil indivíduos. Todavia, a situação dos povos indígenas ainda está longe de ser fácil. Limitadas às suas reservas, as tribos indígenas são constantemente alvos de curiosos, missionários e todo tipo de intruso, que tenta tirar algum proveito destes povos. As florestas de suas reservas continuam sendo exploradas por madeireiras, os solos destruídos por garimpeiros e muitas áreas ainda são incorporadas por fazendeiros. Fontes de água situadas foras dos limites das reservas são poluídas por excesso de agrotóxicos, utilizados nas plantações do entorno. A pesca torna-se cada vez mais reduzida, já que o nível da água dos rios ficou mais baixo com o assoreamento, causado pela erosão devida ao desmatamento. A grande variedade de espécies de peixes vai desaparecendo junto com a destruição dos ecossistemas aquáticos pelos agrotóxicos, carregados pela chuva, das plantações para os rios. Com orçamento limitado, a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e Ongs como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Instituto Sociambiental (ISA), entre outros, procuram apoiar e orientar os povos indígenas em sua luta pela sobrevivência e autonomia. Mesmo assim, muitas tribos sofrem com a falta de território (a área de sobrevivência de que dispõem não é suficiente para plantar, caçar e pescar); não dispõem de assistência médica regular, principalmente para

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as crianças; e estão perdendo sua cultura: ocorrem vários suicídios entre jovens índios, por causa da perda dos seus valores ancestrais. Enquanto culturas indígenas que levaram milhares de anos para se formar desaparecem definitivamente, ficamos nós preocupados com a próxima reunião do Copom. E ainda nos consideramos civilizados!

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Pensamento político O pensamento político é a maneira como determinado grupo de pessoas – porque a política é sempre coletiva – encara a atividade política. Quanto ao ato de fazer política escreve Aristóteles: “Sabemos que toda cidade é uma espécie de associação, e que toda associação se forma almejando algum bem, pois o homem trabalha somente pelo que ele considera um bem. Por isso, todas as sociedades sugerem um lucro – sobretudo a mais importante delas, pois visa um bem maior envolvendo todas as demais: a cidade ou a sociedade política.” (Aristóteles, 2007). Assim, segundo o Estagirita, a atividade política visa ao bem da cidade; da sociedade, já que os homens só se empenham por aquilo que eles consideram um bem. São as diversas maneiras de encarar o bem da cidade, ou seja, da sociedade, que distingue as diferentes formas de pensamento político. Este parte de conceitos prévios – ideias elaboradas por grupos sociais – e a partir destes pressupostos é construído o pensamento político. Este por sua vez apontará maneiras como seus defensores pretendem tomar o poder e exercê-lo, quando governantes. O pensamento político modernamente espelha os interesses de classes, de grupos econômicos e sociais, que se juntaram em uma agremiação – associação, sindicato, partido político ou grupos de pressão – e que no embate democrático planejam aprovar leis que beneficiem seus integrantes. Por exemplo, um sindicato organizado e atuando em empresas com forte poder econômico (como as indústrias automobilísticas e os bancos) tem interesse em aprovar mudanças na lei trabalhista, de modo a beneficiar seus filiados. Um partido político, formado em grande parte por latifundiários ou apoiado financeiramente por estes, almejará aprovar leis e projetos que beneficiem seus correligionários e rejeitar outros que representem algum tipo de perigo para seus membros – como, por exemplo, um Código Florestal mais restritivo. Um pensamento político bem elaborado tem uma plataforma completa, com respostas e propostas para resolver a maior parte ou pelo menos os mais importantes problemas da sociedade onde atua. E é exatamente pelos objetivos políticos, sociais e econômicos que pretende alcançar e pela maneira como pretende alcançá-los, que se caracteriza a orientação política de um partido. Em seu estatuto o Partido dos Trabalhadores diz: “Art. 1º. O Partido dos Trabalhadores (PT) é uma associação voluntária de cidadãos e cidadãs que se propõem a lutar por democracia, pluralidade, solidariedade, transformações políticas, sociais, institucionais, econômicas, jurídicas e culturais, destinadas a eliminar a exploração, a dominação, a opressão, a desigualdade, a injustiça e a miséria, com o objetivo de construir o socialismo democrático.” (Partido dos Trabalhadores, 2012). No parágrafo acima o PT descreve o que é e a que se propõe. Nos outros capítulos e artigos o estatuto do partido, elaborado pela comissão executiva nacional, descreve a maneira como o partido se organizará e atuará; como participará das eleições e como será sua disciplina interna.

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Toda esta organização faz parte do pensamento político do partido, descrevendo sua organização e estratégia de poder. Evidentemente existem várias linhas de pensamento político, representadas ou não por partidos políticos. Grupos atuando de forma semi-organizada às margens dos movimentos políticos, como os black blocs, que se tornaram famosos a partir das manifestações populares ocorridas desde junho de 2013, também têm sua forma de pensamento político. O mesmo é válido para grupos políticos que atuavam na clandestinidade na época da ditadura militar; seja à extrema direita, como o C.C.C. (Comando de Caça aos Comunistas) quanto os diversos grupos guerrilheiros colocados na extrema esquerda (ALN – Aliança Libertadora Nacional, VAR Palmares – Vanguarda Armada revolucionária Palmares, entre outros).m última instância podemos dizer que a maior parte das organizações humanas, visando defender algum tipo de interesse, tem algum tipo de pensamento político, mesmo que pouco elaborado. Este pensamento pode estar misturado a ideias preconcebidas, estratégias de poder e às vezes delírios de dominação. Por vezes, se existirem condições históricas para tal, tais pensamentos políticos podem levar ao aparecimento de organizações como o partido nazista, o partido comunista Kampuchea (cujos membros eram os assassinos do chamado Khmer vermelho) ou o grupo Al Qaeda. A melhor maneira – pelo menos até hoje – de permitir o surgimento do pensamento político das mais variadas tendências possíveis, sem que uma corrente se sobreponhas às outras e obtenha a exclusividade do discurso (seja pelo voto ou pela força), é através da manutenção da democracia. Só a democracia garante o debate franco e aberto das diversas tendências do pensamento político. Afinal, como sabe a filosofia e a sabedoria popular, “ninguém é dono da verdade”, que, dizem, pode nem existir.

