Tempos interessantes
Ricardo Ernesto Rose
Ricardo Ernesto Rose
Graduado em Filosofia (Centro Universitário Claretiano) Pós-Graduado em Filosofia (Universidade Cândido Mendes) Pós-Graduado em Sociologia (Universidade Gama Filho) Pós-Graduado em Ciências Ambientais (Claretiano) Escritor, jornalista e consultor em inteligência de mercado
Tempos interessantes 2
Copyright © Ricardo Ernesto Rose (janeiro 2021)
O conteúdo desta obra é de responsabilidade do autor, proprietário dos direitos autorais.
Parte do conteúdo deste e-book foi anteriormente publicado no blog “Da Natureza e da Cultura” (www.danaturezaedacultura.blogspot.com.br), editado por Ricardo Ernesto Rose, proprietário dos direitos autorais destes textos.
É proibida a reprodução parcial ou total do conteúdo deste e-book, sem prévia autorização escrita dada pelo autor.
Autorizamos a reprodução parcial para fins não comerciais, desde que devidamente citada a fonte.
Autoria, revisão, design e diagramação: Ricardo Ernesto Rose
Capa: gravura de Frans Masereel (1889-1972)
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Prefácio
O ano 2020 foi um “tempo interessante” por diversos motivos. Neste período todos os países do planeta foram assolados pela sindemia da Covid-19. Consideramos importante usarmos o termo sindemia para nos referirmos ao fenômeno, ao invés da expressão pandemia comumente utilizada. Segundo a Wikipedia, (...) o avanço da COVID-19 deveria ser entendido então como uma sindemia, e a busca por uma solução para a doença não deveria ser puramente biomédica, mas seria necessária maior atenção às doenças não transmissíveis (DNT) e à desigualdade socioeconômica (...) Daí a gravidade da doença e de seus efeitos sanitários, econômicos, sociais, políticos e culturais sobre as sociedades. Tratamos também deste tema em alguns artigos desta coletânea. Além da sindemia, particularmente no Brasil, vimo-nos às voltas com uma crise econômica que já vem se arrastando deste o final de 2014, tendo como principais aspectos a queda da atividade econômica, o desemprego crescente, a redução de investimentos, além de todas as suas consequências na sociedade. A tudo isto se junte um governo empossado em 2019, mas que até o momento não mostrou ser capaz de enfrentar e encaminhar soluções para os desafios do país. Com tudo isso, 2020 termina em condições piores às que começou; um ano terrível, como o descreveu a imprensa internacional. Nesta seleção reuni quase todos os artigos que publiquei em meu blog “Da natureza e da cultura” durante o ano de 2020. Trato de diversos assuntos, a maioria relacionada com a sindemia da Covid-19, a questão ambiental no Brasil e alguns outros temas em destaque atualmente no país. A ordem dos artigos nesta publicação segue a mesma do blog, que também é a ordem cronológica original em que os artigos foram escritos, refletindo o desenrolar dos acontecimentos ao longo do ano. Através destes textos espero, de alguma forma, poder contribuir para que seus eventuais leitores tenham uma outra visão do momento em que vivemos e que 4
sejam incentivados a formularem novas perguntas, ao invĂŠs de se contentarem com respostas prontas.
Ricardo Ernesto Rose PeruĂbe, janeiro de 2021
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Índice
Longo caminho da recuperação
8-9
Gerenciamento de resíduos urbanos: onde estamos?
10-11
Questão ambiental no Brasil: algumas lições
12-14
Ciclos da natureza
15-16
A cultura da terra plana
17-18
Esperando os investimentos e o crescimento
19-20
Economia não é mais dissociada do meio ambiente
21-22
Lula e Francisco
23-24
Enchentes: o clima e a questão social
25-26
Pensamentos sobre a morte
27-30
O auditório do Jair Crise ambiental e crise de valores Meio ambiente: hoje com ontem
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Redes sociais e fake news
35-36
Cidades e planejamento
37-39
Os Jetsons e o futuro
40-41
Coronavírus: tempos interessantes
42-51
Coronavírus, e depois?
52-53
Recuperar mente e a história
54-55
Narrativas políticas na era da pós-verdade
56-57
O que aprendemos com o coronavírus?
58-60
Tese da privatização perde força
61-62
Como um castelo de cartas
63-65
Tem que mudar
66-67
Evitar a próxima pandemia
68-70
Nova economia e empregos verdes
71-74 6
Covid-19, recursos e consumo
75-77
O que não foi (e não será mais)
78-79
O que não aparecia
80-82
Que se dane o resto
83-84
Ainda o anti-intelectualismo
85-87
Governo, economia e meio ambiente
88-90
Peter Zapffe, filósofo trágico
91-103
Preservação da Amazônia ainda sem solução
104-107
Eleições municipais e meio ambiente
108-110
Áreas verdes nas cidades
111-113
Agora os gafanhotos
114-117
Pandemia e fome
118-124
Cultura e democracia
125-126
Religião, evangélicos e política
127-130
Microorganismos e meio ambiente
131-134
Pandemia e ação de governos
135-137
Fome, agricultura e mais fome
138-144
Pandemia e desânimo
145-147
Esporte e incentivo ao esporte no Brasil
148-152
A volta da Covid e a indiferença de muitos
153-154
Resíduos sólidos urbanos, ainda um problema no país
155-156
Novas pandemias com a destruição da floresta
157-161
Diversas questões levantadas pela Covid-19
162-163
Meio ambiente e uso de recursos
164-166
A eleição de Biden e a questão ambiental
167-171
Industrialização, educação e mídias
172-178
A pandemia nas letras e na realidade
179-180
Vacina obrigatória?
181-184
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O longo caminho da recuperação
Euforia nos noticiários da TV, nos programas de notícias das rádios e nos artigos jornalísticos. Depois de muita expectativa por parte do governo e do setor empresarial, as compras de final de ano atingiram o maior volume de vendas desde 2010. Gráficos, tabelas e dirigentes de instituições comentado com entusiasmo a boa nova: o crescimento da economia finalmente voltou! Será? Todos lembram que também se esperava a recuperação da atividade econômica depois da votação do teto de gastos do orçamento federal, e nada ocorreu. Depois da votação da reforma da lei trabalhista, muito certamente o crescimento voltaria, dizia-se. Mas nada aconteceu. Aí, falou-se que depois da eleição de Jair Bolsonaro o mercado reagiria positivamente. Também não. Sim, mas após a posse, tudo voltaria a andar – só que não. Passou quase um ano, e a economia avançava a passos de tartaruga cansada. Agora, no final do ano de 2019, havia uma nervosa espera pelos resultados das vendas do black friday e do Natal. Os resultados foram até além do esperado. Com a liberação de parte dos recursos do FGTS e do PIS-PASEP, a baixa dos juros e a contratação temporária de trabalhadores no comércio por ocasião das festas de final de ano, houve uma injeção de ânimo e de recursos na economia brasileira. Segundo muitos economistas, finalmente, havia-se dado o primeiro passo na gradual recuperação da atividade econômica. Nos últimos seis anos, milhões de trabalhadores perderam o emprego – ainda são cerca de 12,5 milhões de desempregados – e outros 39 milhões atuam na informalidade. A mão-de-obra subutilizada ainda perfaz 27 milhões de pessoas e os subocupados são 7 milhões. Os que desistiram de procurar emprego totalizam 4,6 milhões de pessoas. Comparando, a soma de todas estas categorias perfaz um total de 83,1 milhões de cidadãos, enquanto que a população ocupada no país é de 94,1 milhões (dados de dezembro de 2019). Ainda não se sabe se este restabelecimento da economia será sustentável. O brasileiro já está acostumado às recuperações de curto fôlego, chamadas de “voos de galinha”. O aumento das vendas, por enquanto, significa apenas isso: 8
aumento das vendas, principalmente devido ao aumento dos estímulos, como mencionado anteriormente. Apenas a partir de março de 2020 é que será possível saber se a aceleração da atividade econômica será estável, ou se foi apenas sazonal, devido a um pequeno crescimento da atividade econômica que ocorre a cada final e início de ano.
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Gerenciamento de resíduos urbanos: onde estamos?
A correta gestão dos resíduos urbanos sempre foi um dos maiores desafios das aglomerações urbanas. A primeira cidade europeia a construir uma aterro sanitário planejado foi Atenas, na antiga Grécia, aproximadamente em 500 AEC. Nas cidades medievais da Europa, não era incomum que se jogasse o lixo e os rejeitos sanitários pelas janelas das casas para a rua. A inadequada disposição dos detritos poluía o lençol freático que abastecia as fontes públicas das cidades, provocando frequentes epidemias de febre tifoide e outras doenças ligadas à água contaminada. Apenas gradualmente, ao longo dos séculos, se impõe a ideia de dispor os rejeitos da cidade longe do centro da urbe, em local relativamente isolado e sob controle. Modernamente, o gerenciamento do lixo urbano passou a ser tratado de modo científico primeiramente na Inglaterra, onde em 1842 Edwin Chadwick publicou seu estudo “Relatório a Respeito da Pesquisa sobre a Condição Sanitária da População Trabalhadora na Grã Bretanha” (Report of an Inquiry into the Sanitary Condition of the Labouring Population of Great Britain), provando o vínculo entre o surgimento de doenças e as condições de saneamento das cidades. Em 1848, o governo inglês estabelece com a “Lei de Saúde Pública” (Public Health Act) com os marcos iniciais para uma legislação de gerenciamento de resíduos públicos. Da Inglaterra estes conceitos e práticas foram se estendendo a outros países, alguns dos quais – como a França e a Alemanha – também já tinham obtido avanços nesta área. No Brasil a questão surge no período colonial, quando a disposição do lixo das poucas cidades mais importantes já era um tema que despertava atenção. Em seu texto “Por uma história do lixo”, publicado na Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente (InterfacEHS, 2006), a historiadora Dra. Rosana Miziara escreve que uma das primeiras referências à limpeza pública na cidade de São Paulo é uma comunicação da Câmara Municipal de 1623, escrita por ocasião das festas religiosas. Neste documento, a assembleia legislativa convidava os munícipes donos de casas a “limpar e carpir testadas”. Em 1625, antes da Procissão de Passos, a Câmara Municipal determinava que cada 10
morador mandasse “seu escravo com sua enxada carpir o adro da igreja e a praça da vila”. Numa cidade pequena e pobre como a São Paulo do século XVII, a administração municipal não dispunha de recursos próprios para zelar pela limpeza pública. Atualmente, o Brasil continua enredado com a solução do problema da gestão do lixo. Em 2018 o país gerou 79 milhões de toneladas de resíduos urbanos, dos quais 92% (72,7 milhões de t) foram coletados. Deste total coletado, cerca de 40,5% recebem destinação irregular, em aterros controlados (23%) e lixões (17,5%). Isto significa que parte considerável das prefeituras – cerca de 3 mil em um universo de 5.565 – ainda não dispõe de aterros sanitários regulamentados. A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), criada em 2010, previa que até 2014 todos os município brasileiros eliminassem os lixões. Face à incapacidade das prefeituras em atenderem a legislação, o prazo foi prorrogado para 2020. Em decisão recente o Congresso estendeu o limite para 2024. Com estas deliberações, a Câmara passa a mensagem de que se novamente a lei não for cumprida, haverá outras prorrogações no futuro. Até quando o país vai esperar?
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Questão ambiental no Brasil: algumas lições
Através de minhas atividades profissionais venho acompanhando o setor de meio ambiente há muitos anos. Iniciei minha carreira na área em 1992, ano da ECO 92, realizada no Rio de Janeiro, durante o governo Collor. Agora, depois de observar a atuação de vários governos, pude tirar algumas lições do que foi o desenrolar da questão ambiental no país, ao longo desses anos. Quando falo em questão ambiental, refiro-me aos diversos aspectos de como a sociedade brasileira vem se relacionando com o assunto. Por exemplo, como os altos e baixos da economia têm influenciado a maneira de como fabricantes e comerciantes, governos, órgãos públicos e consumidores têm se comportado em relação ao meio ambiente e sua preservação? De que forma estes mesmos agentes atuaram com referência à legislação ambiental, à modernização da tecnologia de prevenção da poluição, em relação às ONGs, aos movimentos ambientalistas e clientes exigentes quanto às práticas ambientalmente corretas? O quanto a sociedade brasileira levou em conta os estudos e relatórios publicados por cientistas, reportando sobre a degradação dos recursos naturais e da necessidade de se implantar novas práticas em áreas como a mineração, a pecuária, a agricultura, a gestão dos resíduos urbanos e resíduos perigosos, o saneamento, o manejo das florestas e outras áreas de proteção? Em termos gerais, levando-se em consideração o que mencionamos acima, pode-se dizer que de uma maneira geral, tanto os governos quanto a sociedade civil sempre foram entusiastas no que se refere à preservação do meio ambiente – pelo menos em teoria. Empresários anunciavam planos de modernização de suas fábricas, para economizar insumos e reduzir o impacto ambiental de suas atividades. Administrações federais anunciavam recursos para implantação de planos de saneamento e infraestrutura. Prefeituras elaboravam projetos de gestão de resíduos, enquanto empresas privadas comunicavam futura criação de iniciativas de reciclagem de materiais. Consumidores estavam abertos à ideia de pagar um pouco mais por um produto, cuja produção e descarte teria menor impacto ambiental.
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Na prática, no entanto, as boas intenções derrapavam na falta de recursos financeiros, conhecimentos técnicos, organização e dificuldades no atendimento da legislação. Ou seja, parte do que estava planejado não era concretizado a tempo – se é que efetivamente chegava a ser colocado em prática algum dia. Mesmo assim, aos trancos e barrancos, o país avançava. Parte das grandes diretrizes ambientais, como a redução do desmatamento, a manutenção e o aumento das áreas de preservação, a implantação de energias renováveis, o aumento da participação dos biocombustíveis na matriz energética, a criação de uma política nacional de resíduos, a educação ambiental nas escolas e outras iniciativas menores, estavam efetivamente sendo implantadas. Por sua determinação em perseguir estes objetivos, o Brasil sempre foi um dos principais articuladores e interlocutores dos grandes fóruns ambientais mundiais. Desde 1992 tínhamos um importante papel, por dispormos de um vasto estoque de riquezas naturais; biodiversidade, recursos hídricos, solos férteis, extensa faixa litorânea, diferentes biomas. E, mais importante, o Brasil transmitia a imagem de que, apesar das dificuldades, o país – sociedade civil e governo – estavam seriamente empenhados em atingir suas metas socioambientais e contribuir com os outros países em ações de preservação e redução de emissões. O atual governo, no entanto, através das ações de seu ministério de Meio Ambiente, transmite uma imagem completamente diferente do país, como mostrou em sua recente participação na COP 25, realizada em dezembro na Espanha. O ministro do Meio Ambiente promoveu cortes de recursos (que já eram escassos) em diversas áreas, exonerou funcionários, nomeou profissionais não ligados ao setor, limitou e promoveu descontos em multas ambientais – para supostamente combater o que chama de “indústria da multa”. Por seu posicionamento de confronto, o país perdeu os recursos do Fundo Amazônia, que já captou mais de 3 bilhões de reais, usados para financiar ações de preservação na região. Um dos principais resultados imediatos destas ações ministeriais, foi o aumento do desmatamento da Amazônia em 30%, entre 2018 e 2019. Isto sem falar na demora no combate ao derramamento de óleo em cerca de 900 praias nordestinas; acidente cujo causador ainda permanece desconhecido. Tais fatos 13
prejudicam a imagem internacional do Brasil, fazendo com que perca seu lugar entre os grandes protagonistas mundiais na área ambiental. Tornamo-nos um “anão ambiental” perante a comunidade internacional. Esta má reputação na área da sustentabilidade poderá comprometer outros setores da economia, como o agronegócio e a pecuária, o turismo e os programas de cooperação internacional de pesquisa em biodiversidade, mudanças climáticas e energias renováveis. Este dano causado ao país poderá demorar anos para ser reparado.
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Ciclos da natureza
Tudo na natureza passa por ciclos; fenômenos naturais, comportamentos, atividades, processos, que se repetem ao longo de um período de tempo. Horas, dias, meses, anos, décadas e séculos; ou períodos cronológicos muito maiores. O mais conhecido é o ciclo circadiano; um processo que afeta o ciclo biológico dos organismos durante um período de 24 horas, influenciado principalmente pela variação da luz do dia e da noite. O ciclo também sofre interferência das marés, das fases lunares, correntes eólicas e marítimas. A dinâmica circadiana atua de diferentes maneiras sobre plantas e animais, microrganismos e seres humanos, mostrando que as influências dos astros, do clima, da geologia e da ecologia são maiores à vida do que pensa o senso comum. A variação das estações ao longo do ano exerce uma importante influência na vida do planeta, condicionando o desenvolvimento dos seres vivos desde sua origem, há cerca de 3,8 bilhões de anos. Estudos recentes realizados em importantes universidades mostram que o organismo humano sofre variações em sua estrutura genética ao longo das quatro estações. A Dra. Silvia Sánchez Ramón, chefe da Unidade de Imunologia Clínica do hospital Ruber Internacional de Madrid, afirma que 23% do genoma humano oscila durante as estações do ano e que ocorrem mudanças significativas em mais de 4 mil genes dos glóbulos brancos do sangue e em células do tecido adiposo. Isto significa, conforme a especialista, que o organismo está sujeito a doenças específicas, conforme as estações do ano. Os ciclos glaciais e interglaciais, aos quais o planeta esteve (e ainda está) sujeito através da sucessão de períodos frios, quando parte da água dos oceanos está congelada, e períodos mais quentes, durante os quais os oceanos estão com pouco ou sem congelamento algum, têm se sucedido ao longo da história geológica. Segundo dados mais recentes da ciência, a Terra passou por seis grandes Eras do Gelo ao longo de sua história. A mais recente, teve início há cerca de 2,5 milhões de anos, no período Quaternário, e se estendeu até aproximadamente 10 mil anos atrás, quando teve início o período geológico do 15
Holoceno. Interessante é que devido ao imenso impacto das atividades humanas ao clima do planeta durante estes últimos dez milênios – basta lembrar da invenção da agricultura, das cidades, das máquinas –, muitos cientistas pretendem mudar o nome deste atual período de Holoceno para Antropoceno (antropo em grego significa homem). Em grande parte dos fenômenos do mundo físico, podem ser identificados processos cíclicos: os dias, as estações, as marés, as fases da Lua. A vida, por sua vez se adaptou a estas constantes mudanças e repetições. Através da floração, produção de frutos e perda das folhas, no caso das plantas; pelas migrações, acasalamento e cuidado com os filhotes, no caso dos animais. Até o universo, de acordo com as modernas teorias da astronomia, tem seu período de expansão e, depois de centenas de bilhões de anos, ocorre sua retração – para que depois o processo se repita. A humanidade está interferindo nos ciclos da natureza, com suas agressivas atividades exploradoras dos recursos naturais. Corremos o risco de, definitivamente, interrompermos ciclos importantes como o da água, dos nutrientes do solo, do clima, das migrações, da reprodução de espécies, entre muitos outros. No extremo, podemos interromper ciclos vitais à sobrevivência de nossa espécie.
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A cultura da Terra plana
O conhecimento e a cultura estão sendo relegados a segundo e terceiro planos na atual administração do país. Há, ao que parece, um processo em andamento, com o objetivo de desestruturar o ensino público superior e nivelar a cultura brasileira por baixo. Professores, principalmente os docentes das ciências humanas, são acusados de serem agentes de uma “ideologia de esquerda que domina as universidades”. As universidades, especialmente as públicas, são tidas como locais onde “se consome e produz drogas”, além de serem “ponto de encontro para a prática do sexo grupal entre os alunos”. A política educacional do governo está afetando também o Ensino Médio, prejudicado pela maneira desastrada como o ministério da Educação conduziu o último exame do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), realizado em janeiro de 2020. Os livros didáticos também serão mudados. Os atualmente em uso, segundo o presidente, têm “muita coisa escrita”, “é preciso “suavizar”. Assim, em 2021, quando segundo Bolsonaro “todos os livros serão nossos, feitos por nós” (ou seja, de acordo com a ideologia que este governo sempre afirmou não ter), o material distribuído aos alunos terá a bandeira do Brasil na capa e o texto do hino nacional. Com essas simples medidas, parece que o governo descobriu a fórmula mágica para aumentar o interesse dos alunos pelo material didático, além de incentivar o patriotismo. Na área da cultura, a atuação do governo também mostra seu objetivo de imprimir um outro direcionamento à pasta. Bolsonaro, além das críticas, da intenção de “colocar filtros”, e de declarações como “a cultura tem que estar de acordo com a maioria da população”, tem uma visão bastante peculiar da cultura – além de achar que deve impingir esta visão ao resto dos brasileiros. A Secretaria Especial de Cultura (nome que substitui o antigo Ministério da Cultura – MinC)) perdeu mais de 80 servidores, transferidos para outras áreas dentro do governo. A pouca importância que o tema da cultura tem para a atual 17
administração é demonstrada pelo fato de que a Secretaria é subordinada ao Ministério do Turismo. Outro aspecto que denota o pouco valor que o governo dá à cultura, está no perfil de alguns dos integrantes nomeados para ocuparem cargos na Secretaria. Além disso, reflete a direção política que o governo quer imprimir à cultura: - Roberto Alvim assumiu o cargo de Secretário em novembro, mas foi exonerado no mês seguinte por sua escandalosa defesa de ideias nazistas. O fato teve ampla repercussão nacional e internacional, tendo sido mais uma contribuição do governo para denegrir a imagem do país no exterior. Foi substituído pela atriz global Regina Duarte;
- Sérgio Nascimento Camargo, foi empossado no cargo de presidente da Fundação Palmares. “Negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”, como se definia, fez várias declarações que justificadamente escandalizaram vários segmentos da sociedade, principalmente os negros. Chegou a afirmar que a escravidão “foi benéfica para os descendentes”, que não existe “racismo real” e que o movimento negro precisa ser extinto. Foi exonerado depois de alguns dias no cargo;
- Camilo Calandreli, formado em música pela USP, é cristão conservador e seguidor de Olavo de Carvalho. Já acusou a Lei Rouanet de “marxismo cultural”. Substituiu Katiane Gouvêa, que depois de duas semanas no cargo foi exonerada por censurar o filme “A vida invisível”;
- Janícia Ribeiro Silva, conhecida como reverenda Jane Silva, já estava à frente da área da Diversidade Cultural na Secretaria. Foi convidada pela amiga Regina Duarte (que assumiu o cargo de secretária da Cultura) a ocupar o cargo de secretária Adjunta. É pastora e defensora da transferência da embaixada brasileira para Jerusalém;
- Dante Mantovani, que substituiu Miguel Angelo Oronoz Proença no comando da Fundação Nacional das Artes (Funarte). Dante é formado em música, especialista em Filosofia Política e Jurídica e Mestre em Linguística. Também é 18
discípulo de Olavo de Carvalho. Em seu canal do Youtube, o novo presidente da Funarte afirma que “o rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo.” Sobre o grupo inglês The Beatles, Mantovani disse que “eles precisavam destruir as famílias americanas porque eram (as famílias) a sustentação do capitalismo.”
Uma forte influência no governo de Bolsonaro entre os filhos do presidente e ministros, é a do escritor e astrólogo Olavo de Carvalho – que entre outras coisas é terraplanista, acredita que fetos abortados são usados como adoçante, que o filósofo Theodor Adorno escreveu as letras das músicas dos Beatles, que o vírus Corona foi criado pela Microsoft, etc. Seus discípulos são chamados de “olavetes” e são, entre outras coisas, contra a globalização e não acreditam nas mudanças climáticas ou em sua origem antrópica. Na mesma linha negacionista, a pastora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por exemplo, declarou que “a igreja evangélica perdeu espaço na história. Nós perdemos o espaço na ciência quando nós deixamos a Teoria da Evolução entrar nas escolas”
Ainda não é claro o rumo que deverá tomar a educação e a cultura no Brasil durante este governo. Uma coisa, porém, é certa: a continuar este tipo de influência, estaremos caminhando rapidamente para o passado. Enquanto o mundo desenvolvido deixou há muito de problematizar filigranas culturais, religiosas ou de costumes, o Brasil – que detinha um bom nível no ensino superior, na pesquisa e na cultura em geral, comparado a outras nações em desenvolvimento – se transformará em uma nação retrógada, avessa ao progresso e à inovação. Uma sociedade cujos principais temas culturais serão “a Terra plana”, o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”.
(Observação: este texto reflete a situação do governo no início de 2020. Neste ínterim alguns destes executivos foram exonerados e outros reassumiram o cargo)
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Esperando os investimentos e o crescimento (ou será “esperando Godot”?)
Há quanto tempo estamos parados? Há quase sete anos, desde 2014! O número de desempregados não diminui significativamente e aumentam os subempregos – forma-se a classe do precariado – afora os milhões de profissionais que estão na total informalidade. Nunca estivemos numa situação como esta. Dirão alguns que a crise é mundial, que o processo também acontece nos países desenvolvidos e, com mais força ainda, nos países menos desenvolvidos do que o Brasil. Fato é que nos países desenvolvidos, afora os Estados Unidos, o cidadão tem uma malha de proteção mais eficiente do que no Brasil. Por aqui, a proteção que o trabalhador tem – ou tinha – está sendo eliminada, sob o argumento de que seu custo era muito alto para o patrão e o Estado. O principal mecanismo de proteção social do cidadão pobre – a última barreira contra a miséria total –, o Bolsa Família, foi implantado por um governo agora execrado como sendo “totalmente corrupto e esquerdista”. Fato é que depois de tantas reformas – Teto de Gastos, Reforma Trabalhista, Reforma da Previdência – ainda se argumenta de que serão necessárias as reformas Fiscal e a Administrativa. Mas quando haverá crescimento? O quadro real é que o país continua parado, há anos. As promessas não foram cumpridas. Bolsa em alta, juros em baixa, adiantam pouco ou quase nada. O que gera crescimento, empregos, melhoria dos serviços públicos (sim, ainda públicos!), consumo e bem estar social são investimentos. Onde estão os investimentos? Quanto tempo se planeja esperar e manter o país em hibernação?
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Economia não é mais dissociada de meio ambiente
O atual governo brasileiro tem uma visão arcaica da questão ambiental. A preservação dos recursos naturais é um dos temas mais importantes nas agendas dos países ricos, dos grandes grupos econômicos e das camadas mais instruídas da população mundial. Se a atual administração almeja efetiva inserção na economia global e pretende ser um dos grandes protagonistas nos fóruns de discussão – posição que o Brasil já teve em outros governos – deve mudar a maneira como trata da questão do meio ambiente. A sociedade capitalista ocidental começou a se preocupar com os impactos ambientais de suas atividades econômicas a partir da década de 1960. Crescimento das cidades e das áreas agrícolas, aumento da população, início da
industrialização,
eram
aspectos
que,
principalmente
nos
países
desindustrializados, preocupavam cientistas e políticos. Nos anos 1980 a ciência descobriu uma outra consequência da poluição: o aquecimento da atmosfera terrestre, causado pelo efeito estufa, que se origina do acúmulo de gases na atmosfera. A maior e mais grave consequência do aumento da temperatura da atmosfera é a crise climática; uma escalada dos fenômenos climáticos extremos. Simplificando, pode-se dizer que o combate à poluição em todo o mundo tem duas fases principais: 1) a necessidade de diminuir os impactos imediatos ao ambiente, como a poluição dos recursos hídricos, do solo e da atmosfera, eliminando ou diminuindo a degradação. 2) a indispensabilidade de reduzir e eliminar a contaminação da atmosfera por emissões causadoras do efeito estufa. Quanto mais desenvolvido o cuidado com o meio ambiente em uma sociedade, tanto mais ela está avançada na resolução dos aspectos da fase 1 citada acima, e foca principalmente na resposta à fase 2, a redução das emissões – o que exige providências bem mais complexas. No Brasil de 2020 ainda temos dificuldades com os problemas imediatos de poluição (fase 1) e avançamos pouco nas medidas para eliminar as emissões de efeito estufa – notadamente pelas ações (ou falta delas) do atual governo.
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Agora, depois do Fórum Econômico Mundial de Davos, realizado em janeiro de 2020, o governo brasileiro percebeu que os ricos de todo o mundo, os grandes grupos econômicos mundiais, e os formadores de opinião, associam cada vez mais seus investimentos com uma melhor atuação na preservação dos recursos naturais. Se quiser receber investimentos estrangeiros que possam contribuir no desenvolvimento econômico e tecnológico do país, o governo terá que mudar a maneira como trata os recursos naturais.
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Lula e o Francisco
Há poucos dias, o ex-presidente Lula foi recebido pelo papa Francisco. O fato foi pouco comentado ou completamente ignorado pela maior parte da imprensa nacional. O Jornal Nacional, que deu grande destaque aos encontros de outras personalidades brasileiras com este e outros papas, fez apenas uma brevíssima referência ao encontro. Nas redes sociais, houve fortes ataques ao ex-presidente e ao papa do lado bolsonarista, e efusivos elogios nas redes de oposição ao governo. No varejo dos diversos grupos do WhatsApp e do Facebook, a impressão é que a visita de Lula a Francisco causou desgosto aos apoiadores do presidente Bolsonaro. Foram várias as manifestações, referindo-se ao sumo pontífice como “comunista”, além de associar isto ao fato de ser argentino. Parece que nossa velha xenofobia em relação aos nossos vizinhos platinos ainda não foi superada – acontecimentos recentes têm contribuído para manter o tema em pauta. Outros lamentam o fato de que o chefe máximo da igreja católica tenha recebido em audiência privada “o maior ladrão na história brasileira”, figura que, segundo estes “tanto mal fez ao Brasil”. Independentemente disto, vale lembrar que a função do papa, como sacerdote e representante de Deus, é exatamente esta: receber e confortar os (assim classificados) pecadores – lembrando que, pelo menos em relação aos pecados dos quais é acusado na política, o processo de julgamento de Lula ainda não terminou. A visita do ex-presidente ao pontífice levanta outras questões sobre a sociedade brasileira. Por um lado, parece que parte dos católicos conservadores, acompanhando setores igualmente conservadores do clero local, colocam-se contra Francisco e suas decisões pontifícias. Com isso, personagens, políticas e ideias conservadoras, sejam quais forem e de quem forem, despertam a simpatia de tais grupos sociais conservadores. Aqueles que por uma razão ou outra não têm o apoio das lideranças conservadoras, por defenderem outro tipo
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de visão da sociedade, são considerados inimigos que são rechaçados e atacados – e Lula cristaliza esta situação. Por outro lado, parece que para as alas conservadoras da igreja católica brasileira, a situação política e social do país não são os motivos principais de seu reacionarismo. O objetivo primordial de suas ações é fazer oposição à posição progressista do papa Francisco na condução da Igreja. O momentâneo alinhamento com muitas posições retrógadas do presente governo (Bolsonaro) é muito mais baseado em estratégia do que em convicções comuns. Haverá no Brasil uma divisão definitiva entre grupos católicos conservadores e outros mais progressistas? Até que ponto os futuros governos, sua ideologia e as condições sociais influirão nesta divisão?
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Enchentes, o clima e a questão social
O verão de 2019/2020 foi excepcionalmente chuvoso em toda a região Sudeste do Brasil. Centenas de cidades foram afetadas pelo transbordamento de rios e acúmulo de água, desalojando e desabrigando dezenas de milhares de pessoas e provocando mais de 70 mortes por desabamentos e afogamentos. Segundo os meteorologistas, estas grandes precipitações estão sendo provocadas pelo aumento da temperatura média do Atlântico Sul, gerando nuvens que entram em contato com os corredores de umidade que vêm da Amazônia, os chamados “rios voadores”. O choque destas frentes climáticas acaba provocando grandes precipitações na região Sudeste, a região mais populosa do país. Apesar do fenômeno não ser regular, não foi a primeira vez que tal volume de chuvas caiu sobre a região. Cientistas preveem que tais precipitações passarão a ser cada vez mais comuns, com a crise climática. Neste ano, dada a vasta área geográfica
afetada,
as
chuvas
despertaram
mais
preocupação
entre
administradores públicos e especialistas, já antevendo acontecimentos semelhantes ou mais graves nos próximos anos. São várias as causas destas enchentes. A mais óbvia delas é o clima; mas este não é o único vilão desta história. Por um lado, existe o fenômeno do aquecimento global provocando a crise climática, que se apresenta como uma série de acontecimentos – aumento da força das chuvas, das nevascas, dos furacões, das secas, etc. – que cada vez mais afetarão as atividades humanas. O fato não é novo e já vem sendo anunciado e debatido desde meados da década de 1980. Mas continua sendo negado por alguns grupos econômicos e governos, cujas atividades contribuem direta ou indiretamente para o aprofundamento da crise do clima. O Acordo de Paris, assinado em 2016 por 175 países, é o primeiro passo no compromisso mundial em reduzirmos gradualmente as emissões de gases, evitando aumentar o aquecimento da atmosfera ao longo das próximas décadas.
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Outra causa das enchentes, talvez a principal, tem como base o desenvolvimento das cidades brasileiras, notadamente as da região Sudeste. O Brasil, ao longo de sua história, não chegou a fazer uma reforma agrária ampla, de modo que as populações campesinas pudessem ter acesso à terra. Crises econômicas, secas e a mecanização da agricultura, ocorridos ao longo dos anos 1940-1990, fizeram com que estas pessoas não tivessem mais sustento no campo, sendo forçadas a migrarem para os centros urbanos. As cidades, por outro lado, não estavam preparadas para receberem estes contingentes adicionais de moradores; faltavam recursos para ampliar a rede de infraestrutura urbana. Assim, dado o baixo poder aquisitivo destas populações, elas não tinham condições para se fixarem em áreas urbanas valorizadas, onde havia uma infraestrutura urbana desenvolvida. Sobravam em muitas cidades apenas as zonas situadas na várzea dos rios ou nas encostas de morros – exatamente os espaços que com o adensamento urbano provocado pelo crescimento da cidade, a construção de grandes avenidas, a larga impermeabilização dos solos, seriam as mais sujeitas às enchentes. De uma maneira bastante simplificada, pode se dizer que as enchentes são sintomas de dois processos distintos, mas não independentes. Primeiro, o aumento das chuvas provocadas pela crise climática, como consequência da exploração desordenada dos recursos naturais pelas atividades econômicas. Segundo, o crescimento desordenado e excludente das cidades brasileiras, através de um processo de especulação imobiliária e um incipiente (ou nenhum) planejamento urbano.
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Pensamentos sobre a morte
Todo final de ano a imprensa, talvez por falta de assunto, chama a nossa atenção para o grande número de personalidades famosas que teriam falecido durante o ano. Cantores e cantoras, atores e atrizes, empresários, atletas e políticos; todos têm suas vidas expostas, mostrando, de preferência, os aspectos mais tristes, trágicos e bizarros de suas biografias. A cada ano a prática jornalística se repete, mas, mesmo assim, quer se fazer parecer que só hoje vivemos em um período único, como se antes não tivesse havido outro igual. No entanto, mudaram apenas os nomes e algumas poucas circunstâncias do passamento das celebridades. Para o público, ávido por sensações, os principais personagens das apresentações que se sucedem nas páginas das revistas ou nos sites de famosos, são a fama, o poder, o dinheiro, os amores, as alegrias, os escândalos, as desgraças e, por fim, a morte. As personalidades mortas são apenas personagens de uma história que no fundo é sempre a mesma; mudam apenas os atores. A impressão de que em determinado ano morreram mais celebridades do que em
períodos
passados,
pode
também
ser
relativa.