Referências: Aristóteles. A Política. São Paulo. Editora Ícone: 2007, 272 p. Estatuto do Partido dos Trabalhadores. Disponível em: <http://www.pt.org.br/downloads/categoria/estatuto_do_pt>. Acesso em 1/10/2013

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Políticas educacionais no Brasil Analisando a história do Brasil e trechos das diversas Constituições que o país teve desde 1824, observamos que ao longo de todo o período imperial e grande parte do período republicano (o período colonial não é nem digno de nota) a educação não foi prioridade dos legisladores. A começar pela Constituição de 1824, que através de um ato adicional acabou transferindo a responsabilidade do ensino primário para a responsabilidade das províncias, as quais sabidamente não dispunham de recursos. Deste modo, o povo – que dependia do ensino público gratuito, assegurado pela Magna Carta, para crescer em poder como classe – não teve acesso à instrução, ficando esta limitada às elites econômicas, que podiam custear escolas particulares. Este processo premeditado, visando impossibilitar ao povo o acesso à educação e ao poder, estende-se por todo o período imperial até a proclamação da República em 1889 e votação de uma nova Constituição, em 1891. Esta Magna Carta já de caráter mais laico, estabelecendo claramente a separação entre Igreja e o Estado, reafirma a gratuidade do ensino em todos os níveis. O documento também transfere a responsabilidade do ensino para a alçada dos estados. Na prática, ocorreu uma série de reformas no ensino, que se estenderam de 1891 a 1934, quando foi aprovada (mais uma) nova Constituição. Neste período também foi estruturado o ensino superior no País, criaram-se as séries escolares e foi implementada a fiscalização das escolas particulares. Todavia, em termos de acesso ao ensino, este ainda permanecia quase que exclusivo às classes abastadas ou do povo que habitava os grandes centros urbanos. A Constituição de 1934 foi seguida pela de 1946, pela de 1967, depois pela de 1969 e, finalmente, pela Constituição de 1988. Em todas estas Constituições houve menção ao ensino, foram ampliados os direitos do cidadão com relação ao ensino, todavia, mesmo assim, o avanço da educação continuava lento. Como acontecia e ainda é prática no País, partia-se do pressuposto de que apenas com a criação de leis (e seus sucedâneos: mandatos, portarias, atas, e toda esta fauna de papéis quase sempre inócuos) os problemas estariam resolvidos. Além disso, no período de 1937 a 1988, a educação também esteve sujeita a períodos de autoritarismo, permeados por outros menos democráticos. A partir do início dos anos 1990 a educação – assim como todos os setores das sociedades capitalistas em desenvolvimento – passou a sofrer influência do neoliberalismo. Sob a ótica desta ideologia – que coloca o mercado como o grande regulador das relações sociais e econômicas, e com isso também da educação – os investimentos públicos em educação se tornaram mais seletivos, o que por outro lado aumentou a participação do setor privado, principalmente no ensino superior. Todavia, apesar de todos os percalços, o acesso ao ensino básico dissemina-se em todo o país e recebe gradualmente mais recursos, notadamente a partir do governo do presidente Lula (2002-2005 / 2006-2009). O programa bolsa-família, que condiciona o recebimento de uma ajuda

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financeira do governo à frequência dos filhos na escola, foi um fator impulsionador do aumento dos alunos no ensino básico. É preciso que os investimentos em educação e cultura continuem aumentando no Brasil. Grande parte dos problemas econômicos pelos quais o Brasil passa no momento (e que poderão se agravar no futuro) também é devida à falta de profissionais preparados – do pedreiro e mecânico de automóveis, passando pelo técnico em computação e técnico em enfermagem, até o engenheiro, o médico e o professor.

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População e recursos Historicamente sabemos que sempre houve povos e nações dominados e dominadores. O antigo império egípcio, ao longo de seus quase 4 mil anos de existência, dominou e assimilou vários outros povos à medida que foi expandindo suas fronteiras. Assim também ocorreu com o império assírio, persa, romano, bizantino, mongol e muitos outros, sobre os quais temos poucas informações ou nunca teremos nenhuma. Geralmente, foram os povos ou estados tecnologicamente mais desenvolvidos ou aqueles politicamente mais organizados, que dominaram os outros lhes impondo sua cultura, junto com as demais estruturas sociais e econômicas. Ocorria também que uma nação ou povo tecnologicamente menos avançado dominava outros pelas armas, mas acabava absorvendo-lhe a cultura, como ocorreu durante o período da migração dos povos bárbaros (séculos IV-VII), quando visigodos, ostrogodos, vândalos, francos e vários outros grupos germânicos acabaram absorvendo a cultura do então decadente império romano. Outro aspecto é que não é possível dizer que todos os povos dominados acabavam adquirindo o mesmo padrão cultural, tecnológico ou de organização social de seus dominadores. O estilo de vida na Londinium (Londres) romana era bem mais primitivo do que na cosmopolita Roma. O padrão de vida da cidade de São Salvador da Bahia, capital do Brasil em grande parte do período colonial, não era o mesmo de Lisboa. Este tipo de diferença entre o “centro” e a “periferia” se repete ao longo de toda história. No entanto, depois da Segunda Guerra Mundial, principalmente a partir da década de 60 do século XX, quando Bélgica, França, Inglaterra e Portugal perderam suas últimas colônias na África e na Ásia, a humanidade entrou em um período novo. Não havia mais – pelo menos não de uma maneira oficial – nações dominadas por outras. Estávamos então em pleno período da Guerra Fria e havia uma divisão ideológica, que praticamente separava o mundo entre zonas de influência dos Estados Unidos e outras sob domínio da União Soviética. Sob o aspecto econômico, a expansão mundial do capitalismo fazia com que cada nação procurasse melhorar as suas condições sociais e econômicas, dentro das oportunidades de trocas comerciais oferecidas pela economia mundial. Foi por essa época que os especialistas dos órgãos internacionais de financiamento (FMI e Banco Mundial) dividiram as nações em três categorias: a) O primeiro mundo, formado pelas nações desenvolvidas, todas ela industrializadas e sede da maior parte das companhias multinacionais; b) O segundo mundo, formado pelos países socialistas, a União Soviética e suas nações satélite; c) O terceiro mundo, formado pelas nações pobres ou em desenvolvimento, que se alinhavam, de uma maneira ou outra, aos Estados Unidos ou à União Soviética. Um dos aspectos da Guerra Fria é que ambos os lados – Estados Unidos através do capitalismo e a União Soviética através do socialismo – prometiam a melhoria das condições sociais e econômicas, desde que os países seguissem seu receituário econômico-ideológico; o

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capitalismo ou o socialismo. Foi o período do "desenvolvimentismo", que criou em grande parte dos países uma profunda expectativa de melhoria do padrão de vida, baseada na industrialização, criação de empregos e no consumo de bens. No final dos anos 1990, com a queda do império soviético, ruiu o mundo socialista e o capitalismo tornou-se hegemônico. Os ideólogos prometiam uma era de grande prosperidade para todas as nações. Abriam-se os mercados, caiam as barreiras alfandegárias, as empresas transnacionais estabeleciam-se nos países em desenvolvimento e nos países pobres, à procura de matérias primas, mão de obra barata e maior proximidade de novos mercados consumidores. Paralelamente, criou-se uma grande expectativa nestas nações: a possibilidade de ter acesso a bens de consumo os quais, até aquele momento, só haviam estado disponíveis para os consumidores dos países ricos – a “periferia” queria consumir como o “centro”. No entanto, em paralelo a todas estas transformações sociais, econômicas e políticas, toma cada vez mais forma a questão ambiental; a gradual escassez dos recursos, o problema da destruição dos ecossistemas e a mudança das condições climáticas. Todos estes fatos têm a ver com o consumo. Quanto mais pessoas consumirem – principalmente no velho modelo econômico que permanece inalterado desde as origens da revolução comercial (século XVI) e industrial (século XVIII) – tanto mais rápido serão usados e destruídos os recursos e os ecossistemas. Assim, o desenrolar da história nos mostra que até praticamente o final da Segunda Guerra, nem todos os povos tinham autodeterminação, sendo em parte dominados por países europeus. Desta forma, não tinham liberdade política ou econômica. Depois da 2ª Guerra há o confronto entre duas ideologias – o capitalismo e o comunismo -, cada uma prometendo vida melhor aos cidadãos dos diversos países, desde que aderissem ao seu credo. O “desenvolvimentismo” cria nas populações a expectativa de consumir mais e melhor; ideia aprofundada com a “vitória” da economia de mercado depois da queda do Muro de Berlim - e suas repercussões sociais e econômicas. Consequência: hoje, em todos os países, as pessoas se consideram “livres” para consumir. Mas, como é possível a convivência desta nova “ideologia do consumo” – depois que acabaram todas as ideologias políticas – com o problema da crescente escassez de recursos? Alguns teóricos interpretam esta situação como sendo formada por dois problemas morais: 1) Os pobres têm o direito – assegurado até pela Declaração Universal dos Direitos do Homem – de melhorar seu padrão de vida. Isto quer dizer que brasileiros, indianos, sul-africanos e chineses têm o direito de ter o mesmo conforto e bem estar de um cidadão suíço, alemão, sueco ou americano. 2) Por outro lado, não é possível que mais de 6 bilhões de pessoas tenham o padrão de consumo de um europeu – ou pior – de um americano. Caso isto ocorresse, tal patamar de consumo comprometeria de tal maneira os recursos naturais e os biomas, que arriscaria o bem-estar das gerações futuras; talvez até a sobrevivência da humanidade.

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Hoje já é consenso de que estes dois problemas morais estão interligados. As providências mais imediatas para sua abordagem, incluem: a) Mudança profunda no sistema de produção e distribuição dos bens. Melhor uso dos recursos e eliminação do supérfluo. Para introduzir estas mudanças, é necessário contar com a colaboração dos grandes grupos econômicos, quase todos pertencentes (ou com sede) nos países ricos; b) Mudança no padrão de consumo, com alteração das expectativas em relação ao ato de consumir. Este tipo de mentalidade já está lentamente surgindo nos países desenvolvidos, onde as necessidades básicas do ser humano (como alimentação, vestuário, habitação, saúde, instrução e trabalho) estão em grande parte sendo atendidas. Mas, o que dizer dos países em desenvolvimento e dos países pobres, onde o consumo aumenta cada vez mais, em grande parte para suprir necessidades reais ou fictícias não atendidas no passado – e que agora com a publicidade se tornam “necessárias”? Como fazer face a um consumo que é substituto de serviços sociais não oferecidos pelo Estado, como transporte e outros? A questão não tem solução imediata. Argumentam muitos de que os países pobres e em desenvolvimento precisam aumentar seu consumo para que todos alcancem um padrão de vida aceitável. Em paralelo, é necessário criar estruturas de serviços e de proteção social, aliadas às campanhas publicitárias, que reduzam o consumo excessivo e o direcionem para bens intangíveis (serviços, cultura, etc.). Mas, o que será dos ricos, se os pobres consumirem menos? O que farão os grandes grupos econômicos, dos quais a maior parte dos lucros é agora gerada pelo consumo em países pobres?

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Produção, população, poluição, pauperização A capacidade de resiliência de todos os ecossistemas é mais ou menos limitada. Dependendo do grau de destruição, um ecossistema pode não se recuperar mais à forma original. Recentemente cientistas observaram que áreas florestais aparentemente recuperadas depois de desmatamento, apresentavam uma diversidade vegetal menor do que a floresta original. A tendência é que o mesmo aconteça com a fauna, já que em processos de destruição ou poluição de ecossistemas, com dizimação de espécies, a posterior recuperação da cadeia alimentar não é mais completa. Assim, por falta de um produtor acabam desaparecendo também outros predadores, criando uma reação em cadeia que desestabiliza e empobrece a biodiversidade daquele ecossistema ou bioma, dependendo do caso. Este processo de destruição de biomas, habitats e ecossistemas está ocorrendo em todo o mundo. O crescimento populacional, aliado à constante expansão das áreas agrícolas, está destruindo o tênue equilíbrio que ainda resta no “ecossistema Terra” (a famosa hipótese de Gaia, de James Lovelock). A tendência é que o acúmulo de resíduos na água e no solo, a poluição atmosférica, a erosão dos terrenos e a destruição da biosfera – ocasionados pela econosfera – acabem conduzindo a humanidade a um impasse. Se por um lado poluímos o planeta (ou seja, os recursos naturais), por outro o aumento populacional força-nos a produzir quantidades cada vez maiores de alimentos, destruindo remanescentes de estepes, florestas e outros biomas naturais. O aumento da população também provoca o aumento do consumo, o que requer um uso cada vez maior dos recursos naturais e gera volumes crescentes de resíduos. A Terra, mais especificamente os sistemas de seres vivos que compõem a biosfera, tem certamente um limite de resistência (resiliência) à poluição e destruição. Não se sabe ainda qual seria este limite. No entanto, já sabemos que vivemos cerca de 30% além das possibilidades de recuperação do planeta (a famosa pegada ecológica); estamos usando recursos naturais em demasia. Não sabemos por quanto tempo a Terra suportará este processo, mas já temos noção que estamos causando uma das maiores mortandades de espécies na história geológica da Terra. Isto é um fato e não uma suposição.

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É bastante provável que a humanidade não desapareça junto com a maioria das outras espécies vivas. Provavelmente, dizem alguns cientistas, morreremos lentamente, até que depois de alguns séculos somente algumas centenas de milhões de humanos poderão sobreviver com o que restou dos ecossistemas da Terra. Uma elite econômica dominará os recursos e as armas. Milhões de humanos viverão em um mundo com ecossistemas fortemente afetados; com solos, águas e atmosfera poluídos. Os recursos naturais – principalmente os minérios – reciclaremos até que cheguemos ao ponto em que buscaremos minerais na Lua ou em Marte, que por esta época também teremos povoado através de pequenas colônias autossuficientes. É evidente que nesta descrição existe muita imaginação. No entanto, não é provável que possamos sobreviver como espécie por muito tempo, tendo bilhões de bocas para alimentar e mantendo um sistema econômico que, visando o benefício de alguns, está exaurindo os recursos naturais do planeta. A causa ambiental é moral e pelo andar da carruagem está perdida de antemão. O que podemos fazer é postergar ao máximo a data limite de nossa validade. (Esperemos que esta breve descrição apocalíptica de nosso futuro não se realize – apesar dos esforços em contrário).