Talvez,
porque
coincidentemente nos últimos tempos tenham falecido pessoas que são conhecidas para nós, nosso grupo social, para nosso país. Muito provavelmente essas mortes, que nos chamam a atenção, sobre as quais vemos e fazemos comentários, pouco ou nada significam para pessoas de outros grupos, países ou culturas. Tudo, em última instância, depende do ponto de vista de quem percebe ou não o fato. Até a morte de celebridades supostamente famosas é relativa, ou, dito de outra forma, até a fama na morte é relativa ao meio histórico, geográfico, ou social. Há outras relativizações da morte. Não só da morte de indivíduos conhecidos, mas de pessoas comuns. Por vezes nos ocorre a lembrança de pessoas que conhecíamos no passado, em diversas fases de nossa vida, e que faleceram. Lembramos daqueles que, como nós, eram jovens e morreram. De repente, não 27
estavam mais: um acidente, uma doença rápida e depois só a memória. O que teriam feito na vida, como viveriam e o que poderiam ter sido? (Quantos pais não se perguntaram isso durante toda a história da humanidade?) Sobre este fato escreve o filósofo Arthur Schopenhauer em Parerga e Paralipomena: “A profunda dor causada pela morte de todo ser de quem se é amigo surge a partir do sentimento de que, em todo indivíduo, existe algo de inefável, próprio apenas a ele e, portanto, inteiramente irrecuperável.” Em Senilia, pensamentos na velhice o pensador também registra: “A vida deve ser vista integralmente como uma lição rigorosa que nos é dada, embora nós, com nossas formas de pensamento voltadas a objetivos totalmente diferentes, não consigamos entender como chegamos ao ponto de precisar dela. Mas, para isso, devemos nos lembrar de nossos amigos falecidos com satisfação, considerando que superaram sua lição e desejando que ela tenha sido aproveitada.” Ao longo da vida encaramos a morte de maneiras diferentes – poderíamos dizer pontos de vista diferentes, o que novamente nos remete à ideia da relatividade. Quando somos jovens, se não nos deparamos com ela no falecimento de parentes ou amigos, quase não tomamos conhecimento da “indesejada das gentes”, como a chamava o poeta Manuel Bandeira. Já na idade adulta, às voltas com a vida familiar e profissional, caso não se faça diretamente presente em nossas vidas, também pouco a percebemos. O frenético ritmo da vida, a energia, os planos e objetivos, a longa estrada ainda pela frente, nos afastam do pensamento da morte. Em se aproximando a velhice, quando começamos a ver, aqui e ali, tombarem aqueles que vinham nos acompanhando – os nossos pais –, começamos a nos dar conta de que aquele muro alto e cinza, que primeiro desconhecíamos e depois parecia estar muito longe, agora se aproxima. Escreve na antologia A arte de envelhecer o filósofo contemporâneo italiano Franco Volpi: “Naturalmente, existe o implacável mecanismo de contagem do tempo, o rigor da decadência biológica o unus dies par omni: a morte, ou seja, o dia que, de maneira singularmente democrática, é de fato igual para todos. Na juventude, 28
quando, por assim dizer, escalamos a montanha da vida, não conseguimos ‘ver a morte, pois ela está no sopé do outro lado da montanha’. Porém, depois que ultrapassamos o cume, ‘então avistamos realmente a morte, que até esse momento conhecíamos apenas de ouvir falar.’ Tomamos consciência de sua aproximação devido ao esgotamento de todas as forças do organismo, aquele processo bem triste do ‘marasmo’, que, não obstante, é necessário e até mesmo benéfico e salutar: ‘Pois sem essa preparação (a diminuição de todas as forças), a morte seria difícil demais.” Até os enterros guardam uma certa relatividade. Quantas vezes já não ocorreu, a cada um de nós, irmos a um enterro e lá encontrarmos parentes e pessoas conhecidas – esses encontros memoráveis que geralmente só ocorrem nessas ocasiões especiais: casamentos, cada vez mais raros, batizados cujo número também sofreu perceptível queda, e enterros, cuja frequência permanece igual. Continua sempre atual a expressão latina: Vixit, viveu, já não vive. O relativismo ao qual me refiro com relação aos enterros é a questão da perspectiva. Vamos ao enterro de um parente, no qual encontramos outros familiares com os quais conversamos durante as longas – e geralmente frias – noites de velório. Passado um período, somos chamados a comparecer a outro sepultamento, exatamente daquele familiar com o qual havíamos conversado durante algumas horas naquele velório passado. Num futuro longínquo ou não, não o sabemos, muitos daqueles parentes e amigos estarão conversando por algumas horas, numa noite fria, durante o nosso próprio enterro. E assim gira a roda da vida, a bhavacakra dos budistas. Talvez, por toda esta visão relativística em relação à morte e ao morrer, é que os grandes mestres espirituais da humanidade sempre foram reticentes em relação à morte e ao que vem depois. Nunca tentaram formar um quadro detalhado do que aconteceria após nossa morte, deixando transparecer que o “hoje e o aqui”, eram mais importantes do que fantasiosas elucubrações a respeito de um estado, sobre o qual provavelmente nem eles tinham uma ideia clara formada. Finalizamos com pensamentos de alguns filósofos sobre a morte:
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“Nenhuma desgraça pode atingir aquele que deixou de ser; em nada difere do que seria se jamais tivesse nascido, pois sua vida mortal lhe foi arrebatada por uma morte imortal.” (Lucrécio, Da Natureza) “É decerto medonho viver quando não se quer, mas seria ainda mais pavoroso ser imortal quando se quer morrer.” (G. C. Lichtenberg, Aforismos) “Não morres por estares doente; morres por estares vivo.” (Michel de Montaigne, Pensamentos) “A morte – o senhor absoluto.” (Georg W. F. Hegel, Fenomenologia do Espírito) “O que aguarda os homens após a morte não é nem o que esperam, nem o que acreditam.” (Heráclito de Éfeso, Fragmentos)
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O auditório do Jair
Todo dia pela manhã, ao sair do Palácio da Alvorada, o presidente Bolsonaro é recebido por pequenos grupos de seguidores, que ficam à espera de uma oportunidade de apertar-lhe a mão ou tirar uma selfie junto com ele. Na história humana as pessoas sempre tiveram necessidade de se aproximar de seus ídolos, das pessoas que admiram. Veneram as suas lideranças com um misto de medo e confiança. Em casos extremos, renunciam às suas vontades e cegamente seguem o líder, abrindo mão de suas vontades. Há inúmeros casos na história nos quais tribos, impérios e estados modernos foram levados a ações de todo o tipo, conduzidos por figuras proeminentes. Não interessa aqui saber como se constroem estas lideranças; quais acontecimentos levam ao aparecimento de verdadeiros ou de líderes fabricados. Nem cabe analisar as ações destes líderes; a diferenças, por exemplo, entre Adolf Hitler e Mahatma Gandhi. Também não vem ao caso discutir que tipo de líder Jair Bolsonaro é; fato é que tem admiração de uma parte da população. Pessoas visitam o presidente Bolsonaro em Brasília, na sede do governo. É durante estes encontros com seus admiradores, que Bolsonaro recebe também a imprensa para a entrevista coletiva. Os jornalistas, de diversos veículos e mídias, muitas vezes são surpreendidos pelas reações e palavras agressivas do presidente. Para o restante do público que foi encontrar o presidente pela manhã, no entanto, o momento é de descontração e divertimento. As reações momentâneas do presidente em nada conseguem embaçar a imagem que seus admiradores fazem dele. Sorrisos, risadas. O líder tem lá as suas idiossincrasias mas é admirado, enquanto os acontecimentos se sucederem e ainda o permitirem. Sempre foi assim.
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Crise ambiental e crise de valores
Recentemente, em entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia, o economista Prêmio Nobel Joseph Stiglitz classificou a crise climática como uma das três principais crises do mundo atual. As outras duas seriam a crise do próprio sistema econômico, o capitalismo, e a crise dos valores. Uma crise, seja qual for, não ocorre por motivos simples. Desde a relação dos indivíduos entre si e com o meio ambiente, às relações econômicas, aos sistemas de crença de uma sociedade; as crises são sempre mais abrangentes do que se avalia, e têm causas diversas. É por isso que são tão difíceis de serem estudadas; tentar determinar-lhes as origens e as consequência exige muita informação, processamento de dados e capacidade de síntese. Antes do aparecimento da espécie humana, existia no planeta apenas o complexo sistema da natureza, composto pelas inter-relações entre os indivíduos de cada espécie, entre as espécies, e destes com seu ecossistema. Em outro nível, havia a relação dos diversos ecossistemas entre si e com o ambiente físico e as condições climáticas. O planeta, por acomodar milhões de espécies vivas – microrganismos, plantas e animais – dispunha de uma complexidade de relações muito grande. Imagine-se um ambiente composto por plantas e animais, influenciado pelo clima e pelas condições geológicas, no qual todas as espécies estejam competindo por alimento e espaço vital para procriar. Com o aparecimento dos ancestrais dos humanos as relações no planeta se tornaram ainda mais complexas. Se no início de seu desenvolvimento a espécie homo era apenas mais uma a predar e a ser predada, o homo sapiens, com o desenvolvimento de artefatos e técnicas de caça mais eficientes, começava a influir no equilíbrio dos ecossistemas do planeta. Estudos recentes mostram, por exemplo, que parte da antiga fauna australiana e americana foi dizimada por grupos humanos que atingiram estas regiões há 50 mil e 15 mil anos, respectivamente.
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O processo se tornou mais intrincado ainda, quando nossos antepassados inventaram a agricultura, há aproximadamente 10 mil anos. A partir deste ponto da história do planeta, nossa espécie passou a ter uma relação cada vez mais intensiva com o já existente sistema da natureza. Derrubamos florestas, aterramos pântanos, domesticamos plantas e animais para nosso uso. Criamos as cidades, os estados, novas tecnologias, descobrimos novos continentes, inventamos a indústria. Com todas estas atividades nossa espécie criou novas relações e sistemas que não existiam na natureza; criação das mentes de milhões, bilhões de indivíduos que nos antecederam – processo que nós continuamos até hoje no nosso dia a dia. As incontáveis atividades que empresas, governos e indivíduos exercem diariamente também podem ser resumidas em sistemas de relações. São as relações econômicas, políticas e sociais, entre outras, que permeiam todas as atividades humanas, baseadas em nossas relações com a natureza, com o meio ambiente. Imagine-se o impacto sobre o meio ambiente natural quando da expansão da área agrícola, da abertura de uma mina, da exploração de um poço de petróleo, da abertura de um novo loteamento. No entanto, para que estas atividades de inegável impacto sobre o ambiente tenham início, há necessidade de leis, normas técnicas, contratos comerciais, de produção de máquinas, treinamento de profissionais, previsões econômicas, etc. A crise climática tem direta relação com as outras crises; a do capitalismo e a dos valores. Não há como separar estas áreas em compartimentos estanques. A crise climática, ou seja, a gradual destruição dos recursos naturais, é resultado da maneira como atuamos sobre a natureza em nossas atividade econômicas – ou seja, nossa relação com a natureza. Esta atuação é baseada em valores, que justificam, validam e foram gestados por um sistema de relações econômicas: o capitalismo. As crises, portanto, às quais se refere o economista Stiglitz, citado no início deste artigo, podem ser resumidas a uma: a do capitalismo.
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Meio ambiente: hoje como ontem
A situação do meio ambiente no Brasil continua sem rumo. No plano federal, o Ministério do Meio Ambiente receberá recursos consideráveis, mas até o momento não desenvolveu qualquer plano detalhado sobre o uso a ser dado a estes meios. Lembremos que o ministério foi desmontado, tendo vários de seus técnicos demitidos ou transferidos, e áreas completas – como a que acompanhava a questão da mudança do clima – desativadas. O Conselho da Amazônia reinstalado pelo presidente Bolsonaro e que será presidido pelo vice-presidente Mourão, formado por 14 ministérios, pretende retomar e integrar ações que no passado eram exercidas por outros ministérios, de maneira independente. A ideia é boa. O que falta saber – e o tempo dirá – se este Conselho terá a agilidade necessária para, através de decisões conjuntas, atuar de maneira rápida em situações como a da derrubada e queima da floresta. Na área do saneamento a situação continua estagnada. À espera de aprovação do Senado, o novo marco regulatório de privatização desperta muitas críticas. O governo federal e os estaduais, por outro lado, não dispõem de recursos para continuarem com programas de saneamento, que se arrastam desde o primeiro governo Lula. Nos últimos dez anos, os dados sobre o setor praticamente em nada mudaram. A Política Nacional de Resíduos continua sem avançar significativamente, já que a maior parte dos municípios ainda não apresentou seu Plano de Gestão de Resíduos e também não dispõe de recursos para implantar estes planos. O governo federal, como vem fazendo há quase uma década, lava suas mãos e diz que a responsabilidade é dos estados e dos municípios. Em outros âmbitos do setor ambiental – áreas contaminadas, poluição atmosférica, recursos hídricos, comando e controle, etc., a situação também permanece inalterada. Faltam recursos, capacitação, equipamentos e, principalmente, estabelecer prioridades.
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Redes sociais e fake news
Parte dos grupos das redes sociais se transformou em verdadeiras reservas, nas quais só circulam informações que confirmam ou alimentam as opiniões de seus membros. Muitos destes agrupamentos transformaram-se em bolhas, isoladas e impermeáveis a outro tipo de informação, que não aquela que confirme a visão de seus participantes. Quando falamos de comunidades de discussão fechadas, voltadas exclusivamente a temas filosóficos ou religiosos, por exemplo, é esperado que seja assim. O que interessa ao grupo é aquilo que seus membros comungam e acreditam. Quando, porém, se trata de uma coletividade comum, o quadro é diferente. Desde antes das eleições de 2018, observa-se grupos que começaram a trocar informações inverídicas, em alguns casos as mais grosseiras mentiras, quase sempre desconhecendo serem fake news recebidas por algum membro. Com o tempo, grande parte dos participantes destes grupos de Whatsap, passaram a se informar sobre muitas coisas que aconteciam no país – política, economia, ações do governo – quase que exclusivamente através das mensagens destas bolhas fechadas. Muito desta informação, no entanto, era material de origem desconhecida, provavelmente preparada e divulgada por centrais noticiosas, com clara intenção de desinformar e influenciar este público. A Justiça tem uma investigação em curso, procurando identificar agentes da disseminação destas falsas notícias. O que realmente é preocupante nesta história é o fato de que paralelamente à ação destes geradores de fake news, hajam outros agentes tentando desacreditar mídias oficiais de notícias, que têm compromisso de noticiar fatos verídicos. Chegou-se ao ponto de sugerir que as pessoas não lessem mais jornais e que deixassem de assistir a determinados canais de TV. Lembramos que jornais, rádios, canais de TV, têm, até por dever constitucional, a obrigação de apresentar fatos verídicos; aquilo que efetivamente ocorreu. Nenhum canal de TV ou jornal pode inventar ou falsear os fatos. Isto por vezes ocorreu no passado, mas atualmente não é mais possível, já que o público pode checar a 35
informação em outras fontes – outros jornais ou canais de TV, a internet e até a mídia internacional. O que por vezes pode mudar de uma mídia para outra, é o enfoque dado ao fato ou a omissão dele. Por competir por público com outras fontes de informação como as TVs por assinatura, os youtubers, os blogues e as redes sociais – além dos jornais cada vez menos lidos –, um canal de TV ou jornal não consegue mais falsear fatos, com a intenção de derrubar um governo, por exemplo. O que ocorre, todavia, é que muitos integrantes destes grupos nas redes sociais, bombardeados por notícias falsas, não têm o hábito de consultar outras fontes. Muitas destas pessoas não acompanham os noticiários e muito menos leem a mídia impressa – isto sem falar de revistas especializadas ou livros. Formam a sua visão do que ocorre no país e no mundo baseados em notícias irreais, por vezes completamente absurdas, com as quais se deparam no Facebook, Twitter ou Whatsap. Que tipo de cidadão está assim se formando nestas condições? Um cidadão cujas opiniões estão baseadas em uma visão distorcida dos fatos, produzida por pessoas ou grupos que tiram vantagem desta situação. Sem o mais claro possível conhecimento dos fatos, não é possível que indivíduos tomem as decisões corretas sobre suas vidas. Estarão sempre pensando baseados em informações inverídicas e reagindo de modo a defender não os próprios interesses, mas os dos outros.
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Cidades e planejamento
A cidade é uma das maiores invenções da humanidade. Este espaço geográfico urbanizado e humanizado surgiu no período Neolítico, por volta de oito mil anos atrás. As primeiras aglomerações urbanas provavelmente apareceram por causa da praticidade. O templo era estabelecido em um lugar estratégico de uma região, e em seu entorno se fixavam os artesãos – o ferreiro, o padeiro, o oleiro –, cujos produtos ou serviços eram trocados por outros pelos camponeses das redondezas. Aos poucos esta pequena vila vai atraindo mais pessoas, sua organização social se torna mais complexa, até se transformar em centro comercial e político-administrativo. A mesma evolução ainda pode ser observada nos dias atuais, nas regiões de fronteira, como o Norte e o Centro-Oeste do Brasil. O surgimento e o crescimento das cidade na maior parte dos casos ocorre de forma espontânea. São raras as cidade planejadas, já que são o resultado de um longo desenvolvimento histórico, no qual as intervenções feitas em determinada época, são alteradas por sucessivas mudanças executadas posteriormente. A cidade de Roma, por exemplo, fundada por volta de 800 a.C., chegou a ter um milhão de habitantes no século I. Por volta do século V entrou em um período de extrema decadência, com a queda do império romano, abrigando 35 mil habitantes por volta do ano 800 e 15 mil por volta do ano 1100. No Brasil, a primeira cidade planejada foi Salvador, fundada em 1549 pelo primeiro governador-geral da colônia, Tomé de Souza. O objetivo da coroa portuguesa era fazer do núcleo urbano capital, centro administrativo e fortaleza militar, tendo para isso contratado o arquiteto militar lisboeta Luís Dias (15051542). Outra cidade planejada na mesma época foi Olinda, no Pernambuco. No século XIX temos como exemplo de cidades planejadas Teresina, capital do Piauí (1852) e Aracajú, capital do Sergipe (1854). Em 1897 foi fundada a cidade planejada de Belo Horizonte, que deveria substituir a antiga capital, Ouro Preto. Durante o projeto de ocupação do interior do Brasil no governo de Getúlio Vargas, chamado de “Marcha para o Oeste”, fundou-se a cidade de Goiânia 37
(1930). Um dos mais famosos projetos no mundo de urbe planejada, foi o da cidade de Brasília (1960), elaborado pelos arquitetos e urbanistas Lúcio Costa e Oscar Niemeyer, baseados em ideias desenvolvidas pelo arquiteto francês Le Corbusier. Mesmo tendo sido preparadas como “local humano de viver” em sua origem, as cidades planejadas, em sua maior parte, não mantêm suas características, já que
não
há
um
acompanhamento
e
adaptação
constante
de
seu
desenvolvimento. Cidades, assim como a economia de um país, a bolsa ou o clima, são sistemas complexos, sujeitos a uma infinidade de ocorrências pequenas ou maiores, que se influenciam reciprocamente e provocam mudanças imprevisíveis ao longo do tempo. Povoações e metrópoles estão sujeitas às mais diversas intervenções – clima, migrações, desenvolvimentos tecnológicos, leis, fatores econômicos, etc., – que em sua maior parte fogem completamente do controle daqueles que teriam a função de manter ou desenvolver o planejamento urbano. Isto, no entanto, não quer dizer que as cidades não são administráveis. O que ocorre, é que efetivamente é necessário que as administrações municipais invistam recursos para poder manter a cidade em relativo funcionamento, sendo capazes de prever evoluções futuras (impactos causados pelo clima, pela economia, pelo dinâmica populacional, por fatores políticos). Para isso são necessárias políticas públicas, especialistas, equipamentos e recursos financeiros. No entanto, em grande parte dos municípios brasileiros, este tipo de gasto não está previsto nas despesas correntes. No aspecto das políticas públicas, aquelas que deveria estabelecer as linhas mestras do planejamento das cidades, as condições também não são propícias no Brasil. O Estatuto das Cidades, criado através da Lei federal 10.257/01 em 2001, estabelece uma série de diretrizes políticas para as cidades brasileiras – elaboração de um Plano Diretor, função da propriedade, criação de políticas de cunho social, entre outras. A lei ainda é pouco utilizada como instrumento de planejamento e gestão do crescimento sustentável das cidades. Na própria administração federal, diminuiu a preocupação com o desenvolvimento urbano do país, quando o Ministério das Cidades, que se ocupava de temas como a
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moradia, o saneamento e o transporte, foi incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Regional. Como implantar um programa nacional de planejamento urbano, visando reorganizar as cidades brasileiras e melhorar o padrão de vida de seus habitantes? Como priorizar uma agenda social, voltada prioritariamente para a parte da população mais pobre, e não permitir que as administrações continuem privilegiando interesses de grupos econômicos e da especulação imobiliária? São algumas das perguntas a serem respondidas pelas próximas gerações de políticos e administradores públicos.
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Os Jetsons e o futuro
Um grande banco lançou recentemente uma nova campanha de comunicação, tendo como tema a série animada de TV “Os Jetsons”. O desenho original foi produzido pela americana Hanna Barbera e veiculado originalmente no Brasil entre os anos 1962 e 1963, sendo posteriormente reprisado ao longo de toda a década. A série retrata uma típica família de classe média branca americana dos anos 1960; pai, mãe, um casal de filhos, a empregada (Rosie, um robô) e o cachorro “Astro”. A produção surgiu no mesmo período em que os Estados Unidos lançavam seu programa espacial, no início dos anos 1960. Os americanos estavam competindo com a então União Soviética, que em 1961 havia se adiantado, colocando o primeiro astronauta no espaço. Naves espaciais, viagens interplanetárias, foguetes e a vida num futuro dominado pela tecnologia, eram temas de filmes, estórias em quadrinhos, romances de ficção científica. O assunto dominava a cultura de massa americana de tal maneira, que influenciou a indústria dos brinquedos, dos alimentos para o público infantil (que surgia naquela época), o setor do lazer e até os seriados infantis da época. A agência de publicidade contratada pelo banco utilizou o tema da família Jetsons por seu apelo futurista, explicitando e exemplificando de certa forma a mensagem conceitual da campanha publicitária anterior do banco, que promovia a “inteligência artificial” do banco. Analisando a peça publicitária, nos perguntamos: o quanto ela tem a ver com a sociedade brasileira? A maneira de tratar o assunto ainda é moderna? De início vemos que o filmete nada tem a ver com a vida comum brasileira. Trata-se de uma família classe média branca, de aparência pouco usual para as condições brasileiras. Não que tais tipos humanos não pudessem absolutamente existir no Brasil. Seriam, todavia, incomuns e não refletem a média da população brasileira.
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Deveríamos nos perguntar, se no futuro ainda seriam comuns para as famílias os deslocamentos por transporte individual – pensemos nos países com infraestrutura de transporte desenvolvida. Será que o trabalho ainda seria realizado presencialmente, como mostra a animação? A escola frequentada pelo filho ainda seria presencial? Ainda se usaria dinheiro em espécie, como fazem a mãe e a filha? Todavia, algo que parece não ter mudado é a caracterização do “robô-doméstica”, retratada vestindo um uniforme, parecido aos das atuais empregadas domésticas de famílias ricas. Num futuro tão moderno ainda seria necessário mostrar, através de um uniforme, que o robô exerce a função de “doméstica”? Além do mais, é pouco provável que a sociedade americana do futuro ainda seria predominantemente branca e de classe média. Os Estados Unidos passaram por transformações nas últimas décadas, que ocorreram em grande parte depois que a série Jetsons foi criada. Negros, latinos, asiáticos representam atualmente um percentual importante da população e da classe média americana. Por outro lado, aumentou bastante a pobreza; 139 milhões de pessoas, 43% da população, são pobres ou vivem com renda insuficiente para pagar suas contas. É apenas um filme, dirão muitos. Sim, mas o filme não parece retratar o futuro – ou aquilo que se poderia imaginar como talvez sendo as condições do futuro. O que mostra é o presente projetado num suposto futuro. Ou melhor: o presente projetado dentro das condições tecnológicas que se imaginam para o futuro. Comparável a algo como o político e general romano Júlio César, falando ao celular com o senado romano, reportando as batalhas sangrentas com os gauleses. Como se o futuro fosse igual ao presente, só que com tecnologia mais moderna. Assim, perguntamo-nos se a campanha de comunicação está realmente transmitindo a mensagem que pretende, “experimente o futuro”? Um olhar atento parece revelar apenas o “passado projetado em um suposto futuro”, com as mesmas mazelas. Mas, não seria isto que os grandes grupos econômicos sempre esperam que ocorra, ou seja, o desenvolvimento da tecnologia mas a manutenção das mesmas relações de produção?
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Coronavírus: tempos interessantes
“Vivemos em tempos interessantes!” A afirmação tem se tonado comum nas últimas décadas, em todo o mundo. A alteração da rotina diária, seja por alguma mudança na política, economia ou tecnologia, logo é classificada como sendo “tempos interessantes”. Alguns, como o escritor norueguês Karl Knausgärd, durante a FIip (Festa Literária Internacional de Paraty) de 2016, chegou a dizer que “vivemos tempos interessantes e preocupantes”, referindo-se ao aumento do populismo na política dos Estados Unidos e da Europa. Quando jornalistas, historiadores e filósofos dizem que vivemos em tempos interessantes, querem geralmente dizer que está ocorrendo algo de extraordinário, que aparentemente faz com que a atual fase da história seja diferente das anteriores. Por trás deste raciocínio também pode estar a ideia de que o ciclo presente, por ser distinto de outros passados, poderá inaugurar uma nova fase na história humana, com outras características. Nada é estático, tudo está em constante mudança, já dizia o velho Heráclito – mais ainda a história humana. Convulsões sociais, guerras, crises econômicas, políticas e culturais, ocasionam mudanças na maneira como sociedades e civilizações atuam, funcionam. Um fator climático, como uma seca prolongada, pode comprometer a produção de alimentos de uma sociedade. A carestia consequente, acompanhada por saques e revoltas, levaria à guerra civil, precipitando o colapso da economia e da ordem política, o que também alteraria diversos aspectos culturais da sociedade. Este esquema de sucessão de acontecimentos pôde ser observado em sociedades de todos os tempos; egípcios, babilônios, gregos, romanos, árabes e nas nações modernas. Diversos fatores, nos mostra o estudo da história, podem provocar mudanças no status quo das sociedades. A introdução de novas tecnologias – o cavalo na Antiguidade, a adaptação da vela latina às caravelas, o uso da força motriz do vapor na indústria e no transporte, o uso bélico e pacífico da energia nuclear – podem tanto ser consequências como causas de acontecimentos históricos. Em sendo a história um processo dialético complexo, no qual acontecimentos, 42
fatores ou condições influenciam outros – paralelos ou sequentes – dependerá do foco de estudo do especialista estabelecer o que será considerado origem ou decorrência de um fato. A introdução de máquinas a vapor, por exemplo, é o princípio de uma longa série de posteriores descobertas e invenções no sistema de produção capitalista. Por outro lado, a possibilidade da aplicação do vapor à geração de trabalho, é decorrência
de
diversos
experimentos
científicos
e
desenvolvimentos
tecnológicos, ocorridos anteriormente, no século XVII e início do XVIII. O uso bélico da energia nuclear – inaugurado com o bombardeio das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki ao final da Segunda Grande Guerra – teve origem nas pesquisas científicas independentes de Rutherford, Fermi e Hahn, nas primeiras décadas do século XX, e da criação do projeto Manhattan em 1942. No entanto, uma das principais decorrências do uso da energia atômica para fins militares foi a Guerra Fria, período de disputas político-militares estratégicas e conflitos indiretos, entre as duas principais potências nucleares em toda a segunda metade do século XX, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e os Estados Unidos da América. Sendo um processo dialético complexo, a história não funciona somente em um esquema linear, do tipo causa e efeito. Há acontecimentos ao longo do processo histórico, mais tarde destacados como “fatos históricos”, cujas aparentes causas ou origens são difíceis de determinar e, muitas vezes, comprovadamente aleatórios. Um desses fatos históricos é descrito pelo filósofo inglês John Gray em sua obra O silêncio dos animais. Trata-se do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, presumido herdeiro do Império Austro-Húngaro. O crime, sabemos, foi o fato indutor do início da Primeira Grande Guerra. Escreve Gray: “O fato desencadeador da catástrofe foi um assassinato que podia perfeitamente não ter acontecido. O nacionalista sérvio Gavrilo Princip, que matou a tiros Francisco Ferdinando em Sarajevo no dia 28 de junho de 1914, fazia parte de uma gangue que tentara mandar o arquiduque pelos ares pouco depois das dez horas naquela manhã. A tentativa fracassou, Francisco Ferdinando a descartou com uma risada e o comboio seguiu na direção do compromisso oficial. Encerrado o evento, ele voltou ao carro, que partiu com os outros do comboio. Mas o motorista 43
errou o caminho, o carro ficou retido e Princip, que após o fracasso do atentado a bomba tinha ido a uma delicatessen próxima, conseguiu atirar no arquiduque a curta distância. Se o motorista não tivesse feito o desvio, se o automóvel não tivesse ficado retido ou se Princip não tivesse ido à delicatessen, o assassinato não teria ocorrido. Uma vez ocorrido, tudo se seguiu.” (Gray, pag 31) Se tão pueris e contingentes acontecimentos podem levar à eclosão de uma guerra mundial – a qual foi a causadora de tantos fatos na história sequente – imagine-se as consequência do aparecimento da pandemia do coronavírus. Um evento raro, inesperado, de grandes proporções e do qual só conheceremos todas as consequências depois que tiver passado – um “cisne negro” diria provavelmente o cientista Nassim Taleb, autor da ideia em A lógica do cisne negro (The black swan, 2007). O objetivo principal deste texto é discutir o surgimento da epidemia do vírus corona, batizado de Covid-19 e apresentar algumas ideias sobre as principais consequências históricas desta epidemia. Sigo as análises e depoimentos de especialistas que se manifestaram sobre o tema nas últimas semanas. Neste ensaio tentaremos mostrar que vivemos – agora sem dúvida alguma – tempos interessantes. O aparecimento da pandemia provocará mudanças em toda a nossa civilização mundial. Suspeito que os dias atuais ficarão definitivamente na memória de toda a humanidade e mais tarde na história.
O vírus Covid 19, causado pelo coronavírus da síndrome respiratória aguda grave (SARS-Cov-2) surgiu na China, na cidade de Wuhan, capital da província de Hubei. A moléstia se manifestou provavelmente entre os meses de novembro ou dezembro de 2019. Existem, no entanto, relatos não confirmados de que casos de contaminação com o mesmo vírus foram identificados em outras regiões da China em meses anteriores. É certo que o vírus tem origem zoonótica, apesar de alguns rumores de que a cepa deste coronavírus tenha sido criada em laboratórios; nos Estados Unidos, na China ou em Israel – três versões ao gosto do freguês. Em situações como
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esta é comum surgirem as teorias da conspiração e, mais recentemente, as fake news, claramente com objetivos políticos. De início, o governo chinês tentou esconder o fato. Foi um oftalmologista de Wuhan, Li Wenliang, quem em dezembro de 2019 chamou a atenção do público para uma estranha epidemia de pneumonia, que estava afetando várias pessoas da cidade. Wenliang colocou a informação nas redes sociais e foi censurado pelas autoridades. Semanas depois, a doença já tinha se alastrado e o governo decidiu intervir. As autoridades sanitárias da China colocaram sob quarentena a região de Wuhan e dezenas de milhões de pessoas de outras regiões. A reclusão, os testes para identificar os contaminados e o isolamento total de certas áreas, fizeram com que o avanço da doença fosse lentamente contido, ao longo de pouco mais de três meses. Li Wenliang, agora um herói mundial, transformou-se também em vítima da doença, falecendo em 7 de fevereiro de 2020. Da China o vírus se transmitiu rapidamente para outros países asiáticos e para a Europa, onde por falhas nos sistemas de prevenção de epidemias dos diversos países, a moléstia se alastrou. A Itália foi até agora o país mais afetado pela doença, seguida pela Espanha e a França. Nos Estados Unidos, o avanço do coronavírus foi tratado inicialmente com desdém pelo presidente Donald Trump. Nos últimos dias, Trump e quase todos os líderes mundiais reconheceram a seriedade da situação. Desde seu início, até a data e hora em que escrevemos este artigo, 31 de março de 2020, o Covid-19 já contaminou 756.376 pessoas, das quais 36.081 faleceram. Os países que apresentam maior número de infectados, são: País
Número de casos
Número de mortes
Estados Unidos
161.807
2.978
Itália
101.739
11.591
Espanha
87.956
7.716
China
82.198
3.308
Alemanha
66.885
645 45
França
45.077
3.964
O Brasil registra até este momento 4.579 casos constatados e 159 mortes. As previsões dos especialistas são de que estes números deverão continuar crescendo exponencialmente, pelo menos nos próximos 30 dias. Em 11 de março de 2020 a epidemia do coronavírus foi declarada pandemia, já que a doença estava presente em vários continentes e apresentava transmissão sustentada entre as pessoas. Antes desta data muitos países já haviam implantado medidas de restrição na circulação de pessoas; providência que se difundiu desde então por todo o planeta, com poucas exceções. No Brasil, grande parte da população está seguindo as instruções do Ministério da Saúde e permanecendo em casa. Transporte, comércio e demais serviços funcionam com restrições. O objetivo é que apenas os serviços essenciais permaneçam em operação, evitando a circulação de pessoas. O governo e o Congresso aprovaram medidas de exceção, de modo a fazer com que os trabalhadores, inclusive os informais, recebam recursos financeiros para se manterem em casa sem precisarem trabalhar. As consequências da pandemia serão muito grandes, com influência em grande parte das atividades humanas. Os dias, semanas e meses pelos quais o mundo está passando, serão lembrados pela atual geração por muitos anos. Tanto pelas perdas de vidas, quanto pelo impacto que o Covid-19 terá na organização política, econômica, social e cultural de todo o mundo nos próximos anos. Analistas políticos, historiadores, sociólogos e economistas, entre outros, falam em uma grande mudança. O mundo não será mais o mesmo. Na sequência do texto, tentaremos condensar as principais informações, opiniões e comentários, feitos por diversos especialistas, sobre o rumo que a civilização mundial deverá tomar nos próximos anos. Na situação atual, sabemos que se trata de opiniões e palpites, que se confirmarão ou não. Mais importante é perceber que um período da história humana está no fim e outro tem início. Muito mais do que o ataque às torres gêmeas de Nova York, em 2001, ou a crise financeira mundial em 2008, a pandemia do corona vírus provocará profundas mudanças nas relações políticas e econômicas.
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Nos últimos anos, a China e os Estados Unidos vinham travando uma batalha pelo domínio da economia mundial. A China, já há alguns anos, estabeleceu metas para expandir sua influência econômica no mundo, através do que se convencionou chamar de “A Rota da Seda”. Os Estados Unidos, principalmente depois da eleições de 2016 que elegeram o presidente Donald Trump, e tendo como lema de campanha “fazer a América grande novamente” (make America great again), decidiram fazer frente às iniciativas chinesas. Dado o novo contexto da economia mundial, o quadro de confronto econômico entre os dois países, segundo os especialistas, deverá se acirrar. A economia americana, endividada pela crise econômica que será provocada pela pandemia, levará alguns anos para se recuperar. Com isso, a China terá uma vantagem em seus planos de ampliação da área de influência de sua economia. Outra consequência, segundo os analistas, será o fortalecimento de um bloco político-econômico liderado pela China e outros países asiáticos (Japão, Coréia, Taiwan), incluindo ainda a Indonésia, Oceania e a Índia. Seguindo esta linha de pensamento, nas próximas décadas o centro de decisões do planeta deverá se deslocar para a Ásia – situação que já havia sido apontada por alguns analistas antes da crise, e que deverá se acelerar cada vez mais a partir de agora. A Rússia e a Europa, já pelas relações que ambos têm com a China, fortalecidas através de uma série de acordos de cooperação comercial assinados recentemente, deverão aproximar-se deste bloco asiático, afastando-se da influência estratégica dos EUA – com os quais os europeus já vinham tendo atritos constantes, no governo Trump. Parece haver um certo consenso entre os que acompanham o assunto, de que o resultado desta nova disposição de blocos e forças ao longo dos próximos anos, será o gradual afastamento dos Estados Unidos do holofote dos acontecimentos mundiais. Os americanos ficarão numa posição de relativo isolamento, se aproximando mais de seus aliados na América Latina. Um fator decisivo em toda esta situação é o quão rápido a economia americana se recuperará. Quanto mais tempo demorar, mais a posição da China se fortalecerá. Analistas também apontam o aumento dos governos de democracias “iliberais”, aqueles que aparentemente são democráticos, mas não têm liberdades civis 47
plenas. Governos da Hungria, Rússia e Turquia recentemente já implantaram medidas que, cada um à sua maneira, darão mais poder aos seus líderes e restringirão a democracia. A crise econômica poderá fazer com que mais nações se sintam atraídas por tal tipo de solução, principalmente em uma economia mundial que se tornará mais fechada, menos globalizada, forçando os estados a terem uma interferência mais forte em suas economias domésticas. Assim, segundo alguns, ocorrerá em paralelo: a) uma redução da globalização, levando as nações a certo isolamento; b) um fortalecimento do poder do Estado (nacionalismo); e c) um refluxo do liberalismo econômico. Os Estados estão oferecendo um forte apoio financeiro às suas empresas e populações, a fim de garantir sua sobrevivência. Em alguns países, como os Estados Unidos e o Brasil, grandes segmentos da população estão recebendo pela primeira vez o equivalente a uma renda mínima; o mínimo necessário para que o cidadão possa sobreviver durante o mês, sem passar fome. Como reagirão as populações destes países – e de outros que também implantarem medidas parecidas – quando a situação econômica se tornar razoavelmente normal? Voltarão estas populações a aceitar sua situação anterior de privação e, em casos extremos, de fome? Exigirão nessa nova situação uma renda mínima básica, suficiente para prover suas necessidades básicas, com propugnado por partidos políticos? Espera-se também uma mudança na esfera do trabalho. Segundo especialistas, haverá uma tendência cada vez maior em se trabalhar de maneira virtual, o home working. Premidos por custos diversos na fase de recuperação financeira, muitas empresas optarão por manter parte de seus funcionários trabalhando de casa, como já em parte vêm fazendo neste período de quarentena. A mesma tendência poderá ser acompanhada por grande parte das escolas – pelo menos as de nível secundário e superior – que também já estão utilizando o ensino à distância, sobretudo desde o aparecimento da pandemia com as medidas de isolamento. A tendência de uma utilização acelerada das tecnologias digitais também incentivará a expansão do uso da inteligência artificial (AI), seja no segmento de prestação de serviços (bancos, compras online, companhias aéreas, serviços médicos), quanto na área de segurança. Paralelamente a isso,
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ocorrerá um grande aumento do comércio eletrônico e crescerá o número de pequenas start-ups de tecnologia, em todo o planeta. A grande importância que a medicina está tendo no enfrentamento do coronavírus, levará à maior valorização do setor. Profissionais ligados à área médica serão mais reconhecidos pela população e, principalmente, pelo Estado. A pesquisa médica, a capacitação de profissionais e a infraestrutura receberão maior apoio financeiro, já que com esta crise o mundo compreendeu que outras pandemias parecidas poderão afetar as sociedades nas próximas décadas. As mudanças climáticas e a questão ambiental serão temas prioritários. A pandemia do coronavírus, para muitos cientistas, representa mais um aspecto da desastrada interação entre a chamada civilização e o meio ambiente. Epidemias de febre amarela, dengue, ebola, malária, meningite, entre outras, são resultado da destruição de habitats naturais pela atividade econômica e movimentação de populações. Há que se estudar também novos modelos de aglomerações urbanas, já que a disposição urbana atual, principalmente nos países onde grandes parcelas da população vivem em condições desfavoráveis, é propícia à disseminação de doenças transmissíveis. É consenso na maior parte dos especialistas que o sistema econômico mundial não operará mais da mesma maneira. O capitalismo em sua atual fase financeira teve início nos anos 1980. Nos anos 1990 teve forte aceleração com a queda dos regimes socialistas – o fim da Guerra Fria – e a introdução das tecnologias digitais. Em 2008 ocorreu a crise do subprime, os “títulos podres” dos Estados Unidos, que acabou afetando toda a economia mundial. Apesar de o sistema financeiro mundial ter passado por um processo de recuperação, muitos economistas de renome vinham apontando indícios que prenunciavam uma nova crise. Em início de 2019 o ex-economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI) e ex-diretor do Banco Central da Índia, Raghuram Rajan, declarava que “o capitalismo parou de prover as massas, e quando isso acontece, as massas se rebelam contra o capitalismo”. Nouriel Roubini, o economista que previu a crise dos Estados Unidos em 2008, anunciou recentemente um desastre econômico global, por força da crise do coronavírus. Agora, os fatos se precipitam e, como dizem alguns, temos uma crise financeira equivalente à de 1929, somada à da pandemia da Gripe Espanhola de 1918. 49
A hiperglobalização da economia deve recuar junto com uma queda brutal do PIB individual das nações, já que, como dissemos anteriormente, haverá uma tendência de que as economias se tornem mais fechadas ao comércio internacional. A interrupção da cadeia de fornecimento ocorrida com a suspensão das atividades industriais em parte da China provocou um grande choque na estrutura industrial mundial. Assim, poderá ocorrer que produtos e insumos sejam produzidos em localidades não muito longe das unidades consumidoras, evitando o deslocamento de mercadorias destinadas à produção por metade do planeta. Com isso, mudam as condições que fizeram da China e países asiáticos os fornecedores de mais de 70% dos produtos e insumos utilizados pelas indústrias em todo o mundo. Global sourcing e just-in-time talvez se tornem apenas conceitos de um capitalismo do passado. Alguns especialistas se perguntam se todas estas mudanças na política, na economia e na tecnologia poderão também trazer mudanças aos hábitos e costumes das populações. A impossibilidade de consumo desenfreado durante o período de isolamento, principalmente nos países ricos, poderá fazer com que as pessoas comecem a encarar seus hábitos de consumo de maneira mais razoável? As dificuldades momentâneas pelas quais passarão milhões de indivíduos, mudará a maneira como veem as necessidades constantes de seus concidadãos, fazendo com que exijam de seus governos a implantação de leis mais equânimes e investimentos em estruturas de proteção social? As horas passadas no silêncio, com pouco ou nenhum contato humano durante o período de isolamento, levarão as pessoas a serem mais voltadas para si mesmas, mais meditativas, ocupando suas mentes com assuntos mais filosóficos, existenciais? E, por fim, a pergunta que muitos se fazem em seu íntimo: seria a crise também a oportunidade para que a humanidade enverede por um novo caminho? Um itinerário no qual as sociedades seriam mais justas, mais livres, educadas e cultas? Onde a convivência com a natureza seria menos destrutiva e a vida mais saudável? Onde as pessoas não precisariam mais se preocupar com sua subsistência, já que qualquer trabalho seria justamente remunerado através de uma renda universal básica?