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Protestantismo e capitalismo O livro de Weber “A ética protestante e o espírito do capitalismo” foi eleito em 1999, em uma pesquisa organizada entre intelectuais brasileiros pela Folha de São Paulo, como o melhor livro de não-ficção do século. Tal a importância e perenidade da obra escrita no início do século XX. Durante os anos 1960, 1970 e 1980, quando o pensamento de esquerda tinha forte influência nos estudos sociológicos no Brasil, a obra de Weber foi relegada a um segundo plano. Em sua obra Weber analisa características das várias correntes protestantes – luteranos, calvinistas, menonitas, batistas, puritanos, quackers e vários outros – traçando em linhas gerais seu posicionamento em relação às práticas capitalistas de seu tempo. Inicialmente o autor define bem o objeto de seu estudo, estabelecendo o que entende por capitalismo. Escreve Weber: “E o mesmo é verdade também para a mais decisiva força da nossa vida moderna: o capitalismo. O impulso para ganho, a persecução do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem em si mesma, nada que ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiu entre garçons, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, apostadores, mendigos, etc. Pode-se dizer que tem sido comum a toda sorte e condição humana em todos os tempos e em todos os países da Terra, sempre que se tenha apresentado a possibilidade objetiva para tanto. É coisa do jardim de infância da história cultural a noção de essa ideia ingênua de capitalismo deva ser eliminada definitivamente. A ganância ilimitada de ganho não se identifica, nem de longe, com o capitalismo, e menos ainda com seu 'espírito'." (Weber 2002, p. 24) Acaba assim o autor com uma série de visões distorcidas, definindo o que considera capitalismo, dirimindo mal-entendidos que até hoje ainda se encontram em obras de especialistas e que acabam sendo popularizados pela comunicação de massa. O ponto fulcral da argumentação weberiana – fundamentada por grande número de exemplos tirados da história (o livro de Weber tem mais de 90 páginas de “notas do autor”) –, é de que o protestantismo, especificamente o calvinismo, deu origem a novas formas de pensamento, através das quais grupos sociais passaram a se posicionar no mundo através do trabalho. Tratase de uma postura fundamentada na crença religiosa, que através da ética se exterioriza principalmente no trabalho e na maneira como são usados os seus frutos. Segundo Weber, o calvinismo, dadas certas características de sua doutrina, estabelece que o cristão pratique sua ascese principalmente através do trabalho. O calvinismo eliminara os ritos e sacramentos, através dos quais o católico podia expiar suas culpas e retomar sua ligação com Deus. Sendo assim, o calvinista mostrava seu relacionamento com Deus – confirmando o fato de estar entre os eleitos destinados ao Paraíso – através de uma racionalidade do trabalho e da boa aplicação de seus frutos: economia e novo investimento do lucro, aversão ao luxo e ostentação. Escreve Weber: “Assim, a riqueza seria eticamente má apenas na medida em que venha a ser uma

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tentação para um gozo da vida no ócio e no pecado, e sua aquisição seria ruim só quando obtida com o propósito posterior de uma vida folgada e despreocupada” (Weber 2002, p. 118). A ética do trabalho foi o ponto principal através da qual o calvinismo (huguenotes na França, puritanos na Inglaterra, protestantes nos Países Baixos) e outras seitas reformistas (pietistas na Alemanha, quackers e metodistas na Inglaterra) influenciaram decididamente o desenvolvimento do capitalismo, segundo Max Weber. Há que se notar que todos os países que entre o século XVI e XVIII desenvolveram seu sistema financeiro, comercial, de manufatura, sua marinha e suas comunicações, eram calvinistas, protestantes ou tinham forte influência destas correntes religiosas – como a Inglaterra, a França, os Países Baixos, certas regiões da Alemanha e Suíça. Comparativamente, os países essencialmente católicos, como Portugal, Espanha e Itália, desenvolveram-se entre o final do século XV e XVI, para depois gradualmente caírem em uma decadência econômica e social, da qual só sairiam 450 anos depois. A mentalidade calvinista, com a valorização do trabalho e o reinvestimento dos lucros, desenvolveu extremamente o comércio entre os séculos XVI e XVIII, criando as bases para a industrialização, iniciada no final do século XVIII, na Inglaterra. É evidente que este desenvolvimento não foi provocado somente pelo calvinismo e pela mentalidade burguesa mercantilista. Outros fatores, como o liberalismo político de John Locke, a ciência de Newton e o modelo do sistema parlamentar inglês, baseado nos três poderes, também contribuíram para a formação da mentalidade capitalista. A hipótese histórica e social de Max Weber, tentando explicar os fatores culturais que condicionaram o desenvolvimento do capitalismo sempre encontrou muitos críticos, principalmente entre os pensadores marxistas. Segundo estes, Weber estaria cometendo o erro de explicar a infraestrutura (o desenvolvimento do sistema capitalista) pela superestrutura (o cristianismo em sua versão calvinista). Atualmente, é cada vez mais consenso de que a explicação histórica e sociológica tem várias vertentes e que não existe uma explicação única, dada a complexidade do assunto.