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Não sabemos como a humanidade sairá desta pandemia. Antevemos uma imensa crise econômica, social e cultural, com todas as suas consequências sobre pessoas e nações. Esperemos, no entanto, que todos nós passemos por esta tempestade o mais rápido possível, e que cheguemos ao final dela prontos para o novo mundo que surgirá.
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Coronavírus, e depois?
A toda hora se escuta falar da “volta à normalidade”. Muitos provavelmente esperam que em alguns meses suas vidas voltarão a ser exatamente do jeito que eram. Uma crise econômica, talvez, mas com rápida recuperação da economia. O estrago do corona vírus será maior do que muitos imaginam. Economistas já preveem recessão na economia mundial e provavelmente lenta recuperação. Falências e desemprego com países fazendo o possível para ajudar a colocar a atividade econômica novamente em marcha. Em consequência desta situação virão muitas mudanças, como as que abordamos
recentemente
em
artigo
publicado
neste
blogue
(http://ricardorose.blogspot.com/2020/04/coronavirus-temposinteressantes.html). O capitalismo, mais uma vez, se adaptará às novas condições e passará por mudanças. A começar por uma grande ironia da história, que parece se desenhar no horizonte: com a crise econômica nos Estados Unidos provocada pelo coronavírus, a maior economia do sistema capitalista será a de uma país que ainda se diz comunista, a China. Qual será o papel do Brasil neste nesta nova disposição de forças no mundo? O atual governo começou como grande aliado dos Estados Unidos. O presidente Bolsonaro fez quatro visitas a Trump, desde que assumiu o mandato em janeiro de
2019.
Para
poder
entrar
na
Organização
para
Cooperação
e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) o governo brasileiro atendeu a mais de 100 requisitos impostos – alguns beneficiando diretamente a economia americana. Por outro lado, é necessário lembrar que o maior parceiro comercial do Brasil ainda continua sendo a China – pelo menos até pouco antes da crise provocada pela pandemia. Nas últimas semanas, no entanto, são cada vez mais frequentes 52
os ataques à China por parte de membros da família Bolsonaro e de ministérios do governo brasileiro. Será que estes senhores ainda não se deram conta para onde caminha a economia mundial? Qual o papel estes senhores esperam que o Brasil deverá ter na nova ordem mundial do período pós-coronavirus?
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Recuperar mentes e a história
Alguns cientistas e engenheiros da área da inteligência artificial, defendem a possibilidade de que em algumas décadas a tecnologia de processamentos de dados será tão avançada, capaz de captar e fixar toda a memória de um cérebro humano e armazená-la em dispositivos digitais. A Universidade de Oxford e o Google (Google Brain) estão investindo nestas pesquisas já há alguns anos. O diretor do projeto Google Brain, Ray Kurweil, cientista e inventor americano, disse em 2015 que ainda espera estar vivo para ver este projeto concretizado. Outro grupo de pesquisadores, liderado pelo empresário e cientista russo Dmitri Itzkov, espera ser capaz de fazer o back up de mentes humanas na nuvem (rede global de servidores que armazena dados) até 2045. Baseados nestas ousadas previsões, podemos levantar algumas questões. Supondo que seja possível correlacionar os dados dos back ups das mentes dos habitantes de uma pequena cidade, seria possível reconstruir, em detalhes, parte da história dessa cidade? Se juntássemos os back ups das mentes de milhões de pessoas que viveram em determinado período histórico, haveria a possibilidade de reconstruir, com detalhes, maiores que os atuais, este período da história? Só o tempo nos dará as respostas para estas e outras questões. Se tal avanço científico realmente ocorrer, será possível reconstruir, em seus mínimos detalhes, os períodos mais recente da história humana – pelo menos na visão particular dos indivíduos que viveram durante este período. A reconstrução do período histórico seria, de alguma forma, a somatória das memórias das pessoas (as mentes) armazenadas eletronicamente. Outro cientista vai ainda mais longe. Frank J. Tipler é físico e professor na Universidade do Texas. Em um de seus livros A física da imortalidade (The physics of immortality) o autor afirma que em um futuro muito remoto todas as pessoas poderão ser, digamos, ressuscitadas. Com a uma capacidade computacional ainda inimaginável em nossos dias, os cientistas do futuro, segundo Tipler, poderão emular todos os universos possíveis e recuperar todas 54
as memórias de todo e qualquer ser humano que jamais viveu. Trata-se, sem dúvida, de uma teoria bastante ambiciosa, talvez fantástica. Tanto que, por suas ligações com crenças religiosas, a teoria de Tipler foi classificada por muitos físicos com anti-científica. Além de tantas perguntas, as teorias de Kurzweil e de Tipler levantam temas como a constituição da mente, do tempo, as possibilidades de desenvolvimento da ciência e da tecnologia, a liberdade individual, o futuro da humanidade, entre outras.
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Narrativas políticas na era da pós-verdade
A batalha pela hegemonia do discurso político é constante. Todas as tendências procuram atrair a atenção do eleitor, cada uma com seu discurso. Em tempos de pós-verdade, o que vale não é fundamentar a narrativa em fatos e argumentos lógicos; procura-se ganhar a atenção e a concordância do receptor da mensagem apelando para sentimentos e crenças. Constroem-se convicções através da repetição, sob diversas formas, da mesma mensagem, do mesmo conteúdo ideológico. Para provar uma tese que normalmente seria pouco aceitável, como por exemplo a intervenção militar no governo, apresentam-se informações sobre a “corrupção generalizada na política”. Este tipo de argumento apela diretamente ao sentimento de parte da população, que nos últimos anos foi soterrada por reportagens e dados sobre a corrupção no país, em suas diversas facetas – grande parte desta informação distorcida por ideologias e interesses de classe. Não que ela, a corrupção, não tivesse existido ou não exista mais, mas é bastante provável que tenha diminuído. Além disso, a corrupção existe em todas as atividades humanas; na política como nos negócios, na religião como no futebol, nos esportes olímpicos como nas relações entre os países, na medicina como na polícia... Seria impossível intervir igualmente em todas estas áreas da atividade humana. É difícil encontrar qualquer iniciativa onde, de uma forma ou de outra, não exista alguém tentando obter algum tipo de vantagem. Não só por ganância, o apego doentio ao ganho, mas também por sentimentos de inferioridade, vingança ou vontade de dominar sobre outras pessoas. Há situações, nas quais indivíduos ou grupos se envolvem em práticas ilícitas, convencidos de que esta atividade trará posterior benefício a muitos. Enfim, as possibilidades de atos humanos possíveis, abarcados na classificação de “corrupção”, são inúmeras. Não se trata somente de surrupiar recursos do Estado. Assim, sob o argumento de que o país “não consegue se livrar dos políticos corruptos”, tese esta muitas vezes avalizada por depoimentos de supostos 56
militares e magistrados, é defendida a ideia da “intervenção militar”. Detalhe: não se trata de um golpe político, segundo seus defensores. Planeja-se “apenas” a destituição de todos os políticos e a convocação de novas eleições no período de três meses (pergunto se a cassação de políticos incluiria também o poder Executivo ou se limitaria ao Legislativo?). A aceitação desta narrativa, felizmente, está limitada a pequenos grupos, geralmente com pouco ou nenhum conhecimento da política. Trata-se, em muitos casos, de uma estratégia de grupos radicais, de modo a manter sua militância estimulada e marcar presença perante outras facções.
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O que aprenderemos com o coronavírus?
Em plena pandemia do coronavírus fala-se pouco da questão ambiental. O aumento de casos da doença, as medidas profiláticas, os possíveis tratamentos, ocupam quase que 80% do tempo dos telejornais. A mídia impressa dá mais destaque aos aspectos políticos da crise; a rivalidade entre os Estados Unidos e a China, os bastidores da Organização Mundial de Saúde (OMS) as intrigas palacianas em Brasília... No entanto, é sabido que o surgimento do covid-19, o coronavírus, está ligado às questões ambientais, assim como outras epidemias viróticas que surgiram ao longo dos últimos trinta anos. Simplificando bastante a questão, podemos dizer que novas cepas viróticas ou bacteriológicas aparecem em condições nas quais convivem muitas espécies. Na Ásia, onde este é o caso em muitas localidades, coexistem animais selvagens e domésticos junto com humanos; seja na forma de criação ou no abate e venda das carnes. Neste ambiente, geralmente pouco higiênico, ocorre acontecer – apensar de ser um evento muito raro – de um vírus de uma espécie selvagem se adaptar ao organismo de um animal doméstico e, posteriormente, ao do homem. O vírus não provoca mal nenhum ao seu hospedeiro selvagem e usualmente também não ao animal doméstico. No entanto, quando “salta” para a espécie humana, o vírus pode provocar um grande estrago. É o caso do covid-19, da SARS (surgida em 2002) e do Mers (síndrome respiratória do Oriente Médio, surgida em 2012). As epidemias de doenças vem acompanhando a humanidade há milhares de anos. Os registros mais acurados cobrem os últimos dois mil anos. Cientistas estimam que ao longo dos passados 1.500 anos, morreram pelo menos 3 bilhões de pessoas por doenças originadas por vírus ou bactérias. Uma das primeiras pandemias registradas foi a “praga de Justiniano”, nome dado à pandemia, por ter ocorrido durante o domínio deste imperador romano. Vinda da África, a doença provocada por uma bactéria que vivia na pulga dos ratos, atravessou o Oriente Médio e chegou à Europa, matando cerca de 30 milhões de pessoas. A 58
Peste Negra, que durou de 1346 a 1353, teve origem na Criméia e provavelmente foi disseminada pelos navios mercantes italianos. Da Europa a pandemia se espalhou para o Oriente Médio e a África. Segundo historiadores, cerca de 65 milhões de pessoas faleceram em razão da doença. Quase um terço da população europeia foi dizimada. Na Idade Média europeia, devido à falta de saneamento nas cidades, eram comuns os surtos de hepatite, disenteria amebiana, cólera, leptospirose e febre tifoide, que ceifavam dezenas de milhares de vidas anualmente, principalmente entre as crianças. A partir do século XVI ocorrem diversas pandemias em todo o mundo, cuja dispersão era facilitada com a melhoria das condições de navegação. Com isso, sarampo e resfriados comuns mataram milhões de indígenas nas Américas. Ao mesmo tempo o tifo e o cólera continuavam a se manifestar periodicamente nas grandes cidades europeias. Para os interessados no tema, há uma lista bastante completa das principais epidemias que assolaram o mundo em (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_epidemias). As epidemias e pandemias nunca ocorrem por acaso. Não são “castigos de Deus” nem “vingança da Natureza”. Estes fenômenos fatídicos para a humanidade (e propícios para certas bactérias e vírus), ocorrem quando o equilíbrio de um ambiente natural é perturbado, através, por exemplo, da derrubada da vegetação original, do aterramento de pântanos, da poluição de cursos d’água. Cabe assinalar que cientistas de diversas áreas estranham o fato, de que apesar do desmatamento e o avanço de atividades predatórias sobre a floresta amazônica, ainda não tenham ocorrido casos de contaminação massiva por microrganismos, já que é grande o número de novas bactérias e vírus descobertos na floresta. Em outras áreas de floresta do planeta os microrganismos já se manifestaram, como o ebola e o HIV, na África, e o vírus Nipah, transmitido por morcegos, no Sudeste asiático. Outra forma de surgimento de pandemias é quando espécies completamente diferentes e oriundas dos ecossistemas mais diversos são restritas ao mesmo ambiente limitado. Em muitas regiões do mundo – não só na Ásia – convivem animais de criação com espécies selvagens, geralmente aves. Nestas condições também há ambiente propício para que cepas de vírus sofram mutações e nesse
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processo possam “saltar” de uma espécie para outra, até chegar a nós, como ocorreu agora com o coronavírus. Uma das principais lições a serem aprendidas com a pandemia – é provável que passemos por outras ao longo das próximas décadas – é que precisamos limitar ao máximo nossas intervenções em ambientes naturais. As terras agricultáveis atualmente disponíveis, são suficientes para que a humanidade possa se alimentar, desde que haja uma distribuição equânime dos produtos agrícolas. Nos países onde as áreas férteis não são suficientes para produzir colheitas abundantes, será necessário implantar programas de recuperação dos solos e subsidio de alimentos para a população. Também não será recomendável, mesmo atendendo costumes e práticas culturais milenares, alimentar-se de espécies selvagens. Exceção deverá ser feita a populações e culturas que ainda vivem no ambiente natural, como os povos originais das Américas, África, Ásia e Oceania. Outro aspecto bastante importante, será criar melhores condições de moradia e saneamento às populações pobres de todos os continentes, cuja grande maioria ainda se ressente de suprimento de água potável de qualidade, esgotamento sanitário e condições de moradia decentes. Assim vemos que há muito que aprender com a pandemia do coronavírus. Quanto pode afetar a vida da humanidade um pequeno vírus, formado por material genético envolto em proteínas, sobre o qual não podemos dizer se é algo vivo ou não!
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Tese da privatização perde força
A crise econômica gerada pelo coronavírus já fez as suas primeiras vítimas. Além das dezenas de milhares de trabalhadores demitidos e dos que tiveram salários reduzidos, já são milhares as pequenas e médias empresas em situação de insolvência. A situação só não é caótica, porque o Estado aportou recursos financeiros para garantir a sobrevivência mínima de trabalhadores e empresários. Vários setores da economia estão passando por dificuldades financeiras e reclamam por ajuda do governo. No setor de saneamento em todo o pais, por exemplo, a inadimplência dos clientes já chega aos 25% em média. Outros segmentos, como o bancário e o de energia elétrica, começam a se manifestar, também solicitando ajuda. Novamente, vemos o setor privado bater às portas do governo, aguardando apoio financeiro. Repete-se o que sempre ocorreu todas as vezes em que crises afetavam a economia. No entanto, o discurso neoliberal que caracteriza a ideologia do atual governo e também de grande parte do Congresso, é o do “estado mínimo”, da pouca ou nenhuma intervenção do Estado na economia. Ainda recentemente, o Congresso aprovou legislação que permite a privatização no setor de saneamento. Na Europa o processo foi diferente. Áreas da infraestrutura, como tratamento de água e esgoto na Inglaterra e na Alemanha, haviam sido transferidos para o setor privado, mas foram reincorporados ao setor público. Como faríamos no Brasil, se não tivéssemos o Sistema Único de Saúde (SUS) e se gradualmente a estrutura tivesse sido transferida ao setor privado, como planejava o atual governo? No caso da saúde temos dois exemplos extremos: a Alemanha e os Estados Unidos. Na Alemanha, onde o sistema de saúde é público, a pandemia do coronavírus está sendo enfrentada com bastante êxito, com 4.586 mortes até o dia 19/04/2020. Nos Estados Unidos, que não possui um sistema de saúde público, as mortes chegaram a 165.636, até a mesma data. 61
Evidentemente, existem outros fatores em jogo neste quadro, mas a existência de um sistema de saúde operado pelo Estado tem sido estratégico no caso da pandemia. Tudo indica que a pandemia do coronavírus forçará estados, eleitores, políticos e especialistas a rediscutirem a questão da privatização de diversos serviços – principalmente a da infraestrutura. É bem provável, que por um longo tempo, as teses neoliberais percam o apoio que vinham tendo até agora.
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Como um castelo de cartas
A vida grupal humana é organizada por diferentes tipos de acordos. Desde aqueles relacionados ao comportamento de seus integrantes em relação a si e aos demais membros da comunidade, até os diferentes tipos de conhecimentos convencionados e compartilhados. Tais combinações e ajustes de regras e saberes fazem com que as sociedade humanas possam se estabelecer e continuar existindo. Mesmo nos grupos humanos que ainda mantêm um padrão de vida material primitivo, como os povos originais da América do Sul ou da Nova Guiné, existem regras de diferentes tipos e, muitas vezes, bastante elaboradas, tanto no aspecto comportamental quanto cultural-tecnológico. Em comparação com os grupos sociais tradicionais, a sociedade contemporânea globalizada é mais complexa, com número muito superior de regras e saberes, parte deles diferentes em cada país, sociedade ou grupo cultural. Olhando a sociedade global, encontramos uma variedade e complexidade de padrões de comportamento; leis, normas, regras, procedimentos, acordos e conhecimentos variados, para ordenar e organizar aspectos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e culturais das distintas sociedades. Uma estrutura invisível de princípios e saberes que fazem com que as sociedades funcionem. A grosso modo, podemos admitir que, pelo menos desde a 2ª Grande Guerra (1939-1945), a sociedade global não vem enfrentando desafios que possam coloca-la em perigo, como um todo. A Guerra Fria, as dezenas de conflitos localizados – no Oriente Médio, no Sudeste Asiático, na região dos Balcãs –, os choques do petróleo (1956, 1973, 1979, 1991) e a introdução de novas tecnologias (computadores, internet, etc.) não abalaram ou provocaram mudanças repentinas em toda a orbis. Apesar dos problemas recorrentes que, apesar de todo o avanço político e tecnológico, ainda afetam parte significativa da humanidade – a má distribuição de renda, a fome e a falta de acesso à tecnologia – existe, de certa forma, um equilíbrio e um lento avanço, apesar de percalços geograficamente localizados.
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Este quadro, no entanto, mudou radicalmente nos últimos meses. “Na segunda década do século XXI...” – desta forma é que este período provavelmente será lembrado na história – “surge a pandemia do vírus covid-19, o coronavírus”. Um fato inédito em toda a história humana, já que: a) nunca, em todo o desenvolvimento da humanidade esta esteve tão ligada e interdependente, seja em termos econômicos, políticos e culturais-tecnológicos; e b) em nenhuma época anterior informações, ideias, mercadoria, pessoas – e até pessoas doentes – puderam se deslocar de um país ou continente ao outro tão rapidamente. Graças à globalização, em seus diversos aspectos tecnológicos, as fronteiras políticas, econômicas, tecnológicas e culturais se tornaram mais tênues ao longo dos últimos trinta e poucos anos. Um acontecimento que afeta uma região ou nação pode, direta ou indiretamente, afetar territórios adjacentes, ou aqueles com as quais se tenha relações comerciais, sociais e políticas. O isolamento de países não é mais possível; o mundo se transformou, para o bem ou para o mal, em uma imensa teia de relações de todos os tipos. O vírus corona se dissemina facilmente, de inúmeras maneiras, mas principalmente pelo contato humano. Assim, afeta este gigantesco e dinâmico sistema de relações em um de seus aspectos básicos: o contato entre pessoas; seja presencialmente ou através da manipulação de objetos que serão utilizados por terceiros. O ponto é que grande partes das atividades humanas básicas, principalmente a produção e a distribuição das mais diversas mercadorias (alimentos, medicamentos, bens de consumo, etc), sem as quais a humanidade não pode sobreviver, só podem ser feitas por pessoas; pessoas em contato com outras. Somente uma diminuta parte do processo produção/distribuição é automatizado. É neste aspecto que esta pequena “coisa”, o vírus, coloca em cheque todo o sistema mundial, englobando aí todo tipo de atividade humana possível e que tenha impacto global. Trava-se em grande parte a oferta e a demanda de produtos e serviços, a base de funcionamento do sistema capitalista global. Mais do que guerras, carestias, secas, terremotos, explosões vulcânicas, maremotos, epidemias localizadas; o coronavírus afeta o sistema de uma maneira muito mais profunda e ampla. Imune (aparentemente) às condições ambientais nas quais 64
vivem os humanos, o vírus transmite-se através de um processo que a vida desenvolveu há bilhões de anos: a respiração aeróbica. Desde as mais primitivas bactérias aeróbicas até os humanos, todos nós, seres vivos, precisamos incorporar oxigênio e eliminar gás carbônico ou metano pela respiração. E é durante esse processo que o vírus entre nos organismos humanos. A humanidade, com certeza, sobreviverá à pandemia. Mas a que custo? Até que ponto todo o sistema de produção e distribuição será afetado? Centenas de milhões de desempregados, dezenas de milhões de empresas sem condições de continuar produzindo e vendendo. Será possível que a vasta e complexa organização econômica, o sistema capitalista mundial da forma como o conhecemos, se desestruturará em seus diversos aspectos, vindo a desabar como um castelo de cartas?
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Tem que mudar
É bastante provável que em nenhum momento da história brasileira as mazelas do povo tivessem sido expostas de forma mais evidente do que agora. Não que elas não existissem antes, evidentemente. Mas uma soma de acontecimentos provocados pela crise do vírus corona, fez com que se tornassem perceptíveis de maneira escancarada. A inesperada e imediata interrupção de quase todas as atividades econômicas, colocou em cheque a maneira como a maior parte dos brasileiros foi forçada a sobreviver ao longo das últimas décadas – sob certa ótica, ao longo de toda a história. Com empregos mal remunerados, subempregados ou trabalhando informalmente, com pouco ou nenhum amparo da legislação trabalhista, grande parte destas pessoas não dispõe de reservas financeiras para poder viver algumas semanas, quiçá alguns dias, sem receber pagamento. Para muitos a situação se tornou desesperadora, já que falta até a comida para preparar o almoço ou a janta. A questão do perigo de contágio pelo vírus também mostrou as péssimas condições em que parte da sociedade é colocada para viver. Favelas com pouco espaço, residências sem isolamento e água potável, falta de tratamento de esgoto e coleta regular de resíduos domésticos. Enfim, o ambiente ideal para uma rápida propagação da virose, como tem ocorrido em várias localidades, especialmente em Manaus e Recife, onde as condições da população ainda são piores do que em outros lugares. Quando se trata de casos de saúde, todas estas pessoas dependem do Sistema Único de Saúde (SUS), o qual, nos últimos anos – e especialmente durante o governo Bolsonaro – foi submetido a um processo de lento sucateamento. A intenção última dos administradores do sistema de saúde era gradualmente transferi-lo ao setor privado. Mas, no caminho da privatização surgiu a crise do covid-19. Criou-se o cenário para a pior situação possível: crise econômica reduzindo drasticamente o emprego formal e informal, aliada a uma pandemia que 66
sobrecarrega o único sistema de saúde capaz de atender 70% da população brasileira, que não dispõem de convênios médicos privados (os quais, aliás, também estão operando no limite). Os recursos liberados pelo governo para ajudar esta parte da população serão, talvez, suficientes para cobrir despesas de alimentação e um ou outro gasto inadiável. Muitos, no entanto, devido a uma série de empecilhos, estão encontrando dificuldades em sacar o dinheiro. Acesso a caixas eletrônicos, baixar programas de aplicativo para o celular, abrir contas em bancos ou solicitar CPF na Receita Federal, acessar sites e outros procedimentos, não fazem parte do dia a dia da maior parte destes brasileiros. Não porque não quisessem. Mas porque nunca lhes foram dadas as oportunidades de estudar, ter uma ocupação melhor, renda mais alta; ter tempo para se ocupar de outras coisas além de lutar pela sobrevivência – praticamente pela comida do dia seguinte. Os acontecimentos trágicos mostram agora as condições nas quais vivem todos os dias, ao longo de 50, 60 ou talvez 70 anos de vida, cerca de 50% a 60% da população brasileira – 110 a 130 milhões de pessoas. Uma história terrível para um país grande e rico em recursos como o Brasil. Por isso, a crise terá sido em vão se continuarmos a manter o mesmo sistema político e econômico excludente, que alija mais da metade dos brasileiros dos benefícios da moderna civilização, para a qual contribuem tanto quanto os outros cidadãos. Acesso à moradia, educação, renda, alimentação e saúde deve ser para todos. E recursos para isso existem, basta procurar.
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Evitar a próxima pandemia
Deste que surgiu, a pandemia do coronavírus tem afetado todas as áreas das atividades humanas. Estas pequenas “partículas infecciosas”, invisíveis a olho nu, tornaram-se recentemente o maior fator de mudanças econômicas, sociais e culturais na nossa civilização globalizada. Todas as atividades humanas, atuais e futuras, estão sendo influenciadas por esta estranha criatura que, segundo a biologia, nem pode ser classificada como um ser vivo. Sabe-se hoje, definitivamente, de que a pandemia teve início quando o vírus, que tinha o seu habitat em animais selvagens sem prejudica-los, se adaptou ao organismo de animais domésticos e desses passou para o homem. O processo é conhecido e ocorreu de modo similar com outros vírus, ocasionando, por exemplo, a Gripe Espanhola de 1918/19. Bactérias e vírus ainda desconhecidos se estabelecem nos organismos de seres humanos quando estes, através de atividades como desmatamento, caça, comércio ilegal e criação de animais selvagens, entram em contato direto ou indireto com estes microrganismos. Na área ambiental a pandemia provocou um efeito imediato. Bilhões de pessoas foram forçadas a permanecer em casa, ou pelo menos reduzir sensivelmente seus deslocamentos, o que rapidamente diminuiu as emissões de gases poluentes gerados por automóveis, transporte público, aviões, trens e navios. Durante a crise financeira de 2008, que também teve um forte impacto na economia mundial, as emissões mundiais de gases de efeito estufa (GEE) caíram 1,3% ao longo daquele ano. Este ano prevê-se uma redução de cerca de 5% nas emissões de GEE globais. Somente a China, o maio emissor de GEE do planeta, já teve uma queda de 25% no primeiro trimestre do ano, com queda de 40% no consumo de carvão usado para acionar seis de suas maiores termelétricas. Através de imagens de satélites é possível detectar a diminuição das manchas de poluição atmosférica na Ásia, Europa e Estados Unidos. No Brasil, as fotografias aéreas também mostram a redução da nuvem de poluição que constantemente paira sobre a região metropolitana de São Paulo; a mais carregada de GEE do país. 68
Com a diminuição dos transportes e da distribuição de produtos, caiu igualmente a demanda por combustíveis fósseis. Segundo relatório recente da Agência Internacional de Energia (IEA), dados indicam que haverá uma queda de 20% na demanda global de petróleo durante 2020, o que já fez com que o preço do barril de petróleo diminuísse de US$ 70,00 em meados de 2019, para US$ 33,00 em março deste ano. A pandemia também provocou a paralização do setor industrial em todo o mundo – na China e em alguns países da Europa a atividade industrial está recomeçando lentamente. No Brasil, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) reportou, através de um relatório publicado no mês de março de 2020, que 79% das indústrias pesquisadas notaram uma redução nos pedidos e 53% informam que a queda foi intensa. Essa situação reduziu a demanda por matérias primas, insumos e componentes. Por outro lado, com a interrupção das atividades fabris houve um abrandamento dos impactos ao meio ambiente, ao longo da cadeia de produção dos produtos. A queda brusca nas atividade econômicas aumentou o desemprego em todo o mundo, que já vinha crescendo principalmente nas economias periféricas, como a do Brasil. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (IWO) cerca de 1,6
bilhão
de
trabalhadores
estão
com
as
rendas de
subsistência
comprometidas, devido à crise econômica. A onda de desemprego mundial, no entanto, ainda não se fez notar com toda a sua força, dado que muitos governos estão liberando empréstimos para empresas e trabalhadores, como no caso dos países europeus, dos Estados Unidos e também do Brasil. Nessa situação, trabalhadores de todo o planeta serão forçados a reduzir seu consumo de bens. Mesmo assim, em termos gerais, pode-se dizer que a redução da atividade industrial e comercial global trouxe visíveis benefícios ao meio ambiente. O que muitos cientistas se perguntam, é como fazer com que mesmo com a retomada da economia, estas melhorias – como a redução das emissões, da exploração dos recursos naturais, da geração de resíduos, da poluição do solo e dos recursos hídricos –, possam ser mantidas. As respostas a essa pergunta passam em grande parte por soluções que já são conhecidas há anos. O principal incentivo para que agora definitivamente sejam utilizadas, está na possibilidade
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de ocorrer uma nova pandemia, com impactos e letalidade ainda maiores. Algumas destas soluções englobam: - Segundo o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), há alguns aspectos a serem observados daqui em diante, para evitar o aparecimento de novas epidemias, entre os quais: a) reduzir o desmatamento e a ocupação desnecessária de áreas virgens; b) proibir o comércio ilegal e a caça de animais selvagens; c) evitar a criação intensa (concentrada em pouca área) de animais; c) evitar o uso de antibióticos na criação de animais, a fim de impedir o surgimento da resistência aos antibióticos; d) estancar as mudanças do clima, que podem forçar o deslocamento de espécies para outras regiões (inclusive bactérias e vírus); - A Agencia Internacional de Energia (IEA) sugere que sejam feitos grandes investimentos em fontes de energia renovável, com o apoio financeiro de governos e instituições internacionais. A dependência dos combustíveis fósseis deve ser gradualmente reduzida a praticamente zero até por volta de 2050. Já há uma tendência nos países ricos em se tornarem cada vez menos dependentes desta fonte energética. Na Alemanha, as grandes empresas do setor privado solicitaram recentemente ao governo Merckel que condicione qualquer ajuda financeira do governo ao setor privado, às ações de redução de emissões de GEE. - Nos países pobres e menos desenvolvidos será necessário implantar uma rígida agenda de melhoria da infraestrutura; principalmente no que se refere à questão do saneamento, condições de moradia, transporte público e saúde. Na atual pandemia ficou patente que as populações mais pobres são as mais afetadas pelas consequências sanitárias e econômicas da crise. - Além dessas, há uma série de outras iniciativas sendo discutidas, para as quais governos e ONGs estão criando estratégias de atuação, envolvendo: consumo consciente, extensos programas de redução na geração de resíduos e de agricultura orgânica.
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Nova economia e empregos verdes
A pandemia do coronavírus ainda não é página virada; estamos longe disso. Na opinião dos especialistas nos encontramos provavelmente a meio caminho, tendo acumulado alguma experiência e à espera de uma vacina ou terapia para a doença. Após isso, será necessário imunizar a maior parte da população mundial. Ninguém sabe ainda como isto será possível e quanto tempo demandará. Até lá será necessário que governos saibam administrar o isolamento social e, na medida do possível, reduzir os danos inevitáveis à economia. Já são numerosos os indícios que indicam uma mudança muito grande na economia. Países levarão anos até que recuperem a situação econômica que detinham antes da crise. Muitos setores serão abalados e outros talvez até deixem de existir ao longo dos próximos anos. Tudo, porém, ainda é uma grande incógnita. O que se sabe, todavia, é que a economia mundial não poderá continuar operando da mesma maneira como vinha fazendo até agora. Excesso de consumo e geração de resíduos – sólidos, líquidos e gasosos – vêm envenenando o planeta e extinguindo a biodiversidade – situação oportuna para o aparecimento de doenças. Órgãos internacionais, institutos de pesquisa, grandes empresas e lideranças políticas de todo o planeta, concordam que esta talvez seja a última grande oportunidade dada à humanidade para mudar seu relacionamento com a natureza e, talvez, seu próprio destino. Várias evidências colhidas ao longo dos últimos anos mostram que a economia, da maneira como vem sendo conduzida, levará à gradual exaustão dos mais importantes recursos naturais. Escreve o físico e professor inglês Martin Rees em seu livro “Hora final – alerta de um cientista”: As espécies estão morrendo cem ou até mesmo mil vezes mais do que a taxa normal. Antes que o Homo sapiens entrasse em cena, aproximadamente uma espécie em um milhão se extinguia a cada ano; agora a taxa está mais perto de uma espécie em mil. Algumas espécies estão sendo mortas diretamente; porém a maior parte das extinções se deve a 71
desdobramentos involuntários de mudanças provocadas pelos humanos no habitat, ou à introdução de espécies não nativas em um ecossistema. (Rees, p. 114) Além da depleção dos recursos naturais existe o grande tema da crise climática, devido ao aquecimento da atmosfera provocada pelas emissões de gases de efeito estufa. Será oportuno e necessário, portanto, mudar a maneira como produzimos e consumimos, pensando sempre nos milhões de trabalhadores que estão perdendo seus empregos na pandemia – só nos Estados Unidos foram 20 milhões até abril de 2020. A proposta, já defendida por muitos especialistas há décadas, é a gradual mudança para uma economia mais sustentável, com menos uso de recursos. Nesta nova economia as empresas incorporam metas de redução de insumos e energia, diminuem emissões de todos os tipos, promovem o consumo responsável de seus produtos, atuam de maneira socialmente responsável, entre outros pontos. O potencial de geração de empregos em uma economia mais sustentável é maior do que na convencional. Além dos empregos já existentes, a nova economia demandará um maior número de profissionais, voltados às áreas da sustentabilidade. São os “empregos verdes”; postos de trabalho em áreas como: - Agricultura com baixo impacto ambiental; - Produção e manejo florestal; - Geração e distribuição de energias renováveis (solar, eólica, biomassa, biogás, hidrogênio); - Planejamento e gestão de resíduos (reuso, reciclagem, incineração, disposição); - Atividades de medição, monitoramento e controle; - Medidas de eficiência energética e de eficiência na produção; entre outras. O empregos verdes, segundo a classificação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP) são, de maneira ampla, atividades na agricultura, manufatura, pesquisa e desenvolvimento, administração e atividades de serviços, que contribuem substancialmente para a preservação ou recuperação 72
da qualidade ambiental. Incluem também atividades que ajudem na proteção a ecossistemas e à biodiversidade, redução do consumo de energia, água e materiais, através de estratégias diversas. Ocupações que concorram para a redução das emissões de carbono nas atividades econômicas e que diminuam a geração de resíduos. Considerando somente o setor das energias renováveis, cuja utilização é cada vez maior em todo o mundo, o potencial já é bastante elevado. Nos Estados Unidos, por exemplo, antes da crise, a estimativa de crescimento do número de empregos no mercado da energia fotovoltaica era de 63% e na de energia eólica 57%. Um estudo do Political Economy Research Institute (Instituto de Pesquisa de Política Econômica) de 2019, informa que a cada U$ 1 milhão investido em atividades relacionadas com combustíveis fósseis, são gerados 2,65 empregos. O mesmo valor investido em energias renováveis ou eficiência energética, gera respectivamente 7,49 e 7,72 empregos. Segundo dados da Agência Internacional de Energia Renovável (IREA), existem atualmente 10,3 milhões de trabalhadores em todo o mundo atuando no setor de energias renováveis. A nova economia tem grande potencial para geração de riqueza e de postos de trabalho. Somente nos Estados Unidos a economia verde movimentou 1,3 trilhões de dólares (cerca de R$ 7,5 trilhões em maio de 2020) e empregou 9,5 milhões de pessoas em 2019. No Brasil a economia verde empregava 2,6 milhões de trabalhadores (dados de 2012), segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O estudo também mostrou que à época cerca de 7% dos empregos formais estavam ligados à sustentabilidade e que a oferta de vagas nesta área estava crescendo cerca de 2% ao ano. Prova disso é o mercado de energia eólica brasileiro. Apresentando um rápido crescimento ao longo da última década, este setor continuou em expansão mesmo durante a crise econômica que se iniciou em 2014, terminando o ano de 2019 com cerca de 200 mil postos de trabalho e em crescimento. Estão em desenvolvimento diversos mecanismos que deverão contribuir para que a economia se torne mais sustentável. Governos da Europa, por exemplo, criaram o EU Green New Deal, (Novo Acordo Verde da União Europeia), sistema através do qual os países exigirão contrapartidas em investimentos “verdes”, das empresas que receberem ajuda financeira dos governos por conta da atual crise 73
econômica. O Banco Mundial (WB) está elaborando propostas para direcionar as intervenções na economia, com o objetivo de recuperar a economia mundial em bases ambientalmente sustentáveis e com geração de empregos. A retomada do crescimento, baseada em novos parâmetros, poderá trazer uma nova era de progresso e modernização tecnológica para a economia mundial. Mas isto exigirá determinação e sacrifício, tanto de governos quanto de empresas, pois é sempre mais fácil voltar às práticas antigas, o “business as usual”, como dizem os organismos internacionais. O Brasil poderá voltar a desempenhar um importante papel nesta nova economia, dado o potencial do país para as energias renováveis, a moderna atividade agrícola e a biodiversidade. No entanto, caso mantenha a mesma política em relação ao meio ambiente, praticada pelo atual governo, o país não terá condições de participar desta nova economia. Em caso extremo, poderá até sofrer sanções econômicas.
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Covid-19 recursos e consumo
Ainda estamos em plena crise da covid-19. Aumentam as internações e mortes. Autoridades no assunto garantem que a melhor maneira de impedir o aumento das contaminações é o isolamento social para todos. Se no começo da pandemia ainda haviam poucas informações, e a “gripezinha” supostamente apenas atacava pessoas na terceira idade ou com algum tipo de comorbidade, hoje sabemos que qualquer faixa etária pode ser vitimada pela doença. Pela experiência de outros países sabemos que o isolamento social reduz a contaminação, dando fôlego à rede de saúde e não sobrecarregando as unidades de terapia intensiva dos hospitais com casos de alta gravidade. Pesquisas em vários países já demonstraram definitivamente que o medicamento hidroxicloroquina não é eficaz no combate ao vírus, podendo causar outros problemas graves no organismo. O único recurso com o qual podemos contar no combate ao coronavírus, antes do desenvolvimento de uma vacina, é o isolamento social. Assim, a possibilidade de isolar-se e proteger-se da doença é um direito de todo e qualquer cidadão – de qualquer condição social – que deve ser garantido pelo Estado. Não é possível que o governante exija que a pessoa permaneça em casa, sem dar-lhe condições de assim fazê-lo. De outra forma, o cidadão poderia (ou precisaria) agir como muitos vêm fazendo: desrespeitando o isolamento social obrigatório para obter recursos para adquirir alimentos. É claro, portanto, que o Estado deve garantir a vida do cidadão; sob quaisquer circunstâncias. Para isso é preciso que as autoridades do governo sigam os protocolos internacionais de conduta e procedimentos, que ouçam as conclusões do setor científico e médico, sempre com o objetivo último de proteger a vida acima de tudo. A atividade econômica pode ser recuperada, mas não as vidas humanas. No momento, isto quer dizer que o Estado precisa garantir o direito dos trabalhadores à saúde, disponibilizando recursos para que permaneçam em casa.
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Os Estados têm condições de lançarem mão de recursos imobilizados ou alocados em outras áreas para custear despesas de alimentação de sua população (ou parte dela). Exemplos disso vimos acontecer ao longo dos últimos meses, quando nações como os Estados Unidos, Alemanha, França, Itália, Argentina e muitos outros, adiantaram ou doaram recursos financeiros para seus habitantes. No Brasil, o governo defendia a liberação de R$ 200,00 e foi somente com a pressão do Congresso que o Ministério da Economia disponibilizou ajuda de R$ 600,00 para aqueles que precisavam – valor ainda bastante baixo. Dentre os beneficiados, muitos não chegara a receber estes valores até semanas depois do prazo. Em toda esta confusão social e econômica causada pela epidemia, grupos organizados de empresários de diversos setores, solicitam dos governos federal, estadual e municipal que permitam a retomada das atividades econômicas. A atitude é compreensível. Pressionados por compromissos financeiros com credores e funcionários, os empresários tentam reagir, a fim de evitar a bancarrota. Com isso, em algumas regiões onde os índices de contaminação da população caíram, o comércio e a demais atividades econômicas aos poucos começam a retomar suas atividades. Faltam, no entanto, recursos às empresas. O governo, que prometeu emprestar dinheiro aos empresários através dos bancos, diz que disponibilizou esta ajuda aos bancos, que estão postergando o repasse. Onde o comércio volta a abrir, chama a atenção a quantidade de pessoas que voltam às compras. Mas não procuram o básico; alimentos, medicamentos ou produtos essenciais. Há, parece, uma quantidade considerável de indivíduos que, por disporem de recursos, sentem-se como que compelidos ao consumo de bens desnecessário na atual fase. Não conseguem se controlar, e assim que surge uma loja, ou melhor, um shopping center aberto, partem logo para as compras. Aquele sapato social de marca (que evidentemente não poderá ser usado durante a quarentena por falta de oportunidade), aquela calça social, o vestido de festa, o relógio de marca. “Não dá pra esperar! Precisa ser hoje, agora! Coloco uma máscara e vou!” Vimos há pouco, um shopping center em Santa Catarina ser invadido por uma legião de compradores, de todas as idades,
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ávidos por ver as novidades, as pechinchas e oportunidades disponíveis nas lojas. Olhando a situação toda sob uma perspectiva mais ampla, nos perguntamos até que ponto todos estão sendo afetados pela pandemia e por suas consequências sociais e econômicas. O país e o mundo enfrentarão uma imensa recessão, milhões de pessoas perderão seus empregos, empresas encerrarão suas atividades. Países serão obrigados a reformularem suas políticas econômicas e sociais, setores da economia desaparecerão, a cultura e costumes vão mudar. E você se preocupa com o sapato, de gosto duvidoso, que está uma pechincha?
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O que não foi (e não será mais)
Há muito tempo, ainda menino, vi o nível da represa Billings, na região de São Bernardo na Grande São Paulo, baixar até o ponto em que quase estivesse seca. Foi no início da década de 1960, quando parte do estado de São Paulo passava por uma longa estiagem. A represa, que era artificial, formada nos baixios do rio Jurubatuba na década de 1930, estava quase sem água. Lembro que o que mais me impressionou, foi a grande quantidade de restos de troncos de árvores que irrompiam do solo lamacento; restos da antiga mata que ocupava os vales. Aqueles tocos, pedaços de troncos de antiga floresta, me davam a ideia do que foi e já não era mais. Da densa mata, que em alguma época havia estado lá e depois desapareceu, cortada e submergida pela água escura da represa. Agora, com a seca e a diminuição das águas, a antiga floresta me lembrava de que, em alguma época passada, teria estado ali. Sempre tenho essa impressão, toda vez que vejo uma daquelas barragens hidrelétricas construídas através do país, principalmente na Amazônia. Ocorre às vezes que as árvores não são nem derrubadas em sua totalidade, ficando, aqui e ali, o tronco seco e apodrecido do vegetal irrompendo acima do nível da água. Mas a impressão é sempre a mesma: aqui havia algo que foi destruído, removido e seu habitat submergido, sufocado. Pela necessidade de gerar energia, para acionamento de máquinas e produção de produtos. Chama-se a isso de progresso e assim justifica-se a derrubada da floresta e a inundação do vale. À época em que a represa Billings foi construída, a tecnologia e os interesses econômicos indicavam que aquela era a melhor solução e o local mais indicado para a geração de energia para a metrópole, em processo de rápida expansão. O mesmo discurso ou a mesma “avaliação técnica” foram usados para outros empreendimentos Brasil afora, ao longo do século XX e início do XXI. Qual será o discurso técnico que possa justificar o intenso ritmo de derrubada da floresta amazônica nos anos 2019 e 2020? Já sabemos que não se trata da 78
construção de novas barragens hidrelétricas. Neste caso, tudo indica, é o impulso de ocupar mais terras, acumular capital e especular. As imagens aéreas de áreas de floresta devastadas nos dão sempre a mesma impressão. Algo que foi e já não é mais e, muito provavelmente, nunca mais voltará a ser.
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O que não aparecia
A pandemia do covid tem chamado a atenção para aspectos da sociedade brasileira que antes passavam despercebidos. Interessante observar, como a dinâmica provocada pela pandemia – o isolamento social e a suspensão da maior parte das atividades econômicas – está expondo com muita ênfase as contradições sociais e econômicas do país. A concentração de renda e privilégios sempre fez parte do dia a dia dos brasileiros, para o bem ou para o mal, desde que o país existe como colônia. Nos períodos autoritários, quando a censura exercia forte pressão sobre a mídia e a produção intelectual em geral, a discussão do assunto era evitada ou atenuada. Por trás das críticas à situação de iniquidade social e econômica, estava implícita a ideia de que o país, por ser uma nação nova, estava em construção, a economia em processo de crescimento e que os benefícios estavam, aos poucos, sendo distribuídos a todos. Ficou famosa a frase atribuída ao ministro da economia do período ditatorial, o economista Delfim Neto, que dizia que “era preciso fazer o bolo crescer, para depois dividir”. O que ocorreu durante este processo todos sabemos, com maior ou menor profundidade. O país se tornou uma nação economicamente desenvolvida, com padrão
mediano
de
desenvolvimento
tecnológico,
mas
com
enorme
concentração de renda e benefícios; uma das maiores entre todos os países. Os governos que se sucederam, trataram o problema com maior ou menor atenção. Alguns com foco na economia, esperando que o crescimento econômico fosse beneficiar a todos indistintamente; trabalho e capital. Outros governos, partindo de uma visão social, procuraram criar mecanismos que também beneficiassem o trabalho – sem, porém, onerar por demais o capital. Foi assim que, pelo menos ao longo dos últimos sessenta anos, se deu a evolução da sociedade brasileira em seus aspectos econômicos e sociais. O resultado disso, é que grande parte dos objetivos não foram alcançados. Agora, no entanto, a crise do coronavírus escancarou uma situação que sempre foi ignorada ou tolerada, porque a sociedade brasileira era induzida a pensar que 80
apesar dos percalços, a distribuição de benefícios e oportunidades estava avançando. Surgem questões que, já formuladas antes, agora se tornam prementes. Situações que exemplificam o que ocorre, quando sociedades se desenvolvem anomalamente, sem justiça. Por que, por exemplo, existem tantas cidades, Brasil afora, que não dispõem de assistência médica para seus cidadãos? Unidades básicas de saúde (UBS) sem equipamentos ou médicos, falta de hospitais. Criaram-se milhares de municípios nos últimos sessenta anos (2.766 em 1960 e 5.565 em 2020), nos quais aspectos essenciais como educação e atendimento médico foram ignorados – sem falar do saneamento básico. Agora, com a pandemia, fica evidente o quanto estas populações são desrespeitadas em seu direitos, quando necessitam de atendimento médico. O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, tem como objetivo oferecer assistência médica de qualidade a todo cidadão. Más administrações, desvio de verbas, loteamento da instituição para cargos políticos, sempre impediram que o SUS pudesse operar com toda a sua capacidade. O atual governo chegou a aventar a possibilidade de privatizar o SUS, transferindo seus serviços para o setor privado, através dos convênios médicos. Novamente um processo de desrespeito aos direitos da maior parte da população (cerca de 70%), usuários do sistema e que não dispõe de recursos para pagar convênio privado. Além disso, deveria ser um dos objetivos de nossos governantes, oferecer medicina de qualidade gratuita ao cidadão, como ocorre em muitos países e como foi determinado na Constituição de 1988. Mais um aspecto colocado a nu pela pandemia, são as desumanas condições de moradia de mais de 50% da população brasileira. Somente na cidade de São Paulo, mais de 2 milhões de pessoas ainda moram em favelas, segundo reportagem recente da imprensa. Nestas aglomerações grande parte dos moradores não tem água corrente, coleta de esgotos e outros benefícios mínimos. É desnecessário relacionar todas as mazelas enfrentadas pela parcela da população que sempre foi colocada à margem do processo de desenvolvimento, que sempre ficou esperando um “pedaço da fatia do bolo”. Saúde, educação, 81
transporte, saneamento, moradia, melhor remuneração, além de acesso a segurança, justiça e cultura, quase sempre lhes foram negados. E a pandemia colocou isto à mostra. A sociedade brasileira usará esta oportunidade para mudar suas relações econômicas e sociais? Ou continuaremos no mesmo jogo infantil, com políticos que misturam religião e nacionalismo, nos iludindo, enquanto alguns se aproveitam da situação, como sempre fizeram?
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Que se dane o resto!
Passando pelas ruas de nossas cidades, vemos terrenos cobertos de entulho e lixo. É comum que estas glebas, que poderiam até ser usadas para o plantio de árvores ou hortaliças, se tornem focos de sujeira e doenças. É sinal de ignorância sobre as consequências de seus atos e falta de civismo, que pessoas ainda descartem resíduos desta maneira, eventualmente até em terrenos públicos. A mentalidade individualista e de falta de respeito para os concidadãos, se reflete em outras áreas da sociedade brasileira. A política do “vou resolver meu problema e que se dane o resto”, infelizmente, ainda é bastante comum no país. E este tipo de atitude ainda persiste, mesmo entre pessoas, que por terem um grau de educação e poder aquisitivo acima da média, deveriam ter uma conduta mais cidadã. Uma sociedade onde não há justiça social, na qual historicamente o Estado tem servido de instrumento para defender interesses de grupos que, econômica e politicamente, dirigem a sociedade, produz este tipo de comportamento. Onde grandes fazendeiros ampliam seus latifúndios através da invasão de terras públicas ou indígenas, sem que o Estado sistematicamente interfira. Onde se promete geração de empregos aos trabalhadores, desde que a legislação trabalhista, o valor da mão de obra, seja flexibilizada. Em outras palavras, sejam tiradas garantias do trabalhador. Onde o ensino público é descuidado, porque o objetivo oculto é impedir que, através do conhecimento, a maior parte da população coloque em questão o funcionamento excludente da sociedade. Criam-se mecanismos que dificultam que grupos críticos em relação à questão social, possam ocupar cargos eletivos ou estabeleçam redes de comunicação de massas. Há centenas, milhares, de outras situações em que estas atitudes se tornam patentes. O que ocorre é que a política do “vou resolver meu problema e o resto que se dane” não é apenas uma atitude individual; é política conduzida por grupos que detêm poder. Por isso, aquele ato de jogar meu entulho naquela 83
praça pouco cuidada, nĂŁo reflete apenas egoĂsmo; mostra uma ideologia entranhada na sociedade.
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Ainda o anti-intelectualismo
Anti-intelectualismo é um fenômeno sociocultural, que se caracteriza pela suspeição, hostilidade e, em muitas casos, violência contra a cultura – as ciências, as artes, a educação e a pesquisa – bem como em relação a seus cultores; os cientistas, artistas de todos os tipos, professores e os intelectuais em geral. O anti-intelectualismo tem causas diversas, dependendo das sociedades onde se manifesta. Geralmente é exteriorizado por manifestações de sentimentos de ressentimento contra indivíduos ou grupos que se sobressaem devido ao seu grau de instrução, sua produção cultural/científica ou profissão vinculada ao conhecimento (professores, reitores, pesquisadores, jornalistas, etc.). Este sentimento de agressividade contra tudo o que é culturalmente elaborado ocorre com base em uma ideologia, cujos defensores têm objetivos definidos. A intenção dos que incentivam tal tipo de comportamento anti-intelectualista – eles mesmos, por vezes, intelectuais – é desvalorizar o conhecimento acadêmico, científico e artístico. A cultura, transformada em um “não-valor”, passa a ser desacreditada, sendo intencionalmente depreciada. Uma das maneiras de fazer isso, é nivelando todos os saberes e atividades, tomando por base sua contribuição imediata à economia do país. Nesta ótica economicista obtusa e limitada, não há porque investir recursos da sociedade em atividades artísticas e científicas, já que não trazem benefícios pecuniários imediatos. Outro objetivo do anti-intelectualismo – e este muito mais político do que econômico – é dissimular situações de injustiça social, denunciadas exatamente pela produção intelectual daqueles que se acusa de parasitas sociais, por exercerem atividades ou funções que se quer fazer parecer como não produtivas. Além disso, existe o fato de não se querer subsidiar atividades culturais que possam despertar a “intranquilidade social e promover a desordem” (leia-se fazer pensar).
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A estratégia anti-intelectualista de uma forma geral, é a de invalidar, falsear e desautorizar o discurso daqueles que criticam a conjuntura, quando apontam situações de injustiça, opressão ou ignorância. A tentativa de anular a crítica ocorre então através do ataque às denúncias em si, procurando negar sua justeza ou desprestigiando os críticos das mais diversas formas, chegando até a ataques ad hominem. Tal situação ocorre, por exemplo, quando um membro de um governo deprecia um estudo elaborado por especialistas, que aponte a necessidade de providências diferentes às que vinham sendo adotadas por este governo. Criticase a “linguagem obscura”, os “elaborados raciocínios”, “as soluções impraticáveis”. Procura-se mostrar para o público em geral, que as medidas sugeridas são por demais “acadêmicas”, longe da “realidade prática”. O mesmo tipo de argumentação também é empregado por aqueles que querem contrapor àquilo que chamam a “visão dos intelectuais” à “nossa visão pragmática”. Esta geralmente é a atitude de todos os que promovem e mantêm um posicionamento hostil em relação a toda as atividades relacionadas ao conhecimento, à cultura. Para tais grupos, conhecimento útil é aquele que interessa aos seus próprios objetivos (ou aos objetivos dos grupos cujos interesses defendem); sejam econômicos ou políticos. Qualquer coisa além disso, é desvalorizado e execrado como algo fantasioso; “poesia” e “filosofia”, como ordinariamente se diz. Fica também implícito no que expusemos, que o anti-intelectualismo comporta boa dose de autoritarismo. Está implícito que posições anti-intelectuais, desvalorizando recentes e mais elaboradas concepções na ciência, na arte e no conhecimento em geral, denotam uma resistência às mudanças, ao questionamento, ao debate. Fecham-se em suas convicções, satisfazendo-se com o que sabem (e não sabem). “Não me venham com novas ideias!” Não é por acaso que o anti-intelectualismo está muito associado a governos e políticos
autoritários,
grupos
sociais
conservadores,
credos
religiosos
fanatizados, agremiações culturais tradicionalistas e toda gama de movimentos incapazes de se adaptarem a um contexto cultural e social em constante mutação. 86
Nos Estados Unidos, apesar de sua tradição de valorizar a cultura e a ciência com grandes investimentos e prestígio público, é habitual uma certa ironia em relação à assim chamada “alta cultura” dos intelectuais e dos professores – principalmente na cultura de massa. Em alguns países da Europa, o antiintelectualismo também está presente, notadamente nos mais conservadores, religiosos e nacionalistas, como a Polônia, a Hungria e a Ucrânia, entre outros. Na Alemanha de Hitler o anti-intelectualismo, principalmente aquele voltado contra os eruditos judeus, foi muito acentuado, com perseguições, fechamento de editoras e queima de livros – além de muitos assassinatos. No Brasil, o anti-intelectualismo aumentou ao longo dos últimos dez anos, associado ao crescimento do conservadorismo político, à revalorização do neoliberalismo econômico e um gradual distanciamento de parte dos intelectuais das iniciativas culturais populares. Não se pode deixar de mencionar também a contribuição do baixo nível da educação pública, incentivos insuficientes à cultura e à divulgação científica. Colaborou também o crescimento das igrejas pentecostais e o desenvolvimento de uma cultura de massas mais individualista. Criou-se assim no Brasil o ambiente propício para que todos os tipos de ideólogos do anti-intelectualismo, com os mais variados interesses, pudessem defender e implantar suas teses. A profilaxia contra tal doença passa pela melhoria efetiva do ensino, valorização da cultura e da ciência, e pela difusão do debate, do questionamento e do espírito crítico em todas as áreas do conhecimento.
87
Governo, economia e meio ambiente
Em 1988, durante o governo de José Sarney, o país passava por uma grande crise ambiental. Recordes de desmatamento na Amazônia, colocavam o Brasil nas manchetes dos principais jornais do mundo. A crise se tornou tão séria, que bancos oficiais internacionais como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), o Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), o Eximbank e a Comunidade Econômica Europeia, haviam suspendido o financiamento de qualquer projeto econômico. Entre outras medidas tomadas à época, Sarney convocou uma equipe multidisciplinar de alto nível, formada por acadêmicos e cientistas, com o objetivo de estudar a região e propor soluções para conciliar o desenvolvimento econômico com a preservação dos recursos da região. O resultado deste estudo foi o lançamento do Programa Nossa Natureza, um detalhado diagnóstico ambiental do país, coordenado pelo general Bayma Dennys, chefe da Casa Militar da Presidência da República. Outras iniciativas à época foram a criação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (Ibama) e a inclusão dos levantamentos sobre desmatamentos feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) nos dados oficiais do governo. Pouco mais de trinta anos depois, durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, repete-se a situação. Crescem exponencialmente a derrubada da floresta e as queimadas – dados do Inpe apontam um aumento de 34%; a maior área desmatada do século. Ao mesmo tempo, um grupo de 30 fundos de investimento, com ativos chegando a U$ 4,1 trilhões (cerca de R$ 21,7 trilhões), representando investidores da Ásia, Europa e Estados Unidos, dirige-se a diversas embaixadas brasileiras na Europa, solicitando reuniões com os embaixadores, a fim de discutir as políticas ambientais do governo brasileiro. Segundo representantes destes fundos, a atual política ambiental brasileira, sintetizada na expressão do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles como “passar a boiada”, está colocando em risco o valor dos títulos públicos e privados brasileiros. A perda do interesse de investidores internacionais nos títulos 88
brasileiros,
significa
menos
investimentos
nas
empresas
locais
e,
consequentemente, menos empregos e menos riquezas para o Brasil. Em recente entrevista para o jornal Valor, o embaixador da Alemanha no Brasil, Georg Witschel, comentou que “muitos fundos internacionais e também empresas têm interesse em explicar aos investidores e seus acionistas o que fazem fora da Alemanha, se seus passos estão alinhados na luta contra a crise climática”. Apesar desta situação, no entanto, o governo Bolsonaro continua a tratar a questão ambiental como secundária. Preso a uma visão ultrapassada da ocupação da Amazônia, não se preocupou em elaborar um plano de atividades para a área, que aliasse a economia com a ecologia. Assim, depois de afirmar que não criaria novas áreas de proteção ambiental, o presidente passou a discutir o fomento da pecuária e da mineração em áreas indígenas. Paralelamente, através do Ministro do Meio Ambiente, reduziu o número de cargos e funções no Ibama, substituindo experientes funcionários de carreira por policiais militares, e diminuiu o número de cargos de coordenação das unidades de conservação (UCs) – 334 unidades em todo o país, representando em área quase 10% do território nacional. Com relação às informações sobre o desmatamento, Bolsonaro colocou em dúvida os dados elaborados pelo Inpe e demitiu seu presidente, Ricardo Galvão. Uma das medidas propositivas implantadas pelo governo, foi a transferência da coordenação do Conselho Nacional da Amazônia Legal (CNAL) para a vicepresidência. Hamilton Mourão assumiu o comando do órgão que tem o objetivo de “coordenar e acompanhar a implementação das políticas públicas relacionadas à Amazônia Legal” e “coordenar ações de prevenção, fiscalização e repressão a ilícitos”. Da estrutura do Conselho fazem parte 15 militares, mas foram excluídos os governadores dos estados da região, o Ibama e a Fundação Nacional do Índio (Funai). A ideia de uma política de desenvolvimento sustentável para a região amazônica parece não fazer parte da estratégia do governo. Com isso, grileiros, garimpeiros e madeireiros já perceberam de que lado o governo está e perderam o medo de uma repressão sistemática por parte dos órgãos do Estado. Por outro lado, os investidores internacionais e os países que financiavam projetos sócio 89
ambientais e científicos na região – exatamente os atores que o governo deveria querer atrair – também já se deram conta para qual lado o governo caminha. Enquanto isso, o restante do mundo avança. Recentemente, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), espécie de Banco Central dos bancos centrais dos países, publicou um extenso estudo, pelo qual chama atenção para o fato de que as mudanças climáticas poderão ser a origem de uma nova crise financeira global, ainda mais severa do que a do corona vírus. A União Europeia preparou
o
European
Green
Deal,
o
Pacto
Ecológico
Europeu
(https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/european-greendeal_pt); um ambicioso plano de incentivos à economia da região, cuja componente principal é a redução das emissões de carbono na era pós corona vírus. Mas, enquanto o presidente Bolsonaro comenta que a imagem do Brasil não está muito boa aos olhos do mundo na questão ambiental, devido à “desinformação” dos outros países, outros já veem a questão sob outra ótica. No Ministério da Economia, por exemplo, teme-se que a fuga de capitais possa ser agravada por causa da questão ambiental. Membros da equipe de Guedes, segundo a imprensa, defendem posições mais claras do governo sobre seus compromissos ambientais. Editorial recente do jornal O Globo (junho 2020) informa que “o segmento de gestão de grandes negócios com alimentos e matérias primas em geral, (está) cada vez mais pressionado por seus acionistas a ter comportamento responsável, do ponto de vista ambiental e de Direitos Humanos”. A preocupação com a questão ambiental aumenta em todo o mundo e deverá se tornar ainda mais premente nos próximos anos. Lembremos que antes da epidemia, as nações industrializadas já passavam por um processo de gradual redução das emissões de carbono, materializado no Acordo de Paris, em 2015. Se o Brasil quiser evitar o distanciamento, seja econômico ou tecnológico, em relação às economias mais avançadas, precisará retomar as inciativas e projetos ambientais delineados ao longo dos últimos anos. Caso contrário, passará a ser caracterizado como antagonista dos avanços ambientais e poderá sofrer sanções na área econômica e tecnológica.
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Peter Werner Zapffe, filósofo trágico
“A espécie humana vem do nada e retorna ao nada. Além disso, não há nada.”
Vida e obra
Peter Werner Zapffe nasceu no dia 18 de dezembro de 1899, na gélida cidade norueguesa de Tronso, situada a 350 quilômetros ao norte do Círculo Polar Ártico. Dotado de grande capacidade literária e fértil imaginação, Zappfe escreveu sua monografia de graduação para o curso de Direito em versos. O texto do poema ainda se encontra atualmente exposto na biblioteca da universidade de Oslo. Formado em direito, passa a advogar e depois se torna juiz. Grande leitor, Zapffe aprofunda-se na obra de seu conterrâneo, o dramaturgo Henrik Ibsen (1828-1906). Considerado um dos mais poéticos e profundos escritores da tradição europeia, Ibsen tinha um olhar crítico, e através de suas peças analisava a realidade por trás das convenções sociais e morais de sua época. Sua obra influenciou escritores como George Bernard Shaw, Oscar Wilde e James Joyce. Profundamente impressionado com os temas abordados por Ibsen, Zapffe decide voltar aos estudos formais, à universidade, “para entender a ardente questão que significa ser humano”, segundo escreve mais tarde. Em
suas
pesquisas
filosóficas
Zapffe
desenvolveu
um
pensamento
existencialista bastante original, influenciado principalmente pelas ideias dos pensadores alemães Arthur Schopenhauer (1788-1860) e Friedrich Nietzsche (1844-1900), já que seu país, até aquela época, não havia uma tradição filosófica consolidada. Pessimismo filosófico e visão fatalista da existência humana marcam a produção intelectual de Zapffe. Os pontos dos quais parte em sua exposição filosófica é que o homem nasce com capacidades de compreensão, raciocínio e 91
autoconhecimento superdesenvolvidas, mas não se adapta aos desígnios da natureza. A procura de uma resposta para os enigmas da vida e da morte não pode ser satisfeita; trata-se de uma necessidade que a natureza não pode atender. A tragédia, segundo o pensamento de Zapffe, é que não encontrando solução, os humanos usam todo seu tempo de vida tentando não ser humanos, ou seja, tentando ser o que não são através de ilusões. Por essa razão o ser humano é um paradoxo. Desenvolveu um anseio por um objetivo metafísico – justiça e sentido –, mas está destinado à frustração em seu ambiente real. O processo da vida é insensível em relação aos entes que cria e destrói ao longo de sua perpetuação. Enquanto que nenhuma criatura viva consegue escapar desta carnificina, somente os humanos carregam o peso desta consciência. Por isso, “um mundo inabitado”, escreve Zapffe, “não seria algo desafortunado”. Desta forma Zapffe desenvolveu um pensamento existencialista bastante original, diferente das visões mais otimistas de Albert Camus e Martin Heidegger, comparável em alguns pontos ao do romeno Emil Cioran. A biologia evolucionista do estoniano alemão Jakob Jahann von Uexküll (1864-1944) também contribuiu para a formação da filosofia de Zapffe. Esta convergência da filosofia com a biologia veio a ser conhecida como biosofia (biosophy), da qual o pensador norueguês foi um dos mais importantes representantes, tendo influenciado outros filósofos noruegueses, como Arne Ness e Herman Tonnessen. A biosofia tem um importante papel na complexa compreensão da moralidade e da ética na obra de Zapffe. A primeira e mais importante obra de Zapffe é um ensaio, que acabou se tornando seu texto mais famoso fora da Noruega até o momento: O último Messias (1933). Com este trabalho, de clara feição existencialista, Zapffe influenciou a posterior filosofia norueguesa. Em seu texto também encontramos uma crítica a ideologias de sua época, como a eugenia – compartilhada pelas elites e grupos políticos do início do século – e a visão teleológica da evolução biológica e do desenvolvimento tecnológico. O ensaio tem início com a fábula de um caçador primitivo, que deixando sua caverna à noite para caçar, é repentinamente tomado por compaixão para com 92
sua presa, caindo em profunda crise existencial. Nesta fábula, Zapffe remete a dois grandes relatos da cultura ocidental. Primeiro, faz referência à alegoria da Caverna, do livro Da República de Platão, o qual também narra a história de alguém que se dá conta de fatos que ignorava, quando sai da caverna que habitava. O segundo relato ao qual a fábula de Zapffe faz referência é a história da Queda do Homem, no Livro do Gênesis. Zapffe mostra que seu homem das cavernas era alguém com excessiva capacidade de compreensão. A evolução, argumenta o texto, cometeu um excesso ao formar o cérebro humano da maneira como é. Zapffe compara o homem ao grande cervo irlandês (cervis giganticus), que vivendo até o final do Pleistoceno (há 12 mil anos), foi extinto por causa do tamanho que sua galhada atingiu ao longo de gerações, dificultando sua sobrevivência. Os humanos, segundo o filósofo, podem perceber que cada ser individual é um efêmero elo no fluxo da vida, sujeito às mais duras contingências em seu caminho para o inevitável aniquilamento. No entanto, raramente se desesperam com esta ideia, já que nossos cérebros evoluíram para um processo de autocensura e fantasia, cuja manifestação prática, segundo Zapffe, é o que chamamos de cultura ou civilização. Incorporando conceitos de Sigmund Freud, bastante atuais à época, Zapffe escreve que “a maior parte das pessoas consegue se salvar, ao artificialmente limitar o conteúdo de sua consciência”. Estes mecanismos dos quais os seres humanos se utilizam para evitar encarar as contingências de suas vidas funcionam: - Através do que Zapffe denomina de “isolamento”; uma dispensa completamente arbitrária da consciência, de todos os pensamentos e sentimentos perturbadores e destruidores. Exemplo desta atitude são os “certos tipos de médicos que, para se protegerem, veem apenas aspectos técnicos de sua profissão”, nos quais os aspectos trágicos da vida são reprimidos. - “Ancoragem”, para o filósofo, é a criação de barreiras mentais em torno da consciência, a fim de dar-lhe segurança. Através deste mecanismo o indivíduo se apega a valores, ideais, instituições ou indivíduos, afastando ameaças estranhas que inspirem insegurança. Escreve Zapffe: “As ancoragens publicamente úteis são consideradas com simpatia, e aquele que se ‘sacrifica 93
totalmente’ pela sua ancoragem (a empresa, a causa) é idolatrado. Terá erguido uma muralha poderosa contra a dissolução da vida”. - “Distração” significa manter a atenção em limites críticos, constantemente alimentanda com impressões. A distração é a constante atividade, a fim de evitar que a mente volte a ocupar-se de si mesma, de suas questões. O filósofo Blaise Pascal define este mecanismo de defesa da seguinte maneira: “Divertimento – Não tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se, para ser felizes, de não pensar nisso tudo.” - “Sublimação” é o ato de focar energia longe de impressões negativas, direcionando-a para aspectos e fatos positivos. Com isso os indivíduos se distanciam de si mesmos e encaram sua existência de um ponto de vista estático, como por exemplo os escritores, poetas e pintores. Zapffe mesmo assinalou que seus trabalhos foram produtos de sublimação. O filósofo nos adverte de que a civilização não poderá ser mantida indefinidamente, e que o avanço tecnológico não representa a solução para a humanidade, ao contrário: “porque, à medida que uma fração cada vez maior das faculdades cognitivas se retira do jogo contra o ambiente, há um crescente ‘desemprego espiritual’”. Em uma finalização memorável de seu texto, Zapffe paga seu tributo a Platão e Moisés (o qual, segundo a tradição judaico-cristã foi o autor do livro do Gênesis), prevendo o aparecimento de um Último Messias, em um atormentado futuro. Com este personagem Zapffe faz uma referência ao “Super-homem” (Übermensch – além do homem), de Friedrich Nietzsche. Assim, o Último Messias, este profeta da desgraça, um herdeiro do visionário Homem da Caverna, será mal fadado, como seu antepassado. Isto porque suas palavras subvertem o preceito bíblico “sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra” e desagrada a seus concidadãos ao proclamar: “Conheçam a si mesmos – sejam inférteis e deixem a terra em silêncio depois de vocês.” As ideias de Zapffe, esquematizadas no “Último Messias”, foram desenvolvidas mais pormenorizadamente em um grande tratado chamado Om det tragiske (Sobre o trágico, 1941), publicado durante a 2ª Guerra Mundial. Esta obra foi escrita à mesma época em que o francês, Jean-Paul Sartre, criava sua filosofia 94
mais tarde chamada de existencialismo. Enquanto Sartre escrevia sua obra em uma língua universal, Zapffe escrevia em norueguês, língua pouco conhecida na Europa. Esta é uma das razões por sua obra permanecer quase desconhecida. Tivesse seu trabalho traduzido para o alemão, francês ou inglês, teria se incorporado aos clássicos da moderna filosofia. Cabe aqui uma comparação com outro pensador, contemporâneo de Zapffe e também vivendo em um país cuja língua não é extensamente conhecida. Tratase do pensador romeno Emil Cioran (1911-1995). Nascido na Transilvânia, estudou filosofia na Universidade de Bucareste e mais tarde se fixou em Paris, onde tornou-se famoso por sua filosofia altamente pessimista. Seu pensamento, assim como o de Zapffe, também foi influenciado pelos escritos de Schopenhauer e Nietzsche. Tivesse Cioran permanecido na Romênia, sua obra, como a de Zapffe, seria menos famosa. Em Sobre o Trágico, Zapffe amplia e aprofunda as ideias delineadas em O Último Messias, sob a ótica de um pensamento trágico, influenciado pela biologia darwinista. Os mais importantes conceitos do livros são: - Como toda as espécies viventes, o ser humano nasce com certo número de necessidades: de alimento, abrigo, segurança, entre outras. Estas necessidades são facilmente atendidas. Nós humanos, no entanto, temos uma necessidade adicional, não partilhada por nenhuma outra espécie: sentido para a vida. A esta conclusão também já chegara filósofo Friedrich Nietzsche. Esta carência não poderá nunca ser satisfeita, sob risco de nos enganarmos a nós mesmos. Podemos nos iludir através da crença em um falso sentido para a vida, ou podemos ser honestos e perceber que a vida não tem um sentido dado por alguma condição ou agente externo. Zapffe distingue entre duas maneiras de sentido para a vida. Sentido “na vida”, que tem uma acepção primariamente local; enquanto sentido “da vida” é, necessariamente, uma perspectiva global. Assim, apesar de algumas atividades na vida terem um sentido autotélico (que têm sentido em si mesmo), isto não significa forçosamente de que a vida, como um todo, tenha um sentido autotélico. Afirma que não é suficiente dizer que a vida é vivida por seu próprio sentido, de que tem valor autotélico; é necessária uma justificativa externa, ou sentido que 95
está fora da vida. Com isso Zapffe conclui que a vida é sem sentido, já que nossas vidas não podem ser justificadas externamente. Argumenta que sentido “na vida” para certas atividades tem um valor somente por um período limitado de tempo, porque, eventualmente, pode ocorrer que estas atividades dependam de fatores externos ou do ambiente, para que tenham sentido. Apesar de afirmar que “projetos metafísicos” são impossíveis para os humanos, insiste, no entanto, que o ser humano deve procurar, ou mesmo exigir, justiça. - Ainda nesta obra, Zapffe distingue quatro diferentes tipos de interesses que são básicos na natureza humana, ou seja: o interesse biológico, o social, o autotélico e os interesses metafísicos. Interesses biológicos se referem à nossa necessidade de alimentos, enquanto que interesses sociais se dizem respeito às nossas relações com nossos semelhantes (que vão além dos interesses biológicos). Interesses autotélicos evidenciam nossas atividades que têm seu fim em si mesmas e procuram por seus próprios interesses, ou seja, atividades que são biológica ou socialmente sem valor, mas têm valor intrínseco mesmo assim. Interesses metafísicos, são aqueles que Zapffe considera os mais importantes, e que apontam nossa necessidade de justiça e sentido de vida. Zapffe utiliza o vinho como exemplo para estes quatro interesses. O vinho tem um valor biológico, por proporcionar bebida e alimento. Tem valor social em jantares e reuniões, e valor autotélico por ser saboroso e intoxicante. Finalmente, o vinho tem um valor metafísico para cristãos que participam na eucaristia, por contribuir no significado e na justificação, os quais transcendem outros interesses. - Diferentemente do existencialismo sartriano, que apesar de suas análises realistas da vida humana é uma doutrina otimista em seus termos, a visão de que Zapffe tem da existência é desanimadora, desoladora. Com exemplos tirados da literatura universal, da política e das artes em geral, o autor tenta mostrar em seu livro que todas as atividades humanas são, em última instância, fúteis. Zapffe era uma figura de personalidade complexa, irônico e com grande senso de humor. Além de advogado, jurista e filósofo, também foi ambientalista, antes que este tipo de atividade se tornasse comum. Grande aficionado do 96
montanhismo, praticava a fotografia e era escritor, tendo escrito um livro de histórias e anedotas sobre sua região de origem. Um de seus trabalhos mais populares é uma coleção de ensaios sobre a vida ao ar livre Barske glaeder (Prazeres rústicos). Mesmo sua opera magna filosófica, Sobre o Trágico, é recheada de um humor burlesco, a ponto de um crítico norueguês ter chamado Zapffe de “o Chaplin da filosofia”. Zapffe influenciou fortemente o movimento ambientalista norueguês, e foi amigo e colaborador de Arne Ness, (1912-2009), filósofo e criador da ecologia profunda (deep ecology). Naess iniciou seus estudos de ecologia relativamente tarde em sua vida, quando se aproximava dos sessenta anos. Dizia que o movimento ambientalista, surgido no pós-guerra, falhava ao encarar a questão ambiental de uma maneira superficial, deixando de levar em conta pressupostos culturais e filosóficos. Cunhou então a distinção entre a “ecologia rasa” e a “ecologia profunda”. Além da visão pragmática e utilitária de governos e empresas, Naess defendia uma ecologia que levasse em conta as complexas relações entre os seres vivos, valorizando a biodiversidade. Diferentemente da cultura fortemente centrada no antropomorfismo, que caracteriza a cultura industrial europeia e americana, a ecologia profunda argumenta que a filosofia ambientalista precisa reconhecer valores que estão inerentes na natureza, independentemente de expectativas, necessidades e desejos humanos. Escreve Arne Naess em Longrange Ecology Movement (Movimento ecológico de longo alcance): “O movimento ecológico raso está preocupado em lutar contra a poluição e o esgotamento dos recursos. Seu objetivo principal é a saúde, a abundância para pessoas nos países desenvolvidos. A ecologia profunda tem preocupações mais profundas que têm a ver com princípios de diversidade, complexidade, autonomia, descentralização, simbiose, igualitarismo e ausência de classes.” Outro filósofo e escritor norueguês ligado a Zapffe foi Herman Tonnessen (19182001). Foi colega de estudos de Arne Naess e mais tarde professor de filosofia na Universidade da California nos Estados Unidos e Universidade de Alberta, no Canadá. Seu pensamento sofreu influência de Arthur Schopenhauer e de seu conterrâneo Peter Wessel Zapffe. Tonnessen é autor, entre outros, do ensaio Hapiness is for the pigs: philosophy versus psychotherapy, 1966 (A felicidade é para os porcos: filosofia versus psicoterapia). Neste livro Tonnessen defende um 97
pessimismo filosófico ainda maior do que o de seu mentor, Zapffe. Assim, se Zapffe dizia que “a vida não tem sentido”, Tonnessen escreve que a vida “não chega nem a ser sem sentido”. Seguindo seus princípios de antinatalismo, Zapffe, que foi casado duas vezes – com a última esposa, Britt Zapffe, viveu durante 47 anos – não teve filhos. Faleceu na cidade de Asker, na Noruega, em 12 de outubro de 1990. A única herança que o filósofo deixou para a posteridade, além de sua obra, foi dar seu nome a uma montanha da região do Círculo Polar Ártico da Noruega, a qual ele foi o primeiro a escalar. Em uma carta datada de 1990 (ano da sua morte), descreve sua visão da vida: “A espécie humana vem do nada e retorna ao nada. Além disso, não há nada.” Zapffe foi, acima de tudo, conhecido como um filósofo trágico. Sua filosofia foi uma fina associação entre a biologia darwinista e a visão de que tudo o que é grande irá eventualmente decair e desaparecer. Este princípio Zapffe também considerava válido para a raça humana. Acreditava que a humanidade havia se excluído da natureza, com o desenvolvimento da racionalidade e da ciência. Este modo de vida levaria inevitavelmente desaparecimento do homem; esta é a maneira como a natureza funciona. Ao final de seu último livro, Zapffe escreve, respondendo a todos que se desesperam com tal visão: “Infelizmente”, diz o pessimista brincalhão, “não posso ajudá-los. Tudo o que tenho para enfrentar a morte, é um sorriso ridículo”.