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Quem tem fome, tem pressa A luta pela sobrevivência representa, em grande parte, a luta por alimentos. Todas as espécies vivas, desde as bactérias, às plantas, passando pelos artrópodes, pelos peixes até os mamíferos e o ser humano, passam grande parte de sua existência à procura de alimento. A atividade humana mais importante, o trabalho, nada mais é do que um esforço coletivo para assegurar alimentação e abrigo para os membros das sociedades. A disponibilidade de alimento, no entanto, não é ilimitada nem nunca o foi. A bela imagem da abundância de alimentos no Jardim do Éden, se é que alguma vez existiu, ficou para sempre no passado da humanidade. Escavações realizadas por paleontólogos e arqueólogos, dão conta de que nossos antepassados do paleolítico, neolítico ou das primeiras culturas humanas, sempre tiveram que lutar contra a escassez de alimentos. São raros os períodos na história humana em que as diversas populações tiveram acesso constante à comida. Esqueletos encontrados em diferentes regiões do planeta mostram pessoas sofrendo de raquitismo, má formação óssea e outras doenças causadas por falta de alimentação regular. Mudanças climáticas ocorridas no final do último período glacial (cerca de 10.000 anos A.C.) fizeram com que os animais caçados pelo homem se tornassem menos numerosos, seja pelo fato de terem sido extintos (o desaparecimento dos grandes mamíferos da fauna do Pleistoceno) ou se deslocado para regiões mais setentrionais, onde as temperaturas ainda eram mais frias. Com isso, a falta de caça forçou as populações humanas a fazerem a primeira grande revolução tecnológica. Já tendo observado e conhecendo a capacidade de grãos brotarem durante o período mais quente do ano, grupos humanos passaram a praticar o plantio sistemático de certas espécies (trigo, cevada, aveia, tubérculos), em escala crescente. Associado a esta atividade praticavam a coleta e a criação de algumas espécies de ruminantes, como a cabra, o carneiro e a vaca. A agricultura teve início na atual região da Anatólia (Turquia), tendo-se estendido rapidamente a todo o crescente fértil. Por volta de seis mil A.C. já era praticada no vale do Yangtzé, na atual China e por volta de 3.000 A.C. já era encontrada em todas as regiões onde existiam culturas humanas tecnologicamente mais desenvolvidas (Egito, Babilônia, Vale do Indo, China, Mesoamérica, Peru, entre outros). No decorrer da história as técnicas agrícolas foram se desenvolvendo. Já os romanos utilizavam técnicas de rotação de culturas, fertilizantes e pesticidas biológicos. Na Idade Média, a partir do século XI foram introduzidas outras inovações técnicas, como o arado de rodas, o jugo frontal (canga) e as ferraduras, que permitiram substituir o boi pelo cavalo, aumentando a velocidade do trabalho. Mesmo assim, a fome continuava a acompanhar a humanidade. Períodos de seca, excesso de chuva, nevascas, pragas de insetos, guerras, epidemias, eram males que contribuíam para quebra das colheitas, provocando fome, doença e morte. A produtividade da agricultura só aumentou de maneira rápida a partir do início do século XIX quando a nascente indústria passou a produzir fertilizantes, herbicidas e fungicidas sintéticos, disponíveis em

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grandes quantidades e a preços relativamente baratos. Neste período, principalmente nos Estados Unidos, é introduzida uma série de melhorias nos arados, nas ceifadeiras e nas debulhadeiras, que aumentaram a velocidade da operação agrícola e das áreas de plantio. Já na segunda metade do século XIX começa a mecanização da agricultura; inicialmente com máquinas a vapor e depois com motores a explosão. A modernização da agricultura ocorreu em paralelo com o desenvolvimento da industrialização. Criavam-se melhores condições de vida para as pessoas e aumentava o volume de alimento disponível. Com isso ocorreu um aumento da população mundial. Em 1750, a população mundial era de 791 milhões; em 1800, 978 milhões; 1850, 1,2 bilhões; 1900, 1,6 bilhões; 1950, 2,5 bilhões; 1960, 3,02 bilhões; 1970, 3,6 bilhões; 1980, 4,4 bilhões; 1990, 5,2 bilhões; 2000, 6,07 bilhões; e em 2012 já alcançamos a marca dos sete bilhões de habitantes na Terra. A previsão é de que a população alcance os 9,7 bilhões até 2050, quando gradualmente deverá decrescer, estabilizando-se e torno dos seis bilhões de habitantes em torno de 2130. No entanto, mesmo com os avanços tecnológicos a partir da Revolução Industrial, a carência de alimentos sempre continuou preocupando a humanidade. Até a algumas décadas ainda era comum ver em algumas casas a imagem de Nossa Senhora, encimada pelas palavras “Livrainos da fome, da peste e da guerra” – os três maiores flagelos da humanidade. Thomas Robert Malthus (1766-1834), sacerdote e economista inglês, publicou um estudo no qual afirmava que a população mundial cresceria em escala geométrica, ao passo que a produção de alimentos aumentaria em escala aritmética. A consequência desta situação seria que no futuro não haveria mais alimentos para toda humanidade, o que provocaria todo tipo de comoção social. Esta preocupação acompanhou os cientistas até meados dos anos 1960, transformando o tema da escassez de alimentos em um dos primeiros a ser discutido pelo Clube de Roma (1968). No entanto, durante a década de 1960, surge nos Estados Unidos uma nova técnica de praticar a agricultura: a revolução verde. Criada pelo agrônomo Norman Borlaugh, a revolução verde é a agricultura praticada em grandes áreas, com uso maciço das novas tecnologias: defensivos e fertilizantes agrícolas, irrigação, mecanização do plantio e da colheita, assistência técnica ao agricultor e estrutura de armazenagem e escoamento da produção. Através destas providências a produção agrícola cresceu em todo o mundo – principalmente nos países menos desenvolvidos – o que fez com que a técnica da revolução verde evitasse grandes ondas de carestia na China, na Índia e no Paquistão. Por esta razão Borlaugh ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1970. Hoje temos no mundo e no Brasil aproximadamente a seguinte situação em relação aos alimentos: - A taxa de natalidade da população na maior parte do mundo está declinando. A melhoria das condições de vida e o processo crescente de urbanização (no Brasil cerca de 85% da população vive em cidades) estão fazendo com que os casais tenham cada vez menos filhos. Na Europa, China, Japão e parte da América Latina, as taxas de natalidade já estão abaixo do índice de reposição (2% ao ano);