Principais obras do autor
- Sobre o trágico, 1941e 1983; - O filho Pródigo, uma nova narrativa dramática, Oslo 1951; - Introdução à dramaturgia literária, Oslo 1961; - A caixa de areia lógica: lógica elementar para universidade e estudo individual, Oslo 1965; - Ensaios e epístolas, Oslo 1967; 98
- Alegria brutas e outros temas de uma vida vivida ao ar livre, 1969; - Alegrias durasse outros temas de uma vida vivida sob céu aberto, Oslo 1969; - Pentecostes: quatro diálogos com Jorgen, Oslo 1972; - O reino secreto: uma pequena biografia de Jesus, 1985; - Como me torneio tão esperto e outros textos, Oslo 1986; - Doutor Wangel: uma comédia séria em cinco atos, Oslo 1994; A maior parte das obras de Peter Wessel Zapffe ainda não têm tradução em outras línguas. Apenas O Último Messias e Sobre o Trágico estão disponíveis em inglês. Em português O Último Messias está disponível no blog Blog: “A frescura da relva” <https://afrescuradarelva.wordpress.com/2014/03/27/o-ultimo-messias/>
Citações de Peter Wessel Zappfe
“O homem é um animal trágico. Não porque seja pequeno, mas porque é por demais dotado. O homem tem aspirações e necessidades espirituais que a realidade não pode atender. Temos expectativas de um mundo justo e moral. O homem exige sentido em um mundo sem sentido.” “Nós viemos de um nada inconcebível. Ficamos algum tempo em algo que igualmente parece inconcebível, somente para desaparecer novamente no inconcebível nada.” “Se encararmos a vida e a morte como processos naturais, o pavor metafísico desaparece e se obtêm a paz de espírito.” “A semente de uma derrota metafísica ou religiosa está em todos nós. Para o questionador honesto, no entanto, que não procura refúgio em alguma fé ou fantasia, nunca haverá uma resposta.” (Documentários “Ser um ser humano”) “Os fatos imediatos são aquilo com o qual nos relacionamos. Escuridão e luz, começo e fim.” (Documentário “Ser um ser humano”) 99
“A morte é uma terrível provocação. Aparece em todo o lugar, representando uma dura mas real escola para valores e padrões éticos”. (Documentário “Ser um ser humano”) “Eu mesmo não me aflijo mais com o pensamento da minha própria morte. A entidade “Peter Wessel Zapffe”, não existia antes de 1899 (ano do nascimento do filósofo). Ela foi poupada de participar diretamente nos horrores dos anos anteriores, e não vai participar daquilo que aguarda a humanidade ao fim de sua vertiginosa loucura”. (Documentário “Ser um ser humano”) “Uma moeda é examinada e, somente após cuidadosa deliberação, é dada a um mendigo, enquanto uma criança é lançada na brutalidade cósmica sem hesitação.” (Ensaios e epístolas) “Ter filhos neste mundo é como carregar madeira para uma casa em chamas.” “O homem é o ser trágico final, porque ele aprendeu o suficiente sobre a Terra para perceber que esta seria melhor sem a presença da humanidade.” “Cada nova geração pergunta: ‘Qual o significado da vida?’ Um maneira mais útil de fazer a pergunta seria: ‘Por que o homem precisa de um sentido para a vida?’” “A vida dos mundos é um rio que ruge, mas a da Terra é um lago e uma represa.” “O sinal de desgraça está escrito em suas sobrancelhas – por quanto tempo você vai lutar contra o que é evidente?” “Mas há uma conquista e uma coroa, uma redenção e uma solução.” “Conheçam-se, sejam inférteis e deixem a terra calar-se depois de vós.” (O Último Messias) “A barbárie moderna de ‘salvar’ o suicida é baseada em uma compreensão errônea da natureza e da existência.” (Ensaios e epístolas) “Ele é o cativo desamparado do universo, mantido em possibilidades sem nome.” “Nenhum triunfo ou metamorfose no futuro pode justificar a lamentação de um ser humano contra sua vontade.” “O esforço não é meramente marcado por um ‘esforço em direção a’, mas igualmente por uma ‘fuga de’”. 100
“Uma noite em tempos passados, o homem acordou e se viu. Ele viu que estava nu sob o cosmos, sem-teto em seu próprio corpo. Todas as maravilhas se dissolveram antes que pensasse; maravilha acima de maravilha, horror acima de horror se desenrolava em sua mente. Então a mulher também acordou e disse que era hora de matar. E ele pegou o seu arco e flecha, fruto do casamento de espírito e mão, e saiu sob as estrelas. Mas quando as bestas chegaram aos poços de água, onde ele esperava que fossem de hábito, ele não sentiu mais o tigre preso em seu sangue, mas um grande salmo sobre a irmandade do sofrimento entre todos os seres vivos. Naquele ele não voltou com presas e, quando encontraram na próxima lua nova, ele estava morto ao lado do poço de água.” (O Último Messias) “A história cultural, assim como a observação de nós mesmos e dos outros, permite a seguinte resposta: a maioria das pessoas aprende a se salvar limitando artificialmente o conteúdo da consciência.” (O Último Messias). “Ele (o homem) chega à natureza como um convidado não convidado. Na futilidade, ele estende os braços e implora para se reunir com o que o criou: a natureza não responde, fez um milagre com o homem, mas desde então não o reconhece mais. Ele perdeu seu legítimo lar no universo, ele provou da árvore do conhecimento e foi exilado do paraíso.” (A natureza indomada) “A tragédia de uma espécie que se torna imprópria à vida devido ao desenvolvimento excessivo de uma habilidade não é uma exclusividade da humanidade. Pensa-se, por exemplo, que em épocas paleontológicas certos alces sucumbiram ao desenvolver chifres demasiado pesados. As mutações são cegas e operam e manifestam-se sem qualquer interesse pelo ambiente. Nos estados depressivos, a mente pode ser vista à imagem de tais chifres, os quais, em todo o seu fantástico esplendor, imobilizam o seu portador ao chão.” (O último Messias)
Referências
O último Messias 101
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On the genealogy of morality. The birth of pessimismo in Zapffe´s “On the tragic” by Silviya Serafimova - Institute for the Study of Societies and Knowledge, BAS <https://jesbg.files.wordpress.com/2016/07/s_serafimova_on-the-genealogy-ofmorality-zapffe.pdf> Acesso em 20/06/2020
A-Z Quotes 102
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www. academia.edu, Roe Fremstedal, Meaning of Life: Peter Wessel Zapffe on the Human Condition <https://www.academia.edu/4888082/_Meaning_of_Life_Peter_Wessel_Zapffe _on_the_Human_Condition_in_Beatrix_Himmelmann_ed._On_Meaning_in_Life _Berlin_de_Gruyter_2013_pp._113-128> Acesso em 20/05/2020
Pascal, Blaise. Pensamentos. Abril S. A. Cultural e Industrial. SĂŁo Paulo: 1973, 280 p.
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Preservação da Amazônia ainda sem solução
O governo Bolsonaro está sob grande bombardeio internacional (para utilizar uma analogia militar cara ao ex-capitão), no que se relaciona às questões ambientais, sobretudo a preservação da floresta amazônica. Se, no ano passado,
líderes
da
Noruega,
Alemanha
e
França
manifestaram-se
publicamente, criticando a tolerância do governo brasileiro com o aumento dos incêndios na floresta, agora é a vez dos empresários. Recentemente, titulares de grandes fundos de investimento da Ásia, Europa e Estados Unidos, transmitiram sua preocupação com o problema aos embaixadores brasileiros de capitais europeias. No Brasil, executivos de corporações nacionais e multinacionais reuniram-se com o vice-presidente Mourão pelo mesmo motivo. O governo brasileiro, aparentemente, tenta contornar o problema de várias maneiras, sem, no entanto, apresentar planos e metas que visem refrear o desmatamento. Há algumas semanas, por exemplo, o presidente Bolsonaro declarou que a imagem do país “não está boa” no exterior por causa da “desinformação”. Ainda na linha das declarações, o ministro Paulo Guedes afirmou em recente videoconferência promovida pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) que “o Brasil é um país que alimenta o mundo preservando o meio ambiente”. O vice-presidente Mourão, por sua vez, afirmou que no segundo semestre de 2020 as queimadas terão uma redução, o que poderá trazer de volta os investimentos ao país. Declarações, mesmo vindas do alto escalão do governo, de pouco adiantam. Desde o início de 2019 o mundo já se acostumou a elas, sem que ocorressem mudanças. Em muitos casos, tais pronunciamentos tem como alvo o público interno do país, atendendo a maior parte da população, pouco informada sobre o tema. Igualmente, de pouco adianta exercer pressão sobre o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), órgão que faz o monitoramento dos desmatamentos e queimadas na Amazônia, destituindo sucessivos diretores – Ricardo Galvão, em 2019 e Lubia Vinhas, em julho de 2020. As imagens de satélite utilizadas pelo órgão, também estão disponíveis para agências 104
governamentais e não-governamentais de todo o mundo, de maneira que de nada adianta tentar tapar o sol com a peneira. Parece existir pouca vontade por parte do governo, quando o assunto é o controle e a preservação da floresta amazônica. Ainda em novembro de 2019, o ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles – aquele que na famosa reunião ministerial falou em “passar a boiada”, referindo-se à flexibilização do controle ambiental –, disse que o governo pretendia reduzir o desmatamento na Amazônia Legal. Sem que apresentasse planos ou metas, o tempo passou e o desflorestamento só veio a aumentar. A situação financeira do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais), órgão de controle subordinado ao Ministério do Meio Ambiente, também não é boa: de 2019 para 2020 o orçamento da instituição já foi reduzido em 14,8% e para 2021 o governo prevê outro corte de até 20%. A queimada sempre está associada à invasão de terras; sejam áreas indígenas, de preservação ou territórios ainda pertencentes ao Estado, as chamadas “terras devolutas”. Madeireiros, garimpeiros e grileiros exploram, destroem e ocupam áreas extensas, sem que ocorra um controles destas atividades. Apesar disso, os gastos do governo com inspeção florestal foram reduzidos de 17,4 milhões de reais nos primeiros cinco meses de 2019, para 5,3 milhões de reais no mesmo período de 2020. O mesmo corte de recursos ocorreu no Plano Nacional sobre Mudança do Clima, que passou de 436 milhões de reais em 2019 para 247 milhões de reais neste ano. A situação está colocando o governo sob pressão. Além de ser chamado constantemente pela imprensa internacional de “vilão ambiental do planeta” e ser criticado por organizações não-governamentais durante manifestações públicas, principalmente na Europa, o governo Bolsonaro também será confrontado com outras ameaças políticas e econômicas mais graves. O agronegócio, por exemplo, setor da economia que mais gera receitas para a balança comercial brasileira, é constantemente solicitado a explicar a relação de suas atividades com a floresta e o desmatamento. Tanto é que, recentemente, 47 grandes empresas nacionais e estrangeiras assinaram e divulgaram um manifesto, endereçado ao vice-presidente Mourão, coordenador do Conselho Nacional da Amazônia Legal, no qual expõe “a preocupação com o impacto nos 105
negócios da atual percepção negativa da imagem do Brasil no exterior, em relação às questões socioambientais na Amazônia”. Outro motivo de preocupação para o governo brasileiro é a eventual vitória do partido democrata nas próximas eleições presidenciais americanas. Depois de seguir grande parte da agenda e das atitudes do presidente Trump no que se refere à questão ambiental – corte de verbas das agências governamentais, paralização de programas e negacionismo climático – Bolsonaro terá que rever suas posições. Se eleito, o democrata Joe Biden terá um forte protagonismo ambiental. Com relação ao Brasil, planeja ajudar na preservação da Amazônia e no combate aos incêndios na região. Internamente, o Itamarati já está se ocupando deste fato, dado que o atual Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, é um contumaz negacionista climático, o que aumentaria ainda mais a pressão da nova administração americana sobre o governo Bolsonaro. O Acordo do Mercosul também corre risco de não ser assinado, principalmente devida à questão do desmatamento. À Áustria, que por questões ambientais já havia se colocado oficialmente contra o tratado em 2019, juntou-se agora a Holanda, cujos parlamentares assinaram uma moção contra a ratificação do acordo, pelos mesmos motivos. Na Alemanha, maior defensora do acordo, entidades civis dão sinais de que farão oposição, por causa da situação na Amazônia. Assim, a oposição ao Acordo do Mercosul parece se alastrar por toda a Europa: ambientalistas e grupos de consumidores pressionam supermercados por causa dos produtos importados do Brasil. Em início de julho, esta iniciativa obteve o apoio da Conferência de Bispos da Áustria, da organização nãogovernamental Slow Food Europe, da francesa Ligue des Droits de L’Homme, da Greenpeace, Friends of the Earth e alguns dos maiores sindicatos da Holanda, Espanha e Itália. Já passa da hora do Brasil estabelecer e implantar um plano de ação para combater o desmatamento e a invasão de terras indígenas na Amazônia. Enquanto aumentam os efeitos da crise climática – negada por integrantes do atual governo –, destrói-se parte da biodiversidade e deterioram os recursos naturais, que deveriam ser utilizados pelos próprios amazônidas de forma sustentável. A visão de que é necessário “trazer o progresso” (qual progresso?) à região, de que “o índio se integre à sociedade” (qual sociedade?), associadas 106
à suspeita de que potências estrangeiras ou organizações não-governamentais querem ocupar territórios na Amazônia, não podem servir mais como fundamento de políticas para a região. Ou se encaminha definitivamente uma política de ações para a região, ou corremos o risco de desfigurá-la definitivamente em algumas décadas. Esta destruição, se não evitada, terá graves consequências econômicas e sociais em outras regiões do país, da América do Sul e do mundo.
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Eleições municipais e meio ambiente
As eleições municipais brasileiras foram definitivamente prorrogadas para 15 de novembro (primeiro turno) e 29 de novembro de 2020 (segundo turno). Nas cidades brasileiras, partidos e postulantes se preparam para o pleito. Candidatos e apoiadores organizam rodadas de discussões, debatendo temas e propostas que serão incluídos nos programas de governo das novas administrações que tomarão posse em 2021. Quais as novidades destes programas? Provavelmente muito poucas, limitadas a aspectos pontuais; sugestões que surgiram de ideias desenvolvidas a partir de deficiências identificadas ao longo das gestões ainda em curso. Na maior parte dos casos, trata-se apenas de reafirmar e definitivamente colocar em prática projetos e procedimentos que já existiam – como promessa – em administrações anteriores, mas nunca saíram do papel. Pouco de novo poderá ser realizado pelos prefeitos e vereadores que assumirão seus cargos em 2021. A pandemia do coronavírus e a recessão econômica, têm e terão um forte impacto na disponibilidade de recursos financeiros. Grande parte das prefeituras estão e continuarão descapitalizadas, com a queda das receitas municipais e dos repasses dos governos estaduais e federal. As previsões de uma recuperação perceptível da economia foram postergadas para 2022 ou 2023. Dependendo da região onde se localiza, do tipo de atividade e das características do município, a demora poderá ser ainda maior. Um dos aspectos que será de grande influência na recuperação e futuro desenvolvimento do município é a questão ambiental. Além do subjetivo argumento da qualidade de vida do cidadão, já estabelecido na Constituição de 1988 mas até agora pouco considerado – tanto a nível federal, estadual como municipal –, existem outras dimensões mais práticas e imediatas a serem ponderadas. A implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), promulgada ainda no final do segundo governo do presidente Lula, continua, depois de duas prorrogações votadas pelo Congresso, a ser uma grande promessa na quase totalidade dos municípios brasileiros. Cerca de 60% dos 108
municípios já elaboraram um programa de gestão de resíduos urbanos mas não dispõem de fundos para transformar a teoria em prática. A questão do saneamento; o tratamento de água, coleta e tratamento de esgoto, são problemas que, em um tópico ou outro ainda não estão solucionados em cerca de 60% dos municípios brasileiros. Mesmo nas cidades contando com uma boa rede de saneamento, persistem problemas como a qualidade e a perda de água potável ao longo da tubulações. O planejamento hídrico de várias regiões do Brasil precisa ser atualizado e aprimorado, já que a carestia de água está assumindo uma regularidade crescente em vastas áreas das regiões Sul e Sudeste. O projeto recentemente aprovado pelo Congresso, que permite a participação do setor privado no saneamento, ainda permanece uma grande incógnita sob diversos aspectos. Ainda no elenco das grandes temas a serem enfrentados pelos novos prefeitos e vereadores, podemos incluir a questão da crise climática. Ignorada pelo governo federal, cujos ministros consideram o assunto secundário, a situação está aí, colocada. Sinais de que a matéria está ganhando crescente atenção no exterior e por parte de grandes grupos financeiros não faltam. Recentemente, uma comunidade de grandes investidores da Europa, Ásia e Estados Unidos se manifestou através de cartas endereçadas às embaixadas brasileiras na Europa. Nestes primeiros dias de julho de 2020, um grupo de 40 grandes empresários brasileiros, entre os quais executivos de empresas como Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Klabin, Suzano, Cargill, Mafrig, Natura, Cosan, Bayer, Microsoft, Michelin, Shell e Vale, reuniu-se com o vice-presidente Hamilton Mourão, para discutir a situação dos desmatamentos na Amazônia e outros temas ambientais. A contribuição dos municípios à questão climática, principalmente dos pequenos, será limitada. Mas conteúdos como gestão de aterros e transporte público, atividades geradoras de emissão de gases poluentes, deverão estar na pauta de qualquer administração, seja do futuro prefeito da cidade de São Paulo ou de São Gabriel da Cachoeira, município no estado do Amazonas. Planejamento para as próximas décadas não é necessário apenas para as grandes cidades; os médios e pequenos municípios também precisam admitir que novos desafios político-ambientais afetarão impreterivelmente a todos, cedo ou tarde. 109
Manutenção de parque municipais e ampliação da arborização urbana, além da educação ambiental nas escolas, também são pontos que, desde já, precisam constar dos planos de governo dos administradores municipais que tomarão posse em alguns meses. Apesar de ainda estarmos imersos na crise médica, social, econômica e política que cerca a pandemia do coronavírus – assim como todos os países e cidades do planeta –, precisamos agir com vistas ao futuro, às próximas gerações. A crise do coronavírus passará em mais alguns meses. Mas a crise climática e ambiental, mais profunda e com potencial destruidor bem maior a médio e longo prazos, permanecerá. Esperemos que todos, candidatos e eleitores, considerem esta realidade.
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Áreas verdes nas cidades
Se até há algumas décadas a maior parte da população mundial vivia no campo, hoje a população urbana já ultrapassou a rural. No Brasil, o processo de migração das áreas campestres para as cidades ocorreu de maneira bastante rápida a partir dos anos 1940, quando se iniciou o processo de industrialização do país. Atualmente, as cidades brasileiras abrigam cerca de 85% da população. O rápido crescimento dos municípios, trouxe consigo outros aspectos relacionados com a urbanização. Neste artigo trataremos especialmente das áreas verdes e da arborização urbana. A quantidade mínima de área verde nas cidades, segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS), é de 12 m²/h (metros quadrados por habitante); o ideal seriam 36 m²/h. Das grandes cidades brasileiras, a que mantêm a maior área verde por habitante é Goiânia, com 94 m²/h. Vitória (91 m²/h) e Curitiba (64,5 m²/h) são outras duas metrópoles bastante arborizadas. São Paulo, com cerca de 12 milhões de habitantes, tem aproximadamente 16 m²/h, enquanto que Nova York, cidade com perfil parecido ao da capital paulista, com 8 milhões de habitantes, dispõe de 23,10 m²/h de área verde por habitante. Há que se observar que na maioria das cidades a distribuição das áreas verdes é desigual: regiões com poder aquisitivo mais baixo e as periferias geralmente são menos arborizadas, possuindo poucos parques públicos arborizados. Bairros que concentram populações com maior poder aquisitivo, historicamente tiveram melhor planejamento urbano, dispondo de avenidas e parques arborizados. A cidade de São Paulo é um exemplo típico deste fato. Áreas verdes são importantes no espaço urbano. A ideia de equipar as povoações com áreas verdes para o lazer e deleite de sua população, remonta à Antiguidade. Ficaram famosos na história os relatos do historiador grego Heródoto (485– 425 a.C.) sobre os jardins suspensos da Babilônia, considerados uma das sete maravilhas do mundo antigo. Concretamente, descobriu-se vestígios de tais jardins na ruínas da cidade de Nínive, construídas pelo rei assírio Senaqueribe (704-681 a.C.). Na história moderna foi Napoleão (17691821), imperador da França, quem no início do século XIX introduziu a 111
arborização nas avenidas e nos jardins púbicos de Paris, prática mais tarde disseminada em todo o mundo, inclusive no Brasil, a começar pela então capital, Rio de Janeiro. Ainda no século XIX, em sua segunda metade, começaram a ser construídos parques públicos destinados principalmente ao lazer dos operários. Estes viviam em condições bastante ruins em bairros industriais de cidades como Londres e Nova York e os parques era a melhor opção de lazer ao ar livre que tinham. Para muitos administradores públicos, a arborização e os parques ainda são considerados ornamentos urbanos relativamente caros, por necessitarem de cuidados regulares, e porque parte da população não exige sua implantação. No entanto, está cientificamente provado, que as árvores têm importante papel na saúde física e mental dos habitantes. Uma cobertura vegetal planejada, pode reduzir a temperatura média de uma cidade, dependendo do relevo, entre 2º C e 8º C. Todos nós sabemos a diferença em precisar caminhar uma longa distância no verão, sob sol forte, através de uma rua arborizada, e por outra sem árvores. Quando plantada perto de edifícios, a vegetação chega a reduzir o uso do ar condicionado em até 30%. A influência da cobertura vegetal no clima da cidade e nos microclimas dos diferentes bairros também é muito grande. Medições constataram que na cidade de São Paulo, a diferença de temperatura entre os bairros pode variar em até 14º C. Ao longo dos últimos 60 anos, com a remoção de parte da cobertura vegetal na zona urbana e em seu entorno, a umidade da metrópole caiu e a temperatura média subiu. Medições indicam que atualmente a umidade do ar da cidade é 7% menor do que na década de 1930. Já faz muito tempo que São Paulo deixou de ser chamada de “a capital da garoa”, como era conhecida até o começo dos anos 1970. No que se refere à melhoria da qualidade do ar, uma árvore de porte pode absorver anualmente até 150 kg de dióxido de carbono. No site LastTrop (http://esalqlastrop.com.br/capa.asp?pi=calculadora_emissoes)
encontra-se
uma tabela, através da qual é possível calcular o número de árvores que deveriam ser plantadas, para compensar as emissões anuais de diversos tipos de veículos automotores. Além de incorporar o dióxido de carbono, as árvores
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também filtram o ar retendo poluentes, inclusive particulados liberados pela queima do diesel. Pesquisas realizadas nas últimas décadas revelaram que em áreas arborizadas moradores e transeuntes sofrem menos de ansiedade. Inconscientemente, segundo os psicólogos, o ser humano se sente inseguro em largos espaços livres sem árvores, como são certas praças das nossas cidades. Nossos antepassados distantes, caçadores e coletores, davam preferência às paisagens com árvores, onde encontravam abrigo contra predadores, alimento e água. Estudos realizados em cidades americanas constataram que, em geral, bairros mais arborizados têm um índice de violência mais baixo, em comparação com outras áreas urbanas com pouca vegetação. Outro detalhe, muitas vezes esquecido por empresas incorporadoras, imobiliárias e planejadores urbanos, é que terrenos e casas localizados em áreas arborizadas, alcançam um valor de venda mais alto. Administrações públicas deveriam sensibilizar proprietários e usuários de imóveis em áreas centrais, para que valorizem e protejam as árvores plantadas em seus bairros, muitas vezes em frente aos seus prédios de apartamentos residenciais e suas lojas. A crise climática provocada pelo gradual aquecimento da atmosfera aumentará inevitavelmente ao longo das próximas décadas, segundo os cientistas. No momento, pelo menos no Brasil, o tema não está sendo tratado, por causa da crise gerada pela pandemia do coronavírus e devido ao negacionismo climático do atual governo. Mas, sabemos que ambos passarão e em pouco tempo teremos que voltar a nos ocupar mais intensamente com o fenômeno climático. A Organização da Nações Unidas (ONU) afirma que há necessidade de plantio de cerca de um trilhão de árvores em todo o planeta, ao longo dos próximos anos, a fim de compensar em parte o efeito das emissões de gases. Assim, toda a cidade, em qualquer parte do mundo, será convocada a dar sua contribuição, aumentando o número de parques e ampliando a arborização urbana.
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Agora os gafanhotos
Nas últimas semanas a região Sul do país foi constantemente ameaçada pela chegada de nuvens de gafanhotos, vindas da Argentina e formadas no Paraguai. Fato pouco comum no Brasil, segundo registros históricos, a praga é constituída por gafanhotos da espécie Schistocerca cancellata, a maior e mais robusta entre este tipo de inseto. Os machos têm 4 centímetros e as fêmea chegam a 6 cm. Com seu aparelho mastigador composto por diversas estruturas e uma enorme mandíbula, este animal é capaz de devorar um ramo de vegetal em poucos segundos. Existem sete mil espécies conhecidas de gafanhotos. Destas, cerca de vinte pertencem ao grupo conhecido como espécies gregárias de gafanhotos, aquelas que formarão os enxames, reunindo milhões de indivíduos, que juntos podem se deslocar por até 150 quilômetros em um dia. Alimentando-se de qualquer tipo de planta, estes animais ingerem de 30% a 70% de seu peso diariamente. Estudos da Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO) indicam que estes insetos, ocupando uma área de 1 km² e perfazendo cerca de 40 milhões de indivíduos, podem ingerir um volume equivalente de vegetais àquele consumido por 35 mil pessoas. No caso das nuvens que rondam a fronteira brasileira, estima-se que sejam compostas por cerca de 40 milhões de espécimes. Pragas de gafanhotos acompanham a humanidade desde a invenção da agricultura, por volta de 8 mil anos a.C. O flagelo também é mencionado pelos antigos egípcios, na Ilíada de Homero e no texto do livro sagrado hindu Mahabharata. No início do século I, o historiador romano Plínio, o Velho, menciona a morte de 800 mil cidadãos do império, provocada pela destruição das lavouras por pragas de gafanhotos, na região que atualmente inclui a Líbia, a Argélia e a Tunísia. Ao longo da história os relatos se sucedem desde o passado até os mais recentes: Estados Unidos (1874), Egito (2004), México (2006), Israel (2013) e Leste da África (2019/2020). O relato mais famoso que temos do passado é o de Antigo Testamento, onde se lê em Êxodo 10: “Pela 114
manhã, o vento havia trazido os gafanhotos, os quais invadiram todo o Egito e desceram em grande número sobre toda a sua extensão. Nunca antes houve tantos gafanhotos, nem jamais haverá. Eles cobriram toda a face da terra de tal forma que ela escureceu”. Os gafanhotos, como outras espécies, proliferam em maior número quando o número de seus predadores diminui. A diminuição da biodiversidade de certas regiões através do corte da vegetação original ou da prática extensiva de monocultura, elimina ou afasta os predadores dos gafanhotos: aves, répteis, anfíbios, insetos, aracnídeos, etc. Condições climáticas também favorecem a proliferação desta espécie. Solos secos e clima quente são o habitat de grande parte das espécies de gafanhotos gregários. Experiências da The Global Locust Initiative (Iniciativa Global do Gafanhoto), programa de estudos mantido pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, mostraram, por exemplo, que espécies de gafanhotos gregários podem sobreviver até um mês sem água. Desta forma, enquanto espécies de insetos polinizadores, como as abelhas, borboletas, e besouros terão que lutar para se adaptarem a um planeta em processo de aquecimento, os gafanhotos já contam com esta vantagem competitiva. “Se a mudança do clima acelerar a temperatura e a aridez, como é previsto ocorrer em muitas áreas, é fácil imaginar que certas espécies de gafanhotos vão expandir sua área de atuação”, diz Rick Overson, coordenador de pesquisas do The Global Locust Initiative. O combate dos enxames de gafanhotos através de inseticidas – mesmo quando feito de maneira controlada, como realizado pela Secretaria de Administração Agropecuária do Rio Grande do Sul – pode causar diversos impactos ao meio ambiente, segundo um especialista do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos. Em entrevista à reportagem do G1, o técnico da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Mohamed Habib, comenta que não há inseticida seguro. Restos do produto serão carreados para o lençol freático, para rios e córregos. A vegetação contaminada poderá servir de pasto para animais de criação e selvagens, afetando toda uma cadeia biológica e podendo alcançar os humanos. Além disso, segundo informação da CroLife, entidade que representa as empresas produtoras de pesticidas, não existe defensivo químico ou biológico registrado no Ministério da Agricultura, para combater esta espécie 115
de praga de gafanhotos – pelo fato de ser pouco comum no país. Na falta de um produto eficiente e efetivo, corre-se o risco de combater o gafanhoto com um canhão, ou seja, com um inseticida potente e de amplo espectro, causando mortandade entre outras espécies e provocando grande poluição. O uso constante de defensivo, segundo especialistas, não resolve o problema. Em
entrevista
para
o
site
Diálogos
do
Sul
(https://dialogosdosul.operamundi.uol.com.br/brasil/65450/para-combaternuvem-de-gafanhotos-governo-libera-mais-usos-para-agrotoxicos), o professor Marcos Lhano, do Centro de Ciências da Natureza da Universidade Federa de São Carlos, afirma que a aplicação de produtos químicos “é uma solução pontual. A Índia, Egito, Marrocos e outros países da África enfrentam esses problemas há décadas. Quando chega a nuvem ela é recebida com pulverização de inseticidas por aviões, carros adaptados e até manualmente, mas o problema nunca é erradicado. No ano seguinte ele volta”, explica. O professor informa que há outras maneiras de prevenir as pragas de gafanhotos, que além de não serem agressivas previnem a formação de uma nuvem de insetos. “Uma vez que o produtor vê que estão aparecendo muitas ninfas (gafanhotos novos) em uma quantidade maior que o normal, ele deve fazer o controle biológico. Temos uma série de produtos baseados em fungos entomopatogênicos, que causam doenças nos gafanhotos. Esse fungo demora para agir, mas elimina os indivíduos antes que eles atinjam a idade adulta, que é quando eles conseguem formar nuvens”, conta. Há algo de comum entre o aparecimento das nuvens de gafanhotos e outros fenômenos naturais, envolvendo grande número de organismos de uma mesma espécie, como a maré vermelha (excessiva proliferação de algas tóxicas devido à poluição das águas litorâneas) e o aparecimento de diversos tipos de vírus (coronavírus, por exemplo). Através de nossas atividades econômicas estamos interferindo excessivamente no ambiente, alterando as condições físicas, químicas e biológicas que permitem o desenvolvimento razoavelmente equilibrado das diversas espécies e ecossistemas. Se, através de nossas ações (geralmente ignoramos as consequências de nossas ações no meio ambiente) interferimos na sobrevivência de certas espécies – um microrganismo, um inseto ou mamífero, por exemplo – podemos dar início à uma reação em cadeia que 116
pode levar à destruição de várias outras espécies ou, se levar ao surgimento de uma superbactéria ou de vírus desconhecido, à nossa própria extinção.
117
Pandemia e fome
"Da fome, da peste e da guerra livrai-nos Senhor!" (Oração da ladainha de Todos os Santos, Portugal no século XIV)
A pandemia do coronavírus mostra o quanto a sociedade brasileira continua sendo excludente em suas relações econômicas. Dados demonstram que mesmo colocado entre as dez nações mais industrializadas do mundo e sendo a nona maior economia no planeta, com um PIB de US$ 1,9 trilhão em 2019, o Brasil mantêm mais de um terço de sua população – cerca de 74 milhões de pessoas segundo dados recentes – vivendo na pobreza e abaixo da linha da pobreza. A exclusão social fica ainda mais patente, quando estudos recentes mostram que a parcela da população vivendo na extrema pobreza caiu para os níveis mais baixos dos últimos quarenta anos, exatamente por conta dos mecanismos de transferência de renda, criados recentemente por causa da crise econômica gerada pela pandemia. Situação paradoxal: a pandemia ameaça a manutenção de centenárias relações de exploração, beneficiando os pobres e miseráveis com o auxílio emergencial. A riqueza no Brasil, historicamente constituída pela posse de grandes extensões de terra, o latifúndio, sempre esteve nas mãos de poucos. Este é um forte motivo pelo qual o país, que até a década de 1950 tinha uma economia baseada na agricultura, até hoje nunca chegou a implantar uma verdadeira reforma agrária. Durante parte do período imperial até a primeira república, a diminuta classe média urbana era formada por pequenos empresários, funcionários do comércio e do serviço público; tipos sociais retratados nos romances de Lima Barreto e Machado de Assis. Remediados, pobres, miseráveis e, até 1888, os escravizados, constituíam a maior parte da população. A partir dos anos 1930 e mais acentuadamente com o início da industrialização na década de 1950, surge uma classe média industrial, formada por trabalhadores das indústrias e de setores econômicos ligados às suas cadeias 118
produtivas. Ao longo das décadas de 1970, 1980 e 1990, crises econômicas externas e internas tolheram de diversas maneiras o desenvolvimento da economia, limitando a criação de empregos, comprimindo salários e gerando desemprego. Tais fatores, associados às incipientes políticas públicas nas áreas sociais e de infraestrutura, contribuíram para que a renda se concentrasse e o número de pobres e miseráveis crescesse gradativamente, acompanhando o crescimento populacional. A situação econômica e a redução da miséria teve pequena melhora quando da criação do “Plano Real”; conjunto de medidas que estancaram a persistente inflação inercial, implantado em 1994 no final do governo de Itamar Franco. Com a relativa estabilização da economia, o governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) diminuiu o percentual da população extremamente pobre de 20,3% para 15,2%. Extremamente pobres, segundo padrões adotados pelo Banco Mundial, são os indivíduos que ganham menos de US$ 67,- (cerca de R$ 367,em agosto de 2020) por mês. Significativa mudança ocorreu no governo de Lula da Silva (2003-2010), graças a fatores da economia mundial e da adoção de políticas internas de geração de renda. Assim foi possível, pela primeira vez na história do país, diminuir o número de pobres e miseráveis de 15,2% para 5,3% da população. Programas sociais e a criação de postos de trabalho no setor privado contribuíram para que 35 milhões de pessoas pudessem se integrar à classe média (classes C e D, de acordo com o padrão de consumo). A expansão da economia e a incorporação de milhões de cidadãos ao consumo, principalmente no período 2006-2010, fez com que a economista Laura Carvalho criasse a expressão “milagrinho econômico”, referindo-se a este período em seu livro Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico. A expressão é uma alusão ao chamado “milagre econômico brasileiro”, ocorrido entre 1968 e 1973, quando o PIB do país alcançou um crescimento anual de 11%. No final do primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff (2014) a economia brasileira começou a entrar em crise. O processo de impedimento da presidente (2016), somado ao aumento das dificuldades econômicas pelas quais passava o país, ajudaram a desacelerar ainda mais a economia, gerando uma grande crise de desemprego e, consequentemente, o aumento da pobreza e da miséria. 119
A anomia econômica que se acentuou no quadriênio 2016-2019, fez com o índice dos extremamente pobres chegasse a 6,7% da população – cerca de 13,8 milhões de pessoas – no final de 2019. A instabilidade se aprofundaria ainda mais com a recessão econômica mundial, causada pela pandemia a partir de fevereiro de 2020. Com a crise do coronavírus a atividade econômica mundial, que ainda não havia se recuperado totalmente da crise de 2008, sofreu um novo baque. Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), a economia da União Europeia deverá sofrer uma queda de 7,5% em seu PIB em 2020. A maior economia da Europa, a alemã, encolherá 7,0%, enquanto que a dos Estados Unidos cairá 5,9%, a do Japão 5,2%. Exceções são a Índia, que crescerá 1,9% e a China, com 1,2%. Os dados ainda não são definitivos e muito provavelmente serão revistos ainda algumas vezes durante o ano. Com relação à economia brasileira previa-se uma queda de 6% no PIB em 2020. Agora, início de agosto, a previsão é de que haja uma retração de 4,8% na atividade econômica. A contração da economia ocorre através do fechamento temporário ou definitivo de empresas e gera o aumento no número de desempregados. Além disso, com a crise, até os trabalhadores avulsos e informais estão impossibilitados de obterem renda. Segundo dados pesquisados pela Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil deve encerrar o ano de 2020 com 9,5% de sua população – cerca de 20 milhões de pessoas – na condição de extrema pobreza. O estudo da ONU também prevê que o número de pobres, os que ganham menos de US$ 140,- (R$ 765,-) por mês segundo critérios do Banco Mundial, também aumentará de 20% (2019) para 26,5% em 2020. Através dos programas de auxílio emergencial que até agosto de 2020 beneficiaram 64 milhões de pessoas, os pobres e extremamente pobres, que não dispunham de outro tipo de rendimento – salário fixo, seguro-desemprego, aposentadoria, pensão – puderam garantir sua sobrevivência em níveis extremamente básicos. Um estudo realizado em junho de 2020 pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre/FGV), baseado em dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio COVID 19 (Pnad Covid19), mostra que entre maio e junho de 2020 a extrema pobreza no Brasil foi a menor em 40 anos. A pesquisa demonstra que a parcela da população na faixa 120
da extrema pobreza caiu de 4,2% da população (8,8 milhões de pessoas) para 3,3% (6,9 milhões de pessoas), entre os meses de maio e junho deste ano (o auxílio emergencial começou a ser pago em abril). Da mesma forma, a faixa da população considerada pobre, diminuiu de 23,8% para 21,7%. Segundo o estudo citado, esta redução no número dos extremamente pobres coincide com o aumento da cobertura de auxílio emergencial, que entre maio e junho passou de 45% para 50% da população (29,4 milhões de domicílios, nos quais vivem 49,5% da população). (Observação: as diferentes estatísticas que consultamos mostram discrepância com relação à parcela da população situada na faixa da extrema pobreza. Em 2019 o IBGE informou que 6,7% da população estava nesta situação. A pesquisa do Ibre/FGV parte de 4,2% em maio de 2020. Terá havido uma redução de 2,5% na população dos extremamente pobres em apenas algumas semanas, entre abril e maio de 2020? Não conseguimos encontrar uma resposta para esta diferença na estatística oficial. Esta incongruência, no entanto, não compromete a proposta deste texto). O auxílio emergencial não foi aprovado com facilidade. O Ministério da Economia afirmava de início de que não dispunha de recursos para tais dispêndios, que ultrapassariam as metas do orçamento da União. Os fatos se precipitaram e o governo anuiu um auxílio mensal de R$ 200,-. Foi somente com a mobilização do Congresso que o governo foi convencido a fixar o valor do auxílio emergencial em R$ 600,-. Assim, pessoas que durante a maior parte de suas vidas nunca tiveram uma renda regular, num valor minimamente aceitável (o valor de um salário mínimo é de R$ 1.045,-), começaram a dispor de recursos para adquirirem o básico, talvez até com um pequeno gasto maior do que o usual. O Bolsa Família atende cerca de 14 milhões de famílias e estimam os técnicos que 3,6 milhões de famílias precisam mas ainda não recebem este benefício. No entanto, mesmo se o recebessem, seus recursos não seriam suficientes para socorrer as famílias nesta situação de necessidade extrema. Milhões de brasileiros que no início da crise econômica em 2014 tinham perdido o emprego e acabaram caindo na informalidade, agora, com a suspensão total e imediata de todas as atividades econômicas, não têm mais o “bico”, ganho eventual que
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completava a renda do Bolsa Família. Para todos estes o auxílio emergencial foi a única alternativa contra a fome. A situação colocou a nu, mais uma vez, a forma se dão as relações econômicas e sociais na sociedade brasileira. Enquanto grandes empresas recebem empréstimos subsidiados e isenções fiscais, grandes rendas e fortunas são pouco taxadas, somente uma grande crise econômica pôde fazer com que parte das imensas riquezas que circulam entre poucos, fossem divididas com aqueles que mais precisavam – 30% da população, aproximadamente. O governo prevê que existem fundos disponíveis para manter a ajuda emergencial até setembro de 2020. Mas, e depois, de onde virão os recursos? O programa de ajuda, certamente, não poderá ser suspenso, sob pena de aumentarmos a anomia social que existe no país. Especialistas e o Congresso vêm discutindo um programa de renda básica universal, que a equipe do Ministério da Economia planeja lançar no âmbito do programa “Renda Brasil”. O custo desta iniciativa seria de aproximadamente R$ 50 bilhões ao ano, superior aos gastos do Bolsa Família, de cerca de R$ 30 bilhões ao ano. A proposta prevê uma renda básica permanente, uma continuação do auxílio emergencial de R$ 600,-. Dados da Caixa Econômica Federal indicam que 59 milhões de brasileiros são considerados elegíveis para receberem este suporte público. Propostas para a criação e o financiamento de um programa de renda básica não faltam. O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), por exemplo, sugere uma renda no valor de meio salário mínimo mensal, mais um quarto de salário por criança ou adolescente menor de 18 anos. Segundo o professor da Escola de Negócios da PUCRS, o economista Ely José Mattos, o projeto da renda básica poderia ser custeada pelos recursos financeiros parados em fundos públicos, e através de uma reforma tributária de matriz progressiva, que desonerasse os mais pobres. O doutor em Ciências Econômicas e professor da Faculdade de Economia da Universidade de Barcelona, o espanhol Daniel Raventós é autor de diversos artigos e livros tratando da renda básica. O professor sugere que o programa seja implantado através de um redistribuição de renda dos 20% mais ricos ao resto da população. No Brasil esta faixa dos mais ricos talvez estivesse limitada 122
a 2% a 3% da população. Em junho deste ano o governo espanhol aprovou um projeto de renda básica, destinado à parte da população com baixa receita, para fazer frente ao impacto na economia criado pela pandemia do COVID 19. No âmbito deste projeto cada cidadão receberá € 462,- (cerca de R$ 2,7 mil reais). A economista Laura Carvalho, em seu livro Valsa Brasileira: do boom ao caos econômico, escreve que “[...] tributar os mais ricos e gastar o mesmo valor com políticas que elevam a renda dos mais pobres direta ou indiretamente tem alto efeito multiplicador. Isso porque enquanto os mais ricos consomem uma parte relativamente pequena da sua renda, os mais pobres consomem tudo ou quase tudo daquilo que ganham, o que contribui para dinamizar a economia. Em outras palavras, uma reforma tributária progressiva deve elevar a tributação sobre a renda e o patrimônio dos mais ricos – o Brasil também taxa relativamente pouco as grandes heranças e propriedades – e reduzir a tributação sobre o consumo, a produção e os lucros reinvestidos nas empresas.” A economista ainda comenta que “se fosse cobrada uma alíquota maior de IRPF (35%) para rendas muito elevadas, a arrecadação aumentaria em pelo menos 90 bilhões – mais da metade do déficit primário do governo federal em 2016.” Desde o início do regime republicano brasileiro e, mais acentuadamente, com o início da industrialização e a dinamização do processo econômico, estava implícito nas políticas econômicas dos sucessivos governos – pelo menos nas declarações – o objetivo de melhorar as condições de vida das parcelas mais pobres da população. Desde o término da Guerra Fria, “liberdade e prosperidade” é a promessa da maioria das democracia liberais por todo o mundo, acompanhando a expansão da economia de mercado. Grande parte delas, no entanto, arrefecido o entusiasmo com os supostos mecanismos de distribuição de riqueza através da “mão invisível do mercado”, acaba oferecendo mais de liberdade e menos prosperidade. Na ausência de programas sociais eficientes e de mecanismos de taxação e distribuição das riquezas, partes significativas das populações permanecem nas condições de pobreza ou miséria, situação da qual a América Latina é um exemplo típico. Agora o país encontra-se em uma encruzilhada. O Brasil, especialmente, se tornou um caso exemplar de conjunção de políticas de proteção social ineficientes – muitas sendo reduzidas pelo atual governo – e permanente 123
concentração de renda – 1% dos brasileiros concentram 30% da renda total do país e 10% dos mais ricos possuem 43% das riquezas. Esta talvez seja a última oportunidade para a sociedade brasileira: implantar reformas e, aos poucos, juntar-se às nações desenvolvidas e relativamente harmoniosas sob ponto de vista econômico, social e cultural. Ou manter as relações econômicas e sociais da maneira como estão, colocando-se no rol das sociedades sempre sujeitas a crises, nas quais, segundo o filósofo Thomas Hobbes, a vida se torna “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta, na qual cada um é o lobo para o outro, em guerra de todos contra todos.”
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Cultura e democracia
Ao mesmo tempo em que escrevíamos este texto, o governo já havia anunciado que no orçamento da União de 2021 planeja aumentar os recursos do Ministério da Defesa, ao mesmo tempo em que reduzirá as verbas da Educação e da Saúde. A Reforma Fiscal planejada pelo governo, fará com que os livros, que são isentos de tributos, paguem 12% em impostos. Consultado, o ministro da Economia Paulo Guedes comentou que a atual isenção de impostos para os livros “beneficia quem poderia pagar mais impostos” – como se apenas os ricos fossem leitores. A Cinemateca Brasileira, localizada em São Paulo e contendo o maior acervo de filmes e imagens da América do Sul está fechada. Não dispõe de recursos nem para a manutenção do prédio e a conservação do material. Os funcionários foram dispensados e o governo federal não assumiu sua administração, ainda que o tenha prometido anteriormente. Apesar do Estado brasileiro declarar assegurar liberdade religiosa a todo o cidadão desde a Constituição de 1891 (“todos os indivíduos e confissões religiosas podem exercer pública e livremente o seu culto, associando-se para esse fim e adquirindo bens, observadas as disposições do direito comum”), são constantes os atos de desrespeito da Constituição. Tornaram-se comuns os casos de perseguição aos fiéis das religiões afro-brasileiras por parte de membros de cultos cristãos fundamentalistas. Em muitos casos umbandistas e candomblecistas são forçados a esconder sua crença, seja no bairro onde moram ou nas redes sociais, para não serem achincalhados ou hostilizados. No país do “Deus acima de todos”, certo tipo de fiel parece se achar mais perto da divindade do que os de outras religiões. O poder público, quando confrontado com tais fatos, reage apenas quando a agressão chega à imprensa. A divulgação de fake news, as notícias falsas, são disseminadas por redes de grupos organizados especificamente para este fim: desinformar e confundir parte da população menos esclarecida. Não faltam ataques a políticos e membros do 125
STF, personalidades, artistas; afrontas contra a China e ONGs, a rede Globo e a imprensa em geral. Pululam as falsas terapias para a cura do covid, ataques às vacinas de todos os tipos, e muito mais. Prolifera também a divulgação de supostos projetos governamentais em andamento, baseados em dados e imagens inverídicas. Centrais de disseminação de notícias falsas transformaram as mídias sociais em terra de ninguém, onde grande parte dos relatos são inverídicos, com objetivo de desinformar e confundir. Recentemente, um grupo de radicais de direita se intitulando religioso, tentou impedir um aborto autorizado pela Justiça, realizado por uma equipe médica em uma menina de dez anos, que havia sido estuprada. Atacando a criança aos gritos na frente do hospital onde estava internada, e tentando invadir o local, os fanáticos foram desalojados por membros do Fórum de Mulheres de Pernambuco. O objetivo político daqueles que estão por trás deste movimento é, evidentemente, criar condições jurídicas e influenciar a opinião pública para que a discussão da descriminalização do aborto não ocorra. Sinais dos tempos. Parece diminuir a valorização do conhecimento, da cultura, da tolerância, da liberdade e da democracia. Nunca, em nenhum período da história brasileira a aversão à cultura, ao conhecimento, à ciência (e à discussão de suas teorias) foi tão incisiva e até estimulada. Cresce uma visão deturpada do que é a liberdade individual (“por que sou obrigado a usar a máscara contra a covid?”) e a democracia (“posso falar o que quero de quem quero!”), associadas a um moralismo de fachada (“vamos valorizar a família!”) e rigorista.
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Religião, evangélicos e política
De uma maneira geral, a religião é um tema superado nas sociedades avançadas. As igrejas são cada vez menos frequentadas, porque não oferecem mais as respostas que as pessoas procuram. Nas sociedades europeias, por exemplo, ninguém mais pergunta se o outro acredita em algo. Este tipo de questionamento, além de refletir falta de sensibilidade, não faz mais sentido, não importa mais. Como associar crenças, padrões de conduta e visões de mundo, surgidas há mais de dois mil anos, em uma civilização agrícola e culturalmente periférica, às preocupações e à visão de mundo influenciada pela tecnologia, pelo individualismo e um relativo bem estar social? O “retorno da religião”, apontado como novo fenômeno social e cultural por alguns intelectuais nos últimos trinta anos, foi uma ocorrência localizada. O crescimento da prática religiosa concentrou-se principalmente nas sociedades com menor acesso à educação formal, onde condições aceitáveis de vida não são a regra e as liberdades individuais são limitadas. São sociedades sem perspectivas para a maior parte dos indivíduos, seja no cotidiano como no futuro, com Estados autoritários e corruptos, dominados por elites culturalmente atrasadas; fatores que levam parte da população a procurar algum tipo de alívio e ajuda na religião, despendendo considerável tempo e esforço para isso. Na visão de Marx a religião, além de prática para aliviar as mazelas da vida, também era um protesto contra uma situação sócia injusta. Escreve o filósofo na Crítica da Filosofia de Hegel: “A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo.” A teologia da libertação foi, entre os anos 1960 e 1980, uma forte corrente de pensamento
na
teologia
católica,
principalmente
na
América
Latina.
Caracterizava-se por uma posição extremamente crítica em relação às adversas condições econômicas, sociais e políticas na região, dominada então por regimes autoritários. Durante este período também os religiosos foram 127
censurados, perseguidos e assassinados pelas forças de repressão. No entanto, com a chegada de João Paulo II ao papado, a teologia da libertação foi proscrita da doutrina da Igreja, sendo gradualmente substituída por linhas doutrinárias e religiosos mais conservadores. Em pleno período da Guerra Fria, a teologia da libertação, por sua forte crítica às injustas relações sociais e econômicas, foi associada à expansão do socialismo; seja pelos regimes autoritários como pelas agências do governo dos Estados Unidos. Neste período, as igrejas evangélicas, atuando na América Latina desde o início do século XX, cresciam lentamente, principalmente nas periferias das grandes cidades. Para fazer frente à teologia da libertação, governos latino-americanos procuraram facilitar a expansão das igrejas evangélicas, pois estas não desaprovavam os regimes autoritários e eram politicamente neutras em relação à situação social. Vários credos evangélicos, com ligações nos Estados Unidos, chegaram a receber apoio financeiro para expandirem e disseminarem a doutrina, que na prática da evangelização se contraporia à teologia da libertação: a teologia da prosperidade. No texto As origens norte-americanas da teologia da prosperidade, e sua influência no contexto brasileiro, publicado no site da Faculdade Batista do Paraná (FABAPA) (https://fabapar.com.br/blog/as-origens-norte-americanas-dateologia-da-prosperidade-seus-ensinos-e-sua-influencia-no-contextobrasileiro/), os especialistas Me. Gabriel Maurílio e Dra. Marivete Zanoni Kunz, apresentam uma explicação da teologia da prosperidade, da qual selecionamos o seguinte trecho: “Esta Teologia traz uma nova interpretação, que troca as boas novas por solução de problemas. Também ensina que a marca do cristão verdadeiro consiste em ter muita fé, ser bem-sucedido, ter boa saúde física, emocional e espiritual, isto inclui a prosperidade financeira, mas, se o cristão é pobre ou está doente, são resultados de pecado ou falta de fé. Neste aspecto, a Teologia da Prosperidade tem atraído grande número de pessoas que passam por estas dificuldades, mas, para receber estas bênçãos, inclusive a financeira, o cristão tem que ofertar na igreja para recebê-las, em forma de barganha.” (Maurílio e Kunz)
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Caiu o Muro de Berlim (1989), desapareceu a competição entre o bloco capitalista e o comunista em todo o planeta, governos se sucederam no Brasil, mas as condições sociais e econômicas do país não mudaram em suas bases. Como escreveu Tomasi di Lampedusa em seu clássico romance O Leopardo “Algo deve mudar para que tudo continue como está.” E foi o que ocorreu – ou não ocorreu. A situação dos pobres e miseráveis foi apenas atenuada ao longo dos últimos vinte e poucos anos, mas não mudou em suas bases. A função de alívio e protesto da religião, continua justificada em nossa sociedade. O Brasil sempre foi um país de hegemônica tradição católica, pelo menos até há alguns anos. No entanto, ao longo dos últimos quarenta anos, os evangélicos tornaram-se o grupo religioso que vem apresentando o mais rápido crescimento. Em 2010 já perfaziam 22,2% da população, cerca de 42,3 milhões de pessoas. Em 2017 eram 27% da população e hoje este percentual deve estar em torno de 30% – cerca de 60 milhões de pessoas. A maior parte dos fiéis destas correntes protestantes, assim como a dos católicos, é formada por pessoas de baixa renda (cerca de 60%) e por representantes da classe média. Recentemente, os grupos evangélicos tiveram um grande peso na eleição do presidente Bolsonaro, segundo dados levantados pelo jornal Folha de São Paulo. É preciso notar, no entanto, que em eleições anteriores os evangélicos também votaram maciçamente nos candidatos “preferidos”, como Fernando Henrique Cardoso, Lula da Silva e Dilma Rousseff. Bolsonaro agradou especialmente aos evangélicos e a seus pastores por ter incorporado práticas da religião, como o batismo a que se submeteu, a referência a Deus em seu slogan de campanha (“Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”), a defesa dos “valores da família brasileira”, o conservadorismo e o anti-intelectualismo. Eleito, retribuiu os votos indicando pastores evangélicos para cargos ministeriais e mantendo estreito relacionamento com a comunidade evangélica. Sendo assim, os grupos evangélicos têm e terão, cada vez mais, forte influência no governo – pelo menos neste governo. É bem provável que a política e certas práticas sociais sejam influenciadas pela visão de mundo evangélica, que passou a exercer influência na vida pública do país, através da política e da mídia. Se isto é uma vantagem para os evangélicos, significando poder e hegemonia, também transforma estes grupos sociais – e as instituições e 129
personalidades a eles ligados – em atores constantemente observados, analisados e avaliados pelo resto da sociedade, através dos meios de comunicação. A exposição na mídia que figuras evangélicas passaram a ter – e que este grupo pouco tinha no passado –, já começa a ter consequências. Chamaram a atenção da opinião pública do país os casos recentes de conhecidos ministros de igrejas evangélicas que foram acusados de se envolverem em atividades criminosas – caso do pastor Everaldo Dias Pereira, importante nome da igreja Assembleia de Deus e presidente do Partido Social Cristão (PSC), acusado de envolvimento em corrupção e lavagem de dinheiro, e da pastora Flordelis dos Santos de Souza, da igreja do Ministério Flordelis (rebatizado para Cidade de Fogo) e deputada federal pelo Partido Social Democrático (PSD), acusada do assassinato de seu marido, também pastor. Só o tempo poderá dizer como será a atuação dos grupos evangélicos na política, e de que modo influenciarão a história do país. Por enquanto estão Instalados em ministérios e outros importantes cargos no Executivo, preenchem 91 cadeiras no Legislativo e futuramente poderão ocupar posições no Judiciário (Bolsonaro não deve ter abandonado sua ideia de empossar um ministro “terrivelmente evangélico” no STF). Todos estes, elas e eles, ocupando cargos de destaque na administração, precisam ter em mente de que governam, legislam e julgam para uma república laica, sem religião. Uma república onde deve imperar a vontade da maioria, sem que as aspirações justas de minorias sejam desrespeitadas. Diferente dos planos da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Silva, que recentemente declarou em entrevista à Deutsche Welle de que "É o momento de a igreja ocupar a nação". Baseado em nossa Constituição, somos uma República cujo principal objetivo deve ser o de promover a justiça econômica e social, propiciando o desenvolvimento das potencialidades de todas as pessoas, todos os grupos sociais, independente de religião, cor ou sexo, através de igual acesso à educação, cultura, saúde e vida digna. É somente desta maneira que a sociedade brasileira poderá atingir um nível aceitável de humanismo e civilização.
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Microrganismos e meio ambiente
Os microrganismos têm uma função importante no equilíbrio ambiental do planeta. Antes de mais nada, é preciso dizer que tudo começou com eles. Os primeiros seres vivos foram organismos unicelulares, provavelmente similares às bactérias atuais. Surgiram no planeta há cerca de 3,8 bilhões de anos, por um longo processo que teve origem na matéria inanimada. Desde o século XIX a ciência desenvolveu três ou quatro grandes teorias sobre como se deu este salto da matéria inanimada para a vida, mas até o momento nenhuma delas pode dar resultados definitivos em experiências controladas. Toda vida sobre o planeta descende daquele primeiro organismo, que em um instante específico do passado remoto, passou a existir como criatura viva, capaz de realizar seu metabolismo, crescer e se reproduzir. Durante a maior parte da história da vida, esta ficou restrita aos organismos unicelulares. As primeiras criaturas pluricelulares surgiram há cerca de 550 milhões de anos, quando também se deu divisão entre os seres vivos que desenvolveriam as plantas e os que formariam os animais. A partir deste simples e invisível início a vida se espalhou pelo planeta, gerando as mais diferentes formas de seres em seus respectivos reinos: monera (bactérias ou cianobactérias), protistas (algas unicelulares e protozoários), fungi (fungos), plantae (plantas) e animália (animais). Movidos pelo impulso de conservação, ocuparam e ajudaram a formar ambientes propícios, através de um relativo equilíbrio com outras espécies, mas sempre em competição pela sobrevivência. Por este processo se organizaram os mais complexos ecossistemas, como os bancos de corais, a floresta amazônica ou a microbiota intestinal (flora intestinal) do trato digestivo. A base que sustenta em grande parte o funcionamento de todas estas complexas estruturas, constituídas por milhões ou bilhões de espécies vivas, é mantida pelos microrganismos. Os microrganismos, quase todos, só podem ser vistos por microscópios, que em muitos casos precisam ser bastante potentes e só foram desenvolvidos nos anos 1930. Esta espécie de criaturas inclui as bactérias (monera), os protozoários 131
(protista), as algas unicelulares (protista), os fungos (fungi) e os vírus. Estes últimos não são propriamente considerados seres vivos. Interessante notar que dos cinco reinos de seres vivos existentes, três são constituídos em grande parte por espécimes microscópicos. Parece que entre os seres vivos, considerandose o número de indivíduos e de espécies, a regra ainda é o microscópico. A quantidade de microrganismos presentes na Terra excede em muito os padrões humanos. A massa total de células microbianas no planeta é aproximadamente 25 vezes o total da massa animal. Uma grama de solo (aproximadamente o peso de três grãos de feijão), pode conter cerca de um bilhão (1.000.000.000) de micróbios, divididos em algumas milhares de espécies. Ainda não se conhece todas as espécies de vida na Terra, muito menos as microbianas. Estima-se que a ciência até hoje só tenha identificado cerca de 1% dos microrganismos existentes no planeta. Além de seu diminuto tamanho, estas criaturas são encontrados em qualquer lugar: no fundo do gelo das regiões polares, nas profundezas do oceano a milhares de metros, em gêiseres onde as temperaturas chegam a 100ºC e até a 3 quilômetros no solo, abaixo da superfície. São os tipos de organismos mais resistentes e adaptados do planeta. Não será uma grande surpresa se a missão da NASA Rover Mars 2020, que deverá chegar ao Planeta Vermelho em 2021 para realizar várias prospecções, encontrar indícios de vida microscópica viva ou extinta em Marte. Recentemente, cientistas identificaram a existência de fosfina na atmosfera do planeta Vênus. Este gás, altamente tóxico, também encontrado na Terra, só pode existir livre na natureza (também pode ser fabricado industrialmente) associado à presença de determinados tipos de bactérias. Os cientistas ainda pesquisam, para saber se podem associar a fosfina à presença de vida em Vênus. Provavelmente, se ainda sobreviverem até lá, microrganismos como as bactérias serão os últimos seres vivos a sobreviverem na Terra, antes que nosso planeta seja engolido pela expansão do Sol, daqui a cinco bilhões de anos. O maior serviço que os microrganismos vêm prestando ao restante dos seres vivos da Terra é decomposição de matéria orgânica. Na longa cadeia alimentar na qual se baseia a vida, os organismos produtores são aqueles que, como as plantas, produzem seu próprio alimento. Em seguida há os macroconsumidores, que se nutrem da matéria orgânica de outros seres vivos, localizados abaixo 132
deles na escala de alimentação. São os herbívoros, os carnívoros e os animais onívoros. Descendo a escala, encontramos os microconsumidores, que tanto podem ser pluri ou unicelulares e se alimentam da matéria orgânica morta, ou por parasitismo, como os cerca de 390 trilhões (390.000.000.000.000) de microrganismos que cada ser humano carrega em seus intestinos. Por fim, existem os decompositores, os mais importantes em toda esta longa cadeia da vida, pois decompõem e retornam à natureza o que restou no “final de tubo” de todo o processo. Dissolvem tecidos orgânicos, quebram moléculas e assim repõem elementos como o nitrogênio, oxigênio, ferro, enxofre e carbono de volta ao solo, de onde estes elementos são reabsorvidos pelas raízes das plantas (organismos produtores), dando início novamente ao ciclo da vida, enquanto ela perdurar sobre a Terra. A saúde de um solo depende diretamente da quantidade de microrganismos e outros pequenos animais que o habitam. Em 1cm³ de solo de pastagem, por exemplo, podem ser encontrados milhões de bactérias, milhares de protozoários, centenas de metros de hifas de fungos, centenas de térmitas e outros insetos, além de outros organismos. Se todo este imenso ecossistema habita apenas 1 cm³ de solo, tentemos imaginar as centenas de trilhões (ou serão mais) de organismos que vivem em solos como o da Amazônia ou do Cerrado. Assim, é fácil compreender porque o desmatamento, a queima da vegetação, o uso de agrotóxicos, a monocultura extensiva e a erosão destroem a terra. Todo bom agricultor sabe que em média formam-se 10 t/ha/ano (dez toneladas por hectare por ano) de solo novo, enquanto que as perdas de anuais, dependendo de como é manejado, podem chegar de 120 a 150 t/ha. Além de influir na qualidade do solo, os microrganismos também atuam na atmosfera e na água. O fitoplâncton é um organismo microscópico fotossintetizante, encontrado principalmente nas algas. Além de ser uma das bases da cadeia alimentar dos ambientes aquáticos, também é o maior responsável pela produção de oxigênio no planeta. Não são as grandes florestas equatoriais as que mais retiram o dióxido de carbono (CO²) da atmosfera. Estas atuam como grandes umidificadores e refrigeradores da atmosfera, além de produzirem grandes quantidades de chuva. Os grande purificadores do já poluído e aquecido ar do planeta, são os diminutos fitoplânctons. 133
Os microrganismos, as bactérias especialmente, são os criadores e mantenedores da vida no planeta. São nossos antepassados muito, muito remotos e, com certeza, depois que nossa espécie tiver desaparecido, seja por que motivo for, eles ainda estarão aqui por muito tempo. Foram os primeiros a chegar e serão os últimos a sair.
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Pandemia e ação de governos
O Brasil, assim como todos os outros países, encontra-se em meio a uma pandemia virótica. No momento em que escrevemos este artigo, mais de 28,7 milhões de pessoas já foram infectadas em todo o mundo, com 922 mil mortes. No Brasil há, até o momento, aproximadamente 4,3 milhões de casos, e ocorreram cerca de 131 mil mortes. As estratégias de combate à pandemia são basicamente as mesmas, seguindo padrões (atualmente costuma-se falar em protocolos) já estabelecido pelas organizações para enfrentar outras pandemias passadas. Isolamento social, principalmente para grupos de risco, uso de proteção das vias respiratórias (máscaras) e muita higiene pessoal – principalmente a lavagem das mãos. Essas medidas, se bem aplicadas, podem ser bastante eficientes para manter a pandemia sob controle até que ela diminua. Adicionalmente, outra medida fortemente recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), foi a testagem e o isolamento de pessoas contaminadas, e de todas aquelas com as quais estas tiveram contato. Tal medida foi bastante efetiva na China, onde a pandemia teve início e foi eficientemente controlada, na Alemanha, na Coréia do Sul, Taiwan e Singapura. Já países como a Inglaterra, os Estados Unidos, a Suécia e o Brasil, cujos dirigentes primeiramente negaram ou relativizaram a gravidade surto virótico, não implantando medidas de isolamento para a população e não testando suas populações, atingiram – e o processo continua – um alto número de infectados, mesmo com medidas profiláticas implantadas em uma fase avançada de disseminação da doença entre a população. A maneira de como governos atuaram no combate à doença até agora, tem muito a ver com seus regimes políticos, a situação de suas economias, a reação de seus dirigentes empresariais, de seus médicos e até da própria índole de seus dirigentes. Personalidades autocráticas na forma de governar, alguns líderes como Trump, Bolsonaro e Orbán, tentaram de início conduzir o combate da pandemia de forma personalista, pouco ou nada atentando para os conselhos 135
de especialistas e as informações da ciência. São dessa fase as declarações de que “o vírus não é perigoso e desaparecerá sozinho” (Trump) e “que se trata apenas de uma gripezinha” (Bolsonaro). Num fase seguinte do surto, ambos passaram a insistir no uso de medicamentos sem efeito terapêutica algum ou podendo causar até efeitos colaterais, como no caso da hidroxicloroquina. Trump chegou até a sugerir a ingestão de desinfetante no combate à doença. Os fatos se precipitaram, o número de casos e de mortes aumentou exponencialmente, e durante esse processo Trump teve vários atritos com especialistas responsáveis pela condução da crise. No Brasil, o ministério da Saúde foi sucessivamente ocupado por dois médicos dos quais o primeiro foi demitido e o segundo pediu demissão. O substituto temporário ainda continua sendo um general, especialista na área de intendência, sem conhecimentos médicos e menos ainda de pandemias. Inútil nesta fase da pandemia voltar às longas discussões havidas tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos – e, em parte, na Hungria de Orbán – sobre a necessidade de quarentena; quarentena horizontal, quarentena vertical. Discussões aparentemente técnicas, mas que tinham provavelmente o objetivo de desacreditar as medidas profiláticas e de organização do combate à pandemia. Assim, ocorreu que medidas rígidas de isolamento não foram sistematicamente implantadas, o que fez com que, segundo alguns especialistas, a duração da pandemia fosse estendida e o número de contaminados maior. O auxílio emergencial, que permite que pessoas sem qualquer tipo de renda possam permanecer isolados, no caso do Brasil, só começou a ser distribuído a partir de final de abril de 2020, depois de muitas negociações entre o governo e o Congresso. A partir de setembro os número de casos de infecção pelo coronavírus está caindo no Brasil. Em outros países da Europa, parece estar começando uma segunda onda de contaminação, depois que parte das atividades econômicas começaram a ser retomadas. A gradual normalização da situação, seja em seus aspectos políticos, econômicos, sociais e médicos, só virá com a disponibilidade de uma vacina. Mas, mesmo sobre este tema ainda pairam dúvidas, o que dá margem a muita 136
desinformação e circulação de notícias falsas. Não se sabe ainda, por exemplo, quando a vacina estará disponível. Os mais otimistas já preveem possibilidades de imunização a partir de dezembro de 2020, outros durante o primeiro trimestre de 2021 e os mais pessimistas somente mais tarde. Também existem os grupos que dizem confiar somente na vacina de certo país ou empresa, como se para qualquer vacina não fosse mandatório atingir certos padrões de efetividade. Outros, querendo ser mais originais ainda, dizem que, seguindo as afirmações do presidente, “ninguém é obrigado a tomar vacina” e que não tomarão a vacina. Enfim, falta de informação, ausência de diretrizes que deveriam ser estabelecidas pelo órgãos competentes, entre outras coisas. Esta não foi a primeira e não será a última pandemia a afetar a humanidade. Cientistas já anteveem a chegada de novas pandemias viróticas, inevitáveis, segundo eles, dada a invasão e destruição de áreas selvagens remanescentes, forçando microrganismos a procurarem novos hospedeiros – animais domésticos, de abate e humanos. Uma das lições que mais uma vez se confirma é que o desenvolvimento social e político não é uma constante na história humana, mesmo na civilização ocidental, que teve início com a queda do império romano. Povos e nações podem retroceder à ignorância, à credulidade infantil e ao fanatismo em pouco tempo. Já vimos isso no século XX e novamente agora, durante a pandemia, vemos se repetirem as estratégias de grupos que apostam na desinformação e no embrutecimento, tirando das pessoas sua capacidade de analisar os fatos com racionalidade e bom senso. Já sabemos com que objetivos.
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Fome, agricultura e mais fome
Robert Malthus (1766-1834) foi economista, pastor e professor britânico, considerado o pai da moderna demografia. Formulou a teoria de que populações humanas crescem em progressão geométrica, enquanto que os meios de subsistência só poderiam em crescer em progressão aritmética. Estes princípios teóricos influenciaram Charles Darwin (1809-1882) na formulação de sua teoria da evolução das espécies, além de economistas como David Ricardo (17721823). A escassez de meios sempre foi uma das maiores preocupações do homem, desde sua origem, e é o fundamento de toda a atividade econômica. Obter recursos para sobreviver; desde a organização de uma caça na préhistória, a preparação de campos para a plantação do trigo no Antigo Egito, passando pela construção de silos de armazenagem na França medieval, até o planejamento e a operação das modernas cadeias de produção e distribuição. O homem sempre teve que conviver e tentar superar a escassez de recursos: alimento e abrigo. Sob certo ponto de vista, todas as principais criações da espécie humana – a agricultura, o Estado, a religião, a tecnologia, a cultura – foram estimuladas pela necessidade de sobrevivência em um mundo no qual os recursos básicos, principalmente o alimento, são limitados. Tribos, Estados e impérios guerrearam por mais território, mais riquezas, mais poder e, além de tudo, por mais comida. A história humana é a narrativa dos seres humanos tentando saciar sua fome. Milhares de gerações pré-humanas e humanas, passaram grande parte de suas curtas vidas sem alimentação suficiente, desde a mais tenra idade até morrerem, quase todos com menos de 30 anos. As escavações arqueológicas em todas as regiões do globo dão conta disso; malformação de dentes e ossos foram comuns entre nossos antepassados. É difícil imaginar este quadro para nós, que vivemos em sociedades desenvolvidas, onde a maioria não passa mais fome e tem uma vida relativamente longa. Basta consultar o Google e pesquisar na Wikipédia fomes em massa, (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_fomes_em_massa) para encontrar uma 138
lista de mais de 170 ocorrências de períodos de fome desde o século V a.C. até nossos dias. Vale ressaltar que esta relação de eventos se refere apenas aos episódios conhecidos; imagine-se as fomes periódicas ocorridas desde a Antiguidade nas, já naquela época, populosas China e Índia, ou entre grupos humanos nas Américas, na África e na Austrália. A fome pela escassez de caça, provocada pelas mudanças climáticas ocorridas no final do período glacial do Pleistoceno, foi a principal razão pela qual nossos antepassados passaram a praticar a agricultura, há cerca de 10 mil anos. Da mesma forma, alterações do clima, como períodos prolongados de chuva ou seca e invernos mais longos, destruíram colheitas e sementes, provocando falta de alimentos. O mais conhecido exemplo de um tal tipo de desastre foi a Grande Fome de 1315-1317, na Europa. Excesso de chuvas e temperaturas baixas durante a primavera e o verão do ano de 1315, fizeram com que as sementes não germinassem. A falta de alimento para as populações e para os animais, deu início a uma cadeia de acontecimentos: fome, doenças, crimes, mortandade e até casos de canibalismo, fizeram com que 10% a 25% da população de muitas cidade e vilas perecessem. A fome sempre foi motivo de preocupação dos governantes desde a Antiguidade, mas foi com a Revolução Industrial que o problema se tornou mais premente para os Estados. As fábricas atraíram parte da população rural para as cidades, diminuindo a mão de obra na agricultura. Ao mesmo tempo, a indústria química passava a desenvolver os primeiros fertilizantes para o solo, com base nas pesquisas de Justus von Liebig (1803-1873), um dos iniciadores da química orgânica, que em 1840 publicou A química orgânica em sua aplicação à química agrícola e à fisiologia. A partir desse período a atividade agrícola poderia contar com o apoio efetivo da ciência, sem depender somente das técnicas desenvolvidas ao longo de milênios de experiência, mas ainda pouco eficientes. Assim, no século XIX e XX a agricultura começa a dispor de produtos químicos e máquinas, que aumentam em muito a produtividade. Nos anos 1960 e 1970 a biotecnologia começa a desenvolver sementes híbridas e transgênicas, mais resistentes às pragas e às intempéries, permitindo colheitas e lucros ainda maiores. No entanto, apesar de todos estes avanços, a problema mundial da fome ainda não estava eliminado. 139
O Clube de Roma, é uma associação de cientistas, acadêmicos, políticos, estadistas e empresários que vêm se reunindo desde 1968, para discutir assuntos relacionados com a economia internacional, com ênfase na questão ambiental e no desenvolvimento sustentável. Com relação à fome, o grande mérito dessa instituição foi relacionar a questão ambiental – o uso dos recursos naturais – com o tema da agricultura. Em 1972 o Clube de Roma contratou uma equipe do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts), chefiada por Donella e Denis Meadows, que elaborou um relatório, publicado sob o título de Os limites do crescimento. Tratando de assuntos como poluição, crescimento populacional, energia, saneamento e saúde, o relatório concluía que o planeta não suportaria o ritmo de crescimento da população, mesmo considerando os avanços tecnológicos futuros. Devido aos impactos ambientais provocados pela tecnologia (exaustão dos solos, uso de agroquímicos, destruição de áreas naturais remanescentes) poderia cair a oferta mundial de alimentos, ao passo que a população continuaria a crescer, o que provocaria crises de carestia de víveres. A situação apontada pelo relatório Os limites do crescimento parece não ter se confirmado – pelo menos até agora – no que se refere à produção de alimentos, graças à criação de uma técnica que reúne um conjunto de tecnologias para aumentar a produtividade da agricultura. Chamada de Revolução Verde, o método foi desenvolvido pelo engenheiro agrônomo norte-americano Norman Borlaug (1914-2009), introduzido a partir da década de 1960 nos Estados Unidos e na Europa, disseminando-se pelo mundo nos anos 1970. A técnica se baseia no uso intensivo de sementes alteradas, insumos industriais (agrotóxicos e fertilizantes), larga mecanização e emprego intensivo de tecnologia. A Revolução Verde contribuiu em grande parte para aumentar a produção agrícola de países com grande população como a China e a Índia, que sem este tipo de agricultura enfrentariam constantes crises de desabastecimento alimentar. Por outro lado, além de aumentar a produção agrícola, a Revolução Verde também ajudou a transformar países como os Estados Unidos, o Brasil e a Argentina em grandes fornecedores de commodities agrícolas no mercado mundial. Criada em 1973, durante o período de introdução da Revolução Verde no Brasil, a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária é um exemplo do sucesso desta 140
tecnologia. Desenvolvendo pesquisas e produtos voltados para a atividade agrícola e pecuária, a empresa tornou-se o maior centro de know-how nesta área para regiões tropicais em todo o mundo. Grande parte do êxito obtido pelo agronegócio a partir dos anos 1980, deve-se às atividades cientificas desenvolvidas por esta instituição. Se, por um lado, o tecnologia da Revolução Verde trouxe maiores colheitas, por outro lado também provocou impactos. A produção agrícola baseada em grandes áreas, o sistema plantation, tem forte impacto sobre o meio ambiente, devido ao uso extensivo de terras e intensivo de fertilizantes e agroquímicos, diminuindo a biodiversidade original do solo, ao mesmo tempo em que pode contaminar os recursos hídricos com produtos químicos. Os principais produtos produzidos atualmente pelo agronegócio brasileiro são: soja, cana de açúcar, café, milho, algodão, laranja, mandioca, arroz, cacau e celulose, destinados em grande parte à exportação. Por outro lado, 70% dos alimentos consumidos no mercado interno são produzidos pelas pequenas propriedades agrícolas, cujo nível de capacitação, capitalização, mecanização e uso de tecnologias de ponta é relativamente baixo, se comparadas às cerca de 400 mil empresas do agronegócio moderno. Apesar da grande expansão da agricultura a partir dos anos 1970, acompanhando o crescimento populacional, a fome não foi erradicada no mundo. Segundo dados disponíveis na ONU, em 2019 a fome atingia 820 milhões de pessoas em todo o planeta, mas principalmente na África. Países que já sofriam de insegurança alimentar antes do surgimento da pandemia, causada por conflitos armados, secas prolongadas e depressão econômica, se tornaram ainda mais vulneráveis com o surto da doença. Burkina Fasso, Nigéria, Somália, Sudão, República Centro-Africana, entre outros, já se encontram em graves crises alimentares, fator que provoca ainda mais conflitos e movimentos de refugiados para outros países. Além dos aspectos ambientais e políticoeconômicos, muitos países também não dispõem de suficientes recursos financeiros para adquirir alimentos no mercado internacional, cujos preços, principalmente dos grãos e leguminosas, encontram-se ainda mais inflacionados desde o surgimento da pandemia. Segundo um estudo da consultoria McKinsey, a alimentação do mundo é baseada principalmente em quatro grãos: arroz, trigo, 141
milho e soja, que constituem quase a metade das calorias de uma dieta global típica. Por outro lado, aproximadamente 60% da produção mundial de alimentos ocorre em apenas cinco países: Argentina, Brasil, China, Estados Unidos e Índia. No Brasil a fome sempre foi endêmica, tendo diminuído com o desenvolvimento de uma prática agrícola mais moderna, notadamente a partir dos anos 1970. Mesmo assim, sempre houve bolsões de fome, principalmente na região Nordeste, associados à pobreza. O programa Fome Zero foi criado em 2003 durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva, substituindo e ampliando o programa Comunidade Solidária, implantado no governo de Fernando Henrique Cardoso. Para atender cerca de 44 milhões de pessoas ameaçadas pela fome à época, o programa foi desenvolvido com um conjunto de mais de 30 iniciativas complementares, com o objetivo de atacar as causas da fome e da insegurança alimentar. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e a Agricultura (FAO), a insegurança alimentar dividese em três categorias: a) a insegurança alimentar leve, quando existe preocupação com acesso à comida e queda na qualidade dos alimentos; b) a insegurança moderada, quando há uma redução na quantidade de alimentos e quebra nos padrões de nutrição entre adultos; e c) grave, com redução quantitativa de alimentos também entre crianças. A fome torna-se uma experiência concreta no lar. Em nosso país, entre 2013 e 2018, a insegurança alimentar nos domicílios cresceu em 62,4%, atingindo 10,3 milhões de pessoas. A situação é pior no Nordeste e na região Norte, onde respectivamente apenas 49,7% e 43% dos domicílios tiveram acesso pleno e regular aos alimentos. Nas outras regiões o acesso regular a alimentos chega a 79,3% (Sul); 68,8% (Sudeste) e 64,8% (Centro-Oeste). Desde 2014 o Brasil havia deixado de constar na relação do Mapa da Fome – países que têm mais de 5% da população ingerindo menos calorias do que o recomendável. Em 2019, no entanto, a FAO alertou o governo brasileiro de que o país poderia vir a reintegrar esta lista. Ainda em relação a isto, dados do IBGE informam que cresceu em três milhões o número de pessoas em situação de insegurança alimentar grave nos últimos cinco anos. O percentual dos brasileiros com alimentação satisfatória, atingiu o patamar
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mínimo dos últimos 15 anos. A estatística inclui apenas os moradores de domicílios permanentes, excluídas as pessoas em situação de rua. O Brasil é o segundo maior produtor mundial de alimentos, depois dos Estados Unidos. No entanto, paradoxalmente, enfrentamos uma alta nos preços dos produtos agrícolas de maior consumo, como o arroz (25,55% em 12 meses), o feijão (48,37%), óleo de soja (23,51%) o leite (18,79%), a carne, ovos e vários outros produtos constantes da cesta básica de alimentação. A alta dos preços, segundo especialistas, deve continuar pelo menos para alguns produtos, o que prejudicará ainda mais grande parte da população, que continua sem recursos financeiros como consequência da pandemia – situação que será agravada com o término do auxílio emergencial a partir de 2021. Com o recebimento do auxílio emergencial da pandemia, muitas pessoas tiveram mais dinheiro para comprar alimentos do que teriam em situação normal. Só isso nos dá uma ideia do grau de pobreza e até de miserabilidade em que vive parcela considerável dos brasileiros – cerca de 30% da população, aproximadamente 62 milhões de pessoas. Alegam alguns economistas que com os recursos do auxílio emergencial os pobres aumentaram o consumo de alimentos, o que provocou o aumento de preços pelo comerciantes. A maior parte dos especialistas, no entanto, dá como origem do aumento dos preços dos alimentos exatamente a falta deles, provocada pelo crescimento de suas exportações, tornadas mais vantajosas com a alta do dólar. Assim, enquanto desde o mês de junho o setor do agronegócio aumentava exponencialmente suas exportações, principalmente de arroz, o governo federal já não dispunha de estoques reguladores de alimentos básicos. A iniciativa de abolir os estoques reguladores, comuns na maioria dos países com grande população, foi tomada pelo governo do presidente Temer, e assim permaneceu até agora. Desta forma – mais um paradoxo destes tempos tão estranhos – um dos maiores países produtores e exportadores de arroz terá que importar arroz para abastecer sua população. No entanto, este arroz importado chegará ao consumidor a um preço mais alto do que vinha se pagando pelo grão produzido internamente. Não se pode culpar os produtores e comerciantes por quererem ganhar mais, aproveitando as condições favoráveis, mesmo que à custa dos consumidores internos. O que se espera, todavia, é que o governo volte a retomar a inteligente 143
e previdente prรกtica de formar estoque reguladores de certos produtos de primeira necessidade.