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- A produção mundial de alimentos é suficiente para alimentar toda a população do planeta. O problema maior é o da distribuição: governos da África subsaariana, por exemplo, não têm recursos para comprar alimentos no mercado internacional, já que estes muitas vezes são desviados para compra de armas e para a corrupção. Em outras situações, faltam alimentos porque a atividade agrícola é interrompida por guerras entre milícias adversárias. Outro aspecto é a carência de recursos humanos e equipamentos voltados para a pesquisa e o desenvolvimento das atividades agrícolas; - No aspecto internacional ocorre também a especulação financeira – especialmente com grãos como o trigo, o arroz, o milho, a cevada e o sorgo – que constituem a base da alimentação de cerca de 70% da população mundial. Previsão de mudanças climáticas (mais ou menos chuva, frio, etc.); aumento do preço do petróleo (matéria prima básica dos fertilizantes e agrotóxicos); guerras localizadas; são fatores que fazem com a oferta futura destes produtos (chamados de commodities agrícolas) seja colocada em risco, provocando o aumento de sua cotação nas bolsas internacionais. Com isso, sobe o preço dos alimentos, o que dificulta seu acesso por parte de países importadores (já que não têm produção própria suficiente), como o Egito, a Etiópia, a Líbia, entre outros. As revoltas da “Primavera Árabe”, ocorridas em 2010, foram em parte causadas pelo alto custo dos alimentos, em grande parte importados. No Brasil temos uma situação confortável em relação à oferta de insumos (terra, equipamento, capital e mão-de-obra). Grande parte de nossa agricultura é baseada na monocultura, praticada em grandes propriedades e voltada primordialmente para o mercado internacional. O maior volume dos alimentos consumidos pelos brasileiros – legumes, verduras, hortaliças, frutas; grãos, como o feijão e o arroz – é em grande parte produzido em propriedades familiares; a agricultura familiar. Formada por unidades de produção rural de pequena extensão, a agricultura familiar tem sido historicamente relegada a um segundo plano pelo governo, que tem carreado grande parte dos incentivos e empréstimos ao setor dos agronegócios; as grandes fazendas produtoras. Este é ainda um dos grandes problemas da agricultura brasileira. Por diversas razões – uma delas é que os grandes latifundiários sempre tiveram forte influência na política do país – os governos não têm dado a devida atenção à situação do campo. Mesmo governos mais democráticos, como o de FHC e até administrações ditas de esquerda e voltadas para os trabalhadores, como os dois governos do PT, só fizeram jogo de cena, mas efetivamente não atacaram o problema da situação fundiária no Brasil: “A concentração de terra no Brasil é uma das maiores do mundo. Menos de 50 mil proprietários rurais possuem áreas superiores a mil hectares e controlam 50% das terras cadastradas. Cerca de 1% dos proprietários rurais detêm em torno de 46% de todas as terras. Dos aproximadamente 400 milhões de hectares titulados como propriedade privada, apenas 60 milhões de hectares são utilizados como lavoura. O restante das terras está ocioso, subutilizadas, ou destinam-se à pecuária. Segundo dados do INCRA, existem cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas no Brasil.” (Rede Social de Justiça e Direitos Humanos).

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A grade concentração de terra nas mãos de poucos ainda é um empecilho para uma agricultura efetivamente voltada para a produção de alimentos e não para geração de divisas (que agora estão caindo com a diminuição do ritmo da economia chinesa). Os números comprovam que quanto maior a propriedade, menos produz para o mercado interno brasileiro, conforme publicado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos: - os estabelecimentos inferiores a 100 ha (hectares) respondem por 47% do valor total da produção agropecuária; - os estabelecimentos de 100 ha a menos de 1.000 ha respondem por 32% desse valor; - os estabelecimentos entre 1.000 ha e 10.000 ha participam com 17% do valor total; - os estabelecimentos acima de 10.000 ha respondem por 4% do valor total. Quando o assunto é geração de empregos, a pequena propriedade também contribui mais para a economia: - os estabelecimentos com menos de 10 ha absorvem 40,7% da mão-de-obra; - os de 100 ha a 1000 ha absorvem 39,9% da mão-de-obra; - os acima de 1.000 ha absorvem 4,2% da mão-de-obra. Na região Norte, principalmente nos estados do Pará e Amazonas e Acre, são constantes os conflitos causados pela posse da Terra. Chico Mendes, Irmã Dorothy Stang, Irmã Maristela, Ivair Higino, João Canuto, Irmã Cleusa, Padre Zózimo, José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, são alguns dos mártires que já tombaram assassinados, defendendo os interesses dos pequenos agricultores contra os latifundiários e grileiros de terra. Falta ao Brasil uma efetiva reforma agrária, que possibilitaria o acesso à terra a um maior número de agricultores, o que aumentaria a produção de alimentos, tornando-os mais baratos. Outro aspecto na questão alimentar no Brasil é o grande volume de perdas, entre a colheita e a chegada ao consumidor. Segundo estatísticas recentes, cerca de 30% do que se produz no campo perde-se ao longo da cadeia de distribuição. As principais razões apontadas para tal prejuízo são a falta de estrutura de armazenagem e a incipiente rede de distribuição, baseada quase que exclusivamente no caminhão, transitando por estradas em péssimas condições. Além disso, outra parte dos alimentos também é perdida no manuseio, antes de chegar ao consumidor. Isto sem contar o quanto de alimento é jogado fora pelos próprios consumidores, como sobras do preparo e do consumo das refeições.

Concluindo:

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- Os direitos humanos garantem, entre outros, também o direito à alimentação. Guardião deste direito é o Estado, na figura de seus gestores. É responsabilidade destes, zelar para que todo cidadão também tenha alimentos suficientes para o seu bem estar; - Ações como o programa da Bolsa Família, da Cesta Básica, entre outros, resolvem o problema de imediato, mas não no longo prazo. Os beneficiários deste tipo de iniciativa, caso não sejam criadas condições para que possam sair de sua situação de pobreza, permanecerão na condição de dependentes do Estado; - Facilitar o acesso à terra, apoiada em uma estrutura de incentivos e financiamentos – assim como ocorre para o grande latifúndio – seria uma maneira de aumentar a produção de produtos agrícolas, barateando seu preço e aumentando assim o acesso a eles; - Implantar políticas de melhoria da infraestrutura de armazenagem e transporte de produtos agrícolas, além de um melhor aproveitamento das sobras de alimentos; seriam ações adicionais poderiam facilitar o acesso a uma maior variedade de alimentos. No Brasil a política de direitos humanos, com relação ao Direito Humano à Alimentação Adequada, passa necessariamente por uma série de reformas e medidas que até o momento nenhum governo teve capacidade efetiva de implantar, seja por incapacidade de gestão ou devido à força política de grupos contrários a tais ações. Na verdade, penso que é uma mistura de ambas.

Fontes Consultadas: Caminhada homenageia mártires da Amazônia. Disponível em: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=39956>. Acesso em 8/7/2013 História da mecanização da agricultura. Disponível em: <http://j3sael.blogspot.com.br/2010/02/historia-da-mecanizacao-da-agricultura_14.html> Acesso em 8/7/2013 MAZOYER, Marcel, ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. São Paulo. Editora UNESP: 2008, 567 p. A Concentração Fundiária no Brasil e a Ociosidade do Latifúndio. Disponível em: <http://www.social.org.br/relatorios/relatorio002.htm>. Acesso em 6/7/2013 Revolução verde. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%A3o_verde>. Acesso em 7/7/2013