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Pandemia e desânimo
O humor do brasileiro mudou bastante nos últimos meses. O isolamento social, constante ou ocasional, requerido como principal profilaxia na prevenção da contaminação pelo covid, contribuiu para que muitas pessoas se tornassem mais ansiosas, agressivas e deprimidas. São mais comuns do que antes as cenas de discussão ou briga em locais públicos, nas filas ou no trânsito. Especialistas dizem que este tipo de comportamento está se tornando rotina em todos os países; não é exclusividade de nossa sociedade. Esta exasperação dos ânimos, no entanto, não é uma ira. A ira, segundo o filósofo Byung-Chul Han “é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado.” ¹ No entanto, devido às circunstâncias e à ação da própria pandemia, estamos num estado constante de irritação. Uma irritação que gera conflito entre as pessoas e o abatimento dos ânimos. Ainda segundo Byung-Chul Han “Hoje, cada vez mais ela (a ira) cede lugar à irritação ou ao enervar-se, que não podem produzir nenhuma mudança decisiva. Assim, irritamo-nos também por causa do inevitável. A irritação está para a ira como o medo está para a angústia.” ² O inevitável, neste caso, é a pandemia e todas as suas consequências. Em casos extremos, este sentimento de impotência, de impossibilidade de reação – contra todas as circunstâncias sociais, médicas e econômicas relacionadas com o covid – pode dar início a um processo psíquico de desânimo e prostração. Em alguns casos pode chegar ao suicídio, cujos índices mundiais aumentaram consideravelmente. Dados do governo americano informam que em junho de 2020 40% dos adultos entrevistados, relataram estarem com algum tipo de distúrbio mental, ou dificuldades por abuso de substâncias de uso controlado. O mal estar geral teve início quando ainda não haviam perspectivas de uma vacina contra o vírus, no início da pandemia. Os noticiários informavam as centenas de mortes e as milhares de contaminações diárias, aqui no Brasil e mundo afora. Isso fez com que parte da população mundial ficasse sem ação, 145
como que paralisada. Era certo que, cedo ou tarde, as dezenas de equipes de cientistas, trabalhando em vários laboratórios do globo, encontrariam um antídoto para a doença. Mas, quanto demoraria para que este medicamento estivesse disponível? A economia mundial encontrava-se paralisada; fábricas, centros de distribuição e lojas fechados. Milhões de pessoas sem trabalhar e muitos sem nenhum rendimento, por quanto tempo? E depois de controlar a doença, como as economias se recuperariam? Para muitos, estava se tornando claro, que a retomada das atividades econômicas não ocorreria imediatamente. Não era como um carro estacionado, no qual bastaria entrar, dar a partida, engatar a marcha e imediatamente colocar a máquina em movimento novamente. Não, como estamos vendo principalmente na economia brasileira, que já vinha em desaceleração desde 2014, tudo está sendo e será bem mais difícil do que muitos governos propalavam. Segundo o relatório “Brasil Pós-Covid 19 – Contribuições do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (ipea)”, preparado pela própria instituição vinculada ao Ministério da Economia, “a complexidade do contexto atual indica que o país está vivendo um momento crítico e de potencial inflexão para a trajetória nacional de desenvolvimento.” ³ Efetivamente, o país nunca passou por uma crise econômica e social destas proporções, em todo o seu período republicano. A situação não vai se resolver simplesmente pelas forças cegas da economia – “a mão invisível do mercado”, como a chamam ainda alguns renitentes economistas neoliberais. Em situações como estas, de grandes crises econômicas e sociais provocadas por guerras ou fenômenos naturais, o Estado (leia-se governo) precisa intervir, a fim de recuperar a atividade econômica, reforçar e reconstruir instituições e serviços públicos, garantindo a segurança da população. Em relação a isso, ainda acrescenta o relatório do ipea: “Nesse sentido, propostas de políticas públicas e evidências robustas e objetivas são insumos críticos para norteamento da ação governamental de curto, médio e longo prazo.” 4 É necessário estabelecer uma política econômica abrangente para o país, visando a recuperação econômica e, principalmente, a melhoria das condições 146
de subsistência de milhões de brasileiros, que do nível econômico da classe média caíram para a pobre e desta para a miserável. Pequenas reformas, privatizações e cortes ou remanejamentos de recursos de uma pasta para outra, não impulsionarão a atividade econômica de modo sustentável. O país perdeu e provavelmente ainda perderá milhões de postos de trabalho, se o Estado não agir como indutor do processo de recuperação e organização da atividade econômica. A economia não pode permanecer indefinidamente estagnada, fazendo com que parte considerável da população venha a depender de programas sociais de ajuda do governo, muitas vezes de caráter clientelista – programas que classificados como populistas, foram tanto criticados em outros governos. Talvez o cansaço e o desânimo das pessoas, o pessimismo em relação ao futuro da economia para 41% da população, segundo pesquisa recente do Datafolha, seja uma continuidade do processo que começou em 2016 e se acentuou com a pandemia. A falta de perspectivas de desenvolvimento pessoal através do estudo, de acesso à cultura e de cargos melhor remunerados, são as principais causas do desalento de parte da população, principalmente os jovens. Não são palavras de ordem falsamente patrióticas, ou propagandas espetaculosas aparentemente nacionalistas, que mudarão o humor e elevarão o ânimo das pessoas. Planejamento, projetos e ações concretas, implantados de forma coerente, sem as constantes idas e vidas, e efetivamente cobrando a contribuição do capital; estas sim, são ações que farão a diferença.
1. Han, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Editora Vozes. Petrópolis, 2015, p. 54 2. Ibid., p. 54 3. Ipea. Brasil Pós-Covid 19. Ministério da Economia. Brasília, 2020, p. 8 4. Ibid., p. 8
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Esporte e incentivo ao esporte no Brasil
A prática de esportes é bastante antiga e remonta provavelmente à época em que se estabeleceram os primeiros agrupamentos humanos organizados politicamente, como cidades-estado, reinos e impérios. Inicialmente a prática esportiva tinha como principal objetivo valorizar as aptidões para a caça e a luta em batalhas. No antigo Egito, os esportes já eram praticados de forma regular, com objetivo de exercitar e fortificar o corpo e manter a saúde. O pugilato, a natação e campeonatos de caça e pesca eram praticados em muitas cidades ao longo do Nilo. Foram porém os gregos que diversificaram e sistematizaram a prática esportiva como fim em si mesmo, organizando os primeiros campeonatos esportivos dos quais se tem notícia. Através de um acordo de paz selado no ano de 776 a.C., entre diversos reis que estavam constantemente em guerra, foram criados na cidade de Olímpia os Jogos Olímpicos gregos da Antiguidade. Enquanto durasse o torneio, todas as atividades bélicas eram suspensas, permitindo que todos os cidadãos capacitados da Grécia pudessem treinar e participar deste grande festival esportivo. Os jogos aconteciam no verão, nos meses de julho e agosto, e eram dedicados a Zeus, no caso das competições masculinas, e a Hera, nos torneios para as mulheres. As práticas esportivas gregas entraram em decadência, junto com sua civilização. Os romanos, sucessores culturais dos helenos, mantiveram a realização das competições esportivas e valorizavam a prática dos exercícios físicos, especialmente as classes mais abastadas e instruídas, influenciadas pela cultura grega. Na Roma clássica era famosa a citação atribuída ao poeta romano Juvenal (55-127 d.C.): “Mens sana in corpore sano” (uma mente sã em um corpo são); parte de um poema sobre o que as pessoas deveriam valorizar na vida. Mas Roma se destacou principalmente pela prática do esporte voltado às atividades guerreiras e aos espetáculos no circo romano, como as lutas entre gladiadores e com animais selvagens, até as batalhas navais.
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Na Idade Média, de forma geral, a prática do esporte era pouco valorizada. A forte influência da religião cristã, com sua doutrina de menosprezo do corpo, tido como instrumento de pecado, fez com que as atividades esportivas públicas fossem desaprovadas. Os medievais, notadamente a partir do século XII, organizavam rodeios de combates com lanças e espadas; técnicas de treinamento dos cavaleiros para batalhas que travariam entre si e contra os mouros durante as Cruzadas. É interessante apontar a relação entre o desenvolvimento do capitalismo industrial, a migração de grandes contingentes populacionais do campo para as cidades e o aumento do sedentarismo em parte da população. Longe da vida do campo, morando em cidades com certa facilidade de transporte, grande parte da população – inclusive os operários fabris – tinha menos atividade física do que no campo, na lide agrícola. A poluição do ar e as péssimas condições de higiene e saneamento nos grandes centros industriais como Londres, Paris, Nova York, Manchester e outras, também contribuíram para que médicos sanitaristas se preocupassem crescentemente com os “miasmas”; odores fétidos originados em solos contaminados e matéria em putrefação. Segundo a medicina da época, estas emanações causavam diversas doenças (a teoria microbiana ainda não era conhecida); daí a necessidade de se afastar de tais emanações, exercitar o corpo e colocá-lo em contato com o ar puro, longe dos locais contaminados. Não é coincidência, que os primeiros parque públicos fossem construídos em zonas estratégicas das grandes cidades, destinados ao lazer dos trabalhadores, como o Central Park, em Nova York, o Bois de Boulogne, em Paris e o Parque da Luz, em São Paulo. Historicamente, a prática dos esportes como atividade de lazer – e não como treinamento de soldados ou policiais – quase sempre foi uma atividade exclusiva das elites econômicas e dos nobres. No entanto, com a conquista de diversos direitos pelas classes trabalhadoras ao longo do desenvolvimento do capitalismo no século XIX, incluindo mais tempo de descanso e melhores salários, também se ampliaram as opções de lazer dos trabalhadores. A prática esportiva, historicamente reservada às elites econômicas, começa a se difundir nas regiões mais populosas e industrializadas. Assim, na Inglaterra e em outros países industrializados da Europa, no final do século XIX, começam a se organizar 149
clubes para a prática do futebol, do rúgbi e outros esportes de apelo popular. Formam-se os clubes de ginástica e a pratica da atividade física passa a ser incorporada às escolas e às políticas públicas de muitos governos. Retoma-se assim, no final do século XIX, o ideal grego de valorização dos esportes como principal instrumento para fomentar a convivência harmoniosa entre os diversos povos e nações do planeta. Foi o francês Pierre de Fredy, o Barão de Coubertin (183-1937), quem depois de uma visita a colégios dos Estados Unidos e na Inglaterra, propôs melhorar o sistema de educação através do incentivo às práticas esportivas. Para isso decidiu retomar o ideal grego dos Jogos Olímpicos, divulgou a ideia entre os principais governos da Europa e, em 1896, conseguiu realizar a primeira Olimpíada dos tempos modernos simbolicamente em Atenas, na Grécia. O Brasil não participou das primeiras cinco edições dos Jogos Olímpicos, tendo começado sua participação regular a partir de 1920, com uma ausência ainda na Olimpíada de Amsterdã em 1928. Nossa melhor participação foi na Olimpíada de 2016, realizada no Rio de Janeiro. Ao longo dos vários torneios, o país nunca chegou a ganhar um grande número de medalhas, destacando-se, porém, na vela (7 medalhas de ouro e 3 de prata), no atletismo (5 ouro e 3 prata), no vôlei (5 e 3), no judô (4 e 3), e no vôlei de praia (3 e 7). No futebol, nossos times amadores não tiveram tanto sucesso, tendo obtido apenas uma medalha de ouro e cinco de prata. O número de vitórias brasileiras nas Olimpíadas e em outros torneios esportivos poderia ser bem maior, considerando o tamanho da população e as condições climáticas favoráveis para a prática de esporte ao ar livre, durante todo o ano. No entanto, para melhorar a participação brasileira neste tipo de atividade, faltanos, como em muitas outras áreas, uma estratégia com metas, planejamento e efetiva execução – não esquecendo o principal: destinar os recursos. No entanto, quando constatamos que nem um terço das escolas dos 5.570 municípios brasileiros têm aparelhos esportivos como quadras, vestiários, equipamentos e materiais – insto sem falar em piscinas ou pistas de treinamento para corridas – vemos que a prática esportiva e a formação de atletas não estão nos planos de nossos ministérios de Educação e Esportes. O descaso já chegou 150
a tal ponto, que o governo do presidente Bolsonaro extinguiu o Ministério dos Esportes. Nas escolas, a matéria “educação física” é pouco valorizada e chegouse a considerar sua eliminação do currículo escolar. Segundo reportagem do site G1, publicada em agosto de 2020, baseada em uma pesquisa realizada entre 1.500 escolas no país, identificou-se que em 9% das instituições de ensino entrevistadas a educação física não é obrigatória e em 2% não há nenhuma oferta de atividade esportiva. A matéria “educação física” é oferecida duas vezes por semana em 76% das escolas e somente 12% oferecem a disciplina três ou mais vezes por semana. A grande maioria das cidades brasileiras não dispõe de aparelhos esportivos, parques ou clubes públicos, onde a população possa praticar algum tipo de esporte em condições adequadas. O resultado disso é que nas cidades maiores e nas capitais, os parques municipais, que também não possuem instalações adequadas para a prática de esportes, fiquem apinhados de pessoas. Quando existe alguma infraestrutura, trata-se geralmente de um ginásio de esportes em mal estado de conservação ou um campo de futebol, transformado em uso exclusivo de um grupo de esportistas da região. Em suma, administrações públicas que não têm nenhuma consideração com a prática de esportes e com o lazer dos cidadãos. O que sobra como opção de prática esportiva são os clubes particulares, geralmente frequentados por cidadãos de alto poder aquisitivo, nos quais a participação é vedada ao cidadão comum, dados os preços proibitivos das mensalidades, joias, taxas de manutenção, etc. Enquanto o atual governo federal cortou 49% das verbas destinadas a investimentos em esportes em 2020, o Brasil é um dos maiores exportadores de jogadores de handebol, futebol e de atletas de diversas modalidades, que não encontram incentivo para continuarem com suas carreiras por aqui. Desde sempre são comuns os dramas de conceituados ginastas ou nadadores, que não recebem qualquer incentivo e precisam pedir por contribuições através dos meios de comunicação ou das redes sociais, para poderem participar de algum torneio no exterior. A conclusão a que se chega é que também nesta área, a dos esportes, a administração atual aposta na “mão invisível do mercado” como fomentador da prática esportiva. Há uma falácia por trás deste raciocínio: o mercado não está 151
preocupado em incentivar o desenvolvimento de qualquer área esportiva. O que o capital quer e faz – e este é o seu papel no sistema capitalista – é apoiar atividades, atletas, clubes, etc., que possam resultar em lucro, de preferência a curto prazo. Não é por outra razão que os programas ditos “esportivos” que pululam nas programações das TVs abertas todos os dias na hora do almoço e à noite, nas quartas-feiras à noite, nos sábados e nos domingos de tarde e à noite, falam quase exclusivamente de futebol. Futebol é no momento o único esporte que está trazendo algum retorno financeiro aos investidores – seja no merchandising das camisas dos jogadores, nos eventos dos times ou na propagandas da TV. Este é o quadro que se apresenta há anos. A crise econômica que o país atravessa desde 2014 e que se aprofundou com a pandemia do coronavirus tornou tudo mais difícil e sem perspectivas. Enquanto o esporte, desde a escola até as Olimpíadas ou os campeonatos esportivos, for encarado apenas como uma questão de negócio, sem nenhuma visão estratégica de promoção do país e de seu potencial, não haverá mudanças.
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A volta da covid e a indiferença de muitos
A pandemia não acabou. Mesmo assim, parecia que em todo o mundo a doença havia sido debelada. Era comum, através das reportagens, vermos pessoas jovens e velhas andando sem máscara, retomando normalmente suas atividades, frequentando locais públicos e interagindo com outras pessoas, inclusive em locais públicos. Foi assim que a maior parte da população europeia teve a impressão de que a covid havia passado. Os casos diminuíram, as medidas de segurança e profilaxia foram afrouxadas, e, aos poucos, instalou-se uma situação de “já passou”. No entanto, ao longo das últimas semanas, numa progressão exponencial, os casos de novas infecções com o vírus foram aumentando. Espanha, França, Itália e Inglaterra viram as vítimas aumentarem rapidamente, forçando seus governos a reintroduzirem medidas de contenção da circulação de pessoas, aglomerações e contatos. Quando parecia que, lentamente, a vida das pessoas e a economia estavam voltando ao normal, a Europa voltou aos níveis de contaminação e internação de doentes de seis meses antes. Outras parte do mundo, como a Índia, o Paquistão, o Irã e o Japão também enfrentam o recrudescimento da pandemia. Nos Estados Unidos, onde a pandemia não diminuiu sensivelmente, a situação também piora, aumentando mais ainda o número de internações e mortes. No Brasil, por enquanto, há uma tendência de queda no número de novos casos de contaminação com o vírus, apesar da maneira desastrosa como o governo federal lidou com a pandemia. Transferiu praticamente toda a responsabilidade no combate à doença aos governos estaduais e às prefeituras. Testes, para identificação de pessoas contaminadas e seu posterior isolamento foram pouco realizados, apesar das constantes recomendações da Organização Mundial de Saúde. O presidente Bolsonaro e parte dos médicos brasileiros aderiram ao uso de medicamentos de efeito duvidoso, como a cloroquina e a azitromicina, cujo uso tem efeitos colaterais graves. Recentemente, disse que a vacina não seria
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obrigatória e, pressionado por seus seguidores, negou-se a comprar a vacina de origem chinesa Sinovac. A população pobre, como sempre acontece em situações de crise, está sendo a mais prejudicada; falta de água, de condições de moradia seguras, de recursos financeiros para manter o isolamento e, depois da fase aguda da pandemia, o desemprego. Os efeitos funestos da covid na economia ainda perdurarão por muitos meses, provocando o fechamento de empresas e de postos de trabalho. Os mais prejudicados são aqueles que não detêm reservas econômicas, os pobres. Mais um motivo para que se iniciem discussões sobre uma renda universal básica. Fato que chama a atenção dos analistas é a atitude negacionista de parte da população mundial, inclusive do Brasil. Não se trata de uma rebeldia contra as medidas de proteção impostas pelos governos – isolamento social, uso de máscaras, limitação da circulação de pessoas, etc. Também não é o tipo de atitude de oposição a prefeitos ou governadores, principalmente por motivos políticos, como ocorreu aqui no Brasil e em várias partes do mundo. É a atitude, consciente ou não, de não se usar máscaras de proteção, não se respeitar o isolamento social e outras práticas de proteção contra a doença. Parte destas pessoas, entre os quais muitos idosos e pessoas de grupos de risco, não está convencida da gravidade e mortalidade do vírus. Muitos, mesmo aqueles com mais alto nível de instrução, acreditam que o número de mortes anunciadas pelos veículos de comunicação – e que até agora não foram refutadas por autoridades e especialistas – são exagerados ou até inverídicos. A TV mostrou por diversas vezes as centenas ou milhares de pessoas em bares e restaurantes, aglomeradas e sem máscara, em muitas cidades mundo afora. Não têm preocupação com os riscos que correm, mesmo sabendo do perigo, que eventualmente pode ser mortal. Na maior parte dos casos, no entanto, não se trata de coragem consciente para, se necessário, enfrentar a doença e suas consequências, mas de uma estranha passividade. Daqui a cinquenta ou cem anos, quando historiadores estudarem o período histórico da pandemia, como interpretarão essa indiferença quase suicida?
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Resíduos sólidos urbanos, ainda um problema no país
Em dezembro de 2020 a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) completa dez anos. Assinada durante o governo de Lula da Silva, a Lei 12.305/10, segundo o Ministério do Meio Ambiente, “prevê a prevenção e a redução na geração de resíduos, tendo como proposta a prática de hábitos de consumo sustentável e um conjunto de instrumentos para propiciar o aumento da reciclagem e da reutilização dos resíduos sólidos (aquilo que tem valor econômico e pode ser reciclado ou reaproveitado) e a destinação ambientalmente adequada dos rejeitos (aquilo que não pode ser reciclado ou reutilizado)”. Trata-se de uma lei que, se bem aplicada, permitiria ao país gerenciar seus resíduos sólidos de maneira adequada, reduzindo o impacto ambiental das atividades econômicas e do consumo. A realidade, no entanto é bem outra. A aplicação da lei foi prorrogada por duas vezes pelo Congresso, já que a maioria do municípios não dispõem de recursos financeiros e capacidade técnica para implantar um programa municipal de gestão de resíduos. A simples coleta de lixo ainda não está disponível para cerca de 20 milhões de pessoas; 10% da população do país. Apenas 18% dos municípios brasileiros, localizados em sua maioria nas regiões Sul e Sudeste, têm coleta seletiva de lixo. Dados publicados no portal da Câmara dos Deputados em 2019 informam que apenas 3% do lixo gerado em todo o pais – cerca de 79,9 milhões de toneladas ao ano – é reciclado. Este percentual de reciclagem permanece praticamente inalterado há mais de dez anos, porque o reaproveitamento de materiais ainda é pouco rentável dentro da atual lógica de consumo. Outro indicador é que 49,9% dos municípios brasileiros ainda descarregam seus resíduos urbanos em depósitos ilegais ou irregulares, chamados de “lixões”, segundo dados recentemente publicados no Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (ISLU). Segundo a lei que institui a PNRS, estes lixões deveriam ter sido eliminados até 2014, mas o prazo de cumprimento da lei foi prorrogado até 2021. 155
É pouco provável que os municípios tenham recursos financeiros e humanos para implantarem sistemas de gestão de resíduos – coleta seletiva associada à coleta de lixo, sistemas de reciclagem e aterros sanitários regularizados – até o novo prazo estabelecido pelo Congresso para cumprimento da PNRS. Se há cinco anos a capacidade de pagamento da maior parte das cidades brasileiras já era complicada, a crise econômica e a pandemia do coronavírus estão dificultando mais ainda a situação de caixa dos municípios. Já em fevereiro de 2020, antes do início da pandemia, um levantamento da Confederação Nacional do Municípios (CNM) indicava que 69 prefeituras haviam decretado calamidade nas contas públicas e que 229 outras cidades estavam no mesmo caminho. A mesma confederação, informou em julho deste ano, que os municípios brasileiros tinham uma dívida de R$ 40 bilhões em precatórios. Também não é possível esperar por uma ajuda por parte do Ministério do Meio Ambiente ou do Ministério das Cidades – este último foi até extinto pelo atual governo, tendo sido incorporado ao Ministério do Desenvolvimento Regional. A questão ambiental deixou de ser tema relevante para o atual governo, e mesmo as secretarias de meio ambiente de muitos estados, cujos governadores foram influenciados pela política federal, deixaram de ter a importância que tinham em outras administrações. No âmbito municipal, a situação é pior ainda. Enquanto isso, a população do país continua a gerar resíduos, metade dos quais – aproximadamente 40 milhões de toneladas por ano – são descarregados em aterros sanitários irregulares ou, em casos mais graves, jogados em córregos e rios, em mangues, praias, ou em terrenos urbanos. A falta de programas de educação ambiental, seja nas escolas ou nos meios de comunicação também está contribuindo para tornar a situação ainda pior. Os resíduos, principalmente os plásticos, podem levar milhares de anos para se desfazerem. Mesmo assim, ao se desagregarem, podem se incorporar ao solo, à água e aos alimentos, provocando contaminação por acumulação. A maior parte da população, no entanto, nem se dá conta do que está ocorrendo. O lixo simplesmente desaparece da lixeira e quase ninguém se pergunta para onde foi levado. Um dia ficaremos sabendo e aí talvez seja tarde.
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Novas pandemias com a destruição da floresta?
Os microrganismos acompanham o homo sapiens desde o início de seu surgimento, há cerca de 200 mil anos. Os ancestrais humanos e outras espécies aparentadas – como o homo ergaster, passando pelo homo heidelbergensis e pelo homo neaderthalensis – para citar só alguns, também foram acometidos por doenças causadas pelos vírus. Ao longo de seu deslocamento partindo da África, pelo Oriente Médio, em direção à Ásia e daí para a Oceania, onde chegou há cerca de 50 a 60 mil anos em sucessivas levas de migração, o homem interagiu com diversos tipos de microrganismos, notadamente os vírus. Vestígios de sítios localizados ao longo desta rota de migração, habitados por nossos antepassados, estão sendo escavados e analisados. Nos resíduos estão sendo coletados microrganismos, cujo DNA ou RNA (compostos orgânicos que contêm as instruções genéticas para o desenvolvimento da vida) estão sendo analisados. Fato interessante observado pelos pesquisadores, é que ao longo do tempo que estes grupos humanos levaram para se deslocar, os microrganismos também sofreram mutações. Em seu livro A história da humanidade contada pelo vírus, o médico infectologista e professo brasileiro Stefan Cunha Ujvari escreve: “O vírus HPV (papilomavírus humano) [...] multiplica-se no organismo infectado e sofre mutações constantes. Os vírus descendentes apresentam cópias diferentes do seu DNA. Gerações futuras do vírus inicial serão geneticamente diferentes. Cada grupo humano que se desgarrou dos demais levou consigo vírus responsáveis por uma geração geneticamente diferente dos demais que ficaram para trás. [...] Comparando as alterações do seu DNA em populações nativas de regiões diferentes, podemos traçar a rota percorrida pelo vírus HPV que coincidiria com o trajeto de seu carregador, o homem moderno.” Assim, interagindo com a própria e outras espécies ao longo de sua evolução, deslocando-se através de diversos tipos de ambientes, o homem entrou em contato com diversas espécies de microrganismos, que passaram a seguir os 157
grupos humanos por todo o planeta. Há inúmeros casos desta convivência e evolução conjunta – biólogos evolucionistas chamam-na de coevolução – entre seres humanos e espécies microscópicas. Um exemplo interessante, descrito no livro de Ujvari, é o da bactéria Helycobacter pylori, descoberta recentemente como a causadora da úlcera do estômago, que até há pouco tempo era imputada ao uso inadequado de antibióticos. A bactéria é facilmente transmissível entre pessoas, e desta forma também pode se propagar junto com os deslocamentos das populações. Assim, através de estudos comparativos entre as diversas cepas de bactérias H. pylori (mutações) colhidas diretamente de indivíduos de diversas partes do globo, descobriu-se que a Helycobacter pylori é originária da África, acompanhou os humanos em seus deslocamentos pelo Oriente Médio e Europa, até chegar à extremidade do continente asiático. Sempre através da transmissão oral ou objetos contaminados. Até mesmo os primeiros povos que adentraram as Américas através do estreito de Behring, já traziam a bactéria em seus estômagos. A dispersão de bactérias e vírus se deu de diversas formas, ao longo da préhistória e da história. Um tipo de tuberculose, a catapora, a AIDS, a herpes, a sífilis, as gripes e vários outros tipos de doenças causadas por microrganismos, também fizeram o mesmo trajeto, sempre levadas pelas populações humanas em suas migrações, no comércio, nas guerras e nas viagens exploratórias – mais recentemente, poderíamos acrescentar o turismo também a esta lista. A maior parte destas doenças, principalmente as viróticas, têm uma origem atualmente bastante estudada e conhecida em seu processo de dispersão. Transcrevemos aqui mais um trecho do livro A história da humanidade contada pelos vírus: “Todo vírus da natureza precisa de auxílio de outro ser vivo para se reproduzir. Isso ocorre porque ele é constituído apenas do seu material genético, seja DNA ou RNA. E, ao contrário das bactéria, não contém o maquinário celular necessário para sua reprodução. Por isso invade a célula de um organismo vivo (animal ou vegetal) para emprestar sua moléculas, copiar o seu próprio material genético e construir novos vírus. Sob seu comando, as células invadidas produzem cópias de seu envelope para enclausurar o seu DNA ou RNA já replicados. Formam inúmeros novos vírus iguais ao invasor. A ‘prole’ é expulsa
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e está apta para repetir a operação.” É através deste processo que também se dá a propagação, nos organismos, do atual vírus Covid-19. Parte das doenças, principalmente as viróticas que nos afligem até hoje, foram adquiridas
através
do
contato
com
animais
selvagens,
portadores
assintomáticos destes vírus. Isto ocorreu em uma fase mais primitiva do desenvolvimento das sociedades humanas, quando este grupos – caçadores, pastores e coletores – ainda viviam em ambientes selvagens. Outra parte maior destas moléstias virais tem origem no contato humano com seus animais de criação; como os porcos, as cabras, carneiros, vacas e galinhas, entre outros, já durante a fase em que a humanidade começava a praticar o pastoreio e a agricultura. As espécies domesticadas, em contato com ambientes ou animais selvagens (o habitat de vírus ainda desconhecidos) como camundongos, aves selvagens, e morcegos, eram contaminadas. Destes animais domésticos, através da ingestão de sua carne, sangue, leite ou contato com suas secreções, os vírus podiam, em alguns casos, “pular” para o organismo humano. Este processo chama-se transbordamento. No artigo intitulado O elefante negro, publicado na revista Piauí de outubro de 2020, escreve o jornalista e documentarista João Moreira Sales: “Transbordamento é o termo que descreve o evento no qual um patógeno salta de um animal para o seu primeiro hospedeiro humano. A pandemia causada pelo Sars-CoV-2 nos familiarizou com doenças dessa natureza, as chamadas doenças zoonóticas, aquelas que passam de animais não humanos para humanos. Raiva, doença da vaca louca, carbúnculo (ou antraz), Sars, zika, peste bubônica – todas nos chegaram via reino animal. Mais de 60% das cerca de 400 doenças infecciosas identificadas desde 1940 são zoonóticas.” O risco de um aumento das doenças zoonóticas existe e pode aumentar. À medida em que o homem avança sobre as últimas áreas ainda pouco exploradas, como as remanescentes florestas tropicais, a possibilidade de um encontro
com
patógenos
endêmicos
e,
consequentemente,
de
um
transbordamento, aumenta. A destruição de um ecossistema e de seus membros – muitos deles, como os morcegos, hospedeiros de vírus – pode fazer com que estes microrganismos encontrem, acidentalmente, um novo hospedeiro, que pode ser um animal doméstico ou o homem. A partir disso, pode ter início um 159
rápido processo de transmissão, favorecido ainda mais pela atual facilidade de transporte, mesmo nas regiões mais remotas. Sobre este assunto, recentemente foi divulgado um relatório, encomendado pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Sistêmicos (IPBES), ligada à ONU. O estudo, conduzido por 22 renomados cientistas, estuda a relação entre a expansão de doenças infecciosas, transmitidas de animais para pessoas (zoonoses), e a biodiversidade. O documenta estima que existam cerca de 1,7 milhão de vírus pouco conhecidos e até desconhecidos, que tem seu habitat nos organismos de mamíferos e pássaros de todo o mundo. Deste, aproximadamente 850 mil espécies de vírus têm o potencial de se transformarem em moléstias zoonóticas, ao contaminarem seres humanos. A quantidade de vírus existentes na natureza é imensa. Cientistas estimam que existam trilhões de espécies destas criaturas na Terra. Alan Burdick, repórter do jornal New York Times e mencionado no artigo publicado na revista Piauí, escreve que os vírus “infectam morcegos, feijões, besouros, amoras, mandioca, mosquitos, batatas, pangolins, carrapatos e diabos-da-tasmânia. Desenvolvem cânceres em pássaros e fazem com que as bananas fiquem pretas. Destes trilhões (de vírus), apenas algumas centenas de milhares de tipos são conhecidos e menos de sete mil têm nome. Sabemos que apenas 250, incluindo o Sars-CoV-2, possuem os mecanismos para nos infectar.” Em outro estudo, mencionado recentemente pelo site ClimaInfo, especialistas catalogaram mais de 3,2 mil tipos de coronavírus em morcegos da Amazônia. Sobre isso comentou a pesquisadora Ana Lúcia Tominho, da Universidade Federal de Mato Gross (UFMT): “Se a Amazônia virar uma grande savana, não dá nem para imaginar o que pode sair de lá em termos de doenças. É imprevisível. Além de ser importante para nós por causa o clima, da fauna, ela é importante para nossa saúde.” A espécie humana não é essencial para a sobrevivência da maior parte dos vírus, excetuando-se aqueles que provocam a febre amarela urbana, a dengue, a chicungunha, a zika e a febre do oropouche; patogênicos urbanos cujo hospedeiro preferencial é o homem. Nenhum vírus da Amazônia, vivendo no bioma há dezenas de milhares ou milhões de anos, precisa dos humanos para 160
se reproduzir. No entanto, se destruirmos seu habitat e seus hospedeiros e estivermos no lugar errado e na hora errada, poderá ocorrer o pior. A floresta fechada, atua como um escudo de proteção, tanto para o vírus, como para o homem. Ultrapassada esta barreira pela degradação ambiental, com a destruição de ecossistemas e de espécies, pode ocorre o transbordamento destes microrganismos para animais e deles para os humanos. Dado este quadro, muitos cientistas se admiram de que até o momento não tenha havido nenhuma grande explosão de alguma doença, causada por alguma espécie de vírus da floresta amazônica, do Pantanal, da Mata Atlântica, ou de outra floresta tropical pelo mundo. Muitos especialistas já dizem que não se trata de saber se tal fato vai ocorrer, mas de quando ocorrerá. Um tal acontecimento poderá ser muito mais grave do que a pandemia da Covid-19, cujo custo estimado ao planeta foi entre 8 e 16 trilhões de dólares, entre janeiro e julho de 2020. Por esta razão a ONU sugere uma resposta global coordenada, visando evitar a perda da biodiversidade.