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Sobre a cultura popular A cultura popular é aquela que difere daquela praticada ou apreciada pelas classes culturalmente mais ilustradas. Tem sua origem na vida diária do povo; suas crenças e costumes, sua adaptação ao ambiente e às condições econômicas, valorizando seus aspectos históricos. O interesse pela cultura popular sempre existiu implicitamente na dita alta cultura. Muito do que foi produzido pela literatura, música e artes plásticas tem sua inspiração na prática do povo, desde a Idade Média. A partir das Grandes Navegações, quando os europeus passaram a tomar contato com culturas de regiões não europeias, que estavam fora de seus padrões estéticos, morais e religiosos, estas populações foram classificadas como culturalmente primitivas e tecnologicamente atrasadas. No século XVIII, com o início dos estudos antropológicos e sociológicos, a Europa começou a estudar as culturas não europeias sob um outro olhar, pesquisando principalmente suas religiões, organizações sociais e produção material. Ao mesmo tempo em que crescia o interesse pelas culturas de outros povos, desenvolvia-se também entre os estudiosos europeus o estudo da cultura popular do próprio país ou região. Escritores, músicos e pintores passam a se voltar com interesse para os temas populares, como fonte de inspiração. Assim, muitas das melodias incorporadas à música dita clássica ou erudita por compositores como Mozart ou Mahler, são de origem popular; eram canções originariamente cantadas e tocadas pelo povo. Histórias infantis hoje ainda contadas, como João e Maria e Chapeuzinho Vermelho, também têm nasceram entre o povo não letrado - neste caso em condições reais do camponês da Idade Média. Foram coletadas e organizadas por filólogos e historiadores, como os alemães irmãos Grimm, que passaram a estudar a cultura popular, o folclore (do alemão Volklehre e do inglês folklore). A cultura, em certos aspectos, foi muitas vezes utilizada para submeter outros povos. A Igreja Católica, por exemplo, em sua ação evangelizadora ao longo da história, sempre usou a estratégia da aculturação, muitas vezes forçada. Incorporava práticas dos povos subjugados e, desta forma, acabava privando130


os de sua identidade cultural, ao fazê-los aderir ao catolicismo. Na Idade Média a Igreja utilizou locais de culto celtas e germânicos (árvores, pedras, etc.) e em seu local construiu igreja e capelas. Incorporou festas pagãs, como a Festa do Fogo e a Festa da Colheita (transformados nos feriados juninos) e o dia das almas (que se tornou o católico feriado de finados). A mesma prática a Igreja teve no Novo Mundo, onde construiu seus templos sobre locais de culto dos povos ameríndios. No Peru, na Bolívia e no México estas práticas foram bastante utilizadas. Os templos dos povos eram parcialmente destruídos e serviam como fundamento do templo católico. A técnica de adaptar mitos indígenas ao catolicismo também foi bastante usada pelo jesuítas no Brasil, para aculturar os índios, de modo a torná-los mais “cooperativos” ao domínio português, pelo menos em uma primeira fase da colonização. Da mesma forma, a cultura pode servir como instrumento de libertação ou de resistência de um povo, ligando-o às suas tradições passadas, mantendo sua identidade cultural e social. Quanto mais um povo dominado valoriza suas próprias tradições culturais, tanto mais difícil será para um outro dominá-lo culturalmente. Exemplo disso é o caso do povo basco, que mantêm em parte sua língua e tradições culturais há centenas de anos, apesar de estar sob forte influência e domínio de duas culturas extremamente fortes, a francesa e a espanhola. O mesmo acontece no Tibete atual, onde apesar do enorme esforço chinês em destruir a cultura local, o povo tibetano segue mantendo suas tradições. Por final, cabe ressaltar o caráter intrinsecamente humano da cultura, já que os animais não produzem cultura. Apesar de construírem teias, colmeias, ninhos, tocas e diversas outras formas elaboradas de local de abrigo e procriação, este impulso é transmitido geneticamente. Estudos mostram, no entanto, que o uso de certas ferramentas - espetos, pedras, ato de lavar alimentos - são práticas não herdadas e foram aprendidas copiando atitudes de outros membros da espécie. Nos humanos, nem tudo é diferente. A discussão sobre quais comportamentos culturais são herdados geneticamente está cada vez mais acirrada. Admitindo que toda a evolução das sociedades humanas nos últimos 50 mil anos é baseada

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no desenvolvimento da cultura, é cada vez mais aceito que certas capacidades e comportamentos têm origens genéticas. No entanto, a construção de qualquer sociedade humana está baseada na cultura, elaborada e transmitida de uma geração à outra. A própria individualidade humana – segundo a antropologia e a psicologia – desenvolveu-se gradativamente, junto com a cultura. No final, talvez seja uma composição de ambos: herdamos geneticamente de nossos antepassados, anteriores ao homo sapiens, certas aptidões que se desenvolvem através da interação com o ambiente. Esta praxis, que se torna mais elaborada e complexa ao longo de milênios, é o que chamamos de cultura.

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Trabalho e produção A vida do trabalhador mudou bastante nos últimos 150 anos. De duras jornadas de trabalho de 14 a 16 horas diárias, o tempo de trabalho foi reduzido até chegar às 40 horas semanais ou menos, dependendo do país. Em algumas nações da Europa, a jornada semanal de trabalho chega a ser de somente 35 horas. Supostamente, estes trabalhadores, altamente capacitados e utilizando-se do que existe de mais moderno em tecnologias de automação – robôs, computadores – tem uma produtividade muito maior do que seus colegas dos países em desenvolvimento e pobres, os quais ainda chegam a trabalhar 48 horas semanais ou mais. No entanto, é fato que o sistema de produção capitalista ficou muito mais eficiente, se comparamos as atuais fábricas automatizadas com as aquelas ainda movidas a vapor, de meados do século XIX. Neste período, a vida dos trabalhadores fabris era muito ruim. O sociólogo Domenico De Masi escreve que um estudo realizado no início do século XIX por um cientista francês, dava conta que “naqueles tempos os escravos das Antilhas trabalhavam nove horas por dia, os condenados ao trabalho forçado nas instituições penais, dez, e os operários de algumas indústrias de manufatura trabalhavam dezesseis horas por dia”. Graças à organização dos trabalhadores em sindicatos e à ação de partidos políticos, ao longo do século XIX e XX, as condições de trabalho melhoraram e a carga horária foi diminuída. O processo avançou tanto que na década de 1960, em pleno crescimento do pós-guerra e antes das crises do petróleo e financeiras, se falava muito no tempo de lazer que sobraria ao trabalhador. O que este poderia fazer com o seu de folga, que seria cada vez maior com o aumento da produtividade? Não eram poucos os futurólogos que previam uma sociedade do lazer, na qual os homens trabalhariam pouco e dedicariam seu tempo ocioso a atividades intelectuais e artísticas. Em relação a isto escreveu o filósofo Bertrand Russel no início do século XX: “Num mundo em que ninguém tenha que trabalhar mais do que quatro horas diárias, todas as pessoas poderão saciar a curiosidade científica que carregam dentro de si e todo pintor poderá pintar seus quadros, sem passar por privações, independente da qualidade de sua arte.” Em outro trecho o pensador completa: “Acima de tudo haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, fadiga e má digestão. O trabalho exigido será suficiente para tornar agradável o lazer, mas não levará ninguém à exaustão.” As previsões otimistas dos filósofos e futurólogos não se concretizaram. O que ocorreu nos últimos 40 anos pode ser resumido em alguns pontos: 1) Ocorreu um grande aumento da automatização da produção, do aumento de produtividade, mas milhões de trabalhadores foram colocados na rua; 2) Tanto a indústria quanto o comércio passaram a exigir profissionais cada vez mais preparados, sem, no entanto, aumentar comparativamente os salários, ao contrário; 3) O aumento do tempo de lazer foi uma falácia; quem está empregado trabalha cada vez mais e os desempregados passam seu tempo procurando emprego ou em trabalhos esporádicos.

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Em um mundo que gera cada vez menos empregos e quando os gera são geralmente mais mal pagos, quem consumirá o que o que se produz, já que como está estruturado o sistema só sobreviverá produzindo cada vez mais?

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Viajantes e a antropologia No século XIX o Brasil e outros países da América do Sul foram visitados por grupos de viajantes, geralmente a serviço de países europeus ou de grupos de interesse econômico. No Brasil teve grande influência a abertura dos portos às nações amigas, promovida por D. João VI, quando se mudou com a corte portuguesa para o Rio de Janeiro. Em suas viagens estas delegações eram compostas por mineralogistas, geógrafos, botânicos, pintores e desenhistas que elaboravam diários e relatórios, desenhavam mapas e retratavam a população e a natureza. Muitas vezes estes relatos são repletos de julgamentos tendenciosos e análises superficiais de aspectos culturais e econômicos. Sob a ótica de sua própria cultura, estes viajantes analisavam as práticas sociais e culturais da sociedade brasileira à época.

Estes visitantes, em sua visão unilateral, não conseguiam conceber que poderiam existir outras formas válidas de cultura; maneiras diferentes de relacionar-se com o meio ambiente natural e de organizar o ambiente social. Os brasileiros, em muitos autores, são classificados como preguiçosos, libidinosos, carolas, vaidosos e ignorantes. Os europeus julgavam que somente seu ponto de vista era válido e, desta forma, mais evoluído – o ponto de vista da cultura europeia. Auguste de Saint-Hilaire, por exemplo, famoso botânico francês viajou pelo Brasil entre 1816 e 1822. Deixou vários comentários tendenciosos sobre aspectos da religiosidade; retratou os campos mineiros como “um misto de desordem e regularidade selvagem”; e desvalorizou as obras de arte das igrejas no interior do Brasil. Outros viajantes da mesma época como os alemães Spix e Martius elogiaram a exuberância da natureza, estudaram as plantas brasileiras e os costumes dos indígenas. Alemães, franceses, ingleses e russos viajaram pelo país, comentaram seus costumes e sua exuberância natural, mas sempre sob uma perspectiva europeia.

Quase cem anos depois destes fatos, o alemão que imigrou para os Estados Unidos, Franz Boas, um os precursores da antropologia cultural no início do século XX, escreveu: “A compreensão de uma cultura estrangeira só pode ser 135


alcançada pela análise, e somos compelidos a apreender seus vários aspectos sucessivamente. Além disso, cada elemento contém traços claros das mudanças que sofrem no tempo. Estas podem se dever a forças internas ou à influência de culturas estrangeiras. A análise completa precisa necessariamente incluir fases que levaram à forma atual.” (Boas, 2004, pág. 59).

A visão de mundo que inspiraria as descrições destes viajantes sobre a vida no Brasil é caracteristicamente europeia. Em visita ao Brasil, então colônia de Portugal, observam os costumes dos habitantes locais, que não têm a sofisticação material da vida nos países europeus de ponta da época (Inglaterra, França, Alemanha, Áustria, entre os principais). Influenciados por sua cultura e sem conhecimentos ou senso crítico suficiente capaz de relativizar seus próprios costumes, julgam a cultura dos brasileiros como primitiva, característica de um povo longe dos padrões da “civilização europeia”. Em seus comentários, não conseguem ver que: “Se conseguirmos desse modo dominar o significado de culturas estrangeiras, também devemos estar aptos a ver quantas de nossas linhas de comportamento – que acreditamos estar profundamente fundadas na natureza humana – são na realidade impressões de nossa cultura e estão sujeitas a alterações produzidas por mudança cultural. Nem todas as nossas normas são categoricamente determinadas por nossa qualidade de seres humanos: várias delas mudam com as circunstâncias.” (Boas, 2004, pág. 109).

A partir do século XX o estudo de outros povos evolui com a antropologia, que chegou também a ter funções militares. A ideia básica por trás da iniciativa estava em estudar determinadas culturas, conhecer-lhes os aspectos de interesse aos fins de uma potência da época (os países já citados acima) – principalmente suas idiossincrasias – e explorá-las a favor (do país, de grupos sociais, de interesses econômicos, etc.).

Um exemplo simples disso, mas

bastante significativo, está na história brasileira dos primeiros tempos. No final do século XVII, o bandeirante Bartolomeu Bueno da Silva, estava acuado pelos índios goitacazes no sertão de Minas Gerais. Tomou um pouco de aguardente, colocou-a em uma vasilha e pôs-lhe fogo, dizendo que faria o mesmo com os rios, caso os indígenas atacassem seu grupo. Os goitacazes, com medo, chamaram-no de Anhanguera, que quer dizer “diabo velho”. O bandeirante sabia 136


que os índios não conheciam a bebida destilada e usou este fato em seu favor. Explorou assim um aspecto da cultura indígena em benefício próprio – ou pelo menos para salvar sua vida e a de seu grupo.

Um dos mais famosos casos de utilização da antropologia para fins militares foi o caso da antropóloga americana Ruth Benedict. Estudante da cultura japonesa, Benedict foi convocada pelo governo americano para que estudasse a cultura japonesa com fins militares. Fez uma série de pesquisas durante a guerra e depois foi estudá-la in loco, no Japão. Cita a antropóloga “Em junho de 1944, recebi o encargo de estudar o Japão. Pediram-me que utilizasse todas as técnicas que pudesse, como antropóloga cultural, a fim de decifrar como seriam os japoneses.” (...) “Em junho de 1944, trata-se, portanto de responder a uma multidão de perguntas sobre o nosso inimigo, o Japão” (...) (Benedict, 1988, págs. 11 e 12). Em seu livro “O crisântemo e a espada”, Benedict passa a descrever a sociedade japonesa, gerando informações que ajudaram o governo americano a cooptar o Japão depois da Guerra, integrando-o à comunidade das nações alinhadas, em oposição àquelas perfiladas à União Soviética. Desta forma, a antropologia ajudou no esforço de guerra e contribuiu para fortalecer aspectos da Guerra Fria.

Bibliografia: Boas, Franz, Antropologia Cultural, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, 109 págs. Benedict, Ruth, O crisântemo e a espada, São Paulo: Editora Perspectiva, 1988, 264 págs.

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