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Diversas questões levantadas pela Covid-19
A Covid-19 é uma das maiores pandemias que afetaram a humanidade até hoje. Pela primeira vez na história, de uma maneira quase instantânea, todos os cantos do planeta foram abalados pela chegada da doença. A gripe espanhola de 1918-1919 também impactou muitos países; a Europa, os Estados Unidos e a China principalmente, mas muitas regiões, de difícil acesso à época, ficaram livres da doença. Hoje, de uma forma rápida, o vírus Covid-19, transportado por usuários de aviões, trens, automóveis, navios, atingiu quase a totalidade dos locais habitados do mundo, chegando inclusive às aldeias mais remotas e às tribos isoladas. Os tipos de impacto desta pandemia são imensos; não se trata apenas de uma ocorrência envolvendo a saúde pública. A necessidade de isolamento ou limitação do contato entre as pessoas, já teve um efeito muito grande na economia mundial, desde a produção e distribuição, até a venda de produtos e prestação de serviços. Lazer, alimentação, ensino, tratamento médico, deslocamentos e trabalho, tiveram que se adaptar à nova situação e desenvolver formas que limitassem o contato interpessoal. Ao mesmo tempo, toda esta situação acabou mostrando aspectos das sociedades, que em tempos normais vinham sendo tratados como problemas menores do relacionamento humano. O isolamento das pessoas, sozinhas, em família ou em pequenos grupos, fez com que aflorassem com mais frequência casos de violência doméstica, abuso de álcool e drogas, casos de depressão e suicídio. Nas cidades, a necessidade de isolamento das populações mostrou que nos bairros pobres das periferias e dos morros, grande parte dos moradores não têm acesso ao saneamento, nem ao menos a água tratada. O aspecto da injusta distribuição dos recursos econômicos no Brasil também foi colocado a nu durante a pandemia, principalmente em seu período mais agudo. Milhões de pessoas, sem emprego e renda, ficaram em uma situação desesperadora, em difíceis condições de sobrevivência. Com quase toda a atividade econômica paralisada, parte considerável da população ficou sem 162
qualquer rendimento, impossibilitada de comprar alimentos e outros itens de necessidade básica. Por iniciativa dos deputados de oposição, o governo se viu compelido a concordar com a distribuição de um auxilio emergencial, durante certo período. Toda esta situação trouxe de volta, tanto no Brasil quanto no mundo, a discussão sobre uma renda básica universal; um pagamento mensal a todo e qualquer cidadão, rico ou pobre, empregado ou desempregado, destinada a atender às suas necessidades básicas. Se não avança muito a discussão, pelo menos o tema está constantemente sendo abordado e estudado. A ideia é possibilitar a todo cidadão condições para que, não importa a atividade que tenha ou venha a exercer, sua sobrevivência básica esteja garantida. A questão da instituição de um serviço gratuito universal de saúde, mantido pelo Estado, se tornou mais importante. A diferença na forma como a Covid-19 foi enfrentada em países como a Alemanha, que tem um dos melhores serviços de saúde do mundo, e os Estados Unidos, que não tem serviço público de saúde, ficou patente. O papel do Estado é primordial para assegurar atendimento médico a todo cidadão, principalmente àqueles que não dispõe de recursos. Mais ainda em situações de calamidade pública como a que enfrentamos. A proteção dos recursos naturais é outro tema que chamou a atenção de empresários, governos e cientistas durante a pandemia. Estudos realizados por diversos
organismos
internacionais
mostraram
que
a
destruição
de
ecossistemas, pode fazer com que seus integrantes tentem sobreviver deslocando-se para outros ecossistemas e habitats – ou para outros hospedeiros, como no caso dos vírus do Covid-19, que encontrou um hospedeiro ideal nos sete bilhões de corpos humanos. As sociedades humanas foram colocadas frente a frente com toda uma nova gama de situações pela pandemia. Problemas e desafios, os quais, de uma maneira ou outra, geralmente foram ignorados ou tratados como secundários. Não seria agora a hora de gradualmente encaminhar soluções para estes dilemas?
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Meio ambiente e uso de recursos
Quase todas as atividades econômicas têm algum tipo de impacto ambiental negativo ao meio ambiente. Extração de petróleo e minérios, captação de água, criação de loteamentos, plantio de árvores para extração de madeira, industrias de diversos tipos, etc. Mesmo as atividades humanas mais singelas, como o carrinho de pipoca na praça, o restaurante e o escritório de contabilidade; todos têm algum tipo de impacto negativo na natureza, como uso de água, poluição do ar, geração de resíduos, uso de recursos não renováveis. Os cientistas perceberam as consequências das práticas econômicas no meio ambiente – os economistas falam nas externalidades de uma atividade econômica – e desenvolveram gradualmente procedimentos e tecnologias que reduzem o que, em outras palavras, poderíamos chamar de dano ao meio ambiente. Lembrando que o meio ambiente pertence a todos os cidadãos, sendo um bem comum, concluímos que toda atividade que impacta um ambiente ou seus recursos naturais, está provocando algum tipo de prejuízo a todos. Por exemplo, se eu exerço uma atividade econômica e, através dela, causo danos ao ambiente, como descarga de esgoto ou geração de fumaça, estou auferindo lucros à custa de um bem que é coletivo. Minha fábrica polui as águas do córrego que é um bem comum da população do bairro, ou da cidade onde atuo com meu negócio. Ficou assim estabelecido através de diversas leis, que toda atividade econômica precisa minimizar ou eliminar todos seus efeitos danosos ao meio ambiente. Se, efetivamente, a atividade se tornar poluente, seu gerador precisa pagar pela recuperação do ecossistema destruído por sua ação. No caso da minha indústria, preciso tratar os efluentes antes de lançá-los no córrego, ou até não descarregar o esgoto no curso d’água, recuperando e reciclando o líquido que utilizo. Esta seria a situação ideal. Ideal no Brasil, porque na maior parte dos países avançados industrialmente esta prática é comum. Tão comum, que em vários 164
ramos das atividades econômicas, muitos governos federais e locais incentivam a pesquisa, a fabricação e a implantação de tecnologias que permitam reduzir a poluição. O conceito, conhecido como “produção mais limpa”, também utilizado em indústrias de ponta no Brasil, procura otimizar o uso dos insumos produtivos – matérias primas, água, energia, equipamentos, mão de obra, etc. – gerando o mínimo possível de resíduos, como efluentes, gases e resíduos sólidos. Em segmentos
econômicos
altamente
competitivos,
como
a
indústria
eletroeletrônica e a automobilística, o uso racional de recursos e a redução dos impactos ambientais – e os custos implicados em sua eliminação – são fatores fundamentais para o sucesso de uma marca. A participação da indústria brasileira na economia vem lentamente caindo ao longo das últimas três décadas; o país está se desindustrializando. Diminuíram os investimentos em novas linhas de produção e na modernização – leia-se otimização – das unidades produtivas já existentes. Isto, em outras palavras, também quer dizer que a indústria não está produzindo de uma maneira mais eficiente, seja do ponto de vista econômico ou ambiental. Além de tornar nossos produtos menos competitivos, isto também faz com que nossos processos industriais sejam mais poluidores e dissipadores de insumos. A maior parte das indústrias médias brasileiras, principalmente aquelas dos segmentos industriais mais tradicionais, não dispõe de incentivos e pressões para investir em processos produtivos mais modernos. Por um lado, não sofrem pressão de seus clientes ou consumidores, talvez exigindo produtos mais modernos ou fabricados com menor impacto ambiental. A concorrência que enfrentam de produtos importados mais modernos é reduzida, e a pressão das agências ambientais para a implantação de tecnologias de fabricação mais limpas é reduzido. Já em centros industrias de ponta, como os Estados Unidos, o Japão, a China e a Alemanha, a história é diferente. Além de leis ambientais cada vez mais restritivas, notadamente na Europa, as indústrias são pressionadas por suas associações, por seus clientes, por agências ambientais e pela competição dos concorrentes, a tornarem seus processos sempre mais eficientes, utilizando menos recursos. Matérias primas, energia e outros recursos naturais são cada vez mais caros nessas regiões, e nada pode ser desperdiçado – além da pressão 165
de uma opinião pública muito consciente, que exige atividades industriais cada vez menos impactantes. Gradualmente, preveem os especialistas, com o aumento da pressão em todos os países por redução de emissões de gases e de resíduos, dominarão o mercado apenas as indústrias mais eficientes. Àquelas industrias, que por várias razões não puderem se modernizar, sobrarão apenas os mercados e os clientes/consumidores menos exigentes, que evidentemente terão um poder de consumo mais baixo. Mas isto é apenas parte da história. Qualquer atividade econômica situada na produção, na distribuição ou no consumo, nunca chegará ao ponto de eliminar completamente a geração de externalidades, com impacto sobre o meio ambiente. A teoria do “resíduo zero”, disseminada por algumas instituições ligadas à pesquisa da produção e do consumo nos anos 1990, nunca será alcançada. Sempre, durante toda a cadeia produtiva e de consumo, sobrará algum resíduo ou emissão. Com isso num prazo ainda não calculado, ficarão escassos os insumos, como certos metais e terras raras, petróleo, água limpa, terras aráveis, entre outros. Mas isto já é tema para um outro artigo.
166
A eleição de Biden e a questão ambiental
Há quatro anos, em novembro de 2016, escrevemos um artigo sobre a eleição de Trump e suas consequências para o meio ambiente (A eleição de Trump e o meio ambiente - https://ricardorose.blogspot.com/2016/11/a-eleicao-de-trump-eo-meio-ambiente.html). Como esperado, a atuação do 45º presidente eleito dos Estados Unidos exerceu forte influência na maneira como seu país e parte do mundo passou a tratar o meio ambiente. Além de eliminar diversas providências encaminhadas por seu antecessor, Barak Obama, Trump retirou poder da agência de controle ambiental americana, a EPA (United States Environmental Protection Agency), diminuiu o tamanho de áreas de proteção ambiental e de parques naturais, reduziu o número de medidas de avaliação de impacto ambiental em obras de infraestrutura, e concedeu licenças para diversos projetos de alto risco ao meio ambiente, como o gigantesco oleoduto Keystone XL que se estende do Canadá aos Estados Unidos. No setor de transportes, gerador de grandes volumes de emissões, a administração Trump reduziu os padrões de eficiência energética em veículos e dificultou o desenvolvimento de meios de transporte mais limpos. Sua mais polêmica ação, de grandes consequências para o clima do planeta, foi a retirada de seu país do acordo climático de Paris, através do qual 195 nações ratificaram sua intenção de reduzirem as emissões de gases de efeito estufa (GEE), a partir de 2020. Os Estados Unidos, lembremos, é o segundo maior emissor de GEE depois da China. Neste ano os Estados Unidos organizaram uma nova eleição presidencial e Joe Biden foi eleito como 46º presidente na nação. Trump alega que houve fraude no pleito, está recorrendo na justiça, mas já deu início à transferência de governo ao sucessor, que deverá tomar posse em 20 de janeiro de 2021. Em declarações à imprensa, Biden já confirmou que com relação às questões ambientais recolocará os Estados Unidos no acordo climático de Paris e que reverterá uma série de decretos assinados por seu antecessor. O novo presidente planeja
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retomar o Plano de Energia Limpa, que prevê a redução das emissões de CO² das usinas de geração de energia em 30%, até 2030. Este plano energético, elaborado durante o governo Obama, nunca havia entrado em vigor, por ter sido contestado na justiça por uma coalizão de empresas e governos estaduais republicanos. O foco principal da administração Biden em relação ao meio ambiente será a redução das emissões de carbono do país para zero, até 2050. Para isso, sua administração planeja investir cerca de 2 trilhões de dólares, em um ambicioso programa baseado principalmente em eficiência energética e nas energias renováveis, gerando milhões de empregos verdes (postos de trabalho em empresas ambientalmente sustentáveis). Na área da energia eólica, por exemplo, Biden pretende impulsionar a geração de energia eólica offshore, através de turbinas eólicas instaladas ao longo do litoral dos estados da costa Leste e da Califórnia. A cadeia da indústria automobilística, criadora de grande número de empregos diretos e indiretos, também receberá fortes incentivos para aumentar a produção de carros com motores elétricos. O setor da construção civil terá como principal meta o uso eficiente de materiais e energia, através da modernização e renovação (retrofitting) de prédios públicos e privados. Todas estas metas e outras ainda a serem acrescentadas ao programa, farão parte de um projeto já conhecido como Green New Deal (pacto ecológico), com vistas a modernizar a economia americana, gerando empregos verdes e baixas emissões de carbono (https://www.heritage.org/renewable-energy/heritageexplains/the-green-new-deal).
As estratégias e metas desta iniciativa do
governo americano são bastante semelhantes ao Pacto Ecológico Europeu (https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/european-greendeal_pt). Biden e o Partido Democrata estão encarando a questão ambiental de maneira bastante séria. Assim como a União Europeia fez há alguns meses, os Estados Unidos pretendem dar um novo direcionamento à sua política econômica na era pós-covid19. Convencida da inexorável realidade da mudança do clima acelerada pelo impacto da economia americana e do gradual aumento da temperatura do planeta se nada for feito para abrandar as emissões, a nova 168
administração americana pretende dar um novo rumo ao desenvolvimento de sua economia, baseado nos parâmetros da sustentabilidade. Esta intenção Biden pretende também deixar clara aos outros países. Tanto que indicou o ex-secretário de Estado do governo Barak Obama, John Kerry, para o cargo de enviado especial do Meio Ambiente (special presidential envoy for climate). Segundo reportagem apresentada recentemente na CNN online, quando o senador Bernie Sanders em 2016 classificou a questão das mudanças climáticas como “a mais importante questão de segurança nacional”, não foi levado a sério. Cinco anos depois, a própria Casa Branca criou o cargo de enviado especial do Meio Ambiente, com cadeira permanente nas reuniões do Conselho Nacional de Segurança. Kerry tem longa experiência nas questões climáticas, tendo desempenhado importante papel nas negociações para o Acordo Climático de Paris. Este é o recado que os Estados Unidos agora transmite às outras nações do planeta: a questão do clima é séria e estamos empenhados em agir em relação a ela. Retomando seu papel de pioneiros na discussão e na criação de leis ambientais desde a década de 1960, a nação americana pretende, depois de quatro anos de ausência, voltar ao protagonismo e à liderança no tema. Com isso, exercerão uma grande influência sobre outros países. Se o exemplo da administração Trump foi negativo, fazendo com que os temas ambientais fossem relegados a um plano secundário, permitindo que muitas nações usassem implícita ou explicitamente o exemplo americano para também não agirem em relação ao clima, a partir de agora o quadro muda. A proteção aos recursos naturais, sejam quais forem, novamente é o assunto do dia na nova ordem econômica mundial pós-covid19 e pós-administração Trump – palavra da União Europeia e dos Estados Unidos. O Brasil será uma peça importante nesta estratégia climática da administração Biden, como o próprio presidente já adiantou durante os debates eleitorais. A campanha presidencial de Biden recebeu forte apoio de grupos ligados às questões ambientais, de dentro e de fora do partido democrata. Assim, a questão da Amazônia com certeza será uma das primeiras pautas das reuniões entre os dois governos. Até o momento foram dizimados 20% da área original da floresta, mas se chegarmos aos 25% da área, poderemos alcançar “o ponto de não 169
retorno”, como os cientistas classificam esta situação. Nestas condições não há mais certeza se e em quanto tempo o ecossistema poderá se recuperar. Não se recuperando, a Amazônia poderá em parte se transformar em uma região de savana, de vegetação rala, com menor volume de recursos hídricos e com consequências para a biodiversidade; o clima e a agricultura no Brasil – além de outras implicações econômicas – e o clima mundial. Sabe-se hoje que a floresta amazônica não tem forte influência na remoção dos GEE da atmosfera, mas que exerce grande interferência na umidade e na temperatura do ar da macrorregião amazônica e também no planeta. As características da Amazônia têm uma influência tão grande na Terra, que sua manutenção é motivo de preocupação de todos. Ninguém questiona a posse da região pelo Brasil, mas espera-se que o país faça a gestão da área de tal maneira, que o tênue equilíbrio que ainda existe entre todos os aspectos naturais possa ser mantido – pelo bem de todos. É evidente que a manutenção do ecossistema exigirá aportes de tecnologia, recursos humanos e financeiros, para que os moradores da região tenham um padrão de vida digno, de modo a não serem forçados a práticas de sobrevivência não sustentáveis, como vem ocorrendo em alguns casos. Deve-se pensar numa série de compensações para os estados e municípios da região, proporcionando-lhes o mesmo padrão de vida de outras regiões do país. Biden já falou em uma ajuda de 20 bilhões de dólares para desenvolver a região de uma maneira sustentável. O países europeus, com certeza, também terão interesse em cooperar em projetos de desenvolvimento social e econômico na região. Mas isto seria apenas o começo. O reverso da moeda é o papel que o governo brasileiro precisa desempenhar, voltando a controlar e gerenciar o território, coibindo todo tipo de desmantelamento dos recursos através de desmatamento e garimpo ilegal, grilagem, invasão de áreas indígenas e de unidades de conservação. Neste aspecto cabe ressaltar que o atual governo não tem bons antecedentes. Bolsonaro sempre teve uma maneira, digamos assim, peculiar de enxergar a questão ambiental. Como ministro do Meio Ambiente indicou Ricardo Salles, que já havia atuado como Secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo, 170
tendo sido processado por irregularidades em sua administração. No cargo, Salles desmontou parte da estrutura técnica dos principais órgãos ambientais federais e limitou as ações de controle do órgão ambiental. O governo cortou grande parte das verbas do Ministério do Meio Ambiente e reduziu drasticamente os recursos em outras iniciativas na área do meio ambiente. O posicionamento do governo em relação ao assunto deu abertura para que diversos agentes – grileiros, fazendeiros, posseiros, madeireiros e garimpeiros – aumentassem a derrubada e queima da floresta ao longo do biênio 2019/2020. O fato, amplamente coberto pela imprensa local e internacional, causou protestos em diversos países e por organizações internacionais, colocando o Brasil no papel de vilão ambiental do planeta. Com isso, é bastante provável que o país seja alvo de pressão por parte do governo americano e que seja cobrado para que tenha uma atuação mais forte na questão da floresta amazônica. Para mudar sua imagem o país precisará mostrar que efetivamente está mudando sua atitude; o que até o momento não ocorreu. Um discurso pseudo nacionalista, baseado na premissa de que potências estrangeiras querem invadir ou extrair as riquezas da área, só trará mais problemas políticos para o nosso país e não ajudará a melhorar as condições sociais e ambientais da região. O Brasil deveria se valer deste novo ambiente político mundial, que se formou com a eleição de Biden e a importância dada novamente à questão do clima, para tirar vantagem do fato de possuir um bioma como a Amazônia – e outros, como a Mata Atlântica e a região do Pantanal. No passado, nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, o Brasil já teve um papel de protagonista na questão climática e na do meio ambiente, e poderia retomar esta posição. Assim, o governo poderia condicionar a preservação destas áreas à assinatura de acordos de cooperação técnico-científica para o desenvolvimento sustentável da região, à elaboração de projetos de geração de renda, aos acordos comerciais e acesso a novos mercados, entre outros. O pior a fazer, tanto para o Brasil como para o mundo é manter as coisas como estão – se é que isso será possível neste novo contexto político-econômico mundial.
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Industrialização, educação e mídias
A industrialização do Brasil teve início no final do século XIX, na cidade do Rio de Janeiro. A disponibilidade de capitais gerados pela agricultura cafeeira, no entanto, fez com que a partir dos primeiros anos do século XX o processo de industrialização se acelerasse em São Paulo, atraindo imigrantes e migrantes, tornando a cidade a maior metrópole do país. Ao longo do século XX, o país vai gradualmente aumentando seu parque industrial, notadamente a partir dos anos 1940, quando se estabelece uma indústria de base. Depois da 2ª Grande Guerra, a industrialização toma força nos anos 1950 e início dos anos 1960, com a ampliação da infraestrutura rodoviária e da geração de energia. A pujança do crescimento da indústria, está demonstrado pela participação do setor no PIB nacional ao longo dos anos: Participação da indústria no PIB brasileiro Anos
Percentual de participação
1940-1950
Entre 19% e 20%
1960-1970
Entre 25% e 30%
1985
35%
2000
15,3%
2005
17,4%
2010
15%
2015
12,2%
2019
11%
A industrialização de um país sempre foi relacionada com a redução da taxa de analfabetismo. Não que a relação seja direta, mas para que uma região ou país de industrialize ou aumente sua estrutura industrial, é preciso que haja disponibilidade de uma mão de obra capacitada que, à medida que o processo produtivo se torna mais sofisticado, precisa ser melhor preparada. Com a expansão da atividade industrial, geralmente nas cidades, aumenta a demanda 172
por mão de obra mais ou menos especializada. Com isso, cresce a migração de populações de outras regiões para estes centros urbanos. Paralelamente, seja pelos
requisitos
da
profissão,
quanto
pelas
exigências
do
Estado
(obrigatoriedade do ensino básico), aumenta a matrícula de alunos em instituições de ensino, fazendo com que diminua o analfabetismo. Este processo é observado como tendo ocorrido com bastante ênfase na Europa, mais acentuadamente na segunda metade do século XIX, quando o capitalismo industrial se torna mais complexo em seus processos industriais e administrativos, passando a exigindo operários e profissionais com alfabetização básica ou formação específica. No Brasil a lenta diminuição da taxa de analfabetos corre em paralelo com a industrialização e a crescente mudança de parcelas consideráveis da população do campo para as cidades, onde a oferta de educação é maior. Entre as décadas de 1940 e 1980, cerca de 40 milhões de brasileiros tomaram o caminho da roça para a metrópole. Outro aspecto importante deste processo de urbanização da população, do acesso à educação e, consequentemente, de obtenção de melhores postos de trabalho, foi formação de uma classe média. Assim, a exemplo de outros países, o crescimento da atividade industrial no Brasil acabou contribuindo para a redução da taxa de analfabetismo, já que as indústrias requeriam trabalhadores com uma certa formação educacional básica. Esta relação entre capital e mão de obra contribuiu para diminuir a taxa de analfabetismo e a expansão do sistema educacional:
Redução da taxa de analfabeto no Brasil 1900-2015 Anos
Percentual de analfabetos/população
1900
65,3%
1940
56,1%
1960
39,7%
1980
25,9%
2010
9,6%
2015
8% 173
O maior indutor de políticas públicas educacionais é o Estado, que tem a tarefa de possibilitar o acesso à educação e erradicar o analfabetismo no país. Mesmo assim, ainda são cerca de 11 milhões de pessoas no Brasil, que não sabem ler e escrever, sem acesso à plena cidadania. Os índices variam de região para região no país, sendo mais altos nas regiões Norte e Nordeste e mais acentuados entre a população acima de 60 anos. No contexto latino-americano, o Brasil é um dos países com as maiores taxas de analfabetismo, só sendo ultrapassado por El Salvador, Honduras e Guatemala. Em outras nações latinoamericanas, como a Argentina, o Chile, o Uruguai e a Bolívia, o analfabetismo foi quase eliminado. Além do analfabetismo absoluto, o país também enfrenta a questão do analfabetismo funcional, um problema talvez mais amplo, por afetar um número bem maior de pessoas. Não existem números exatos sobre a quantidade de analfabetos funcionais no Brasil, mas seu percentual que era de 39% da população em 2001, atualmente é estimado em cerca de 30% (cerca de 63 milhões de pessoas). Dados indicam que este índice atinge 53% entre as pessoas acima de 50 anos. A denominação vem do fato de que os analfabetos funcionais são capazes de reconhecer letras e números, mas não têm capacidade de compreender textos simples e realizar operações matemáticas mais elaboradas. Mesmo em queda, este tipo de analfabetismo chega a afetar estudantes dos cursos superiores, prejudicando a capacidade de aprendizado do aluno. Conforme pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro, 50% dos entrevistados declararam não ter o hábito da leitura de livros, por não terem capacidade de entender seu conteúdo, apesar de tecnicamente serem considerados alfabetizados. Segundo o educador João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto, apenas 16% dos brasileiros atingem o nível 3 do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), considerado o minimamente necessário para se poder fazer qualquer tipo de reflexão a partir de um texto. No PISA, o nível 3 é definido da seguinte forma: “No Nível 3, os estudantes são capazes de manipular itens de leitura de complexidade moderada, tais como situar fragmentos 174
múltiplos de informação, vincular partes distintas de um texto e relacioná-lo com conhecimentos cotidianos familiares.” Ainda segundo Oliveira no mesmo artigo, publicado na revista Veja Online em 12/11/2018, 25% da força de trabalho no Brasil é formada por analfabetos funcionais e outros 25% possuem o nível elementar, “são apenas capazes de selecionar uma ou mais unidades de informação, observando certas condições, em textos diversos de extensão média realizando pequenas inferências.” Não têm capacidade de ler e entender um manual de instruções. Estas condições educacionais têm, por sua vez, grande influência em uma série de aspectos da cultura do país, do nível de informação da população, da prática política e da própria convivência entre os cidadãos. Na área da cultura, por exemplo, mais especificamente em relação aos livros, constata-se que a compra deste item de consumo vem caindo ao longo dos últimos anos. Em pesquisa realizada no primeiro semestre de 2020 pela empresa Nielsen Book, sob contrato da Câmara Brasileira do Livro (CBL) e do Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) constatou-se que o subsetor de Obras Gerais teve crescimento de 28% nas vendas totais (mercado e governo) em 2019. O aumento, todavia, não conseguiu compensar queda nas vendas nos anos anteriores, que acumulou uma redução de 34% nas vendas totais entre 2006 e 2019. O subsetor de livros científicos, técnicos e profissionais registrou uma queda de 41% no mesmo período. O brasileiro lê em média 2,5 livros inteiros por ano, de acordo com uma pesquisa realizada pelo Instituto Pró-Livro e Instituto Itaú Cultural, entre outubro de 2019 e janeiro de 2020. Entre 2013 e 2019 o Brasil perdeu 4,6 milhões de leitores; a percentagem caiu de 56% para 52% da população que regularmente lia. A maior queda no número de leitores foi identificada no grupo das pessoas com ensino superior, que passou de 82% de leitores em 2015 para 68% em 2019. Na classe A, o consumo de livros passou de 76% para 67% das pessoas. Falta de tempo e envolvimento com internet e as redes sociais, foram dados como motivos para a diminuição da leitura de livros.
175
O estudo também registrou que os não leitores, pessoas com mais de 5 anos que não leram livro algum, mesmo parcialmente, nos últimos três meses anteriores à pesquisa, perfazem 48% da população, ou cerca de 100 milhões de brasileiros. Entre estes, os principais motivos alegados por não terem o hábito da leitura, foi a falta de tempo (34%) e por não gostarem de ler (28%). Para explicar os problemas de tiragem enfrentados pelo setor livreiro e pela mídia impressa, é preciso considerar os aspectos educacionais e sociais acima relatados, e levar em conta a crise econômica pela qual passa o país desde 2014. Houve uma gradual queda nas vendas de mídia impressa, enquanto que a mídia eletrônica, formada por jornais e revistas online, blogs de informação e sites especializados, se tornou ágil e econômica.
A própria diminuição da
atividade econômica no país também causou uma significativa redução na impressão de jornais e revistas. Outro aspecto a ser assinalado, é que a pouca leitura e a busca de informações através das redes sociais – Whatsapp, Facebook, Tweeter e Instagram, entre outros – em lugar das mídias especializadas, impressas ou eletrônicas, dá espaço para a circulação de muita informação inverídica, ideias cientificamente incorretas, ideologias extremistas, além de muito conhecimento inútil. A partir do momento em que as pessoas começam a formar sua visão de mundo e suas opiniões baseadas neste tipo de material, tornam-se vítimas de grupos políticos ou religiosos, muitas vezes extremistas, que passam a influenciar ou até a condicionar seus comportamentos. Em suma, o que pode estar acontecendo é que o número de potencias leitores não está aumentando por três principais fatores. Primeiro, o próprio interesse pela leitura parece estar diminuindo ou pelo menos não está aumentando. Isto devido a fatores educacionais, como exemplificado pela persistência do analfabetismo funcional, fruto de falhas no processo de ensino. Não havendo compreensão do conteúdo, diminui o interesse pela leitura. Segundo, pela concorrência das mídias eletrônicas e redes sociais, de fácil acesso e veiculando o que os usuários consideram interessante ou, pelo menos, fácil de compreender. Terceiro, pela crise econômica que assola há anos o país,
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provocando diminuição da renda da população e impossibilitando a compra de livros; nestas circunstâncias considerados artigos de luxo.
Referências: Indústria no Brasil. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ind%C3%BAstria_no_Brasil#:~:text=As%20origens %20industriais%20no%20Brasil,em%20Pernambuco%20e%20na%20Bahia Acesso em 18/11/2020
Alfabetização e desenvolvimento. Disponível em: <https://www.scielo.br/pdf/rbedu/v19n58/02.pdf> Acesso em 18/11/2020 Mola de emprego e do PIB, indústria brasileira não reage e emperra avanço do PIB. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/economia/2020-03-04/mola-de-emprego-e-do-pibindustria-brasileira-nao-reage-e-emperra-avanco-da-economia.html>
Acesso
em 18/11/2020 Desindustrialização no Brasil: um resumo da evidência. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/11689/Desindust rializa%C3%A7%C3%A3o%20no%20Brasil.pdf> Acesso em 18/11/2020
3 em cada 10 brasileiros não conseguem entender este texto. Disponível em: <https://todospelaeducacao.org.br/noticias/inaf-3-em-cada-10-brasileiros-naoconseguiriam-entender-este-texto/> Acesso em 18/11/2020
Analfabetismo funcional: novos dados, velhas realidades. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/blog/educacao-em-evidencia/analfabetismo-funcionalnovos-dados-velhas-realidades/>. Acesso em 18/11/2020
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Analfabetismo funcional. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/gramatica/analfabetismo-funcional.htm> Acesso em 18/11/2020
A evolução da indústria do livro nos últimos 14 anos. Disponível em: <https://www.publishnews.com.br/materias/2020/07/08/a-evolucao-da-industriado-livro-nos-ultimos-14-anos> Acesso em 19/11/2020
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A pandemia nas letras e na realidade
Todo acontecimento digno de nota em uma sociedade é tema para os historiadores. A partir de um fato como um crime político, uma guerra, uma reforma econômica, uma epidemia ou um acidente de grandes proporções, o estudioso procura-lhe as causas e consequências. Analisa suas implicações em outros fatos, os envolvidos, descobrindo e esclarecendo intenções e interesses de pessoas e grupos, por trás do ocorrido. O fato é apresentado dentro de um ambiente social, político e econômico, específico de um determinado momento da história, o que permite entendermos sua origem e desenvolvimento. Foi assim que os historiadores, sociólogos e escritores estudaram as epidemias e as pandemias ocorridas ao longo da história da humanidade, principalmente no Ocidente a partir da Idade Média, dada a dificuldade de se obter informações sobre tais acontecimentos em outras partes do globo. Baseados nas informações obtidas de diversas fontes sobre estes surtos de doenças, suas origens e consequências econômicas, sociais, políticas e culturais, os autores construíram relatos, verdadeiros ou fictícios, descrevendo como sociedades e pessoas reagiram a estas ameaças. Assim, são numerosos as publicações tratando do tema, nas listas dos livros mais lidos e nos novos lançamentos. Textos abordando o surto de sarampo entre os índios americanos e sobre a peste bubônica em uma aldeia da Toscana, ambos ambientados no século XVII; outra obra estudando a origem da malária na África; os quase 100 milhões de mortos com a Gripe Espanhola entre 1918/1919; e a disseminação da febre amarela nos Estados Unidos em meados do séculos XIX. Todos livros em inglês, ainda não disponíveis no Brasil. Em todos os mais importantes sites de literatura americanos, encontra-se uma lista dos sete ou dez mais importantes livros sobre epidemias a ler durante a quarentena – apesar da crise econômica também afetar os Estados Unidos, o americano médio ainda tem condições de manter um relativo isolamento e ainda sobra dinheiro e tempo para os livros. 179
Aqui no Brasil os sites especializados em literatura indicam, por exemplo, O Diário do Ano da Peste de Daniel Defoe (1660-1731), novela que retrata a peste bubônica que assolou a cidade de Londres de 1665 a 1666, matando um quarto da população, e o romance A Peste do escritor e filósofo Albert Camus. Gabriel García Márquez, com seu O Amor nos Tempos de Cólera e o Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago também são lembrados. Com uma pesquisa na internet é possível encontrar diversos livros que tratam das epidemias sob aspectos históricos, científicos e literários. A rede também dispõe de uma série de textos informativos – de nível jornalístico e científico –, com informações e conhecimento detalhados a respeitos da pandemia que afeta o mundo e o Brasil. Informação e conhecimento são importantes em momentos históricos como o que vivemos. Capacitam a população a entender o fato; suas origens e as consequências que terão para a vida individual e da sociedade. Permitem compreender como chegamos às condições históricas nas quais nos encontramos – o aqui e o agora – e o que é necessário fazer para que possamos avançar.
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Vacina obrigatória?
O Brasil já passou por poucas e boas, como diriam nossos avós, com relação à sindemia da Covid-19. O termo “sindemia”, criado pelo antropólogo Merril Singer nos anos 1990, foi retomado recentemente pela prestigiosa revista científica The Lancet, com o argumento de que a pandemia, além dos impactos na saúde das pessoas, também tem efeitos sobre a economia, o meio ambiente, as relações sociais e muitas outras áreas. Nós, por aqui, já escutamos muitos relatos, em sua maioria falsos, sobre a sindemia da Covid-19. Foi dito que se tratava apenas de uma gripezinha; que afetaria poucas pessoas; que existiriam drogas baratas e de fácil acesso (hidroxicloroquina e ivermectina) para combater a doença; que o vírus fora criado na China, com objetivo de destruir a civilização cristã ocidental; que era preciso que deixássemos de ser maricas em relação à doença; que um plano de vacinação estava em gestação, e assim ad nauseam. Além dessas informações, vários outros boatos, por vezes maldosos, tiraram a serenidade da população. Muitos, ante o desencontro das notícias, ficaram completamente confusos, sem saber como agir, esperando uma orientação firme, clara e convincente – que não veio. Se o povo tivesse sido melhor esclarecido, talvez não chegássemos às mais de 180 mil mortes. O segundo capítulo desta história está se desenrolado agora: a questão da vacina. Quais imunizações estão sendo aprovadas; quais foram compradas pelo ministério da Saúde; quando o plano de vacinação estará definitivamente elaborado; quando começará a vacinação? Na população, em grande parte como resultado das campanhas de fake news disseminadas nas bolhas das redes sociais, e da falta de informação e clareza por parte do governo, aparece outra (falsa) discussão: a vacina deve ou não ser obrigatória? Para indivíduos de bom senso, a resposta seria clara: “Sendo ou não obrigatória, a vacina será tomada por todos, a fim de desacelerar a pandemia de covid 19, reduzindo as mortes e internações, para que a sociedade brasileira possa gradualmente retomar suas atividades normais.” Esta deveria ser a reação de pessoas sensatas e racionais, que reconhecem a gravidade da sindemia. 181
O número de pessoas que são contra a obrigatoriedade da vacina sob pretexto da defesa da “liberdade individual”, está, ao que parece, diminuindo. Apesar disso, ainda é grande o número daqueles que – seja por que motivo for – dizem que não pretendem tomar a vacina. Não farei aqui, como outros já fizeram, comentários sobre a idade mental desses indivíduos; deixemos isto de lado. É evidente que a liberdade individual não é absoluta para quem vive em sociedade. A questão da liberdade só não se coloca para alguém que, como Robinson Crusoé, viva completamente isolado. Neste caso, não faz o menor sentido falar em liberdade; não há necessidade. Liberdade em relação a quem ou o a quê? No famoso romance homônimo de Daniel Defoe, até a chegada do nativo batizado de “Sexta-Feira”, Robinson vivia sozinho; agia absolutamente de acordo com sua vontade, que era sua lei. Assim, só faz sentido falar em liberdade quando se vive junto com outras pessoas, sujeito a regras e leis – o que é o caso de 99,9% da humanidade. A exceção talvez sejam Rômulo e Remo, os irmãos da obra Eneida do poeta romano Virgílio, dos quais o primeiro foi o fundador de Roma, que foram criados por uma loba. Também poderíamos incluir nesta curta lista o jovem Kaspar Hauser (1812-1833), que dizia ter crescido em uma masmorra, sem contato com humanos. Afora estes personagens míticos e misteriosos e alguns outros relatos de outras partes do globo, parece que a maioria de nós nasceu, cresceu e vive em sociedade. Os contratualistas como filósofos Hobbes e Locke, situam o origem do Estado num acordo feito entre os homens de um passado remoto. Para assegurar sua segurança, contando com a proteção do chefe, do rei ou de um governante do Estado, os homens abriram mão de parte da liberdade da qual gozavam, quando estavam sem governo (em estado selvagem, de liberdade total). Assim, em troca de proteção contra inimigos externos, contra ataques de vizinhos, os homens dispuseram-se a seguir certos regulamentos, certas leis – o que significava abrir mão de parte de sua liberdade. Não se sabe se a história humana transcorreu exatamente desta forma, mas fica evidente que, a partir do momento em que os homens decidem viver em grupos cada vez maiores, precisam abrir mão de parte de sua autonomia. A independência da qual desfrutavam grupos nômades de caçadores do Paleolítico e do Mesolítico, sem dúvida era muito maior daquela 182
dos primeiros agricultores sumérios do Neolítico. Todavia, gradualmente, ao se formarem as aldeias com sua infraestrutura, seus grupos de defesa e seus estoques comunitários de alimentos, a renúncia à parte da liberdade terá valido a pena para a sobrevivência destas primeiras sociedades, sujeitas a rudimentos de leis ou acordos de convivência. Voltemos agora ao século XXI, para nossa complexa sociedade, que existe baseada em leis já acordadas e ainda aprovadas por todos. Por um lado, pertencemos a uma coletividade onde todos têm o direito a receber os benefícios estabelecidos na Constituição brasileira; direito à vida digna, sob todos os aspectos. Por outro lado, alguns membros desta sociedade dizem que não se sentem compelidos a cumprirem sua parte do acordo social, o que hoje significa não querer tomar a vacina contra o vírus da Covid-19. Receber os benefícios, mas não fazer os sacrifícios? Em sociedade teocráticas – muitos grupos antivacina têm forte orientação religiosa – a desobediência às normas do Estado significa uma desobediência às leis da religião. Paradoxalmente, tal tipo de revolta contra a vacina só é possível em um Estado laico e não “terrivelmente cristão”. O impasse está colocado. A questão será, sem dúvida, resolvida de forma democrática. Mas é possível que em diversos lugares as próprias instituições cuidem do caso à sua forma, colocando barreiras aos não vacinados. Países instituirão barreiras sanitárias, empresas podem exigir que seus funcionários sejam todos vacinados; o mesmo valendo para cinemas, teatros, clubes, academias de ginástica, eventos, museus e outros locais de grande frequência de público. De uma forma ou de outra, a solução virá, já que quanto mais demorar para que se alcance um número ideal de imunizados – a imunidade de rebanho – mais tempo se estenderá a sindemia, com todas as suas implicações. Mais uma pergunta que me ocorre agora, ao final do texto. Não sendo obrigatória a vacina, ocorrerá que muitas pessoas não a tomarão, alegando motivos diversos, frutos da ignorância e falta de informação e outros baseados em ideologias extremistas. O jornal Folha de São Paulo informa que cerca de 20% dos brasileiros afirmam que não querem ser imunizados. Neste caso, o que ocorrerá se alguém que ainda não pode tomar a vacina, for comprovadamente 183
infectado por alguém que se negou a tomá-la? Quem será responsabilizado? O Estado, que facultou a cada um a escolha de tomar a vacina ou não, colocando assim parte da população em risco? Ou, como geralmente acontece, o ônus recairá sobre o cidadão?
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